Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O FILHO DE THOR
Primeira Parte
O Inverno é duro em Rogaland. Os telhados de colmo ensopados estremecem sob a sua cobertura de neve. Dentro dos redis, as ovelhas tremem encostadas umas às outras, exalando pequenas nuvens de vapor pela boca. Um homem pode perder-se entre a vacaria e a casa e ser encontrado, apenas, na Primavera. A mortalha que o cobre é profunda, mas o seu sono é mais profundo ainda. Numa tal estação, o gelo é espesso nos lagos e nos rios. Para alguns é uma boa estação: os mercadores chicoteiam os seus cavalos ao longo das superfícies geladas, os trenós atulhados de peles de esquilo, de lebre e de foca, de óleo e de presas de morsa, de peixe salgado e de tecidos. Os rapazes deslizam pelo rio nos seus patins de osso, rápidos como andorinhas, as suas vozes ecoando e desaparecendo ao longe por entre os ramos pálidos dos arbustos de Inverno.
Era dia de Yuletide e nesse dia não se podia patinar. O vento uivava em redor do templo, exigindo entrar, por meio dos seus dedos cortantes, em qualquer fenda ou greta. As pranchas de madeira rangiam e grunhiam em resposta, mas aguentavam-se. Até então, o telhado não metera água. Ainda bem, pensou Eyvind, que subira lá acima e tirara algum peso das traves. O local estaria repleto de gente para o sacrifício do solstício de Inverno.
As pessoas já se aproximavam do vale em trenós e a pé, de esquis e de patins, os anciãos às costas dos filhos, as anciãs em padiolas puxadas por crianças de rostos vermelhos, ou cães ofegantes. O vento amainou, como que retendo a respiração em honra da ocasião, mas aproximava-se uma nova tempestade. A Oeste, as nuvens escuras acumulavam-se.
Eyvind trabalhara arduamente. O templo estava situado nas terras da sua mãe, se bem que fosse partilhado por todos nas redondezas, por isso o fardo dos preparativos competia, honrosamente, à casa de Hammarsby. O jovem passara a manhã a cortar lenha, empilhando os toros de cheiro ácido junto da lareira central e acendendo-a. Eram quase horas da cerimónia; devia remexer as brasas e pôr mais lenha. O bode branco podia ser ouvido no exterior, balindo lastimosamente. As suas irmãs tinham varrido o soalho de pedra e tirado as teias de aranha das traves do tecto, enquanto a sua mãe, Ingi, polia as superfícies de bronze das facas e das taças cerimoniais até ficarem brilhantes. Estas estavam agora prontas em cima do altar, no extremo norte do templo. Uma luz fria entrava pelo telhado de ripas por cima da lareira. Do altar, a imagem de Thor olhava para Eyvind. De sobrancelhas espessas e grandes barbas, as feições de madeira do deus tinham uma expressão de desafio feroz. A sua mão direita, enluvada de ferro, segurava um machado de guerra, o Mjollnir; a sua mão esquerda estava-lhe atravessada no peito, para significar que expressava um voto. Eyvind olhou para ele, aguentando-lhe o olhar sem pestanejar e a sua mão foi também ao peito, como se estivesse a retribuir um juramento de fidelidade. Até à morte, pensou ele que dizia Thor, e murmurou a resposta:Até à morte e para lá dela.O ar estava frio e seco e o espaço sagrado limpo e tranquilo à luz fria do Inverno. Mais tarde haveria muitos corpos comprimidos no templo e a temperatura subiria. Eyvind ouviu um som por trás de si quando utilizava o atiçador de ferro para avivar o lume. O jovem virou-se e viu uma figura alta e compacta caminhando na sua direcção, os cabelos e a barba dourados pelo brilho do fogo reanimado.Quem diria, irmãozinho? Duplicaste o teu tamanho desde as colheitas!Eyvind sentiu um sorriso enorme espalhar-se pelo seu rosto.Eirik! Chegaste! Diz-me por onde andaste e o que fizeste! Quero saber tudo!O irmão deu-lhe um breve mas forte abraço e depois estendeu as mãos para se aquecer ao lume.Mais tarde, mais tarde riu-se ele. Temos tempo para isso depois do sacrifício. Ouvirás muitas histórias, porque não vim sozinho!Hakon também veio? perguntou Eyvind ansiosamente. O jovem admirava quase tanto Hakon como Eirik, porque o amigo do seu irmão ganhara a sua pele de lobo ainda nem sequer tinha dezasseis anos, o que era considerado uma espécie de recorde.
Hakon e mais alguns disse Eirik subitamente sério. Ulf, primo do Jarl, bom homem e nosso amigo, veio connosco. E trouxe o irmão mais novo, juntamente com vários homens da sua casa. Estão a caminho da casa do Jarl Magnus. Ulf quer umas peças quaisquer de prata, creio que para impressionar uma mulher. Dei-lhe a saber que o marido da nossa irmã é perito nessa arte. De qualquer modo, vão ter de passar aqui algumas noites; parece que a tempestade não vai permitir viagens durante algum tempo. O próprio Jarl, está com pressa de chegar a casa. Nasceu-lhe outro filho durante a nossa viagem de regresso da Primavera viquingue; ele foi andando, mas nós temos algum tempo antes de nos juntarmos a ele, que não parte antes das sementeiras da Primavera. Ele olhou para o irmão e o seu tom de voz mudou. Eyvind! Quero pedir-te um favor!
O quê?
Ouviram-se sons no exterior, sons de pessoas aproximando-se rapidamente, vozes cumprimentando em voz alta.
Mais tarde disse Eirik.
Eyvind não lhe fez mais perguntas, se bem que lhe fosse difícil esperar. Eirik era o seu herói. Eirik era um Pele-de-Lobo. Isso era a maior honra do mundo, porque, certamente, não havia coisa melhor do que sentir nos ouvidos o chamamento de Thor para a batalha, pulsando no sangue, enchendo o corpo com uma raiva que afastava qualquer medo. Partir ao ataque corajosamente, inspirado pelo próprio deus essa visão vivia com Eyvind durante o dia e enchia-lhe os sonhos à noite. Que interessava se a vida de um Pele-de-Lobo durava pouco? Um tal guerreiro, uma vez caído, seria transportado de imediato para junto de Thor, para junto da sua mão direita. Um dia, também ele passaria o teste e tornar-se-ia num dos do bando a que pertenciam Eirik e Hakon, como muitos dos parentes de Eyvind no passado. Os homens de Hammarsby tinham uma nobre tradição ao serviço do deus da Guerra. Assim, Eyvind praticava com o arco e o machado. Corria e trepava, patinava e nadava. Varria a neve, caçava e ficava cada vez mais forte enquanto esperava por esse dia. As histórias de Eirik mantinham-lhe vivos os sonhos. Mais tarde, talvez o seu irmão lhe contasse tudo sobre o Outono viquingue, as riquezas pilhadas e as batalhas vencidas.
As pessoas da região amontoavam-se no templo juntamente com os homens da casa do Jarl Magnus, guerreiros lado a lado com guardadores de porcos. A cadeira principal, com os seus pilares de madeira esculpida com muitas criaturas pequenas, fora atribuída a Ulf, parente do Jarl junto dele estavam os dois Pele-de-Lobo, Eirik com a sua barba dourada e um outro mais alto, Hakon, com as suas feições de falcão. Cada um deles usava a sua curta capa de pele hisurta, apertada no ombro por meio de um broche de prata. Ambos estavam armados; Eirik tinha o letal skeggox, ou machado-decepador no dorso e Hakon a sua bela espada com os copos de cobre trabalhados. O nobre, Ulf, era um homem novo: pouco mais velho do que Eirik, pensou Eyvind. Tinha muita gente junto dele, provavelmente homens chamados para o Outono viquingue, juntamente com alguns outros ricamente vestidos que deviam fazer parte da elite da casa do Jarl Magnus, ou que eram, talvez, súbditos do próprio Ulf.O irmão mais velho de Eyvind, Karl, deu início à cerimónia, as suas feições solenes iluminadas pela luz da lareira. Eyvind estava contente com a lareira; o fumo saía bem pela abertura no tecto, dispersando-se no ar frio exterior. Karl não era guerreiro. Preferira ficar em casa a tratar da terra, administrando as parcelas dos seus irmãos tão bem como as suas. Uma decisão que fora ao mesmo tempo sábia e prudente, porque o seu pai, Hallvard Karlsson, morrera prematuramente, caindo com nobreza ao serviço do velho Jarl e deixando Ingi viúva. Homem novo com família recentemente criada, Karl limitara-se a calçar as botas do pai. Agora, ele e a sua mãe controlavam uma vasta área, do topo dos montes ao fiorde, e desfrutavam de grande respeito na região. De qualquer modo, Eyvind nunca compreendera por que razão o seu irmão preferia aquela existência a uma vida como guerreiro de Thor. No entanto, Karl parecia feliz com a sua escolha.Senhor da tempestade, domador das ondas, senhor do punho de ferro! Karl dirigia-se ao deus com palavras estridentes. Destruidor de gigantes, chacinador de serpentes, Rei dos guerreiros! Veneramos-te com o sangue! Saudamos-te com o fogo! Em tempos de trevas procuramos a tua protecção. Que o teu braço forte nos proteja na terra e no mar. Destrói os nossos inimigos e sorri aos nossos esforços.Destruidor de gigantes, chacinador de serpentes, Rei dos guerreiros! repetiu a multidão e a sua voz subiu com o calor do fogo para se repercutir nos montes cobertos de neve e nos ramos escuros dos abetos, a caminho dos ouvidos do próprio deus. Eyvind juntou a sua voz àquele cântico, o seu olhar nos formidáveis olhos de Thor. Ingi caminhou lentamente em redor do templo, transportando o bracelete ritual numa almofada bordada. Durante muitas horas, um ferreiro gravara nele uma imagem da árvore do mundo com as suas criaturas: a serpente Nidhogg nas suas raízes mais profundas, a nobre águia no seu topo e o esquilo Ratatosk correndo entre os dois. O desenho dava a volta ao bracelete; um homem nunca conseguia vê-lo todo ao mesmo tempo. Presidia ao sacrifício por ocasião dos primeiros gelos, no solstício do Inverno e na Primavera; em todas as outras ocasiões, aquele tesouro ficava bem fechado, longe dos olhares curiosos. Uma após outra, as mãos estenderam-se para tocar reverentemente no ouro brilhante: as mãos suaves e pálidas das raparigas, as mãos dos homens habituados a manejar machados e arcos e as velhas mãos enrugadas, que tinham conhecido muitos Invernos no trabalho do campo. Todas se estendiam para prestar homenagem ao guerreiro, Thor, e a Odin, que se agarrara a uma árvore igual àquela em busca da sabedoria. Até os escravos, amontoados como um só corpo sombrio junto da porta, estenderam as mãos hesitantes à passagem de Ingi.Karl ergueu do altar uma das facas rituais. O bode lutava, aterrorizado com a multidão e com o fogo. A Eyvind, parecia que o rapaz, que o segurava por uma corda, não conseguiria aguentá-lo por muito mais tempo. Se deixasse escapar a corda, o bode ficaria livre e fugiria pelo meio da multidão num caos de cascos e cornos. Não se poderia ofender o deus daquela maneira. Eyvind levantou-se e avançou, libertando o rapaz de rosto vermelho do seu cargo e acalmando o animal com palavras calmas e mão segura.Continua murmurou ele. Karl ergueu a faca sacrificial; a luz da lareira cintilou na sua lâmina de bronze. Eyvind fez força, forçando para trás a cabeça branca do bode, expondo a pele nua e rosa do pescoço onde o pêlo crescia menos. Pressentindo, talvez, o inevitável, a criatura fez um último esforço para se libertar. Mas as mãos de Eyvind eram fortes. Despacha-te! sibilou ele. A faca desceu e cortou. Devia ter sido fácil. Karl era um camponês; abater gado era, para ele, uma tarefa rotineira. Mas, naquele momento vital, uma ave gritou asperamente por cima do buraco por onde saía o fumo e, de algum modo, a faca deslizou, de modo que o sangue não saiu livre e vermelho, limitando-se a gotejar, escuro, sobre o pêlo branco. O bode baliu e continuou a balir. O deus estava descontente. Karl ficou gelado, sabendo que era um mau presságio para todos. Os olhos de Thor, nas suas costas, estavam terríveis e zangados.Dá cá disse Eyvind. O jovem tirou a faca da mão do irmão, segurando no bode a sangrar com uma mão, os dedos entrelaçados na corda. As suas pernas abraçavam a criatura, forçando a sua forma agonizante a permanecer imóvel. Tinha de ser bem-feito, ou as colheitas perder-se-iam, os animais adoeceriam e a derrota no campo de batalha seria total.Luva de ferro, guia a minha lâmina disse Eyvind, fixando os olhos de madeira do deus. Em teu nome, grande deus da guerra! Só havia uma maneira de fazer aquilo: com força e rapidez, de través, quase sem tocar no pescoço. Rápido, certeiro e misericordioso. De que outro modo se poderia matar? Os balidos cessaram. O bode branco oscilou. As irmãs de Eyvind seguravam nas taças de bronze para apanhar o sangue. Não havia maneira de saber se aquilo fora do agrado de Thor, mas, pelo menos, Eyvind fizera o melhor possível. O jovem virou o rosto para a multidão, ajudando Karl a erguer o bode degolado bem alto, para que o sangue pudesse escorrer para as taças. As túnicas, as mãos e os rostos ficaram escarlates. O altar ficou cheio de manchas vermelhas; uma lágrima sangrenta correu pela face do deus. Matarei com limpeza por ti, disse Eyvind em voz baixa para Thor. Permite que eu seja um Pele-de-Lobo e serei o teu mais bravo guerreiro. Mais corajoso do que Hakon, mais corajoso, até, do que Eirik. Dar-te-ei tudo aquilo que sou. O jovem olhou para a multidão e fixou um par de olhos tão escuros, tão intensos, que o seu coração pareceu, por um momento, ficar maior, regressando depois, dolorosamente, à vida. A sua mente estivera com Thor, com o sangue, com o sacrifício e, por um momento, pensara mas não, era apenas um rapaz, um rapaz da sua idade, ou talvez, até, mais novo, no meio do séquito ricamente vestido do nobre Ulf. Mas o seu olhar. Olhava para Eyvind como se fosse um lobo a olhar para um homem do outro lado de uma fogueira, desconfiado, fascinado, perigoso. O rapaz era pálido e magro, os seus cabelos castanhos desentrançados, a boca uma linha fina. As suas feições eram vulgares, com excepção dos olhos selvagens. Eyvind pestanejou e desviou o olhar. As raparigas transportaram pelo templo as taças cheias até às bordas, os dedos brancos mergulhando nele uns ramos de galhos e borrifando o chão e as paredes, ungindo as colunas, a lareira e a porta, marcando cada homem e cada mulher com o sacrifício. Quando as taças ficaram vazias, Karl colocou-as no altar ao lado das facas e o bode foi arrastado para o exterior para ser esfolado e cozinhado.Nosso pai da guerra, brindamos a ti neste dia de Yule! Karl ergueu o seu grande corno. Ingi passara por entre os homens, servindo a cerveja com cuidado: não se podia ofender Thor entornando-a antes que o brinde fosse feito. Nós te saudamos, grande senhor da guerra! clamou Karl. E todos beberam.Nós te saudamos, poderoso Thor, destruidor de serpentes! gritou Ulf, pondo-se de pé e erguendo o seu próprio corno, uma bela peça envolta em prata. Os homens fizeram-se eco das suas palavras e beberam de novo.Nós te saudamos, destruidor de gigantes! A voz de Eirik era tão terrível quanto a sua expressão. Assim, os brindes continuaram, o céu foi escurecendo por cima do buraco no tecto e o interior do templo brilhava de modo estranho à luz da lareira. O rapaz continuava a olhar; as chamas punham-lhe dois pontos brilhantes nos olhos escuros como a noite. Um trovão estalou no céu; subitamente, os raios espalharam-se pelo firmamento. A tempestade vinha a caminho.Thor ficou satisfeito disse Eirik. Ele grita os seus agradecimentos à nossa pequena assembleia; é uma grande canção de guerra. Vinde, aproximemo-nos do fogo e passemos o dia a comer, a beber e a contar histórias. Passámos uma longa estação na rota da baleia, com o vento a trespassar as nossas túnicas, sem um gole de cerveja e sem as curvas suaves de uma mulher. Agradecemos ao deus por nos ter guiado em segurança no regresso a casa. Agradecemos-lhe pelas nossas gloriosas vitórias e pelos ricos despojos que trouxemos. Na próxima estação, içaremos de novo as velas para o honrarmos com actos de coragem, mas, por agora, é bom estar em casa. Deixemos que ele vele pelas nossas celebrações.Naquele dia contaram-se muitas histórias e quanto mais cerveja corria, mais eloquentes elas eram. Contaram-se histórias acerca do valor de Thor e da destreza de Odin, histórias de dragões e de heróis. Eyvind sentou-se perto do irmão, Eirik, saboreando cada momento. Assim se constróem os sonhos. Ele queria que Eirik lhes falasse do Outono viquingue: onde tinham estado, que batalhas tinham travado e que saque tinham trazido para casa. Mas não lhe pediu. Bastava-lhe que o irmão estivesse presente.
O rapaz continuava a olhar para ele. Talvez fosse impressão. Eyvind tentou retribuir o olhar; o rapaz enfrentou-o sem pestanejar. A sua expressão não mudou. Eyvind tentou sorrir polidamente, se bem que, de facto, achasse aquele constante exame desconfortável. O rapaz acenou ligeiramente com a cabeça, não mais do que um ligeiro aceno. Não sorriu.
Por fim, a luz e o calor da lareira diminuíram. O cheiro do bode assado definhou. As barrigas ficaram confortavelmente repletas com aquela carne rica e com os bolos de aveia de Ingi. O templo estava quente com tanta camaradagem. Thor, assim parecia, perdoara o ritual imperfeito do sacrifício e preferira sorrir-lhes. Hakon falou.
Eu tenho uma história disse ele, uma história ao mesmo tempo triste e inspiradora e própria para os ouvidos de Thor, já que fala de uma lealdade que transcendeu todas as outras. Fala de um homem chamado Niall que caiu, uma noite, sob a alçada de um bando de assassinos quando regressava a casa vindo da taberna. Niall tinha consigo uma bolsa de prata, com a qual planeava comprar um bom cavalo e apresentar-se com ele na corte do Jarl. Não estava disposto a perder o seu pequeno tesouro nem a hipótese de vir a ser alguém, porque Niall, como muitos outros filhos de camponeses, não tinha terras nem posses dignas de valor. Trabalhara arduamente pela sua prata. Assim, lutou com as mãos, com os pés e com a pequena faca que era a sua única arma; lutou com todas as suas forças, com toda a sua vontade e pediu ajuda a Thor com toda a força dos seus pulmões. Era uma luta desigual, porque os seus atacantes eram seis, armados com paus e lanças aceradas. Niall sentiu as suas costelas quebrarem-se sob os pontapés e o seu crânio zumbir devido aos golpes sofridos; a sua visão ficou esfumada e viu o mundo nocturno através de uma névoa vermelha. Ocorreu-lhe, através da crescente inconsciência, que aquela não era uma boa maneira de morrer, esmagado por uma escumalha por causa de uma bolsa que em breve seria disputada, consumida e depois esquecida, enquanto ele próprio seria, também, olvidado. No entanto, continuava a lutar contra eles, porque a vontade de viver ardia nele com uma chama brilhante.
"Então, subitamente, os pontapés cessaram. As mãos que se agarravam à sua garganta, apertando sem misericórdia, afrouxaram o aperto e afastaram-se. Ouviu-se um som de luta furiosa à sua volta, grunhidos e pragas, tumulto, um súbito grito de dor, o som de passos afastando-se e depois o silêncio.
"Um braço ergueu-o. Por todos os ossos de Odin, todo o seu corpo lhe doía. Mas estava vivo. No fim de contas, os deuses não se tinham esquecido dele.
Devagar, devagar, homem", disse a voz do seu salvador. "Encosta-te a mim. É melhor regressarmos à taberna; não estás em condições de continuar."
"O homem que salvara Niall era jovem, forte e de grandes punhos. Mas era só um.
Como fizeste aquilo?", gaguejou Niall. "Como é que..."
"O estranho riu-se.
Eu sou um guerreiro, meu amigo, e trago sempre uma ou duas armas comigo. Thor está sempre a chamar-me; e eu respondo. Ainda bem que ele me chamou esta noite, ou já estarias morto. O meu nome é Brynjolf. E tu, quem és?"
"Niall disse-lhe e mais tarde, quando os seus ferimentos já estavam tratados e os dois homens bebiam uma boa cerveja à lareira, falou a Brynjolf na sua intenção de se apresentar a Jare. tentar um lugar na sua casa.
Mas o meu dinheiro desapareceu", disse Niall pesarosamente. "A minha prata, tudo o que eu tinha poupado... aqueles rufiões levaram-me tudo. Fiquei sem nada."
"Ficaste com um amigo", sorriu Brynjolf. "E... deixa-me ver... talvez nem tudo esteja perdido. O homem fez de conta que procurava aqui e ali, nos bolsos, no seu pequeno saco, nas dobras da capa e, finalmente, "Ah", exclamou ele, e tirou a bolsa de pele de cabra que continha o pequeno tesouro de Niall. Brynjolf agitou-a e ouviu-se a prata a tilintar. "Creio que isto é teu."
"Niall, de boca aberta, pegou na bolsa. Não olhou para dentro dela, nem contou o dinheiro.
Perguntas a ti próprio por que não fiquei com ela?", perguntou-lhe Brynjolf. "Quando disse que tinhas ganho um amigo, disse a verdade. Viajemos juntos. Ensinar-te-ei um truque ou dois, porque um homem com tão poucos recursos não vai longe, a menos que aprenda a defender-se."
"Assim, Niall e Brynjolf tornaram-se camaradas e a caminho da corte do Jarl partilharam muitas aventuras. E fizeram um juramento, um juramento profundo e solene, porque cada um deles fez um golpe no braço até que o sangue correu, pingando para o chão e, unindo-os, juraram, pelo sangue misturado, que seriam, doravante, como irmãos. Juraram que poriam esse voto acima de todas as outras lealdades, que se apoiariam mutuamente, que lutariam contra os inimigos de ambos até à morte se fosse preciso. Fizeram esse juramento em nome de Thor e o deus sorriu-lhes.
"Os anos passaram. Brynjolf entrou para a guarda pessoal do Jarl e cumpriu a sua obrigação com grande valor. Niall aprendeu a manejar a espada e o machado, mas não estava destinado a ser um guerreiro. Com o tempo, descobriu que tinha talento para fazer versos e isso agradou imenso ao Jarl, porque os homens poderosos gostam de ouvir histórias acerca dos seus próprios feitos. Assim, de modo extraordinário,
Niall tornou-se skald, e contava as suas histórias em reuniões de homens influentes, enquanto o seu amigo viajava com a frota do Jarl na Primavera e no Outono, saqueando as costas da Frísia e da Saxónia. Quando Brynjolf regressava, bebiam juntos, riam, contavam histórias e juravam de novo a sua amizade, mas, então, com cerveja.
"Um Verão, Brynjolf regressou a casa magro e de olhos sombrios. Uma noite, já tarde, contou a Niall uma história terrível. Enquanto Brynjolf estivera fora, a sua família perecera toda num incêndio: o pai, a mãe, a irmã e os irmãos mais novos. O motivo fora uma discussão por causa de fronteiras; esta degenerou em escaramuça e acabou em morte. Umas noites depois, quando toda a casa dormia, os homens das redondezas cercaram a casa do pai de Brynjolf e pegaram-lhe fogo. De manhã, caminhando por entre as ruínas, as pessoas juravam que ainda ouviam os gritos apesar de estarem todos mortos, mesmo os bebés. Tudo aquilo enquanto Brynjolf andava no mar. Quando ele chegou a terra, as pessoas contaram-lhe e viram o seu rosto amistoso transformar-se numa máscara de ódio.
"Niall não encontrou nada para dizer.
Hei-de encontrar o homem que fez isto", murmurou Brynjolf com o olhar frio, "e ele há-de pagar com juros. Um acto destes assim o exige. Ele está para norte, em Frosta, eu tenho que ir para sul este Verão, mas ele e os dele estão marcados para morrer às minhas mãos."
Nota: Bardo escandinavo.
"Niall acenou com a cabeça, não disse nada e uma semana depois o seu amigo partia de novo ao serviço do Jarl. Niall esqueceu aquela história terrível.
"Foi um Verão suave e a terra vestia o seu mais belo traje. As flores enchiam os prados com cores suaves e perfume delicado, as searas cresciam, espessas e saudáveis, e os frutos amadureciam nas árvores. E Niall apaixonou-se. A corte estava cheia de visitantes, homens nobres, dignitários, emissários de países longínquos, proprietários de terras em busca de favores. Estava lá um homem chamado Hrolf, que fora lá para falar de comércio e que levara a filha. As pessoas reuniam-se, todas as noites, no grande salão e Niall contava as suas histórias e cantava os seus versos à lareira. A rapariga sentava-se entre as mulheres da casa e ele pensou que ela era uma pérola entre simples pedras, uma pomba entre galinhas. O seu nome era Thora e o coração de Niall ficou perdido de amores pela sua pele pálida como a neve, pelos seus cabelos louros sedosos, pela sua expressão recatada e pelos seus quentes olhos azuis. Enquanto cantava, sabia que ela olhava para si e apanhou-lhe o olhar uma ou duas vezes.
"Niall estava com sorte. Ele era tímido, mas Thora ainda mais. Mas o Jarl gostava do seu bardo. Falou dele a Hrolf e, por fim, o pai dela concordou em considerar a possibilidade de um casamento no espaço de um ano, mais ou menos, quando a rapariga fizesse dezasseis anos. Não fazia mal nenhum o jovem esperar um pouco. Podiam trocar presentes. No Verão seguinte, Niall poderia visitá-los no norte. Tudo a seu devido tempo.
"Os apaixonados arranjavam momentos juntos apesar da vigilância dos guardas de Thora: beijos em passagens sombrias, um encontro amoroso no jardim ao anoitecer, escondidos atrás de uma cerca de espinheiro. Cantavam juntos suavemente, em voz baixa; ensinavam um ao outro versos de amor. Niall disse a Thora que ela tinha a voz de uma cotovia; ela riu-se, rodeou-lhe o pescoço com os braços e ele pensou morrer de alegria e antecipação. Então, o Verão terminou e Hrolf levou a sua filha para casa.
"Nesse ano, Brynjolf não partiu para o Outono viquingue. Desculpou-se junto da corte e viajou para norte, levando consigo o seu irmão de sangue, Niall, o poeta. Dirigiram-se para Frosta e recolheram, na berma da estrada, dois grandes e silenciosos companheiros, homens de rostos cheios de cicatrizes, cujos olhos vazios encheram Niall de pavor. Brynjolf não precisou de lhe dizer para onde eles iam, ou qual era o seu propósito. Era uma questão de vingança e Niall estava ligada a ela por juramento. Fixou os seus pensamentos no Verão passado e na sua doce Thora. A vida seria boa: os confortos da corte do Jarl, a satisfação de exercer a sua arte e as alegrias do casamento. Tinha, simplesmente, de fazer o que tinha de ser feito e atirar, depois, com o assunto para trás das costas, porque o futuro, risonho, esperava-o."Caminharam de noite através de florestas. Na orla de uma destas, Brynjolf fê-los parar com um movimento da mão. Não muito longe e em baixo estava uma grande casa às escuras com uma espiral de fumo saindo ainda pela chaminé. As pessoas estavam a dormir; uma meia-lua acariciava o telhado de colmo e reflectia-se num balde encostado ao poço.Desembainhai as vossas espadas", sussurrou Brynjolf. "Ninguém deve escapar: homem, mulher ou criança. Entrai rapidamente. Pode ser que haja cães.""Então, eles acenderam uns archotes num que Brynjolf levava e, com a espada nua na outra mão, cada um correu para um lado diferente do edifício. O de Niall era o lado norte. Ele viu a sombra de umas sebes a leste e a oeste; os cães continuavam silenciosos. Mas parecia que nem todos estavam a dormir. Da casa na obscuridade, perto do local onde ele estava imóvel, empunhando o seu tição em chamas, veio o som de uma rapariga a cantar. A jovem cantava muito docemente, numa voz parecida com a de uma cotovia, uma pequena canção conhecida apenas de um par de apaixonados, que a tinham composto numa noite de Verão num jardim.O silêncio, no templo, era total à medida que Hakon ia contando a sua história. Algumas das pessoas na assistência sabiam o final da história, já que sabiam que as histórias eram assim, mas, no entanto, o terror mantinha-as de olhos arregalados.Que podia ele fazer? perguntou Hakon. Thora estava ali e o fogo já lambia, esfomeado, três dos lados da casa, o colmo, a madeira e a carne humana. Ela era filha do inimigo de Brynjolf, o homem que assassinara cruelmente a família inteira do seu amigo. Niall amava-a. Mas fizera um juramento de sangue com o homem que lhe salvara a vida. "Que eu morra hoje pelo que vou fazer", murmurou Niall. "Que os meus olhos fiquem cegos e os meus ouvidos surdos. Que o meu coração falhe e que o meu corpo seja consumido neste incêndio." E, estendendo o braço, atiçou o fogo à parede do lado norte.
"Foi uma vingança total e completa. As chamas consumiram tudo; as espadas não foram necessárias. Quando tudo acabou, Brynjolf pagou aos homens alugados e ele e Niall regressaram a casa. Brynjolf achou Niall um pouco silencioso, um pouco afastado. Mas, raciocinou o guerreiro, o skaldlevava uma vida protegida. Não estava acostumado a actos violentos, ao testemunho diário de mortes súbitas. Na verdade, não fora a intervenção de Brynjolf e Niall não teria sobrevivido à jornada quando abandonara a casa paterna, tornando-se num homem de posses e de estatuto.
"Regressaram à corte do Jarl. Durante muito tempo, Niall não fez mais poemas. Alegou doença; o Jarl concedeu-lhe algum tempo. Brynjolf ficou de algum modo preocupado. Perguntou a Niall, uma vez ou duas, o que se passava e Niall respondia dizendo que não se passava nada. Brynjolf concluiu que havia, algures, uma rapariga. As pessoas tinham sugerido que Niall tinha uma apaixonada e planos para se casar, mas o assunto caíra no esquecimento. Talvez ela o tivesse rejeitado. Isso explicaria a sua palidez e o seu silêncio.
"O Inverno passou. Brynjolf partiu para a Primavera viquingue e Niall voltou a fazer versos. Ao longo dos anos, e ele teve uma vida bem longa, fez muitos versos. Nunca se casou; as pessoas diziam que ele estava casado com a sua arte. Mas depois daquele Verão, os seus poemas mudaram. Havia uma escuridão neles, uma profunda tristeza, que ensombrava mesmo a mais ousada e mais heróica das histórias de guerra e a mais corajosa das histórias de camaradagem.
"Um jovem skald perguntou-lhe, uma vez, porque falava ele sempre de tristeza, de coisas terríveis, de erros e desperdício. E Niall replicou: "Uma vida inteira não é suficiente para cantar a mágoa de um homem. Aprenderás isso antes de chegares a velho." No entanto, quando Niall, um ancião de grandes barbas, morreu, Thor levou-o direitinho para o Valholl, como se ele fosse um destemido guerreiro. O deus honra os seus fiéis. E quem mais fiel do que um homem que se mantém leal ao seu juramento, se bem que lhe destrua o coração?
Quando Hakon acabou de falar, ninguém disse nada durante um longo momento. Então, um dos velhos guerreiros falou calmamente:
Contaste bem essa história, Pele-de-Lobo. Na verdade, foi uma história apropriada para este dia ritual. Pergunto a mim mesmo qual de nós teria forças para agir como esse homem? No entanto, sem dúvida, fez como Thor manda. Nenhum laço pode transcender um juramento de sangue entre dois homens, salvo um outro feito ao próprio deus.
Ouviu-se um murmúrio geral de concordância. Olhando de relance, Eyvind pensou que a sua mãe ia falar, mas ela fechou a boca sem pronunciar uma palavra.
Foi uma boa história disse Karl que nos lembra que um juramento não deve ser feito levianamente. Uma história destas chega a levar uma lágrima aos olhos de um homem forte. Meus amigos, dentro de pouco tempo deixará de haver luz e alguns têm de viajar para longe.
É verdade disse Eirik, levantando-se. Está a fazer-se tarde e nós temos de partir. Eu e os meus companheiros fizemos hoje uma grande viagem; vamos agora para casa da minha mãe para descansarmos um pouco. É melhor partirdes enquanto há luz, porque a tempestade aproxima-se. Amanhã os campos estarão cheios de neve fresca.
Ainda bem que a grande casa de Hammarsby era espaçosa e reconhecidamente confortável. Um grande grupo dirigiu-se para lá, chegando mesmo antes de o vento começar a uivar e de os primeiros redemoinhos de neve começarem a formar-se. O nobre Ulf e os seus companheiros ricamente vestidos, os dois Pele-de-Lobo e um certo número de outras pessoas da casa do Jarl reuniram-se na casa de Ingi. O vento perseguiu Eyvind até à pequena porta das traseiras; o jovem chegara um pouco mais tarde do que os outros por ter ficado para trás para ter a certeza de que o fogo ficava apagado e o templo fechado por causa da tempestade. No instante em que entrou viu o rapaz de pé na sombra, junto da parede, de braços cruzados. Não havia mais ninguém à vista; deviam estar todos reunidos em redor da lareira. Eyvind falou polidamente, já que não podia fingir que o rapaz não estava ali.
Pelo martelo de Thor, que vento! O meu nome é Eyvind. Sê bem-vindo.
O rapaz acenou rigidamente com a cabeça. Eyvind tentou de novo.
Parece que ides ficar connosco alguns dias. Esta noite vai nevar muito; nunca conseguireis partir, mesmo com esquis.
Seguiu-se uma pequena pausa. Então, o rapaz disse:Por que é que ele gritou?Foi a vez de Eyvind olhar para ele.Quem? perguntou ele após um momento.O bode. Por que é que ele gritou? Que pergunta era aquela?P... porque o sacrifício não foi feito como deve ser disse Eyvind. O bode gritou porque a faca escorregou. Ficou ferido e assustado.O rapaz acenou solenemente com a cabeça.Estou a ver disse ele. Eyvind respirou fundo.Vem disse ele está mais quente junto da lareira e os outros estão lá, o meu irmão e o Hakon e os convidados. Eirik é meu irmão. Ele é um Pele-de-Lobo. Havia uma satisfação nele quando dizia aquilo.Eu sei disse o rapaz. Eirik Hallvardsson. E tens outro irmão, Karl, que não é Pele-de-Lobo. A tua mãe chama-se Ingi e é viúva. O teu pai morreu em combate.Eyvind olhou para ele.Como é que sabes isso? perguntou.Se vou ficar aqui até ao Verão, tenho de saber disse o rapaz em tom neutro. É estupidez não procurar saber o mais possível.Eyvind ficou sem palavras.Estou a ver que o teu irmão não te disse nada disse o rapaz. Eu também tenho um irmão, que tem uma inclinação por barcos e que viaja até ilhas cheias de selvagens. Ele não me quer ao pé dele. Tenho de ficar aqui e aprender o que os outros rapazes fazem o tempo todo. É suposto seres tu a ensinar-me.Eyvind ficou de boca aberta. Se era aquele o favor que o irmão lhe queria pedir, não vinha nada a propósito. O rapaz era pálido e magricela, parecia que nunca tinha pegado numa espada ou num arco em toda a sua vida, falava de uma maneira que era quase incompreensível e estava sempre a olhar para ele. Em que estava Eirik a pensar?Eu não vou pedir desculpa. O rapaz estava agora a olhar para o chão, a sua voz um pouco irregular. A ideia não foi minha.Seguiu-se um breve silêncio.Tudo bem disse Eyvind com algum esforço. Só que foi uma surpresa, mais nada. Sabes lutar?
O rapaz abanou a cabeça.
Não a espécie de luta que tu conheces, com facas, ou com os punhos.
Que outra espécie é que há? perguntou Eyvind, confuso. Nos lábios finos do rapaz apareceu um sorriso muito ligeiro.
Talvez a espécie que é suposto eu ensinar-te disse ele. Falsa coragem, pensou Eyvind. Devia ser duro, até assustador, um
homem fraco e até um pouco simples de cabeça, sem quaisquer capacidades, ser despejado numa casa estranha, entre os parentes de um Pele-de-Lobo. Não admirava que o rapaz pretendesse ter uma espécie qualquer de conhecimentos secretos; não admirava que tentasse ser superior. Não te preocupes disse Eyvind magnanimamente. Eu olho por ti. Não te preocupes com nada. O jovem estendeu uma mão e o rapaz apertou-a por um momento antes de a largar. Não sorria, não exactamente, mas, pelo menos, aquele olhar sem expressão tinha desaparecido. A sua mão era tão fria como um peixe gelado.
Vamos disse Eyvind com urgência. Estou com desejos de um bom fogo e de uma boa cerveja. O jovem foi à frente, passou pelos quartos de dormir que abriam, de um lado e do outro, para o corredor central. Apesar de já estar escuro, ainda ninguém da casa estava deitado. Os dias eram pequenos e o tempo depois do pôr do Sol era passado a ouvir histórias à lareira e nas tarefas que podiam ser feitas dentro de casa à luz das lanternas de óleo de foca. Ingi e as filhas eram conhecidas pelos seus bordados; Karl fabricava taças de madeira, suportes de velas e esculpia pequenas criaturas a partir de pedra de sabão. O marido de Solveig, Bjarni, fazia desenhos no seu quadro, desenhos esses que, à luz do dia, transformaria em fivelas, anéis e broches num intrincado trabalho de prata. O marido de Helga estava fora, porque, para ele, o Inverno duro significava uma viagem rápida, através do gelo, às feiras de Kaupang e, mais longe ainda, de Birka. No Verão, iria de barco mais longe ainda, até ao extremo-oriente. Em Novgorod arranjavam-se especiarias e sedas vindas das quentes terras do sul, mel, prata árabe e escravos. A própria Ingi tinha uma escrava de maçãs-do-rosto salientes e olhos escuros e oblíquos, que tremia durante todo o Inverno, envolta em pesados xailes. Essa exótica escrava tinha duas crianças; curiosamente, nenhuma delas se parecia com Oksana. Na verdade, com os seus grandes olhos azuis e cabelos dourados, podiam muito bem fazer parte da própria família de Ingi.
Os rostos viraram-se para os rapazes quando estes emergiram no salão vindos da entrada, com Eyvind à frente e o outro atrás, como uma sombra mais pequena.
Ah disse Eirik com um olhar que significava alívio e desculpas. Afinal encontraste Somerled.
Eyvind acenou com a cabeça e foi sentar-se em cima das peles de ovelha que cobriam o soalho junto da lareira. O rapaz pairou, hesitante. Somerled. Então, era esse o nome. Eyvind olhou para cima e fez um pequeno sinal com a cabeça. Sem fazer barulho, o rapaz sentou-se de pernas cruzadas a seu lado.
Óptimo sussurrou Eyvind. Não há razão para ter medo. Ulf não contara qualquer história durante o festim. Parecia ser um homem cauteloso, de barba escura, de feições agradáveis e sempre alerta. Mas, junto à lareira, ao mesmo tempo que a família se sentava com canecas de cerveja na mão, pareceu descontrair-se e começou a falar. Então, tornou-se evidente que Ulf era um homem com uma missão. Queria construir um navio: não um navio vulgar, antes uma nave como nenhum homem vira antes em toda a Noruega. E nela tencionava viajar até onde nenhum homem da Noruega viajara até então; velejaria até um lugar que talvez fosse real, ou talvez não passasse de uma fábula. Com uma voz suave e um brilho nos olhos escuros, levou-os a todos no seu sonho.
Há uma terra lá longe, no mar ocidental contou-lhes ele. Uma terra de que o meu pai ouviu falar a um homem que conheceu nos mercados de Birka, para lá das montanhas de leste, na terra dos Suecos. Esse homem tinha viajado até longe, desde a selvagem terra dos Pictos até à Bretanha, a sul, por mar até aos reinos Francos e para norte até à Saxónia. Dali ele apanhou um barco para os mercados do Báltico com a sua preciosa carga: tábuas finamente esmaltadas e com jóias encastoadas, que em tempos tinham abrigado livros num templo de fé cristã. Os livros já não existiam, mas as encadernações eram maravilhosas e teriam feito a riqueza desse homem se ele não tivesse sido assassinado por causa dessa mesma carga. A sua jornada fora longa. A terra dos Pictos é um território gelado, habitado por gente selvagem. Mas a partir das suas costas do norte, disse esse viajante, ao largo, no oceano desconhecido, existe um lugar de correntes quentes, de ilhas verdejantes e águas abrigadas, um sítio de baías tranquilas e pastos ondulantes. A travessia é perigosa com os barcos que eles usam, a maior parte das vezes simples curraghsm de pele. E é uma grande viagem a partir de Rogaland, mas não tão grande que não possa ser feita com um navio construído de propósito para aguentar a viagem. As notícias dessa terra entusiasmaram o meu pai. Ele ansiava ir até lá. O facto de ter sido impedido de o fazer foi, para ele, uma grande mágoa.Tencionas montar uma expedição a essas terras, meu senhor? perguntou Karl polidamente.Ulf sorriu tristemente.Pode-se dizer, suponho, que herdei a obsessão do meu pai. Uma tal aventura é extremamente arriscada. Mas, um dia, hei-de partir.Precisarás de um bom navio disse Eyvind, esperando não ter sido atrevido ao falar. Se a travessia é arriscada a partir desse porto do sul, ainda o será mais a partir de Rogaland. Só um homem muito corajoso será capaz de navegar para lá dos recifes, para mar aberto: para o desconhecido.O parente do Jarl olhou para ele com um súbito interesse.Eu hei-de construir um navio, meu rapaz disse ele calmamente. Será o rei dos navios, esbelto, gracioso, igual a qualquer um dos nossos barcos no que respeita a velocidade e capacidade de manobra, mas suficientemente forte para suportar uma viagem em mar aberto. Hei-de arranjar os melhores construtores de barcos de toda a Noruega e, quando o barco estiver pronto, os melhores guerreiros de toda a Noruega para viajarem comigo. Hei-de ver essa terra enquanto sou novo e, se ela me agradar, hei-de tomar posse de um bocado dela em nome do meu pai.Os olhos de todos os homens no salão tinham-se incendiado de entusiasmo, porque enquanto Ulf falava no seu sonho havia algo no seu rosto, na sua voz, na sua atitude, que agarrava o espírito e acelerava os corações. Era evidente que aquele homem reservado, de falas mansas, era um fenómeno raro: um verdadeiro líder.Custar-te-á uma fortuna observou Eirik. Navio, tripulação, provisões.Duvidas da minha capacidade para levar isto por diante? A expressão de Ulf ficou, subitamente, ameaçadora.Não disse Eirik calmamente. Não duvido. Mas até um Pele-de-Lobo gosta de saber para onde vai.Pequenos barcos de pesca.
Ulf sorriu.
Ah disse ele parece, então, que tenho um interessado.
Dois. Hakon falou do seu lugar do outro lado do nobre. Tu és um homem de visão, meu senhor. Novos horizontes, terras desconhecidas: que guerreiro se recusaria a ser arrastado para uma tal aventura? Se me quiseres, irei contigo.
Ulf acenou com a cabeça.
Espero que Magnus nos apoie e vos possa libertar. Não será amanhã, meus amigos, ou na estação que vem. Como muito bem dissestes, temos de ter recursos para uma empresa destas. Preciso de tempo. Mas já vejo o navio na minha mente, de velas desfraldadas ao vento de leste, a sua proa de dragão erguida; até sinto o ar salgado dessas terras.
A expedição é uma óptima perspectiva e estimula o espírito disse Eirik. Aqui há pouca terra de cultivo; um homem com muitos filhos deixa pouca coisa. Deve haver alguns rapazes dispostos a agarrar a oportunidade de se instalarem num lugar assim, se é tão verdejante e abrigado como dizes. Creio que arranjarás muitos interessados.
Quanto a isso disse Ulf hei-de peneirar o meu trigo uma, duas, três vezes antes de me decidir, porque não confio nas pessoas com facilidade. Não vou pôr os meus recursos todos numa aventura e receber, no fim, uma facada nas costas.
Bem dito. Para surpresa de todos, fora o rapaz, Somerled, que falara. O meu irmão é um homem com uma maldição; tem de ser mais cuidadoso do que a maioria.
Ulf olhou para o irmão com um olhar de desgosto.
Chega, Somerled disse ele. Não vamos falar disso aqui, nesta tranquila reunião à lareira.
É uma boa maldição. O rapaz continuou como se Ulf não tivesse falado. É uma espécie de enigma. Eu gosto de enigmas. Diz assim:
Cavalgando o vento
Envolto num sudário
de escamas de peixe
E um grito de albatroz
como hino não perece
em terra nem no mar
Ulf, aquele que busca longe
O sonhador de sonhos
Mas que saboreia o sal do mar
e que olha o céu infinito
E nenhum amigo, ou inimigo
Seguiu-se um silêncio. Era evidente para todos que Ulf não queria que aquilo tivesse sido dito.Estranhos versos, na verdade disse Karl após uns momentos. Que querem dizer?Quanto a isso disse Ulf sobriamente, pondo-se de pé é um disparate. Se um homem não está na terra nem na água, onde há-de estar? Voar como um albatroz? Foi uma velha que me fez esses versos quando eu era miúdo, mais nada. As pessoas falam muito neles, mas, a mim, parece-me que um homem deve viver a sua vida sem estar sempre a olhar por cima do ombro. Se me acontecer alguma coisa, provando que esses versos são verdadeiros, que assim seja. Não viverei com medo deles. Na verdade, prefiro esquecê-los. O nobre franziu o sobrolho para Somerled.Depois daquilo, a conversa regressou a assuntos mais seguros e em breve chegava a hora de se irem deitar. Como Somerled era irmão de um nobre e um visitante, os dois rapazes que partilhavam a pequena área onde Eyvind dormia tiveram de sair e esse espaço foi cedido a Somerled. O que queria dizer que sobrava espaço, o que agradou a Eyvind. O jovem estava a ficar mais alto, os seus dedos faziam-lhe buracos nas botas e as camisas estavam-lhe pequenas. Somerled era pequeno e dormia quieto, enrolado num cobertor, imóvel como um morto. Por outro lado, tinha o dom de acabar com o sono das outras pessoas. Nessa primeira noite, quando Eyvind, cansado do longo dia de trabalho e aquecido pela cerveja forte, já pairava na orla do sono, Somerled fez-lhe mais uma pergunta.Achas que ela gritou? perguntou ele. Os olhos de Eyvind abriram-se.O quê? Quem? perguntou ele, irritado.Aquela rapariga, Thora. Achas que ela gritou quando começou a arder?Deixa-te disso, está bem? grunhiu Eyvind, demasiado aborrecido para pensar em boas maneiras. Já quase esquecera a história de Niall e de Brynjolf, no calor e na camaradagem do salão.E agora, voltava a recordá-la em todos os seus pormenores confusose dolorosos.Eu acho que gritou disse Somerled tranquilamente, respondendo à sua própria pergunta. Pergunto a mim mesmo o que terá sentido Niall quando ouviu a canção mudar. Pergunto a mim mesmo o que acontece quando tudo se transforma em trevas.Eyvind puxou o cobertor para cima da cabeça e meteu os dedos nos ouvidos. Mas Somerled tinha terminado; antes de poder contar até cinquenta já ele ressonava tranquilamente. Foi a vez de Eyvind ficar perturbado e passar o tempo a virar-se, a mente inundada de imagens sombrias.Eirik pediu desculpa ao irmão e explicou-se antes de partir. Ulf estava preocupado com o irmão. O rapaz nunca mais fora o mesmo desde que testemunhara a morte da mãe. O seu pai estava velho e amargurado, não prestava atenção àquele filho mais novo e a família decidira retirar-lhe o comando da casa. Ulf estivera fora durante muito tempo e regressara a um lar à beira da autodestruição. Poderosos chefes de guerra aproximavam-se, pairando como abutres, esperando o momento da morte. Era preciso assumir o comando rapidamente para desfazer o mal que a má administração do seu pai provocara, antes que as terras e o estatuto se perdessem. Mas, primeiro, Ulf queria o seu meio-irmão Somerled era filho de um segundo casamento afastado. O rapaz vira demasiadas coisas e comportava-se de modo muito estranho. Passava o tempo todo sozinho, parecia não confiar em ninguém e nunca queria brincar, ou montar a cavalo, ou lutar, como todos os rapazes. Na verdade, Ulf nem sequer sabia o que fazer dele e Somerled dificultava as coisas ao recusar-se a falar. O rapaz era tão fechado como uma lapa.Assim, Ulf trouxera Somerled para sul e procurara o seu amigo Eirik, o Pele-de-Lobo, um homem conhecido pela sua sensatez. Eirik ouviu a história de Ulf e fez-lhe uma oferta. Ele tinha um irmão mais ou menos da mesma idade de Somerled e achava que a sua mãe não se oporia a ter outro rapaz em casa. Por que não deixar o rapaz com eles, pelo menos até ao Verão?Devo confessar disse Eirik a Eyvind com um meio sorriso que aproveitei a ocasião para vir até casa. E Ulf achou que era uma óptima ideia. Somerled não tem tido a companhia de outros rapazes da sua idade e isso nota-se no seu comportamento. Parece anormalmente tímido; mal lhe ouvi pronunciar uma palavra.Eyvind fez uma careta.
Ele, comigo, fala disse ele.Óptimo disse Eirik. Já é um começo. Eu tenho grande respeito por Ulf; é um homem equilibrado e de visão. Fiquei contente por poder ajudá-lo.Eirik?O que é?Quando é que eu faço a prova? Quanto tempo falta? Já tenho quase doze anos e tenho praticado muito. Sou capaz de atingir uma lebre a cem passos e sou capaz de atravessar o Pescoço da Serpente debaixo de água sem vir à tona respirar. Quanto tempo mais vou esperar?Algum tempo disse Eirik. Pelo menos mais quatro verões, acho eu.O coração de Eyvind bateu descompassadamente. Mas não diria que estava desapontado, porque Thor não gostava de tais sinais de fraqueza.Mas talvez não tanto acrescentou o seu irmão com um sorriso. Tu estás quase um homem. Qual é o rapaz que tem umas mãos e uns pés como esses? E estás quase tão alto como eu, que tenho mais seis anos do que tu. Talvez só três Verões.Aquilo significava boas e más notícias. Eirik achava-o quase adulto; isso enchia-o de orgulho. Mas três anos, três anos inteiros antes de ter hipótese de provar que era um homem? Como poderia esperar tanto tempo? Como poderia esperar tanto tempo sem enlouquecer de frustração?O tempo amainara o suficiente para permitir que Ulf e os seus companheiros partissem e Eirik e Hakon foram com eles. Como se esperasse apenas a sua partida, a neve voltou a cair e Eyvind viu os seus dias preenchidos com uma pá nas mãos, limpando os carreiros que iam dar ao armazém da lenha e ao celeiro e afastando, num trabalho sem fim, o lençol branco que cobria o telhado de colmo. Somerled seguia-o, observando com ar sério enquanto ele subia para um barril e dali para o telhado. Visto do alto, o rapaz parecia uma pequena sombra no tapete branco.Volta para dentro! disse Eyvind. Isto não é trabalho para ti! Mas Somerled começou a trepar, escorregou, praguejou e trepoude novo; nas pontas dos pés, oscilando precariamente em cima do barril, mal chegava ao beiral com os braços estendidos.Tu não consegues... começou Eyvind a dizer afastando o olhar, mas depois parou ao ver a expressão nos olhos de Somerled.
O jovem debruçou-se e puxou o rapaz pelos braços. Não trouxeste uma pá, pois não? perguntou ele calmamente. Vê como eu faço e depois limpas tu. E, na próxima vez, traz uma pá para ti, estão nas traseiras perto do curral do gado. Tens de te mexer constantemente, senão gelas e deixas de ter qualquer utilidade.
O jovem não esperava que Somerled aguentasse muito tempo. Estava um frio de rachar, a pá era grande e pesada e a tarefa árdua, mesmo para um rapaz forte como ele. Eyvind trabalhou durante algum tempo e então Somerled também tentou, escorregando, perdendo o equilíbrio, tacteando e recuperando. Conseguiu limpar uma pequena parte. O seu rosto estava branco do frio, mas os seus olhos estavam semicerrados e furiosos.
Muito bem, é a minha vez disse-lhe Eyvind, custando-lhe estar ali sem fazer nada quando sabia que podia fazer o trabalho em metade do tempo.
Ainda não fiz a minha parte. Eu c... consigo.
Primeiro, descansa e depois, tenta de novo disse Eyvind tirando a pá das mãos de Somerled. Assim, arranjas bolhas. Se é suposto eu ensinar-te, tens de ouvir o que te digo.
Fizeram o trabalho por turnos. Levou algum tempo. O jovem olhava de vez em quando de relance para Somerled. O rapaz parecia prestes a cair, mas algo no seu rosto sugeria que não seria boa ideia dizer-lhe que fosse para dentro e deixasse Eyvind acabar. Assim, o jovem prolongou a ajuda de Somerled e, por fim, o telhado ficou limpo. Quando foram para dentro, Ingi reparou nos dentes a bater de Somerled, nas suas pobres mãos cheias de bolhas e censurou Eyvind por ter exigido demasiado dele. Não sabia que Somerled não estava habituado ao trabalho árduo? Devia ir mais devagar. Eyvind murmurou uma desculpa, olhando de lado para o seu companheiro. Somerled, tremendo, comeu a sua sopa e não disse uma palavra. Talvez estivessem os dois a aprender.
Em Hammarsby viviam vários rapazes. Alguns pertenciam ao pessoal da casa, gente que trabalhava para Ingi há tanto tempo que era quase da família. Somerled não fazia amigos com facilidade e, presos pela neve na grande casa, não levou muito tempo até os outros repararem nele e pregarem-lhe algumas partidas, como faziam sempre a um recém-chegado. Um deles meteu-lhe um rato morto entre os cobertores para quando ele, cansado, se metesse na cama, às escuras. No dia seguinte, Eyvind falou com os rapazes da casa, dizendo-lhes que Somerled não estava habituado a tais brincadeiras, já que tinha crescido sem irmãos ou irmãs e que aquilo não deveria voltar a acontecer. Na verdade, ninguém confessou. Na manhã seguinte a essa conversa Ingi perguntou o que é que tinham as papas, para os rapazes terem todos os rostos verdes? Não se podia desperdiçar boa comida, especialmente no Inverno. Mas os únicos que as comeram foram Eyvind e Somerled e este mostrava um pequeno sorriso.Mais tarde, Eyvind descobriu que o feitiço se virara contra o feiticeiro. Como não havia possibilidade de saber quem colocara o rato morto, Somerled fora escrupulosamente justo, dividindo-o por todos igualmente. Olho por olho. Era preciso coragem. O rapaz, assim parecia, resolvia os problemas à sua maneira.Eyvind não fez perguntas a Somerled acerca do seu passado. Por vezes, pensava nisso. Havia tantas coisas que o rapaz não sabia, ou que não era capaz de fazer. Certamente, nunca tratara de animais, porque parecia ignorar por completo como fazê-lo. Não sabia, até que Eyvind lhe explicou, que quando um cão baixava a cabeça, ou rosnava com as orelhas para trás, não se devia ralhar-lhe, ou dar-lhe um pontapé. Devia falar-se com ele gentilmente, disse Eyvind a Somerled. Não se devia olhá-lo nos olhos, devia-se, antes, aproximar lentamente. Devia deixar-se que o cão se habituasse à pessoa, permitindo-lhe que fosse confiando na pessoa. Somerled pensara naquilo por uns momentos e depois perguntara:Porquê?Assim, o hisurto Grip continuou a rosnar e a tentar morder sempre que o rapaz passava por ele, se bem que o velho cão deixasse que as crianças lhe subissem para o dorso e lhe puxassem o pêlo sem um único latido.Somerled não gostava de brincar na neve. Por vezes, quando todas as suas tarefas estavam feitas para satisfação de Ingi, os rapazes e as raparigas da casa aventuravam-se até ao monte para deslizarem por ele em trenós de madeira ou pedaços de casca de abeto. Havia dias claros, brilhantes, em que o mundo parecia feito de novas tonalidades, novos cinzentos, uma neve mais branca sob um céu tão azul como o ovo de uma pata. Eyvind ansiava pela liberdade do Verão, mas também gostava daquele tempo. Não havia nada melhor do que patinar pelo gelo a toda a velocidade com os patins de osso apertados em redor das botas, sentindo a excitação do vento, o bater do coração, a alegria feroz de tentar os limites, acreditando que era invencível. Seria assim quando se tornasse um Pele-de-Lobo e navegasse à proa de um navio: o mesmo sentimento, mas cem vezes mais forte.Não percebia por que razão Somerled não se juntava a ele nessas brincadeiras. Os outros rapazes troçavam do recém-chegado e trocavam teorias nas suas costas. Eyvind tentara parar com aquilo, mas não dissera nada a Ingi; não se faziam queixinhas. Além disso, os rapazes tinham razão. Somerled era uma criança muito estranha. E se ele caísse do trenó, ou aterrasse de traseiro no gelo? Coisas que aconteciam a todos. Os outros ririam, mas seria um riso de compreensão, não de troça. Mas Somerled nem sequer tentava. Ficava na escuridão, por detrás das árvores e observava-os, de rosto fechado, e se alguém lhe perguntava por que não se juntava à brincadeira, ele, ou ignorava a pergunta por completo, ou dizia que não via qual era a vantagem.Uma parte de Eyvind queria esquecer aquela pequena presença de olhos furiosos por detrás das árvores. Somerled era o culpado das suas próprias dificuldades; ele que lidasse com as consequências. Uma parte de Eyvind queria patinar para longe, ao longo do espelho escuro do rio gelado, juntar-se aos outros nas corridas loucas pelo monte abaixo, construir fortalezas de neve ou aventurar-se nos bosques sozinho, de lança em punho, em busca de carne fresca para a panela da mãe. Mas prometera a Eirik. Assim, com sentimentos confusos, Eyvind passou várias noites à luz da lanterna a construir um par de patins a partir de um pedaço de madeira de carvalho bem seca, dura como ferro, com correias de pele de veado para atar em redor das botas. Somerled observava-o sem fazer comentários.Agindo sob um instinto que não conseguia explicar, Eyvind levantou-se muito cedo e vestiu, tremendo e o mais depressa possível, a camisa e as calças, a túnica, o casaco de pele de ovelha e o chapéu de feltro, porque o frio parecia entrar em cada canto da grande casa. Estava tudo calmo, toda a família dormia. Pegou nos seus patins e no par novo e foi acordar Somerled. Mas, silencioso como uma sombra, o rapaz já se erguera da prateleira de madeira onde dormiam ambos e estava a vestir as suas próprias roupas, como se não precisasse que lhe dissessem nada. Parecia que o instinto de Eyvind estava certo.Apesar de ser velho, Grip gostava de acompanhar as crianças em qualquer expedição fora de portas como companheiro e protector.
JULIET MARILLIER
Mas naquele dia parecia cansado, resmungando suavemente enquanto os dois rapazes caminhavam em bicos dos pés na direcção da porta das traseiras. Eyvind fez-lhe uma festa e apontou-lhe o caminho de regresso para o interior da casa. Um cão velho como aquele estava melhor a descansar junto das brasas da lareira do dia anterior, porque o frio era suficiente para gelar os tomates a um homem. Devia estar maluco para levar Somerled àquela hora. No entanto, o rapaz seguiu-o de boa vontade, não fazendo, sequer, uma pergunta.No rio gelado, na escuridão da madrugada em que a neve parecia azul e o céu vermelho, em que os arbustos e as árvores estendiam gravetos que pareciam dedos escanzelados, prateados do gelo, à luz estranha do Inverno, Somerled calçou os patins novos sem qualquer hesitação, levantou-se, deslizou pelo gelo, caiu de costas, levantou-se de novo, os braços seguros com firmeza pelas poderosas mãos de Eyvind e recomeçou a avançar passo-a-passo. Simplesmente. O que era preciso era que mais ninguém estivesse a ver.Aquilo espantou Eyvind. Ele próprio era sempre o primeiro em qualquer esforço, não necessariamente temerário, apenas confiante na sua própria força. De vez em quando magoava-se, mas não pensava nisso. Não o preocupava o facto de as pessoas se rirem dele. Não que o fizessem muitas vezes, já que tinha tendência para fazer as coisas bem à primeira. E era maior do que muitos outros, o que ajudava. Sabia o que era o perigo e precavia-se; usava os esquis, o arco e o machado como devia ser, com limpeza e de forma competente. A necessidade de privacidade por parte de Somerled confundia-o. Se a opinião dos outros tinha assim tanta importância, por que razão confiava Somerled nele? No fim de contas, era irmão de um Pele-de-Lobo. Era suposto essa condição engendrar medo e não confiança num rapazola daqueles.À medida que o tempo passava, tornou-se evidente para Eyvind que Somerled estava a tentar uma espécie de retribuição com os meios limitados que tinha à sua disposição. Eyvind caía na cama, exausto após um longo dia de trabalho na propriedade e quando acordava, no dia seguinte, as suas botas estavam limpas de qualquer lama, secas e à sua espera. Ingi mandava o filho ao alpendre numa tarde fria e ele já lá encontrava Somerled, de ar carregado devido ao esforço, carregando os toros no trenó. Um pedaço de carne, servido ao seu pequeno visitante, ia discretamente parar ao prato de Eyvind. O jovem aprendeu rapidamente que não devia agradecer aquelas pequenas amabilidades a Somerled. Qualquer tentativa nesse sentido era recebida com um olhar sem expressão, ou com um desmentido furioso de que fosse a retribuição de um favor. Assim, aprendeu a aceitar simplesmente, e era recompensado, ocasionalmente, com a tentativa de um meio sorriso, tão fugaz, que ele perguntava a si próprio, depois, se não o teria imaginado.
Lentamente, o Inverno foi dando lugar à Primavera e Eyvind aprendeu que a paciência compensa. Antes de o gelo derreter já Somerled sabia patinar; antes de a neve se transformar em lama já ele esquiava sem cair. Não brincava nem jogava e era evidente que o fazia por falta de alternativa e não por talento. Os olhares dos outros rapazes eram mais circunspectos do que trocistas quando passavam por aquela figura pequena e escura. O rapaz não fazia amigos.
O tempo mais ameno trouxe passatempos novos. Era mais fácil ensinar coisas a Somerled, porque a Primavera era uma época de expedições e Eyvind estava habituado a sair sozinho. Para onde ia Eyvind, ia Somerled e não havia outros para ver e fazer troça dos erros do rapaz. Aceitando que as aventuras daquela estação seriam mais pequenas e mais lentas, Eyvind fez com que o seu companheiro aprendesse as mais elementares regras de segurança e os princípios básicos da caça com arco, lança e armadilhas. Somerled aprendeu a acender uma fogueira apenas com um pedaço de pederneira e uma mão-cheia de erva seca. Aprendeu a construir um abrigo com ramos caídos e pedaços de casca de árvore. Fez grandes esforços com a lança e o arco, porque tinha pouca força nos braços e nos ombros, se bem que tivesse bom olho. Eyvind arranjava-lhe alvos fáceis e elogiava-o por cada pequeno sucesso. Montaram armadilhas para coelhos e levaram alguns para casa. Somerled tinha jeito para esfolar animais.
Por vezes, Eyvind sentia-se pouco à-vontade. Percebia que Somerled se esforçava e era claro para todos que o rapaz estava cada vez mais forte e saudável graças ao ar frio, ao exercício e à boa alimentação. Mas continuava muito calado e não perdera o hábito de proferir observações estranhas. Uma vez, à lareira, tinham acabado de ouvir uma história de Ingi acerca de três irmãos que tinham partido em busca de fortuna, tinham falado do que o futuro lhes reservaria e das aspirações de cada um. Um dos rapazes queria ser artesão; esperava conseguir persuadir Bjarni, o ferreiro, a ensiná-lo. Um outro queria viajar para longe, para as terras a sul, onde as pessoas tinham peles negras como a noite. Um terceiro sonhava apanhar o maior peixe qi alguma vez tinha aparecido nos recifes.
Não é preciso perguntar a Eyvind o que é que ele vai fazer disse com um grande sorriso Sigurd, um rapaz de cabelos vermelhos filho de um dos empregados mais antigos de Ingi. Todos nós sabemos o que é que ele vai ser.
Se Thor me aceitar, serei o Pele-de-Lobo mais corajoso de todos os tempos disse Eyvind calmamente, o seu olhar intenso à luz da lareira. Sempre o primeiro a atacar, sem querer saber do perigo, feroz e inatacável. É a única coisa que quero ser.
Seguiu-se um pequeno silêncio. Nenhum deles duvidada de que o seu desejo se realizaria. Era uma coisa assente entre todos desde pequenos.
Eu vou casar com Ragna e vou ter dez filhos brincou Sigurd e Ragna, que usava rabo-de-cavalo, deu-lhe uma cotovelada, corando.
E tu, Somerled? perguntou Ingi polidamente, talvez sentindo que se tinham esquecido do seu jovem visitante. O que é que queres ser quando fores homem?
Somerled olhou para ela com os seus olhos escuros sem brilho. Rei disse ele.
Ouviram-se risos de troça. Os rapazes reviraram os olhos uns para os outros; as raparigas deram risadinhas, embaraçadas.
Não me parece que possas ser Rei assim, sem mais nem menos disse Eyvind gentilmente. Quer dizer, um Rei é ainda mais importante do que um Jarl. Terias de ser... bem... O jovem hesitou. Não podia dizer que ele teria de ser forte, corajoso, respeitado: tudo aquilo que Somerled não era.
Duvidas de mim? disse Somerled com modos cortantes. O seu pequeno rosto, de repente, ficou com a aparência de um animal selvagem encurralado, as narinas abertas, o olhar furioso.
Ora vamos, Somerled disse Sigurd. Sabes muito bem que nunca serás Rei. Essas coisas só acontecem nas histórias. É estúpido dizeres isso.
Ingi abriu a boca, talvez para anunciar que eram horas de ir para a cama, mas Somerled antecipou-se-lhe.
Um homem pode ser tudo aquilo que ambicionar disse ele, fixando Sigurd com um olhar fulminante. Ainda tens muito que aprender. Mas não vais aprender, porque tens vistas curtas. Um dia serás um velho amargurado, lamentando uma vida perdida. Pior ainda, não terás a coragem de reconhecer o que poderias ter sido. Um dia, serei Rei, e tu continuarás a ser um criado.Sigurd resmungou uma coisa qualquer e fez um gesto com a mão. Então, Ingi ordenou asperamente a todos que fossem para a cama e aquela estranha conversa terminou.Deitado de costas, Eyvind olhava para o tecto de colmo, onde pequenos animais se agitavam num restolhar de movimentos furtivos. Após uns momentos, disse:Eu não queria dizer exactamente o que disse. Como se achasse que estavas a mentir. Não era isso que eu queria dizer. Eu só estava a tentar...Ajudar? acrescentou Somerled.Bem, sim. Pensei que não soubesses quão difícil é... ser o que disseste. É quase impossível, acho eu.Somerled sentou-se enrolado nos cobertores.Nada é impossível, Eyvind disse ele na sua voz fina, precisa. Nada, se um homem quiser mesmo. Tu queres ser mesmo um Pele-de-Lobo?Mais do que tudo no mundo disse Eyvind. Sabes isso muito bem; toda a gente sabe.Exactamente disse Somerled. Portanto, hás-de ser um Pele-de-Lobo porque não concebes um futuro sem isso. Comigo é a mesma coisa. Não espero atingir o meu objectivo sem trabalho duro e sem uma estratégia cuidadosa, claro.Eyvind ficou calado. Somerled parecia ter a certeza absoluta; tão absoluta que não admitia réplica.Não duvides de mim. A intensidade daquela declaração era tal, que era quase assustadora.Não duvido disse Eyvind calmamente e, para sua surpresa, acreditou no que acabava de dizer.O tempo foi ficando cada vez mais quente e Eyvind ensinou Somerled a nadar. O rapaz praticou aquela nova capacidade como todas as outras, teimosamente, metodicamente, sem qualquer sinal de divertimento. Esbracejava, fazendo progressos graduais, hesitantes, nas águas geladas do fiorde, ao mesmo tempo que Eyvind nadava, mergulhava e praticava a sua capacidade para nadar debaixo de água o maior espaço de tempo possível sem respirar. Parecia que Somerled aprendia as coisas, não porque quisesse, mas porque acreditava que as devia aprender.
Houve uma excepção e essa excepção preocupou Eyvind. Ambos montavam armadilhas para coelhos ou lebres, habilidosos nós de corda colocados de maneira que as vítimas, desprevenidas, eram apanhadas pelo pescoço ou por um dos membros e eram incapazes de se libertar do laço. Geralmente, as presas estavam mortas quando os rapazes iam inspeccionar as armadilhas, mas, por vezes, ainda estavam vivas, lutando de olhos fora das órbitas contra a corda, olhando para os seus captores com a certeza da morte nos seus pequenos focinhos. Eyvind preferia que os animais estivessem mortos; era melhor quando a armadilha lhes apanhava o pescoço. Mas levava consigo um pequeno e pesado pau e usava-o com eficiência quando era preciso. Somerled não utilizava o pau. Inspeccionava as suas próprias armadilhas e, uma vez, Eyvind apanhou-o muito quieto, olhando com um interesse estranho para o pequeno animal cujos esforços para se libertar lhe tinham esfolado a perna quase até ao osso. Talvez Somerled estivesse à espera do momento de que falara uma vez: o ponto de viragem, quando tudo ficava escuro. Eyvind estremeceu, aproximou-se e aplicou o golpe de misericórdia. E, subitamente, Somerled ficou muito zangado.
Por que fizeste isso? O animal era meu!
Eyvind olhou para aqueles olhos escuros e terríveis e engoliu em seco.
Não é preciso mantê-los vivos disse ele cautelosamente. Eles sofrem, sabes? É assim que se faz. Eu faço sempre assim.
E eu faço sempre assim disse Somerled friamente. Trata das tuas próprias armadilhas.
Como queiras disse Eyvind e inclinou-se na direcção do membro sangrento e estropiado, inspeccionando-o de mais perto. Que nó usaste? perguntou ele.
Ah disse Somerled. Reparaste. Queres que te mostre? Habilidosamente, os seus dedos moveram-se sobre a corda e puxaram por baixo as pontas ensanguentadas até que o complexo nó se desfez. Fui eu que o inventei. Creio que o vais achar muito útil. Primeiro aperta rapidamente e depois mais gradualmente, mas é difícil desfazê-lo se não o souberes fazer bem. Repara.
O nó era muito habilidoso e decorativo. Eyvind tentou fazê-lo várias vezes até que conseguiu memorizar a sequência: por baixo, por cima, pelos lados e em cruz, que resultava, no fim, num nó parecido com uma flor. Tinha as suas utilidades, claro, mas...
Prefiro o velho nas armadilhas comentou ele. É mais rápido e mais limpo.
Talvez. Somerled olhou para ele de lado. Mas este é muito mais interessante.
A estação prosseguiu e chegou a Hammarsby uma mensagem, informando que estavam a chegar visitantes: Eirik e Hakon, vindos de norte a caminho da corte do Jarl Freyrsfjord. Ficariam apenas uma noite. Ingi ordenou que matassem um carneiro e mandou os criados porem mãos à obra.
Eyvind estava a selar um cavalo, preparando-se para ir ao encontro do irmão. Na sua mente havia um encontro alegre no caminho que rodeava o fiorde e uma cavalgada em sã camaradagem de regresso à encosta, na qual os dois Pele-de-Lobo lhe dariam notícias e depois uma noite de festim e de histórias. Mal conseguia apagar do rosto um sorriso. Somerled estava silencioso à porta do estábulo, olhando para ele intensamente. Eyvind já se tinha habituado à presença permanente de Somerled, uma sombra imóvel, os seus olhos seguindo-lhe cada movimento. Ao princípio, aquilo fora profundamente desconfortável; mas, depois, acostumara-se de tal modo que pensava que sentiria a sua falta se o rapaz não estivesse constantemente presente.
Eu não me demoro disse Eyvind um pouco desastradamente.
Tudo bem. A voz de Somerled era uniforme, controlada. Eu sei que o teu irmão significa muito para ti. Ele é um Pele-de-Lobo; tu esperas, um dia, ser como ele. Compreendo muito bem.
Desculpa... hesitou Eyvind, não muito certo de como terminar a frase.
Põe-te a andar disse Somerled. Já percebi que cada momento de atraso te irrita. Vai lá.
Vejo-te mais tarde, então. Eyvind subiu para o cavalo já com a perspectiva de um galope pelo largo carreiro abaixo, sob os abetos e já sem Somerled no pensamento.
Eyvind! Era a voz da sua mãe e Ingi apareceu um momento mais tarde à porta da casa enxugando as mãos ao avental.
O que é, mãe?
Desculpa, filho, eu sei que gostarias de ir ao encontro deles no fiorde, mas preciso que vás a casa de Snorri Erlandsson. Tenho duas vacas leiteiras doentes e preciso que ele lhes dê uma olhadela antes que se passe mais uma noite. Se não atalharmos isto à nascença, toda a manada ficará em risco. Desculpa, Eyvind. Ingi vira a expressão no rosto do filho. Todos os outros rapazes estão na lavoura e não tenho mais ninguém para lá mandar.Está bem, mãe, eu vou disse Eyvind engolindo o seu desapontamento. A manada de vacas leiteiras era uma parte substancial da sua sobrevivência; a alegria de um encontro com os Pele-de-Lobo não era nada comparada com aquilo. Fez os possíveis por mostrar que não se importava.Eu vou.Ingi e Eyvind viraram-se ao mesmo tempo, os rostos surpreendidos. Somerled nunca montara a cavalo, sozinho, até tão longe; pior ainda, nunca se voluntariara para qualquer tarefa, se bem que, quando lho pediam, a desempenhasse aquiescentemente, em silêncio e sem qualquer expressão.Não me parece... começou Ingi.É muito longe... disse Eyvind ao mesmo tempo. Somerled olhou para eles e ambos caíram em silêncio perante a escuridão implacável daqueles olhos naquele rosto pequeno e pálido.Eu disse que ia. Sei o caminho. Creio que sou competente para entregar uma simples mensagem respeitante a vacas.Ingi olhou para Eyvind com as sobrancelhas erguidas.É melhor ires tu, Eyvind disse ela. É longe e a cavalgada não é fácil.Não disse Somerled. Eu vou. Eyvind vai ter com o irmão. Levo a égua preta, ou o pónei cinzento?Não sei se... começou Ingi de novo, nitidamente apanhada de surpresa. A sua palavra era lei em Hammarsby.Leva o cinzento disse Eyvind É mais seguro. E vai por cima, é mais rápido com tempo seco. O jovem olhou para a mãe. Pode confiar em Somerled acrescentou ele.O que é isto, uma conspiração? Ingi olhou de um para o outro com um ligeiro franzir do sobrolho. Muito bem, vai lá. Somerled, tens a certeza que sabes onde é a casa de Snorri? Tens de ir pelo pasto sul e depois... sabes? Óptimo. Regressa com ele; deves cá chegar à hora do jantar. E tu virou-se ela para o filho mais novo vai lá e dá-te por feliz por teres um amigo assim.
Dou sim, mãe disse Eyvind e piscou o olho a Somerled. A expressão neutra de Somerled não se alterou. O jovem virou as costas e foi buscar o cobertor do pónei. Eyvind cavalgou pelo monte abaixo, ansioso por ouvir conversa de Pele-de-Lobo e notícias de Pele-de-Lobo.
Notícias havia muitas. Eirik e Hakon contaram algumas no regresso a Hammarsby e mais algumas nessa noite à mesa, durante o jantar que o pessoal de Ingi lhes preparara. Karl estava presente, assim como Snorn, que administrara um remédio às vacas e se dissera satisfeito com o seu estado de saúde. Somerled sentou-se à mesa quieto e calado, comendo pouco, falando ainda menos e ouvindo, ouvindo sempre. Quando ele chegara com Snorri, Eyvind fora ter com ele para lhe agradecer, mas Somerled limitara-se a erguer as sobrancelhas e perguntara:
Porquê?
Por vezes, não havia maneira de compreender o rapaz; a sua mente não parecia trabalhar como a das outras pessoas.
Eirik estava a dizer às pessoas da casa que os dois Pele-de-Lobo tinham ido ao norte para ajudar Ulf num negócio delicado, que iam agora regressar à corte do Jarl e que depois embarcariam para a Primavera viquingue. Nessa estação, Ulf planeava levar um dos barcos de Magnus para sul, até um território mais frequentemente atacado por homens da jutlândia. Haveria competição; as coisas iriam ser interessantes, disse Eirik com algum prazer. Ulf estaria em Hammarsby na próxima lua cheia para recolher Somerled e levá-lo para a corte antes de partir. Ulf ficaria, certamente, muito agradecido a Ingi e a Eyvind, porque Somerled estava com óptimo aspecto. Talvez conseguissem, também, fazer dele um Pele-de-Lobo, acrescentou Eirik com um sorriso. Mas Somerled não sorria. Como um pequeno animal nocturno, deslizou da sala para fora sem uma palavra e quando mais tarde Eyvind foi à procura dele, o rapaz estava deitado na cama todo enroscado e com o cobertor a tapar-lhe a cabeça.
Somerled?
Não houve qualquer resposta.
Somerled! Eu sei que não estás a dormir. O que é que se passa?
Nada. A voz era abafada. Por que razão haveria de se passar alguma coisa?
Pensei que...
Vai-te embora, Eyvind. Estou a tentar adormecer.
Seria muito mais fácil obedecer e regressar ao salão onde a sua família e os seus hóspedes continuavam sentados a beber cerveja e a conversar. No entanto, Eyvind descobriu que não podia fazer isso.
Não precisamos de falar, se não quiseres disse ele calmamente, sentando-se ao lado de Somerled. Mas eu fico aqui.
Seguiu-se um novo silêncio. Não precisas de ficar. A voz de Somerled era um sussurro.
Eu sei disse Eyvind. Os amigos não se ajudam só porque é preciso. Fazem-no porque querem.
Uns momentos depois, Somerled falou de novo. Eyvind percebeu que ele fazia os possíveis por não chorar.
Eyvind?
Hum?
Não podes fazer nada. Ninguém pode.
Eyvind não encontrou nada para dizer; a finalidade desesperada do tom do rapaz reduziu-o ao silêncio.
Eu sei que a tua intenção era boa disse Somerled em voz fraca. Era a coisa mais parecida com um agradecimento que ele alguma vez dissera.
O tempo passou rapidamente. Os dois continuaram a nadar, a explorar e a caçar, mas algo mudara. Somerled exigia cada vez mais de si próprio, fazendo os possíveis para se aguentar e fazer tudo como deve ser, como se tivesse de conhecer tudo a fundo antes de se ir embora. Mas voltara a ser um rapaz calado e aquela estranha escuridão regressara-lhe aos olhos. Não era possível falar com ele, porque cada tentativa era cortada com uma furiosa recusa. Assim, Eyvind concentrou-se tranquilamente nas lições, já que aprender coisas era o propósito da visita de Somerled.
Quando a lua cheia se aproximava e o tempo ficou bom, embrenharam-se nos bosques e construíram um abrigo. Permaneceram nele três dias. Ao terceiro dia, armaram-se com lanças, perseguiram um javali, encurralaram-no ao anoitecer e mataram-no. Foi o golpe de Eyvind que trespassou o coração do animal, mas a lança de Somerled apanhou-o no ventre, reduzindo-lhe a velocidade e preparando-o para o golpe final. Tinham-no apanhado os dois.Nessa noite, sentaram-se à lareira numa clareira rodeada por abetos escuros, grandes como gigantes. Assaram um pouco de carne; a restante, devidamente cortada, seria levada no dia seguinte para casa nas suas mochilas.Fizeste um bom trabalho disse Eyvind.Somerled continuou a mastigar a sua ração de carne e não disse nada.Estou a dizer a verdade. Não terias conseguido quando aqui chegaste. A maioria dos rapazes não teria conseguido. Teriam tido medo da escuridão, dos lobos, dos trolls. Teriam tido medo de falhar. Mas tu, não.Não tentes fazer-me sentir melhor murmurou Somerled. Seguiu-se um silêncio considerável enquanto Eyvind pensava naquela observação.Gostaria que me dissesses o que se passa disse ele, finalmente.É esse o teu problema. A voz de Somerled era irregular. És tão bom em tudo, mas és tão estúpido, tão estúpido, que nem te apercebes da tua estupidez.Está bem disse Eyvind após um momento. O jovem atirou o resto da sua comida para o fogo, envolveu-se no seu cobertor e deitou-se para dormir. Por vezes, com Somerled, não valia a pena tentar compreender. O silêncio manteve-se por um bocado e ele começou a sentir-se sonolento após aquele dia tão longo. Os membros doíam-lhe, mas essa dor era boa, a espécie de dor que ia bem com o ar límpido e frio do campo, o cheiro do fumo do acampamento e a visão do céu escuro, todo estrelado. Eyvind imaginou o sorriso da sua mãe de manhã, quando regressassem a casa com o trofeu.Ninguém quer saber. A voz de Somerled saiu da escuridão como se fosse o sussurro de um pequeno fantasma irrequieto. Ninguém se interessa pelo que me acontece.O quê? Eyvind virou-se sonolentamente.O meu irmão pôs-me aqui para me castigar. E agora leva-me daqui para me castigar.Mas... Eyvind fez um esforço para pôr os seus pensamentos em ordem. Ir para a corte não é bom, se queres ser... bem, aquilo que disseste?Seguiu-se um silêncio.
Como é que tu podes compreender? perguntou Somerled amargamente.Estou a tentardisse Eyvind, erguendo-se e apoiando-se num cotovelo. Não conseguia ver o rosto de Somerled; o rapaz estava de costas voltadas para ele.Tu também não te importas disse Somerled num tom de voz que não era mais elevado do que o sussurro do vento num arbusto. Estás a contar os dias que faltam para eu me ir embora. Depois, sais com Sigurd e com os outros, riem-se um bocado à minha custa, ides nadar e caçar e ficais muito satisfeitos por não terdes que me arrastar convosco.Aquilo era verdade, ou quase tudo. Eyvind já planeava uma travessia a nado a Pescoço de Serpente e uma corrida ao topo de Setter’Crag, uma façanha que Somerled não conseguiria levar a cabo. O jovem falou cautelosamente.Tu sabes quanto desejo ser um Pele-de-Lobo. Mas ainda sou novo. Eles só me deixam fazer o teste quando eu tiver quinze anos. Custa muito esperar. Três anos parecem uma eternidade. Tem sido bom ter-te aqui. Tens-me mantido ocupado, dando-me coisas para fazer.Um divertimento. O tom de Somerled era frio. Um pequeno divertimento.Sabes que não é o que eu quero dizer disse Eyvind, sentando-se. Mas o rosto do rapaz continuava obstinadamente virado para o outro lado. Alguma vez me ri de ti? Tu és meu amigo, Somerled.O jovem ouviu a respiração entrecortada e perguntou a si próprio se Somerled estaria a chorar. Então, a voz deste ouviu-se, áspera e intensa.Então, prova-o.Provar? Como? Eyvind estava perplexo.Somerled virou-se. Tinha a sua faca de caça na mão e a sua manga estava puxada para cima. Enquanto Eyvind olhava, petrificado, ele fez um corte nítido na pele branca do seu braço, um ferimento que começou a escorrer sangue desde o pulso ao cotovelo. O rosto de Somerled parecia uma máscara de guerra, a boca apenas uma linha fina, o olhar feroz, de desafio.Jura com o teu sangue. A sua voz soou aos ouvidos de Eyvind como o toque solene de um sino, como as trompas do Juízo Final ou como uma velha história. Jura que seremos como irmãos para sempre. Prova-me que não estás a mentir.
E como Eyvind hesitasse, olhando para o sangue a escorrer do braço de Somerled para o cobertor e para o chão da floresta, os olhos deste tornaram-se frios, ao mesmo tempo que o seu rosto continuava tenso.Eu sabia que não eras capaz disse ele. O tom da sua voz não era o mesmo da sua expressão. O tom de voz era o de uma criança solitária que se esforça por reter as lágrimas.Eyvind levantou-se e tirou a faca das mãos de Somerled. Não se permitindo pensar demasiado, ergueu o próprio braço, respirou fundo e cortou; não muito profundamente, ou seria difícil explicar o golpe; o suficiente para que o sangue corresse livremente. Doeu-lhe, mas ele sabia lidar com a dor. Em seguida, encostou-o ao de Somerled e ambos apertaram as mãos enquanto o sangue se misturava e gotejava à luz da fogueira.Jura murmurou Somerled. A Eyvind parecia que o som da voz de Somerled ecoava no sussurro do subsolo à sua volta e no suspiro irrequieto do vento nos ramos dos grandes abetos.O que é que eu digo? perguntou Eyvind em voz baixa, se bem que não houvesse necessidade de sussurros, já que estavam sozinhos.Diz o que eu disser. Diz: Juro que és meu irmão a partir deste dia; irmão pelo sangue que partilhamos.Juro... Eyvind repetiu as estranhas e solenes palavras, perguntando a si próprio por que razão o seu coração batia com tanta força e o seu corpo estava coberto de suores frios. No fim de contas, estava apenas a fazer com que o pobre rapaz tivesse um amigo. Mais nada.... fiéis um ao outro acima de todos os juramentos terrenos; leais um ao outro acima de todas as alianças terrenas, até à morte.... até à morte.Separaram-se. O sangue tinha-se espalhado pelo seu braço e Eyvind tirou do seu saco um pano para usar como ligadura. Os ferimentos eram vulgares quando saía para a caça e andava sempre preparado.Toma disse ele, passando outro pano a Somerled. Enrola-o em redor do ferimento e ata-o com força.Somerled ligou o próprio braço e atou-o com um nó que se parecia com uma flor.Eu sei o que tu queres ser disse ele com a voz já calma. Foi por isso que acrescentei a parte "acima de todos os juramentos terrenos". Sei muito bem que o teu primeiro juramento deve ir para Thor. Mas o seguinte é para mim. Quando eu for Rei, serás o primeiro dos meus Pele-de-Lobo, o meu chefe de guerra e o meu principal guarda-costas. Haverá sempre um lugar para ti, se me fores leal.
Obrigado disse Eyvind, tentando esconder a sua surpresa. Sentia-se confuso. Não comparava aquilo à história de Niall e de Brynjolf, que detestara. Aquilo era um gesto de boa vontade, nada mais. Somerled sentia-se só. Não podia permitir que o rapaz pensasse que não tinha um único aliado. Quando Somerled crescesse mais um pouco, perceberia que os seus grandes planos não passavam de uma tolice, um sonho que existia apenas na sua cabeça, sem qualquer relação com a vida real. Entretanto, o rapaz podia muito bem sonhar.
Boa noite, Somerled disse Eyvind.
Boa noite. A voz baixa e séria chegou a Eyvind através da escuridão. O jovem deitou-se de novo e, apesar das dores no braço, sentiu-se dominado pela exaustão de um dia passado a forçar o corpo ao máximo e adormeceu. Mas Somerled ficou ainda sentado longos minutos junto da fogueira, os olhos escuros fixos num lugar ao longe, muito para lá da orla da clareira, da floresta, ou dos montes, num lugar que só ele podia ver. Encostou o braço ligado ao peito, como se isso lhe desse algum conforto. Só os deuses ouviram as palavras que ele sussurrou na escuridão.
Somerled partiu sem qualquer sinal de cólera ou de lágrimas. Agradeceu a Ingi com palavras tensas e formais. Olhou de relance para Eyvind e levou levemente a sua mão ao interior do braço do jovem, como se quisesse dizer: Não te esqueças. Em seguida, tão abruptamente como chegara, Somerled desapareceu.Um juramento era um juramento. Mas era fácil esquecê-lo quando os dias eram quentes e brilhantes e havia tanta coisa para fazer: lutar, nadar, jogar um jogo a que eles chamavam Campo de Batalha, que envolvia uma bola de pele de boi embrulhada em palha e pagaias de freixo. O Campo de Batalha provocava nódoas negras, rivalidades ferozes e, ocasionalmente, ossos partidos. Quando ia caçar, Eyvind levava Sigurd, ou Knut, ou um dos outros rapazes e eles portavam-se bem. O jovem atravessou o Pescoço de Serpente e voltou sem vir à tona respirar. À noite, trabalhava madeira com a sua faca e fez uma lançadeira com uns cães desenhados. Achou que devia dá-la a Ragna, que não tinha nenhuma. Mas lembrou-se da brincadeira de Sigurd acerca dos dez filhos, lembrou-se da maneira como Sigurd deixara de puxar o rabo-de-cavalo de Ragna e lhe fazia, em vez disso, coroas de flores e meteu o pequeno trabalho de madeira no bolso.Três anos pareciam uma eternidade quando Eyvind ainda nem sequer tinha doze, mas as estações passaram com suficiente rapidez. Por vezes, Eirik fazia uma visita e como Eyvind se aproximava da maturidade, o irmão começou a ensinar-lhe algumas coisas. Havia algumas técnicas que não se podiam praticar com um amigo, porque, por vezes, ia-se demasiado longe e podia-se feri-lo ou, até, matá-lo: uma ligeira torsão do pescoço, um polegar aplicado de modo muito especial, um murro nos rins ou um apertão na virilha. E havia refinamentos no manejo das armas. Um Pele-de-Lobo tinha de ser capaz de ser dois homens ao mesmo tempo, disse-lhe Eirik enquanto ensaiavam arremessos de machado contra o tronco de um grande pinheiro na floresta, longe de casa. Um era o guerreiro, o primeiro a saltar da proa gritando o nome de Thor, de aspecto feroz, tão selvagem que ninguém se atrevia a fazer-lhe frente. O homem louco que todos temiam, o frenético guerreiro que fazia buracos com os dentes no seu próprio escudo, tal era a sua raiva em combate. Essa era uma das facetas de um Pele-de-Lobo. Mas um Pele-de-Lobo não podia ser apenas coragem e raiva. A sua vida, na maior parte das vezes, era curta; não devia permitir que a estupidez a tornasse ainda mais curta. No intervalo das estações viquingues havia ocasiões em que vinham à tona outras qualidades: a capacidade para proteger o seu amo e senhor, para lutar pelos seus feudos em terra, continuando, ao mesmo tempo, duro, porque um Jarl gostava de ver o seu bando de guerreiros de elite em acção, fosse ele em corridas de cavalos, em lutas ou em desafios de outra espécie qualquer. Portanto, disse Eirik, Eyvind faria bem se melhorasse a sua esgrima, a sua destreza com o bordão e tentasse o combate desarmado com alguém mais do seu tamanho e força, em vez de perder tempo com os rapazitos da propriedade. Os dois irmãos lutaram várias vezes um contra o outro e Eirik ganhou sempre, o que era de esperar. No entanto, tendia a ficar um pouco sem fôlego no fim de um assalto e olhava para o irmão mais novo com o esboço de um sorriso, como se uma coisa há muito suspeitada se estivesse a tornar verdadeira.No Outono, a escrava negra, Oksana, teve outro bebé de cabelos claros. E na Primavera seguinte, Somerled regressou. Dessa vez veio a seu próprio pedido, até ao regresso do irmão de uma outra expedição para sul, ao reino dos Francos. Se Ulf se saísse bem, a prata que traria compraria os serviços de bons construtores de barcos e a conclusão do seu grande navio oceânico ficaria mais próxima. Talvez conseguisse poupar o suficiente para contratar um mestre navegador; talvez, até, conseguisse reunir a sua própria força de Peles-de-Lobo. Uma boa parte do saque de uma estação era entregue ao Jarl, como tributo, claro, mas isso fazia parte de todo um processo, explicou Somerled. O Jarl devia estar sempre satisfeito, se se queria o seu apoio no futuro. Uma tal aventura requeria um longo e cuidadoso planeamento.
Portanto, Somerled regressara, mais alto, mais pálido e sempre pouco sorridente. As suas roupas eram melhores. Usava uma túnica de lã cuja orla estava cheia de reluzentes fios metálicos e a sua capa era apertada por um pesado broche de prata em forma de cabeça de dragão. O seu cabelo escuro estava cuidadosamente penteado e preso atrás por meio de uma fita do mesmo fio metálico; observou muito e falou pouco. Assim que ele chegou, os outros rapazes deixaram de perguntar a Eyvind se ele ia jogar ao Campo de Batalha, ou se ia com eles à caça do veado. Era ponto assente, sem necessidade de qualquer palavra, que, enquanto durasse a visita, Somerled seria o único companheiro de Eyvind.Somerled mudara. Era evidente que não perdera o seu tempo na corte, por mais relutante que tivesse sido o seu regresso. O Jarl tinha na sua casa um escravo que fora um erudito nas longínquas e quentes terras de leste e Somerled estava a aprender a desenhar mapas e a interpretar as estrelas com ele, a fazer versos e a jogar alguns jogos. Em Hammarsby encontrou um parceiro na pessoa do irmão mais velho de Eyvind. Karl adorava jogos, não a espécie de jogos como o Campo de Batalha, antes a espécie de jogada com um pequeno tabuleiro quadrado e um conjunto de pequenas peças esculpidas. O seu oponente era, geralmente, um dos criados mais velhos, que tinha olho para tais passatempos. Karl tentara ensinar aquele jogo a Eyvind ao longo das noites de Inverno, mas, de algum modo, Eyvind não conseguia entrar na intrincada estratégia do jogo; não percebia como podia Karl ver três, quatro, sete movimentos antecipadamente e planear ataques e contra-ataques. Por fim, Karl desistiu, dizendo ao irmão, com um sorriso, que nunca aprenderia porque ele pensava como um Pele-de-Lobo, usando o ataque como única táctica, gritando de machado em punho e aterrorizando a oposição. Essa observação fora, provavelmente, uma crítica, mas, para Eyvind, fora como que um elogio.Então, Karl ficou deliciado quando Somerled manifestou vontade de jogar. Começaram com o jogo que tinha pequenos pinos metidos em pequenos buracos, sete por cada jogador e em pouco tempo Karl era expulso do tabuleiro. Jogaram um com peças pretas e verdes; Karl tinha dezasseis pequenos soldados e Somerled oito, alinhados por detrás de um rei minúsculo feito de pedra de sabão. Esse jogo durou mais tempo; a princípio, Karl sorria e brincava, mas depois já franzia o sobrolho e fazia caretas. Mais tarde, começou a beber cerveja, praguejando e, finalmente, admitiu a derrota. Somerled não fez nada disse O rapaz jogava como fazia tudo o mais: silenciosamente, cuida dosamente, não denunciando nada com os seus olhos escuros. No fim reuniu as peças cuidadosamente e meteu-as no pequeno saco de pele. Acenou com a cabeça na direcção de Karl sem um único sorriso. Jogas bem, para um fazendeiro disse Somerled. Foram caçar, montaram armadilhas e nadaram no rio ou nas águas frias do fiorde. Somerled não esquecera o que Eyvind lhe ensinara e aprendeu outras coisas. Nunca seria um guerreiro, isso era evidente. Devido aos novos truques aprendidos com Eirik e ao seu maior tamanho e força, Eyvind estava muito para além do seu amigo no que dizia respeito a capacidades físicas, da mesma maneira que um mestre artesão está muito para além do seu aprendiz. Mas, pelo menos, sob a sua tutela, Somerled aprendeu a defender-se. Se alguma vez tivesse de levar uma vida dura, seria capaz de encontrar comida e abrigo. Construíram juntos uma plataforma nos ramos superiores de um grande carvalho, um refúgio secreto ao qual se acedia, apenas, com o auxílio de uma corda com nós. O soalho era de pranchas atadas umas às outras, as paredes de ramos e o tecto era aberto para as estrelas. Era extremamente alto. Uma vez, durante a construção, Somerled escorregara e quase caíra; ficara agarrado apenas com uma mão, apertando a corda com força para não cair no chão da floresta e no esquecimento instantâneo. Eyvind conseguira agarrar-lhe nos braços e puxá-lo. Aquando do pôr do Sol, quando estavam sentados no alto escutando o canto das aves, Eyvind viu Somerled a gravar qualquer coisa com a sua faca de caça na casca da árvore.Que estás a fazer? perguntou ele. Ainda embotas a lâmina. Somerled não respondeu. A faca fazia um desenho nítido e irregular de linhas verticais e golpes transversais e oblíquos, como uma fila de pequenas árvores, cada uma com dois ou três ramos. Somerled! O que é isso?O movimento firme da faca continuou. Somerled falou sem se virar. Aqui diz: Esta casa foi construída por dois irmãos. Somerled gravou estes caracteres rúnicos.Eyvind ficou de boca aberta.Quer dizer que sabes escrever? perguntou ele, espantado.Não tenho perdido o meu tempo disse Somerled casualmente, gravando com precisão um par de linhas paralelas por cima de um pequeno golpe. Um homem precisa de saber certas coisas para subir na vida. Esta é uma delas. Também sei ler. Mas esta não é uma escrita de todos os dias, Eyvind. Chega aqui, que eu mostro-te.Pacientemente, o rapaz percorreu a linha de marcas nítidas, explicando o que cada um dos caracteres significava e porquê.Estes caracteres não são vulgares, sabes, são de uma espécie diferente, são secretos. Até para alguns eruditos são incompreensíveis. Os ramos são a solução, uma espécie de indicador...As suas explicações foram cuidadosas e vagarosas, mas após um bocado o rapaz parou. Olhando para Eyvind, ele não sorria exactamente; um verdadeiro sorriso da parte de Somerled era uma coisa rara. Mas a sua expressão tinha-se suavizado.Desculpa confessou Eyvind pesarosamente. Mas não compreendo. Começava a perceber que talvez o seu amigo fosse, na verdade, muito inteligente, tão inteligente que talvez nunca o chegasse a compreender.Não faz mal, Eyvind disse Somerled. Tu não precisas de saber estas coisas. Comigo é diferente. Para ser o que devo ser, tenho de aprender tudo. A ler, a escrever, a jogar, a atirar ao arco, a remar, a esquiar e até, provavelmente, a arte de ferreiro. E não posso esquecer a música e a poesia. Sem saber estas coisas, um homem não pode dizer que é um líder. E não tenho muito tempo.Eyvind olhou para ele de olhos esbugalhados, mas não disse nada.Não acreditas que sou capaz disse Somerled com voz monótona.Pelo contrário. Eyvind falou num tom receoso. Começo a acreditar que consegues fazer tudo o que te vem à cabeça. O jovem ficou a olhar enquanto o amigo gravava o último carácter rúnico e baixava a faca. Ficou óptimo acrescentou.Algo no seu tom de voz prendeu a atenção de Somerled.O que é?Eu... Eyvind estava invulgarmente hesitante. Pergunto a mim próprio se...O quê? Queres pôr aqui a tua marca? Devias, irmão, porque isto aqui pertence a ambos. E o nosso segredo.Gostaria de aprender a escrever o meu nome. Como deve ser, com esses sinais, não apenas com uma cruz. Mas parece difícil. Não sei se conseguirei.
Praticamos aqui, nas bordas, até conseguires. E depois, na árvore. Pega na tua faca e faz o que eu faço.Eyvind lembrar-se-ia, pelos anos fora, da paciência de Somerled naquele dia, ensinando-lhe cada linha, cada traço oblíquo, obrigando-o a tentar lentamente, corrigindo cada erro com afabilidade até o jovem ser capaz de inscrever, em caracteres aceitáveis, o seu nome no tronco da grande árvore. Durante o espaço e tempo que durou aquela lição, pareceu a Eyvind que Somerled se transformara num rapaz diferente, num rapaz que era capaz de encontrar alegria na partilha do que sabia, num rapaz que era capaz de dar e receber. Foi um curto espaço de tempo, mas Eyvind nunca mais o esqueceu.Muito mais tarde, depois de Somerled ter regressado ao sul, Eyvind subia, por vezes, à árvore e estudava a inscrição na casca. Percorria os sinais com os dedos, apenas a parte que dizia Eyvind, porque não era capaz de decifrar o resto. Parecia-lhe uma questão de orgulho, o facto de um homem ser capaz de escrever o seu nome. Quanto ao resto, era uma advertência ao seu juramento, porque Somerled inscrevera na árvore: dois irmãos.Naquele mesmo Verão, Eyvind e Somerled visitaram a mulher-gato na sua estranha e pequena cabana acima da linha das árvores, perto do topo da Colina Gelada. A vidente tinha outro nome, mas as pessoas sempre lhe tinham chamado mulher-gato, como se ela fosse apenas meio-humana. Os poderes da anciã eram ao mesmo tempo temidos e respeitados. Ela recebia visitantes apenas quando queria. Por vezes, Karl ia até lá para lhe rachar lenha e entregar um saco de farinha, ou um queijo. Ocasionalmente, a mulher aventurava-se pelo monte abaixo por ocasião de algum festival ou reunião e as pessoas diziam que, se ela bebesse cerveja suficiente, era capaz de cantar aos espíritos até os seus olhos se virarem para trás, que ficava com uma voz estranha e que dizia o que o futuro reservava. Os homens gostavam de ouvir falar do seu destino; os fazendeiros ansiavam por notícias das estações vindouras, os pescadores queriam saber de tempestades, os mercadores previsões acerca dos melhores negócios. A mulher-gato nem sempre dava boas notícias, mas os seus avisos eram úteis, era recebida com grande respeito e recebia presentes.
Eyvind teria preferido passar o dia na caça. Mas quando Somerled ouviu falar da vidente, nada o deteve. Tinha de lá ir antes que Ulf o levasse de volta; tinha de saber o que ela tinha para lhe dizer. Além disso, era uma aventura.Ingi deu-lhes um pequeno barril de manteiga e uns ovos num saco cheio de penugem. O tempo estava ameno e claro, mas frio para a estação. A jornada era longa, um dia inteiro de ida e volta. Os rapazes subiram até à linha de árvores e depois até à encosta rochosa. Eyvind abrandou o passo para se acomodar ao de Somerled, mas não tanto como no passado. Viram veados movendo-se silenciosamente nos bosques e uma águia lá em cima, mas não iam caçar: aquela expedição buscava apenas o conhecimento. Pela intensidade dos olhos semicerrados de Somerled, Eyvind pensou que sabia o que o amigo queria ouvir. Mas manteve a boca fechada. Não se fazia perguntas a Somerled numa ocasião daquelas, a não ser que se quisesse uma resposta que soaria como uma chicotada.A cabana da mulher-gato era baixa, coberta por uma camada de turfa, como se a terra tivesse escolhido crescer em seu redor. Uma pequena cabra pastava no telhado; de cima da pilha de lenha, um gato monstruoso, de espesso cachaço, observava-os através de uns olhos amarelos oblíquos. Umas galinhas pretas escarvavam o solo, cacarejando. Não precisaria dos ovos, portanto. Por um buraco na turfa subia uma fina espiral de fumo. Eyvind chamou polidamente e depois avançou para entrar; a entrada tinha uma cortina a impedir a entrada, mais nada.Lá dentro, o local era escuro, pequeno e atafulhado de objectos estranhos e maravilhosos, bizarros e mágicos. Máscaras penduradas nas paredes: rostos belos, selvagens, sem olhos, perigosos. Os ossos de um animal comprido e esbelto estavam numa prateleira de pedra; um pote de ferro fumegava na lareira ao meio da cabana. Havia um cheiro pungente, estranho, não exactamente desagradável, apenas a espécie de odor que torna uma pessoa, subitamente, totalmente acordada. Somerled aproximou-se por trás dele e parou.Trazemos manteiga e alguns ovos disse Eyvind polidamente. Foi a minha mãe que mandou. Ingi, quer dizer.Na sombra, para lá da lareira, a mulher-gato agitou-se. Levantou-se e avançou até que a luz do buraco para o fumo lhe iluminou o rosto, um rosto notavelmente liso para uma mulher daquela idade. A sua pele era branca, tão branca como os longos cabelos que lhe caíam, soltos por baixo do estranho gorro que usava, que parecia feito de pele escura por fora e de pêlo claro por dentro. Os seus olhos eram como vidro azul fino; em redor do pescoço tinha um colar de contas quase da mesma cor. Quando se moveu, o seu vestido fez um débil tilintar, como se houvesse nele minúsculas campainhas penduradas.Mas talvez não queiras os ovos acrescentou Eyvind. Vejo que tens galinhas.As prendas são sempre bem-vindas disse a mulher-gato, indicando um aparador de lajes de pedra na parede mais afastada. Podes pô-las ali, se quiseres. A tua mãe é uma pessoa muito boa. Os teus irmãos já cá estiveram. Lembro-me deles.Eyvind sorriu, esperando não parecer muito nervoso.Ouvi dizer que lês a sina. Quero que me leias a minha disse Somerled abruptamente. Espero que não mintas, ou que inventes histórias quando as tuas capacidades te abandonam. A tua é uma profissão exercida por muitos vigaristas.Somerled... disse Eyvind em voz baixa, vendo a expressão mudar no rosto da anciã. Não se ofendia uma vidente. Certamente que até Somerled sabia isso.Eu não ando às ordens de ninguém, como um animal de circo qualquer disse a mulher-gato calmamente. Em seguida, virou-se para Eyvind. Este não é teu irmão observou ela.Peço desculpa. O nome dele é Somerled. É um amigo meu, que vem ficar connosco algumas vezes. Esperávamos... quer dizer...A mulher-gato sorriu debilmente.Eu li a sina ao guerreiro e ao fazendeiro e farei o mesmo por ti. Mas, ao teu amigo, não devo nada.Pelo canto do olho, Eyvind viu a boca de Somerled apertar-se.Tenho mais um presente, se quiseres aceitar disse Eyvind rapidamente, antes que Somerled pudesse falar de novo e tornasse as coisas ainda piores. Fiz isto. Talvez gostes. Do bolso, o jovem tirou a lançadeira que esculpira. Agora que olhava para ela, podia ver que os pequenos cães não estavam tão bem-feitos como deviam, já que algumas das suas expressões eram mais cómicas do que nobres. Esperava que a mulher não ficasse ofendida. Não é um suborno, ou um pagamento acrescentou ele apressadamente. Eu sei que o teu conhecimento não tem preço. Mas podes ficar com ela, se quiseres.
A mulher-gato suspirou; um suspiro estranho, como se carregasse um fardo demasiado pesado. Então, pegou no pequeno objecto e tocou no desenho, levemente, com os dedos.O teu amigo que vá lá para fora disse ela. Somerled fitou-a ameaçadoramente.- Ele que vá lá para fora. Ler a sina é uma coisa privada, sabes isso. Primeiro tu e depois, ele.Num instante, Somerled desapareceu. No lugar onde ele estivera ficou apenas uma espécie de vibração má. A mulher-gato não cantou, nem rolou os olhos, nem chamou os espíritos. Sentou-se à lareira e pediu a Eyvind que se sentasse junto dela.Dá-me a tua mão, Eyvind. Estás quase tão grande como os teus irmãos: como uma árvore nova. Que queres tu ouvir assim com tanta pressa? Acendamos as velas, uma deste lado e outra do outro. E atira um pouco disto para a lareira... ah, assim está melhor. E agora, deixa-me olhar para ti. Um belo rapaz. Tens o dom da bondade, vejo-o nos teus olhos. Um dom raro. No entanto, o teu destino vai levar-te para longe dessa qualidade. Que queres saber, Eyvind?Vou ser um Pele-de-Lobo? Vou passar o teste de Thor? As suas palavras tropeçaram umas nas outras na pressa de saírem. E quando? Quanto tempo tenho ainda de esperar?Ele achou que ela não ia responder, tanto demorou a resposta. Ela olhou para a palma da mão dele, depois para os seus olhos e depois para a chama da vela e ele viu no seu rosto uma quase piedade. O seu coração encolheu-se. Ela vira que ele ia falhar e não lhe queria dizer.Diz-me! proferiu abruptamente ele, finalmente. Diz-me, seja o que for!A mulher-gato suspirou de novo e pestanejou, como se regressasse de um lugar longínquo.Oh sim, tu vais brandir o teu machado mesmo na primeira linha, meu rapaz. Um coleccionador de caveiras, o mais forte entre os mais fortes, terrível e orgulhoso. Serás o melhor entre os melhores. E muito em breve; mais de um ano, menos de dois, acho eu. Thor pôs a sua marca em ti; desde que nasceste.Eyvind podia sentir o sorriso no seu rosto e o orgulho fez-lhe bater o coração com toda a força.Obrigado! Oh, obrigado.Não é tudo.
É tudo o que me interessa. É tudo o que quero: tudo o que sempre quis.A mulher-gato franziu o sobrolho. Os seus longos dedos viravam e reviravam a mão do jovem, tocando na cicatriz que começava acima do pulso e desaparecia por baixo da manga da camisa.No entanto, devias ouvir tudo. Porque não é apenas o teu futuro que eu vejo aqui, é também o de outros, o daqueles cujas vidas podem ser influenciadas pela tua escolha. Tu tens um longo e estranho caminho pela frente, Eyvind; e apenas vês a glória da tua existência como preferido de Thor, mas isso não é tudo.Não há nada melhor do que isso! Não há nada mais importante!Há lições para aprender: conhecimentos secretos para serem descobertos onde menos esperas. Há um poço profundo de traições e um sinal luminoso de amor, mas o caminho entre as duas coisas é muito estreito. Há um tesouro muito raro para ti, filho. Vê lá não o percas.Tesouro? Suponho que hei-de ver alguns quando for Pele-de-Lobo.Suponho que sim disse a mulher-gato gravemente. Mas eu não estou a falar nessa espécie de tesouro. E agora vai, filho. Não te percas no meio disso tudo.Obrigado. Não perco disse Eyvind, mas não percebeu as palavras dela, nem quis perceber, porque tivera a resposta que queria e o seu coração ardia de alegria.O jovem esperou no exterior por Somerled, tentando não ouvir. Fez uma festa ao gato; o animal manteve-se quieto, ronronando, mas Eyvind sentiu-lhe os músculos e viu-lhe as garras afiadas como facas. Era espantoso como havia ali galinhas.Era difícil não os ouvir. A voz de Somerled era quebradiça e clara, a da anciã suave e medida; no entanto, esta chegava aos ouvidos de Eyvind como se ela quisesse que ele as ouvisse. Ter-se-ia afastado, mas o gato tinha as garras presas na sua manga e um olhar feroz que dizia: É bom que continues a coçar-me a orelha, senão ainda te mostro quem eu sou na realidade.Diz-me a verdade disse Somerled. Seguiu-se uma pequena pausa.É a verdade que procuras, ou meramente a confirmação do que já decidiste? perguntou a mulher-gato.
Não pertence a uma mulher velha brincar com palavras cortou Somerled. É claro que procuro a verdade. Por que outra razão viria aqui? Mas talvez não passes de uma fraude. Talvez só digas baboseiras, para encheres a cabeça das pessoas de esperanças impossíveis.E se a verdade que eu te disser não te agradar? perguntou ela suavemente. Que acontecerá? Eu não posso dizer sempre coisas boas. O mundo é um lugar cruel, Somerled. Sabes muito bem.Que quer dizer isso? Somerled parecia zangado, no entanto a mulher ainda nem tinha começado a ler-lhe a sina.Tu sabes o que quer dizer. O teu caminho não tem sido fácil. Começou mal e assim vai continuar. Mostra-me o teu braço.Um pequeno silêncio.Não fizeste nenhum favor ao teu amigo disse a mulher-gato ao ligá-lo a ti desta maneira.Está escrito, então, que prosseguirei o meu difícil caminho completamente sozinho? Sem nenhum amigo a meu lado?Eu não disse isso. Eyvind sacrificará muita coisa para cumprir a sua promessa.E que futuro tens para mim? Uma vida curta mas gloriosa de machado na mão em honra de Thor? O meu amigo é uma pessoa simples, com sonhos simples. Se achas que o futuro dele é esse, ele ficará feliz.Se queres saber, pergunta a Eyvind. Neste momento, é o teu futuro que examinamos.Nesse caso, toca a andar! O que vês?Pega num bocadinho disto. Atira-o para o fogo. Agora, olha para mim.Então, durante muito tempo, nada aconteceu, tanto, que Eyvind perguntou a si mesmo se a mulher-gato não teria sido capaz de ver o futuro de Somerled, ou talvez tivesse visto um futuro do qual não queria falar. Quando, por fim, falou, foi lentamente, como se escolhesse cada palavra com cuidado.Sangue e paixão, traição e morte. Para além disso, há... há...O quê? O quê? sibilou Somerled.Não é claro. Há aqui dois caminhos e não te sei dizer qual escolherás. Em cada um deles há uma jornada. Um dos caminhos é o do poder e da influência. Vejo um homem que é rei; muitos seguem-no.
O outro caminho... é, na verdade, um caminho estranho, através de águas desconhecidas, com gaivotas e focas como companhia.Chega. A voz de Somerled mudara. O tom quebradiço desaparecera; parecia, de algum modo, aliviado. Vejo que dizes a verdade. Não tenho dúvidas de qual será o meu caminho. Qual é a recompensa que desejas por me teres lido a sina?De ti não quero nada disse a vidente. O presente do teu amigo foi suficiente.Isso? Para que serve uma porcaria dessas? Por que não me pedes prata, ou âmbar, ou uma ovelha ou duas? Nunca sairás deste buraco, assim.Tens muito que aprender. São horas de ires. O teu amigo espera-te.O gato encolheu as garras e Eyvind viu Somerled sair da cabana de rosto impassível, se bem que os seus olhos brilhassem.O que é que ela te disse? perguntou Eyvind enquanto caminhavam pela encosta rochosa abaixo a caminho de casa. Não podia dizer a Somerled que tinha ouvido; algumas das coisas não eram, certamente, para os seus ouvidos.O que eu esperava disse Somerled. Que eu serei um homem de poder e influência. Não aqui, mas algures, muito longe. Gostei. A mulher disse a verdade. E a ti, o que é que ela te disse?Mas Eyvind não respondeu, porque estava a pensar. Revia na sua mente as palavras que a vidente dissera a Somerled. Tinham sido cuidadosamente escolhidas, disso não tinha dúvida. Mas tinham-lhe parecido, de algum modo, menos certas do que Somerled pensava. No entanto, Somerled nunca se enganava e ele próprio tendia, por vezes, a confundir as coisas. Decidiu não dizer nada.Eyvind?Oh. Ela disse-me que serei um Pele-de-Lobo e muito em breve. Parecia ter a certeza.Somerled ergueu as sobrancelhas.Toda a gente sabe isso disse ele secamente. Está escrito no teu corpo todo. Se todas as sinas fossem tão fáceis de ler como a tua, seríamos todos videntes.Não voltaram a falar daquele assunto. Mas quando se aproximaram da vertente íngreme acima da floresta, a mente de Eyvind continuava a magicar acerca do que fora dito a cada um deles e o que poderia significar e talvez tenha sido por isso que o acidente aconteceu. O jovem sempre fora um caçador cuidadoso. Cuidava das suas armas e usava-as correctamente; observava as regras para sua própria segurança e ensinava-as aos que iam com ele aos javalis ou aos veados. Quando se feria, coisa que não era frequente, sabia sempre o que fazer. Estavam perto do limite norte de Hammarsby, mais ou menos a meio dia de distância da grande casa, mas embrenhados na montanha. Passavam poucos homens por aquele carreiro na floresta, conhecido apenas dos caçadores mais persistentes. Era uma descida rápida, mas perigosa. O rebordo que iam a atravessar era estreito, com um grande precipício de um lado e uma parede rochosa do outro. Eyvind ia à frente, seguido, uns passos mais atrás, por Somerled. Estava extremamente frio; parecia impossível que se estivesse no Verão, porque mesmo ali, ao abrigo das árvores, o ar cortava como uma faca. Por cima deles, as copas escuras dos altos pinheiros bloqueavam a luz do Sol, deixando-os num mundo profundo de sombras cinzento-esverdeadas.A coisa foi rápida. Num momento Eyvind caminhava confiantemente ao longo da saliência e no seguinte o solo faltava-lhe sob os pés e ele caía, desamparado, os ramos das árvores dançando loucamente por cima dele, o ar assobiando, gelado, à sua volta, até que, com um som triturador, atingiu o solo bem abaixo da saliência. Por um momento, tudo ficou escuro; o jovem estremeceu, sentiu depois a dor, terrível, ao longo da coxa e cerrou os dentes com força para não gritar. Indistintamente, registou os sons frenéticos, arranhados, da descida rápida de Somerled pelo monte abaixo até chegar junto de si e a respiração entrecortada do rapaz. Não grites, ordenou Eyvind a si próprio. Thor está a olhar para ti. Isto é um teste. O jovem abriu os olhos e olhou para a sua perna direita. Não se via grande coisa para além de uma grande marca púrpura, que se espalhava pela parte interior da coxa; não era grande coisa, para além de um inchaço; pouca coisa para tanta dor. Mas Eyvind era caçador. Através da bruma da semi-inconsciência, através da confusa desfocagem da visão e dos tremores de frio que começavam a percorrer-lhe o corpo apesar dos seus esforços para os evitar, Eyvind reconheceu que a perna estava partida e a sangrar por dentro, onde não se podia ver. A sua mente juntou as peças: incapaz de andar, o frio, a perda de sangue e apenas o débil, o pequeno Somerled para o ajudar. Podia muito bem morrer. Pior ainda, podia sobreviver e ficar estropiado. Um Pele-de-Lobo tem de ser inteiro, e forte.
Somerled? suspirou ele à medida que a escuridão se aproximava cada vez mais.
Chhh, não fales. A voz de Somerled era estranha, ia e vinha; o seu rosto pálido como um lençol estava sempre a esfumar-se, como se aquilo fosse um sonho. Eu vou buscar ajuda. Onde é que te dói? Aqui?
Então, Eyvind gritou quando os dedos cautelosos de Somerled tomaram contacto com o membro ferido. E quando Somerled arrancou a camisa e lhe ligou a perna o melhor que pôde com pedaços de casca de árvore de cada um dos lados, o uivo de agonia de Eyvind ecoou através dos bosques vazios, até que o jovem cerrou os dentes para parar o som, porque via o medo nos olhos do rapaz. Feita a tala, Somerled ergueu-se, tirou o pequeno saco do dorso e olhou, franzindo o sobrolho, para Eyvind, que tremia como varas verdes.
Frio conseguiu Eyvind dizer. Sangrar. Consertar osso. Karl...
Eu vou a correr disse Somerled. E volto. Deixo-te aqui a minha capa.
Eyvind olhou para o pequeno e intenso rosto do seu amigo; estava a desaparecer, a desvanecer-se, a escurecer. Tentou dizer-lhe; tentou dizer-lhe que morreria de choque e de frio antes de chegar qualquer ajuda, mas a sua voz parecia ter deixado de funcionar, tudo o que saía era um som irritante.
Não? perguntou Somerled.
Frio conseguiu Eyvind dizer. Muito longe...
Muito bem disse Somerled. Terás de me ajudar, nesse caso. Temos de ir o mais longe possível, caminhando, quer dizer. Depois, hei-de arranjar-me de qualquer maneira. Nunca pensei que te agradeceria um dia por todas aquelas lições sobre a vida ao ar livre. Vamos.
Eyvind deixou de se recordar fosse do que fosse depois, excepto da dor, uma dor tão terrível que o fazia morder os lábios, esforçando-se por ser forte. Parecia ter uma imagem dele próprio encostado pesadamente a Somerled, cambaleando, coxeando, serpenteando de modo impossível pela floresta e a voz de Somerled aliciando-o, encorajando-o, ordenando-lhe asperamente que continuasse. Pensou que se recordava de ter quase caído na sombra, por baixo das grandes árvores, o odor pungente da resina, o formigueiro das agulhas na face e os olhos escuros do seu amigo a olharem para ele a partir de um rosto branco, fantasmagórico de exaustão. Recordava-se do ricto familiar da boca de Somerled e de um olhar que dizia que desistir, simplesmente, não era uma opção. Pelo que lhe disseram mais tarde, soube que aqui e ali Somerled parara para ajustar a tala e para lhe dar umas bofetadas, forçando-o a manter-se acordado e a continuar. Quando Eyvind perdeu a consciência, Somerled improvisou uma espécie de trenó com ramos e casca de árvore, usou a corda que transportavam quando partiram e arrastou o rapaz pelo monte abaixo até terreno aberto. O homem que tratou de Eyvind disse que se ele tivesse ficado na montanha enquanto Somerled partia em busca de ajuda, teria morrido.Nesse Verão não houve mais caçadas. Eyvind passou o resto da estação deitado na cama de barriga para cima, a perna partida suspensa por meio de uma forte corda que o endireita passara por cima de uma viga; na outra ponta da corda estava uma pesada pedra, como contrapeso, que mantinha a perna direita. Eyvind tinha comichão, doía-lhe a perna, não conseguia dormir e os dias pareciam-lhe intermináveis. À medida que a estação decorria com uma lentidão infinita, o jovem pedia aos deuses para que a perna ficasse boa e para que voltasse a ser forte de novo. Um homem que não podia correr, ou caminhar rapidamente no convés de um navio em mares tempestuosos, não poderia ser, nunca, guerreiro de Thor. Um homem coxo não podia ser um Pele-de-Lobo. Assim, permaneceu quieto, rezou, deixou que Somerled tentasse ensinar-lhe jogos de tabuleiro, lhe recitasse passagens da lei, versos maliciosos acerca de todas as pessoas da casa e, finalmente, o Verão passou. O contrapeso foi retirado e o endireita pronunciou-se satisfatoriamente. A perna soldara bem. Karl presenteou Eyvind com uma boa muleta feita de carvalho, mas o jovem não a usou. Quando mais depressa a perna aprendesse de novo a andar, mais depressa estaria pronto para o teste de Thor.Ulf enviou uma escolta para levar de volta o seu irmão mais novo para a corte. Ingi ficara furiosa com os dois rapazes, dizendo que não haveria mais expedições enquanto não tivessem ambos, pelo menos, dezasseis anos. Mas beijou Somerled nas duas faces e Karl apertou-lhe a mão. Quanto a Eyvind, sentiu dentro de si uma mudança maior, mais profunda, mais monumental do que tudo o que ocorrera na sua vida. Quando fizera o seu juramento a Somerled, fizera-o porque o rapaz se sentia triste e solitário e parecera a Eyvind que toda a gente no mundo merecia, pelo menos, um amigo em quem confiar. Ainda acreditava nisso, mas durante todo aquele Verão passado na cama, enquanto Somerled, com infinita paciência, se sentava a seu lado idealizando pequenos entretenimentos atrás de pequenos entretenimentos para amenizar o tédio, percebera que os laços entre os dois eram mais do que uma simples amizade. Não era uma promessa que pudesse ser afastada ou esquecida uma vez acabada a estação. Era profunda e obrigatória, solene e para toda a vida: um juramento de homens, os homens que ambos seriam, um dia.No ano seguinte subiram até às pastagens de Verão no alto dos montes, onde algumas pequenas cabanas permitiam que alguns felizardos passassem a estação ao ar livre, guardando as manadas e os rebanhos. Eram seis rapazes e três raparigas, um par de pastores e Oksana, a escrava, com os seus filhos de cabelos claros a reboque. Alguns guardavam os animais que tinham levado consigo e outros ordenhavam as ovelhas, as vacas e faziam queijo e manteiga. O trabalho de Eyvind era providenciar caça para a panela. Muitas horas fora de portas davam às pessoas um grande apetite. Ingi avisara-os de que o Verão nas pastagens de altitude não era um período de férias. Todos teriam de fazer a sua parte.Os dias eram de trabalho duro, mas eram dias agradáveis. O tempo estava bom; arranjavam todos tempo para nadar no ribeiro, penduraram uma corda para se balançarem sobre a corrente e jantavam ao ar livre sob o céu pálido das longas tardes de Verão. As peles brancas do Inverno ficaram douradas sob as carícias do sol quente. Sigurd colocou flores no cabelo louro de Ragna, ela corou e não o censurou. Oksana mantinha o bebé junto de si e vigiava uma das raparigas, mas as outras crianças andavam por ali aos ombros de rapazes prestáveis, aprendiam a apanhar uma bola e adormeciam mal acabavam de jantar. Eram tempos felizes.Havia duas cabanas na encosta da montanha, uma para as raparigas e outra para os rapazes. A dos rapazes era maior, com uma lareira ao meio para cozinhar. Os pastores dormiam junto do fogo, enquanto os rapazes dormiam nos cantos, em camas-prateleira encostadas à parede. O lugar não tinha a privacidade da grande casa de Ingi, onde os tabiques de madeira dividiam as áreas de dormir. Oksana supervisionava a cabana das raparigas. O que não era de admirar, porque, apesar de ser escrava, era sabido que Ingi lhe dera hipótese de alcançar a liberdade. A sua responsabilidade durante aquele Verão fazia parte dessa hipótese. Ingi deixara bem claro, antes de todos saírem de casa, que a cabana das raparigas era interdita aos rapazes. Quem quebrasse essa regra ficaria proibido de regressar às pastagens. Eyvind ficara surpreendido por a sua mãe achar necessário avisá-los. Certamente que aquela regra era compreendida por todos.Falaram disso, uma noite, deitados nas suas camas-prateleira: Eyvind, Somerled e os dois outros rapazes que dormiam na parede sul, Ranulf e Knut.Qual é que tu achas que é melhor? perguntou Knut em voz baixa. Halla ou Thorgerd?Ninguém respondeu; era tarde e estavam todos cansados.Eu acho que é Thorgerd disse Knut. Gosto da maneira como ela anda. E do riso dela. Em conversas como aquela ninguém mencionava Ragna, que era, sem dúvida, a mais bonita das três raparigas. Ainda só tinha treze anos, mas Sigurd estabelecera uma espécie de posse muda que todos compreendiam. E Sigurd dormia ali perto, no outro canto da cabana.Aposto que vi uma coisa que tu não viste sussurrou Ranulf para Knut.Aposto. O que foi?Ranulf sussurrou de novo. Knut resfolgou de descrença.Vocês calam-se? disse Eyvind. Alguns de nós querem dormir.O que é que viste? desafiou a voz quebradiça de Somerled.Vi Halla com o vestido descido até à cintura; vi um par de maçãs rosadas que devem ser bem saborosas. As raparigas deixam a vela acesa quando se estão a despir. Pode-se vê-las através da janela das traseiras; há uma racha no taipal.Seguiu-se um breve silêncio. Eyvind sabia que devia dizer qualquer coisa; não tinha dúvidas do que a sua mãe diria se ouvisse aquilo. Mas a sua mente mostrava-lhe uma Halla de cabelos brilhantes e encaracolados, caindo-lhe sobre a pele branca à luz da vela, e um estremecimento involuntário do seu corpo silenciou-o.Isso não é nada disse Somerled.
Que queres dizer? perguntou Knut. Seguiu-se outro silêncio.Nunca tiveste uma rapariga, pois não? perguntou Somerled como que por acaso.Eyvind ficou de boca aberta. Os outros olharam uns para os outros de olhos esbugalhados. Então, Ranulf encontrou a sua voz.Queres dizer...? Não sejas estúpido, Somerled. É claro que não tivemos e aposto que tu também não.Ah disse Somerled. Mas eu não sou nenhum rapaz do campo, pois não? As coisas são diferentes na corte. Não acreditais? Se quiserdes, conto-vos algumas.Um dos pastores mexeu-se no sono, resmungando algo acerca de se calarem antes que ele se zangasse.Continua sussurrou Knut, aproximando-se. E Somerled assim fez, com todos os pormenores. No fim, Eyvind sentia-se desconfortável. Sentia-se endurecer, algo que já lhe acontecera várias vezes desde que fizera catorze anos. Podia fazer uma coisa para que aquilo desaparecesse, mas era difícil com os outros todos ali. E sentiu um crescente desconforto, porque, se bem que a história de Somerled pudesse ser verdadeira, havia qualquer coisa nela que lhe fazia confusão.Somerled? murmurou ele quando lhe pareceu que a história tinha terminado.Hum?E se a rapariga tivesse ido dizer à família? E se lhe tivesses feito um filho? Terias de pagar. Essas coisas, geralmente, dão em guerra entre famílias.Oh, Eyvind. Tão sério que tu és. Não é preciso muito para conseguir o silêncio de uma rapariga, acredita. Eu disfarço bem as pistas. Devias saber. No fim de contas, foste tu que me ensinaste a caçar.Eyvind ficou a pensar. De certo modo, ficara impressionado. Parecia que Somerled fizera o que nenhum deles esperava fazer antes dos dezasseis anos, pelo menos. Mas a história de Somerled perturbara-o.Somerled? murmurou ele. Os outros pareciam ter adormecido.Hum?Pela maneira como disseste, acerca de a rapariga lutar e... bem, pareceu-me que ela não queria que... que... tu sabes.E então?
Nesse caso, fizeste uma coisa errada. Somerled emitiu um suspiro cansado.Se um homem fosse a ligar a isso, a raça humana já não existiria, Eyvind. É um facto da vida.Que queres dizer?Hás-de aprender, com o tempo. As mulheres não são iguais aos homens. Elas, simplesmente, não gostam, não como nós gostamos. Apenas se submetem porque não têm outra hipótese.Mas...Mas o quê, Eyvind? Somerled começava a ficar um pouco irritado.O que disseste... não me parece que se deva forçar uma rapariga. Fazer isso é... é desonroso.Pelos ossos de Odin, Eyvind, onde pensas tu que vives, numa história qualquer de heróis? A vida real não é assim, meu amigo. É tempo de saíres daqui e alargares os teus horizontes.O que tu fizeste foi malfeito disse Eyvind teimosamente. Quanto mais pensava na história de Somerled, mais preocupado ficava.No teu caso, eu não perderia o meu sono aconselhou-o Somerled, a sua voz um murmúrio à luz estranha e fria da noite de Verão. Tenho a certeza que Eirik não perde.No dia seguinte, Eyvind ofereceu-se para inspeccionar e reparar os telhados das duas cabanas como parte da manutenção de Verão dos edifícios e Knut e Ranulf chamaram-lhe desmancha-prazeres, mas ele não se importou. Nessa noite, mudou-se para o canto onde Sigurd e Sam dormiam. Somerled semicerrou os olhos, mas não disse nada.Somerled devia ajudar na caça, mas torcera um tornozelo e estava confinado ao acampamento até que sarasse. Eyvind ficou contente por ficar sozinho e passou o dia todo fora, regressando com os seus despojos apenas a horas de preparar a carne para a meter na panela. Desse modo testava as suas capacidades, exercitando o corpo, desafiando os sentidos, escutando, no silêncio da floresta, a voz de Thor murmurando-lhe ao ouvido: Sê forte, prepara-te, para que possas passar no teste.Uma noite, quando regressava, Oksana pareceu-lhe irritada e maldisposta e Ragna não tinha aparecido para jantar; estava doente e tinha ido para a cama mais cedo, disseram as outras raparigas. No dia seguinte, as três raparigas estavam muito caladas à mesa do pequeno-almoço. Halla mordia o lábio e Thorgerd não tirava os olhos do prato.
Ragna estava sentada entre ambas como um fantasma, os seus olhos azuis rodeados de olheiras. Oksana mexia as papas, carrancuda e silenciosa. Quando Eyvind regressou a casa ao fim do dia sob um céu cor-de-rosa, com uma lebre e três coelhos pendurados do ombro, a primeira pessoa que viu foi o ruivo Sigurd rachando lenha para o fogo. Só que Sigurd não estava exactamente a rachar lenha; rachava os toros com um único golpe, selvagem, voltava a rachá-los e depois, em vez de os atirar para a pilha e começar de novo, enterrava o machado no cepo, retirava-o e enterrava-o de novo e Eyvind reparou que o seu rosto largo e agradável estava manchado e cheio de lágrimas furiosas.
Sigurd?
Teve de o chamar três vezes antes que o rapaz o ouvisse.
O que é que se passa? A continuares assim só vai haver lascas para pôr na lareira. Que aconteceu?
Sigurd passou uma mão pelo rosto e virou-lhe as costas.
Nada grunhiu ele.
Nada? insistiu Eyvind. Por que é que estás tão zangado? Que aconteceu?
Não me perguntes a mim disse ele bruscamente. O rapaz pegou noutro toro e rachou-o com tal força, que Eyvind teve de recuar para não se ferir.
Quando chegou às cabanas, viu que estavam ali cavalos e que os outros rapazes estavam sentados nas rochas, silenciosos. Não havia sinais de Oksana, ou das crianças, ou das raparigas. Um momento mais tarde, o seu irmão, Karl, apareceu na entrada com uma expressão muito carrancuda. Karl estava armado com uma espada e um machado; os seus ombros estavam muito direitos e a sua voz cortante, como uma lâmina bem afiada.
Eyvind, vem para dentro.
No interior, o jovem olhou para Karl.
O que é que se passa? Que aconteceu? A estranheza daquilo estava a deixar Eyvind muito nervoso. A mãe está bem? Há alguma ameaça? O que é, Karl?
Cala-te. O seu irmão estava calmo e sombrio, como quando arbitrava disputas na Assembleia, ou quando resolvia questões entre os seus trabalhadores. Eyvind calou-se. Já falei com os outros rapazes; tu és o último. Vou fazer-te algumas perguntas e tu vais responder-me com a verdade.
Claro.Muito bem, Eyvind. Há regras de comportamento aqui em cima e todos sabem quais são. Quero que me digas se sabes se algum dos rapazes quebrou essas regras enquanto têm estado aqui.Eyvind abanou a cabeça.Fala disse Karl.Não, não sei.Podes falar por ti próprio? Tens-te conduzido sempre como deve ser?Eyvind sentiu subir a ira dentro de si.É claro que tenho.Aceito a tua palavra disse Karl gravemente. Não duvido de ti. Mas tenho de ser justo. As perguntas que fiz aos outros, tenho de as fazer também a ti. De facto, tu já não estás sob suspeita, porque me disseram que passaste o dia todo de ontem na caça e não podias estar envolvido no que aconteceu. Os animais que trouxeste provam-no. E agora, diz-me. Tem havido alguma conversa entre os rapazes acerca... alguma coisa te diz que alguém quebrou as regras?Eyvind engoliu em seco.Eu poderia ajudar-te tentou ele se me dissesses o que se passa. Alguém se feriu? Alguém foi insultado? Onde estão as raparigas?A boca de Karl apertou-se.Oksana levou as raparigas para casa. Não é preciso dizer mais nada. E agora responde à pergunta, Eyvind. Se sabes alguma coisa, diz-me.Não disse Eyvind. Não sei de ninguém que possa ter quebrado as regras. Por vezes, à noite, falamos de... de raparigas e essas coisas... mas todos os rapazes querem ficar aqui em cima, não seriam estúpidos ao ponto de tentar algo que os metesse em sarilhos. O jovem lembrou-se de Sigurd e dos furiosos golpes de machado. Karl?Não são assuntos que se discutam em público. Dei instruções aos rapazes para que se calem. Diz-me, viste alguns estranhos por aqui nestes últimos dias, alguns homens que não pertençam às nossas terras? Talvez quando andaste a caçar? Pensa bem, Eyvind.Ninguém. Sabes tão bem como eu que somos os únicos a caçar aqui. Gostaria que me dissesses...Não serviria de nada. Como já te disse, não deveis discutir este assunto. E agora, traz o que caçaste e acende a lareira, porque ainda temos de comer. Ainda não cheguei ao fim disto, porque todos vós contais a mesma história inocente e não tenho uma única prova. Não estou a gostar nada disto; mas tenho muito trabalho e não tenho tempo para descobrir a verdade. Chama os rapazes e faz o que puderes para o jantar.
As raparigas vão regressar? tentou Eyvind. O silêncio foi breve.
Não disse Karl pesadamente. Vamos mandar duas mulheres para fazer a ordenha e preparar os queijos. Tu tens uma missão especial aqui, Eyvind, uma missão para que estás bem preparado e que é a de fazer com que os teus amigos não se metam em sarilhos. Alguns de nós viremos cá acima antes das colheitas para vos ajudar a levar o gado para baixo. Talvez seja melhor deixar as coisas como estão.
Todos tinham uma ideia acerca do que acontecera. Mas, quanto a quem o tinha feito, era um mistério. Os rapazes obedeceram às ordens de Karl; ninguém falava do assunto. Sem provas não havia crime. Nenhum homem acusa outro sem testemunhas e sem provas, porque uma tal acusação não se aguenta quando é levada perante homens dignos. Na verdade, se alguém tentasse uma acusação dessas, conseguiria apenas um litígio inútil. Não era necessário ser um homem de leis para saber isso. Mas aquele assunto, do qual não se podia falar, permanecia, pesado, entre eles. Estava presente nas raivas violentas e surdas de Sigurd e nos sonhos sombrios de Eyvind. Estava presente nos sorrisos torcidos e nos olhos semicerrados de Somerled e também em cada noite, quando todos estavam sentados à lareira e sentiam a ausência das raparigas, da bem proporcionada Halla, da Thorgered sempre risonha e da corada Ragna com os seus cabelos cor de milho maduro. Um dia, Eyvind encontrou Sigurd com as mãos no pescoço de Somerled e o outro rapaz encostado ao tronco de uma árvore, de rosto púrpura e meio engasgado. Eyvind separou-os agarrando Sigurd, de olhar selvagem, pelos braços e forçando-o a afastar-se.
Em nome de Thor, que pensas tu que estás a fazer? Podias tê-lo morto!
Eu estou bem coaxou Somerled, explorando com dedos trémulos o vergão na pele pálida do seu pescoço. Deixa lá.
Deixo lá? Como posso deixar? E se ele tenta de novo? Sigurd, não sei o que te deu. Anda comigo até à cabana e diz-me o que se passa. E promete-me que deixas Somerled em paz. Ele não é nenhum guerreiro e, além disso, é um hóspede. Além de que tu tens o dobro do tamanho.Sigurd cuspiu para o chão, para os pés de Somerled.Se tens algo a dizer, é melhor dizê-lo agora. Eyvind manteve a voz calma.Ah! rosnou Sigurd. Vocês são irmãos de sangue, não são? Nunca hás-de saber o tipo de pessoa que ele é.Depois daquilo, as desconfianças de Eyvind começaram a atormentá-lo de tal maneira que quebrou as regras do irmão e perguntou abertamente a Somerled, uma manhã em que estavam os dois sozinhos.Aquilo da Ragna, do que lhe fizeram... foste tu? A pergunta foi seca; não havia outra maneira de a fazer.As sobrancelhas de Somerled fecharam-se, espantadas.Eu? Seria muito difícil. Por que havia um homem de se meter com uma criança quando pode ter uma mulher a sério? A ideia é ridícula.Eyvind não gostou dos modos do amigo, mas aceitou as suas palavras como verdadeiras e dormiu um pouco melhor. Somerled não lhe mentiria. O juramento de sangue mútuo tornava isso impossível.À medida que o Verão se aproximava do seu fim, Sigurd afastava-se cada vez mais. Deixou de ajudar com as ovelhas e, em vez disso, passou a praticar mais o arremesso do machado e da lança e a afiar facas. Para um rapaz que nunca quisera ser outra coisa senão pertencer à casa, tal como o seu pai, tal comportamento era surpreendente. Eyvind sugeriu-lhe que, se sentia necessidade de estrangular alguém, que tentasse nele, já que um Pele-de-Lobo nunca treinava o suficiente.O Verão passou, sempre cheio de sol e quente, mas já não banhado naquele glorioso sentimento de liberdade inocente com que começara. Os rapazes faziam o seu trabalho, os dias passavam e, finalmente, conduziram os rebanhos e as manadas para a propriedade, porque era o mês da ceifa. Toda a gente estava cheia de trabalho, mesmo Eirik, que regressara da Primavera viquingue maior e mais selvagem do que nunca, a barba e os cabelos entrançados da mesma cor dourada do trigo maduro no campo abrigado por trás da casa. Com alguma cerimónia, ceifaram a luxuriante erva da seara onde crescera o melhor feno da estação. O javali da seara, único habitante daquele domínio verdejante, ficou a um canto a olhar com os seus olhinhos pensativos.
Ulf apareceu para levar Somerled de volta para a corte. Se os acontecimentos do Verão foram discutidos, Eyvind não soube e não perguntou. Ragna andava muito calada; ficava perto das outras mulheres, solene e pálida e já não falava, a Eyvind ou aos outros rapazes. Não havia segredos contados à lareira, flores ou palavras segredadas em cantos escuros. Na verdade, parecia que era Sigurd aquele que ela evitava mais; nem sequer o olhava nos olhos. E Sigurd continuava zangado. A partida de Somerled tinha, segundo parecia, aumentado o fogo que lhe ia na alma, compelindo-o a uma actividade violenta, como se a sua raiva tivesse de ser extinta mediante a acção, caso contrário destruí-lo-ia. Ingi meteu-lhe uma gadanha nas mãos, mas foi Eyvind quem degolou o javali do campo quando chegou a ocasião, porque tinha a mão mais firme. Ninguém gostava daquele trabalho. Embora tivessem o cuidado de não dar um nome àquele animal amimado, porque todos sabiam que o seu destino era providenciar presunto, bacon, costeletas e ossos para a sopa, era difícil não lhe ganhar amizade ao longo dos meses, fazendo-lhe todos, de vez em quando, uma festa atrás da orelha, ou dirigindo-lhe uma palavra amigável. Eyvind sabia que passar uma faca pela garganta do porco era, à sua maneira, mais um teste. Dentro de pouco tempo seria a vez de um homem gritar e tremer nas suas mãos e não poderia pensar de maneira diferente, ou nunca faria o trabalho de Thor. O jovem fez do acto de matar o porco um acto de misericórdia: rápido, limpo e definitivo. Durante o mês da apanha do trigo, o tempo enlouqueceu. Conseguiram armazenara colheita, mas logo a seguir a chuva começou a cair intensamente e o ribeiro chegou quase à ponte. Alguém deixou um portão aberto e as galinhas fugiram. Durante uma acalmia, as raparigas, envoltas em sacos e usando as suas botas mais pesadas, aventuraram-se a ir em busca delas para as trazer de volta. Grip, o velho cão, seguiu-as. Algum tempo depois, a chuva voltou a cair. Eyvind tinha sangue até aos cotovelos, por estar a cortar uma carcaça de ovelha para salgar, quando ouviu os latidos de Grip. O tom falava de alarme. Lá fora, Halla tremia à chuva enquanto Thorgerd metia a última das galinhas na capoeira e fechava a cancela.
Faltava Ragna. Descera o carreiro na direcção do ribeiro e tinham-na perdido de vista. Tinham-na chamado, mas não houvera resposta. E agora estavam de regresso com as galinhas, mas não havia sinal de Ragna.
Pressentindo um desastre, Eyvind pegou numa capa e gritou por socorro. Muitos foram aqueles que partiram em busca dela; todos os homens e rapazes da casa, assim como algumas das mulheres. Oksana, com os seus cabelos escuros, caminhava ao lado de Eirik, de lábios apertados e ansiosa. Halla e Thorgerd tinham, simplesmente, trocado os sacos molhados por outros e tinham voltado a mergulhar no dilúvio em busca da amiga. Não que houvesse razão para pensar que Ragna não se tivesse abrigado numa gruta qualquer, ou sob as árvores, até que a chuva abrandasse. Talvez aparecesse brevemente, uma figura loura, pequena, regressando pelo carreiro lamacento acima na direcção da casa e do calor com uma galinha debaixo do braço. Era fácil pensar nisso, não fora o cão. Grip nunca abandonaria uma das raparigas numa tempestade daquelas. Grip correra para casa e dera o alarme. Além disso, havia aquilo que toda a gente sabia, mas de que ninguém falava.Demorou algum tempo a ser encontrada. Grip guiou-os, primeiro, até à ponte, onde a água passava por cima das pranchas de madeira, mas Ragna não estava lá. Desceram o ribeiro por uma e outra margem e, pouco antes do crepúsculo, encontraram-na entre umas rochas, deitada, imóvel, com os olhos azuis fixos no céu e a água a correr-lhe, límpida e rápida, pelo pequeno rosto. Foi Sigurd que a ergueu do solo e a levou para casa. O seu rosto estava da cor da cinza e o seu olhar era feroz. A mãe de Ragna, viúva há já muitos anos, chorou a perda da sua única filha. Ingi foi forte, como sempre; confortou as raparigas e tratou de tudo. Eyvind pensou que talvez Sigurd chorasse nessa noite. Mas Sigurd não derramou uma lágrima. Em vez disso, permaneceu silencioso, de olhos fixos na figura imóvel deitada em lençóis brancos, os cabelos loiros cuidadosamente penteados e entrançados, as feições em paz. A única parte do corpo de Sigurd que se movia eram as suas mãos; abriam-se e fechavam-se, abriam-se e fechavam-se ao lado do seu corpo. O rapaz olhava para Ragna como se quisesse gravar a fogo a imagem da jovem na sua mente. Se antes estava zangado, havia agora uma escuridão no seu rosto que pressagiava um futuro fatal.Um acidente: era isso o que as pessoas diziam. Mas Eyvind ouviu Eirik e Oksana falarem, à noite, já tarde, quando a casa já caíra, finalmente, num sono exausto. Estavam ambos à entrada e sussurravam, mas ele conseguiu ouvir alguma coisa, porque a voz de Oksana, de tanto chorar, estava áspera.
A culpa é minha soluçava ela. A culpa é toda minha, a tua mãe confiou em mim! Como pude permitir que uma coisa destas tivesse acontecido? E agora Ragna está morta! Pronto. A voz de Eirik era suave; havia nela um tom que Eyvind nunca tinha ouvido antes. Pronto, pronto. Ninguém te põe a culpa; fizeste o possível por vigiá-las. Ela não passava de uma criança. A culpa é minha, Eirik.Foi um homem que fez esta maldade disse Eirik pesadamente. E é um homem que deve arcar com as culpas e sofrer o castigo.Ele escapou a ambas as coisas disse Oksana. Ragna levou o segredo para a tumba. Ela não disse quem foi; nem a mãe dela conseguiu descobrir. O homem ameaçou-a, acho eu; por que outra razão se calaria?Com o tempo, a verdade acabaria por vir ao de cima. Mas este triste acidente retirou-nos qualquer hipótese de prova disse Eirik.Acidente? ecoou Oksana e Eyvind sentiu gelar-se-lhe o coração.Não pensas...? começou Eirik.Aquela criança saiu hoje com a intenção de não regressar. Ela estava aterrorizada, tão pequena e já tão magoada, demasiado nova para o que estava para vir. Oh, Eirik, devia tê-la impedido, devia...Pronto, minha querida. Pronto, pronto. Vamos, já é tarde; tens de dormir. Não chores.E afastaram-se, até que Eyvind deixou de os ouvir. O espanto por ouvir o seu irmão, um homem de tão alta posição, falar com uma escrava como se ela fosse não só uma companheira íntima, mas também sua igual, foi breve. O que eles tinham dito é que o tinha chocado. As suas palavras forçaram-no a reconhecer a verdade que tanto tentara não ver. O que acontecera nas pastagens de Verão fora a sentença de morte de Ragna. Arrebatara a vida futura que Sigurd previra com tanta confiança nos dias da infância de ambos. Assim, ela saltara da ponte e deixara que a tempestade decidisse o seu futuro. Fora um homem que fizera aquilo; fora um homem que começara aquilo. Mas Ragna era a única testemunha e Ragna nunca mais diria fosse o que fosse. A sua curta história acabara. E se bem que Eyvind não tivesse feito nada de errado, absolutamente nada, sentiu a culpa, como se fosse, de algum modo, responsável pelo que acontecera.
Algum tempo depois, Sigurd foi-se embora. Levou um machado, um arco e algumas provisões, mas não disse para onde ia e ninguém lhe perguntou. Verdade seja dita, as coisas ficaram bem mais fáceis na propriedade sem ele, porque o seu comportamento tornara-se bastante estranho, dividindo-se entre súbitos acessos de raiva e longos períodos de silêncio taciturno. Na verdade, depois do que acontecera, era uma pessoa inteiramente diferente e alguns diziam que isso era um sinal evidente de culpa.
Por ocasião das primeiras geadas, Eyvind sonhou com sangue e fogo. Viu olhos brilhantes na escuridão, olhando para ele; ouviu o sussurro do deus. No dia seguinte apareceram para o levar.
Não é uma visão que muitos se gabem de ter visto, um bando de Pele-de-Lobo. Um nobre menor, como Ulf, irmão de Somerled, talvez conseguisse reunir uma força de seis como pontas de lança nas suas batalhas navais ou para o protegerem em terra contra actos de traição. O Jarl Magnus tinha onze. Eirik era o seu líder; Hakon cavalgava a seu lado e a seguir a ele vinha um grupo de guerreiros que pareciam produto de um sonho fantástico. Os seus cabelos eram longos e selvagens, ou cortados muito curtos e deixando o crânio nu. Os seus rostos eram ferozes e marcados por cicatrizes. Todos usavam uma capa hisurta de pele de lobo apertada no ombro por um alfinete de bronze ou de prata. Mas esse ornamento não era uniforme, não era nenhum sinal particular de fidelidade. Cada homem era ele mesmo. No momento do último teste, cada um ia em frente sozinho. E todos mostravam sinais dessa característica; a um faltava-lhe uma orelha, outro tinha uma grande cicatriz que lhe ia da têmpora ao queixo, onde a pele se enrugara em redor do golpe da lâmina de um adversário qualquer. A esse mesmo homem, o da cicatriz, faltava-lhe uma série de dentes; o seu sorriso era assustador, mas ainda mais preocupante era a orla superior do seu escudo, que estava toda fendida e gasta. As crianças sussurravam umas para as outras enquanto olhavam para ele; talvez as histórias que tinham ouvido fossem verdadeiras. Não havia velhos entre os Pele-de-Lobo, nem sequer homens de meia-idade. Os próprios tios de Eyvind tinham morrido nobremente ao serviço de Thor e igual destino esperava todos aqueles que se juntassem àquele bando. Completar quatro ou cinco anos de serviço era um feito notável de sobrevivência. Uma tal profissão não era para um homem que quisesse uma mulher, filhos, uma quinta e que quisesse morrer confortavelmente numa cama..O coração de Eyvind batia com toda a força quando subiu para o cavalo sem cavaleiro que Eirik trazia consigo. Não tinha medo; era a excitação da antecipação que lhe fazia correr o sangue rapidamente nas veias. O jovem tinha o seu machado, a sua larga espada e uma faca ou duas, mas não tinha escudo. Eirik deu-lhe uma olhadela rápida, acenou com a cabeça sem sorrir e num instante os homens deram a volta e dirigiram-se para norte com Eyvind no meio. Nenhum deles olhou para trás. A propriedade desaparecera, assim como a grande casa e os dias da infância. O deus chamava-os; se Eyvind passasse no teste, não regressaria a casa antes das sementeiras.Percorreram uma grande distância nesse dia, foram mais longe do que alguma vez Eyvind fora na sua vida. Ao crepúsculo pararam na profundeza dos bosques, numa grande clareira plana rodeada por grandes abetos. Os Pele-de-Lobo fizeram uma fogueira e acenderam um amplo círculo de archotes, próximo das árvores. Com o cair da noite sobreveio um frio de gelar os ossos, que se introduzia em cada parte do corpo, entorpecendo os dedos dos pés e das mãos, gelando o nariz e as orelhas e transformando a respiração num fardo. Eyvind tinha fome porque não tinham parado para comer e não havia, agora, qualquer sinal de jantar. Mas não perguntou.Os homens sentaram-se em círculo em redor da fogueira. Um ou dois deles murmurava, em voz baixa, uma espécie de canção estranha e monótona, que subia e descia de tom, subia e descia. Um terceiro tinha um pequeno tambor, uma pele de vaca esticada em redor de uma armação de madeira, e os seus dedos batiam nele dando ritmo à canção. Por cima e à sua volta a floresta estava imóvel, como se estivesse a ouvir. O som era como um débil sussurro na vastidão da noite gelada de Outono, não mais significativo do que o gorjeio de um único grilo num campo de trigo.Eyvind estava sentado de pernas cruzadas. Queria perguntar: Que faço? Quando começo? Consciente da presença de Thor, manteve-se em silêncio. A seu devido tempo, sem dúvida, as respostas tornariam tudo claro. No entanto, não era o que esperava. Combate, desafios, caça: tudo aquilo em que era excelente. Quando lhe permitiriam mostrar a sua força?Toma. Hakon passou-lhe um corno cheio de uma bebida qualquer; Eyvind pegou nele e engoliu reconhecidamente. A cerveja estava muito fria e era muito forte. O jovem passou-o ao homem à sua esquerda.
Eyvind?
Eirik estava a dar-lhe algo, um pedaço de qualquer coisa, goma ou resina, pegajosa e malcheirosa.
O que...?
Tens de mastigar isso. E beber mais cerveja. Passai o corno, homens.
Eyvind olhou duvidosamente para aquela massa informe. Parecia-se mais com uma substância usada para tapar um buraco num balde, ou numa parede, do que com comida. Tinha fome, mas não tinha a certeza se seria capaz de comer aquilo.
Mastiga lentamente disse Eirik. Não engulas. A cerveja ajuda.
O que é? Hakon sorriu.
Não é veneno. Repara. Hakon estendeu um braço, tirou um pedaço daquela mistura de aspecto insalubre e levou-o à boca. Ervas, cogumelos, resina de pinheiro. Não faz mal nenhum. Faz-te bem. Bebe mais um pouco de cerveja; agora já és um homem.
Eyvind levou a mistela à boca e mastigou. Sabia pior do que cheirava; no entanto, eles tinham razão, a cerveja tirava o pior do amargor e em breve já se sentia muito melhor, mais quente, de facto, e à-vontade na companhia dos guerreiros. O tambor continuou a ouvir-se, batendo ao mesmo tempo que o seu coração; o pequeno e estranho cântico decaía e flutuava, decaía e flutuava como a sua própria respiração, para fora e para dentro, para fora e para dentro. Estava escuro. Para lá do anel de archotes a escuridão era tão profunda que nem o luar conseguia penetrá-la. Era a escuridão do meio: o instante do nada antes de a expiração se transformar em inspiração, o ponto entre a vida e a morte. Que dissera Somerled uma vez? O momento... o momento em que tudo se transforma em sombra.
Agora deves dormir. Era a voz do seu irmão, ao mesmo tempo que a sua mão o ajudava a deitar-se num cobertor perto da lareira.
Dormir? Eyvind sentia-se desanimado, se bem que não conseguisse evitar os bocejos convulsivos que, subitamente, o avassalaram. Mas...
Dorme disse Eirik firmemente e, à medida que as suas pálpebras se fechavam, pareceu a Eyvind que via uma imagem dupla e tripla do seu irmão, um animal fantástico com seis, oito, dez olhos azuis, uma coroa dourada de pele de animal selvagem e, para lá dela, uma torrente de estrelas brilhantes.O cântico continuou; o tambor passou de mão em mão sem um único batimento perdido. Eyvind dormiu dentro do círculo de homens, no anel de fogo. Os abetos escuros, o céu cheio de estrelas e a terra, na qual estava deitado, faziam um outro círculo, circundantes ambos, e no seu sono o jovem compreendeu tudo. Então, abruptamente, ficou mais acordado do que antes. Ainda era noite, ainda estava escuro, ainda estava frio suficiente para transformar o tutano em gelo. Já não se ouvia a canção nem o som do tambor. Os archotes iluminavam um trilho na clareira que ia na direcção da profunda escuridão da orla da floresta. Para lá dos archotes estavam rostos estranhos, rostos vigilantes, que não eram humanos nem animais: olhos vazios, sobrancelhas pintadas, peles que não tinham cabelo, ou penas, ou pêlo, antes algo parecido. Para lá da fogueira estavam corpos movendo-se, mudando, transformando-se. Que era aquilo? Certamente que não eram guerreiros, mas sim espíritos da floresta invocados pelas sombras e pelo luar. Talvez os seus companheiros tivessem desaparecido, engolidos por um encantamento diabólico qualquer.Chegou a hora.Eyvind virou-se. Por trás de si estava uma figura metida num traje escuro, talvez o seu irmão, mas talvez não, porque o rosto estava mascarado e o corpo praticamente escondido pelo longo vestuário.Despe-te. O lobo virá ter contigo se estiveres nu; se estiveres nu, podes desafiá-lo. O fogo será o teu único vestuário: e as tuas armas apenas as que ele próprio possui. Vais confrontá-lo em igualdade de circunstâncias, porque conhecê-lo é derrotá-lo e derrotá-lo é seres ele próprio. Guiar-te-ei, mas não ficarei a teu lado no fim. O combate é teu.Talvez o guia fosse o próprio Thor. O deus tinha muitas formas e gostava de caminhar entre os mortais. Eyvind tirou as suas roupas, perguntando a si próprio, vagamente, se iria morrer de frio antes de se conseguir aproximar do lobo. O machado: levá-lo-ia, certamente Thor aprovaria... ou talvez uma lança, porque, pelo menos, poderia ferir de longe. Mas não. As tuas armas serão, apenas, as que ele próprio possui. Dentes; garras. Um pau aguçado. Uma faca pequena. Tinha de levar uma em cada mão, já que nem sequer tinha um cinto para decorar a sua nudez. Na orla da fogueira, longe das brasas, as cinzas perdiam o seu calor. O fogo será o teu único vestuário. O jovem espalhou o fino pó pelo peito e pelos braços, pela testa e pelas nádegas. Disfarçaria o seu odor, se não o eliminasse, mesmo. Em seguida, empunhando as pequenas armas e o sangue a correr a toda a velocidade, subiu a encosta ao longo da linha de archotes. O homem do grande manto seguia-o, silencioso. E, aparecendo no halo de luz, surgiram os outros, que pareciam, agora, mover-se arrastando as barrigas e com passos curtos, como feras prestes a atacar, parecendo emergir e imergir, parte substância, parte sombra. Os seus olhos eram vermelhos à luz dos archotes, mas quando ele olhou pareciam buracos escuros nos seus rostos inexpressivos. Estava tudo tão silencioso que podia ouvir o progresso cauteloso dos seus pés nus no tapete de agulhas sob os grandes abetos, agora para lá do último archote, sob as árvores, mergulhando na escuridão.
Avança murmurou o seu guia. Vai em frente, Eyvind. Um cego não teme o pôr do Sol. Ouve com os ouvidos do animal; fareja, como ele, a tua presa; penetra na terra; penetra na noite. Aprendeste a caçar. Agora, aprende a ser caçado.
O trilho subia, estreito entre grandes rochas, íngreme e escuro. O cego... não teme a escuridão porque a conhece, pensou Eyvind; encontra o seu caminho pela audição e pelo cheiro, não pela vista, e por algo mais, algo que força o animal da floresta a esconder-se antes que o pé de um homem esmague um graveto, ou que o seu odor atravesse a encosta, levado pelo vento. Passo a passo, Eyvind avançou, balanceando o corpo para pisar com segurança mas em absoluto silêncio, mantendo a respiração lenta e calma, escutando como aprendera. Já caçava há muitas estações, apesar de ser ainda quase uma criança.
Os animais da floresta estavam silenciosos: nem um pio, nem um restolho. Então, subitamente, na escuridão, um mocho piou e ele ouviu o som das suas asas passando-lhe por cima da cabeça, lá no alto. E, logo a seguir, no mesmo instante, um outro grito: um uivo, um chamamento, certamente um desafio, unicamente para os seus ouvidos. Eyvind nunca caçara um lobo antes. Os coelhos e as lebres eram presas fáceis, assim como os veados e os javalis, apesar de estes serem mais fortes, mas que se apanhavam com relativa facilidade se se soubesse como. Mas o lobo era mais esperto. E, se bem compreendia, aquilo não era uma caçada, antes uma espécie de combate.
Segurando firmemente as suas armas, Eyvind avançou pelo trilho acima. O grito não voltara a repetir-se, mas o jovem fixara a sua direcção, e achou que sabia a que distância estava: trezentos passos, talvez, para lá da linha de árvores, nas rochas a sudeste. Então, estaria mais claro, à luz do luar: vantagem e desvantagem.O trilho, subitamente, acabou e foi necessário usar as mãos para continuar a subir. Muito bem, o pau e a faca teriam de ir entre os dentes e teria de escalar com cuidado a face rochosa. Conseguia ver a Lua para lá da crista, o seu rosto pálido acariciado por uns ramos de abeto. Os seus dedos estavam a ficar entorpecidos; içou-se para o alto do maciço rochoso, encolhendo-se enquanto as pedras lhe feriam o corpo desprotegido, deixando a sua marca. Ficou sentado, de olhos fechados. Um cego na escuridão. Sem som: a sua presa não voltaria a chamá-lo. Teria de o encontrar em silêncio. Sem som, sem visão. Mas... lá estava ele. Não, desaparecera de novo. Forçou-se a respirar mais lentamente. Esquece o frio, esquece os ferimentos; sente com ele, com aquele que persegues. Sim, lá estava ele, um odor fraco mas penetrante, um odor ácido e cortante que não pertencia a um javali, a um veado, a um urso ou a um cão, antes mais subtil e mais perigoso. Ele estava ali, algures, não muito longe, à espera. Talvez uma matilha inteira. E Eyvind estava só. Mas não tinha escolha. Era como aquele momento à proa de um grande navio, quando este se atira sobre a frota inimiga e o Pele-de-Lobo ataca, sozinho, contra dez ou vinte homens ao mesmo tempo. Ele vê apenas a vitória, ouve apenas a voz de Thor e, nesse momento, nada no mundo lhe consegue tocar.Aquele momento era igual, se bem que diferente. Um lobo não pensava como um homem. Para o vencer, tinha de ser como ele. Pele-de-Lobo. Era esse o truque. Ir de volta, suavemente, os pés descalços pisando e balanceando com cuidado na superfície irregular, o corpo agachado, coberto de cinzas, misturando-se com os cinzentos da paisagem que se ia iluminando a pouco e pouco, fria e nua sob o luar impassível. Lenta, muito lentamente. Os dedos entorpecidos tinham de lhe obedecer, ou não conseguiria. Sou forte. Sou um caçador e hei-de vê-lo antes que ele me veja. Sob as árvores, avançando, alerta, usando a cobertura das últimas sombras, Eyvind movia-se furtivamente. Estava na orla superior da grande floresta; na sua frente erguia-se uma massa rochosa irregular, nua e escarpada, transformada num local misterioso e prodigioso pela luz fantasmagórica que incidia nos seus rebordos, fendas e fissuras. Era uma paisagem cinzenta contendo todas as tonalidades, desde o brilho pálido de uma pérola até uma profunda sombra-escuridão. Vinte passos à sua frente, uma saliência rochosa sobressaía como a proa de um grande navio e nessa saliência estava o lobo. Eyvind olhou para ele, os pêlos do pescoço arrepiaram-se-lhe e sentiu a pele pegajosa do suor. O animal era enorme, certamente maior do que qualquer lobo terreno, porque era três vezes mais alto do que Grip e o seu pêlo longo e sedoso dava à sua figura uma grandeza que era quase real. E os olhos: dourados, brilhantes. Eram os olhos de um chefe de guerra selvagem, profundos e conhecedores, se bem que totalmente irracionais. Ao olhar para o seu adversário, Eyvind compreendeu a mensagem daquele olhar. Vieste. Sinto a tuapresença na escuridão. Quem é aqui o caçador e quem é a presa? Aparece. Se tens coragem, aparece e enfrenta-me, porque um de nós vai morrer esta noite. Então, o grande lobo ergueu o focinho para o céu e uivou de novo, um grito de fazer gelar o sangue e parar o coração, um chamamento que percorreu a floresta e entrou nas profundezas do espírito de Eyvind. Chegou a hora. Se possuísse uma lança, se possuísse um arco, saberia o que fazer. Mas aquele ia ser um combate com armas iguais. Pele nua contra pêlo espesso, faca pequena contra garras, pau contra presas afiadas: a ideia era ridícula. No entanto, tinha de vencer. Tinha de ter a coragem suficiente, porque não tinha mais nada.Eyvind pôs-se de pé sem se preocupar com o ruído. O lobo virou a cabeça. Eyvind avançou na direcção das rochas, na direcção do ponto avançado onde o animal se erguia, enfrentando-o. Ouviu-se um rosnar profundo, baixo, um som que dizia: Não avances mais. Este lugar é meu. Quando chegou a dez passos do lobo, Eyvind parou. Nu e coberto de cinza, mostrou-se, de ombros e cabeça erguida. Com o pau aguçado na mão direita e a pequena faca na esquerda, olhou de frente para o grande animal.Agora, disse a voz que não era uma voz: talvez fosse a do seu guia, se bem que Eyvind pensasse que estava só, ou talvez fosse a de outra pessoa qualquer. Talvez fosse a sua própria voz. Mas não se virou. Parecia-lhe que, desde que aguentasse aquele olhar cor de âmbar, o lobo não atacaria. O animal devolvia-lhe o olhar sem pestanejar e, por um momento, o jovem pensou não, não podia ser pensou que estava a olhar para um homem de rosto duro, queixo voluntarioso e olhos tão amarelos e ferozes como os de um predador da floresta. Cuidado, atrás de ti, disse a voz e o jovem ouviu uma respiração, um passo furtivo e não teve outra hipótese senão desviar o olhar e girar de braços erguidos. O animal atrás de si atacou de garras estendidas, hálito a cheirar a ranço; um lobo, um homem mascarado, um demónio, ele não sabia, mas ergueu a faca com a mão esquerda, avançou o chuço com a direita e desviou-se, ao mesmo tempo que as longas garras lhe rasgavam o ombro. Cheirou-lhe a sangue; sentiu o golpe, mas não sentiu dor. Havia olhos, um círculo de olhos à luz do luar. Estavam todos à sua volta. Um lobo não caça sozinho. Eyvind levantou-se. Ainda conseguia segurar na faca; o que era bom. Pensar como o caçador, não como o caçado. Aquilo era um desafio, não uma emboscada. Ser forte; esquecer o resto. Oh, um tição a arder, uma arma a arder. Isso comprar-lhe-ia tempo. Fogo, murmurou Eyvind. Fogo. E o mundo girou, parou, girou de novo e ele sentiu o fogo dentro de si, crescendo com ferocidade e calor até lhe queimar a cabeça e o peito e gritou, um grito que o fez sentir como uma poderosa trompa de guerra. Talvez estivesse a chamar por Thor, ou talvez por algo muito mais antigo e sinistro. Girou sem sair do lugar uma, duas, três vezes, como que preparando-se para lançar o martelo de guerra, ou o machado. Naquela noite a sua arma mais mortífera era o fogo que tinha dentro de si. Rugindo em desafio, Eyvind atirou-se através do espaço aberto ao líder de olhos dourados da matilha.
O medo: o choque do medo. Um homem não ataca assim, como se não tivesse medo de nada. Um homem não desafia assim, sem uma boa arma na mão. Este olhar está errado; parece que dá as boas-vindas à morte. Por que é que o homem não tem medo? Pensa que me conquista o lugar? O meu? Eu ainda não estou velho, ainda estou forte... Eu mato-o na sua nudez malcheirosa. Eu despedaço-o... Mas o medo. Aquilo não é um homem, é um como eu e vem buscar o que é meu...
A faca cortou, os dedos agarraram o pêlo comprido, o chuço, deixara cair o chuço, depressa, esquivar, rolar, saltar, apanhar o chuço e atacar antes que aqueles dentes se fechem de novo, talvez no pescoço, ou na garganta exposta. Depressa. Gritando em desafio, Eyvind atirou-se com todas as suas forças. O chuço penetrou e o seu rosto encheu-se de sangue quente. O lobo estremeceu e girou, os intestinos empalados pela haste de madeira. As garras esgravataram nas rochas em busca de equilíbrio e ouviu-se um terrível ganido de agonia. Os outros, silenciosos no seu círculo, observavam de olhos semicerrados, tremendo. O uivo ouviu-se de novo, remoto e doloroso. O lobo, de olhar feroz, virou a cabeça, tentando abocanhar o braço de Eyvind. Era valente; lutava por arrancar o chuço e acabar com ele com as forças que lhe restavam.Bravo... sim, bravo... mas não terás o que é meu. Queres matar-me com o teu grande dente? Mas eu faço-te frente; faço-te frente até ao momento... até ao momento em que tudo se transformar em sombras...O lobo recuou e puxou; o chuço fugiu da mão de Eyvind, deixando-lhe a palma da mão cheia de farpas. O animal virou-se, arrastando a haste de madeira sob a barriga. O sangue saía-lhe pela boca, os seus dentes estavam vermelhos à luz do luar. Nas rochas, os outros esperavam: lobos, homens, ou algo entre os dois, uma manifestação de luar, sangue e escuridão. Eyvind sentia as mãos frias, tão frias que mal sentia os dedos ainda agarrados à pequena faca que, um dia, esculpira um pedaço de madeira para uma rapariga. Uma hipótese. O animal ainda tinha força suficiente para acabar com ele. Aqueles olhos não falavam de rendição; mas Eyvind tinha de vencer.Não és nada. Não tens tribo, não tens lugar, não tens armas senão essas, que não são tuas. O teu corpo é tão nu e fraco como uma cria recém-nascida. Não és nada. Não penses que me tiras o lugar, porque nunca poderás ser o que eu sou.O lobo rosnou profundamente e esticou as orelhas para trás. Tal como Grip, um dia, quando Somerled passou por ele.Eyvind abriu a mão e deixou que a faca caísse nas rochas. O som ecoou ao longo da encosta. Parecia que toda a natureza tinha prendido a respiração: então, silêncio. O lobo reunia as suas últimas forças para um último ataque.Nu cheguei e nu vencerei murmurou Eyvind, erguendo as mãos nuas. Contra ti, usarei as armas que tu usas; combateremos com as mesmas armas, iguais sob o olhar de Thor. E, se não te conseguir vencer, vencer-me-ei a mim próprio. Então, o jovem atacou, o lobo saltou e os dois rolaram juntos, para um lado e para o outro, num combate sangrento e frenético de dentes e garras, de membros, gritos e rugidos. Eyvind não sabia onde acabava o seu corpo e começava o do animal, tão agarrados estavam um ao outro. A dor, o sangue e a escuridão; um par de mãos fortes, agarrando, torcendo sempre enquanto o inimigo mordia e arrancava, ao mesmo tempo que o sangue jorrava, os seus ouvidos se enchiam de sons desesperados e a noite se transformava numa confusão caótica de luz, estrelas e sombras, de rochas, árvores e céu, de formas silenciosas que não eram homens nem animais, antes Outra coisa, esperando. Por fim, mesmo no fim, ambos ficaram ofegantes, exaustos, quase como dois amantes esgotados por uma noite de paixão e Eyvind olhou uma última vez para os olhos do lobo. O animal estava imóvel, o olhar dourado cada vez mais esbatido enquanto as mãos de Eyvind se agarravam implacavelmente ao seu pescoço. O lobo sangrava da boca e do ventre; Eyvind sabia que o seu próprio sangue jorrava de inúmeros ferimentos no seu corpo, no peito, no ombro, no rosto, nas mãos, algures num outro mundo. Olhou para os olhos do seu adversário e a verdade devolveu-lhe o olhar. Chegara o momento: o momento da mudança. Sem palavras, reconhecendo apenas a hierarquia do grupo, a liderança; reconhecendo aquele ser selvagem, livre, forte. Depois, a sombra e a escuridão. O lobo estremeceu e vacilou. Os olhos brilhantes enevoaram-se e ficaram sem expressão. O tempo de respirar pela última vez, de sentir o cansaço dos ossos, dores em todo o corpo e um súbito frio feroz, que lhe entorpeceu o coração e lhe gelou o sangue. Apenas por um instante; então, com um som sussurrante e comovente, o círculo de seres aproximou-se dele. O mundo cambaleou; as estrelas começaram a mudar de posição e de forma. Para além deles, pareceu-lhe ver um homem, um homem grande, alto, com uma máscara de lobo e olhos brilhantes, dourados, que lhe disse: Bom trabalho, filho. Então, a escuridão caiu também sobre Eyvind.O jovem acordou e por um instante pensou que estava em casa, na cama. Então, recordou-se e o desapontamento atingiu-o como se tivesse levado um murro. Um sonho; fora tudo imaginação, tudo o que fizera fora dormir junto da fogueira como um rapaz demasiado novo e fraco para aguentar a cerveja. Nem sequer lhe tinham permitido que tentasse. Mexeu-se, sentou-se e sentiu uma dor lancinante no corpo todo. Esfregou os olhos à luz do dia e quando baixou as mãos viu as crostas de sangue seco. Estava nu sob o cobertor e no seu peito, ainda coberto de cinza, estavam quatro profundas riscas vermelhas. Na sua cabeça pulsava um tambor; a sua boca estava seca e tinha um sabor amargo.Toma disse Eirik, aparecendo a seu lado com um cantil de pele na mão e um grande sorriso no rosto barbudo. Os outros estavam por detrás dele: o que não tinha dentes, o que não tinha uma orelha, Hakon, com as suas feições severas, todo o bando de Pele-de-Lobo, e todos riam e lhe davam os parabéns, enquanto ele se retraía de dor quando algum deles lhe batia nas costas e um outro dizia que eram outra vez doze e que Thor devia estar contente.P... passei, então? gaguejou Eyvind, agarrando no cantil e pensando numa data de coisas. Aquilo foi... real?O olhar de Eirik era feroz e orgulhoso.É sempre diferente para cada um de nós disse ele. E sempre real para cada um de nós. Tu passaste, sim, e mais do que isso, acho eu.Mas, eu vi... Eyvind parou. Como poderia encontrar palavras que descrevessem aquela maravilha, a estranheza daquelas figuras na escuridão, a maneira como o lobo parecera uma parte de si próprio, compreendendo assim os seus pensamentos, ao mesmo tempo que lhe parecia a encarnação do deus? Como vira a morte e, por um momento, a compreendera? E, se na verdade, matara um lobo, onde estava ele?Deves ter fome disse Hakon e sede. Veste-te e enche a barriga, porque temos uma longa jornada pela frente.E sentado, com o cantil numa mão e um pedaço de carne grelhada na outra, olhou para lá da fogueira e viu a pele. Eles tinham esfolado o animal de maneira mais ou menos perfeita; estava pendurada num dos archotes apagados, uma pele grande, hisurta, o pêlo cinzento-prateado brilhando debilmente à luz do Sol. A brisa agitou-a, houve um movimento nela, um murmúrio de vida, como se o espírito do chefe da floresta permanecesse ainda naquele manto que passava para o seu conquistador.Há um homem na corte de Magnus que é muito bom a curtir peles disse o guerreiro da cicatriz no rosto. Ele vai fazer dela uma boa capa para ti. Uma pele de bom tamanho, esta, suficientemente grande para um pequeno touro como tu. Digna de um rei.Eyvind acenou com a cabeça, mas não disse nada. O seu coração e a sua mente estavam demasiado cheios para permitirem qualquer palavra. Não precisava de perguntar; não precisava de contar. Todos eles tinham passado no seu próprio teste; todos eles se tinham dedicado a Thor. Isso fazia deles um bando, uma equipa; no entanto, no fim, cada um deles seguia em frente sozinho, porque os pactos que o deus fazia eram tão pessoais quanto inquebráveis.
Assim, no seu décimo quinto ano, Eyvind tornou-se Pele-de-Lobo. Como um dos doze, cavalgou para sul, para a corte do Jarl Magnus. Deixou a floresta, mas, na verdade, não a abandonou, porque era agora um dos lobos, transportava em si o fogo, ardendo, brilhante e firme. Enquanto a chama vivesse, serviria o deus, forte e corajoso, ansioso pelo combate, resoluto contra todos os inimigos e fiel ao seu juramento. De futuro, a sua vida seguiria os passos de Thor, as estações dedicadas às viagens, aos ataques, às batalhas e aos saques, ao tempo passado ao lado de Jarl, guardando a sua pessoa, escoltando-o em segurança nas suas visitas através dos seus territórios, entretendo-o com proezas de força e habilidade. As visitas a casa seriam poucas e segundo a conveniência do seu senhor, não segundo a sua. Os rostos familiares da sua mãe, de Karl e dos da casa, entre os quais crescera rodeado de amor, tornar-se-iam estranhos para ele. Não pareciam ter importância. Era, agora, outra coisa: um homem. Serviria durante três, cinco anos, talvez mais, se tivesse sorte; então, se os deuses quisessem, teria uma morte rápida e um lugar à direita de Thor. Era um futuro glorioso.
A princípio, Eyvind contava os pequenos entalhes no seu escudo: não em redor do aro, mas no interior, perto do local onde a bossa estava presa por pregos de ferro. A madeira estava deteriorada, coberta de pequenas marcas, centenas delas. Nenhuma delas era nova; Eyvind deixara de as contar há muito tempo. Thor chamava; ele respondia. Só isso interessava.
As viagens no Outono e na Primavera eram a parte melhor. Antes de fazer dezoito anos, Eyvind já viajara até longe: para norte, até aos reinos gelados e regressando através de Hordalan, onde havia um governante poderoso com um olho no território de Magnus levavam-lhe presentes para manter a trégua precária e depois para sul em redor da costa e atravessando a Judândia, onde era esperada uma resistência selvagem por parte dos Dinamarqueses. E ainda mais para sul, contornando as costas, entrando nas águas interiores que contornavam as terras férteis dos Frísios e dos Francos. Tinham encontrado aí bons saques, alguns dos quais Eyvind guardara para si, tendo-se tornado, rapidamente, um dos favoritos do Jarl Magnus.
Magnus tinha três navios, leves, pouco profundos, bons para os ataques ao litoral. Dois deles tinham quinze bancos e o outro, doze; todos eles eram rápidos e ligeiros, a remos e à vela. O Serpente Guerreira, no qual Eyvind viajava normalmente, podia subir um rio. Acostava a uma praia com facilidade, era fácil de lançar à água e a sua tripulação podia transportá-lo aos ombros durante uma certa distância através de uma língua de terra para chegar a um novo canal. O Princesa do Mar e o Dente Afiado também eram bons navios, perfazendo uma frota que demonstrava a força de Magnus e contribuía para a sua reputação. No entanto, os longos períodos no mar não eram nada confortáveis. Um homem estava sempre molhado e as rações não se aguentavam muito tempo. Acampar em terra para passar a noite tinha os seus riscos. Aprenderam a dormir com a espada à mão e com um olho aberto. O jovem tivera a sua primeira batalha naval com a idade de quinze anos; lembrava-se bem dela. Em águas abertas, a oeste do abrigado Limfjord, estavam em território perigoso. Os navios aproximaram-se da costa norte da Jutlândia, onde o canal de água serpenteava na direcção dos ricos centros comerciais dos Suecos. A bruma caíra sobre os navios como uma mortalha. A tarde ia avançada; tinham-se apercebido de um outro navio nas proximidades, mesmo antes de aquela cortina cinzenta ter descido sobre eles. Ulf ia ao comando do Serpente Guerreira; ordenou aos seus homens que se agarrassem aos remos e se mantivessem em silêncio. No meio daquela névoa, os ouvidos tinham de se transformar em olhos. Esperaram.Eyvind, o caçador, foi o primeiro a ouvir: um leve ranger, as pranchas de um navio através da água com uma lentidão dolorosa. Ele fez um gesto na direcção de Ulf: naquela direcção., e Ulf deu o sinal. Os Pele-de-Lobo dirigiram-se para a proa, as mãos movendo-se para agarrarem nas armas, no machado, na espada curta, na lança, no martelo. A tripulação manteve o Serpente Guerreira silencioso; uma vez em posição, recolheriam os remos, porque todos eram guerreiros e cada um tinha o seu papel a desempenhar. Podiam enfrentar um único navio dinamarquês, ou dois, ou uma frota inteira: podiam ser atacados de todos os lados. Um combate naval daqueles era arriscado, mas que poderia ter as suas recompensas, porque um navio inimigo, uma vez abordado e a sua tripulação dominada, podia ser levado para casa para ser acrescentado à frota do próprio Jarl, ou para ser oferecido a alguém que se quisesse impressionar, como, por exemplo, os homens perigosos de Hordaland. Nesse dia, o próprio Magnus ia ao comando do Princesa do Mar, algures no meio da bruma e um dos nobres capitaneava o Dente Afiado. Mas era o Serpente Guerreira que levava os Pele-de-Lobo e, por isso, o Serpente Guerreira seria o primeiro a atacar.Amontoaram-se no pequeno convés, à proa; a bruma era tão espessa que até a cabeça dourada da serpente, que avançava, feroz e orgulhosa, pela proa fora, estava escondida, o débil brilho do olho selvagem e da língua bifurcada cobertos pelos suaves e possessivos tentáculos da névoa. O ranger, agora, podia ser ouvido por todos, cada vez mais perto, juntamente com um pequeno chapinhar na água, como o movimento de muitos remos manejados subtilmente por mãos habilidosas. Hakon meteu a mão no bolso e tirou uma coisa cinzenta, malcheirosa, que dividiu pelos doze; os seus maxilares moveram-se em uníssono. Não se ouviriam cânticos, ou sons de tambor. A voz de Thor era um murmúrio na vela flexível, um murmúrio na água agitada. Queimai tudo por mim, meus filhos... Atacai com força, matai com limpeza... As próprias pranchas do navio estremeciam sob aquele murmúrio e Eyvind sentiu o seu coração acelerar, batendo como um tambor, ao mesmo tempo que os dos outros, em sintonia com a voz do deus. Esperaram, de músculos tensos, desejando gritar Agora! Agora! Mas mantiveram-se imóveis. Um clarão vermelho através da delgada mortalha húmida e depois mais cores, amarelo, azul, a figura pintada de uma bela mulher, brilhante, carregando de seios nus na sua direcção, a menos de cinco passos de distância e navegando rapidamente. Eyvind ouviu a voz de Ulf atrás de si:Agora! E o navio dinamarquês estava em cima deles, a proa ao seu alcance, a mulher impudente e a serpente selvagem de olhos nos olhos, e Grim e Erlend lançaram os ganchos para aproximar o navio inimigo do seu; para lá daquela figura pintada, o metal brilhava através da bruma.Ao ataque! comandou Ulf e a sua voz era a voz de trovão de Thor, exortando-os. O sangue surgiu de novo, quente e insistente nas suas entranhas, no seu coração aos pulos, e um grito de desafio saiu-lhe dos lábios. Esperara toda a sua vida por aquele momento. Atrás de si, os Pele-de-Lobo rugiam enquanto saltavam por cima da proa do navio inimigo, as suas armas esfomeadas de carne humana.Não havia Pele-de-Lobo entre os guerreiros dinamarqueses. No entanto, o inimigo lutou corajosamente tendo em conta a desvantagem. Perderam, talvez, metade dos seus no primeiro ataque. Eyvind sabia que tinha cortado a cabeça a um com um único golpe. Recordava uma pancada que parecera ricochetear no escudo de um outro guerreiro e a surpresa nas feições do dinamarquês quando olhou para baixo e viu que o seu braço fora cortado rente. Eyvind nunca acreditara em causar dor sem necessidade. Certificou-se de que o seu segundo golpe provocaria morte instantânea. O convés ficou escorregadio devido ao sangue e havia tendência para pisar coisas que era melhor evitar. Os Pele-de-Lobo avançaram como uma maré negra sobre o navio, sobre o primeiro banco, sobre o segundo, sobre o terceiro; Eyvind ouviu Hakon gritar por trás de si, como se tivesse sido ferido. Viu Eirik virar-se, mas foi ele que avançou, porque o seu machado cantava uma canção muito própria, destemida, inatacável, uma canção de saudação e despedida.
À medida que abria caminho com o machado, a bruma começou a abrir e surgiu a forma escura de um outro navio; estava ali, talvez, uma frota inteira de navios dinamarqueses, cada um deles com o seu contingente de guerreiros.
Aguentai! gritou Ulf, progredindo ao longo da amurada escorregadia do convés que a sua força de guerreiros tinha aberto para ele. Atenção ao flanco de estibordo!
Mas não era uma ameaça. O navio que acabava de emergir por entre os farrapos de névoa era o Princesa do Mar com o próprio Jarl Magnus aos remos, observando com interesse o seu mais novo e mais recente Pele-de-Lobo a avançar à força de machado e deixando atrás de si um rasto de destruição.
Mais tarde, disseram a Eyvind que ele tinha matado nove, logo na sua primeira batalha. O Jarl ficou com o olho nele a partir dessa ocasião. Aqueles rasgos de coragem eram esperados da parte de um Pele-de-Lobo, mas comandar, conseguir um reagrupamento e matar tantos no primeiro encontro, tudo aos quinze anos de idade, era algo excepcional. Houve recompensas quando regressaram à corte. Boas armas, ricas capas, cavalos. Para Eyvind, aquele foi um momento estranho, quando se colocou diante do Jarl para receber os seus agradecimentos.
Bem, meu bravo disse Magnus expansivamente viste as riquezas que distribuí pelos teus camaradas guerreiros. Ninguém me pode acusar de não ser generoso. Sei como recompensar a coragem. E tu estiveste entre os mais corajosos, porque ainda és um rapaz. Qual é o presente que queres de mim? Fala, e será teu. Pergunto a mim próprio que coisa desejará um homem como tu?
Eyvind ficou sem saber o que dizer. Olhando em redor da sala em busca de inspiração, apanhou o olhar de Somerled, que estava sentado no meio dos nobres reunidos no salão de Magnus para o festim da celebração. Somerled ergueu as sobrancelhas e torceu o lábio, o que não era ajuda nenhuma.
Meu senhor disse Eyvind eu não quero nenhuma recompensa, se bem que me sinta honrado por me teres oferecido uma. Eu tenho tudo o que preciso, o meu machado de confiança, a minha boa espada e um lugar entre os teus Pele-de-Lobo. Responder ao chamamento de Thor foi sempre o que desejei da vida. Sinto-me feliz com o que tenho.
Por um momento, Magnus olhou para ele sem expressão e depois atirou a cabeça para trás e a sua risada ecoou pelo salão. De imediato se lhe juntaram os nobres da casa, os guerreiros, as damas, os dignitários visitantes, os emissários e os eruditos. Eyvind olhou de novo de relance para Somerled. Este não se ria.
Bem dito, filho disse o Jarl. Bem dito, na verdade. Mas és capaz de mudar de ideias à medida que fores crescendo. Portanto, não queres prata nem ouro, ornamentos ricos ou armas. Talvez uma escrava? Há muitas, aqui na corte, algumas da tua idade e com muitos encantos, podes ter a certeza. Um tipo de sangue quente como tu certamente que diz sim a isso.
Para sua mortificação, Eyvind sentiu-se corar ao ouvir aquelas palavras. Ele agora era um homem, de facto, não se podia negar. Mas nunca se esquecera do que Somerled lhe dissera e hesitou, silencioso. Os sussurros e as risadas de troça percorreram os cortesãos reunidos. Que Thor o ajudasse, pensariam que ele era um maluco qualquer se não respondesse rapidamente. Que espécie de homem recusava uma oferta daquelas?
Então, meu rapaz? Magnus ergueu as sobrancelhas.
Meu senhor, eu tenho uma sugestão melhor. As cabeças viraram-se quando Somerled se levantou, a sua voz soando suavemente confiante no salão cheio de gente. Certamente que a melhor recompensa para premiar uma tal coragem será uma que dure para sempre, um presente que recorde esse momento de bravura nos nossos corações e nos nossos espíritos para sempre.
Magnus franziu o sobrolho.
Continua disse ele.
Precisas de um poema disse Somerled. Um belo poema heróico, que exalte a bravura de todos aqueles que tomaram parte nesse encontro: tu próprio como líder, o meu estimado irmão, os outros comandantes e toda a força de guerreiros destemidos que se aventuraram contra os homens da Jutlândia. E se queres recompensar de modo especial o teu mais novo Pele-de-Lobo, captemos desse modo a sua juventude e coragem. É um desafio para o teu skald, entregar um tal poema talvez amanhã à noite, enobrecendo, assim, não só o nome de Eyvind, mas também o teu.
Hum devaneou o Jarl com um pequeno sorriso nos lábios. Era evidente que a ideia lhe agradara. Bem dito, Somerled. Magnus olhou para Ulf, que estava sentado a seu lado. O teu irmão mais novo é esperto, tem sempre ideias. E é um bom estratega com o tabuleiro, segundo sei, e até poeta.
Ulf resmungou uma resposta.
Que pensas da ideia dele, jovem Pele-de-Lobo? Agrada-te? perguntou Magnus expansivamente.
Eyvind respirou fundo.
Sim, meu senhor conseguiu ele dizer, olhando de relance para Somerled e tentando não mostrar que estava aliviado. A boca de Somerled torceu-se a um canto.
Muito bem, então disse Magnus. Que seja um poema, um poema de estilo heróico; que seja bem feito e que possa ser ouvido por nós amanhã, depois do jantar. Mas não vou pedir ao meu skald, Odd, Língua Afiada, que faça esses versos. Essa honra cairá sobre ti, Somerled Gunnarsson. Dizem que tens o dom da palavra. Conta-nos a história do bravo comportamento do teu jovem amigo e da nossa vitória sobre os Dinamarqueses. Conta-a forte e subtil, mexida e inteligente. Aguardaremos o resultado com grande antecipação. Quanto a Eyvind, deixemo-lo ir por agora; dentro de pouco tempo, sem dúvida, ele voltará a brilhar entre os nossos guerreiros.
Assim, Somerled socorrera-o. Somerled, em tempos um rapaz patético, movia-se agora entre homens de poder e influência com confiança. Era, sem dúvida, um jogador consumado. Somerled não era um guerreiro; no entanto, Eyvind não tinha dúvidas de que naquele campo de batalha muito particular o seu irmão de sangue era já um campeão. E o poema, uma vez entregue, era uma obra de arte, as suas alusões tão inteligentes, que o próprio Odd, certamente, não teria feito melhor. Somerled recitou-o de tal maneira que, no fim, os aplausos foram tumultuosos.
Quanto a Eyvind, o seu problema privado ficou resolvido, porque na mesma noite da oferta de Magnus Eirik encontrou-o na taberna, anunciou que o ia levar para uma visita e que não aceitaria um não como resposta. Foi assim que Eyvind conheceu Signe.
A casa de Signe era uma das muitas que formavam o aldeamento fortificado que rodeava a grande casa de Magnus. Trabalhavam e viviam ali muitas pessoas, ali se desenvolvia toda a espécie de ofícios, ali se fabricava e negociava toda a espécie de mercadorias, ali se hospedavam viajantes e se contavam histórias. Havia ferreiros e ferradores, tanoeiros e armeiros, bêbados e monges. Os dois irmãos percorreram as vielas escuras; já era tarde, se bem que ali as luzes ainda ardessem e se ouvissem sons de pândega ou de disputa. Eyvind tentou perguntar aonde iam, mas Eirik mandou-o calar. Pararam em frente de uma pequena casa em cujos degraus havia um vaso com flores vermelhas. Eirik bateu. A casa estava às escuras; os habitantes, fossem eles quem fossem, receberiam visitas àquela hora?Uma voz de mulher falou do interior; uma voz baixa, quente. Talvez a sua proprietária tivesse estado a dormir.Quem é?Abre, Signe! Sou Eirik Hallvardsson e trago o meu irmão comigo. Eirik sorria. Quando a porta se abriu, o sorriso abriu-se, ele entrou, abraçou a mulher que se deixou ficar nos braços dele e plantou-lhe um beijo sonoro nos lábios. Eyvind ficou parado na soleira. Aquilo, pensou ele, só ia piorar as coisas.Entra, querido. A mulher, agora, olhava para ele de alto a baixo e ele devolveu-lhe o olhar. As suas formas eram recortadas pela luz na sua retaguarda, no interior da pequena casa; o seu vestido, talvez um roupão de noite, era de boa qualidade e as curvas de uma figura firme e generosa eram claramente visíveis: longas pernas, barriga arredondada, seios cheios, de mamilos rosados. Os cabelos louros caíam-lhe pelos ombros; a sua expressão era amigável. Eyvind engoliu em seco, nervosamente e deu um passo no interior.Vamos, querido, não sejas tímido. Ela estendeu uma mão; ele segurou-a e foi levado para o interior. A mulher virou-se para Eirik.Põe-te a andar, belo guerreiro. Eu tomo conta do teu irmãozinho e mando-o para casa a horas do pequeno-almoço.Trata-o bem riu-se Eirik, desaparecendo logo a seguir, e a porta fechou-se sobre ele.Eu... eu acho que... Eyvind gostaria de poder dar um pontapé em si próprio. Sabia o que era aquilo, sabia o que era suposto fazer. Na verdade, o seu corpo parecia preparar-se a cada momento para uma acção imediata, enquanto a mulher o conduzia da entrada para um quarto onde ardia uma luz suave junto de um grande e confortável colchão cujos cobertores amarrotados demonstravam que eles tinham, na verdade, perturbado o seu sono.E agora, meu querido disse a mulher, largando-lhe a mão e sentando-se na beira da cama. Pelos ossos de Odin, a sua pele era tão branca e rosada como as flores dos prados e cheirava tão bem, cheirava de maneira tão suave, que o fez desejar pousar os lábios alie ali e saboreá-la, mas...Eyvind disse ela gentilmente. É esse o teu nome, não é? O meu é Signe, sou amiga do teu irmão, uma velha e leal amiga. Eirik conta-me todos os seus segredos. Não sejas tímido, Eyvind. Tu és um homem. Vejo isso muito bem: um belo homem. É a primeira vez, não é?Eu... ah... é, mas...Anda, senta-te aqui, vamos conversar um bocadinho. Podes falar comigo; já ouvi tudo, talvez mais ainda. Por que é que não pões a tua mão aqui, assim... ah, que bom, não é... e eu ponho a minha aqui... não admira que te chamem pequeno touro, querido... e agora diz-me. Estás preocupado, mas queres, não queres? Para mim, é claro como água. Diz-me, Eyvind.A voz dela era tão amável e a sua mão tão maravilhosamente excitante que, entre as duas coisas, por fim, ele conseguiu gaguejar a verdade.É que... é que eu não gostaria de te magoar, de te perturbar.O quê? Por que havias de fazer isso, amor? Quem te pôs essa ideia na cabeça?Pensei... disseram-me... O movimento da mão dela era agonizante, tão doce, uma espécie de tortura abençoada, uma dor tantalizante. Bem, que as mulheres não gostam disto, que não têm prazer e só concordam porque os homens as obrigam. E eu custa-me muito ouvir isso. E por isso que eu... que eu nunca...Signe retirara a mão. Ele pensou que ia explodir de desejo e desgraçar-se ali mesmo.Quem é que te disse isso? perguntou-lhe ela de olhos arregalados de surpresa.Uma pessoa. Ouvi algures. Um amigo.Signe suspirou e levantou-se. Agora, ela ia mandá-lo embora e sentir-se-ia ainda mais estúpido do que naquele momento, o seu corpo em fogo e a sua estúpida língua incapaz de dizer sim.
Isso foi uma coisa muito feia de dizer disse Signe gentilmente, e desatou a fita no pescoço do roupão, deixando que este deslizasse para o chão. Compete ao homem fazer com que ela goste. Vem cá, que eu mostro-te.Ao longo de muitas noites depois daquela, Signe ensinou-lhe que uma mulher podia, de facto, tirar alegria do acto sexual, podia tirar um prazer intenso da penetração, tão cego na sua ferocidade como o seu. Na verdade, à medida que ela lhe ensinava novas técnicas, aprendia que dar prazer podia ser tão satisfatório como receber e, mais tarde, à medida que as suas capacidades iam aumentando, iam descobrindo juntos novas maneiras. Por vezes, perguntava a si próprio no que Somerled lhe dissera: não uma mentira, porque os irmãos de sangue não mentem um ao outro, mas um mal-entendido, que o fizera pensar muito no seu amigo e no que ocorrera naquele Verão terrível nas pastagens de Verão. Teria gostado de dizer a Somerled que ele não percebia nada de mulheres; que, se os homens ouvissem o que elas tinham para dizer, dessem valor ao que elas tinham para dar e as respeitassem, a felicidade entre homens e mulheres seria profunda. Mas não disse nada. Somerled era um cortesão, inteligente, sofisticado, mais ou menos obrigado a responder com alguma crueldade se desagradado. Se lhe dissesse aquela verdade, era possível que a sua resposta fosse apenas uma risada trocista.Só mais tarde, quando Eyvind já era um homem de dezoito anos, é que Signe lhe disse que soubera que ele era um Pele-de-Lobo pela maneira como fazia amor: à carga, a matar, por assim dizer, sem qualquer subtileza. Ele teve a graça de corar um pouco, recordando quanto ela lhe tinha ensinado desde então.Eu não passava de um rapaz protestou ele, rolando de costas para a ver vestir-se à luz da vela.Oh, sim, e agora já és um velho sorriu Signe, vestindo as meias de um modo que o fez desejar puxá-la para a cama uma vez mais. Mas não o fez. Com Signe, havia certas regras. Ele sabia que ela ia com outros homens, entre eles o seu irmão. Sabia que ela escolhia cuidadosamente e que não pedia pagamento, se bem que recebesse presentes quando lhos ofereciam. Ele compreendia o significado do vaso de flores e que devia ser respeitado era um sinal para mostrar que havia outro na sua cama, ou que havia lugar para si quando ele precisava dela. Para Eyvind, ela estava, geralmente, livre; o jovem sabia que era uma espécie de favorito e nunca deixava de se sentir grato por isso. As damas elegantes da corte ainda o deixavam alarmado com os seus olhares de relance e os seus namoricos. E nunca tomaria para si uma mulher como parte dos despojos de uma batalha, se bem que alguns achassem isso um direito de um Pele-de-Lobo.
Tu és bom rapaz disse-lhe Signe, apertando o vestido com os broches gémeos e inclinando-se para o beijar na ponta do nariz. Ele sentiu uma aragem tantalizante do seu perfume, um odor quente, envolvente, que fazia parte do seu ser. Agora não disse ela, evitando a sua mão pesquisadora. Precisam de ti algures, hoje, e de mim também. Vamos, preguiçoso, levanta-te da cama e veste-te antes que te ponha na rua nu. Não que ficasses lá muito tempo sozinho; havia de aparecer uma viúva solitária bem depressa para te pôr as mãos em cima, sem dúvida.
Com alguma relutância, Eyvind vestiu-se e regressou à corte. Procurou Thord ou Erlend nos estábulos, mas não estava ninguém à vista senão um par de rapazes a apanhar feno com uma forquilha. Começou a chover, a princípio umas gotas e depois um súbito dilúvio. Eyvind abrigou-se dentro do primeiro edifício que encontrou, que era um pequeno anexo da grande casa de Magnus, um local próprio para bordados, música e jogos, já que as suas persianas podiam ser abertas totalmente para apanhar a luz da manhã. O anexo estava quase vazio. Apenas duas mulheres estavam sentadas junto à porta mais afastada, conversando e cosendo, e mais duas pessoas sentadas em frente de um tabuleiro de jogo, ambas muito quietas, aparentemente fechadas num intenso duelo estratégico. Naquele dia, Somerled tinha os dezasseis pequenos soldados e o jogador que tinha os outros oito, mais o pequeno rei, era uma mulher. Eyvind parou. Os oponentes de Somerled eram sempre cuidadosamente escolhidos: visitantes nobres, viajantes mercadores, skalds, ou monges, sempre os melhores e mais manhosos. Nunca jogava com mulheres. E aquela rapariga era ao mesmo tempo nova e bonita, se bem que não fosse exactamente do gosto de Eyvind. O jovem gostava das mulheres altas e generosas de formas, de cabelos louros e pele pálida, suaves ao toque: em poucas palavras, uma mulher como Signe. Mas, tinha de admitir, quando Somerled lhe apanhou o olhar e a rapariga se pôs de pé, olhando para ele de alto a baixo como uma cortesã, que àquela não lhe faltavam encantos. Era de estatura mediana e tinha formas, se bem que fosse delgada. Os seus cabelos eram vermelhos-escuros e elaboradamente entrançados em forma de coroa juntamente com uma espécie qualquer de fita; as suas feições eram agradáveis se bem que um pouco severas, a boca cheia e vermelha, os olhos escuros. Aqueles olhos eram, sem dúvida, muito perspicazes; Eyvind achou que ela o avaliara desde logo e que decidira que não valia grande coisa.Ah, Eyvind disse Somerled sem se levantar. Onde tens estado? Esta é a dama Margaret, filha de Thorvald, Braço de Ferro. Está aqui para casar com o meu irmão. Mas a mente de Ulf tem andado muito ocupada com outras coisas; navios, quase sempre. Não tem muito tempo. Assim, como vês, a dama distrai-se comigo. Margaret, este homem muito grande é o meu amigo Eyvind Hallvardsson. É um Pele-de-Lobo e muito querido do Jarl. Não nos temos visto muito ultimamente. Tem tendência para estar ausente a atacar fortalezas, ou a cortar cabeças, ou...Falas demais, Somerled disse Margaret azedamente e Somerled calou-se. Eyvind ficou de boca aberta. Senta-te aqui ao pé de nós, Eyvind continuou ela. Este jogo já deu o que tinha a dar. Talvez me possas ajudar.Eu? disse Eyvind, ao mesmo tempo que a boca de Somerled se curvava num meio sorriso irónico. Nem pensar. Eu não sou bom em jogos, pelo menos desse género.Não? Que pena. Nesse caso, tenho de ser eu a vencê-lo. As suas sobrancelhas escuras fecharam-se num esforço de concentração; os seus elegantes dedos, de unhas compridas, ornamentados com anéis, esticaram-se para mover um soldado para a frente. É tua vez disse ela docemente, olhando Somerled nos olhos.Foi um longo jogo. Eyvind nunca compreendera as regras, ou a estratégia; em vez de seguir as peças, observava os jogadores. Por vezes, levantava-se para ir buscar cerveja, ou para esticar as pernas. Estava tudo muito silencioso; os dois jogadores falavam cada vez menos à medida que a manhã ia avançando e o número de soldados no tabuleiro diminuía. A Eyvind, parecia que havia ali dois jogos a serem disputados: um com os pequenos soldados pretos e verdes, saltando de uns quadrados para os outros numa dança de perseguição e evasão e um outro, muito mais perigoso, cujos movimentos eram constituídos por gestos e olhares, uma ligeira mudança de corpo, o tom de uma palavra murmurada. Há quanto tempo estaria Margaret ali, há um dia, ou dois? Talvez estivesse a imaginar coisas, os seus sentidos estavam mais apurados devido às actividades nocturnas na cama de Signe. Tolice. Aquela rapariga ia casar com Ulf; fora por isso que viera. E os irmãos são sempre leais uns aos outros. Bastava olhar para ele e para Eirik. Não, estava errado, como sempre, era um estúpido. Não admirava que Margaret o tivesse desdenhado com um único olhar.O jogo estava quase no fim; Somerled tinha cinco soldados e Margaret o seu rei e mais dois guardas.Foste apanhada. A voz de Somerled era tranquila, confiante. Esticou o braço na direcção do tabuleiro e, rápida como um relâmpago, a mão de Margaret surgiu para lhe agarrar nos dedos esticados antes que eles lhe tocassem no rei.Não estou, não.Somerled retirou a mão lentamente. Eyvind já vira aquela expressão antes, no seu rosto, mas não lhe ligara importância.Que queres dizer? A voz era fria. As regras são...Eu conheço as regras disse Margaret calmamente. Tu é que cometeste um erro. Repara, o meu guarda atinge o fim do tabuleiro nesta volta e torna-se um Pele-de-Lobo. Depois, pode ir para onde quiser; e fica em posição de apanhar este soldado e este soldado. E agora é a tua vez de novo, penso eu.Parecia que ela tinha razão. Somerled, que nunca se enganava, enganara-se em algo e Margaret limitara-se a ganhar o jogo. Eyvind esperou por uma explosão de fúria, uma observação fulminante, calculada para provocar lágrimas. Somerled era um mestre em ambas as coisas.É a tua vez repetiu Margaret polidamente, erguendo as sobrancelhas artisticamente depiladas.Somerled olhou para ela.Creio que perdi disse ele. Os seus olhos estavam brilhantes devido a uma emoção qualquer; não havia maneira de dizer qual era.Um galante perdedor disse Margaret. Temos de voltar a jogar um destes dias. Talvez amanhã. Pressinto que não perdes muitas vezes, cunhado.Correcto. E talvez, desta vez, não tenha mesmo perdido.Se pensas que te vou perguntar o que significa isso, estás enganado replicou Margaret suavemente. E agora, este trabalho árduo abriu-me o apetite. Eyvind, acompanhas-me ao salão em busca de um petisco qualquer? Trouxe comigo, de casa, algumas damas encantadoras; o meu pai insistiu. Talvez gostes de as conhecer.Não me parece que goste, sabes? disse Somerled, caminhando atrás deles. A que ele tem já lhe chega, mesmo que tenha de a partilhar com metade da cidade.Se outro homem qualquer tivesse feito aquela observação, não teria ficado de pé e teria ficado inconsciente por algum tempo. O maxilar de Eyvind cerrou-se; os seus punhos fecharam-se.Sem ofensa disse Somerled de modo ligeiro. Hum, que cheiro é este, tarte de maçã?Guarda os comentários para ti grunhiu Eyvind.Também acho murmurou Margaret. É evidente que Somerled não tem irmãs. Se tivesse, já teria aprendido que as mulheres não ficam impressionadas com exibições despropositadas de indelicadeza.Oh, minha querida disse Somerled, aparentemente impassível. Tenho a certeza que a rapariga é um amor, toda a gente o diz. Não fiques zangado, Eyvind, ainda assustas Margaret. Não sejamos assim. Temos tanta coisa pela frente, no fim de contas. Tantos jogos novos para jogar.O casamento fora marcado para a lua cheia seguinte, antes do Outono viquingue. Mas estava escrito que não se realizaria. Antes do anoitecer chegou um mensageiro do norte. Falou com Ulf por trás de portas fechadas e depois com Somerled. O pai de ambos morrera; havia assuntos urgentes para tratar. Ulf trocou algumas breves cortesias com a sua noiva. Não havia tempo para dormir. O nobre levou uma tripulação de homens de Magnus e partiu de madrugada a bordo do Princesa do Mar, que Jarl pusera generosamente à sua disposição. Era uma longa e cansativa jornada pela costa acima até Halogaland. Ulf não pediu ao irmão para o acompanhar. Era sabido que não poderiam chegar a tempo de ver o funeral do velho. A viagem, disse Somerled a Eyvind friamente, era mais um movimento estratégico no jogo de Ulf. Não era um gesto de piedade, nem uma viagem sentimental de despedida.Tenho a certeza de que estás enganado protestara Eyvind, surpreendido com a calma aceitação, por parte de Somerled, de uma tal perda. Ulf falava do vosso pai com muito respeito e com afeição.
Típico. O tom de Somerled era monótono. Medes os outros por ti. Ulf mal pode esperar. Tem os olhos cheios de horizontes distantes e não deixará que nada nem ninguém se meta entre ele e esse objectivo.Eyvind olhou para ele.Essa última parte parece mais tua observou ele cuidadosamente.Ele é meu irmão, no fim de contas disse Somerled secamente. Vê lá se não tenho razão.Ulf esteve ausente durante uma lua inteira e mais ainda. O pai de Margaret, Thorvald, Braço de Ferro, não podia ficar mais tempo na corte porque tinha havido ataques às suas fronteiras. Regressou a casa para tratar dos seus assuntos, mas Margaret não foi com ele. A jovem preferia ficar no sul, disse ela, e esperar por Ulf. Certamente, não tardaria. E ela gostava da corte; havia tanto entretenimento. Margaret gostava de jogos; montava a cavalo, escrevia poemas e conversava com visitantes. Se lamentava o atraso, não o dava a entender.A sua companhia era quase sempre Somerled. Aquela admirável ostentação de lealdade fraternal não passou despercebida; as pessoas comentavam a amabilidade de Somerled, no sentido de evitar que a noiva do seu irmão se aborrecesse com a ausência de Ulf. Quanto a Eyvind, este achava que via um certo olhar nos olhos de Somerled e o seu reflexo nos de Margaret, se bem que ambos fossem habilidosos no que tocava a esconder os seus pensamentos, uma das muitas qualidades que pareciam partilhar. Mas Eyvind manteve a boca calada. Já se enganara muitas vezes e, provavelmente, enganava-se de novo. Ninguém parecia preocupado. E não era uma coisa que se pudesse mencionar a Somerled, já que a sua única resposta seria um erguer de sobrancelhas e uma observação desdenhosa.Para além disso, Eyvind andava ocupado. Ao longo dos anos, desde que ganhara o seu lugar entre os doze, tinham perdido cinco homens: um de um golpe recebido num encontro com os Frísios, dois afogados numa tempestade na Jutlândia e outro vítima de febre, uma triste morte para um guerreiro. O quinto fora chacinado numa luta heróica, solitária, contra uma multidão enlouquecida. Matou oito homens antes de os restantes o matarem com pás, forquilhas e gadanhas. Algumas pessoas só conhecem os Pele-de-Lobo pelas histórias. Talvez tivessem pensado que tinham matado um monstro qualquer.
Esses cinco tinham sido substituídos, se bem que nenhum fosse tão novo como Eyvind. O jovem participara em todos os testes, nos quais os novos tinham recebido as suas peles de lobo, e em todos fora como se o teste fosse o seu, como se o seu voto fosse renovado, como se a sua ligação com o deus se fortalecesse. Mas já não precisava da cerveja ou de mastigar as ervas, dos cânticos ou do som do tambor. O cântico estava-lhe nas veias, o tambor no coração; transportava o fogo na sua cabeça.A vida entre duas viagens não era só jogos, pândega e noites doces nos braços de Signe.
Jarl Magnus tinha muitos inimigos, homens poderosos com um olho nas suas fronteiras e um ouvido nos interessados em conspirar. Assim, quando não estava no mar, Magnus percorria as casas dos seus súbditos, ficando duas noites aqui, três ali, apenas para se certificar da sua lealdade. Prestavam-lhe vassalagem. Quando ficava satisfeito, distribuía presentes. E como nunca podia confiar totalmente em ninguém, levava os seus Pele-de-Lobo consigo. Dois caminhavam na sua sombra, guardavam-lhe o sono, cavalgavam a seu lado. Quatro mantinham-se a uma certa distância guardando as entradas e as saídas, vigiando os olhos e os gestos dos homens. Quando os doze estavam disponíveis, os restantes dispersavam-se subtilmente, misturando-se com a população local, aparentemente despreocupados. Desse modo, era difícil montar uma armadilha.Eyvind teve muitas oportunidades de utilizar as capacidades que rinha, sendo como era um dos guarda-costas preferidos de Magnus. No ano em que o pai de Ulf morreu, o Jarl cancelou o Outono viquingue. Chegara-lhe aos ouvidos uma história de deslealdade e ele decidiu dar uma lição a um certo proprietário de terras, uma lição que, tão cedo, ninguém esqueceria. Partiu a cavalo com os seus Pele-de-Lobo e muitos outros homens da sua casa, mais de trinta, e encontrou os conspiradores a leste de Freyrsfjord, para lá dos montes, onde tinham reunido uma força considerável com um plano para atacar um dos aliados e parentes de Magnus. Foi um encontro satisfatório. Eyvind furou um homem com a sua lança num momento em que o escudo do homem se afastou do seu corpo, com a mesma pontaria com que caçava javalis ou veados nos bosques. O seu machado cortou cabeças e decepou membros com toda a tranquilidade, se bem que, como acontecia geralmente com os da sua espécie, mal se apercebesse do que estava a fazer. Na sua cabeça só ouvia a voz ardente de Thor e o seu corpo respondia, sem se aperceber, ao desafio do deus. À sua volta, os seus companheiros agitavam os machados e as espadas com a mesma obediência selvagem. Quando tudo acabou, apenas um dos miseráveis continuava vivo naquele campo ensanguentado. Magnus deixara um aviso claro: que nenhum homem se atrevesse a desafiar, de novo, a sua autoridade. O jovem que tinham poupado foi enviado para casa. Havia um propósito: a história fortaleceria a reputação de Magnus no que tocava a justiça rápida.
Depois disso, o jarl fez mais visitas na vizinhança e todos agradeceram a sua companhia com generosa hospitalidade. A cerveja corria como uma nascente, as mesas transbordavam de carne grelhada e Eyvind recebia ofertas por parte das mulheres, tanto novas como menos novas, as quais recusava o mais polidamente que sabia. Signe era tudo o que ele queria numa mulher. Ir para a cama com aquelas parecia-lhe de algum modo errado, se bem que soubesse que os seus camaradas Pele-de-Lobo não hesitavam em aproveitar as raparigas locais mais animadas e mais bonitas. Eyvind dormia sozinho. Esperaria por Signe. Não lhe fazia diferença o facto de não ser o seu único amante. Com Signe não havia falsas aparências, situações ridículas, brincadeiras, abusos. Havia apenas honestidade, calor e bondade. A Eyvind, parecia-lhe que valia a pena esperar pelo que ela tinha para oferecer.
Magnus ficou satisfeito com os seus Pele-de-Lobo e, especialmente, com Eyvind. Deu a conhecer que tencionava dar uma boa recompensa ao seu guerreiro mais novo e que não aceitaria um não como resposta. Daria tempo a Eyvind para pensar no que lhe agradaria mais. Mais tarde, na corte, voltariam a falar do assunto.
O Jarl conferenciou com os seus rendeiros. Haveria acusações, sem dúvida, na próxima Assembleia, a grande assembleia onde eram discutidos os assuntos da lei. Precisaria do seu apoio, porque os parentes do assassinado chegariam ansiosos por compensação. Porém, desde que houvesse homens dispostos a falar da conspiração e a apresentar testemunhas, talvez se conseguisse resolver o assunto e talvez estivesse disposto a pagar um preço pelas mortes.
Tais negociações tinham se ser levadas a cabo cuidadosamente e sem pressa. Quando o Jarl regressou à corte, já o Princesa do Mar estava fundeado em Freyrsfjord uma vez mais e Ulf estava de volta.
O casamento fora suficientemente protelado. No espaço de dias a cerimónia teve lugar, os votos foram pronunciados, a cerveja nupcial correu e bebeu-se abundantemente. Devido à perda recente de Ulf, a disposição era mais alegre do que barulhenta. Margaret estava muito quieta, como acontece muitas vezes com as jovens noivas no dia do casamento. Provavelmente nervosa, comentou Eirik. No fim de contas, mal conhecia o noivo. Eyvind achou que Margaret não parecia nervosa, sentada muito direita no seu vestido verde de seda, roupa de baixo branca como a neve e flores amarelas nos cabelos ruivos. Não, achou que ela se parecia com Somerled, por vezes: como se conseguisse ver mais longe do que todos os outros e já estivesse a planear a sua estratégia a longo prazo. Achou que Ulf é que parecia nervoso. Quanto a Somerled, estava sentado junto de um pilar com o rosto na sombra. Ao longo do dia parecera sempre muito composto, nada preocupado. Eyvind bebeu uma golada de cerveja. Em breve, a noiva iria para a cama conduzida pelo seu marido e tudo terminaria. Em seguida, iria até casa de Signe, bater-lhe-ia à porta e esqueceria, por algum tempo, tudo, a não ser o calor do seu sorriso e a magia das suas mãos.Já não falta muito para Ulf se ir embora disse Eirik com um sorriso. Ele esteve afastado dela bastante tempo: deve estar preparado para ela.Mas Ulf não parecia com pressa de ir para o leito matrimonial. Pusera-se de pé e dirigia-se a Magnus, as suas feições escuras mais intensas do que habitualmente.Meu senhor, honraste-nos hoje com este festim, com estes presentes, com esta música e com a tua hospitalidade. Na verdade, sempre foste o mais nobre e generoso dos patronos, o mais leal dos parentes e eu espero não me ter poupado a esforços ao expressar a minha gratidão.Magnus inclinou a cabeça, esperando o que se seguiria.Meu senhor disse Ulf quero pedir-te um favor. Quero apresentar-te uma proposta: um plano que tenho há muito na minha cabeça.Continua.Já falei antes numa terra distante: a terra dos sonhos do meu pai. Essas ilhas no mar ocidental são um lugar de águas abrigadas, de colinas suaves e pastagens verdejantes. Nelas, as aves voam e mergulham aos milhões no céu aberto; nelas, o oceano pulula de peixe e as grandes rochas guardam baías cheias de focas. É o que os viajantes dizem. É uma terra de tonalidades azuis, um reino cuja luz, sempre a mudar, ofusca o olhar com a sua beleza. Esse lugar está para além do alcance dos nossos navios. São dias de navegação em águas abertas, navegando como as baleias, pelas estrelas e pelos recifes, com as correntes e as marés. Há muito que desejo velejar até essas paragens, a que alguns chamam Orkneyjar, as ilhas das focas. Iria até lá com homens e mulheres que pensam como eu e construiria uma nova vida nessas ilhas, um lugar onde a paz e a amizade governariam e as pessoas viveriam em harmonia. Estou farto das disputas que envenenaram os últimos anos do meu pai e o deixaram incapaz de confiar nos que foram, em tempos, seus amigos, seus vizinhos, seus aliados. Fundaria uma nova comunidade, longe da guerra e do ódio.Um nobre objectivo, se bem que pouco realista observou Magnus. Se essas ilhas são tão belas como dizes, talvez já outros estejam instalados nelas? Podes chegar a essas costas e ser chacinado por selvagens nus no momento em que puseres pé em terra. A voz de Ulf era calma.Irei num espírito de amizade, se bem que tencione levar guerreiros comigo. Não é uma loucura, uma missão ao acaso, meu senhor. Temos de ter a capacidade de proteger as mulheres e as crianças, pelo menos. No entanto, tentarei evitar conflitos. Se há pessoas a viver lá, talvez possam ser persuadidas. Talvez fiquem contentes com coisas novas e sangue novo.Magnus ergueu as sobrancelhas.Espantas-me, primo. Que tenho eu a ver com isso?Precisamos da tua bênção e do teu apoio disse Ulf. Este Inverno vou construir um navio, um navio melhor e mais forte do que qualquer um antes na Noruega. Esse navio levar-me-á, com a minha mulher e todos aqueles suficientemente arrojados para me acompanharem, através do oceano, para a nova terra. Meu senhor, gostaria de levar a cabo a tarefa de construir esse navio na segurança do teu ancoradouro, aqui em Freyrsfjord, se me permitires. E pedir-te-ia que libertasses aqueles da tua casa que desejam acompanhar-me, os Pele-de-Lobo Eirik Hallvardsson e Hakon, Bico de Falcão, que poderão regressar no Outono, e outros que ficarão e que me ajudarão a fundar a nova colónia.Magnus olhou para ele solenemente.Bem, bem disse ele e não havia maneira de adivinhar o que lhe ia no pensamento. Uma história interessante e não de todo inesperada, primo. Mas os homens e as mulheres não podem viver de luzes e cores. Precisarás de gado, de ferramentas, de sementes e de escravos. Como poderás fazer uma viagem tão difícil com essas coisas todas?
Espero adquirir um knarr robusto, meu senhor, porque é verdade que um navio não foi feito para transportar uma tal carga. Tenciono comprar um navio e fortalecê-lo para a viagem.
A mim, parece-me uma aventura louca e mal planeada. Thorvald, Braço de Ferro., que viera para o casamento da filha, franzia ferozmente as sobrancelhas. A boca de Ulf apertou-se.
O meu marido não é homem que se deixe levar por loucuras. A voz clara de Margaret ouviu-se no salão. Sobrancelhas ergueram-se, surpreendidas por a jovem se ter atrevido a participar no debate. Estou certa de que ele planeou tudo com cuidado e previu todas as eventualidades. Ouçamos o que ele tem a dizer.
O Jarl acenou com a cabeça na direcção da jovem.
Disseste bem, minha querida. O teu apoio ao teu marido vaticina um sucesso favorável. Mas, diz-me, não desconfias de uma empresa destas? É muito longe de casa e da tua família, no fim de contas: uma ilha lá longe, no mar, e a necessidade de começar do zero. Muitas jovens, ainda por cima recém-casadas, receariam uma mudança assim tão grande.
Margaret olhou-o de frente.
Num lugar como esse podem ser conseguidas grandes coisas, meu senhor disse ela. Eu seria uma pobre esposa se não partilhasse da visão do meu marido.
As faces de Ulf ficaram coradas.
Obrigado disse ele, olhando para Margaret. Por um momento, a intensidade da sua expressão suavizou-se um pouco. Era evidente que não esperava que ela defendesse tão ousadamente a sua posição. O nobre virou-se para Magnus. Responderei às preocupações do meu senhor e também às tuas, meu sogro. A minha intenção é fazer a viagem na Primavera. Levarei homens e mulheres, gado e ferramentas, tudo o que é preciso para nos estabelecermos. Artesãos, homens de leis, camponeses e pescadores. Será uma comunidade nova numa terra nova. Naquelas costas está um futuro brilhante para nós.
Nota: Barco pesado, de transporte.
Estou a ver. Os olhos de Magnus estavam semicerrados. Então é isso. Tu queres levar gente da minha casa, usar as minhas instalações e partir para longe para não mais regressar. Diz-me, que compensações é que uma empresa dessas me pode dar como teu patrono?Ah. Já lá ia. Ulf inclinou-se para a frente e espalmou as mãos em cima da mesa. É verdade, levarei homens da tua casa e alguns preferirão instalar-se nas ilhas. Mas posso dar-te em troca algo de grande valor. Deixarei os meus construtores, os meus carpinteiros e os meus operários veleiros quando partir. Eles são peritos, meu senhor: os melhores de toda a Noruega. Cada navio que constróem é melhor do que o anterior, mais ágil, mais rápido, mais forte. Esse conhecimento ficará para ti, para fazeres dele o que quiseres. E a nossa colónia ficará à tua disposição, para quando quiseres visitá-la e quando quiseres fazer dela um porto seguro para quaisquer navios que queiras construir. Desse ponto vantajoso, uma força de guerreiros pode viajar rápida e facilmente até às terras dos Saxões, para sudoeste até às ilhas com templos cristãos, cujos altares pululam de prata e relíquias cheias de jóias. Em poucas palavras, meu senhor, ofereço-te uma grande oportunidade, se fores suficientemente arrojado para a veres. Terás uma vantagem estratégica única.Posso falar, meu senhor? Eirik pôs-se de pé, os seus cabelos louros brilhando à luz das velas, a sua pele de lobo orgulhosamente em cima dos ombros. Alguns de nós conhecem este plano há já algum tempo. O vosso primo aqui é um bom chefe e a sua visão é nobre e estimulante. Há muitos homens bons que quererão fazer parte dele: mais do que os necessários, na verdade. Apoiar esta aventura trar-te-ia grande honra. Para não falar da base avançada com que ficaríeis.Hum. A mente de Magnus trabalhava a toda a velocidade.E como é que tencionas pagar isso tudo? perguntou Thorvald, Braço de Ferro, olhando, carrancudo, para Ulf. Um knarr, um grande navio que tem que ser construído com rapidez considerável, o melhor gado, os serviços de homens especializados? Encontraste o tesouro de prata dos troll quando foste ao norte?Ulf olhou para ele.Eu posso pagar disse ele calmamente. Já tomei a minha decisão e deixarei estas terras com ou sem a bênção do Jarl Magnus. O meu pai morreu. Viajar para essas ilhas era o seu sonho, a sua obsessão. Com a sua morte, as suas terras passaram para mim e eu vendi-as.
Não voltarei lá. Tem sido um lugar de pouco sossego, de conflitos e de dor. Agora, pertencem a outro homem. Por isso, posso pagar.Depois daquelas palavras, ninguém disse nada durante uns momentos. Eyvind olhou de relance para o local onde Somerled estava sentado, mas este já lá não estava. Virando-se, apanhou o olhar de Margaret. Ela olhou para a entrada, olhou de novo para Eyvind e fez um pequeno sinal de cabeça. A mensagem era clara. É melhor ires atrás dele, já que eu não posso.Eyvind desculpou-se polidamente e saiu. A Lua estava tapada pelas nuvens; o pátio estava na escuridão. Um cão farejava a entrada, atraído pela carne grelhada. Uma pedra voou, apanhando-o no lombo; o cão ganiu e afastou-se. Seguindo o trajecto da pedra e esperando não ser o próximo alvo, Eyvind subiu os degraus que iam dar ao celeiro. Somerled estava lá, às escuras, atirando pedras com força bastante para que elas ncocheteassem no solo. Não parou quando Eyvind se aproximou.Somerled...Vai-te embora.O jovem já ouvira aquele tom antes, há muito tempo, e aprendera a lição: não perguntar o que se passava. Em vez disso, sentou-se nos degraus sem dizer nada e após algum tempo Somerled ficou sem pedras e sentou-se a seu lado.Portanto disse Somerled após um considerável silêncio que pensas do grande Ulf e dos seus planos para construir uma nova casa no belo reino da luz? Sentes-te inspirado?Parece-me razoável, pela maneira como ele explicou disse Eyvind cautelosamente. Um bom lugar, com boas oportunidades. Mas...Mas lamentável, já que vendeu os meus direitos de nascimento para financiar os seus sonhos? Oh, não faz mal. A minha mãe não passava de uma concubina e o meu pai tratava-a como lixo. Por que havia eu de esperar melhor? A sua voz estava um pouco incerta. À luz difusa da entrada do salão, Eyvind podia ver a sua palidez e punhos cerrados.Ora vamos protestou Eyvind. Ulf é teu irmão. Certamente.O teu problema é esse, Eyvind. Não ouves. Eu já te disse antes. Ulf despreza-me. Para ele não passo de um embaraço; nunca soube o que fazer de mim. Bem, agora resolveu o problema. Vendeu as terras do meu pai, todas, não pensou na minha parte e vai para onde nunca mais se terá de lembrar que tem um irmão. Limpinho. Só falta uma pequena coisa.Não gosto de te ouvir falar assim disse Eyvind. Deves estar errado. Já falaste com Ulf acerca desse assunto? Ele deve ter tomado algumas providências no que te diz respeito.Tal como eu disse. A voz de Somerled era, agora, mais tensa, ameaçando fugir do seu controlo. Tu julgas os homens por ti. Isso é pouco inteligente, Eyvind. Ainda um dia te metes em sarilhos por causa disso.Eyvind respirou fundo.Somerled? tentou ele.O que é? A voz de Somerled parecia um chicote.Tens a certeza de que não te estás a precipitar só por estares zangado com Ulf? Eu pensava... pensei que talvez... bem, com o casamento, tu sabes...Pensar não é contigo, Eyvind. Nunca tiveste talento para isso. Que queres dizer? Achas que tenho ciúmes?Pelo menos, Somerled falava, se bem que a conversa fosse um pouco como andar em cima de brasas. Era sempre assim quando ficava preocupado. A sua maneira de lidar com a dor era ripostar, usar a língua como arma. Ser amigo dele, estar perto em ocasiões problemáticas, era um convite à dor. Ajudar Somerled era uma espécie de batalha muito especial.A mim, parece-me que te foste afeiçoando a Margaret e que as festividades de hoje te deixaram abalado.Afeiçoar. Era uma boa tentativa para parecer sarcástico.A mim, parece-me que terias gostado de ficar com ela para ti. Ela gosta de ti; ambos têm muita coisa em comum. Imagino que isso ainda te dói mais.Se fosse a ti, continuava, já que decidiste dizer-me como sou, qual é a minha maneira de pensar. Estavas à espera que eu sugerisse que Margaret deveria escolher um homem cuja única herança é a sua capacidade mental? Ulf é o primogénito e é parente do Jarl. É rico. Está a construir um navio. Ulf tem esperanças e sonhos; os homens falam dele com respeito. A afeição não chega para um casamento, Eyvind. Pensaria muito mal de Margaret se ela me escolhesse, porque seria um acto de loucura.
Seguiu-se um silêncio. Era como se os anos não se tivessem passado e estivessem de novo juntos nos bosques, na imensidão das trevas. Ninguém se interessa, dissera Somerled. Ninguém se interessa pelo que me acontece.Tu tinhas altas e nobres aspirações disse Eyvind em voz baixa. Impressionaste-me, de tal maneira acreditavas em ti próprio. Um rapaz que queria ser rei. Quando disseste isso pela primeira vez, fiquei chocado. No entanto, convenceste-me que seria assim. Eu continuo a ver essa força e acho que Margaret também vê. Ulf magoou-te e fez-te zangar. Mas continuas a ter amigos, Somerled e ainda tens a vida toda pela frente. És inteligente e capaz; por vezes, parece-me que te moves como o luar, rápido e subtil demais para poderes ser seguido. Dizes que Ulf tem esperanças e sonhos. E os teus sonhos?Para o meu irmão, esta viagem é um recomeço. O tom de Somerled era sem vida. Para mim, representa uma coisa muito diferente: o repúdio final por parte da minha família. Desculpa se não sou capaz de ter confiança no meu futuro. O rapaz cuspiu para o chão, para o espaço entre os seus pés.Talvez estejamos a ser demasiado solenes disse Eyvind um pouco cansado. Queres vir até ao salão comigo? Quanto tudo o mais falha, podemos procurar o esquecimento numa boa cerveja.Falaste como um verdadeiro Pele-de-Lobo disse Somerled. E qual é o acto de generosidade que se segue? Tencionas partilhar a tua puta comigo, para que eu consiga encontrar consolo entre as pernas dela?Eyvind fez um grande esforço para não lhe bater. Pôs-se de pé, incapaz de dizer fosse o que fosse devido à ira e afastou-se na direcção da casa. Maldito Somerled; não merecia o trabalho.Eyvind?O jovem parou, mas não se virou.Eu estava a brincar. Vamos embora, eu tomo uma bebida contigo.Às vezes és muito chato grunhiu Eyvind.Desculpa. Somerled passou-lhe uma mão pela face. Mas tu também te prestas, às vezes. E agora vamos beber uma cerveja, está bem? Foi a melhor sugestão que ouvi em toda a noite.
Em breve se tornou evidente que Somerled tinha uma certa razão acerca do irmão. Questionado acerca das providências que tomara, para com Somerled, Ulf retorquiu secamente que tinha sido posta de parte uma determinada quantia de prata, suficiente para ajudar o rapaz a pôr-se de pé, por assim dizer. Quando lhe perguntaram se o seu irmão seria incluído na expedição, Ulf respondeu que não. Somerled não era pessoa para viagens ou saques, desafios ou privações. Sempre preferira a corte; preferia fazer caracteres rúnicos e poemas a viajar pelo oceano em busca de novos territórios. Ele que ficasse na corte e que fizesse vida como skald, ou homem de leis, já que era capaz de fazer ambas as coisas. E, se se cansasse de Rogaland, os fundos que estavam à sua disposição permitir-lhe-iam viajar, de certo modo. Os Jarl e os chefes de guerra do norte não recebiam bem os homens de saber? Somerled sair-se-ia bem. Desse modo, Ulf tornou claro que o assunto estava encerrado e virou-se para o assunto mais urgente que tinha em mente: a construção do navio.O Jarl Magnus percebera rapidamente a sabedoria da oferta de Ulf quanto a um porto de abrigo em mar aberto e aprovara a aventura do seu primo. Talvez não tivesse outra alternativa: a visão de Ulf incendiara a imaginação de muitos homens de todos os cantos de Rogaland, mais do que os que a expedição poderia, razoavelmente, incluir. Magnus comentara que Ulf era um estratega impressionante e que a sua habilidade para tornar realidade o seu sonho era verdadeiramente inspiradora. A frota partiria com a bênção e o apoio financeiro de Magnus, assim como um determinado número dos seus súbditos e o devido complemento de guerreiros.
O trabalho começou. A madeira veio do norte, a maior parte já preparada, reflectindo o talento de Ulf para correr riscos calculados. Apenas os carvalhos mais velhos poderiam providenciar as peças maciças necessárias para a quilha e para o mastro. A madeira estava bem amadurecida e elástica por ter estado armazenada em água parada. Como complemento desses gigantes da floresta, havia muitos troncos de tamanho mais pequeno e assim que foram descarregados os construtores de Ulf começaram a instruir um verdadeiro exército de operários, tanto homens livres como escravos, no uso delicado do machado e da enxó, para que as pranchas ficassem suavemente curvas, fortes e elásticas. As pranchas do convés eram de pinho: não seriam pregadas, seriam deixadas livres para poderem ser erguidas em caso de escoadouro ou armazenamento. Os homens calafetaram-nas com lã e crina de cavalo; outros trabalhavam nos remos, a madeira de pinho graciosamente afilada, graduada, para que entrassem todos na água ao mesmo tempo, ao longo do flanco do navio. Foi um trabalho que durou todo o Inverno. As velas foram confeccionadas às riscas vermelhas e brancas e um mestre-carpinteiro passou longas horas a trabalhar um grande tronco de carvalho, esculpindo a cabeça de dragão que ornamentaria a proa. Os aprendizes de carpinteiro esculpiram uma bela cabeça de águia no leme.
A medida que a grande tarefa se ia desenvolvendo, até os mais cépticos da corte do Jarl Magnus iam ficando cada vez mais fascinados. O navio ultrapassava tudo o que tinham visto até então. Era maciço como uma grande baleia, mas liso como uma foca. Ulf deu-lhe o nome de Dragão Dourado.
Tinha quinze bancos; seria necessária uma tripulação de trinta remadores e mais uns cinco ou seis para desempenhar uma multiplicidade de outras tarefas, como baldear água, manejar as velas, repelir atacantes. E precisariam de uma tripulação para o knarr, que transportaria as mulheres e as crianças, os escravos, o gado e a maior parte das provisões. Ulf via o grande barco crescer, prancha curva após prancha curva, as entradas para os remos cobertas por pequenas tampas redondas, cada uma delas com o seu pequeno motivo esculpido, porque os dois especialistas naquele campo gostavam de acrescentar o seu toque pessoal. Alguns eram caracteres rúnicos; um navio como aquele tinha de ser reconhecido pelos deuses de quem dependia em mar aberto. Mas também havia animais pequenos, um cão, um mocho, um castor; e uma ou duas esculturas de homens e mulheres que... como dizer?, brincavam, por assim dizer. Os artesãos esperavam que não fossem uma distracção maior para os remadores.
Houve trabalho para muita gente naquele Inverno, desde os ferreiros que fabricavam cravos e pregos às mulheres que teciam as raízes de abeto que ligariam as pranchas do casco ao esqueleto. Aquele navio navegaria por mares agitados, tremeria, daria de si e aguentar-se-ia face ao abraço terrível da tempestade. Acima da linha de água, utilizaram pregos.
Chegou a ocasião em que o Dragão Dourado ficou quase pronto. Apareceu uma equipa de homens com tintas brilhantes, que transformaram a figura selvagem numa obra de arte de vermelhos e amarelos, a crista e os olhos pintalgados de dourado; o remo recebeu uma decoração semelhante e um belo conjunto de escudos foi preparado para condizer, se bem que estes adornariam apenas a amurada quando o barco estivesse parado; quando em mar aberto, seriam retirados por uma questão de segurança. Ulf mandou um homem em busca de peixe seco, barris de queijo, bilhas de óleo e sacos de nozes e maçãs. Havia um cheiro constante a pão, pão escuro, que se aguentaria um certo tempo. Ulf mandou outro homem ver o gado que comprara. Custava a acreditar, mas a Primavera estava à porta e em breve a expedição estaria pronta para partir.
O knarr chegou, um barco desajeitado, pesadão, construído para ser robusto. Era capaz de velejar longas distâncias só à vela, disse o mestre a Ulf enquanto inspeccionavam o navio no ancoradouro de Freyrsfjord. Necessitava de uma pequena tripulação e isso já ele tinha, porque todos os homens se tinham oferecido como voluntários para a viagem desde que o pagamento fosse bom. Era melhor levar o barco com a sua tripulação, aconselhou o mestre, já que os homens conheciam melhor o knarr o que um marido conhece a mulher. Mulheres e crianças? Claro, também podia levá-las, se bem que não fosse confortável. Gado? Teriam de falar nesse assunto. Quanto ao pagamento...
Eyvind estava junto à linha de água, ajudando a colocar o mastro novo no seu lugar. A tripulação do Knarr fora para terra; encontrariam alojamento na aldeia. Entre eles ia um homem que lhe parecia familiar, se bem que Eyvind não soubesse exactamente de onde. Tinha feições largas e uma barba tão vermelha como o cabelo; tinha um olhar duro, um olhar de homem sempre pronto a encontrar inimigos pela frente. No entanto... no entanto, a memória de Eyvind dizia-lhe que era um tipo de rosto franco e amigável. Pensou... pensou...Sigurd! chamou Eyvind, agora já com a certeza. Sigurd Sveinsson! Que te traz ao sul?O homem de cabelos vermelhos virou-se lentamente para olhar para ele. Não houve sinal de reconhecimento, nem um piscar de olhos. No entanto, quando mais Eyvind olhava, mais certeza tinha.Já não te lembras de mim? brincou ele. Sou Eyvind Hallvardsson, o mesmo Eyvind que cresceu contigo. Lutámos muitas vezes um com o outro e atravessámos Pescoço de Serpente a nado. É bom ver-te. Nunca mais soubemos de ti depois de teres deixado a casa da minha mãe.O homem olhou para ele com um olhar cautelosamente inexpressivo.Deves estar enganado disse ele, e foi-se embora.Mais tarde, Eyvind perguntou a um outro membro da tripulação do knarr quem era o homem, porque achava que não se tinha enganado. O homem riu-se.Esse? Só responde pelo nome de Cabeça-de-Fogo e por várias razões. Não te queiras cruzar com o homem quando ele está com os copos. Por que perguntas?Por nada disse Eyvind. Lembra-me alguém que conheci em tempos, mais nada. Um homem lá da terra.Não sabia que o Cabeça-de-Fogo tinha uma terra de origem grunhiu o homem. Há muito tempo que está connosco. Há dois ou três anos, pelo menos. É um homem esquisito. Mas é bom trabalhador. Forte.Eyvind não fez mais nenhum comentário, apesar de achar que estava certo. Porém, se Sigurd não queria reconhecê-lo, era assunto dele. Entretanto, tinha de se preocupar com Somerled. Somerled andava a comportar-se de modo estranho. Parecia ter abandonado os jogos, a poesia e a música e podia ser visto a andar de um lado para o outro nos salões. Observava muitas vezes o irmão, ou a mulher do irmão com um olhar que enchia Eyvind de mal-estar.Antes de os barcos partirem, Eirik foi a Hammarsby despedir-se da mãe. Achando que era tempo de Somerled se afastar um pouco da corte, Eyvind sugeriu que fossem também os dois e Somerled concordou como um homem que se está nas tintas.
A propriedade parecia diferente, mais pequena. A sua mãe tinha brancas nos cabelos louros. Eirik cumprimentou a escrava, Oksana, com um beijo nos lábios em frente de toda a gente e foi para dentro com uma criança, de cabelos muito louros aos ombros e mais duas agarrando-lhe as mãos, enquanto Oksana levava o bebé mais novo. Muita coisa mudara. Halla casara-se e fora-se embora. Thorgerd ainda estava lá, muito gorda, mexendo em panelas e potes e olhando para Eyvind por baixo das pestanas.Não ficaram muito tempo. No último dia, Eyvind e Somerled foram até ao bosque sob um céu baixo e encontraram a árvore-casa que tinham feito num dia de Verão, há muito tempo. Continuava firme, apesar de algo ter feito ninho num dos cantos e as cordas terem começado a apodrecer. No tronco do grande carvalho, os caracteres rúnicos que Somerled gravara continuavam tão nítidos como no dia em que tinham sido feitos.Dois irmãos fizeram esta casa disse Eyvind. Estás a ver? Ainda me lembro. Somerled gravou estes caracteres rúnicos. E aqui, por baixo, o meu nome: Eyvind.Somerled acenou com a cabeça.Sentir-te-ias felizperguntou ele se isto fosse a única coisa deixada por ti para as pessoas se lembrarem de ti? Umas poucas de marcas numa árvore, o único sinal da tua passagem por este mundo?Eyvind olhou para ele, não muito certo de ter compreendido.Não, claro que não disse ele. Espero ser recordado, pelo menos, como um homem corajoso, um homem que serviu Thor e lutou pelo Jarl melhor que soube e pôde. Gostaria de ser recordado por isso. E tu?Somerled não disse nada. Olhou em frente com uma expressão indecifrável.Subitamente, Eyvind ficou impaciente.Pelos ossos de Odin, Somerled disse ele. O que é que tu queres? Agradar ao teu irmão? Ir nesta viagem com ele? Esquecê-lo e seguir o teu caminho? Uma coisa é certa: perdeste a vontade que tinhas quando eras rapaz, quando nos sentámos aqui os dois e tu me ajudaste a desenhar o meu nome na árvore. Nessa altura, pensava que eras um homem capaz de fazer fosse o que fosse e tu tornaste bem claro aquilo que querias ser. Mas, agora, pareces-me... perdido. O fluxo de palavras parou. Eyvind esperou pela resposta mordaz.
Somerled dir-lhe-ia, sem dúvida, que parasse de pensar, já que não era o seu forte. Mas Somerled ficou em silêncio.Somerled? chamou Eyvind após uns momentos. Espero que não te tenha ofendido. Eu só te quero ajudar, se puder.Não podes. Ninguém pode. Como te hei-de explicar? Ulf não quer que eu vá. Quer ver-se livre de mim. E tem razão. Eu não gosto de descobertas, não gosto de apanhar frio nem de ficar molhado, só a ideia de viver num posto avançado, rodeado de selvagens, deixa-me doente. Mas a viagem do meu irmão foi conseguida à custa do que é meu. Eu devia ir. Ele deve-me isso.Duvido que ele saiba que tu queres disse Eyvind cuidadosamente. Já lhe perguntaste?Não preciso de lhe perguntar. Ele não me leva. Eyvind pensou por um momento.E Margaret? tentou ele. Ela podia falar com ele em teu nome?...Ainda não desci ao ponto de precisar de uma mulher para defender a minha causa cortou Somerled. Além disso, não vale a pena. Ulf deixou claro que eu devo ficar para trás. Os laços familiares não significam nada para ele.Somerled estava a esgravatar o tronco da árvore com a sua faca. A imagem de um pequeno navio apareceu por baixo dos caracteres rúnicos: uma vela listada enfunada ao vento, os remos movendo-se como um só. Eyvind olhou e não disse nada.De manhã abandonaram Hammarsby e regressaram à corte. Eirik não estava muito alegre e Eyvind perguntou ao irmão o que se passava.Suponho que tenho de te dizer disse Eirik enquanto os cavalos prosseguiam o seu caminho sob os pinheiros. Esperava persuadir Oksana a vir comigo para as ilhas. Ela e as crianças.Persuadir? ecoou Eyvind. Por que é que não lhe disseste, apenas? Ela é uma escrava, não é?A boca de Eirik apertou-se.Essas palavras reflectem vistas estreitas disse ele. Um homem, ou uma mulher, tornam-se escravos apenas por estarem no sítio errado na ocasião errada. Um momento de azar, mais nada. Em casa dela, em Novgorod, Oksana era filha de um nobre. Perguntei-lhe se queria casar comigo, há quatro anos.
Eyvind olhou para ele.Casar? perguntou ele. Nesse caso, por que é que...?Oksana é uma mulher orgulhosa. Está determinada a seguir o seu próprio caminho, mais nada. Primeiro, quer ganhar a liberdade com o seu trabalho; sem concessões, tornou isso bem claro, não só à mãe, mas também a mim. Só então concordará em casar. Depois, diz ela, se a quiser levar na viagem, é comigo. Acontece que ela gosta de viver na propriedade e, neste momento, faz falta à mãe; é mais uma filha do que uma escrava. E pronto.Portanto, não casa contigo pensou Somerled em voz alta. Mas isso pouco importa. Ela não se importa de ir para a cama contigo, a julgar pelo bando de pequenos guerreiros que correram para te receber. Por que hás-de amarrar-te quando podes ter o que queres sem qualquer obrigação?Eirik cerrou o maxilar, ergueu os ombros por baixo da pele de lobo e prosseguiu o seu caminho.Começo a perceber por que razão Ulf não te pode ver disse ele.Eyvind mudou rapidamente de assunto.O Jarl não vai ficar nada satisfeito por ver tantos dos seus guerreiros irem-se embora, talvez para sempre observou ele. Dizem que Thord não regressa; e Grim anda a dizer que é capaz de lá ficar para sempre. E Hakon. Mas isso é diferente.Eirik não replicou. Era do conhecimento geral que a audição de Hakon já não era a mesma desde o golpe que levara na cabeça naquele encontro com os homens da Jutlândia, há mais de três anos. Ele continuava a lutar bem; desempenhava o seu papel em cada batalha, firme na sua obediência a Thor. Ninguém, nem mesmo o Jarl Magnus, estava ao corrente da cobertura que os outros lhe faziam, à medida que os seus ouvidos iam, gradualmente, perdendo a sua capacidade, assim como a sua confiança. Todos eles se sentiam satisfeitos por a empresa de Ulf lhe permitir sair com dignidade. Talvez o próprio Thor tivesse dado uma mãozinha como recompensa pelos seus leais serviços.Uma mulher jovem, uma quinta, um bebé chorão, ou dois pensou Eirik em voz alta. Não é um futuro nada mau.A mim parece-me mais uma vida de symbie observou Somerled. Puro tédio. Que espécie de homem prefere desperdiçar a vida assim?
Eirik olhou para ele.Hakon é um grande guerreiro disse ele ameaçadoramente e um grande amigo. A sua escolha não foi fácil, mas foi a melhor. Não subestimes os que pensam com simplicidade, Somerled. Um dia, podes meter-te em sarilhos por causa disso.Somerled olhou para ele de olhos semicerrados, mas não disse nada. Talvez até ele soubesse que era melhor não provocar um Pele-de-Lobo.As provisões chegaram e foram transportadas para o knarr. Chegou o gado: um carneiro e duas ovelhas, uma cesta de galinhas e outra de gansos, que mantinham um coro contínuo de grasnares e não deixavam ninguém dormir. Também um belo touro, de longos cornos, peludo e um par de vacas de olhos sonhadores. Estes só entrariam a bordo no dia do embarque. Os homens vieram das fazendas com as respectivas mulheres, crianças e escravos seleccionados: a aldeia abarrotava de gente. Pensando bem, tudo boa gente.Chegou o dia em que o último escudo foi pendurado no flanco do Dragão Dourado e o navio foi lançado à água para o seu primeiro teste. Os seus remos cantaram na água; o barco correu à frente do vento, rápido e gracioso, como uma grande ave marinha. Ulf pronunciou-se satisfeito e quase deixou sair um sorriso de satisfação das suas feições geralmente sóbrias. Em seguida, o Jarl Magnus promoveu uma festa para comemorar o fim dos trabalhos e para desejar as maiores felicidades ao seu primo. Da parte de tarde houve jogos: lutas de cavalos, luta livre, corridas e até um pouco de Campo de Batalha, na qual Eyvind chefiou uma equipa e Eirik a outra. Era difícil jogar como devia ser quando era necessário evitar ferimentos sérios na oposição. Vários homens de ambas equipas iriam na expedição, no fim de contas, e não o poderiam fazer com o crânio rachado, o queixo partido ou uma anca deslocada. À força de negociações, Eirik e Eyvind guiaram as suas equipas num assalto que era mais espectacular do que sangrento. Asseguraram-se de que haveria vários, já que era preciso entreter a multidão. Houve grandes saltos e fintas, um ou dois saltos mortais e uns golpes letais calculados para falhar por um triz. As mulheres gritavam; as crianças guinchavam; os homens berravam instruções. A equipa de Eyvind ganhou, segundo a multidão. Limpando o suor do rosto, o jovem avistou Signe, batendo palmas com os restantes e endereçando-lhe uma pequena vénia. Quando se endireitou já ela tinha desaparecido da vista.Antes do pôr do Sol, o sacerdote do Jarl Magnus celebrou o ritual para a segurança da frota. Junto da água, onde o knarr estava fundeado e o grande navio atracado, foi degolado um boi branco. O sangue encheu muitas malgas. O sacerdote era um ancião e movia-se com dificuldade no seu longo traje de lã, mas as suas mãos eram suficientemente ágeis ao aspergir o sangue da proa à popa e da quilha à amurada dos dois orgulhosos navios. Foram queimadas ervas e uma grinalda de folhas de carvalho foi colocada em redor do pescoço da grande criatura que adornava a proa do Dragão Dourado. Eyvind sentiu um frémito de excitação quando o sacerdote olhou para o céu cada vez mais escuro. Os olhos do ancião estavam baços da idade, mas o homem parecia ver a grande distância.Poderoso Thor! Deus da tormenta, deus da guerra, deus do céu, nós te saudamos! Permite que o bom tempo e os mares calmos acolham estes viajantes, que um vento suave sopre e os leve em segurança para o outro lado do oceano. Thor, forte entre os mais fortes pescadores, não permitas que os monstros do mar ameacem os nossos navios, as pessoas e os nossos bens. Pedimos a tua bênção, matador de serpentes!Não houve a resposta de um trovão; nenhum raio riscou o céu. Apenas se ouvia a suave ondulação da água nas pedras e o queixume do gado que estava amarrado ali perto, esperando que o levassem para bordo do knarr. No entanto, o sacerdote pareceu satisfeito. Estendeu uma mão enrugada e percorreu os dedos ao longo da madeira do flanco do navio, fazendo uma pausa quando tocou no ponto em que a quilha subia na direcção da proa. Ali estavam inscritos uns caracteres rúnicos, rodopiando como uma serpente pela madeira de carvalho acima, e entre eles havia minúsculas imagens de homens, deuses e animais.Ele vai com a bênção de Thor, de Odin e de Freyr disse o anciãoporque vai para uma boa terra, para lá do mar, e os homens que viajam nele devem, necessariamente, ser marinheiros, guerreiros e camponeses. Que Thor te leve, são e salvo, através dos perigos das profundezas. Que Odin desbarate os teus inimigos e dê sabedoria aos teus líderes. Que Freyr proteja as tuas colheitas, o teu gado e te garanta tempos de abundância. Que a fada Freya, sua irmã, garanta às tuas mulheres a paz e lhes dê filhos saudáveis. Segue, com coragem, para o teu novo mundo.A frota ficou pronta para partir. O gado e as ovelhas, as galinhas e os patos, os homens, as mulheres e as crianças embarcariam no dia seguinte e quando o Sol estivesse bem alto no céu, os navios estariam a deslizar por entre as pequenas ilhas que formavam o recife, a caminho do alto mar.O ritual fora presenciado por uma grande multidão. Margaret estava ao lado de Ulf, a imagem de uma boa esposa, os seus olhos escuros vigilantes. Falou com o marido uma ou duas vezes e ele inclinou polidamente a cabeça para ouvir. E Eyvind viu aquele homem de novo, aquele a quem chamavam Cabeça-de-Fogo, entre a tripulação do knarr. Eram um grupo de homens de aspecto duro, mas as pessoas diziam que eles eram os melhores, testados sob todas as condições. Tinha a certeza que era Sigurd; o homem estava a olhar para Somerled, que estava, de boca apertada e muito pálido, na última fila das pessoas da casa do jarl. Havia uma expressão no rosto de Cabeça-de-Fogo que Eyvind achava que já vira antes, nos montes por cima da casa da sua mãe, quando Sigurd estivera a rachar lenha como se estivesse a aplicar um castigo mortal. Somerled olhou para esse lado e, subitamente, Cabeça-de-Fogo, desviando o olhar, começou a falar com um dos homens da tripulação. Um pequeno sorriso, muito pequeno, apareceu no rosto de Somerled e desapareceu.Naquela noite a festa foi longa e calorosa e o Jarl Magnus foi generoso nos seus louvores e presentes. Relutantemente, concedeu a Hakon a dispensa do seu serviço. Deu ao seu guerreiro uma bela capa de pele de castor e uma espada cuja lâmina brilhou à luz das velas e archotes como o Sol sobre uma cascata. Havia outros que tencionavam ficar nas Ilhas Brilhantes e todos receberam ricos presentes: trajes, capas, adagas ou machados. Deu a Ulf um par de enormes cães de caça. Por trás do Jarl, a tripulação do knarr trocava olhares e sorrisos: mais carga para transportar. Thord, que servira cinco anos como Pele-de-Lobo e tinha uma grande cicatriz a atravessar-lhe o rosto para o provar, foi presenteado com uma bela escrava de pele escura com cabelos até à cintura e uns olhos tão escuros como a meia-noite. Thord não conseguiu evitar um sorriso nas feições cheias de cicatrizes e a rapariga não parecia nada preocupada com a perspectiva de uma longa viagem oceânica, ou com a companhia de um homem a quem faltavam tantos dentes. É em tais viagens para terras novas que as escravas se transformam em esposas; que os servos se transformam em homens e mulheres livres. Talvez a rapariga pressentisse isso, porque os seus olhos escuros faiscaram de excitação quando se foi colocar ao lado do Pele-de-Lobo. Era sabido que Thord tencionava agarrar o novo lugar e ficar nele se lhe agradasse.
Margaret recebeu um tecido do melhor linho, um colar duplo de contas de âmbar e um conjunto de peças de jogo feitas de osso de baleia, e com uma pequena orla de prata embutida. A jovem sorriu polidamente, inclinou a cabeça respeitosamente e agradeceu ao Jarl com algumas palavras. Eyvind pôde ver que o seu sobrolho estava ligeiramente franzido; viu o seu olhar dirigir-se para Somerled, que estava sentado no seu lugar habitual, escondido pelo pilar. Então, sentou-se de novo junto do marido com as mãos no colo.
Muito bem disse Magnus expansivamente, diverti-me muito, hoje, com óptimos desportos e tive oportunidade de ver como o meu Pele-de-Lobo mais novo se sai tão bem na arena de jogos como no campo de batalha. Prometi uma coisa ao rapaz há muito tempo e tenciono honrar essa promessa hoje. Avança, Eyvind, deixa que te vejam.
Eyvind recordou-se de algo acerca de uma recompensa e tinha ficado de pensar no que queria, mas varrera-se-lhe da mente por completo. Tinha de arranjar algo rapidamente, ou o Jarl ficaria ofendido. Levantou-se e avançou para se postar em frente de Magnus, desejando não se sentir sempre desajeitado em tais ocasiões, como se as pessoas finas da corte o estivessem a julgar de algum modo. Era capaz de combater e matar muitos homens; era capaz de ganhar torneios, caçar veados, javalis e lobos, mas não conseguira dominar a arte de encontrar as palavras certas em tais ocasiões.
Meu senhor.
Então Eyvind? Saíste-te esplendidamente hoje, tal como o teu irmão. Tenho um presente para ti, uma recompensa pela vitória desta tarde.
Obrigado meu senhor. Eyvind estava aliviado; parecia que o presente já estava escolhido e tudo o que tinha a fazer era aceitar polidamente e sentar-se de novo.
Usa isto na tua próxima batalha disse Magnus e o seu servo mais velho apareceu com um espantoso elmo trabalhado, a fronte decorada com figuras de cavalos e guerreiros, os seus painéis triangulares erguendo-se até fazerem um pequeno espigão no topo. Eyvind já imaginava como usaria aquilo num combate corpo-a-corpo. As protecções dos olhos eram fortes e bem-feitas. Mas, o mais notável, era a cortina fina de elos entrançados, feitos de metal batido, que caía da base do elmo e tapava o rosto, as orelhas e o pescoço. Aquele elmo era de uma categoria superior, mesmo para o próprio Jarl.Tu és um Pele-de-Lobo disse Magnus com um sorriso e um Pele-de-Lobo precisa de uma armadura. Vais para o combate vestido com o sopro dos deuses e escudado pelas suas mãos. No entanto, quero que uses isto. A tua espécie não é inteiramente imune aos golpes e tu, especialmente, que arriscas tudo. Que este presente nos garanta mais algumas estações na tua companhia, jovem Eyvind.Obrigado, meu senhor. Na verdade, é um presente generoso. Óptimo, tinha acabado; não precisava de dizer mais nada, podia regressar para o seu lugar junto de Eirik.Calma, meu amigo. Eyvind parou.O elmo é a tua recompensa pelo esforço de hoje. Para além disso, temos um pequeno negócio inacabado, creio. Já te esqueceste da batalha que travámos e da coragem que mostraste contra os conspiradores que destruímos a leste de Freyrsfjord? Prometi-te, então, uma recompensa e vais tê-la.Meu senhor... não é necessário...Ah... não me digas que o elmo é suficiente, rapaz, porque não aceito. Que não se espalhe a história de que Magnus não recompensa a lealdade, ou não cumpre as suas promessas. Então, disse que poderias escolher a tua própria recompensa; podes fazê-lo agora.Para seu aborrecimento, Eyvind sentiu-se corar. Podia ver Eirik a sorrir para seu desconforto e Margaret olhando para ele intensamente, como se tentasse fazer chegar-lhe uma mensagem. Algures, nas suas costas, na sombra, estava Somerled; Somerled que, parecia, fora afastado pela família não uma, mas duas vezes, que não tinha um lar para onde ir, nenhum irmão com quem beber, nenhuma mulher para lhe dar as boas-vindas com os seus braços e ouvir os seus segredos. E então, as palavras de que Eyvind necessitava saíram-lhe sem qualquer dificuldade.Meu senhor Jarl, tomei o assunto em consideração como me pediste. Tu és o mais generosos dos líderes e eu espero que não aches o meu pedido estranho, ou inapropriado. Eu sei que esperas que eu te peça um cavalo, ou uma arma, ou uma bela capa de pele, talvez até uma bela escrava como a que deste ao meu amigo Thord.
As palavras do jovem foram recebidas com uma risada geral.
Mas? perguntou Magnus de olhar pensativo.
Meu senhor, não desejo nada para mim, antes para o meu amigo Somerled, o teu jovem primo.
A expressão de Magnus não mudou, mas Eyvind viu que Ulf ficara tenso, como se soubesse o que vinha a seguir, e os olhos de Margaret semicerraram-se.
Meu senhor continuou Eyvind Somerled é um homem orgulhoso e não pedirá nada para si próprio. Ele sempre desejou seguir o seu próprio caminho sem patronos, ou favores e, na verdade, fará isso mesmo seja qual for a tua resposta. Mas Somerled só deseja um lugar a bordo do navio que o seu irmão construiu e a hipótese de acompanhar esta expedição até às novas costas. Nessas ilhas a oeste, um estudioso tão promissor encontrará, certamente, muito onde aplicar os seus talentos e deixará nelas a sua marca. Só honrará o seu patrono em Rogaland. Peço-te que influencies o teu primo, Ulf, para que inclua o seu irmão entre aqueles que partem para esta viagem. Estou certo que Ulf não se arrependerá dessa decisão, porque Somerled tem muito para dar.
Seguiu-se um pequeno silêncio. O Jarl não parecia surpreendido. Estudou o rosto de Eyvind como se lhe quisesse ler as intenções e ficou aparentemente satisfeito.
Bem dito, jovem Pele-de-Lobo disse ele finalmente. Tu tens um espírito generoso. Um homem pode bem ficar grato por ter um amigo tão leal. E eu devo conceder esse pedido, porque dei a minha palavra. Que dizes, primo Ulf?
Ulf ficara extremamente pálido. Não podia recusar um pedido do Jarl, especialmente quando a sua expedição era largamente dependente do seu patronato.
Farei como o meu senhor deseja, claro disse ele, a expressão traindo as palavras polidas, porque tinha o olhar de um homem que enfrenta a espada do inimigo. Isto é uma surpresa para mim. Não fazia ideia dos desejos do meu irmão, nem acreditava que ele pudesse contribuir com algo de valor para esta aventura.
Uma colónia nova precisa de homens cultos. Havia um tom de alguma reprovação na voz de Magnus. Anda lá, leva o rapaz contigo. Pode ser que lhe faça bem.
Ulf acenou secamente com a cabeça. Os lábios de Margaret curvaram-se num sorriso débil. Eyvind fez uma vénia e regressou ao seu lugar junto do irmão.
Para que é que fizeste isso, meu palerma? sibilou Eirik no momento em que ele se sentou.
Que queres dizer? sussurrou Eyvind.
Sabes muito bem que Ulf não quer que ele vá. O rapaz é uma pedra na bota dele. Eirik não estava a brincar; a sua expressão era severa.
Ele só precisa de uma oportunidade respondeu Eyvind. Precisa de saber que há alguém que se preocupa com ele. Se... O jovem calou-se quando o Jarl recomeçou a falar.
Levanta-te, jovem Somerled ordenou Magnus e, junto do pilar, Somerled pôs-se de pé, silencioso. O teu amigo é generoso e eu também sou ao conceder-lhe este presente altruísta, em vez das riquezas que gostaria de lhe dar pelos seus muitos actos de coragem. Certamente, desejarás agradecer-lhe.
E a ti também, meu senhor disse Somerled suavemente. Se parecia satisfeito, ou surpreendido com o que acabara de acontecer, fazia-o habilmente. Estou consciente de que o meu futuro depende da tua generosidade e sinto-me grato por isso, se bem que Eyvind tenha razão; se tiver de ser lembrado, espero que seja por ter sido bem sucedido nos meus talentos e não por chegar à vitória aos ombros de outros. Posso assegurar-te que não desperdiçarei a oportunidade que me dás hoje. Aproveitá-la-ei da melhor maneira. E desejo agradecer ao meu amigo. Eyvind não aceita presentes sem mais nem menos, já sabes isso. Ele é um homem modesto, sempre pronto a reconhecer as suas insuficiências nas questões intelectuais e a menosprezar a sua força noutras esferas. Meu senhor, peço-te que recompenses Eyvind, a sua generosidade e o seu carácter. Permite-lhe que venha connosco. Não para sempre apressou-se ele a acrescentar quando viu as sobrancelhas de Magnus franzirem-se não para sempre, porque sei como este jovem Pele-de-Lobo te é querido e como é vital para a tua força de ataque. Liberta-o apenas por uma estação. Ele provou ser teu guerreiro leal e meu amigo fiel. Não pediu qualquer favor especial, ou qualquer reconhecimento. Liberta-o do teu serviço por algum tempo e deixa-o ir nesta aventura através do mar e apoiar os homens de Rogaland contra os inimigos que possamos vir a encontrar. Antes das tempestades de Verão, ele pode regressar para junto de ti; estará de volta, certamente, a tempo do Outono viquingue. E que bela história trará para te contar.
Magnus emitiu um som que parecia o rufar de um tambor e que parecia de desaprovação.
Não sei disse ele. Eu não te devo favor nenhum, Somerled. Além disso, perco metade dos meus Pele-de-Lobo para o Verão que se aproxima e suspeito que nem todos regressarão. Posso ser generoso, mas não sou louco.
Eu sei que não, meu senhor concordou Somerled. Mas eu acho que se deve oferecer aos jovens experiências como esta. Uma pequena exposição a lugares distantes e a povos estranhos pode fortalecer os laços e a lealdade.
Eyvind não conseguia falar. O seu coração batia com toda a força. O jovem mordeu o lábio, desejando ouvir a resposta negativa do Jarl Magnus. Não tinha o menor desejo de ir parar a uma ilha maldita qualquer, nem ficar lá a lavrar os campos e a alimentar as galinhas. Era um guerreiro; o seu trabalho era ali, lutando as batalhas do Jarl e mantendo-o são e salvo. Como haveria Thor de o encontrar, tão longe? E que raio passara pela cabeça de Somerled para fazer tal pedido? Ainda bem que era o favorito do Jarl, ou acabaria por não ver Signe durante o Verão inteiro.
Meu senhor Jarl.
Eyvind pestanejou. O seu irmão Erik levantara-se e estava a falar.
Esta sugestão não é, claramente, do teu agrado e eu compreendo as razões para tal. Mas a ideia é boa. Depois da batalha no leste, na qual o meu irmão se portou tão bem, as tuas fronteiras ali ficaram mais seguras. A tua nova aliança com Thorvald, Braço de Ferro aqui presente é de grande ajuda no norte. Parece-me pouco provável que venhas a enfrentar uma ameaça séria antes de o Verão acabar. Os Pele-de-Lobo que ficam são suficientes para te guardarem e para lidarem com qualquer coisa que possa acontecer. Não te esqueças dos três jovens que treinámos e que estão ansiosos por mostrar as suas capacidades. O melhor deles será escolhido para ocupar o lugar de Hakon, quando regressarmos. Creio que poderás dispensar o meu irmão até ao mês das colheitas. A mudança far-lhe-á bem, eu olharei por ele e trá-lo-ei de volta são e salvo. Também não faço tenções de ficar lá para sempre.
Eyvind olhou para ele, mas Eirik não lhe devolveu o olhar.
Hum disse Magnus. Suponho que devemos permitir que o jovem guerreiro decida por si próprio. Que não se diga que o impedi. Que dizes, Eyvind?Não se podia dar uma resposta simples a uma pergunta daquelas.Meu senhor, sabes que não há nada que eu queira mais do que servir-te com o meu machado e a minha espada e seguir a vontade de Thor. Farei como mandares. Eyvind não podia ter encontrado melhores palavras para dizer que não queria ir.Tens lugar para mais um no teu navio, Ulf ? perguntou Magnus com um sorriso.Ulf não sorria.Eyvind é um valente guerreiro, tal como o irmão disse ele. Não ponho qualquer objecção, se bem que me tenha surpreendido hoje.Muito bem disse Magnus. Não há nada que toque mais o coração de um homem do que uma demonstração de lealdade entre amigos. Estes dois jovens impressionaram-me: tão diferentes na aparência, nos talentos, no comportamento e, no entanto, tão preocupados um com o outro, que até parecem irmãos. Irão ambos; mas, Eyvind, quero que me prometas que ficarás apenas durante uma estação. Teremos trabalho para ti assim que as noites começarem a ficar maiores.Sim, meu senhor. O coração de Eyvind parecia de chumbo. Um Verão inteiro sem incursões, sem batalhas, um Verão inteiro sem Signe. Maldito Somerled, maldito Eirik. Quem é que lhes tinha dito que ele queria viajar?Nada de assentar e construir um lar com uma nativa rechonchuda qualquer brincou o Jarl.Não, meu senhor.As pessoas recomeçaram a conversar e Eyvind virou-se para o irmão com um ar furioso.Por que disseste aquilo? Já devias saber que eu não queria ir, não percebo por que disse Somerled aquilo, toda a gente sabe que eu quero ficar.Eirik sorriu sem alegria.Olha para Ulf disse ele em voz baixa. Aí tens a tua resposta. Foste tu que fizeste com que Somerled fosse convidado, quando o próprio irmão receava levá-lo. Se ele vai, também tu vais. Tenho um trabalho para ti, um trabalho que já fizeste antes.
Que trabalho? Eyvind observava Ulf; talvez aquele olhar comprimido nas suas feições fosse de medo, se bem que ele não conseguisse imaginar porquê.Manter o teu amigo afastado de sarilhos disse Eirik. E agora, toca a andar. Partimos de madrugada; é melhor ires despedir-te de uma certa dama. Vai ser uma longa separação, até às colheitas.As viagens não eram nada de novo para Eyvind. Não se sentia perturbado pelo movimento do navio sob os pés, ou como o mar entrava por todos os interstícios, incluindo botas e perneiras, túnicas, capas e capuzes, de modo que estava sempre molhado. Estava habituado à pele irritada, à comichão e ao constante mau cheiro. Não se importava de remar; os ventos eram instáveis nas águas abrigadas de Freyrsfjord e o progresso era lento só com a vela. O que tornaria a viagem interessante seria o que viria a seguir. Para lá do abrigo dos recifes já não seria possível agarrarem-se à linha de costa, acostando à noite para acampar, fazer uma fogueira e dormir com um conforto razoável dentro de uma tenda. Em vez disso, os navios avançariam para oceano aberto, na direcção de uma terra cuja existência era mais lenda do que realidade, mais história do que substância. A navegação seria feita por intuição, não por marcas visíveis; as vidas de todos os passageiros, tripulação e gado estariam dependentes da capacidade de Ulf para correr riscos e tomar as decisões certas. Uma tempestade, ou ventos contrários, ou um ataque inesperado poderia atirá-los para fora da rota e, se falhassem o seu destino, quem sabia o que havia entre aquelas terras e o fim do mundo? Ocorreu a Eyvind que Ulf era, na verdade, um homem de grande coragem e de grande visão, porque navegava apenas com um sonho como guia. Eyvind admirava muito isso, se bem que tivesse o cuidado de não expressar a sua opinião aos ouvidos de Somerled. No entanto, quando Ulf lhes disse que viajariam os dois no knarr, Eyvind não discutiu. Havia gado para cuidar, no fim de contas, e ele era bom com animais, já que tinha crescido numa fazenda. Além disso, com oito remos no knarre. uma tripulação de apenas dez homens, era evidente que a sua ajuda seria preciosa.Muitas pessoas se juntaram no ancoradouro para saudar a sua partida, mas Signe não apareceu. O seu adeus a Eyvind fora terno e secreto, a sua mensagem entregue mais pelo tacto do que por palavras. Fora uma coisa estranha; quase parecera a Eyvind mais um adeus do que um até à vista, apesar de o jovem ter assegurado a Signe que regressaria no Outono. Não dera ele a sua palavra ao Jarl?
Ainda antes de as águas abrigadas darem lugar às águas abertas, os passageiros começaram a enjoar. As mulheres agarravam-se à amurada vomitando o pequeno-almoço; as crianças, não conseguindo fazê-lo, vomitavam para cima do que lhes aparecia pela frente. A tripulação ignorava-as por completo, salvo para algumas ordens curtas para que saíssem da frente quando necessário. Era sua obrigação levar a carga para as ilhas, não servir de enfermeiras. As pessoas amontoavam-se nas amuradas do knarr com os embrulhos a seu lado. Os animais iam mais perto da popa, amarrados a anéis de ferro pregados no convés. Os cães de Ulf viajavam no navio, um pequeno privilégio. A carga ia em baixo e, por baixo dela, o knarr levava um lastro de pedras do rio. Devido a isso, balouçava mais do que o Dragão Dourado com as suas linhas suaves e muitos remos. Eyvind nunca viajara num barco de carga e perguntara a si próprio como conseguiriam mantê-lo à deriva, carregado como ia com o seu complemento de rostos pálidos. Mas o knarr surpreendeu-o. Em mar aberto, com vento de feição, avançava rápida e firmemente como uma pequena ave bem proporcionada, a vela quadrada mantendo-o numa rota fácil e estável. Quando muito precisavam de quatro remos, mas, geralmente, de nenhum. O Dragão Dourado, pelo contrário, parecia utilizar os remos e a vela ao mesmo tempo e tornou-se um desafio não avançar demasiado e perdê-lo de vista. A tripulação tinha experiência. Já tinha navegado até muito mais para sul do que Eyvind alguma vez navegara nas incursões de Magnus; já tinha transportado uma carga de presas de morsa e peles desde as costas francas até um centro comercial chamado Lundenwic, a um dia inteiro de jornada. Mas esta viagem era assustadora, mesmo para aqueles homens duros. Ninguém gostava da ideia de passar as noites no mar num barco cheio de crianças malcheirosas, mulheres trémulas e escravos inúteis, que só contribuíam para piorar as coisas.
Os sons formaram um padrão; as pranchas do navio rangiam como se o oceano testasse a sua força, a água batia-lhe nos flancos, a tripulação cantava canções brejeiras enquanto baldeava água, remava, trabalhava na vela, ia ao leme ou ao pau de vento de tesoura conforme as ordens gritadas pelo comandante, uns gritos ásperos e estranhos, parecidos com os de algumas grandes aves marinhas: Aaar-dap! Aaar-dan! lii-uei!
Todos aprenderam a encolher-se e a esquivar-se quando os ouviam, para não mergulharem num bocado de lona encharcada. E tinham de se manter afastados do ao pau de vento de tesoura, que era utilizado para ajustar a vela de maneira a aproveitar ao máximo o vento contrário.Tal como no navio, a cana-do-leme do knarr estava a estibordo; o homem do leme tinha braços de ferreiro e precisava de toda a sua força, porque aquilo podia saltar e puxar sob as violentas vagas, como se fosse um animal selvagem. O homem a quem chamavam Cabeça-de-Fogo, que não falava com ninguém senão com os seus camaradas da tripulação, parecia ser o mais capaz entre todos aqueles lobos do mar. Era ele que assumia o comando quando o comandante resolvia descansar um pouco. Por vezes, tomava conta do leme e era só então que Eyvind via algo parecido com uma certa paz nas pesadas feições do homem. Olhando em frente, para as vagas escuras enquanto mantinha o knarrna rota, os olhos de Cabeça-de-Fogo perdiam o seu olhar perigoso e pareciam, em vez disso, ver algo inteiramente diferente, algo que não estava no barco, ou no oceano, antes longe, num lugar que só ele podia ver.Se Eyvind cumpria o seu turno num remo, ajudava a acalmar o gado assustado e até distribuía pão escuro e maçãs pelos passageiros amontoados no convés da proa, Somerled também não estava ocioso. Em breve um outro membro da tripulação comentava que o irmão de lorde Ulf não era nada desajeitado com uma corda, que era capaz de fazer um nó tão bem como qualquer um deles e que não era qualquer filho de nobre que se levantava e dava uma ajuda, especialmente depois de ter estado debruçado da balaustrada, enjoado como uma pescada. Cabeça-de-Fogo não fazia qualquer comentário. Quando os homens da tripulação descansavam por turnos, Somerled sentava-se entre eles, ouvindo as suas histórias acerca de portos exóticos e ainda mais exóticas mulheres, rindo apreciadoramente e acrescentando algumas da sua própria lavra, que em breve punham os homens a rir a bandeiras despregadas. Era uma faceta de Somerled que Eyvind nunca vira e que lhe parecia um milagre, porque o seu amigo sempre se mantivera à parte, desdenhoso, quando entre gente trabalhadora.O vento amainou antes do anoitecer, o que agradou a toda a gente. A vela foi arreada, os remos recolhidos; foi lançada uma âncora flutuante, porque ali nem o mais comprido cabo era capaz de encontrar o fundo do mar. Foram acesas lanternas à proa e à popa e os homens montaram uma espécie de tenda para servir de abrigo. Não muito longe, na luz moribunda, a silhueta escura e comprida do Dragão Dourado podia ser vista cavalgando lentamente as ondas, as suas lanternas uns minúsculos pontos de luz movendo-se loucamente na escuridão misteriosa do oceano. Eyvind ficou a olhar enquanto as estrelas emergiam no céu nocturno, uma, depois duas e depois uma grande quantidade delas de um lado ao outro do mundo. O jovem sentiu a imensidão daquela extensão de água negra, um mar tão vasto que não podia ser avistada qualquer terra em qualquer direcção, nem que estivesse ali o homem com melhores olhos de toda a Noruega. Aqueles navios eram tão pequenos, tão frágeis, se bem que parecessem fortes e destemidos nas costas seguras de Freyrsfjord. A alvorada não ia apagar cada uma daquelas minúsculas estrelas que brilhavam agora de modo tão esplêndido no céu escuro como tinta por cima da sua cabeça? Talvez a mesma alvorada visse, também, extinguir-se a frágil aventura de Ulf, afundada por uma onda caprichosa, virada por uma súbita brecha provocada por uma baleia, ou desviada da rota por uma tempestade e atirada de encontro a um recife meio submerso. Talvez a sua carga humana, o seu líder, os seus guerreiros, a sua tripulação, mulheres e crianças inocentes perecessem, desaparecendo tão rapidamente como aquelas pequenas estrelas que desapareceriam com a chegada da luz. Pensamos que somos grandes, pensava Eyvind, corajosos e grandes. Mas, perante isto, somos como uma palha levada pelo vento, como bolhas de ar numa corrente. O pensamento não o assustou. Sentiu apenas uma grande calma e tranquilidade e ficou ali durante muito tempo a olhar para a noite cada vez mais escura, ao mesmo tempo que a tripulação e os passageiros se instalavam para dormir o melhor que podiam e dois homens ficavam de vigia.
O segundo dia trouxe um espesso cobertor de nuvens. No Dragão Dourado podia ser visto Ulf perscrutando as suas pedras solares, tentando marcar uma rota. Enquanto houvesse o mais pequeno espaço de céu azul, um homem, com as devidas qualidades, podia apanhar a luz do Sol nas profundezas cristalinas daquelas pedras, usando-as para encontrar o caminho. Ulf trouxera também corvos, mas não estava disposto a largá-los já, porque a frota ainda não se afastara o suficiente de Rogaland; as aves, simplesmente, voariam de regresso a casa. O verdadeiro teste seria dentro de um ou dois dias, se o vento continuasse de feição.
Alguns dos passageiros já se tinham habituado ao mar e entre eles estava uma criança muito viva, talvez de uns três anos de idade, um pequenote robusto com uma perigosa inclinação para a exploração. A sua mãe estava sempre prostrada, vomitando e resmungando; os outros tentavam refrear o gaiato, mas com o balanço do barco, a necessidade de se manterem afastados da tripulação e de atenderem aos que estavam doentes, não tinham uma tarefa facilitada. Havia uma rapariga, irmã do rapaz, uma rapariga de cabelos loiros de uns catorze anos, de feições doces e muito calada; afastava de vez em quando o pequeno de sarilhos com umas reprimendas em voz suave, mas era como ordenar ao vento que não soprasse, ou à maré que não subisse. Aquele rapazito daria um óptimo homem, se os deuses o deixassem chegar lá.
Por volta do meio-dia, a rapariga estava ocupada a tratar da mãe e a maior parte dos outros estava enrolada miseravelmente nos seus cobertores encharcados, tentando afastar um mundo que se tornara, de súbito, extremamente complicado. Eyvind acalmava o gado inquieto dando-lhe grão de um balde, quando viu o pequeno escalando o flanco do Knarr para se empoleirar, precariamente escarranchado, na amurada, a um cabelo de escorregar e cair na água gelada. Não havia ninguém perto do rapaz; a tripulação remava, ou estava ao leme, ou dormia e Cabeça-de-Fogo ia à popa vigiando o outro barco e gritando as necessárias ordens naquela estranha língua dos marinheiros: Aaar-dap! lii-uei! A criança baloiçava; as ondas subiam; dois membros da tripulação puseram-se em posição de mudar o pau de vento de tesoura. Assim que o fizessem, todo o navio estremeceria e viraria e até os que estavam no convés precisariam de se segurar para não serem atirados de um lado para o outro. Eyvind abriu a boca para gritar, mas os homens foram muito rápidos; o pau de vento de tesoura rodou deslocando a grande vela a estalar e o knarr trepidou e virou, obediente ao vento. O rapaz caiu e, rápido como uma flecha, um homem, que estivera escondido da vista porque estava deitado de lado, vomitando as últimas gotas de fel do seu torturado estômago, esticou-se para agarrar um pequeno braço, prendeu o próprio pé sob o rebordo que contornava as aberturas dos remos e torceu-se para puxar a sua presa que guinchava, antes que o vento e as ondas arrebatassem os dois para fora do navio num último abraço gelado. Eyvind correu através do convés inclinado e escorregadio, mas já outros tinham, também, visto Somerled com o pé preso no rebordo, a única coisa que o afastava, e ao rapaz, do abraço gelado do oceano. O vento cresceu, levando consigo os gritos da criança, como se fosse uma coisa de somenos importância. O rosto de Somerled estava da cor do queijo fresco, o maxilar cerrado e as mãos em redor do braço da criança tinham os nós dos dedos brancos. Não tinha força suficiente para puxar o rapaz para dentro e o seu pé começava a escorregar, a pele da bota começando a rasgar-se sob a pressão.Ajudem-me! gritava ele através dos dentes cerrados quando Eyvind chegou junto dele. Mais alto e mais forte do que Somerled, o jovem não teve dificuldade em esticar o braço e em agarrar a criança por baixo dos braços, puxando-o para dentro do navio. Os gritos do rapaz foram substituídos por soluços baixos; a irmã, de rosto cor de cinza, pegou nele com uns braços trémulos e começou a ralhar-lhe, ao mesmo tempo que umas lágrimas de alívio lhe molhavam os olhos.Estás bem? perguntou Eyvind quando Somerled baixou os braços e tirou o pé com extrema precaução, como se lhe estivesse a doer.Estou disse ele debilmente ou talvez não. Desculpa. E voltou a inclinar-se por cima da amurada, o seu estômago protestando de novo contra o movimento incessante do knarr. Levou algum tempo. Talvez esteja, por agora, até à próxima vez observou Somerled, endireitando-se e limpando a boca com a manga da camisa.O meu irmão deve estar louco. Quem faria isto voluntariamente?Então, olhou para cima e viu a rapariga na sua frente com a criança, agora calma, nos braços.Obrigada disse ela, olhando para ele por baixo das pestanas.Salvaste-lhe a vida. Muito obrigada.Somerled pareceu ficar surpreendido, como se achasse que a coisa que fizera não tivesse nada de notável.Não é nada disse ele, estendendo o braço para fazer uma festa, um pouco desajeitadamente, no braço da criança. Não se fala mais nisso.A mim pareceu-me muito disse a rapariga com as faces a corarem ligeiramente. Obrigada a ti, também. Ela olhou de relance para Eyvind e afastou logo o olhar, como muitas pessoas quando se encontravam com os da sua espécie. O meu irmão está sempre a meter-se em sarilhos continuou ela timidamente. Vou tentar vigiá-lo mais. E lamento que estejas tão doente.Somerled não replicou, mas ficou a olhar para a rapariga enquanto ela regressava para junto da mãe e tentava acalmar o irmão com subornos de peixe salgado e maçãs piladas. Então, um a um, os membros da tripulação avançaram para bater nas costas de Somerled, felicitá-lo pela sua rapidez de reflexos e comentarem que gostariam de partilhar uma cerveja com ele, mas que não valia a pena, já que teria muita sorte se o estômago conseguisse guardá-la o tempo suficiente para que a pudesse gozar. Somerled tornara-se uma espécie de herói.Cabeça-de-Fogo não lhe apertou a mão, não sorriu, nem disse piadas. Cabeça-de-Fogo não se mexeu do lugar onde estava sozinho, ao leme do knarr. Mas observou tudo com olhos semicerrados, Eyvind viu o olhar nas suas feições duras e sentiu um certo mal-estar. Era uma infelicidade, pensou, Somerled viajar no mesmo navio que aquele camarada taciturno, o mesmo que um dia dera, talvez, pelo nome de Sigurd. No entanto, se Somerled estivesse a bordo do Dragão Dourado com Ulf e Margaret, aquele rapaz teria caído borda fora e ter-se-ia afogado. Os desígnios dos deuses eram insondáveis. Porém, Eyvind ficaria satisfeito quando chegassem ao seu destino, pagassem à tripulação do knarr e continuassem em frente. Talvez a recente popularidade de Somerled jogasse a seu favor junto do irmão. Tudo era possível.O tempo piorou de tal maneira que não puderam continuar à vela. Usaram os remos o melhor que puderam para não perderem de vista o navio. Os passageiros acalmaram e o gado ficou mais barulhento. Ouviu-se um dos da tripulação a ameaçar torcer o pescoço ao ganso se ele não deixasse de grasnar. Eyvind lançava ao mar pazadas de esterco e tentava racionar a ração de grão. Reparou, por uma ou duas vezes, que a rapariga dos cabelos loiros falava de vez em quando com Somerled e perguntou a si próprio o que poderiam ambos ter em comum. Como Somerled continuava a passar metade do tempo inclinado por cima da amurada, não era, certamente, a companhia ideal. Uma vez, Eyvind viu a rapariga desequilibrar-se quando uma vaga apanhou o knarr, o ergueu bem alto e o braço de Somerled aparecer rapidamente para a amparar. Eyvind sentia-se satisfeito por aquilo estar a acontecer. Ela era um pouco jovem, certamente, mas se conseguisse tirar Margaret da cabeça de Somerled, valeria a pena.No quarto dia, Ulf libertou um dos corvos. A ave sobrevoou a frota e voou para ocidente. Esperaram. Ao anoitecer o animal ainda não tinha regressado e ele informou o outro navio, por meio de gritos e sinais, que estava satisfeito. Parecia que a rota estava certa.
Eyvind dormia pouco, mas estava habituado. Um guerreiro é treinado para suportar privações muito piores. Nessa noite dormitou ligeiramente apesar de todo o cansaço que sentia e acordou abruptamente enquanto ainda estava totalmente escuro. Não conseguia identificar o que ouvira. Sabia, apenas, que significava perigo. Não para o navio: este movia-se firme e lentamente, de vela rizada e âncora flutuando. As pessoas dormiam descansadas sob o toldo e o gado estava misericordiosamente calado. Podia ver o marinheiro de vigia à proa, para lá da área de dormir. Tudo parecia bem. Mas ele ouviu. Eyvind pôs-se de pé silenciosamente e ouviu de novo, não o ranger das pranchas nem o ressonar dos homens ou das mulheres, ou o movimento da água, ou os gritos das criaturas marinhas, mas algo errado, algo fora do vulgar. Um arfar, uma respiração asmática, um som nascido da dor. Moveu-se. Um caçador tem olhos e ouvidos apurados. Algo escuro junto da amurada, a bombordo: talvez fosse Somerled doente de novo? Não, estavam ali dois homens e o que estava debruçado estava a ser forçado, obrigado pelo outro. O homem ruivo agarrava Somerled pelos cabelos e empurrava-lhe a cabeça para baixo, esmagando-lhe o pescoço contra a amurada. Somerled batia inutilmente com o braço esquerdo, enquanto o direito estava torcido atrás das costas num ângulo impossível. Fora o arfar dele que Eyvind ouvira, o som que um homem faz quando mal tem tempo de respirar antes que a garganta lhe seja apertada de novo. E o feroz sussurro de Cabeça-de-Fogo:Isto é por hoje... por ontem... e pelo que fizeste em tempos... Eyvind estava em cima deles com dois grandes saltos, agarrando Cabeça-de-Fogo pelos braços. O homem era forte; os seus dedos recusavam-se a desistir do seu aperto mortal no cabelo de Somerled. Eyvind aplicou uma técnica empregada muitas vezes, que consistia num joelho aplicado num ponto especial do dorso; Cabeça-de-Fogo emitiu um grito de dor e largou a sua presa. Somerled caiu no convés, tossindo e procurando respirar. Segurando-lhe o pescoço com força, Eyvind encostou Cabeça-de-Fogo à amurada do knarr. Este deixara de lutar, percebendo, talvez, que não valia a pena lutar contra um Pele-de-Lobo.Podes largar-me resmungou ele. Não tenho qualquer questão contigo.Que espécie de louco és tu? sibilou Eyvind. Quase o mataste! A tua tarefa é pilotar esta coisa e seguir as ordens de lorde Ulf, não estrangular a sua família! Que vou eu agora fazer contigo?
Cautelosamente, o jovem afrouxou o aperto. Cabeça-de-Fogo olhou para ele, o rosto reduzido a uma máscara de luar e sombras na escuridão balouçante. Junto de ambos, Somerled começava lentamente a levantar-se. A sua respiração soava apertada e dolorosa. Cabeça-de-Fogo cuspiu para o convés.Eu disse-te disse ele monotonamente. Mas tu não quiseste ouvir-me. Ele anda a prepará-las outra vez; nunca há-de mudar. Não o viste com essa rapariga, a que tem um irmão pequeno? Mas não, tu não vês nada, estás cego pelo juramento que fizeste. Devias ter-me deixado acabar com ele.Era o mesmo que dizer-lhes quem era; quem fora.Pensávamos que serias capaz de atirar isso para trás das costas disse Eyvind em voz baixa. Não que te envenenaria a vida toda. A minha mãe achava que talvez voltasses. Continua a haver lugar para ti em Hammarsby. É a tua casa, tanto como minha e de Eirik.Não há regresso possível. O tom de Cabeça-de-Fogo era sem vida. Virou-se, afastou-se na direcção do seu quarto de vigia no leme e a escuridão engoliu-o.Estás bem? sussurrou Eyvind para Somerled, que apalpava a garganta cuidadosamente. Temos de participar isto ao comandante; ele quase te matou.Não é preciso coaxou Somerled.Mas..,Deixa, Eyvind. Isto resolve-se por si. Acredita.Mas, Somerled...Deixa, está bem?Na manhã seguinte, Ulf libertou o segundo corvo e observaram todos a sua direcção antes de içarem as velas e de o seguirem. O vento soprava com força de norte, a ondulação era implacável e o avanço era ao mesmo tempo rápido e desconfortável. Estavam todos mortos pelo fim da viagem.Quanto ao que acontecera na noite anterior, tanto Cabeça-de-Fogo, como Somerled, pareciam ter esquecido o incidente. Ambos se comportavam como de costume, o primeiro ocupado no governo do navio, o segundo passando a maior parte do tempo debruçado por cima da amurada. Somerled não era um homem do mar. Eyvind começava a descontrair-se, achando que faltava pouco e que talvez chegassem ao seu destino sem muitos mais trabalhos, quando se ouviu um súbito mugido vindo da popa do knarr, seguido por um coro de guinchos dos passageiros. O touro, que fora ficando cada vez mais inquieto à medida que os dias de prisão e o movimento oscilante continuavam, começara a agitar a cabeça com alguma violência, resfolegando e escouceando. Duas grossas cordas prendiam o animal a anéis de ferro presos no convés, mas as pernas estavam livres. O esplêndido macho, que era suposto ser o fundador da manada de Ulf, arriscava-se a partir um membro se o movimento do navio lhe provocasse uma queda. Os seus movimentos violentos já tinham quebrado uma das cordas, restando apenas uma para o segurar. Pressentindo a liberdade, o animal continuou a agitar a cabeça, a torcer-se e a puxar com força, rugindo a sua fúria. As vacas ergueram as suas vozes, apoiando-o; as ovelhas, as galinhas e os gansos juntaram-se-lhes histericamente, levando o touro a esforços ainda mais enérgicos. E, subitamente, no meio daquela cacofonia toda, ouviu-se um som de madeira rachada quando o convés de pinho começou a ceder sob os cascos do animal. Os homens da tripulação recuaram, abandonando os remos. As mulheres gritaram e puseram as crianças debaixo das saias. Não era preciso muito para imaginar os estragos que um animal daquele tamanho, com aqueles cornos, poderia fazer no navio e entre os passageiros, antes que fosse possível prendê-lo de novo, ou que caísse borda fora no seu frenesim. A cabeça agitou-se de novo, os cornos esgrimiram no ar. As pessoas encolheram-se. Quem conseguiria aproximar-se, mesmo supondo que houvesse alguém suficientemente louco para tentar?Dizem que um Pele-de-Lobo não conhece o medo, pelo menos como um homem normal. A Eyvind não ocorreu afastar-se. Armando-se com uma corda comprida, aproximou-se do touro enlouquecido, segurando-a a seu lado disfarçadamente. Foi avançando lenta e calmamente, medindo cada passo de acordo com o movimento do knarr. No outro lado, Cabeça-de-Fogo esgueirava-se por trás do animal. Segurava uma pequena vara com um gancho de ferro numa das pontas. Como já tinham feito aquilo antes, capturar gado para marcar, ou para capar, nenhum dos homens precisava de falar; ambos sabiam o que tinham a fazer. Cabeça-de-Fogo tentaria agarrar a corda restante, ou os cornos, enquanto Eyvind tentaria laçar o pescoço do animal e segurá-lo. Teriam de ser rápidos; a corda começava a ceder e as pranchas sob os cascos do touro estavam a estalar e a rachar. O animal dava coices à sorte e agitava a cabeça cada vez mais selvaticamente.
Cabeça-de-Fogo aproximou-se; ergueu o gancho. Eyvind manteve-se imóvel, a corda pronta na mão, esperando o momento de a lançar com segurança. O gancho não seguraria o touro por muito tempo. Os olhos do animal iam de um homem para outro. Eyvind olhou para Cabeça-de-Fogo e este acenou com a cabeça: Agora.
Por que é que não usais uma lança e não matais o animal? A voz era de Somerled, clara e lógica. Desse modo, salvávamo-nos todos.
Sai do caminho, louco! cortou Eyvind, alarmado por o amigo ter tido a ousadia de se aproximar; este estava no lado oposto, quase ao alcance dos cascos. Somerled não percebia nada de gado. Sigurd tem que se aproximar para lhe segurar a cabeça com o gancho enquanto eu o laço. Se pensas que sou suficientemente louco para matar o touro de Ulf, enganas-te. E agora, cala-te e deixa-nos fazer o que deve ser feito.
Os olhos do animal semicerraram-se; baixou a cabeça como se fosse atacar.
Ooooh, oooh repetia Eyvind suavemente, sabendo que não era possível acalmar o animal, mas fazendo-o na mesma, porque, pelo menos, mantinha a atenção do touro fixa em si e não nos outros. Ooooh, touro. Aquela corda desgastada era a única coisa que impedia o touro de se atirar a ele; havia um terror cego naqueles olhos enlouquecidos. Ooooh, touro pequenino. Por um instante, o animal imobilizou-se; no momento exacto. Cabeça-de-Fogo estendeu o gancho. Eyvind passou a corda pelos cornos. Então, enlouqueceu tudo. Ouviu-se um mugido furioso e um turbilhão de movimentos caóticos. Os cascos voaram, a madeira rachou, a cabeça do touro oscilou de um lado para o outro com uma violência que partiu a última corda e o animal ficou livre. Os grandes cornos feriram o ar em todos os sentidos e entraram no peito de Cabeça-de-Fogo com tanta facilidade como uma faca. Eyvind sentiu o sangue gelar ao ver o animal erguer Cabeça-de-Fogo do convés, cruelmente suspenso dos cornos. Então, com um simples safanão da cabeça, o touro libertou o seu fardo, atirando com o homem de cabelos vermelhos por cima da amurada do knarr, para as águas geladas do oceano. Cabeça-de-Fogo não emitiu qualquer som, senão um grunhido de surpresa quando o corno o penetrou; a morte não lhe deu hipótese de contar a sua história, ou de apelar aos seus deuses. Foi-se num abrir e fechar de olhos. O touro raspou o convés e baixou a cabeça de novo; os seus cornos estavam tingidos de vermelho. Mas o machado de Eyvind já estava na sua mão. Não havia escolha possível. O seu único golpe foi mortífero, apanhando-o entre os olhos furiosos e o melhor touro de reprodução de Ulf caiu, morto, no convés rachado. O seu fim foi tão rápido como o do homem. Se havia coisa que Eyvind sabia fazer, era matar com limpeza.Assim que viram que o touro estava morto, as pessoas acorreram para ajudar. Mas era tarde para Cabeça-de-Fogo. Nenhum homem sobreviveria a um tal ferimento, mesmo supondo que seria possível encontrá-lo naquela extensão de mar gelado. Enquanto o comandante manobrava para se aproximar do Dragão Dourado para que pudessem gritar para Ulf, Eyvind ajoelhou junto do corpo ainda quente do touro e, cuidadosamente, extraiu o seu machado do local onde estava profundamente alojado, no crânio do animal. Dificilmente arranjaria melhor arma; nunca o deixara enferrujar, ou perder o fio. Aquele machado salvara muitas vidas, naquele dia. Desejava que também tivesse salvo a de Sigurd... a de Cabeça-de-Fogo. Por que razão enlouquecera o touro assim, de repente? Ele estava certo de que teriam tempo, de que teriam conseguido prendê-lo a tempo, os dois. Agora, o animal só servia para assar num espeto e para ser servido ao jantar e Eyvind nunca ouviria a história por trás dos olhos obcecados de Cabeça-de-Fogo. Levantou-se, estudando o grande corpo imóvel e achando que o convés ao ar livre de um knarr, com a chuva a começar a cair, não era o local ideal para cortar um boi. Debruçou-se de novo, olhando mais de perto. Acocorou-se junto da parte de trás do animal. O que era aquilo? Havia ali sangue, não o sangue de Sigurd, porque esse estava todo nos cornos, na amurada e à superfície do mar. Aquele sangue gotejava da parte de dentro das pernas do touro e formava uma pequena poça no convés, ao lado da cauda. Havia ali um ferimento recente, um corte nos testículos do animal e era dali que corria o sangue, se bem que em breve parasse. Como pudera aquele golpe ser feito naquele lugar? Talvez o touro se tivesse magoado no seu frenesim, talvez se tivesse entalado em algum sítio: numa lasca de madeira, na gamela, numa coisa qualquer. Não podia ser outra coisa. No entanto, o corte era tão limpo, como uma incisão de cirurgião, e não havia inchaço, protuberância; a área do gado era sempre mantida o mais livre possível. Aquilo parecia um corte feito por uma faca, preciso, exacto. Mas não podia ser. Ninguém se aproximara o suficiente, ninguém tivera oportunidade. Quase ninguém. Na parte mais recôndita da sua mente, Eyvind somou dois mais dois. Um golpe doloroso nos testículos. Uma súbita investida furiosa, a última corda quebrada e um homem empalado, tudo ao mesmo tempo. Ajoelhou junto do touro, raciocinando. Cabeça-de-Fogo morrera. Mas tanto podia ter sido ele como Somerled. Ninguém sabia para que lado se viraria o touro. Um jogo arriscado, na verdade.O comandante do navio estava a chamar: Ulf estava a responder. O nobre queria o touro atirado à água: uma oferenda a Freyr. Não se podiam dar ao luxo de levar consigo o mau presságio da morte de Cabeça-de-Fogo. Eyvind decidiu que devia estar a imaginar coisas, porque o que a sua mente lhe estava a dizer não fazia sentido. Levantou-se; havia trabalho para fazer.Coitado disse Somerled. O irmão de Ulf estava imóvel a alguma distância, o rosto solenemente calmo. Parecia ser, também, um homem eficiente. Bem, espero que consigam passar sem ele nesta tina. E se as ilhas tiverem as pastagens de que o meu irmão tanto fala, sem dúvida que haverá gado selvagem para fazer a substituição.Em tempos, ele foi meu amigo disse Eyvind, franzindo o sobrolho. Irritava-o o facto de Somerled falar daquela maneira. Era como se não ligasse a coisa nenhuma deste mundo.Tu és uma criatura estranha, Eyvind disse Somerled. A morte não deveria significar nada para ti. A tua profissão não é distribui-la por aí? Que interessa se esse homem ficou com o peito aberto? Ele não era nada. Não era diferente dos dinamarqueses ou dos francos que tu despachas com o teu machado quando andas a impressionar Magnus nas suas incursões.É diferente. Eyvind observava a tripulação arrastando a carcaça ensanguentada do touro para o local onde poderiam içá-la mais facilmente para cima da amurada do knarr. Este era um amigo. Do coração, um bom homem. E pareceu-me que nós... que eu... lhe fiquei a dever algo. Por causa daquele assunto da Ragna.Quem? perguntou Somerled sem expressão. Eyvind olhou para ele e depois para longe.Esquece disse ele. Havia uma dúvida na sua mente, uma dúvida terrível, cruel, que dizia respeito não só aos acontecimentos chocantes daquele dia, mas também a um passado distante. Os seus dedos tocaram na cicatriz do seu braço, sinal de um juramento profundo e obrigatório, uma promessa de lealdade para toda a vida. Fechou os olhos por um momento e enviou uma oração silenciosa a Thor. Faz comque isto não seja verdade. Permite que eu esteja enganado acerca dele.Atiraram a carcaça do touro à água, mas Freyr não ficou contente. O vento mudou; a chuva começou a cair como um lençol gelado, colando as roupas dos homens à pele e lavando o convés do sangue. A rota de Ulf fora sempre na direcção do Sol poente, mas era agora claro que o sopro irado do deus estava a afastar os dois navios da rota para uma região vazia onde as águas escuras escondiam o terror oculto dos monstros do mar e o súbito aperto dos recifes. No knarr, os homens manejavam os remos, mas a corrente puxava com tanta força que ameaçava arrancar-lhes das mãos aquelas pesadas peças de pinho e o navio mergulhava em frente na sua corrida selvagem. Os passageiros agarravam-se aos cabos, às amuradas, uns aos outros, a tudo o que encontravam, chocados, num silêncio gelado. Na sua frente, na escuridão provocada pela chuva e pelas ondas, a forma escura do Dragão Dourado mal era visível acima do tumulto da água em fúria.Eyvind semicerrou os olhos; mal conseguia ver o navio para além da proa do knarr. Se Ulf fizera bem os cálculos, deviam estar a passar pelo seu destino, transportados pelos elementos em fúria. Era como se o dia se tivesse transformado em noite; a tempestade escurecera o mundo. O Pele-de-Lobo fechou os olhos. Thor!, disse ele em silêncio com toda a força do seu coração. Thor, eu sou teu filho fiel. Sempre te servi com todas as minhas forças. Ajuda-nos, supremo marinheiro. Mostra-nos o caminho.Terra! gritou alguém. Estou a ver terra! Além, a sul!E além, a norte! gritou outro homem.Os olhos de Eyvind arregalaram-se. Era verdade. Indistintamente, por entre as cortinas de chuva, conseguia-se discernir uma massa baixa, escura. Não estava muito distante, no entanto podia muito bem estar no fim do mundo, tão pequena parecia ser a hipótese de a alcançar. O navio seguia, agora, segundo a sua própria vontade. Uma outra forma surgiu mais longe e, mais ainda, pequenas ilhas, ilhas maiores, como um grupo de baleias erguendo-se ao mesmo tempo das profundezas do oceano.
A tripulação gritou para Ulf:Terra! Terra! Mas o vento levava-lhes as vozes. Agarraram-se de novo aos remos; lutaram juntamente com a vela. As águas furiosas estavam cheias de espuma e o knarr erguia-se e agitava-se, as pranchas gemendo em protesto. O Dragão Dourado era uma sombra distante no oceano cinzento.Eyvind agarrou com força no seu remo, os nós dos dedos brancos. Olhou para cima, para o céu tempestuoso e a chuva caiu-lhe com força no rosto, punindo-o. Eu não queria vir, Thor. Certamente que o deus estava a ouvir o seu guerreiro, mesmo naquele canto desolado do mundo. Sabes como é com os guerreiros.
Eu obedeci ao meu chefe de guerra; fui aonde me mandaram. Mas sou leal. Guia-nos para terra, Pai da Guerra! Não permitas que soframos nos recifes, nem que naufraguemos nas rochas. Leva-nos inteiros para terra. Somos os teus Peles-de-Lobo e servir-te-emos enquanto os nossos corpos respirarem. Salva-nos para uma morte nobre numa batalha, não nos deixes morrer uma morte fútil, à deriva, sem propósito. Thor, ajuda os teus filhos! O Pele-de-Lobo esperou. Se Thor não ajudasse, pensou, nenhum outro deus ajudaria. Odin era um vigarista, esperto e imprevisível; era difícil agradar-lhe e os seus jogos eram apenas para homens que gostavam de correr riscos. Freyr era temperamental. Se alguém o ofendia, podiam acontecer cataclismos: tempestades, inundações, cheias, doenças súbitas que devastavam colheitas e homens. Com o seu poder sobre os elementos e estações, Freyr podia provocar muita fome. Gostava muito de sacrifícios, mas nem um belo touro era suficiente para lhe acalmar a ira. Thor era diferente. Thor pensava em termos que qualquer homem compreendia: vida e morte, amizade e inimizade, coragem e cobardia. Recompensava a lealdade e desprezava a traição. Thor compreendia o coração de um guerreiro.O vento mudou. Continuava a soprar ferozmente, arrastando consigo os navios como se fossem gotículas de espuma num regato, mas agora parecia ter um propósito, porque estavam a ser levados para uma rota que apontava para as ilhas baixas e pequenas e que rodeava as costas das maiores, costas essas onde se viam ovelhas e fumo a sair das chaminés de cabanas. Foram empurrados para norte, depois para sul, depois de novo para oeste, a chuva amainou e tornou-se evidente que aquela estranha intervenção dos deuses os transportara através de um grande braço de mar até ao coração daquele grupo de ilhas vestidas de verde; tinham, na verdade, atingido o destino que Ulf desejava para eles, e agora velejavam para oeste na direcção de uma baía abrigada, em cujas águas se erguiam duas pequenas ilhas, baixas, verdejantes. Esses ilhéus eram cercados por muitas rochas e nelas descansavam muitas focas, que observavam os visitantes com olhos doces, escuros. A terra para lá da baía subia suavemente, verde e sem qualquer árvore; aquela era, talvez, a maior das ilhas. Para sudoeste, para lá das colinas ondulantes, estava outra ilha, onde dois picos gémeos, escuros e misteriosos, surgiam grandiosamente. A tripulação remou para a baía, os remos obedecendo, agora, e lançou a âncora. O Dragão Dourado estava encalhado numa nesga estreita de praia pedregosa; Ulf foi o primeiro a saltar para terra. Caiu de joelhos no solo molhado e deu graças a Odin, a Freyr e a Thor por chegar são e salvo.Era um lugar maravilhoso. O braço de mar, através do qual tinham sido conduzidos, estava agora sereno e brilhante e todos se maravilharam com a mudança de cores do céu e do mar, com a luz fria e clara que banhava aqueles montes baixos e verdes, com a água tremeluzente, cor de pérola. As aves voavam em círculos por cima do navio encalhado, talvez esperando algum peixe.Havia ali habitações, casas baixas de pedra com telhados de colmo, mas se morava alguém nelas, tinha fugido à vista dos dois navios aproximando-se da costa. As provisões foram descarregadas, as suficientes para alguns dias e as mulheres e as crianças instalaram-se o mais confortavelmente possível. Ulf deixou guardas; disse-lhes que Lady Margaret é que mandava. Em seguida, dirigiu-se para o interior com os homens a seu lado, para determinar que lugar era aquele e quem mandava nele.Era, na verdade, uma bela terra, com grandes lagos, enseadas e óptimas pastagens. Alguém criava ovelhas e gado; aos olhos de Eyvind, os animais pareciam fortes e bem tratados, se bem que um pouco atarracados. Havia habitações modestas escondidas aqui e ali; espirais de fumo subiam das chaminés. Um bom lugar, se bem que curiosamente desprovido de árvores. As poucas que viam estavam aglomeradas em cercados abrigados, como que refugiadas de um qualquer conflito. Especularam sobre aquilo. Talvez uns gigantes as tivessem arrancado como se fossem gravetos, ou umas criaturas de grandes dentes as tivessem mastigado com tanta facilidade como talos de trigo. Talvez a ilha tivesse sofrido um grande incêndio. Ou talvez fosse, simplesmente, muito ventosa; aqueles pequenos vidoeiros e salgueiros que havia aqui e ali tinham um aspecto bem abatido, segundo eles, como se estivessem acostumados a vergar perante uma poderosa força da natureza.Se eu tivesse que oferecer um presente a esta gente observou Ulf ofereceria madeira para construção, porque têm, certamente, muita falta dela.Chegaram a um lugar de grandes pedras, erguidas numa pequena elevação vestida de urze, junto de um pedaço de terra que separava duas grandes extensões de água brilhante. Nesse lugar estava tudo silencioso. As pedras eram altas; até Eyvind se sentiu anão ao pé delas. E eram muitas. Holgar tentou contá-las, mas perdeu-lhes a conta antes de dar a volta ao grande círculo. Mais do que cinquenta, achou Ulf e, para lá delas, taludes de terra, câmaras funerárias, talvez, seladas por um cobertor de turfa. Somerled observou que aquelas coisas podiam muito bem esconder ouro ou prata, em vez de ossos humanos, e que era uma pena não tirarem vantagem, naquele canto desolado do mundo, daqueles tesouros. Não ficaram muito tempo naquele lugar. Não tinha viajado nenhum sacerdote com eles e não sabiam que deuses antigos poderiam andar por ali, ou o que pensariam de uns visitantes inesperados.Caminharam durante muito tempo sem uma única alma à vista, a não ser vacas, ovelhas e uma galinha ou duas. Levantou-se vento e eles começaram a sentir a sua mordedura através das capas e túnicas ainda ensopadas da viagem.Que gente é esta? Alguma espécie de fantasmas, que nos deixam atravessar as suas terras sem nos impedirem e sem se deixarem ver? comentou Hakon quando chegaram a uma elevação de terreno e olharam para norte. Talvez seja melhor regressarmos e ficarmos junto das mulheres até sabermos mais qualquer coisa.Acho que não disse Ulf num tom estranho, e ali na sua frente, em grandes passadas na sua direcção através da colina verdejante, com propósitos ameaçadores, vinha um grupo de homens com túnicas tingidas de azul, verde ou vermelho, homens de pequena estatura, de cabelos escuros e armados de arcos e chuços.Bem, bem observou Somerled em voz baixa. Bárbaros genuínos. Pergunto a mim próprio se se apresentarão antes de começarem a disparar. Que língua havemos de falar, não me dizem? Latim? Franco?Mas o irmão ignorou-o. Avançando e erguendo a mão em sinal de que desejava falar em vez de lutar, Ulf entrou no seu novo mundo.
Se havia uma coisa da sua infância que Nessa recordava era o dia em que descobrira a torre. Se não tivesse discutido com Kinart e desaparecido, zangada, talvez nunca tivesse acontecido e a sua vida talvez tivesse sido completamente diferente. Era, então, uma miudinha. Kinart fizera-a zangar de tal maneira que se esquecera de ter cuidado e fora até um lugar proibido, um lugar que ninguém atravessava porque transbordava de magia. Fora até lá sem pensar e, subitamente, lá estava ele, o buraco no chão, escondido entre as rochas para lá da linha de dunas baixas com erva no topo. Se não fosse a rapariga que era, uma rapariga que gostava de aventuras, teria ficado demasiado assustada para afastar a terra e olhar lá para dentro, porque não havia dúvida de que era um lugar de espíritos, um lugar de onde uma criança bem-comportada devia manter-se afastada. Kinart estava em baixo, na praia, a arranjar o peixe que tinham apanhado; as gaivotas esvoaçavam à sua volta, lutando pelos restos. O pequeno barco de pele fora puxado para terra. Depois de lhe perdoar, Nessa regressaria.
O forte vento de oeste fustigava-lhe os cabelos e ela afastou-os impacientemente. Uma pequena pá seria útil, um bocado de osso, qualquer coisa com que pudesse escavar. Esgaravatou o terreno com pequenas mãos ágeis; havia, agora, uma abertura maior e o sol da Primavera espreitou por cima do seu ombro para deixar ver uma espécie de câmara lá em baixo, grande, seca, revestida de lajes de pedra perfeitamente ajustadas e com chão de terra. O buraco era muito pequeno; ela não conseguia ver bem. Parecia que aquela câmara subterrânea dava para outra, mas, por mais que espreitasse, Nessa não conseguia ter a certeza. E a maré estaria de volta, em breve. Quando se vivia num lugar como Dorso de Baleia, não se podia permitir que as desavenças atrasassem uma pessoa, ou não se poderia regressar a casa senão quando a maré baixasse de novo.Talvez chovesse. Aquele lugar secreto fora selado contra o mau tempo há muito tempo, até que as violentas tempestades daquele virar de estação tinham começado a descobri-lo. Ela debruçou-se para deslocar uma laje de pedra, arrastando-a para que a abertura se alargasse. Ficaria para outra ocasião. Tinha muito tempo. O Verão vinha a caminho e os dias seriam luminosos e compridos. Talvez contasse a Kinart, e talvez não. Se ele deixasse de a aborrecer por causa dos nomes que ela dava às coisas, se ele deixasse de dizer que ela nunca arranjaria um marido, talvez mostrasse ao primo o lugar que descobrira. Para que queria um marido, no fim de contas? Uma das suas irmãs podia muito bem arranjar um e ter o filho que era preciso para assegurar a varonia. As suas irmãs eram mais velhas, mais bonitas e eram boas com a agulha e a fazer pão. Mas não eram capazes de pescar, remar, correr, trepar ou nadar tão bem como Nessa. Kinart dizia que os maridos não querem saber dessas capacidades. Eles queriam outras coisas. Que coisas?, perguntara-lhe Nessa. Mas quando ele lhe disse, ela achou que ele estava a brincar.Havia duas maneiras de regressar a Dorso de Baleia. Quando tinham o barco, podiam remar até à enseada escondida, não mais do que uma fenda no flanco rochoso sul da ilha, desembarcavam precariamente e arrastavam o pequeno barco até uma pequena caverna acima da água. Em seguida, escalavam a parede rochosa até atingirem o topo ondulado verdejante de Dorso de Baleia e corriam pela vertente abaixo até ao aglomerado de casas na parte leste, empoleirado na área plana, de frente para a passagem. A outra maneira, era a pé por aquela mesma passagem, escolhendo cuidadosamente o caminho nas pedras escorregadias, cheias de ervas. Conheciam as marés como as palmas das próprias mãos. No Verão tinham tempo, quando a maré atingia o ponto mais baixo, para percorrer a costa num e noutro sentido, ou penetrar no interior através das quintas para ver o gado ou visitar os vizinhos. Uma jornada até mais longe significava pernoitar fora, porque quando a água atingia aquela passagem central não se podia atravessar, a não ser que se gostasse de passar a vida entre as gaivotas e as focas. No Inverno, aquando das grandes tempestades, por vezes não se podia atravessar durante dias, porque os ventos sopravam ferozmente, a água chicoteava ambos os lados da passagem e nem um único canto de Dorso de Baleia ficava a salvo da espuma gelada do vento de oeste. O céu ficava baixo e escuro; as gaivotas, indefesas, eram atiradas para um lado e para o outro pelo vento. No Inverno, um estranho seria capaz de perguntar a si próprio por que razão as pessoas tinham chamado àquela terra Ilhas Brilhantes. Não era um lugar de escuridão gelada, sem fim, visitado por ventos diabólicos, batido por mares de pesadelo, um lugar vazio onde as árvores nem sequer se atreviam a erguer os seus ramos da terra para suavizar uma paisagem sem vida? Mas, depois, vinha a Primavera e se o estranho tivesse esperado, compreenderia, de repente, por que razão os locais achavam que aquele era o lugar mais belo do mundo. Ali, havia mais cores no céu do que erva nas encostas dos montes; ali, o mar estava sempre a mudar, melancólico, beneficente, caprichoso, um lençol de mistério envolvendo aquelas belas ilhas com o seu toque fluido. Cada pedra tinha a sua própria história, cada concha o seu próprio desenho, cada flor o seu próprio encanto. Quando uma pessoa se sentava no topo de uma falésia, na Primavera, o ar ficava vivo com os gritos das aves: papagaios-do-mar e gaivotas lutavam por um espaço nas saliências e abriam as asas ao vento, planando e elevando-se nos ares. Em frente estava o oceano sem fim. Por trás, as colinas baixas e suaves sucediam-se umas às outras até encontrarem lagos brilhantes. Para sul, ao longe, estava a Ilha Alta com as suas duas montanhas gémeas, um lugar de vales escondidos e rochedos monstruosos, paraíso de pescadores e sacerdotes. Havia coisas antigas nas Ilhas Brilhantes. Viviam ali pessoas há muitas gerações, mas havia outros seres da terra e do oceano, personificações de luz e água, influências benéficas e maléficas, cujas pretensões eram antigas e inquestionáveis. Essas criaturas tinham de ser respeitadas se se pretendia partilhar a terra em relativa paz. As pessoas sempre tinham sabido isso. Aos seis anos de idade, Nessa já sabia isso, assim como sabia que olhar para os seus lugares secretos, como a câmara que descobrira por baixo da terra, era procurar sarilhos. Assim, antes de se afastar, deixara uma marca sob a forma de pequenas pedras em cima da laje com que tapara a abertura, um sinal de reconhecimento. Esperava que compreendessem, fossem eles quem fossem. As quatro pedras nos cantos significavam os quatro pontos cardeais; no meio, uns seixos desenhavam uma linha ondulada que significava o mar e, por cima, um sol redondo e uma lua em crescente.
Dessa maneira, dizia-lhes que sabia que espécie de lugar era aquele e que o respeitava. Se havia coisas que os Folk compreendiam, era a importância dos sinais.Nessa pôs-se de pé, virou-se e lá estava a anciã a menos de três passos, olhando para ela com uns olhos que pareciam seixos cinzentos. O coração de Nessa deu um pulo e ficou assustada, mas não pôde fugir porque lhe pareceu que os seus pés tinham ganho raízes, prendendo-a à terra.Aproxima-te, rapariga disse a anciã. A minha vista já não é o que era.O solo libertou-a e ela pôde mexer-se. Avançou na direcção da figura enrugada. A trança cinzenta da anciã chegava-lhe à cintura; as suas feições eram enrugadas e fendidas como pedras antigas. E Nessa soube quem era, porque Nessa sempre adorara histórias.Rona murmurou ela. A mulher sábia. Eu disse a Kinart que tu eras real, mas ele não acredita.A anciã emitiu um grunhido de divertimento.O que é real? perguntou ela. A música é real? A sombra é real? O teu primo é um rapaz; só acredita no que vê, no que pode tocar. Para ti e para mim, é diferente.Para ti e para mim? Nessa olhava para ela. Já não tinha medo. Rona, a sacerdotisa, guardiã dos mistérios, era uma história, tal como a da Tribo das Focas, ou a da Tribo Perdida, e fazia parte das ilhas, como as marés e o vento, as rochas e a urze. Não era surpresa nenhuma ela aparecer ali, junto da câmara secreta.Tenho estado à tua espera.À minha espera?Que estejas pronta. A anciã olhou para o sinal que Nessa fizera na laje de pedra. Vejo que já estás pronta.Nessa apercebeu-se de que não precisaria de perguntar: Pronta para quê? Sabia a resposta sem que lha dessem.Todos os dias disse Rona. Tens muito que aprender. Todos os dias, com a maré baixa. Podes ir a casa nos intervalos.Tenho de pedir ao tio Engus disse-lhe Nessa. E à minha mãe.A anciã sorriu.Tu és a mais nova de três, não és? Engus não precisa que cases e tenhas filhos. E o teu tio não é parvo nenhum, porque é homem.
Conhece a importância dos antepassados. Sabe que os rituais devem ser celebrados como deve ser depois de eu desaparecer. Diz-lhe o que eu te disse. Ele deixar-te-á vir aprender. Nessa acenou com a cabeça.É melhor ir agora disse ela. A maré está a virar e Kinart já deve andar à minha procura.Amanhã disse Rona gravemente. O teu primo vai ter de aprender a pescar sozinho.Aquele dia fora um dia de viragem, pensava Nessa enquanto escolhia o caminho através da estreita passagem de pedras na direcção de Dorso de Baleia num belo e ventoso dia de Primavera. Se não tivesse corrido descuidadamente pelas dunas durante aqueles anos todos, talvez estivesse agora prometida a uma chefe de clã qualquer de Caitt: até, talvez, estivesse casada. O tio Engus andava a negociar cuidadosamente os casamentos das suas irmãs. Mas ela escapara, graças a Rona. O seu destino seria diferente. Há já dez anos que aprendia o que a sábia mulher tinha para ensinar; há dez anos que praticava e aperfeiçoava os rituais do Sol e da Lua, da terra e do mar. Crescera no conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, na reverência e compreensão das velhas tradições. Esses padrões eram eternos; sem eles, os Folk não podiam sobreviver. Em breve abandonaria Dorso de Baleia e a casa de Engus, indo viver sozinha para o lugar dos mistérios, como Rona. As pessoas vê-la-iam de vez em quando, porque em certos dias do ano as mulheres da ilha reuniam-se para reverenciar a Terra e a Lua e em outros dias os homens reconheciam a força viva do Sol e o poder do mar. Caberia a si, em seu devido tempo, fazer com que esses rituais fossem celebrados condignamente. Quando isso acontecesse, passaria a ser a própria Rona, a ser olhada como algo não inteiramente real, entre a carne e o espírito, mulher e espectro. Seria, na verdade, bem estranho.Nessa subiu o talude e chegou ao recinto plano e coberto de erva da aldeia. A casa tinha pouca gente, porque o tio Engus tinha saído com muitos homens. Tinha recebido uma mensagem acerca de uns estranhos navios que tinham entrado em Baía de Prata e de uns homens de cabelos cor de cevada que tinham vindo a terra fortemente armados. Engus levara um grupo de guerreiros e fora para sul. Talvez os inesperados visitantes pertencessem à terra dos Caitt e viessem exigir um tributo de vassalagem. Engus estava habituado a isso, já que como os primeiros, em barcos decrépitos que mal eram capazes de pescar junto à costa. Dois rapazes da aldeia tinham ido à Ilha Sagrada para ajudar a arrastar as pedras, ou tosquiar as ovelhas, e tinham ficado para trabalhar e aprender. Com o tempo, os ocupantes da ilha passaram a oito, e sete deles mantinham-se lá. A excepção era Tadhg. Esse aprendera a língua local com uma rapidez notável e visitava agora, frequentemente, a maior parte das ilhas. Na verdade, ele conhecia muitas línguas, já que viajara muito quando era jovem e vivera entre muita espécie de gente. Adorava ensinar o que sabia. Nessa, uma estudante esfomeada, já era capaz de seguir mais ou menos uma conversação em latim básico e melhor ainda em norueguês. Os outros do seu povo desprezavam esse conhecimento: precisariam algum dia dele? Mas Nessa dizia que todo o conhecimento era precioso e Tadhg concordava com ela. Toda a gente recebia bem Tadhg, porque ele contava histórias maravilhosas. E se bem que nunca pedisse comida, uma linha de pesca ou uma peça de vestuário de lã, nunca ia para casa sem o saco cheio, porque as pessoas não esqueciam o seu feito de navegação. Admiravam a sua coragem, apesar de reconhecerem a loucura da viagem.Quando aparecia em Dorso de Baleia, Tadhg sentava-se no seu lugar habitual, num banco junto da lareira, a sua cabeça meio rapada brilhando, rosa, à luz das chamas. Todos os irmãos adoptavam aquele estilo esquisito, com a parte da frente do crânio lisa como um ovo. Aquela tonsura era a marca da sua irmandade, explicara Tadhg, embora houvesse uma outra, que consistia num círculo rapado no alto da cabeça. Fora causa de muita disputa entre os aderentes à sua fé, quase tanta como o método de calcular o dia exacto da festa sagrada da Primavera, a que chamavam Páscoa. Houvera muita agitação por causa do assunto no seu país. Nessa achava que, se calhar, era por isso que os irmãos tinham atravessado o mar: simplesmente para terem paz. Quando era mais pequena, Nessa costumava pedir a Tadhg que lhe contasse histórias. Adorava a maior parte delas. Havia uma acerca de um rapaz que desafiava um gigante. Havia uma acerca de um homem que tinha vivido dentro de uma baleia. Havia uma acerca de uma grande inundação e uma outra acerca de uma capa mágica. As histórias eram bonitas e fáceis de compreender. As histórias acerca de um sujeito chamado Jesus Cristo, que era ao mesmo tempo homem e deus, é que eram difíceis de compreender. Ninguém da casa gostava de ouvir essas. No fim de contas, os discípulos de Jesus tinham sido robustos pescadores e camponeses e as pessoas vulgares tinham-no seguido e apoiado. Por que não lutara ele, no fim? Que espécie de homem se deixa capturar, torturar e crucificar? Um sacrifício, explicara Tadhg, muito sério. Para salvar a humanidade da perversidade. Mas continua a haver perversidade, disse alguém. Fosse qual fosse o significado, não resultara. Então, vinha a alternativa: para resultar, as pessoas tinham de depor as armas e seguir aquele Cristo; tinham de pôr de lado os velhos deuses e seguir o novo, o único, segundo Tadhg. Os homens deviam amar-se uns aos outros e se um inimigo dava uma bofetada, devia-se oferecer a outra face. Chegado àquele ponto, a audiência tinha tendência para desatar às gargalhadas. Se um homem agisse assim, não teria vida curta? Se não fizesse frente aos seus inimigos perderia as terras, a família e o gado. E eles, os irmãos? Onde os levara aquela fé? À deriva pelo mar, num barco que mais parecia um brinquedo do que um barco a sério e atirados para uma praia longe de casa. Temos a bênção de Deus dizia Tadhg, sorrindo.Sucederam-se três marés antes de Engus regressar a Dorso de Baleia e quando regressou trouxe consigo os recém-chegados. Nessa viu-os atravessar a passagem, o Rei dos Folk lado-a-lado com um homem esbelto, finamente vestido, cujo cabelo escuro estava penteado para trás e apertado com uma fita. Os guerreiros de Engus, mais acostumados naqueles dias a lavrar e a semear, a colher e a caçar do que a usarem armas, caminhavam, no entanto, orgulhosamente atrás do seu chefe. Mas foram os companheiros do outro homem que fizeram com que Nessa deixasse cair o queixo e com que a mão do irmão Tadhg se erguesse, fazendo o sinal da cruz. Eram homens enormes, ferozes, armados com machados e espadas, guerreiros com capas de pele cinzenta, espessas e hisurtas sobre ombros maciços. Alguns traziam elmos de ferro; outros vinham de cabeça, nua, os cabelos brilhando como trigo ao sol do meio-dia. Eram, talvez, uma raça de gigantes, vindos para roubar o gado e as terras do seu tio, ou seres mágicos saídos do mar, se bem que não fossem da temível Tribo das Focas; o ferro que usavam tornava-o claro. O Rei não parecia nada atrapalhado no meio deles, porque parou a meio caminho, apontando, enquanto o homem a seu lado olhava atentamente. Engus explicava o mecanismo da maré, talvez, como podia ser traiçoeira para aqueles que não conheciam aquela costa. Talvez estivesse a mostrar a extensão das suas próprias terras: para sul, para lá dos recifes, até à enseada, para o interior para lá dos lagos, para norte contornando a costa e, cruzando as águas, até à Ilha Sagrada.Houve um dos guerreiros que atraiu o olhar de Nessa. Parecia jovem, se bem que fosse tão alto e forte como o maior deles; tinha cabelos da cor da manteiga, que se encaracolavam em redor das orelhas. Enquanto os outros mudavam as armas de uma mão para a outra enquanto falavam e gesticulavam, aquele olhava para as rochas onde as focas se aqueciam ao sol e para os grandes mantos de algas que ondulavam, púrpuras, verdes e negras, à tona de água. Estava imóvel como uma rocha, calmo e forte. Quando Engus continuou, liderando os seus visitantes na direcção da aldeia, aquele homem foi o último a mover-se, o último a tirar os olhos do mar.Que Deus nos ajude murmurou o irmão Tadhg. Já vivi entre homens desta espécie, há muito tempo. Têm pouco respeito pelo que não compreendem.Quem são? perguntou Kinart, que estava ao lado deles semicerrando os olhos ao sol para ver a aproximação dos viajantes.Assassinos e salteadores. Seguem uma fé bárbara. São noruegueses, das terras geladas, para leste. Ainda não começámos a sentir a sua ferocidade.Eles, realmente, parecem ferozes observou Nessa gravemente, vendo Engus preceder os seus visitante nos degraus escavados na rocha que iam da passagem ao recinto onde começava a aldeia. Então, após um momento, perguntou: Não é suposto amarmos os nossos inimigos?Talvez eu esteja a ser muito rápido no meu julgamento disse Tadhg com um suspiro. Vamos, que o teu tio é capaz de precisar da minha ajuda. Ficaria muito surpreendido se estes bárbaros compreendessem a língua dos Folk.Mas Nessa não os seguiu. Esgueirou-se, o mais discretamente que conseguiu, para junto da mãe e das irmãs no interior da casa, onde estavam a ser feitos uns preparativos rápidos para receber os hóspedes. Quem sabia quanto tempo ficariam aqueles homens de olhar selvagem? Tinham de arranjar cobertores, fetos e palha limpa para fazer camas. Iam precisar de ovos, queijo e mais pão. Felizmente já estava um carneiro a assar no espeto e havia muita cerveja.
Nessa penteou e voltou a entrançar o cabelo e regressou para a cabana-cozinha para poder ser útil, talvez para arranjar a carne, ou cortar o queijo. Mas a mãe não queria que ela fizesse nada disso.Já há gente suficiente para fazer isso, filha. Por vezes, penso que te esqueces de quem és.Nessa sorriu.Eu nunca me esqueço, mãe. Mas até uma sacerdotisa deve lavar pratos, ou puxar água de vez em quando, acho eu. Há sabedoria em todas as tarefas. Deixe, que eu levo isso. Onde quer que ponha?Entra devagarinho no salão e põe tudo na prateleira junto da porta. Não te demores; Engus chama quando quiser comida. O teu tio não quer que estes homens te vejam, ou às tuas irmãs, pelo menos até sabermos o que querem de nós.O salão do Rei tinha um belo aspecto. Era para reuniões e festas, celebração de rituais e grandes festivais. As pessoas de Dorso de Baleia viviam nas outras casas, que eram parecidas com folhas com muitos lóbulos, com uma câmara central para comer, conversar e trabalhos caseiros e uns pequenos espaços para dormir e armazenar coisas. As casas eram confortáveis. O salão era grandioso, com grandes pilares centrais de madeira descoloridos por muitos dias de sol, viajantes de terras distantes, como Tadhg, que tinham dado à costa nas Ilhas Brilhantes. As costelas de uma grande baleia suportavam o telhado, feito de fetos espessos e seguros por cordas com pedras penduradas nas pontas. As paredes eram de grés vermelho, mas o interior estava suavizado por peles espalhadas pelo chão e em cima dos bancos e havia belas tapeçarias de lã nas paredes, bordadas com símbolos da família: o bordão e o crescente, o espelho, a águia e o monstro marinho, que eram os sinais da linhagem real: a sua linhagem. A águia tinha um olhar nobre. O monstro marinho era diferente. Não se sabia se a criatura era uma foca, um cavalo, ou uma espécie de monstro, era difícil fazê-lo parecer real. Aquele era uma cópia do único modelo que existia, a imagem na Pedra do Povo, que estava no topo de Dorso de Baleia, de frente para a aldeia, confirmando aquela ilha como o coração do domínio dos Folk. A Pedra do Povo era muito antiga. Estava ali desde que o primeiro da sua espécie viera para as Ilhas Brilhantes e estaria ali até ao dia em que morresse o último do seu povo. Três poderosos guerreiros, um Rei e talvez os seus filhos, tinham esculpido aquele rosto com um nobre propósito. Aquela criatura não parecia mais estranha do que a versão colorida de lã que se agitou sob a corrente de ar à passagem de Nessa pela porta do salão para deixar os pratos para o festim, mais tarde.Parecia-lhe importante saber o que se dizia. Nessa manteve-se imóvel; certamente que, se se mantivesse silenciosa, ninguém notaria a sua presença nas sombras, junto da porta. A conversa era animada, em duas línguas diferentes. O chefe dos gigantes dizia algo e Tadhg traduzia para Engus e para os homens da casa. Em seguida, acontecia o contrário. Era trabalhoso e agravado pelo facto de todos terem tendência para falar ao mesmo tempo. Tadhg mantinha-se calmo. Estava sempre calmo; o facto de estar sentado no meio de homens que descrevera como bárbaros não alterava a serenidade dos seus olhos cinzentos, suaves, nem a compostura das suas feições pálidas. A cerveja corria. Engus mostrava-se generoso, pensou Nessa, para descobrir quais eram as verdadeiras intenções daqueles visitantes. Pelo menos, parecia que não vinham com intenções guerreiras.O grande jovem em que ela reparara antes não se juntara à conversa. Mantinha-se por trás do chefe dos estrangeiros e ela apercebeu-se que ele estava armado até aos dentes: um grande machado brilhante, uma espada embainhada e mais do que uma faca no cinto. Era uma espécie de guarda, portanto. O seu feroz arsenal desapontou-a, de algum modo; era contrário à sua serenidade. Os seus olhos eram muito azuis: azuis como uma verónica de Verão.Não é fácil acreditar dizia Engus, os seus olhos perspicazes perscrutando o chefe que estava sentado na sua frente, no outro lado da mesa que o vosso propósito tenha sido o de vir aqui devido a uma única curiosidade: o desejo de um jovem pela aventura. Fizestes uma longa viagem; dizem que os vossos navios são fortes, feitos para viagens oceânicas. Desculpa-me, mas um homem tem de ter cuidado. Ouvi dizer que trouxeste mulheres e crianças contigo e, no entanto, trouxeste também guerreiros. Não vens como vieram os cristãos, trazidos por fortes tempestades do espírito. Que procuras, então, aqui, junto dos Folk?Tu falas por todos? perguntou o chefe dos viajantes. Ao falarmos contigo, estamos a falar com quem governa estas ilhas?Assim é, viajante. Eu sou Engus, Rei das Ilhas Brilhantes. Reino aqui há muito tempo e, apesar de haver outros chefes, porque são muitas as nossas ilhas, a minha voz é a voz dos Folk. Dizes que vens de Rogaland, a Leste. Que espécie de terra é essa? Tu és Rei, lá?
O homem sorriu; os seus companheiros mostraram os dentes, como se aquelas palavras tivessem sido traduzidas para eles.De todo e nem sequer Jarl, que vem a seguir ao Rei, na nossa terra. Mas sou um homem de posição, primo chegado do Jarl Magnus de Freyrsfjord e os barcos que nos trouxeram são meus. A minha mulher viaja comigo e também muitos homens respeitáveis desse país distante. Na verdade, um homem pode perguntar porque fiz eu esta viagem. O meu pai ouviu falar destas ilhas e sonhava vê-las, um dia. Passou-me esse sonho. Há muito que desejava vir aqui e descobrir se o lugar estava de acordo com a história. Uma terra maravilhosa, a mais bela do mundo, segundo diziam.Engus olhou solenemente para ele.Isso é verdade; quanto mais tempo um homem aqui passa, maior é o feitiço que as ilhas lhe lançam. Mas temos poucos visitantes. Havia uma pergunta no tom da sua voz.Eu gostaria de ter a oportunidade de viajar até mais longe disse o homem. Talvez visitar outras ilhas, pescar e caçar, se isso for permitido. Gostaríamos de ficar aqui durante o Verão. Na nossa terra, um homem tem de ser forçosamente guerreiro, camponês, viajante e criador de gado. Há alguns, na minha comitiva, que têm de regressar a casa por ocasião das colheitas.Engus afagava a sua bela barba cinzenta e franzia o sobrolho. Nessa conhecia bem aqueles sinais; significavam que ele tinha um dilema. O Rei falou em voz baixa para os homens a seu lado e, dessa vez, Tadhg não traduziu.É claro acrescentou o estrangeiro apressadamente que construiríamos os nossos próprios abrigos e não esperaríamos gastar as vossas provisões, se bem que tenhamos trazido mercadorias para trocar e possamos pagar. Oferecemos uma garantia de paz e amizade se o teu povo fizer o mesmo.Parecia inofensivo, pensou Nessa. O homem parecia bem intencionado. Eram os gigantes com os machados que a preocupavam e parecia que Engus também não estava convencido.O assunto é sério disse ele e eu preciso de tempo para pensar. Fizeste uma longa viagem; deves ter fome. Está a ser preparado um festim neste momento. O Rei levantou-se. Segue-me. Vou mostrar-te os alicerces do meu domínio, a fundação deste reino; entretanto, que a mesa seja preparada. Engus olhou de relance para a porta, mas em vez do servo que, sem dúvida, esperava ver, viu Nessa com a sua túnica azul, uma saia com uma barra de fitas e os cabelos entrançados com simplicidade, caindo-lhe pelas costas, observando-os em silêncio. Vai, rapariga; diz à tua mãe que traga a comida que já deve estar preparada, porque estes homens devem ter grande apetite e nós devemos mostrar-lhes a boa comida que as nossas ilhas podem oferecer. Vai.Ela demorou-se ainda o suficiente para ouvir um dos estrangeiros perguntar:É tua filha? E Engus responder concisamente que não tinha filhas, apenas sobrinhas, das quais aquela era a mais nova. O homem do machado e dos olhos azuis olhava para o seu chefe e não parecia ter reparado nela. Mas os outros olharam-na de alto a baixo e um homem de pele pálida e cabelos escuros lisos sorriu-lhe de um modo que ela não gostou nada. Enquanto Nessa desaparecia na direcção da cozinha, o seu tio levava o grupo de estrangeiros pelo longo declive cheio de erva de Dorso de Baleia acima até ao ponto onde se erguia orgulhosamente a Pedra do Povo, entre e a ilha e o oceano. Explicar-lhes-ia o significado dos símbolos, reforçaria o seu estatuto e dir-lhes-ia que não deviam esperar demasiado. Eles ainda não tinham dito ao que vinham. Tinha de ser algo mais para além de um acampamento de Verão e o direito de apanhar alguns coelhos. No entanto, aquelas coisas demoravam o seu tempo, exigiam presentes, lisonja; era quase como um namoro. Ela viu-os subir o declive, cada vez mais pequenos, recortados na vastidão do mar. Um homem grande, com uma barba amarela hisurta, olhou para ela por cima do ombro e mostrou-lhe os dentes. Ela não respondeu. Não se podia confiar em homens com tanto ferro. Ao lado daqueles guerreiros, os rendeiros do seu tio pareciam rapazes, escuros, magros e pequenos. Nessa franziu o sobrolho. O seu tio já não era novo. Esperava que ele soubesse o que estava a fazer.Segundo as ordens de Engus, as raparigas não se sentaram à mesa nessa noite. Isso agradou a Nessa. Não era de esperar que homens daqueles compreendessem quem ela era; não era de esperar que se abstivessem de olhar para ela e tecessem comentários, já que para eles não passava de mais uma mulher. Isso não significava que o seu comportamento seria assim tão inapropriado. Assim, Nessa permaneceu fora de vista, assim como as irmãs. No entanto, como sacerdotisa dos Folk, a jovem tinha uma certa responsabilidade. Precisava de ouvir o que eles diziam: compreender ao que tinham vindo, na realidade. O significado da sua presença ia para além do que estava à vista; Nessa pressentira-o no momento em que vira aqueles homens caminharem através da passagem com tanta confiança. Assim, demorou-se na entrada, meio escondida por trás das tapeçarias de lã, observando.
Foi uma grande festa e os hóspedes pareceram contentes. A falta de uma língua comum conteve alguma conversação, mas não impediu os viajantes de trocarem um sorriso, ou uma piscadela de olhos com uma ou duas das mulheres da casa de Engus, nem de saborearem a excelente comida e a boa cerveja que lhes era oferecida. Nessa escutava atentamente e começou a aprender alguns nomes. Ulf: era o chefe. Havia dois homens de olhar assustador que estavam sempre perto dele: Hakon e Eirik, uma espécie de guarda-costas. Um irmão, o homem que sorrira e lhe provocara pele-de-galinha: Somerled. Era um nome demasiado bonito para tal homem. Havia mais guerreiros, Grim, Holgar, Erlend, demasiados para memorizar. Um grande grupo. O grande, sempre muito calado, tinha um nome esquisito, não sabia bem se o ouvira correctamente: Eyvi? Havia mais em Baía de Prata, onde os seus navios estavam encalhados, a salvo das garras do mar. A mulher do chefe ficara a substitui-lo enquanto ele viajava até à corte de Engus. Devia ser uma mulher autoritária.
Tinham trazido presentes: peles de urso e de raposa branca, contas de vidro e de âmbar, azuis e verdes, da cor do sol, outras límpidas como a água, e ouro: um bracelete com um desenho de folhas e frutos entrelaçados, muito bem trabalhado, e uma bela corrente, apropriada para uma mulher.
Agradeço-te disse Engus sem sorrir. Retribuiremos o teu gesto em devido tempo e com generosidade. Ainda não vos conheço, por isso não sei quais são as vossas necessidades.
Ulf, com um olhar perspicaz, acenou com a cabeça. -
És ao mesmo tempo prudente e generoso, meu senhor disse ele. Quanto a nós, podemos oferecer-te mais coisas. E não preciso de muito tempo para ver quais são as vossas necessidades.
Engus franziu o sobrolho. O som de facas e taças morreu subitamente. Já nos conheces? És adivinho? Mágico?
Ulf sorriu.
De maneira nenhuma. Sou bom observador. Se fosse o Rei desta terra tão bela, acordaria todos os dias com uma oração de gratidão nos lábios por os deuses me terem colocado neste canto da terra. E se fosse esse rei e um viajante se oferecesse para me trazer presentes, pedir-lhe-ia duas coisas.Continua. O tom de Engus era frio.Primeiro, uma carga de boa madeira para construção. Estas ilhas têm, estranhamente, falta de árvores. Um camponês de Rogaland é capaz de arranjar uma carga assim em quinze dias com a ajuda de alguns homens. A nossa terra é uma terra de florestas. Podia estar aqui na próxima viagem, no Verão.E a segunda? Contra a sua vontade, o Rei das Ilhas Brilhantes estava a ficar interessado.Pedia ajuda para a construção de um barco. Não um barco qualquer, antes um grande navio oceânico, igual ao meu, o Dragão Dourado. Com um navio desses, um homem pode andar de ilha em ilha nas asas do vento e, penso, atingir as costas dos seus vizinhos do sul mais rapidamente, certamente antes de os chefes de guerra locais estarem prontos.A atenção, agora, era total. Aquilo estava a ser um bom entretenimento, apesar de as palavras precisarem de ser traduzidas. O conhecimento de diversas línguas era uma coisa poderosa, apercebeu-se Nessa enquanto observava Tadhg bebendo um grande gole da sua cerveja. A sua garganta devia estar seca como palha. Poderosa e perigosa: aquela troca de palavras podia provocar um erro bem caro.Só há um navio assim em toda a Noruega, que é o meu disse Ulf calmamente. Eu próprio o construí; levou dois anos a planear e uma estação inteira a concluir. O próximo levará menos tempo. Com o tempo, haverá mais navios, porque os homens procuram sempre ter o que admiram, e o Dragão Dourado não é apenas belo e rápido, é também suficientemente forte para enfrentar os rigores de uma longa viagem em mar aberto. Se eu fosse Rei destas ilhas pediria, que o próximo navio a ser construído fosse para mim. A madeira vinda de Rogaland tornaria isso possível; os meus homens construí-lo-iam. Creio que a tarefa podia ser feita no espaço de dois Verões.Engus acenou apenas com a cabeça. Se tinha alguma pergunta para fazer, preferiu calar-se. Muito sensato, considerou Nessa, bocejando. Estava a fazer-se tarde. A maré já devia ter chegado à passagem, por isso os convidados teriam de ficar, quer quisessem, quer não. As contas eram lindas; a pele branca era suave e bela. No entanto, não poderia usar uma coisa daquelas sem pensar na criatura que vivera dentro dela. Os homens que guardavam Ulf usavam peles: grandes peles hisurtas sobre os ombros, como se tivessem pertencido a grandes cães míticos, maiores do que qualquer um que ela vira neste mundo. Aumentava-lhes o aspecto selvagem. A jovem bocejou de novo e deslizou para o exterior, tremendo na noite fria enquanto corria na direcção da pequena cabana que partilhava com a mãe, as irmãs e duas servas. O céu estava limpo; um cobertor de estrelas estendia-se de uma ponta do horizonte à outra, brilhando na escuridão azul-suave. A Lua era apenas uma lasca, não como a que desenhara nas pedras por cima do poço há longos anos, quando ainda era pequena e não tinha aprendido ainda os mistérios. Agora, conhecia todos os cantos daquele lugar secreto: as suas três longas câmaras com os nichos dos lados, os seus degraus íngremes interiores, a prateleira rochosa com os sete pequenos crânios colocados em fila à altura dos olhos. A câmara mais inferior era um lugar de uma escuridão total. Então, quando era miúda, Nessa perguntara a Rona que câmara era aquela, mas nem esta sabia, ou, então, não queria dizer. Assim, Nessa, com a confiança da infância, dissera a Rona o que pensava.Não acho que seja uma casa subterrânea. Parece que é, mas não é. Acho que é uma torre.Interessante observara Rona. Uma torre subterrânea.Nem sempre foi assim contara-lhe a pequena Nessa, entusiasmada. Em tempos viveu aqui um pescador, um bom lugar, perto da baía, abrigado. Começou por ser uma cabana, mas ele queria ver o mar, até bem longe, porque sempre pensara que, se olhasse com bastante atenção, conseguiria vislumbrar a Tribo das Focas, nadando e brincando na espuma das ondas, como os antigos diziam que podia acontecer.Rona acenara com a cabeça sem dizer nada.Nesse tempo era mesmo uma torre, bem acima das dunas, e tinha uma pequena janela virada para oeste. Era onde ele costumava pôr-se à procura deles. Ele era um homem muito paciente e acabou por conseguir o que queria. Uma noite de luar, a Tribo das Focas nadou até às rochas na parte norte, saiu da água e dançou em cima delas, nuas como bebés recém-nascidos, cada uma delas mais bela do que a outra.
O quê, mesmo os homens? perguntara a mulher com um pequeno sorriso.Dessa vez eram só raparigas dissera Nessa com a confiança própria dos seus seis anos. O pescador arrastou-se ao longo da costa, caminhou em bicos dos pés pelas rochas enquanto as estranhas criaturas cantavam, conversavam e penteavam os longos cabelos e, rápido como o relâmpago, agarrou uma pelo pulso, segurando-a com toda a força apesar das suas súplicas, até que a madrugada surgiu e as outras deslizaram silenciosamente para a água. O Sol nasceu e a mulher marinha teve de ir com ele para casa, porque uma vez chegado o dia elas não podiam regressar. Ele ficou com ela durante algum tempo. Mas é verdade o que dizem acerca da Tribo das Focas. Um tal acasalamento só pode acabar mal. Uma noite, os homens do seu povo chamaram-na e quando ela chegou à praia, eles ergueram aquelas minúsculas conchas prateadas para apanhar o luar e levaram-na para casa. O coração do pescador ficou destroçado. Creio que ele morreu sozinho, aqui nesta casa. Talvez o seu fantasma continue por aqui, escondido nesta câmara durante o dia e passeando sozinho pela praia durante a noite, chamando por ela e sem nunca conseguir resposta. Isso foi há muito tempo. Houve grandes tempestades, a areia cobriu a cabana, depois a parte de baixo da torre e por fim cobriu a janela, deixando tudo na escuridão, Por isso, como vês, é possível haver uma torre subterrânea. Foi o que aconteceu.E os crânios?Nessa pensara naquilo por um bocado.Suponho que a Tribo Perdida vem aqui de vez em quando replicou ela. Talvez os utilizem para beber.Diz-me dissera a feiticeira. Diz-me porque selaste a abertura com tanto cuidado. Tens medo da Tribo Perdida?Acho que não respondera Nessa, pensativa. As pessoas têm medo deles, mas eles pertencem tanto a esta ilha como nós, como se fossem uma espécie de antepassados, uma espécie estranha. Eles só pregam partidas: roubam um jarro de leite, ou apagam as fogueiras. A Tribo das Focas é que é perigosa. Esses é que levam as crianças, ou nos roubam o espírito; deixam-nos sós para toda a vida, como aquele pescador. É claro que eu tenho cuidado. Ninguém me vai fazer isso.É claro observara Rona secamente que o teu pescador podia ter esquecido e continuado com a sua vida. Podia ter casado, tido filhos e podia ter abandonado a torre. Não precisava de ter desperdiçado a vida só por não ter conseguido o que queria.Nessa recordava-se da sua resposta muito séria.A Tribo das Focas não quer saber de nós, só se interessa pelo que lhe podemos dar. O erro dele foi apaixonar-se e pensar que ela podia sentir o mesmo por ele. Ele deu-lhe o coração. Depois disso deixou de ser útil fosse a quem fosse, nem a si próprio.Agora, tantas estações depois, Nessa recordava a paciência da feiticeira. Rona fora uma boa professora, mas também exigente. Exigira-lhe testes de resistência e de vontade e conduzira a sua aluna com amor e eficácia. Ensinara Nessa a sonhar, a deslocar-se até onde havia tantas histórias como estrelas no céu, histórias maravilhosas, encantadoras, desde que se estivesse pronto a ouvi-las. Rona dizia que contar histórias era uma espécie de cura e que Nessa deveria recordar-se disso em tempos difíceis. Era interessante; o irmão Tadhg dizia mais ou menos a mesma coisa. Nessa não tinha dúvidas de que as suas histórias acerca de um rapaz nascido num estábulo e morto pregado numa cruz eram histórias instrutivas. Enquanto se instalava para dormir, imaginou que deuses seguiriam aqueles estranhos homens de ar feroz, vindos das terras geladas, ou se sentiriam necessidade deles.Engus ofereceu aos estrangeiros abrigo até ao fim do Verão e o direito de percorrerem as suas terras. Em troca, eles prometeram abstrair-se de quaisquer actos de violência, respeitar o povo local, tanto homens como mulheres e não tirar o que não lhes pertencia. Poderiam comprar farinha, carne e tudo o que precisassem aos camponeses, mas deveriam pagar o preço justo. Engus sugeriu, até, uma viagem à Ilha Alta, mais para o fim da estação. Poderiam encontrar lá lebres com abundância e muitas aves. Foi entendido por todos, sem necessidade de quaisquer palavras, que aquela viagem permitiria que o Dragão Dourado demonstrasse as qualidades que o colocavam acima de todos os outros navios: na verdade, o melhor.Os estrangeiros instalaram-se num local tranquilo a alguma distância, na parte sudeste do dique que constituía parte da fortaleza do Rei. As suas casas de pedra e turfa estavam construídas perto de um dos raros bosques da ilha, casas de paredes baixas, junto de um lago pequeno e calmo. Para norte e leste havia montes e charnecas e para oeste pastagens verdejantes. Dificilmente poderiam ter escolhido melhor lugar para apreciar as belezas da Primavera nas Ilhas Brilhantes. Os dias foram ficando maiores, o ar mais quente e os cabelos dos recém-chegados iam ficando cada vez mais claros devido ao sol. As suas peles claras ficaram cor-de-rosa; as peles de lobo e capas de lã foram tiradas e os corpos musculados dedicaram-se à pesca e à caça, a remendar um telhado para uma viúva ou a ajudar um camponês a matar um bezerro. As suas mulheres eram altas e fortes como os homens e pareciam ser tão capazes como eles, fazendo pão, cerveja e depenando galinhas.Ulf estava em toda a parte: inspeccionando os resultados da faina dos seus homens, caminhando ao lado de Engus enquanto o Rei lhe mostrava os estábulos ou os celeiros e, muitas vezes, em conversa com o irmão Tadhg, se bem que ninguém pudesse dizer de que falavam. Não levou muito tempo para Engus perceber que aqueles homens vindos do outro lado do mar tinham um plano, um plano que ia muito além de um Verão passado em tarefas nos campos, regressando depois a casa por altura das colheitas. Tencionavam instalar-se, disse Ulf, queriam que lhes dessem alguma terra, talvez um canto ainda não tocado pelo arado, ainda não pisado por gado. Se Engus permitisse, teria cooperação e amizade. E outra coisa: havia entre eles alguns dos melhores guerreiros de Rogaland e muitos deles desejavam ficar naquelas ilhas, enquanto outros desejavam regressar a casa no Outono. Com esse apoio, a posição de Engus ficaria reforçada. Se os seus vizinhos das terras dos Caitt, ou das ilhas a norte, pensassem em fazer-lhe uma visita inesperada, estaria pronto para os receber.E seu eu não concordar?Nesse caso, fica tudo como antes. Os modos de Ulf eram francos; era impossível duvidar da sua honestidade. Se disseres não, regressaremos a Rogaland antes de os ventos de Outono atingirem aqueles montes e não voltaremos aqui. Não ficaremos onde não somos bem-vindos.Engus disse a Ulf que ia pensar e que lhe daria a resposta em devido tempo. E observou-os. Enquanto a Primavera se ia transformando no Verão, à medida que o gado e as ovelhas engordavam na erva farta e na cevada amadurecida ao sol, observava e escutava, avaliando que tipo de homens eram e como a sua decisão pesaria no futuro dos Folk.
Os visitantes davam mostras de grande capacidade de trabalho. E também gostavam de se divertir. Na verdade, tinham a paixão pelo desporto e pelos jogos e em muitos dias sucediam-se, aos trabalhos do campo, desafios de várias espécies entre eles: corrida, luta, natação. Por vezes havia combates com armas. Ocasionalmente, havia ferimentos: um olho negro, uma orelha rasgada, um pulso ou tornozelo torcidos. Uma vez, um homem partiu uma perna e o endireita de Engus teve de tratar dele. Nessa mantinha-se afastada daquelas actividades, preferindo não ver nem ser vista pelos recém-chegados, mas não podia evitar as conversas das irmãs.No solstício do Verão, Ulf recebeu a família do Rei, oferecendo uma espécie de festa no relvado da margem do lago, precedida por uma tarde de jogos. Por essa ocasião, as reservas iniciais das pessoas já tinham sido substituídas por uma espécie de confiança cautelosa e alguns dos homens tinham ganho uma certa amizade aos estrangeiros. Quanto às mulheres, o seu comportamento com aqueles gigantes de cabelos claros só a elas dizia respeito, mas murmurava-se que na Primavera seguinte a população da ilha teria mais um ou dois bebés bem fortes. Na festa de Ulf, Engus assistiu a um jogo chamado Campo de Batalha, no qual cada equipa era formada ao mesmo tempo por locais e visitantes e em que todos os participantes tinham de demonstrar a coragem e a loucura exigidas pelas regras. Não havia acidentes graves, para além de uma disputa sobre que equipa era capaz de aguentar mais cerveja até a noite acabar. E o Rei continuava a observá-los, a avaliá-los.Nessa estação, os irmãos não viram muito Tadhg na Ilha Sagrada. Tadhg andava muito ocupado com os seus serviços de tradutor. Por três razões, Nessa não podia assisti-lo nessa tarefa: era rapariga, era sobrinha do Rei e era sacerdotisa dos Folk. No entanto, praticava a língua dos noruegueses o mais que podia. Não conseguia ver o futuro, mas o mal-estar continuava e parecia-lhe que o conhecimento daquela língua só lhe poderia dar força para lutar contra o que estava para vir. Quando Tadhg tinha algum tempo, sentavam-se nas rochas juntos, olhando para o mar sempre a mudar, observando as focas ao sol nos locais onde o recife se encontrava com a água e praticavam palavras e frases novas, ou trocavam histórias, ou ficavam simplesmente silenciosos enquanto o céu e o mar mudavam numa grande dança em seu redor. A língua norueguesa era mais áspera do que a dos Folk, mais cadenciada. Até os nomes tinham um som diferente. Nessa sempre pensara que era capaz de dizer, através de um nome, que espécie de pessoa era o seu portador. Não falava muito disso, porque era algo que as pessoas achavam estranho. Mas o irmão Tadhg era diferente. A ele podia dizer tudo.Quer dizer disse-lhe ela que espécie de nome é Ulf ? O teu nome, para mim, tem sentido, Tadhg: fala de coragem, como uma chama. E Kinart, também tem um significado, uma espécie de desígnio. Mas Ulf? Parece um latido de cão.Tadhg sorriu.No país deles, acredito que seja um nome bem escolhido para um nobre. Revi a minha opinião acerca do homem, devo admitir. É um homem equilibrado e justo, que diz o que lhe vai na mente e que sabe escutar. Tem-se mostrado muito interessado no que eu tenho para lhe dizer. Custa a acreditar que ele queira fazer mal ao teu tio.Nessa acenou com a cabeça. Estava a olhar para uma poça nas rochas. Pequenos animais, como estrelas submersas, agarravam-se às fendas e minúsculos peixes, reluzentes, nadavam, rápidos, por entre uma frondosa vegetação de um verde impossível.Mas continuas preocupado, não continuas? perguntou-lhe ela. Sentes o que eu sinto, uma sombra, um perigo.Tadhg suspirou.Não sei dizer, Nessa. Vi-os pôr de lado as armas, demonstrarem que são capazes de trabalhar arduamente e viver em harmonia com as pessoas da terra, pelo menos enquanto os tempos estão bons. É capaz de haver homens de valor entre eles.Mas?A mim, parece-me que é um pouco como fazer um acordo com um animal selvagem. A criatura desce dos montes, senta-se à nossa porta e nós alimentamo-la. O animal comporta-se como um cão bem treinado. Talvez, até, nos guarde a casa. Então, um dia, algo muda, uma coisa pequena e, subitamente, lembra-se de quem é. Uma noite ouve o chamamento dos seus antepassados, o apelo de um qualquer deus pagão. Num instante, torna-se, de novo, no animal selvagem e nós ficamos à sua mercê. Não quero ver isso nestas ilhas. O teu tio é um governante sábio. Os Folk não se apercebem, talvez, de quão ricas são as bênçãos de Deus. Talvez não reconheçam o que têm até o perderem.Não digas isso! Nessa virou-se para olhar para ele, alarmada com aquelas palavras. Como podes pensar numa coisa dessas?
Não o podemos perder! De qualquer maneira, se as tuas histórias são verdadeiras, deve haver algum bem em todas as pessoas. O teu deus não ama até os pecadores?Tadhg olhou para ela com ar sério.É verdade. Deus está em todos nós. Alguns estão vestidos com a luz do Espírito Santo e o bem brilha neles, um bem que tem a sua origem nas profundezas do seu ser. Uma fonte dessas nunca seca. Nenhuma força demoníaca consegue poluir as suas águas límpidas. Mas alguns são mais fracos e a chama divina está escondida dentro deles. É preciso ser um grande homem ou uma grande mulher, Nessa, para abrir o espírito e examinar o que está lá dentro: abrir a alma a essa luz brilhante. Essa escolha é terrível, porque cada um deve reconhecer o medo e a angústia, a fraude e a duplicidade, a luxúria e a violência, toda a miséria que um homem mortal transporta no seu corpo. No entanto, se ele ousar abrir-se ao amor de Deus, os seus pecados são perdoados e percorrerá um caminho novo. É essa a verdade maravilhosa que nos conta Jesus Cristo. Um caminho de luz. E até um guerreiro selvagem pode ser tocado pela sua graça. Deus ama todas as criaturas, os fortes e os fracos, regozijando-se com a suas diferenças.Nessa permaneceu silenciosa durante longo tempo, olhando para a longa figura de uma foca enquanto ela rolava preguiçosamente, esfregando o dorso no recife e expondo a barriga pálida ao sol.Eu gosto dessa ideia de sermos perdoados e capazes de recomeçar de novo, mesmo que não tenhamos feito coisas diabólicas disse ela por fim. No entanto, nunca compreendi por que razão esse teu deus se parece com um homem. Há forças muito mais poderosas do que os homens ou as mulheres, que mantêm tudo unido. Essa é a nossa fé, observar os rituais na mudança do ano, honrar o poder da Lua e do Sol, os espíritos que enviam a chuva e o calor para que a nossa cevada cresça luxuriante e clara e que os pastos alimentem o gado e as ovelhas. Nós respeitamos as forças da terra e do mar, eternas e unificadoras. Abrimos os nossos corações às vozes dos nossos antepassados. Sem esses poderes não somos nada, menos merecedores de viver nesta terra do que os animais selvagens, que compreendem instintivamente essa sabedoria. A mim, parece-me que não há deuses mais poderosos do que estes. Tadhg sorria. Talvez, no fundo, sejam os mesmos disse ele.
Nessa sentia-se pouco à-vontade e passava cada vez mais tempo no lugar das mulheres. Ali era seguro. Ali, no seio da terra, perto da torre subterrânea, a água doce brotava do solo e os arbustos cresciam em redor da lagoa formada por ela. Na Primavera, as primulas e as celidónias faziam brilhar as margens cobertas de erva; no Verão, o ar ficava vivo com os cantos das aves e à distância ouvia-se a música calmante do mar. Ali, Nessa podia continuar o seu trabalho em paz. Tinha adivinhações para fazer e sinais para ler. Havia tempos de êxtase, em que era possível ouvir histórias. Essas histórias eram ao mesmo tempo mapas e avisos, conhecimento e guia. Falavam do passado e do futuro, do modo de vida dos Folk. Quando as mulheres se reuniam para a festa da terra, quando os dias ficavam mais curtos, Rona falava-lhes do que ouvira e o que a estação que estava para vir teria para eles. Quando Rona desaparecesse, essa tarefa passaria para Nessa. No santuário do lugar das mulheres podia desenhar os seus padrões: pequenos seixos, ossos minúsculos, penas e conchas espalhadas no solo suavemente inclinado, junto da nascente. Podia fazer invocações, cantar e murmurar coisas secretas, apenas com as criaturas selvagens da ilha como ouvintes. Ainda havia Rona, claro, mas Rona, muitas vezes, parecia mais parte do local do que uma mulher. Andava cada vez mais silenciosa, de mãos cruzadas no colo, observando e escutando enquanto Nessa fazia o que tinha a fazer para manter as Ilhas Brilhantes unidas e os Folk sensatos. E quando Nessa lhe disse que andava preocupada, porque desde que aqueles homens tinham vindo das terras geladas havia uma sombra na Lua, uma escuridão na água, um suspiro errado no vento de oeste, Rona limitava-se a acenar com a cabeça, como se compreendesse tudo muito bem mas não pudesse fazer nada. Isso tornava Nessa ainda mais ansiosa e a jovem começou a temer o regresso a casa com medo de encontrar más notícias. Mas, por enquanto, Rona não a deixava ficar para sempre no lugar das mulheres.Ainda não estás pronta dizia ela. És mais nova do que pensas, rapariga. Vai, vai para casa. E, como que desmentindo as suas próprias palavras, sorria, despertando uma miríade de rugas no seu rosto velho e sábio.Um dia, quando Nessa caminhava para casa ao longo da costa cheia de erva, viu um homem sentado nas rochas a olhar para o céu.
Estava de costas para ela, mas a jovem percebeu logo quem ele era pela maneira como estava sentado. Não precisou de ver os seus cabelos claros ou o grande machado no dorso, ou a pele cinzenta que ele usava nos ombros. Nenhum homem que vira antes seria capaz de estar tão imóvel, como se fizesse parte da rocha onde estava sentado. Nessa passou por trás dele o mais silenciosamente que pôde, mas tentou imaginar o que estaria ele a pensar. O homem estava a olhar para as nuvens como se esperasse ouvir alguma voz vinda delas, ou esperasse uma visão. Olhava como se tivesse fome de uma resposta. A Nessa parecia que o homem não se sentia feliz. Talvez não gostasse das ilhas. Talvez tivesse saudades da mulher, ou da namorada. Bem, a sua espera terminaria em breve, se o tio dela fizesse uma escolha sensata. Chegaria o Outono e aqueles homens regressariam a suas casas nos seus barcos e tudo voltaria a ser como antes. Nessa estremeceu ao passar por ele. Evidentemente, não seria assim. Não se podia, nunca, voltar atrás. A jovem olhou por cima do ombro, esperando ver o homem ainda sentado nas rochas, imóvel. Mas ele estava, agora, de pé, observando-a enquanto ela se afastava na direcção de Dorso de Baleia. Apesar de todo o cuidado que tivera, ele ouvira os seus passos por cima do rugido do mar, por cima dos gritos das gaivotas. Os ouvidos do homem eram tão bons como os de um mocho. A jovem puxou o capuz para a cabeça e continuou a andar. Perto da passagem estavam outros noruegueses, três grandes guerreiros e dois dos guardas do seu tio falando com eles; talvez fosse uma espécie de delegação. Quando ela passou por eles, um dos homens assobiou agudamente numa espécie de chamamento e Nessa sentiu, mais do que viu, o homem de cabelos amarelos afastar-se do mar e dirigir-se para junto dos seus companheiros. A jovem correu através da estreita passagem na direcção de Dorso de Baleia e na direcção da segurança.Engus convidou os estrangeiros para outra festa antes do começo das colheitas. Dessa vez, o Rei permitiu que as suas sobrinhas se sentassem à mesa, mas Nessa não. Esta permaneceria nas sombras, uma observadora invisível. A jovem falara com o tio e este escutara-a atentamente, mas dissera que as suas desconfianças não tinham razão de ser. Assim, tomara a sua decisão. Mas Nessa não tomaria a refeição com aquela gente; aquela atitude parecia-lhe perigosa e não tomaria parte nela. Nessa noite a mulher de Ulf sentou-se a seu lado, uma rapariga de costas e cabeça muito direitas, num porte altivo. Não era nenhuma gigante loura, antes bem-feita, de cabelos ruivos e modos tranquilos. A seu lado estava sentado aquele chamado Somerled e do lugar onde estava Nessa podia ver como as mãos de ambos se encontravam e entrelaçavam por baixo da mesa, longe da vista das outras pessoas.Tenho-vos observado ao longo do Verão dizia Engus. Tendes trabalhado arduamente, não poupando os vossos esforços na ajuda aos que necessitavam, nem nunca transgredindo as normas de boa conduta. Estendestes a mão da amizade e partilhastes o que tínheis. A vossa boa vontade aqueceu-nos. Sentimo-nos satisfeitos com a vossa presença.Ulf inclinou polidamente a cabeça.No entanto, uma decisão destas não é fácil disse Engus. Nós queremos muito à nossa terra; é um reino de profunda beleza, rico das dádivas da terra e do mar. E é antiga: antiga e poderosa. Não a partilhamos sem mais nem menos, porque isso é pôr em risco o que não tem preço. É um sinal da fé que temos em ti, lorde Ulf, na tua honestidade e visão, o que me leva a decidir. Podeis ficar aqui nas casas que vos dei e construir outras à medida que precisardes. Negociarei a compra da terra que vós já trabalhais; farei com que as vossas herdades possam ter gado e boas colheitas. Ofereço, também, os serviços do meu touro e dez novilhas para acrescentar às vossas duas. Escolherei as crias na Primavera.Ficamos em dívida para contigo, meu senhor. Ulf não pôde reter o sorriso que se espalhou pelas suas feições habitualmente sérias. São, na verdade, boas notícias.Um rugido de aprovação saudou a tradução das palavras de Engus, acompanhado por pancadas na mesa e um erguer de taças.- Mas há algumas condições continuou Engus e o barulho diminuiu. Exijo uma promessa de paz. Os teus respeitarão as minhas fronteiras e o meu povo. Honrarão a terra e as suas antigas pedras.Dou-te a minha palavra disse Ulf solenemente. E a minha palavra é sagrada. Falo por todos os noruegueses que aqui estão.Quero que compreendas continuou Engus que eu sou o único Rei desta terra e que enquanto a tua espécie viver aqui, obedecerá às leis dos Folk. Não estou interessado nos deuses que adorais, nos rituais que celebrais; a escolha é vossa, se bem que aqui o irmão Tadhg, sem dúvida, tentará mudar a vossa fé. Ele martela diariamente as nossas mentes recalcitrantes com pouco proveito. Faço-vos apenas um único aviso, que não deve ser, nunca, esquecido. Estas ilhas estão cheias de poderes antigos. Vistes o lugar das pedras. Essas pedras garantem a união das Ilhas Brilhantes. São muito mais antigas do que os Folk; foram ali colocadas por mãos cujos ossos são os da própria terra. Há outros lugares iguais, com sinais idênticos. Se interferirdescom eles, fá-lo-eis com risco das vossas vidas.Compreendo disse Ulf. As pedras são, na verdade, uma maravilha. Um homem teria de ser louco para não reconhecer a sua importância.Engus acenou com a cabeça.Nesse caso, somos amigos e aliados a partir deste dia. Que este tratado seja jurado com a devida cerimónia no espaço de três dias. Encontrar-nos-emos na Grande Pedra dos Juramentos e lá faremos o nosso voto de paz e amizade sob o olhar dos nossos antepassados. Que todos os homens aqui presentes estejam lá nessa ocasião.Na nossa terra comentou o conselheiro de Ulf, Olaf Sveinsson, com o sobrolho franzido um tal juramento exige um bracelete; só então é verdadeiro. Um belo bracelete de ouro, consagrado a Odin, ou a Thor, permite que os deuses testemunhem a solenidade de uma tal promessa.Um bracelete? perguntou Engus, duvidoso. Se é esse o vosso costume, o que proponho deve satisfazer-vos. O local do nosso ritual permitirá que este voto seja duplamente sagrado e duplamente forte. Quando nos encontrarmos para o juramento compreenderás o que quero dizer.E assim foi feito. Nessa soube por Kinart, porque aquele juramento era apenas entre homens e nem sequer os sacerdotes dos Folk assistiram. O seu primo contou-lhe como, na hora indicada, os homens das ilhas se juntaram em redor da pedra sagrada que se erguia majestosamente isolada no campo, junto do local dos círculos maior e menor, onde o lago brilhava sob o céu, onde as nuvens mergulhavam na água, onde o vento assobiava em volta dos antigos monólitos e cantava através das câmaras subterrâneas. Naquele lugar as diferenças tocavam-se e esbatiam-se; os elementos fundiam-se e os antepassados murmuravam ao ouvido dos verdadeiros filhos dos Folk. Um voto feito ali, na Grande Pedra dos Juramentos, era das coisas mais sagradas. Nenhum homem se atrevia a quebrar um tal voto.
Os homens das terras geladas caminharam até junto dos ilhéus liderados pelo solene Ulf e pelo seu irmão, Somerled. Iam os conselheiros, os homens de armas, os guardas com peles de lobo. Ocuparam os seus lugares no círculo e Ulf e Engus avançaram para se colocarem junto da grande pedra, um verdadeiro gigante, perfurado por um único buraco redondo: a marca do punho zangado de um deus, sugerira um dos visitantes, mas Engus explicara calmamente que era um olho.Jurai sobre isto e os nossos antepassados vigiar-vos-ão a cada momento para se assegurarem de que vos mantivestes sinceros.Era também uma passagem, uma porta entre dois mundos. Assim, fazer ali o juramento significava que compreendiam o significado das ilhas, como albergavam não apenas a vida humana que cultivava os campos e pescava nas suas águas, mas também uma vida mais secreta, mais profunda, a vida da terra, o espírito dos antepassados. Ulf acenara solenemente com a cabeça à tradução de Tadhg e não dissera nada.Quanto ao ritual em si, era muito simples e todos puderam ver como satisfazia ao mesmo tempo as exigências do povo de Engus e do povo de Ulf. Tanto o bracelete, como a pedra, foram apresentados como um todo; o tratado seria duplamente jurado. À luz indefinida do luar, através do buraco, Ulf apertou a mão do Rei e cada um curvou a cabeça. Seguiu-se um silêncio e depois a voz de Engus soou:Que nenhuma espada seja erguida, que nenhum arco seja esticado, que nenhum punho irado se erga entre os teus e os meus!E Ulf repetiu o juramento, agradando aos homens de Engus por utilizar a língua dos Folk. Ele ainda não compreendia aquela língua, mas aprendia o mais rapidamente que conseguia por perceber as vantagens que daí tiraria. Um bando de pequenas aves voou por cima das cabeças deles no momento em que ele falava, percorrendo ainda um círculo antes de rumarem a oeste, o que foi considerado um bom presságio por todos. Um hurra saiu da boca dos homens e Engus deu a volta à pedra para apertar os ombros de Ulf, o seu rosto barbudo transformado por um sorriso. O acordo estava feito.A colheita ia ser boa, a cevada amadurecia bem. O povo de Ulf andava ocupado na construção de novas casas, erguendo paredes de pedra, instalando telhados de colmo, enfrentando o facto de que ia ficar. Aqueles que iam regressar a Rogaland cuidavam dos barcos, preparando-se para uma nova viagem. Tinham deslocado os navios para uma baía a sul, achando o local mais apropriado para o trabalho de reconstrução e reparação. Os pescadores locais tinham sido generosos na concessão de alojamento e provisões. O irmão Tadhg pegou na sua pequena bolsa, no seu livro de histórias e regressou à Ilha Sagrada levando consigo Ulf para este ver a colónia que os irmãos tinham fundado num local tão improvável. As focas escoltavam-nos enquanto o seu frágil barco saltava no mar revolto.Com gadanhas e foices, ancinhos e forquilhas, os Folk começaram a colheita sob céu limpo. Já tinham, talvez, colhido metade do grão quando a doença apareceu. Apoderou-se deles com tanta subtileza como o crepúsculo do Verão, começando com uma pequena tosse, os narizes começaram a fungar e apareceu uma pequena febre. Primeiro, um dos homens apanhava-a e recuperava, mas depois era o irmão que ficava doente e piorava. Uma semana depois estava deitado na sepultura, morto. Começou a passar entre eles como um fogo súbito, levando homens, mulheres e crianças indiscriminadamente. Os Folk nunca tinham visto uma peste daquelas, rápida e mortal. Foram tentados variados remédios; nenhum resultava. As colheitas foram abandonadas, porque no espaço de um ciclo lunar passou a haver apenas duas ocupações para um homem ou uma mulher que não estivesse já morto ou a morrer: cuidar dos doentes e cavar sepulturas. Entre os recém-chegados, poucos sucumbiram e nenhum morreu. A mulher de Ulf, Margaret, pôs o seu povo à disposição para ajudar o melhor que pudesse. Mas pouco havia a fazer face àquele flagelo e também eles tinham os seus para tratar. O próprio Engus permaneceu saudável; o seu filho, Kinart, esteve doente algum tempo, mas recuperou. Outros da casa do Rei não tiveram tanta sorte. Engus enviou os seus homens para oferecer a ajuda que pudessem dar; mas também eles adoeceram e morreram. As herdades foram fechadas. Lá dentro, os sobreviventes solitários choravam na escuridão. Nos campos, os filhos sepultavam os pais; de corações gelados, as mães choravam os seus filhos perdidos. Os homens de Ulf socorreram a cevada ainda por ceifar nos campos e armazenaram-na antes da chegada das chuvas. Foi uma pequena mercê. O nórdico usou os seus cães para procurar gado perdido, mas estes não podiam estar em todo o lado ao mesmo tempo. As ovelhas caíram em ravinas e morreram à fome; as águias roubaram os cordeiros nascidos no Outono.
Na ocasião, Nessa soube pouco acerca do assunto, porque jazia tremendo de febre, presa a visões febris. Sonhava que estava atada a uma fogueira; sonhava que estava a ser perseguida por monstros que a queriam escravizar e que corria sobre areia movediça. Sonhava com caveiras de olhos vazios, corpos mortos cujas feições ela reconhecia. Pensava que a sua mãe estava junto de si, mas depois desaparecia. A serva olhou para ela por um instante e depois também ela desapareceu e a única pessoa presente era o irmão Tadhg, o que era estranho, porque ele fora para casa. O monge passava-lhe um pano pelo rosto e obrigava-a a beber água, mas ela não queria, sentia-se cansada, tão cansada...Esteve doente durante muito tempo e quando, por fim, recobrou a consciência, o Outono estava quase no fim. A jovem tentou sair da cama, mas as pernas não aguentaram e ela caiu no chão. Não havia mais ninguém no aposento, absolutamente ninguém. E estava tudo muito tranquilo: tão tranquilo que, por um momento de terror, ela imaginou que fora a única a escapar. Então, Tadgh regressou, sentou-se a seu lado na cama cheia de cobertores e obrigou-a a beber uma sopa. E não falaria até que ela a bebesse toda. Então, como Nessa se recusasse a deixá-lo ir sem que lhe contasse o que se tinha passado, ele contou-lhe a verdade. A doença levara quase metade dos Folk da ilha e mais de metade das famílias de Dorso de Baleia. Ainda não sabiam o que se tinha passado nas outras ilhas. A velha feiticeira, Rona, sobrevivera e andara a distribuir provisões pelas herdades, fora buscar Tadhg e Ulf. Os irmãos também não tinham escapado, porque os dois rapazes locais que se tinham juntado a eles na Ilha Sagrada tinham morrido.Mas o relato ainda não tinha terminado.A minha mãe? - sussurrou Nessa.Pelas feições calmas de Tadhg passou uma sombra.Ela esteve seriamente doente, minha querida disse-lhe ele gentilmente. Quase morreu. Já passou o pior, mas está muito fraca. Quando estiveres mais forte, levo-te até ela.Seguiu-se outro silêncio. Nessa descobriu que dessa vez não tinha forças para perguntar. A jovem fechou os olhos sentindo as lágrimas caírem-lhe lentamente pelas faces enquanto a voz calma de Tadhg continuava a sua litania de perdas.As tuas irmãs... as tuas duas irmãs morreram, Nessa. Lamento. Lamento tanto ser eu a trazer-te estas notícias tão terríveis. Por vezes, é esta a vontade de Deus: pega nos inocentes, nos bons e leva-os para junto dele, para o Paraíso, onde tudo é luz e graça. Neste momento, tu só sentes dor; não consegues ver para além das trevas da tua própria dor. Com o tempo, compreenderás que estão todos num lugar melhor, num lugar onde não existe a tristeza.
Mas Nessa puxou os cobertores para cima do rosto e virou-lhe as costas sem se sentir consolada. A ira queimava-a como se fosse uma pequena chama: ira para consigo própria por ser tão fraca e não ter forças para, sequer, se levantar da cama; as suas irmãs tinham morrido ali mesmo e ela não soubera, não fizera nada para as ajudar. Ira para com Tahdg pelas suas palavras que não significavam nada, para com a sua fé que não passava de uma mentira. Ira para com o seu tio, também. Ele mudara as coisas. Acolhera os estrangeiros nas Ilhas Brilhantes e formara um novo padrão. Então, a doença viera e agora os Folk estavam mais fracos e o ciclo desequilibrado. Se Engus tivesse deixado as coisas como estavam, talvez nada daquilo tivesse acontecido. Não admirava que sentisse um certo mal-estar ao ver aqueles homens com os seus grandes machados serem recebidos na mesa do seu tio. O tempo em que ela deixou que o desespero tomasse conta de si e se permitiu chorar encolhida na escuridão foi breve. A jovem forçou-se a recuperar, porque não havia tempo a perder. Forçou-se a comer, se bem que toda a comida lhe soubesse a areia. Forçou-se a andar, se bem que todas as partes do seu corpo se sentissem moles como um novelo de lã. Foi ver a mãe, que estava sentada num banco, apática., os cabelos despenteados, as mãos caídas no colo, olhando na direcção do mar. Tornou-se imediatamente evidente que teria de ser a própria Nessa a encarregar-se das coisas, apesar de ser tão nova. Poucos servos tinham restado. Os que não tinham morrido estavam fora cuidando das suas próprias famílias nas herdades e casas espalhadas pela ilha. Engus ausentara-se para contar os ilhéus restantes, que gado andava espalhado, que prejuízos tinham provocado as tempestades de Outono às casas deixadas ao abandono. Ulf acompanhara-o com os seus grandes guardas e oferecera-se formalmente para ajudar, se bem que todos soubessem que ele já fazia o melhor possível por todos. Kinart estava a organizar um pequeno grupo de pescadores para poder fornecer provisões e armazenou os barcos por causa do Inverno. Isso deixava a Nessa a tarefa de pôr ordem nos restantes membros da casa de Engus, coisa que ela fez. Não havia tempo para mistérios, não havia tempo para o lugar das mulheres. Por volta do fim do Outono a doença completara a sua obra e os sobreviventes estavam a endireitar as coisas o melhor que podiam. Um ou dois, como a mãe de Nessa, talvez nunca mais recuperassem. Mas a vida tinha de continuar. Também houvera tempos difíceis antes: Invernos difíceis, gado doente, guerra com as tribos dos Caitt. A sabedoria dos antepassados permitira que os Folk suportassem essas dificuldades. Sobreviveriam. Dizia-se em voz baixa que talvez tivesse sido bom Ulf e os seus gigantes da neve terem vindo quando vieram, já que os Folk tinham perdido tanta gente naquela estação. Pelo menos, haveria homens fortes para lavrar na Primavera.Quanto a Nessa, sentia-se contente por estar ocupada. Permitia-lhe não pensar demasiado. Quando pensava, ficava irada, tão irada que tinha de sair de casa e ir para a ponta ocidental de Dorso de Baleia, para o topo da falésia, permitindo que o vento e a espuma do mar lhe chicoteassem o rosto e os cabelos, como se fosse um estandarte de desafio. Por vezes, dava consigo a gritar como um animal selvagem. Por vezes, chorava. Só regressava a casa quando os sinais da sua angústia se tinham apagado das suas feições. Havia uma poça provocada pela chuva onde era possível ver a própria imagem. Ela sabia que a pessoa na água era algo diferente da Nessa da última Primavera, que caminhara pelos carreiros da falésia e pelas praias da ilha sem sequer sonhar que as vidas do seu povo podiam conter tanta dor. A criatura que olhava para ela tinha os mesmos olhos cinzentos, o seu cabelo continuava longo, castanho e encaracolado, Mas estava mais pálida e magra e a sua expressão tinha mudado. Havia uma espécie de sombra nela, como se tivesse perdido algo, ou talvez encontrado algo que não queria, mas com que tinha de ficar para sempre.Um dia, aproximou-se de Tadhg, que estava tranquilamente de pé no local onde os seus familiares estavam enterrados, tantos, e as suas irmãs com eles. Havia um dólmen sobre eles, pedras perfeitamente alinhadas. Com o tempo, a turfa verde torná-lo-ia mais macio. Os lábios de Tahdg moviam-se. As suas mãos seguravam a cruz de madeira que ele usava ao pescoço e, de súbito, Nessa não conseguiu controlar os seus sentimentos.Pára! Pára com isso! gritou ela correndo para ele e agarrando-lhe nas mãos, de modo que a cruz lhe caiu sobre o hábito, girando no seu rude cordão. Eles não querem as tuas orações, não conseguem
ouvir as tuas palavras santas! De qualquer maneira, não passam de mentiras, tudo mentiras! A tua fé é uma data de falsidades! Se o teu deus é tão bom e perdoa tudo, se ama os inocentes e os puros de coração, por que permitiu que as minhas irmãs morressem?Tahdg não respondeu de imediato. Permaneceu imóvel enquanto ela lhe batia com os dois punhos; observou-a enquanto ela se afastava, abraçando-se a si própria numa tentativa para conter a fúria. Por fim, disse:Deus é amor, Nessa. Ele levou as tuas irmãs para junto de Si e curou-lhes todo o sofrimento. Agora, olham para ti sorrindo. Deus ama todos os seus filhos.Não é verdade! Morreu toda a gente, bebés pequenos, homens velhos, gente trabalhadora, toda a espécie de gente. Como podes dizer que está tudo bem quando está tudo mal? As minhas irmãs morreram antes de poderem crescer, casar e ter filhos, antes de poderem fazer fosse o que fosse. Não existe qualquer razão para isso. Por que foram levados os do meu povo e poupados os estrangeiros? Nós não merecemos isto, é cruel e injusto. Cuspo no teu deus e nas suas falsas palavras de amor. Desprezo-o.Nessa, ouve disse Tahdg tu não acreditas em mim, eu sei, mas, com o tempo, suportarás tudo melhor.Como pode ser? cortou Nessa, furiosa com a paciência dele.É assim disse ele. Nunca as esquecerás, mas pô-las-ás de lado na tua memória e continuarás. Acontece com todos.Seguiu-se um silêncio.Diz-me disse Tahdg achas que se eu não estivesse aqui e tu nunca tivesses ouvido falar de Jesus Cristo e dos seus ensinamentos, esta peste não teria vindo?Não admitiu ela.Quem culparias, então? perguntou suavemente Tahdg. Isto não é obra dele e não é culpa do povo de Ulf. Eles mostraram a sua força e amabilidade durante estes tempos difíceis; a minha opinião acerca deles está a mudar. E agora vamos. Regressamos juntos? Eu acho que as orações ajudam. Por que não procuras a resposta na tua própria fé? Todos nós devemos curar as nossas feridas o melhor que sabemos e podemos.Depois daquilo, Nessa arranjou tempo para passear na praia e olhar para os padrões das pedras. Desceu pelo lado sul da costa e subiu até à falésia, onde se sentou numa concavidade olhando para oeste, escutando as aves marinhas nas fendas por baixo de si, não muitas naquela época do ano, mas as suficientes para encherem o ar à sua volta. Manteve-se de pé nas rochas onde vira o guerreiro silencioso e olhou para o mar. Aqueles passeios eram, na verdade, uma espécie de oração, a sua espécie de oração. A dor parecia não diminuir, visto que continuava a recordar pequenas coisas: um pente de osso com focas gravadas que fora de uma das suas irmãs, deixado numa prateleira; um par de chinelos verdes de feltro que fora da outra e que ela sempre quisera para si própria. Agora, os chinelos estavam por baixo da sua cama e ela não conseguia calçá-los.
E, durante todo esse tempo, os olhos de Engus não a largavam, avaliando-a, julgando-a. Porque tudo mudara. O seu tio orgulhara-se por ela se ter tornado aluna de Rona, orgulhoso pelo que ela significaria para os Folk. Mas isso era dantes. Depois da peste, a família já não era rica em raparigas. Kinart não podia tomar o lugar do pai. A linha real era feminina; sempre fora assim, porque uma tal sucessão assegurava um sangue forte e as disputas entre parentes eram menores. No espaço de uma estação, Nessa tornara-se a última princesa dos Folk e já não era possível devotar a sua vida aos mistérios. Se queriam evitar que a coroa fosse para os Caitt, Nessa tinha de casar e gerar um filho: um filho que seria, um dia, Rei das Ilhas Brilhantes.
Em tempos, contava mortes. Agora contava dias, dias intermináveis, até que o último navio partisse para casa. A voz de Thor tornara-se fraca como um murmúrio, tão longe estava. Aquelas ilhas não eram lugar para um guerreiro.
Eyvind esperara que os planos de Ulf tivessem incluído um templo. Desse modo, pelo menos, os rituais poderiam ser observados e feitos os sacrifícios. Desse modo, pelo menos Thor compreenderia que aquilo era temporário, um exílio imposto por uma observação de Somerled. Em breve, tanto o navio como o knarr, estariam a caminho de Rogaland e Eyvind e Eirik estariam de regresso a casa: de regresso à corte dojarl, de regresso a uma vida de honra e orgulho, servindo o deus com o machado e a espada. Mas Ulf não construíra nenhum templo e não havia rituais. Eyvind era obrigado a chamar por Thor o melhor que podia na praia solitária, nas rochas desoladas ou em campo aberto: Eu sou o teu braço direito! Não me esqueças!
Outros eram de opinião diferente. Hakon não perdera tempo. Talvez já não ouvisse tão bem, mas isso não lhe retirara as outras qualidades. Com uma prontidão notável, saíra da colónia de Ulf e fora para a cabana isolada de uma agradável e jovem viúva com dois filhos pequenos. E, comentou Eirik com um sorriso, pelo ar da viúva, quase a rebentar, já estava outro a caminho. Hakon parecia tão lustroso e contente como um gato bem alimentado. Todos faziam apostas sobre quem seria o próximo; Thord estava no topo da lista. A sua escrava cheia de vida trazia-o pelo beicinho e era do conhecimento de todos que ela gostava que o seu homem se mantivesse perto de casa, onde o podia manter debaixo de olho. Não faltaria muito para que aquele guerreiro cheio de cicatrizes sucumbisse aos seus trejeitos e pusesse de lado a espada para pegar num arado ou numa rede de pesca.Eyvind sentiu-se chocado por um Pele-de-Lobo mudar assim, como se o chamamento de Thor já não o inspirasse. As Ilhas tinham feito aquilo. Tinham tecido uma magia qualquer que fazia com que os homens se esquecessem de quem eram e a que juramentos estavam ligados.A princípio houvera algum trabalho. Ulf mantivera uma guarda pessoal: dois junto de si, outros dois a alguma distância e outros cuidadosamente colocados em observação. Mas não houvera ataques, nem conspirações, nem ameaças. Não havia nada para ver senão um Verão de cooperação e trabalho árduo nos campos e ele acabou por dispensar quase todos os seus Pele-de-Lobo, dizendo que tinha um acordo com o Rei Engus e que não haveria necessidade de lutar, pelo menos enquanto não tivessem de enfrentar, juntos, um inimigo comum. Postou Eirik a sul para supervisionar a reparação dos navios e para se assegurar de que tudo ia bem com os que lá tinham ficado. A tripulação do knarr juntara-se à colónia de Ulf, mas, durante os meses de Verão, partia para a pesca com os pescadores que habitavam aquele ancoradouro pacífico a que Ulf dera o nome de Hafnarvagr, baía de refúgio. A norte, Erlend, Grim e os outros eram vistos muitas vezes a transportar pedras, a cortar colmo para os telhados, a afiar as armas e a ensaiar movimentos de combate.Com tempo disponível, Eyvind observava. Viu que Ulf se ausentava muito. A princípio ia estabelecer limites, planear casas e até um grande salão na casa senhorial, negociar compra de gado e de provisões. Mais tarde, parecia passar muito tempo com o tradutor de Engus, o monge cristão. Tadhg era um homem de aspecto franzino, inofensivo. Ninguém levava a sério as ideias dele; ninguém a não ser Ulf. Ulf achava-as interessantes. Na verdade, achava-as tão interessantes que chegava a desaparecer durante dias na ilha onde o homem e os seus seguidores viviam uma vida de privações e solidão, felizes por terem um peixe ou dois, um caldo de algas e o dia passado em orações. Quando regressava dessas estadias, Ulf vinha mais calmo e mais distante. As suas feições sombrias começaram a assumir a mesma serenidade de expressão que era possível ver nos olhos do tradutor. As pessoas começaram a falar e a ficar pouco à-vontade. Certamente o seu chefe de guerra não ia abandonar os velhos deuses? Seria possível Ulf, que eles tanto admiravam e respeitavam, virar-se contra Odin? Não podia ser. Mas os murmúrios continuaram.Somerled surpreendera Eyvind. Somerled, acostumado às conversas inteligentes e aos jogos de corte complexos, não sentiu as restrições da sua nova vida. Não tinha saudades de casa, como Eyvind. Somerled, que sempre fora um homem solitário, tinha um círculo restrito de amigos e seguidores, que não era de cortesãos polidos como ele, antes de homens duros, de trabalho. Entre eles estavam os homens da tripulação do knarre outros que estavam, na melhor das hipóteses, na periferia da casa de Ulf: um ferrador, um ferreiro e um ou dois que tinham sido servos domésticos. Todos homens sem família, homens que tinham feito a viagem sós. Não havia ilhéus no grupo de Somerled. Encontravam-se à noite na casa que a tripulação do knarrpartilhava em Hafnarvagr, bebiam cerveja juntos, Somerled ensinava-lhes jogos com dados e contava-lhes histórias que os fazia rebentar a rir.Foi mais ou menos por essa ocasião que Somerled adquiriu outro nome e aumentou ainda mais a sua popularidade. A gente de Ulf tinha falta de cavalos e naquela terra os cavalos eram uma comodidade essencial, já que os contornos suaves e falta total de florestas tornavam o cavalo o meio mais eficaz de deslocação. Engus cedera a Ulf alguns animais fortes e pesados para o trabalho nas herdades e um cavalo de montar para seu uso pessoal; quaisquer outros animais tinham de ser negociados com os fazendeiros locais e nem todos eles precisavam das jóias ou peles oferecidas em troca. Aquele era um país frugal, onde cada animal tinha um preço único.Assim, quando um fazendeiro chamado Gernard se ofereceu para trocar um belo e jovem garanhão por um saco cheio de prata caso um homem qualquer conseguisse aguentar-se em cima dele até que ele contasse até vinte, os interessados foram muitos. O facto de a oferta ter sido feita no salão onde bebiam já noite adiantada, só provocou o aumento entusiástico dos interessados. Se Eyvind tivesse estado presente nessa noite, talvez tivesse conseguido um cavalo e talvez, também, um cognome, mas Eyvind estava para norte e só ouviu aquilo mais tarde da boca de um espantado Thord. Os homens reuniram-se na herdade do indivíduo na manhã seguinte à oferta, a maior parte deles ainda cambaleante, mas quando viram o garanhão com os olhos revirados, a cauda agitada e a andar de lado nervosamente, só três quiseram manter o negócio. Um desses três era Somerled.
Era evidente que o animal era mau e não merecia, sequer, o baixo preço mencionado. Mal tinham começado a contar já o primeiro estava estendido no chão, gemendo e massajando as costas. Talvez umas costelas partidas: orgulho ferido, mais provavelmente. Ergueram-no para o alto do muro de pedra e o segundo entrou. O garanhão estava amarrado; usava uma cabeçada rudimentar com uma longa corda, que estava presa a um anel no muro do celeiro. A corda teve de ser segura por três homens para que Einar, Nariz Comprido pudesse subir para o dorso do cavalo. Quando eles o largaram, o homem ferrou os punhos na crina do animal e apertou os joelhos, o rosto da cor do queijo, mas antes de conseguirem contar até seis, também ele foi cuspido do dorso do cavalo, evitando por um triz partir a cabeça no muro de pedra do pátio.Não vale o risco grunhiu Einar, trepando com esforço para cima do muro enquanto o garanhão recuava, batendo com os cascos no solo e dispersando os homens. Um animal destes nunca poderá ser montado. Olhem para os olhos dele.Achas? Somerled estava a enrolar as mangas, franzindo um pouco o sobrolho, os olhos escuros pensativos enquanto fixava aquele animal terrível, aos saltos. Talvez só precise que lhe mostrem quem manda. Dá-me aqui uma ajuda, sim?Mais tarde, as teorias foram muitas acerca de como Somerled tinha feito aquilo. Alguns disseram que fora porque ele era leve e ágil; outros disseram que tinha sido pura coragem. Toda agente sabia que o homem não era nenhum atleta. Dizia-se que ele usara um aguilhão qualquer e aterrorizara o animal até o levar à submissão. Os pormenores exactos pouco interessavam; todos os que estavam presentes naquele dia concordaram que o irmão de Ulf conseguira manter-se no dorso do animal durante o tempo exigido e, mais ainda, conseguira que o garanhão desistisse da sua luta e ficasse ali a tremer, submisso. Somerled desmontara e caminhara calmamente até junto do dono, Gernard, enquanto metia a mão na algibeira para tirar o preço do animal: um pequeno saco de prata.Nunca me subestimes dissera Somerled, segundo o relato de Thord. No fim de contas, não passa de um cavalo.Nessa noite, Somerled levara-os a todos para a casa onde costumavam beber e no meio de muitas gargalhadas e felicitações recebera o seu segundo nome: Somerled, Senhor-dos-Cavalos. De certo modo, a notícia não surpreendeu Eyvind. Com Somerled, tudo podia acontecer. Se a sua intrepidez o fizera adquirir um belo animal, se bem que um pouco difícil, ainda bem para ele. O nome era sonante. Eivind sentia-se contente por não ter adquirido ainda algo similar, porque sempre temera que a escolha caísse em Pequeno Touro e não sabia como explicar isso à sua mãe.
Ninguém podia dizer que Margaret não fazia os maiores esforços para ser uma boa esposa. Quando a peste viera e ceifara os ilhéus como se fossem frágeis espigas de trigo, fora ela que despachara homens e mulheres para ajudar, fora ela que exortara os mais receosos a entrar nas casas e a pensar nos outros primeiro, para variar. Muitos dias se tinham passado antes que Ulf regressasse da Ilha Sagrada. Quando isso aconteceu, Margaret tinha as colheitas organizadas, os homens cavavam sepulturas, as mulheres cozinhavam e assistiam as crianças órfãs. Eyvind perguntara a si próprio se ela não estaria também doente, porque a elegante rapariga de Freyrsfjord parecia pálida e cansada, com um rictus na boca que não pareceu desaparecer quando o marido regressou para acrescentar a sua ajuda às ofertas àqueles que ela já tinha instalado. Ulf agradeceu à mulher em frente de todos pelo que ela fizera durante a sua ausência, mas com uma certa tensão, uma certa formalidade, e Eyvind viu um olhar de dor no rosto de Margaret O jovem guerreiro pensou que, se calhar, a mulher de Ulf teria preferido que ele a rodeasse com os braços, a apertasse e lhe dissesse que a amava. Pensou se Ulf teria pensado naquilo, ou se as paixões que o compeliam para uma nova praia, uma nova fé, o teriam afastado da importância de algo tão simples. Talvez Ulf se tivesse esquecido de quão jovem era a sua mulher.
Quando Somerled regressou do norte, cavalgando o seu cavalo recém-adquirido e puxando à rédea mais dois, as pálidas faces de Margaret coraram ligeiramente e um vestígio do antigo brilho regressou aos seus olhos. Não parecia de todo desapropriado irem os dois dar uma volta com Eyvind como escolta. Podiam embrenhar-se pelo interior, sugeriu Ulf, e ver se viam sinais de caça nos montes, porque os homens queixavam-se de uma constante dieta de peixe, intervalada por um coelho ou dois. Eyvind levou o seu machado e um arco, calculando não usar nenhum deles. Era um insulto para Thor, pensou, estar reduzido a pau-de-cabeleira e assim que regressasse a Rogaland havia de pôr tudo em pratos limpos. Já não devia faltar muito. Se protelassem ainda mais a partida, perderiam todos o Outono viquingue.Margaret e Somerled cavalgavam à frente e Eyvind ia atrás. O jovem não podia ouvir o que eles diziam um ao outro. O dia estava bonito; mais tarde, a névoa subiria vinda do mar e cobriria os montes, os rochedos e as brilhantes quedas de água com um véu de humidade. Havia um padrão naquilo, que ele tinha aprendido a reconhecer. Não poderiam afastar-se muito, porque o regresso sob uma tal névoa era um convite aos contratempos. E não tinham cavalgado para leste como Ulf sugerira, antes para sudoeste, na direcção de um lugar selvagem, um lugar proibido, parte do próprio reino do Rei Engus.Somerled chamou Eyvind enquanto se afastavam cada vez mais na direcção da costa. Já ultrapassamos a fronteira. Aqui não encontras caça. E as sentinelas de Engus? Assim, estamos a abrir uma brecha no acordo do teu irmão.Somerled olhou por cima do ombro.Eu, se fosse a ti, não me preocupava, Eyvind disse ele. Estes ilhéus mal têm gente para carregar água e apanhar peixe para o jantar; certamente, não se vão dar ao trabalho de nos pôr fora das suas terras. Além disso, tenho uma coisa para mostrar a Margaret.E, dito aquilo, esporeou o cavalo, a montada de Margaret seguiu-o e não havia outra coisa a fazer senão segui-los, amaldiçoando a propensão de Somerled para desrespeitar as leis sempre que lhe apetecia.Percorreram uma grande distância. Finalmente, chegaram a um lugar onde o terreno caía abruptamente e, lá em baixo, o mar esmagava-se, num banho de espuma, contra rochas inclementes. Somerled desmontou e ajudou Margaret a descer do cavalo.Temos de avançar um pouco mais disse ele. Naquela direcção, sobre a falésia. É muito perigoso para os cavalos. É melhor ficares aqui a vigiá-los, Eyvind. Nós não nos demoramos.Mas... começou Eyvind.As sobrancelhas de Somerled ergueram-se.Tu és um guarda-costas, não uma ama disse ele. E aqui não estamos ameaçados, já te disse. Por que razão nos atacariam os ilhéus? No fim de contas, eu sou irmão de Ulf.Mas...Tudo bem, Eyvind disse Margaret. Somerled toma conta de mim.
E quando Eyvind olhou para os dois, ali ao lado um do outro, viu que as bocas de ambos tinham o mesmo ricto, os olhos a mesma expressão e pareceu-lhe que, fosse o que fosse que se passava entre eles, estava para além das suas possibilidades impedi-lo.Pobre Eyvind disse Somerled com um meio sorriso. Não penses muito, faz-te doer a cabeça e isso não é nada bom. Goza o dia. Goza a vista.Mas Eyvind não podia. Passou o tempo todo à espera que eles regressassem, sentindo uma sombra sobre si próprio, pensando em Ulf, em Margaret e na loucura que os levara até aquele canto do mundo. Estava a tirar conclusões precipitadas, disse para si próprio. Certamente que Somerled não se ia aproveitar da mulher do irmão? Certamente que Margaret não ia trair um marido tão transparentemente bom como Ulf? Provavelmente só queriam conversar um pouco em particular. Margaret sentia-se infeliz até um cego seria capaz de ver isso. E Somerled sempre fora seu amigo; compreendiam-se um ao outro. Talvez ela só lhe quisesse falar dos seus problemas. Nesse caso, por que é que se sentia tão preocupado, porquê aquele sentimento de medo? Mesmo que as suas piores suspeitas se confirmassem, não seria a primeira vez que os votos do casamento se quebravam. Tudo terminaria rapidamente e Ulf nunca saberia.Eyvind esperou enquanto os cavalos pastavam as magras ervas perto da orla da falésia. Observou as aves no seu voo e as nuvens juntando-se a sul. Pensou na peste e nas pessoas que ajudara a enterrar, crianças, algumas apenas com dias de vida, jovens da idade de Margaret, velhos sepultados apressadamente sem os devidos rituais, já que o tempo era pouco entre um funeral e o seguinte. Era uma gente estranha, pequenos e escuros. Havia algo acerca daquele povo e daquela terra que sugeria coisas secretas, mistérios escondidos por baixo da terra. Ali, os montes tinham pequenos montículos de terra e as dunas tinham estruturas de lajes meio enterradas. Podia-se caminhar por terreno aberto e dar de caras, subitamente, com uma enorme pedra erecta, cheia de líquen, uma coisa monumental, como um enorme troll e quase que era impossível passar por ela sem lhe pedir autorização. Pensou se as pessoas seriam, também, o que pareciam; sentira isso. E o irmão Tadhg: quem diria que um homem pequenino como ele fosse capaz de ter tanta influência sobre um líder tão forteNota: Mitologia escandinava: ser sobrenatural, duende travesso como Ulf? Os boatos eram cada vez mais na taberna; os homens murmuravam que Ulf seria baptizado antes de Yuletide. Parecia que Tadhg tinha forças que não eram visíveis. E aquela rapariga, Eyvind só a vira uma vez, na praia, junto da ilha que deixava de o ser quando a maré vazava, num dia em que a sua miséria o levara mais longe do que devia, em busca de Thor na ameaçadora extensão do céu. Os seus passos eram suaves como os de uma carriça, mas algo o fizera virar-se e, quando a vira, não soubera dizer se era humana ou um espírito, uma coisinha de longos cabelos ao vento e olhos como nunca tinha visto antes, de um cinzento muito pálido, da cor do mar, com um rebordo mais escuro à volta. Ela fugira como se, só por ter olhado, ele tivesse descoberto algo que não devia. Pensou se também ela teria morrido.Foi uma longa espera. Quando, por fim, Somerled e Margaret regressaram, pareceu a Eyvind que eles tinham discutido. Os lábios de Margaret estavam cerrados e os seus olhos escuros zangados. Somerled trazia uma máscara de indiferença. É um lugar óptimo disse ele. Um grande conjunto de rochas, como um gigante de pé sobre o oceano com as ondas quebrando a seus pés. Um espectáculo. Nós esperamos, se quiseres ir dar uma olhadela.Devíamos regressar a casa antes que venha a bruma disse Eyvind tensamente. Não queres que o teu cavalo parta uma perna, pois não? E Ulf deve estar à nossa espera.Somerled tentou uma risada.Achas? Para um homem de visão, é surpreendente como o meu irmão vê tão pouco. Vamos, então, suponho que temos de regressar.Ninguém fez perguntas a Eyvind sobre aquele passeio e o jovem guerreiro também não disse nada. Certamente que era melhor pensar o melhor das pessoas até que a verdade, fosse ela qual fosse, aparecesse. Se falasse das suas desconfianças a Eirik, por exemplo, tudo o que ele faria seria espalhar boatos. Além disso, em breve regressaria à Noruega e eles que resolvessem o assunto entre eles. Eirik talvez decidisse fazer de novo a viagem na Primavera, ocasião em que Ulf esperava que os seus navios regressassem com uma carga de madeira e as outras coisas de que precisava, mas Eyvind não faria parte dessa viagem. Não seria difícil convencer o Jarl. Teria, simplesmente, de sair-se tão bem da estação viquingue que se tornaria indispensável.
Foi por essa ocasião que Eyvind começou a ouvir outra espécie de conversa que o perturbou. Eirik também estava ao corrente; comentou que não imaginava de onde vinham os boatos, mas o seu tom sugeria que sabia muito bem. Foi posto a circular em Hafnarvagr que Ulf estava a perder uma oportunidade com os ilhéus enfraquecidos pela peste. Em vez de incumbir os seus homens de exercer a caridade, diziam as pessoas, um verdadeiro líder agarraria a oportunidade e tomaria o controlo de tudo enquanto era tempo. Havia muita terra boa à mão de semear, talvez, até, tesouros escondidos na fortaleza de Engus, no dique. Eyvind ouviu aquela espécie de coisas mais do que uma vez e recordou a um homem que as dissera que Ulf dera a sua palavra; havia um tratado. E alguém comentou que um tratado era tão bom como o homem que o jurava. Toda a gente sabia que Ulf estava em vias de pôr de lado os velhos deuses e deixar que o irmão Tadhg o baptizasse. Em que é que isso os deixava? Se aparecessem inimigos, Ulf não estaria preparado para pegar em armas, já que seguia os ensinamentos de um deus pacífico e clemente. Se Ulf pedisse ao seu povo para seguir o seu exemplo, o caso mudava de figura. Que impediria os bárbaros de Engus de aparecerem de noite e de os matarem a todos? E se os nativos não o fizessem, fá-lo-ia Odin assim que soubesse que eles lhe tinham virado as costas. De qualquer das maneiras, estavam condenados. Quando Eyvind observou que aquilo era um disparate, alguém resmungou que se os próprios guerreiros de Ulf não viam o que se aproximava, só se poderiam culpar a si próprios quando lhes cortassem as costelas em pleno sono. Com ou sem tratado, não se podia confiar em gente que vivia num lugar distante, cheio de pedras monstruosas e câmaras subterrâneas que talvez escondessem sabe-se lá o quê.Amanhã, pensou Eyvind. Amanhã, ou no dia seguinte, ou no outro, já não estaremos aqui e eu nunca mais volto. E pareceu-lhe que a voz de Thor lhe soou forte no ouvido e o seu coração bateu com mais firmeza, como se o rufar não estivesse muito longe. Vem então, filho leal. Regressa a casa e brande o teu machado para mim uma vez mais.Então Ulf, convocou uma Assembleia, um conselho a que todos deviam comparecer. Era a primeira na sua nova casa e Ulf convidara o Rei Engus para assistir com quatro homens da sua casa e o irmão Tahdg. Ulf exigiu que todas as armas fossem postas de lado antes de entrarem no salão grande. Eyvind supervisionou esse processo, colocando as facas e lanças dos ilhéus junto das belas espadas e machados, dos martelos e dos arcos da sua gente, na antecâmara. Alguns não estavam dispostos a entregar as suas armas; fora por isso que Eyvind fora encarregue do assunto. Não compensava discutir com um Pele-de-Lobo. Para benefício dos seus convidados, Ulf explicou as formalidades. Primeiro, o homem de leis recitaria uma parte da lei, que era sua obrigação reter na memória. A regra habitual era que fosse apresentado um terço em cada Assembleia. Isso fazia-se para que a lei se mantivesse clara na mente dos homens. Depois, começariam os casos, talvez apenas um se havia uma grande disputa acerca, por exemplo, do incêndio de uma casa, ou de uma emboscada com múltiplas baixas. Como juizes seriam nomeados homens respeitáveis. As provas seriam ouvidas e as discussões processar-se-iam de ambos os lados. Então, depois de deliberação, as culpas seriam divididas e as sanções determinadas. Não era raro a compensação ser paga logo ali e o assunto ficar concluído. Geralmente, explicou Ulf, o sistema funcionava muito bem, já que as partes concordavam antecipadamente em aceitar a decisão dos juizes quanto a um ser inocente e o outro culpado e submeterem-se ao castigo escolhido. Por vezes havia maldade de ambos os lados e ambos os lados tinham de pagar. O Rei Engus acenou com a cabeça e perguntou que castigos podiam ser aplicados para além do pagamento ou da restituição. O exílio, disse Ulf, por um ano, ou três, ou para sempre. Um homem que ignorasse castigo, fazia-o com risco da própria vida; bem podia esperar uma vida curta e uma morte surpreendente.Alguma vez impondes o castigo da execução? perguntou Engus. Um homem que faz mal a uma criança, por exemplo, ou desfigura um local de adoração?Ulf abanou a cabeça.Nós não somos bárbaros disse ele. Um homem desses seria exilado para lá das fronteiras de Rogaland e nunca mais regressaria.Isso se ele chegasse a ir a julgamento acrescentou Eirik e Ulf franziu o sobrolho. Mas Tadhg traduziu aquele comentário fielmente e o Rei Engus acenou com a cabeça.Portanto, a justiça pode ser feita fora das paredes desta assembleia comentou ele. Aqui, nas Ilhas Brilhantes, não precisamos dessas coisas. Para crimes como esse, os antepassados aplicam o seu próprio castigo. Um homem que agisse assim morreria, certamente, pouco depois devido ao peso da culpa e enlouquecido de medo.
Sem dúvida disse Ulf. E como é que lidais com os crimes menores? Uma luta de famílias, talvez, onde ocorram mortes violentas? Um homem que roube a mulher do vizinho, ou bata na sua?Eu sou aqui o Rei disse Engus. Essas ofensas são trazidas à minha presença e eu sou o único árbitro. Esse comportamento é raro entre o meu povo. No fundo, estamos todos sujeitos aos antigos poderes.A Assembleia começou. Só havia dois casos para serem ouvidos e ambos insignificantes. Um dos da tripulação do knarr disse que um outro homem lhe roubara uma bela capa de lã, uma faca e um saco de feijão da sua arca. Ambos tinham chegado a vias-de-facto por causa do assunto. O segundo homem acusou o primeiro de lhe ter posto um olho negro, quase o cegando; nunca mais seria o mesmo, acrescentou ele lastimosamente. Cada um deles escolhera Somerled para falar por eles. Nunca se ouvira falar de um homem a representar ambas as partes numa disputa legal, mas Somerled assim fez com uma deslumbrante exibição de inteligência e humor. No fim, toda a gente se dobrava a rir, incluindo os dois litigantes. Os juizes não demoraram muito a chegar a um veredicto, dando algum mérito e alguma culpa a ambas as partes. Na ausência de um parente rico, Ulf ofereceu-se para substituir a capa e a faca, mas não os feijões e ofereceu os serviços do seu próprio físico para dar uma olhadela ao olho do segundo homem. O caso foi declarado encerrado. Todos fizeram uma pausa para comer.Depois, seguiu-se uma questão por causa de uma mulher: mais complicada esta, já que pertencia ao povo de Engus. Dois dos homens tinham ganho afeição por ela e ambos reclamavam que ela prometera casar com eles. Os juizes procuraram a opinião de Engus. Engus sugeriu que a rapariga fosse enviada para casa do pai, em Ilha Arenosa e que os dois homens acalmassem um pouco. Com alguma relutância, os dois apertaram as mãos e concordaram e os casos do dia terminaram. Mas Ulf ainda não tinha terminado. O líder levantou-se para se dirigir ao povo reunido. Eyvind não tinha estado concentrado. Estava com um olho nas armas, assegurando-se de que nenhuma desaparecia antes que os seus respectivos donos a reclamassem. Então, subitamente, compreendeu o que Ulf lhes estava a dizer.Esta peste pôs duramente à prova o povo do Rei Engus. Perderam muitas almas e estão mal preparados para o Inverno. E dizem que a estação é aqui bem dura: o vento é terrível e o mar impiedoso.
As noites são muito longas. Assim, decidi o seguinte: os nossos navios passarão o Inverno nestas ilhas. Não os mandaremos de volta senão depois das sementeiras da Primavera. Porque me parece que a necessidade aqui é grande. Se todos ficarmos, podemos ajudar esta boa gente que tão generosamente permitiu que nos instalássemos aqui. O coração de Eyvind transformou-se num bloco de gelo. Esperara tanto tempo, aquele tempo todo, e agora diziam-lhe aquilo era impossível. Prometera ao Jarl Magnus. Prometera a Thor. Signe estava à sua espera. Como podia Ulf fazer aquilo? Era como se tivesse deixado de controlar a sua própria vida.Na verdade, é muita generosidade disse Enbus e agradeço-te do fundo do meu coração. Mas, e o carregamento de madeira que me foi prometido?Eu dei a minha palavra replicou Ulf e não a esqueço. Na Primavera, aqui o meu amigo Eirik regressará a casa com os nossos barcos e tratará desse teu presente. Terás os melhores troncos de carvalho e de pinheiro por ocasião do solstício de Verão.Não concordamos de modo nenhum em passar aqui o Inverno grunhiu o capitão do knarr. Os homens que o rodeavam tinham todos o sobrolho franzido. Nós somos homens de trabalho, não somos nenhuns cortesãos ociosos para passarmos uma estação inteira a contar os dedos das mãos e dos pés. Somos esperados em casa.Somerled avançou.Sereis compensados pelo vosso tempo, claro disse ele suavemente. Generosamente compensados. E eu vou ter trabalho para vós durante o Inverno. Não estareis ociosos.Obrigado, meu senhor disse o homem, de certo modo mais calmo.Gostaria de te lembrar que o knarr me pertence acrescentou Ulf. Enquanto servires nele, estás sob o meu comando.Podes comprar um barco resmungou o capitão de dentes cerrados mas verás que não é assim tão fácil comprar um homem.Ninguém é insubstituível disse Ulf friamente. Veremos se pensas do mesmo modo na Primavera.Foi nessa noite, durante a refeição, que o Rei Engus recordou a Ulf uma outra promessa: navegar com o Dragão Dourado até à Ilha Alta enquanto o tempo ainda estava bom. Ele gostaria de ver o comportamento do navio. Além disso, queria mostrar a Ulf um local mágico, um centro de cerimónias religiosas, onde era costume os homens das ilhas reunirem-se uma vez por ano para venerar o Sol. O significado daquela oferta não passou despercebido a ninguém. As palavras de Engus foram recebidas com um profundo silêncio. Ao fazer aquele convite, o Rei estava a reconhecer Ulf como fazendo parte das ilhas, não o reconhecendo apenas como um aliado, antes também como um parente.É a primeira vez disse o Rei que um homem que não é do nosso povo tem a oportunidade de ver esse lugar. O terreno é difícil; estaremos ausentes durante uma noite ou duas.Ulf acenou solenemente com a cabeça.Sinto-me honrado pela tua confiança disse ele. Amanhã não, mas no dia seguinte, se os ventos forem bons, daremos início à nossa curta viagem.Este Rei deve pensar que nós somos cabras montesas observou Somerled enquanto o Dragão Dourado aportava à costa por volta do meio-dia. Acima deles erguia-se o flanco desencorajador de uma grande montanha nua, o mais a norte dos dois maciços picos da Ilha Alta. Nunca pensei que me sentiria grato por correr pelos montes acima de Hammarsby, mas parece que a prática me vai ser útil.Eyvind grunhiu em resposta, vendo a costa pedregosa a aproximar-se.Pobre Eyvind disse Somerled. Tão desapontado. Mas não devias estar. Já te disse, o meu irmão está aqui em missão; nada mais lhe interessa senão o seu próprio caminho. Talvez o Inverno não seja assim tão mau.Vai ser longo e escuro grunhiu Eyvind e, ao contrário de ti, eu não tiro prazer nenhum dos jogos de dados intermináveis.Haverá trabalho para ti disse Somerled calmamente.Que trabalho? Alimentar porcos? Cortar turfa?Havemos de encontrar qualquer coisa mais próxima do teu coração do que isso, velho amigo. Confia em mim.Acostaram o Dragão Dourado à praia e, transportando os seus pequenos sacos, iniciaram atrás do Rei Engus a subida do monte por um carreiro que mal se distinguia na encosta. Havia um vale escondido, dissera Engus, um lugar agradável, abrigado, entalado entre aqueles picos impossíveis, e nele encontrariam um túmulo antigo, escavado na rocha ainda antes de os Folk terem caminhado naquela ilha. Nem todos se poderiam aproximar; ele levaria Ulf para o ver, mas os outros teriam de esperar à distância. Depois iriam até às falésias na parte ocidental da ilha, porque eram maravilhosas de contemplar.Tinham trazido a tripulação completa no Dragão Dourado para mostrar a sua velocidade sob o impulso dos remos: trinta homens incluindo Eyvind e Eirik e com eles Ulf e o irmão. Engus trouxera dez dos seus próprios guerreiros e o indispensável irmão Tadhg.Ulf estava preocupado com a segurança do seu navio. Achava que uma maré alta e um vento forte seriam suficientes para o desencalhar, deixando-os ali abandonados, mas Engus disse que isso não aconteceria. Haveria a bruma habitual, mais nada; o navio estava seguro, assim como eles desde que acampassem enquanto viam os narizes uns dos outros. Era melhor andarem depressa. Ulf não estava convencido. O navio era, para ele, uma jóia, o seu tesouro. Assim, deixou um bom número dos seus homens no local onde ele estava fundeado e estes não se fizeram rogados ao verem aquele carreiro que parecia ir dar ao céu. Fariam uma fogueira, apanhariam algum peixe e estariam prontos quando os outros regressassem. Dois dos homens de Engus ficaram com eles.Eyvind gozou o dia. O passo era vivo e a subida difícil. Ele gostava daquele sentimento, em tempos tão familiar, de forçar o corpo até que todos os músculos lhe doessem. Além disso, a grandeza e beleza do lugar eram irresistíveis. Apesar da aridez dos declives, desprovidos da mais pequena das árvores, a Ilha Alta fazia-lhe lembrar a sua terra; selvagem, sombria, secreta, uma terra onde a distância entre o homem e os deuses não era muito grande. Os seus companheiros seguiam misericordiosamente silenciosos, guardando o fôlego para a subida. Os guerreiros experimentados de Ulf faziam um grande esforço, ofegando e levando as mãos aos rins, enquanto os ilhéus pareciam incansáveis. Era evidente que não eram os fracalhotes que a sua estatura sugeria.Atingiram o local sagrado e esperaram no carreiro enquanto Engus e Ulf se aproximavam. Era uma grande pedra, deitada de lado como uma baleia encalhada.É um monumento funerário disse-lhes o irmão Tahdg. E oco por dentro, com câmaras e passagens. Muito antigo: foi construído antes de haver memória.Para que serve? perguntou Holgar.
Disseram-me que é um lugar de cerimónias sagradas, um lugar de homens disse Tahdg. Eles reúnem-se aqui no dia em que o ano renasce e celebram o nascimento do Sol. Dizem que é para se assegurarem de que as sementes germinam e as searas crescem luxuriantes.
Parece um trabalho de gigantes disse Eirik, abstraído ou talvez de trolls. Algo com grandes mãos e ferramentas a condizer.
Como é que sabes isso tudo? perguntou Somerled em ar de desafio ao monge. É evidente que não fazes parte deste círculo; a tua fé deve troçar destes costumes. Tu és um profano. Não achas estas noções primitivas? Adoração do Sol?
Tadhg sorriu.
A minha adesão à fé cristã não me tornou mudo nem cego. Há muitas vias para a sabedoria e podem estar mais próximas umas das outras do que parecem.
A sério? As sobrancelhas de Somerled ergueram-se. E o meu irmão, o valoroso Ulf ? Já conseguiste levá-lo para a tua linha de pensamento? Quando é que o vemos com uma cruz em redor do pescoço e uma inclinação para perdoar aqueles que lhe assassinam a mãe, ou lhe violam a irmã?
Somerled! sibilou Eyvind. Os outros homens desviaram o olhar, calados, mas perfeitamente incomodados com o rumo da conversa.
Só estou a perguntar.
Quanto a isso replicou Tadhg, tocando no crucifixo de madeira pendurado no pescoço terás de perguntar ao teu irmão. Ele é um homem inteligente: um homem de pensamentos profundos, que não toma decisões levianamente. A nossa fé não é como tu a descreveste. Devias deixar-me falar-te nela, um dia destes.
Ah troçou Somerled. Não preciso de saber mais do que já sei. Podes afastar o meu irmão da verdadeira fé da nossa terra, mas não terás sorte comigo nem com ninguém do nosso povo. Essas crenças não são para um homem de sangue quente. Não passam de fumaça para vos esconderdes quando não tendes valor para defender o que é vosso com ferro frio.
Mas, disse Eyvind recordando-se do lobo a verdadeira bravura consiste em caminhar na direcção do inimigo sem qualquer arma. Um verdadeiro herói usa apenas a armadura da sua coragem. O guerreiro sentiu-se corar de embaraço e esperou que as suas palavras não tivessem parecido ridículas.
Somerled riu-se.E és tu um Pele-de-Lobo, Eyvind! Que vergonha! Onde estarias sem o teu grande machado ou a tua bela espada? Não me digas que também amoleceste.Tadhg parecia imperturbável.O teu amigo fala sabiamente disse ele. Há mais do que uma espécie de coragem. Espero que não leves muito tempo a aprender isso.Os homens de Engus prepararam uma fogueira; tinham sido armazenados ali pedaços de turfa para o efeito, ao abrigo da humidade numa pequena cabana de pedra. Eyvind afastou-se com o seu arco e regressou com dois coelhos cujas peles já tinham a espessura do Inverno. Também ali não parecia haver caça maior, nenhuns veados, nem sequer as cabras que Somerled mencionara. Umas ovelhas, que deviam pertencer a alguém, pastavam no declive mais abaixo, mas dificilmente as atingiria dali.Ulf vinha muito calado no regresso, como se o que vira o tivesse enchido de um temor que se prolongaria para além daquele dia. Comeram a refeição e continuaram. Não se podia ir à Ilha Alta, disse Engus, sem ir às falésias. Havia lá uma rocha gigantesca que ultrapassava até a rocha gigante ao largo, a sul de Dorso de Baleia. Esta era uma verdadeira torre, majestosa no seu tamanho, um antigo marco fronteiriço. Não podiam deixar de a ver. Na aldeia haveria camas, uma fogueira e um carneiro assado. Regressariam ao ancoradouro no dia seguinte de manhã.A subida cobrara o seu preço. Alguns dos homens de Ulf ficaram no vale para fazer um acampamento e caçar, enquanto outros decidiram regressar ao navio e esperar lá. Engus mandou dois dos seus homens com cada um dos grupos; era evidente que não tencionava deixar ninguém na Ilha Alta sem vigilância. Foi, portanto, um grupo muito menor que desceu para oeste na direcção de uma bela baía e que depois, após um descanso muito breve, subiu de novo ao longo da costa até um lugar empoleirado lá no alto, como se fosse o ninho de uma águia. O carreiro era traiçoeiro; Eyvind nunca vira falésias tão altas. Aqui e ali o solo desagregava-se; grandes pedaços desse mesmo solo tinham rachado e estavam agora por conta própria, como se prontos a desabarem no oceano raivoso à menor provocação. As aves gritavam por cima da sua cabeça. Havia fissuras e fendas na rocha e o vento fustigava-lhe o cabelo e a capa, empurrando-o insistentemente na direcção do precipício. Ainda bem que não tinha medo das alturas. Não foi culpa de ninguém se a bruma chegou mais cedo e rapidamente. Num momento caminhavam em grandes passadas, tentando perceber exactamente o que o Rei Engus queria dizer com o já não faltar muito e no seguinte estavam envoltos num cobertor espesso, cinzento, mal podendo ver onde punham os pés, quanto mais os companheiros. Eyvind parou. Ouviu Engus a chamar e Tadhg traduzindo: Parem! Parem aqui! Reuniram-se numa concavidade; era evidente que não poderiam mover-se em nenhuma direcção, pelo menos até a manhã chegar. O plano fora regressar à baía onde vivia um agrupamento de pescadores e passar lá a noite num conforto razoável.
Lamento muito disse-lhes Engus. Não temos outra hipótese senão instalarmo-nos aqui e esperar que o Sol, amanhã, disperse esta bruma. Estamos todos?
Os homens aproximaram-se. Eirik estava presente, juntamente com Holgar com as suas longas pernas e Grim com os seus cabelos muito louros. Mas Ulf não, assim como Somerled. E quando o Rei Engus contou os seus próprios homens, faltavam dois. Chamaram através da bruma:
Ulf! Ulf, onde estás? Somerled!
E, a princípio, pensaram ouvir uma resposta fraca. Mas, após um certo tempo, deixaram de chamar. A bruma tornou-se tão espessa, que deixou de ser seguro tentar fazer com que os homens se aproximassem pelo som num terreno tão traiçoeiro como aquele.
Com alguma sorte, devem estar todos juntos, tal como nós e talvez consigam abrigo até de manhã disse Eirik. É pena não podermos fazer uma fogueira, talvez a vissem. Vai ser uma noite longa e fria.
A última coisa que Eyvind viu por entre os farrapos de bruma, antes de a luz desaparecer por completo e enquanto permanecia miseravelmente acordado, tremendo sob a sua pele de lobo, foi a figura muito direita do irmão Tadhg, sentado com o seu crucifixo de madeira na mão e os lábios movendo-se numa oração.
A manhã chegou e não havia sinal dos outros. Eyvind estava ansioso por iniciar uma busca, porque sentia um medo terrível que só poderia desaparecer através da acção imediata. Engus fê-los esperar. A bruma ainda se mantinha, se bem que a luz fraca do Sol tentasse atravessar o véu; ainda não era seguro aventurarem-se. Eyvind começou a andar de um lado para o outro, roendo as unhas. Eirik observava-o, franzindo o sobrolho.Deve estar tudo bem disse o irmão Tadhg. Se eles forem tão inteligentes como o Rei Engus, devem ter-se abrigado num local seguro, tal como nós. Vamos vê-los aproximarem-se assim que o dia clarear. Mas havia uma certa palidez nas suas feições, e os seus dedos não abandonavam o crucifixo.Por fim, a bruma começou a levantar. Dividiram-se em quatro grupos, dois homens em cada um, um ilhéu e um dos de Ulf. O próprio Rei Engus partiu com Eirik; Eyvind fez par com um homem silencioso, de barba escura, que se movia segura e rapidamente no terreno difícil. O único homem que ficou para trás foi o irmão Tadhg. Se os outros regressassem antes dos grupos de busca, poderia explicar-lhes o que se estava a passar, prevenindo, assim um exercício inútil de perseguição em círculos.Eyvind e o seu companheiro dirigiram-se para norte e para o interior. O passo era inflexível. Quando podiam correr, corriam. Com o fôlego que lhes sobrava, chamavam os nomes dos homens perdidos. Conseguiam ouvir os outros chamando à distância os mesmos nomes, mas não ouviam qualquer resposta. O tempo passou. Descansaram um pouco e Eyvind partilhou a água do seu cantil de pele com o ilhéu. Continuaram. A chuva caiu durante algum tempo; as pedras sob os seus pés tornaram-se escorregadias e Eyvind congratulou-se por não terem seguido pelo carreiro à beira da falésia. No entanto, talvez o devessem ter feito. Em tempos, ajudara a procurar gado extraviado e, ocasionalmente, crianças perdidas nas montanhas por cima de Hammarsby. Talvez devessem regressar e procurar onde ninguém tinha procurado. Maldito Somerled. Estava mesmo a vê-lo, sentado calmamente e a dizer com um ar fingidamente surpreendido: Pobre Eyvind. Foi apenas uma brincadeira.O Sol estava no seu ponto mais alto. Tinham procurado durante toda a manhã e estavam a regressar ao ponto de partida sem qualquer resultado.Chhh disse Eyvind subitamente, porque ouvira um grito, fraco mas inequívoco. O guerreiro levou a mão à orelha e apontou para que o ilhéu pudesse compreender. E ouviu-o de novo, vindo do alto da encosta rochosa, um som de voz de homem, algo aflitivo. Subiram juntos e encontraram um dos guerreiros de Engus deitado por trás de uma rocha com a perna dobrada num ângulo impossível: partida, sem dúvida. O homem tinha o rosto cinzento e transpirava abundantemente. Trabalharam rapidamente. O homem gritou quando Eyvind entalou a perna entre duas flechas e atou o conjunto com um pedaço da roupa interior do outro ilhéu. Não perguntou o que aconteceu. O homem tinha demasiadas dores para conseguir falar coerentemente. Transportaram-no encosta abaixo o melhor que puderam; ainda estavam longe da baía, onde haveria umas boas pranchas de madeira, por exemplo, ou uma bebida forte. Quando chegaram ao local onde tinham dormido, lá estava Somerled, pálido, extenuado e com as feições zangadas e confusas, assim como os homens de Engus que se tinham perdido, sentados por perto. Nenhum parecia ferido. Mas não havia sinal de Ulf.
Onde está o meu irmão? perguntava Somerled. Que se passa aqui? De certeza que anda aqui uma velhacaria qualquer!
Na verdade, é estranho termos ficado separados ontem à noite e mais estranho ainda termos encontrado todos menos o teu irmão disse o Rei Engus. Também ele parecia irritado. Mas temos de tomar uma decisão. Este homem está muito ferido. Temos de o tirar daqui. E já é tarde: dentro de pouco tempo, a bruma regressa.
Nós carregamo-lo disse Eirik o meu irmão, eu, Holgar e Grim. Fazemos uma espécie de maca com as nossas capas; assim, fica mais confortável. Não levamos muito tempo daqui à aldeia, na baía.
A respiração do homem era fraca; Eyvind achou que ele devia ter caído. Talvez a perna partida fosse o menor dos males.
Muito bem disse Engus. Mas...
E o meu irmão? A voz de Somerled tremia. Temos de encontrar Ulf. Talvez ele também esteja num buraco qualquer com os ossos partidos. Temos de procurar de novo. Estes homens não podem regressar.
Os meus guerreiros ficarão aqui à procura dele disse Engus, olhando de relance para Somerled. Não é nossa intenção desistir. Talvez encontremos o teu irmão antes do anoitecer.
O rosto de Somerled estava pálido e a sua boca era uma linha fina.
Não chega disse ele friamente. O meu irmão desapareceu na companhia dos teus homens. Mas eles regressaram, ao passo que ele não. Como posso esperar que eles o tragam de volta são e salvo?
Tadhg traduziu sem qualquer expressão no rosto.
Que queres dizer com isso? Engus endireitou-se, as sobrancelhas cerradas furiosamente. Estás a sugerir que houve aqui tramóia?
Somerled, disse Eyvind calmamente.
O que é? O tom pareceu uma chicotada.
Eu fico e ajudo a procurar. Holgar e eu, se quiseres. O Rei Engus tem três homens a mais, que podem ajudar a transportar o ferido.
Eu não...
Somerled. Nós somos irmãos, lembras-te? Confia em mim. Eu ajudo-te.
Tadhg estivera a traduzir o melhor que pudera, enquanto, ao mesmo tempo, se mantinha ajoelhado junto do homem ferido, segurando-lhe na mão numa tentativa de lhe dar algum conforto. Então, ergueu os olhos para Eyvind.
Irmãos? perguntou ele. Tu não és irmão de Eirik? Eyvind enrolou a manga para mostrar a longa cicatriz que lhe marcava o braço esquerdo.
Irmãos de outra espécie disse ele.
Tadhg acenou com a cabeça. O seu sobrolho franziu-se ligeiramente.
Ligados um ao outro por um juramento acrescentou Eyvind, sem perceber muito bem por que razão estava a dar mais explicações. E agora é melhor irmos. Ulf pode estar ferido algures e já é tarde.
Ide com Deus disse Tadhg.
Naquele dia não parecia haver muitos deuses, ou, se os havia, eram divindades cruéis e selvagens, de acordo com aquelas costas. Engus não permitiu que os noruegueses fossem sozinhos em busca de Ulf; insistiu para que fosse também um dos seus homens. Tadhg ofereceu-se para ajudar a transportar a maca. Holgar ficou. Separaram-se como antes, Holgar com o ilhéu para o interior, Eyvind e Somerled para percorrerem as falésias.
Não havia razões para suspeitar que Ulf poderia estar para aquelas bandas. No entanto, algo impelia Eyvind naquela direcção, uma frialdade no sangue, uma sombra na mente, um sentimento cujas raízes eram antigas e sombrias, como um animal selvagem, um instinto. Assim, apressou-se e pela primeira vez na sua vida pensou que sentia medo. Parecia-lhe que estavam equilibrados na berma de uma outra falésia, uma falésia feita não de pedras e terra, antes de suspeição e inveja, medo e ódio. Um passo a mais e tudo cairia nas trevas.Eyvind movia-se cuidadosamente, mas o mais depressa que podia. Era necessário ter Somerled em atenção, menos ágil de pés, mais leve, menos resistente. E Somerled estava angustiado; o seu rosto branco e olhos zangados atestavam-no. Talvez não fosse tão surpreendente assim, pensou Eyvind enquanto ultrapassava cautelosamente uma fenda na falésia para um ressalto de onde era melhor olhar para norte e sul. Talvez fosse necessário um susto daqueles para um homem perceber o valor da família. Talvez os comentários mordazes acerca do irmão não passassem de mais um jogo.Apesar de o ressalto na falésia estar bem acima do mar, a espuma das ondas atingia-o. Estas eram enormes, esmagando-se nas rochas com uma fúria incessante. As aves marinhas voavam por cima, gritando asperamente e mergulhando suficientemente perto para o obrigarem a quase perder o equilíbrio. Eyvind obrigou-se a respirar lentamente, mas não conseguia impedir o rápido bater do seu coração.Thor murmurou. Ajuda-me a ver. Ajuda-me a ouvir como o lobo. Ajuda-me a ser forte.Tinha uma certa dificuldade em compreender porque dissera aquilo. Ele já era forte. Quando não havia combates, corria, nadava e erguia pedras, fazia os possíveis para que o seu corpo estivesse sempre preparado para os desafios que lhe surgissem pela frente. No entanto, as palavras estavam nos seus lábios: uma oração. Ajuda-me a serforte.Então, o jovem olhou para cima e para norte e viu algo. Algo colorido, azul, branco, vermelho, algo suspenso do alto da falésia, uma rede velha, uma vela velha, agitada pelo vento.Somerled! chamou ele. Eyvind semicerrou os olhos contra a luz do Sol e ergueu uma mão para afastar os cabelos que o vento, insistentemente, lhe atirava para os olhos. Não, não venhas aqui abaixo, não é seguro. Mas eu estou a ver uma coisa qualquer lá em cima.O que é? Somerled gritou do alto da falésia. O que é que vês?Não sei murmurou Eyvind. Mas sabia. O que vira, se bem que a sua mente se recusasse a admitir, era um homem. Um homem pendurado, balouçando entre a terra e a água, cruelmente preso à rocha. A túnica azul de Ulf, o rosto branco de Ulf. O sangue de Ulf.
Com o coração aos pulos, Eyvind voltou a subir, esquecendo-se de ser cauteloso. Pedaços de rochas desprenderam-se e caíram, o seu pé escorregou e ele agarrou-se a uma planta.Devagar! Somerled tinha o braço estendido para o ajudar. O que é que se passa, o que é? Parece que viste um fantasma.Por aqui. Pareceu a Eyvind que, se não dissesse, se não pusesse em palavras o que vira, talvez viesse a provar-se que se enganara, ou que era um pesadelo, do qual acordaria a suar e aliviado. Caminharam para norte até que atingiram um local que Eyvind pensou estar mais ou menos por cima do local. Não havia qualquer carreiro, fendas ou plataformas, apenas o topo da falésia, plano, coberto de erva e depois a descida para o esquecimento.Não admira que eles não tenham visto disse Eyvind, tentando manter a voz controlada para não alarmar Somerled. Não podemos ver nada aqui de cima. Talvez me tenha enganado. Talvez não seja nada.O quê? perguntou Somerled. O que é que viste? Diz-me!Um homem, acho eu. Agora não tinha outra hipótese senão dizer. Um homem ali em baixo, na falésia. Não vejo como havemos de chegar até lá, Somerled. Pode ser só uma vela velha, ou uma rede de pesca. Pode ter sido só um truque provocado pela luz. Apesar disso, o jovem continuava debruçado, procurando a menor fenda, ou greta, que lhe permitisse descer para poder ter a certeza. Por cima deles, as nuvens da tarde já se começavam a juntar.Ulf! gritou Somerled, e aproximou-se de tal modo da berma que parecia que ia lançar-se sem qualquer hesitação. Eyvind agarrou-lhe o braço e quase perderam ambos o equilíbrio.Não sejas estúpido disse Eyvind asperamente, usando todo o seu peso para colocar Somerled e a si próprio em segurança. Holgar tem uma corda; usá-la-emos, se for preciso. E eu é que vou lá abaixo, não tu. Respira fundo e tenta manter-te calmo. Já te disse, pode ser que me tenha enganado.Chamaram pelos outros e ouviram uma resposta fraca. Enquanto esperavam, Eyvind deitou-se de barriga no solo e aproximou-se o mais possível do precipício enquanto Somerled o segurava pelos tornozelos. Após uns momentos, Eyvind fechou os olhos. Não fora a visão da espuma das ondas, lá em baixo, que lhe gelara o coração e o sangue nas veias. O jovem torceu o corpo, recuou e, por instantes, ficou sentado no chão com as mãos no rosto.O que é? O que é? O tom de Somerled era frenético.Somerled, tenho más notícias. Parece que é ele que está ali em baixo; eu vejo um homem. Mas não sei se está vivo ou morto. Ele parece que se mexe, mas talvez seja só o vento. Há muitas gaivotas em redor dele e há sangue.Somerled ficou ainda mais branco.Como é que pode ser ele ali em baixo? perguntou ele. Há alguma plataforma? Ele está entalado nas rochas? Se está morto, por que é que não cai?Eyvind hesitou.Parece que está... que está preso disse ele mas eu não consigo ver bem. Está seguro por qualquer coisa, talvez uma rede de pesca que foi abandonada aqui; é isso que o impede de cair ao mar. Ele... ele está pendurado no ar.Somerled não disse nada. Olharam um para o outro. Entre os dois, mudas, estavam as palavras da maldição que perseguia Ulf desde a infância. Nem em terra nem no mar...Os outros apareceram a correr e Holgar tinha mesmo uma corda. Depois, foi rápido. Eyvind atou a corda em redor da sua cintura; os outros seguraram-na enquanto ele descia. O jovem já vira a morte antes, sob muitas formas, a maior parte das vezes violenta e sangrenta, porque era essa a vida de um Pele-de-Lobo. Mas aquilo fê-lo tremer por completo, fez-lhe desfalecer o coração. Havia uma rede de pesca, como tinha pensado. A rede estava presa às rochas, talvez tivesse voado até ali por um capricho do vento, porque ali tudo era maior do que tudo o que vira até então: a falésia, as vagas monstruosas, o vento, como um flagelo do demónio. Talvez aquela rede tivesse capturado, em tempos, um suculento bacalhau, ou uma brilhante cavala. Agora, capturara um homem. Ulf, o Sonhador. O seu rosto estava branco como a cal; não tinha pinga de sangue. Um dos olhos olhava, sem expressão, na direcção do mar. As aves tinham feito um festim do outro, gaivotas descaradas que mergulhavam sobre o rosto de Eyvind enquanto o jovem as tentava afastar com o braço. Havia algo a tapar a boca de Ulf, um pedaço de pano: uma mordaça. Eyvind aproximou-se mais. O seu pé escorregou, as suas mãos agarraram-se à rocha escorregadia devido aos excrementos das aves. A corda esticou-se, segurando-o. Felizmente, Engus deixara ficar Holgar; só um Pele-de-Lobo tinha a força necessária para uma tarefa daquelas.Tudo bem, Eyvind? chamou uma voz vinda de cima, e ele respondeu:Sim mas não estava nada tudo bem, era horrível, havia algo terrivelmente errado. O jovem estendeu cuidadosamente uma mão. A mordaça estava apertada com força; por trás dela, o que era estranho, uma coisa escura bloqueava a boca de Ulf, manchando o pano de verde. Algas. Não vou pensar na maldição, pensou Eyvind. Os seus dedos tiraram o pano dos lábios sem sangue de Ulf e limparam os dentes e a língua do fardo sufocante, porque aquilo parecia-lhe uma obscenidade, pese embora o facto de Ulf estar para lá de qualquer ajuda. Não queria recordar a maldição. Mas ela estava ali. Sente o sabor do mar salgado...Tinha de libertar Ulf para que ele pudesse ser içado para cima. Mas teria de o fazer com cuidado, ou o cadáver, simplesmente, cairia para se esmagar nas rochas e nas ondas que investiam furiosamente na base da falésia. Ulf não tivera qualquer dignidade na morte; tinha de ser, ao menos, retirado daquele local e sepultado com as devidas honras. Somerled contava com isso. Margaret contava com isso. Quem diria a Margaret? O jovem guerreiro tirou os últimos bocados de alga da boca de Ulf e fez uma pausa, a sua mão descansando no pescoço do cadáver. Eu estou a imaginar isto, disse Eyvind para si mesmo. Deve ser do medo, do choque e de ter demasiado tempo para pensar. Ulf estava desaparecido desde o dia anterior: quase um dia e uma noite. Ali, na falésia, onde ninguém o podia ver. Com a boca amordaçada, para que ninguém o pudesse ouvir. Ulf estava horrivelmente, incontestavelmente morto. Mas o seu corpo ainda estava quente.Eyvind não conseguia continuar a pensar; a sua mente recusava-se a equacionar as possibilidades. Rapidamente, tinha de libertar Ulf, agarrar-se a ele e fazer com que os outros puxassem ambos para cima. Não, não daria resultado. Os dois juntos teriam um peso excessivo, mesmo para a força de Holgar. O próprio Eyvind era um homem muito grande. O que queria dizer que teria de desatar a corda que o impedia de cair e atá-la em redor do cadáver. E depois teria de se agarrar a qualquer coisa e esperar.Eyvind chamou os outros e disse-lhes que Ulf estava ali, morto. Não havia maneira de suavizar a notícia. Eles teriam de esperar, gritou ele, até que a corda estivesse atada em redor de Ulf, para depois puxarem.
Havia uma minúscula fenda perto da rede de pesca onde poderia meter a ponta dos pés, uma mera ilusão. Deixando que a corda suportasse o seu peso, tirou a faca do cinto e começou a cortar. Tinha de cortar o mais possível, até que se tornasse demasiado perigoso; tinha de atar a corda ao cadáver antes dos últimos cortes na rede. Pelos ossos de Odin, os pulsos de Ulf estavam atados com força, o homem lutara com todas as suas forças para se libertar. Havia sangue no lado esquerdo, manchando a túnica azul e escarlate. Eyvind esticou o braço para encontrar o pedaço de rede que lhe prendia a mão esquerda. Os seus dedos encontraram algo duro e aguçado: osso. Na sua luta desesperada para se libertar, Ulf descarnara o pulso; quase fizera o mesmo à mão. Mas não o ajudara, porque parecia que a corda que o amarrava só se tinha apertado mais à medida que ele lutava para se libertar. Aquele ferimento fora o suficiente para o matar; o homem sangrara até morrer. Como era possível uma rede de pesca apertar um homem assim? Que faria ele sozinho no topo daquela perigosa falésia? Se tivesse escorregado e caído, certamente teria ido para longe do local onde estava a rede pendurada. E as algas? Não penses demasiado, Eyvind, disse ele a si próprio enquanto cortava a corda. Só te faz doer a cabeça. No entanto, o pensamento que ele mais desejava banir não o largava, continuando a martelá-lo. Somerled é muito bom com nós. Não era possível, nem poria a hipótese; vira bem a aflição do amigo no topo da falésia.
A corda soltou-se; o braço de Ulf ficou pendurado, a mão presa por uma tira de pele e um fragmento de osso. Eyvind cerrou os dentes e continuou com o outro pulso. Tinha de se inclinar, o seu corpo encostado ao de Ulf, o olho sem expressão apenas a um palmo de distância. A faca cortou; os nós cederam. O corpo de Ulf descaiu para a frente, mas a rede segurou-o.
Até aqui tudo bem murmurou Eyvind para si próprio. Um passo de cada vez. Meteu a faca nos dentes; era preciso, agora, encontrar uma posição que lhe permitisse subir e, ao mesmo tempo, usar as mãos para desatar a corda. Impossível. Só lhe restava confiar na rede. Estendeu o braço até que o emaranhado de fios ficou por cima de si. Pendurou-se nele cautelosamente, testando a sua resistência. Parecia aguentar, mas à justa; o verdadeiro teste seria quando retirasse a corda da sua cintura.
O que é que estás a fazer? gritou Holgar. Está tudo bem? A bruma está a chegar, despacha-te!
Espera mais um pouco! gritou ele. Não penses, Eyvind, faz só o que tens afazer.O jovem guerreiro desatou a corda. A rede rangeu sinistramente sob o seu peso. Eyvind estendeu o braço para rodear o corpo de Ulf com a corda. Mas havia algo a impedi-lo, algo preso por trás: a fivela do cinto de Ulf, torcida e emaranhada nas malhas da rede. A faca: teria de cortar às cegas. Pelo martelo de Thor, aquele abraço era o suficiente para fazer recuar qualquer homem no seu perfeito juízo, segurar assim um cadáver nos braços e olhar para a órbita vazia de um olho comido por pássaros esfomeados; sentir o corpo contra o seu e saber que durante o período da busca do dia anterior ele, provavelmente, ainda estava vivo. Quanto tempo estivera ali pendurado, lutando contra a escuridão crescente?Eyvind cortou a fivela do cinto, se bem que continuasse com pedaços de rede emaranhados. Era uma bela peça de prata, intrincadamente gravada; ele sabia que fora do pai de Ulf. Eyvind meteu-a no seu próprio cinto com fios e tudo e passou a corda pela cintura de Ulf. Um nó forte; seria o suficiente, porque Holgar sabia o que fazia, e içaria o fardo rápida e cuidadosamente. Um corte aqui, outro ali, e Ulf ficou livre da rede; os pedaços que seguravam Eyvind estremeceram.Já está! gritou Eyvind. Segura com força; vou soltá-lo. Puxa-o para cima e depois manda a corda outra vez para baixo. E despacha-te, está bem? O jovem puxou a corda uma vez, outra, largou-a e o corpo de Ulf ficou suspenso, balouçando de modo chocante sobre o mar. O vento chicoteou os cabelos escuros do chefe de guerra e fez com que a lã da sua túnica manchada de sangue flutuasse como uma bandeira. O cadáver pareceu, por um momento, horrivelmente vivo e desapareceu da vista, puxado pelos homens no topo da falésia.Mais tarde, disseram a Eyvind que ele tinha sido muito corajoso: um herói. Evidentemente, não era verdade. Se não tivesse sido ele, outro o teria feito: Eirik, Holgar, qualquer um dos outros. Se fosse um homem inteligente, teria olhado primeiro para o topo da falésia em vez de perder tempo a percorrer as encostas. Talvez, então, tivesse encontrado Ulf ainda vivo. Então, teria sido um herói. Mas enganara-se e tudo o que socorrera fora um cadáver ensanguentado, estropiado, sem um olho: uma coisa de pesadelo. Apesar de ser um bom caçador, Eyvind lera mal os sinais. Vira uma sombra naquele dia e não soubera o que era. Mas soubera depois. Não fora apenas uma premonição da morte de Ulf; fora um aviso acerca do que estava para vir. Porque aquele dia anunciara tempos de trevas como ele nunca vira antes.Somerled não acusou propriamente Engus, mas durante a caminhada sinistra até ao ancoradouro e a rápida viagem de regresso a casa, os seus olhos, a sua boca e a posição dos seus ombros indicavam o que lhe ia na alma. Teria de ser estúpido para acreditar que a morte de Ulf fora um acidente. De quem era a voz que os afastara durante a noite, dizendo palavras estranhas que eles não tinham entendido? Como aparecera convenientemente aquela rede num local como aquele, tão fora de mão? De quem eram as mãos que tinham enchido a boca de Ulf de algas para que ele não pudesse gritar? Que mente cruel determinara que ele ficaria pendurado, como num sacrifício, lutando pela vida, em vez de mergulhar misericordiosamente nas rochas lá no fundo? Não fora o destino que levara o seu líder àquele fim terrível e só os avisos murmurados de Eirik e o silêncio de Somerled impediam os homens de falar. Talvez tivessem achado generoso aquele povo ilhéu. Talvez tivessem acreditado que podiam ser amigos, com o tempo. Mas agora, não. Tinham visto que espécie de gente eram e tudo o que podiam fazer era manter as mãos longe das espadas, colocá-las nos remos e remar rapidamente de regresso a casa.Assim que chegaram à aldeia de Ulf, Somerled assumiu o controlo. O rosto pálido e em pânico no topo da falésia fora substituído por um outro, duro, de maxilares cerrados e ninguém pôs em dúvida a sua autoridade. Foi ele que deu a notícia a Margaret. Foi ele que tratou do funeral. Tornou claro que a cerimónia seria conduzida de acordo com os rictos de Odin. Na verdade, no seu primeiro discurso à casa do seu irmão reunida em assembleia, Somerled deixou clara a sua fidelidade aos deuses da sua terra e o repúdio pelas outras doutrinas, como o Cristianismo.Em Rogaland, um chefe de guerra com o estatuto de Ulf teria sido deitado num belo barco feito de carvalho, juntamente com os tesouros que o tinham acompanhado em vida: a sua espada, a sua lança, as suas jóias de ouro e prata, a sua bela capa de pele de castor. Ali não havia carvalhos, nem sequer um miserável pinheiro que lhes permitisse fazer uma imitação de barco que levasse Ulf para a outra vida. Em vez disso, empilharam pedras em forma de barco. No interior deitaram o corpo de Ulf numa plataforma de lajes amaciada por um colchão de urze e cobriram-no com a sua capa vermelha de lã, que ele usara nos dias de festa. Puseram os seus haveres a seu lado, as suas armas, o seu elmo, o seu bracelete e o seu colar, o broche de prata que apertara a sua capa. Somerled sugeriu que sacrificassem os cães de caça e os colocassem ao lado do dono na sepultura e mandou que Eyvind fosse buscá-los ao local onde estavam presos. Os mastins ouviram-no chegar e arrebitaram as orelhas. Quando ele abriu a cancela, fixaram-no com dignidade sentimental, um efeito de certo modo desmentido pelo abanar furioso das caudas. Eyvind libertou-os das correntes e afastou-se, deixando a cancela aberta. Compreendendo, talvez, que Ulf não os iria buscar, os cães partiram rápida e silenciosamente através dos campos. Eyvind esperava que Odin não se ofendesse; parecia-lhe que já se derramara sangue suficiente. O jovem disse a Somerled que não encontrara os cães. Então, já era verdade.Margaret escolhera um local no topo de uma pequena colina, com uma vista distante do mar. Era um local tranquilo, onde poucas pessoas passariam salvo um carneiro ou outro, uma cotovia, ou uma ratazana. Ulf foi sepultado com o cerimonial possível e ao crepúsculo desse dia só restava um montículo para mostrar que ele vivera, sonhara e morrera. Com o tempo, a erva cobri-lo-ia e seria mais um dos muitos túmulos secretos espalhados por aquelas ilhas, uma alusão a alguém sob a superfície. Quantos reis, quantas rainhas, quantos bravos visionários jazeriam sob aquele solo fértil? Eyvind estremeceu ao pensar naquilo. Tantos corpos, tantos espíritos errantes. Conseguia senti-los à sua volta. Naqueles dias, quase conseguia ouvir os seus sussurros quando passava. Estava morto por que chegasse a Primavera.Os dias ficaram mais curtos. O Rei Engus enviou um mensageiro, acompanhado pelo irmão Tadhg. Não viam o irmão Tadhg desde a morte de Ulf, quando fizera o sinal da cruz sobre o corpo e começara a murmurar o que era, indiscutivelmente, uma oração cristã. Somerled, furioso, agarrara no homenzinho pelos ombros e abanara-o com toda a força, perguntando-lhe aos gritos que direito tinha ele de impor a sua ridícula fé, como se atrevia a assumir que Ulf gostaria de ouvir aqueles disparates no seu leito de morte? Eyvind segurara Somerled antes que as coisas piorassem. Tadhg, sendo o que era, levara tudo com uma grande calma, mas o Rei Engus não ficara nada contente.
Engus pedira, polidamente, se poderia assistir ao funeral de Ulf. Por razões óbvias, Somerled recusara. Na ocasião, ocorrera a Eyvind que Ulf teria gostado que os ilhéus estivessem presentes, fossem quais fossem as dúvidas acerca da sua morte. Teria sido de acordo com a sua maneira de ser os dois povos juntos, em paz, em redor da sua sepultura. Mas não disse nada a Somerled. Estava a ser cada vez mais difícil dizer qualquer coisa a Somerled, porque ele, agora, era um chefe de guerra, e as pessoas obedeciam-lhe instantaneamente. Os homens que tinham formado a tripulação do knarr tinham descido de Hafnarvagr, tinham-se instalado na aldeia junto do lago e passeavam-se armados de cacetes e espadas curtas. Seguiam Somerled como sombras, fosse ele para onde fosse e algumas pessoas começaram a ter medo deles. Quanto aos Pele-de-Lobo, Grim, Holgar e Erlend, faziam o que Somerled lhes dizia sem fazer perguntas, tal como tinham feito com o irmão. Era essa a sua profissão. Thord manteve-se calado; Eirik também andava muito calado. Em breve regressaria ao sul e passaria o Inverno junto dos barcos, como prevenção contra qualquer problema.
O mensageiro de Engus chegou uma noite, quando estavam todos a comer. Vinha vestido com uma boa túnica de lã verde e trazia uma adaga no cinto. O irmão Tadhg trazia os seus costumeiros hábito castanho e sandálias. Somerled tinha guardas em redor do perímetro da aldeia e os visitantes entraram flanqueados por dois homens com as espadas desembainhadas.
Ora, ora observou Somerled erguendo as sobrancelhas. Que temos nós aqui?
Meu senhorcomeçou o irmão Tadhg este homem chama-se Brude e é filho de Elpin. Pertence à casa do Rei e traz-te uma mensagem. Vimos em paz; não há necessidade de espadas desembainhadas.
Portanto, Engus, agora, usa padres cristãos como emissários.
O sorriso de Somerled era perigoso. As palavras são dele? Nós devemos pôr de lado as nossas espadas e dar-vos as boas-vindas?
Como sabes, meu senhor, eu não sou nenhuma marioneta. Os olhos cinzentos do homenzinho estavam perfeitamente tranquilos.
Vós sois muitos, nós apenas dois e eu venho desarmado. Pelo menos, podias dizer aos teus homens que embainhem as armas.
Quanto a isso disse Somerled houve aqui mudanças. Fazias bem se te recordasses que eu, agora, sou chefe de guerra, e que este tradutor é cristão. Nós sabemos que ele tentou influenciar o teu irmão com as suas doutrinas perigosas. Não podemos confiar nele. Não podemos confiar em nenhum deles, meu senhor.Exactamente grunhiu Harald, Língua de Prata, que fora o homem de leis de Ulf. Eles que se ponham a andar, é essa a minha opinião.Então, Margaret, que estivera até aí sentada, pálida e de lábios cerrados, ao lado de Somerled, inclinou-se na direcção deste e falou-lhe em voz baixa.Então, Somerled disse:A viúva de lorde Ulf é mais magnânima do que eu. Se a escolha fosse unicamente minha, diria que Engus é o último homem na terra com quem partilharia o meu sal. Lady Margaret aconselha o meio caminho. Informa o teu senhor que aconselho um encontro segundo as minhas condições e quando eu quiser. E agora, podes ir. Eyvind, importas-te de escoltar estes homens até à nossa fronteira?Seguiu-se um breve silêncio. Então, Eyvind deu um passo em frente, saindo de detrás da cadeira de Somerled e, com um aceno de cabeça, indicou aos dois visitantes que eram horas de ir. O irmão Tadhg acenou ligeiramente com a cabeça na direcção de Margaret; o outro homem limitou-se a sorrir. Enquanto saíam, o falatório, as risadas e os sons próprios de uma refeição recomeçaram nas suas costas.Estava escuro como breu para lá das vizinhanças da aldeia e extremamente frio. Eyvind acendera um archote num outro que ardia num suporte à entrada do salão grande, tentando imaginar como iriam os visitantes encontrar o caminho de regresso. Estes caminharam em silêncio durante algum tempo. Foi o irmão Tadhg o primeiro a falar:Lamento muito a morte de Ulf. Ele era meu amigo: um homem sábio, um homem bom.Eyvind acenou com a cabeça, mas não disse nada.Não foi o povo de Engus que o matou disse Tadhg.Não sabes. Eyvind não tinha a certeza se devia falar; aqueles assuntos eram perigosos.Sei, sim. A voz de Tadhg era muito suave, muito certa. Se há uma coisa que eu compreendo, é a fé. Aquela falésia, onde o teu chefe morreu, é um local sagrado, um local muito venerado pelos Folk. Está repleto da presença daqueles a quem eles chamam antepassados; está vivo com o conhecimento que é a própria essência destas ilhas. Se um homem dos Folk quisesse matar o seu inimigo, escolheria um lugar onde os espíritos locais não se sentissem ofendidos: a sala das traseiras de uma taberna, talvez, ou a enxerga de uma amante infiel. Matar um homem naquela falésia seria profanar um altar. É impossível.Mas... alguém o matou disse Eyvind hesitantemente. Não foi um acidente.Sim concordou Tadhg gravemente. Alguém o matou e provocou a hostilidade entre o teu povo e os Folk. Pergunto a mim próprio porquê?O ilhéu fez um comentário qualquer em voz baixa, talvez perguntando de que estavam a falar e Tadhg respondeu de modo a tranquilizá-lo.Não posso falar contigo destes assuntos disse Eyvind. Não está certo.Não está certo quereres saber a verdade?Eu sou apenas um guerreiro. O meu dever é guardar o meu senhor e combater as suas guerras, não fazer perguntas. Eu faço o que Thor me ordena, ou o que me ordena o meu chefe de guerra. Não falarei mais destas coisas contigo.Diz-me uma coisa disse Tadhg. Se esse Thor te ordenasse que matasses um homem e tu soubesses que esse homem era boa pessoa e incapaz de praticar o mal, matá-lo-ias na mesma?Por que me perguntas isso? É claro que sim disse Eyvind, mais do que aborrecido com o rumo que a conversa estava a tomar. Eu sou um guerreiro votado a Thor e um guerreiro mantém-se fiel ao seu juramento, sempre. É meu dever cumprir com a vontade do deus; é a minha vida. Mas isso não quer dizer que eu tenha matado Ulf.De facto, não. Não foi isso que eu quis dizer. Diz-me: Somerled, Senhor-dos-Cavalos é agora o teu chefe de guerra. Se ele te ordenasse, matavas, mesmo que pensasses que estava errado?Eyvind riu-se.Somerled é meu irmão de sangue. Jurámos um ao outro, há muito tempo, lealdade mútua. Isso deve ser suficiente para responder à tua pergunta.E se ele te ordenasse que me matasses, a mim? O tom de Tadhg era leve.Ele não faria uma coisa dessas disse Eyvind rudemente. Tu és demasiado útil. Mas não penses que és diferente de outro homem qualquer no que me diz respeito. Matar é o que eu sei fazer melhor. Se Thor me ordenasse que te abrisse o crânio com este machado, fá-lo-ia, quer sejas sacerdote, quer não.
É pena observou Tadhg.
Pena? Onde está a pena? Pelos ossos de Odin, o homem tinha o condão de o fazer sentir-se desconfortável.
Que o teu juramento te impeça de fazeres as tuas escolhas, que te impeça de seres dono de ti próprio. Na Ilha Sagrada não temos espadas, machados ou lanças, não temos colares de ouro nem braceletes, não temos chefes de guerra. Não precisamos dessas coisas, porque temos outras duas de preço inestimável
Que coisas? Eyvind estava intrigado, apesar do seu aborrecimento.
Tadhg sorriu à luz do archote. As suas palavras soaram suavemente aos ouvidos de Eyvind.
O amor de Deus e a liberdade para escolher o que achamos que está certo.
O Inverno chegou e não havia meio de se realizar o encontro entre Somerled e o Rei. As coisas iam de mal a pior. Houve uma escaramuça na fronteira e um dos ilhéus foi morto. Houve outro encontro a sul e houve feridos de ambos os lados. Eyvind não tomou parte em nenhum dos combates, porque Somerled enviara-o para verificar a segurança das suas terras mais a leste e quando ele regressou à colónia já tudo tinha terminado. Mas o primeiro sangue já fora derramado. Parecia a Eyvind que chegara a ocasião de falar com o Rei, antes que as coisas se descontrolassem. Na verdade, ele perguntava a si próprio por que razão não tratara já Somerled desse assunto. O guerreiro mencionou-o, deferentemente, a Harald, Língua de Prata e a Olaf Sveinsson. Ambos receberam a sua ideia com indiferença. O jovem perguntou a opinião a Holgar e este disse:
Tu não és amigo dele? Fala com ele. E assim fez, apesar de se recordar de coisas que Somerled dissera no passado, acerca de um Pele-de-Lobo dever limitar-se ao que sabia fazer, que era combater, e deixar as coisas da mente para aqueles que tinham inteligência para isso.
Somerled? Sim? Somerled estava a desenhar um mapa, a sua pena movendo-se com traços confiantes no pedaço de pergaminho que estava na sua frente, preso nas pontas por pedras polidas, em cima da mesa. Era um mapa das Ilhas Brilhantes, Eyvind via muito bem, com pequenas baías, lagos e aqui e ali palavras que ele não compreendia, um mapa de todos os locais por onde Somerled viajara até à data. No canto noroeste da ilha maior estava Dorso de Baleia, sentada no oceano e uma linha fininha unindo-a a terra. Era maravilhoso um homem conseguir fazer aquelas coisas tão inteligentes.Gostaria de sugerir uma coisa.Hum?Parece-me que... eu estive a pensar...Então, Eyvind? Eu não sou um ogre. Desembucha.Talvez tenha chegado a hora de um encontro com o Rei Engus. Antes que as coisas piorem. Tu sabes qual foi o acordo de Ulf, o que ele queria para estas ilhas. Penso que ele gostaria que tu fizesses a paz com Engus, apesar do que aconteceu. Talvez fosse o melhor.O movimento da pena parou. Somerled olhou para cima.Porquê? perguntou ele.Penso que... parece-me que é capaz de haver muitas perdas, se não fizeres nada para resolver o assunto disse Eyvind, aliviado por Somerled não ter recusado imediatamente a sua ideia. Ainda há uma hipótese de paz e de cooperação. Mas tu deves dar o primeiro passo antes que seja tarde. É o que eu penso.Seguiu-se uma pequena pausa.Acabaste? perguntou Somerled. Eyvind não disse nada.Tu preocupas-me, por vezes. Somerled recomeçou a desenhar, fazendo marcas nas falésias da costa ocidental, a sul da fortaleza de Engus. Tornas as coisas tão difíceis para ti mesmo, quando, na realidade, são muito simples. Se um homem quer uma coisa, deve conquistá-la. Por que preocupar-se com o resto?Não compreendo disse Eyvind franzindo o sobrolho.Se eu seguir o caminho que tu propões e me transformar num homem de compromissos e tratados, como o meu irmão, não haverá nada para te manter entretido durante o Inverno, a não ser alimentar as galinhas e remendar os buracos dos barcos de pesca replicou Somerled. Não estás morto por uma verdadeira batalha? Tu és tão bom nisso. Por que outra razão te trouxe eu para aqui, afinal de contas?
Talvez porque somos amigos e tu me queiras junto de ti disse Eyvind, perguntando a si próprio por que razão se sentia, subitamente, tão frio, como se o sopro do Inverno tivesse entrado naquela câmara aquecida pelo fogo. Não me agradaria nada uma guerra com esta gente. Eles não são iguais a nós em combate; um conflito desses seria injusto. Há pouca glória num tal combate. Além disso...Além disso?Há algo mais aqui. Não as pessoas. Derrotá-los-íamos em caso de guerra, porque as nossas capacidades de combate são superiores, porque as nossas armas são melhores, porque temos Pele-de-Lobo. Mas eles têm... algo mais. Não sei dizer o que é. Algo antigo. Lembras-te do que o Rei Engus disse, naquela primeira vez? Que eles fazem parte da terra, de certo modo, e que a terra não se entrega. Talvez pareça tolice, mas tu não o podes ignorar.Somerled suspirou.Parece tolice, Eyvind, mas tu és meu amigo, o meu maior amigo e eu compreendo a tua preocupação. Mas podes ficar descansado. Eu vou ver o Rei, mas não já. O Inverno aproxima-se; não é tempo para grandes campanhas, é tempo para estarmos quietos e fazermos planos a sério, para que estejamos prontos para o que possa aparecer-nos pela frente. Há uma coisa de que tu te deves lembrar. Eu não sou Ulf. Eu trato dos assuntos à minha maneira e se as pessoas querem fazer parte da minha casa, têm de perceber isso. O meu irmão morreu. Isso mudou tudo, aqui. Esta gente tem de ser punida pelo que fez. Eu seria um chefe bem fraco se não procurasse retribuir o seu assassínio.Pergunto a mim próprio... pergunto a mim próprio se será justo culpar Engus pelo que aconteceu. Ele disse que não foi ele. E há outros que dizem a mesma coisa.Outros? O tom de Somerled tornou-se, subitamente, áspero. Que outros?Pessoas, aqui e ali. Não me lembro.Mentes muito mal, Eyvind. É claro que foi a gente de Engus que matou o meu irmão. É claro que foram eles. Quem mais havia de ser?Eyvind não podia responder àquela pergunta; era uma pergunta em que não queria pensar. Continuava a ver, nos seus sonhos, o olho cego de Ulf, a sua boca aberta, o seu pulso despedaçado. Ainda sentia o peso morto do cadáver contra o seu. Sentia dentro de si que, dissesse
Somerled o que dissesse, no fim os ilhéus não sairiam derrotados. O que provocava uma certa perplexidade, porque Somerled também tinha razão. O Inverno seria longo e entediante; só o chamamento de Thor e um desafio com a espada e o machado poderiam aliviar aqueles meses sombrios até chegar a Primavera. Ele andava desejoso de acção. Andava desejoso de apagar a recordação daquele dia nas falésias da Ilha Alta com a música da guerra, a canção da lâmina da espada nua. O elmo que o Jarl Magnus lhe dera jazia escondido num canto da sua arca. Ainda nunca o usara.Eyvind não voltou a falar no assunto a Somerled. Bastava-lhe que ele tivesse prometido que promoveria um encontro. Teria de esperar e ter esperança de que tudo correria bem.Viam pouco Hakon, agora instalado na sua herdade com a nova mulher, os enteados e o bebé recém-nascido. Mas, uma noite, ele apareceu na colónia. Trazia uma ovelha gorda como presente e ficou para jantar. Passaram um bom bocado. Hakon sentou-se com Eirik e Eyvind, Holgar e Erlend, Thord e Grim, trocando histórias dos tempos passados, de batalhas ganhas e trofeus conquistados. Mais tempos daqueles, pensou Eyvind, era disso que precisavam. Somerled sentou-se à cabeceira da mesa, muito calado, observando e escutando. Margaret mantinha-se composta como sempre, de feições solenes e figura asseada, reservada, no seu vestido tingido de preto enfeitado com linho branco.Dizem que a bebida torna os homens arrojados. A cerveja tinha corrido livremente. Talvez por isso Hakon, normalmente um homem reservado, tivesse falado como falou.Meu senhor disse ele subitamente, olhando para Somerled, e todos se calaram. Eu não vim aqui apenas para ver os meus velhos amigos, se bem que agradeça a hospitalidade. Tenho ouvido rumores que me preocupam seriamente. Diz-se que o tratado que lorde Ulf fez com Engus foi menosprezado e que os combates desencadeiam-se nas tuas fronteiras por dá cá aquela palha. Morreu um homem; um outro perdeu uma orelha. As pessoas andam assustadas, meu senhor. É verdade que és capaz de pegar em armas contra o homem que foi aliado do teu irmão?Somerled sorriu lentamente.Esqueces-te disse ele o que me surpreende, já que Ulf te considerava um dos seus amigos mais chegados. Eu não acusei Engus pessoalmente pela morte do meu irmão; na verdade não posso, porque os seus movimentos são do meu conhecimento durante o período em questão. Mas não tenho dúvidas de que foi a gente dele que matou o meu irmão. Querias que fizesse a paz com um bando de estranguladores e assassinos? Se não gostam do que está a acontecer, a culpa é deles.Se achas que são responsáveis disse Hakon, teimoso por que não convocas uma Assembleia para que o assunto se resolva de acordo com a lei? Isso seria aceite por todos, acho eu, mesmo pelos de Engus. Talvez conseguisses provar o que realmente aconteceu se tudo fosse apresentado às claras.Bem dito ouviram Eirik murmurar. Bem dito.Não é necessária uma Assembleia. A voz de Somerled era calma e autoritária. Eu sou aqui o chefe de guerra e eu é que determino como são resolvidos os assuntos. O assassínio do meu irmão foi um ultraje, uma barbaridade, uma obscenidade. Resolvê-lo vai muito para além de simples gestos de reparação. E fica avisado. Tu tens uma mulher que não é da nossa raça. Isso torna-te imediatamente suspeito. É tempo de decidires de que lado da fronteira queres ficar: para que lado pende o prato da tua balança. Estes ilhéus são guerreiros muito astutos e muito tortuosos. Talvez não gostem das tuas visitas e da tua amizade com os teus velhos camaradas. Desconfiam, certamente, de qualquer homem que se liga a uma das suas mulheres. Tu estás numa posição difícil, Pele-de-Lobo, e é bom que olhes por ti e pelos teus.Não percebo o que queres dizer disse Hakon, que empalidecera. Isso é uma ameaça?É claro que não disse Somerled. Eu tenho em grande consideração os meus guerreiros, todos eles. Simplesmente, exijo um juramento de lealdade, mais nada. Se te chamar, tens de estar preparado, sejam quais forem as circunstâncias, seja qual for o inimigo. Não é pedir muito: não passa da promessa habitual de um Pele-de-Lobo para com o seu senhor. Juras?Seguiu-se um silêncio pesado. Eyvind podia ver os dedos de Eirik apertarem a sua caneca de cerveja; os outros Pele-de-Lobo olharam para os respectivos pés, ou para a parede, menos para o rosto branco de Hakon.Então? desafiou-o Somerled. Não ficaste mudo para além de surdo, pois não? O chefe de guerra ergueu a voz, como que para se certificar de que Hakon o ouvia. Que tens a dizer?
Eu ouvi-te disse Hakon pesadamente. E não vou jurar. Não posso. A minha mulher pertence a este povo: assim como o meu filho. Não vou jurar às cegas que vou matar, quando não sei se o irmão dela, o pai dela, o primo dela estarão na ponta da minha espada ensanguentada. Por Ulf teria jurado. Mas não por ti.Ditas aquelas palavras, o guerreiro ergueu a mão para desapertar a fivela de prata que lhe segurava a pele de lobo em redor dos ombros e, dando um passo em frente, tirou a pesada pele e atirou com ela para cima da mesa, para diante de Somerled. Todos os outros prenderam a respiração.Muito bem disse Somerled calmamente. Tu é que sabes. Desejo-te sorte. Vais precisar dela.Hakon não disse nada. O guerreiro inclinou a cabeça na direcção de Margaret, olhou mais uma vez para os seus velhos companheiros e saiu do salão grande.Depois daquilo seguiu-se uma certa agitação. Eirik estava zangado, Thord silencioso e os outros de certo modo tristes, mas não querendo traduzir o que sentiam em palavras. Eyvind tinha a certeza de que Somerled estava enganado. Quando Hakon se casara com a viúva no Verão, quando as coisas eram tão diferentes, tanto os ilhéus, como os homens de Rogaland tinham dançado na boda e partilhado a cerveja. Mas em breve se provou que as desconfianças de Somerled tinham fundamento. Houve outra escaramuça de fronteira. Dessa vez Grim esteve metido no combate e disse que tinha partido o pescoço de um e acabado com outro com o martelo de guerra antes de os homens de Engus terem tido tempo de escapar na escuridão. Duas noites depois disso, quando ia do salão grande para o seu alojamento, Eyvind viu uma fogueira ao longe, para leste. Era grande e ardia com força. De manhã, quando foram investigar, encontraram a cabana da viúva incendiada e sete corpos no meio das cinzas. Era evidente, pela posição, que Hakon tentara proteger a sua pequena família, porque os seus braços estavam em redor deles, da mulher, dos seus filhos e do bebé, como que tentando impedir que sufocassem com o fumo e ardessem com o fogo. Com o rosto da cor da cinza ainda quente daquele lugar de morte, Eirik retirou os corpos enquanto Thord e Eyvind abriam uma sepultura de emergência. Depositaram nela o seu velho amigo com aqueles que tinham sido a sua esperança de futuro. E quando chegou a hora de regressarem à colónia, Eirik disse que não ia.
O quê? perguntou Eyvind, passando uma mão pelo rosto.
Não posso regressar. Não posso, é tudo. Além disso, há trabalho para mim em Hafnarvagr, a guardar ovelhas durante o Inverno. Thord vai comigo; a mulher dele já lá está. Nós cá nos arranjamos.
E se houver guerra depois disto? Eyvind estava surpreendido com o alarme que a decisão de Eirik tinha provocado nele. Nós precisamos de ti.
Escuta, Eyvind. Eu não vou falar abertamente disto, nem sequer aqui. Mas tu tens de ter cuidado. Vigia as tuas costas. Por que não vens para o ancoradouro comigo? Não há razão para não ficarmos lá os dois até regressarmos a casa.
Eyvind ficou a olhar para ele.
Não posso fazer isso protestou ele. Somerled precisa de mim. Ele disse uma vez que... quando fosse chefe de guerra, eu seria o seu guarda-costas principal, o Pele-de-Lobo número um. Creio que devo fazer isso, Eirik, mesmo que... creio que devo cumprir a minha promessa. Só até à Primavera. Depois, vou para casa.
Eirik olhou para ele através de uns olhos semicerrados.
Tem cuidado, mais nada. O perigo rodeia-te, irmãozinho e tu, por vezes, não o vês. Mantém-te acordado; mantém-te vigilante.
Gostaria que te explicasses...
Shhh. Algumas coisas não podem ser ditas, nem sequer aqui. Não há segurança em lado nenhum. E eu quero chegar a casa são e salvo. O guerreiro olhou em volta, para os restos da cabana queimada e para o lamentável monte de terra que cobria os seus habitantes. Este lugar é maldito, Eyvind. Nunca pensei enterrar o meu melhor amigo assim, sem dignidade. E digo-te outra coisa. Foi corajoso da parte dele falar daquela maneira. Mas bastou-me vê-los ali no chão para pensar em Oksana e nos rapazes e em regressar são e salvo a Hammarsby. Não ouvirás falar de mim senão na Primavera e o teu amigo Somerled, Senhor-dos-Cavalos também não.
A sombra passou de novo pelos pensamentos de Eyvind, uma suspeita, uma dúvida, que não havia meio de se clarificar, porque, se fosse verdade, abriria um enorme abismo diante dos seus pés. Um juramento de sangue era para toda a vida. Não havia espaço para qualquer dúvida. Thord estivera a deitar alguma verdura para cima do pequeno montículo que tinham feito. Agora estava a aproximar-se e Eirik calou-se. Adeus, então disse Eyvind. Que os deuses te protejam.
A ti também, irmãozinho disse Erik. Adeus e até à Primavera.Num dia seco e ventoso, pouco tempo depois do incêndio, estavam sentados no salão grande em frente do fogo. Somerled e Margaret jogavam um jogo como muitas vezes antes, mas Margaret movia as suas peças apaticamente, como se a sua mente estivesse noutro lado qualquer. A dama parecia de certo modo atordoada com a morte do marido e não mostrava nenhuma da sua velha vitalidade. Somerled esperou pacientemente pelo seu movimento; fez sugestões inúteis; tentou diverti-la com brincadeiras e histórias e, por vezes, conseguiu arrancar-lhe um pequeno sorriso e levar alguma cor às suas faces abatidas. Eyvind observava. Somerled tinha-o quase sempre a seu lado, agora. Os tempos estavam a ficar cada vez mais perigosos e era prudente tomar as necessárias precauções, já que muita gente dependia da liderança de Somerled. No outro canto do salão grande, um grupo de mulheres costurava e um grupo de homens tratava das suas armas, afiando lâminas, oleando couro, remendando ataduras gastas em bainhas ou aljavas. Lá fora o vento uivava, fazendo com que o fogo vacilasse e sibilasse.O sopro de Thor, pensou Eyvind. Algo está a mudar. Sentiu um arrepio na espinha; não sabia dizer se era excitação, medo, ou as duas coisas ao mesmo tempo. E então a porta abriu-se com um estrondo, ajudada pelo vento furioso e Grim entrou de rompante.Os ilhéus vêm a subir o vale disse ele com a respiração entrecortada e com a mão segurando o lado esquerdo do tórax. Um grupo deles, bem armado. Não me viram.Já todos os homens no salão grande se tinham posto de pé. Os cintos foram afivelados, as capas colocadas sobre os ombros e as botas apertadas com firmeza.Eyvind? disse Somerled. Trata disto por mim, está bem? De facto, Eyvind nunca fora encarregue de uma tal tarefa antes,mas não era difícil.Quantos homens? perguntou ele a Grim e este disse-lhe que deviam ser, pelo menos, quinze, talvez vinte. Muito bem, dez dos deles avançariam como resposta. Geralmente, um Pele-de-Lobo valia cinco opositores, talvez três no caso dos Dinamarqueses; mas os ilhéus eram traiçoeiros e estavam no seu terreno, por isso era melhor pecar por excesso.
Ele próprio, Grim e Holgar. E sete outros homens, incluindo cinco que faziam parte da tripulação do knarr, homens que não eram guerreiros experimentados, mas conhecidos por serem combatentes persistentes, com um truque ou dois na manga. Disse-lhes que se armassem rapidamente e foi buscar as suas coisas ao seu alojamento. O machado, Mordedor, já o tinha às costas. Tirou a espada da bainha e o elmo da arca. Os anéis de metal apanharam a luz do Sol que entrava pela estreita janela, lançando um feixe de luz ao longo da pedra cinzenta das paredes. Seria a sua primeira batalha desde que saíra de Rogaland, tão distante que parecia, noutro mundo. Parecia-lhe adequado usar o presente do Jarl e recordar aqueles tempos, de modo a poder demonstrar verdadeira coragem e liderar aquele pequeno grupo a uma vitória digna da confiança que Thor depositava neles. Então, o deus olharia para ele e faria com que regressasse a casa são e salvo no fim do Inverno.Moveram-se em silêncio, mantendo-se abrigados sob as colinas onduladas, procurando o menor acidente de terreno para se esconderem. O Sol estava baixo; cada pedra rugosa, cada arbusto enfezado tinha uma longa sombra. O vento fustigava a superfície do terreno, fazendo com que as aves cortassem o céu ruidosamente, dilacerando as capas e fazendo com que a malha do elmo de Eyvind chocalhasse numa música selvagem.Caíram sobre os ilhéus subitamente, na linha divisória entre duas colinas baixas por onde corria um ribeiro. Um homem com uma lança, dois outros a seguir, arcos esticados, mais à retaguarda, túnicas vermelhas, verdes, azuis, olhos escuros ferozes, elmos de couro. Eyvind olhou para Grim; Grim olhou para Holgar. Como um só, abriram as bocas e rugiram; como um só, atacaram e os outros seguiram-nos. A voz de Thor entrou, nítida e forte na cabeça de Eyvind enquanto o guerreiro avançava: Fere com força, meu filho! Consome tudo por mim! Mordedor girou e caiu, cortou e golpeou, pura e simplesmente. Em redor da figura rodopiante de Eyvind os homens gritaram, as espadas brilharam à luz, os escudos estilhaçaram-se, as flechas assobiaram no ar e aterraram com o barulho surdo da seta cravando-se na carne humana. Em tais ocasiões um Pele-de-Lobo vê apenas a bruma vermelha da vontade do deus. No entanto, desta vez era diferente. Eyvind viu Grim cortar as pernas de um homem pelo joelho e acabar com ele com o punho do seu martelo de guerra. Viu Holgar cortar um homem ao meio. Cada homem fazia a sua parte, mesmo aqueles que tinham sido, em tempos, marinheiros e que agora combatiam da única maneira que sabiam, com dureza e desonestidade. Mas os ilhéus continuaram o combate. Apesar de inferiores, não davam sinais de retirada. E tinham, também, feito estragos. Um dos homens do knarr jazia, gemendo de costas, ambas as mãos pressionando a barriga. Um outro caíra de borco na água lamacenta; o seu pescoço parecia ter-se partido. Já havia poucos inimigos de pé, uma mera mão-cheia. Eles deviam contar as perdas e retirar a correr, pensou Eyvind. Por que não retiram?O combate afastou-se dele; Holgar lutava com dois homens que alternavam golpes de espada, tentando entrar na sua guarda. Para Eyvind era evidente que o Pele-de-Lobo estava apenas a brincar com eles. Grim lutava com outros dois que tinham sido suficientemente loucos para pensar que conseguiriam tirar-lhe o martelo. Mais acima, para montante, três ilhéus mantinham-se costas com costas, de armas em riste, numa última tentativa desesperada de resistência. Os outros homens de Eyvind tinham formado um círculo e estavam a aproximar-se. Os ilhéus estavam condenados. Por que não fugiam?O guerreiro ouviu um som minúsculo por trás de si. Eyvind girou de machado na mão. Um guerreiro vestido de verde estava a dez passos de distância, de arco esticado, a flecha apontando para o seu coração. Consome tudo pormim, filho, cantou a voz de Thor no seu ouvido. A resposta de Eyvind foi automática: Mordedor voou da sua mão num arco giratório, brilhante, na direcção da cabeça coberta de couro do ilhéu. E enquanto o machado dançava através do ar, Eyvind olhava para o rosto do seu oponente. O guerreiro viu as faces empalidecidas e os olhos aterrorizados de um rapaz, talvez de doze anos de idade, não mais, um rapaz que dançara no casamento da irmã, no Verão, com um sorriso no rosto e molas nos pés, um rapaz cuja irmã morrera pelo fogo com os filhos nos braços e o marido a seu lado, marido esse que fora um Pele-de-Lobo. O guerreiro viu o tremor das mãos do jovem ao esticar o arco, viu o rictus furioso da sua jovem boca e então Mordedor encontrou o seu alvo, simples como sempre, e a sua presa caiu sem vida no chão. Eyvind sempre se orgulhara das suas mortes limpas.O guerreiro ficou imóvel. Algo estava errado. Tudo estava errado. Thor chamara por ele e ele respondera, respondera com bravura e destreza, respondera e achava que respondera bem. Mas Thor estava silencioso. A voz que rugira nos seus ouvidos, que o guiara ao longo de todos aqueles anos como um pai guia o seu filho, como um grande líder guia os seus guerreiros, tinha desaparecido como se nunca tivesse existido. Eyvind inclinou-se e arrancou Mordedor ao crânio do rapaz. Limpou a lâmina na erva. Os corpos estropiados dos ilhéus jaziam no vale estreito e agora podia ver que muitos deles eram apenas rapazes, que muitos outros eram velhos, de barbas grisalhas, de cabelos brancos. Aquelas crianças e aqueles anciãos não deviam fazer a guerra. Era uma loucura. Não estava certo. Mais longe, no vale, os seus homens berravam, gritavam, feriam e pontapeavam tudo o que encontravam à sua frente. Aquilo não era uma batalha, era um massacre.A cabeça de Eyvind começou a girar. Imagens passavam-lhe pela frente, antigas, novas: o olho morto de Ulf, o crânio frágil de uma criança, o corno de um boi perfurando carne viva, o seu próprio machado erguendo-se e caindo, erguendo-se e caindo, só que não era o elmo de um inimigo o que ele dividia em dois, era a cabeça de uma criança com dois olhos redondos, inocentes, a cabeça de uma mulher loura vestida com uma camisa de noite justa e ele segurando na mão, não um machado, mas uma pequena faca, uma faca que desenhava caracteres rúnicos na carne branca do braço de um rapaz, caracteres rúnicos que representavam, para que todos vissem, o seu próprio nome, Eyvind. Eyvind escreveu isto. Isto é obra de Eyvind.Thor murmurou ele, ao mesmo tempo que as trevas lhe caíam em cima Thor, onde estás?Mas só teve o silêncio como resposta: um silêncio que era como a quietude depois de uma porta se fechar, um silêncio que lhe parecia tão final como a morte. Estava algures num sítio novo, num sítio onde não queria estar e não podia regressar. No seu círculo, os outros continuavam a zombar e a amaldiçoar, decepando as suas presas, Não restaria grande coisa depois de terem terminado. Eyvind tirou o seu belo elmo com a franja de anéis de metal e colocou-o debaixo do braço. Sem olhar para trás, começou a afastar-se. Então, começou a correr e o seu coração correu ao ritmo dos seus passos, mais depressa, mais depressa, para longe, para longe, sempre para mais longe. O seu espírito chamou e voltou a chamar: Thor! Thor, ajuda-me! Eu sempre fui leal Onde estás? Mas só lhe respondeu o silêncio e o distante rugido do mar. Enquanto corria, cego, monte acima, monte abaixo, tropeçando em tocas de coelhos, as rochas ferindo-lhe a carne e as ervas aceradas picando-lhe a pele, algo corria a seu lado sem fazer barulho, mesmo na periferia da sua visão: algo tão longo, tão cinzento e tão silencioso como um lobo.
O cão seguia-a já há uns tempos. Era um animal grande, cinzento, hisurto e de aspecto selvagem. Caminhava um dia de Dorso de Baleia para a costa e quando chegou a um determinado ponto vislumbrou-o nas dunas, caminhando tranquilamente, como se a fosse a vigiar. O seu pêlo estava todo emaranhado e viam-se-lhe as costelas. O cão não entrava nas imediações do domínio secreto de Rona. Parava sempre no mesmo sítio e deitava-se, muito quieto, debaixo de um grupo de arbustos baixos enquanto ela entrava no lugar das mulheres. Esperava ali até que ela terminasse as suas tarefas. Quando estava pronta para regressar a casa, o cão punha-se de pé e seguia-a, como que para se assegurar de que a jovem fazia a jornada em segurança. Mais tarde, Nessa começara a levar consigo bocados de carne, um pequeno peixe, uma côdea de pão e deixava-os onde o cão podia ir buscá-los enquanto ela trabalhava. Por vezes, deixava-a aproximar-se, quase até lhe poder tocar no pêlo hisurto. Apesar do seu aspecto feroz, era um animal tímido.Ela sabia de quem era o animal, claro. Toda a gente tinha visto aqueles dois cães de caça, pertença do chefe de guerra norueguês; ele até os usara para encontrar as ovelhas tresmalhadas dos Folk por ocasião da doença. Mas Ulf tinha morrido. Talvez já ninguém quisesse o mastim. Talvez o seu companheiro tivesse morrido e ele se sentisse só. Nessa compreendia esse sentimento. O seu coração ainda lhe doía devido à perda das irmãs. A sua mãe andava à deriva num mundo estranho, onde ninguém a podia alcançar; os seus olhos não tinham expressão e ninguém compreendia as suas palavras. E Engus mudara desde aquela viagem fatal à Ilha Alta. Nessa podia ler no seu rosto a constatação de que cometera um erro terrível. Os recém-chegados atacavam onde e quando muito bem lhes apetecia; já não era seguro os Folk viajarem pela ilha sem irem armados. E a viúva, Ara, que casara com um dos estrangeiros e morrera queimada com os filhos nos braços? Aquilo não fora um acidente. Fora depois disso, pensou Nessa, que o seu tio começara a perceber o que desencadeara entre o seu povo. Os parentes de Ara tinham partido em busca de vingança. Os noruegueses tinham-nos chacinado a todos sem piedade. O pequeno vale de Ramsbeck era agora um lugar maldito, um lugar de profunda tristeza. Os Folk nunca mais tinham regressado a esse lugar. Nessa sentia-se feliz por Kinart não ter partido nessa expedição como era seu desejo, ou o corpo do seu primo estaria agora debaixo da terra com os restos destroçados dos outros. Todos os homens da mesma família tinham morrido naquele dia: irmãos, pai, avô, tios, primos. Kinart ardia de fúria. Jurara cortar a cabeça de um norueguês por cada um dos que tinham morrido em Ramsbeck apesar de não passar, ainda, de um rapaz. Engus susteve-o. Susteve-os a todos. Aquela tentativa heróica e fútil de vingança fora levada a cabo sem o seu conhecimento, sem a sua aprovação. Só um louco, dissera Engus, subestimaria a força dos noruegueses. Os Folk não tinham hipótese contra eles em combate singular. Mas ainda havia a possibilidade de um novo tratado. Não podiam perder a esperança. No entanto, Nessa sabia que ele convocara homens vindos das outras ilhas e que duplicara a sua guarda de fronteira. Engus confiara em Ulf, um bom e sábio chefe de guerra. Com Somerled, Senhor-dos-Cavalos o caso era diferente.
As suas terras a ocidente ainda estavam seguras. Engus murmurara algo acerca de ela não sair sem Kinart ou outro dos rapazes, não fosse o diabo tecê-las, mas Nessa preferira não o ouvir. A jovem não queria um guarda atrás de si a meter o nariz nos seus assuntos. Não queria Kinart a pairar à entrada do lugar proibido, chamando-a para que se apressasse. Não era preciso. Os noruegueses sabiam que não deviam atravessar a fronteira, lorde Ulf fora avisado e o seu irmão certamente que estava ao corrente. Além disso, era uma sacerdotisa e se o cão não a protegesse, protegê-la-iam os antepassados.
Parecia mais importante do que nunca fazer com que os rituais fossem efectuados correctamente, que fossem cantados os cânticos certos, que fossem recordados todos os pormenores das histórias. Não havia dúvida de que os Folk andavam assustados. Os que tinham avisado
Engus de que convidar os noruegueses a ficar era pedir sarilhos, acenavam agora com as cabeças, como que a dizer: Eu bem te disse. Algumas pessoas com família nas outras ilhas falavam em partir; seria mais seguro estar longe daquele novo chefe de guerra cujos homens tinham a tendência de usar as armas sem se preocuparem em fazer perguntas primeiro. Mas estava-se a meio do Inverno e viajar entre as ilhas era praticamente impossível. Além disso, Engus queria os homens presentes, perto de Dorso de Baleia, o maior número possível, prontos a lutar pelo seu Rei e pelo futuro dos Folk. Sem que lhe dissessem fosse o que fosse, Nessa percebia que o seu tio estava a preparar-se para a guerra.
Estava frio naquele dia. Ela usava duas capas sobre a túnica, a saia, espessas meias de lã, botas de pele de carneiro e um chapéu de feltro enfiado até às orelhas. O vento fustigava-lhe o cabelo e entorpecia-lhe o rosto e as mãos enquanto caminhava para sul ao longo do carreiro, através das dunas. Estivera quase a abandonar a ideia do passeio. Mesmo na maré baixa, o vento transportava a espuma do mar através do espaço entre Dorso de Baleia e terra firme. Não podia demorar-se muito com os rituais, porque a subida da maré através da passagem era rápida em todas as estações e naquele dia o estreito carreiro estava mesmo traiçoeiro. Havia cabanas perto da ponta, local onde moravam alguns pescadores, mas Engus não gostava que ela ficasse lá de noite. Ela achava que ele a teria mandado embora para longe até que os sarilhos passassem não fora a importância dos rituais.
Quando Nessa se aproximou da minúscula cabana de Rona, o cão, que se mantivera a uma distância constante dela, começou a aproximar-se. Os seus olhos escuros estavam fixos nela, como se esperasse algo. Ela trouxera pão, mas estava metido no pequeno saco que trazia e que estava atado.
Terás de esperar disse Nessa ao mastim com um ar sério. Mais tarde. Lindo bichinho.
O cão continuou a olhar para ela. Passaram pelos arbustos onde ele, habitualmente, se instalava para esperar. Continuaram a caminhar, desceram para a depressão por onde corria o ribeiro e para o lugar das mulheres. A cauda do animal abanava furiosamente; o cão farejou o solo, ladrou e ouviu-se uma resposta, um outro cão, mas o som parecia vir do subsolo, da torre debaixo da terra.
Até que enfim. Rona, bem agasalhada contra o frio, estava sentada junto de uma pequena fogueira que ardia entre umas pedras num espaço plano. O ribeiro gorgolejava perto, engrossado pelas chuvas do Outono. Havia uma panela na fogueira, o vapor subia e havia no ar um aroma de ervas. A cabana de Rona não era longe, mas, normalmente, ela ia para ali porque gostava de observar os muitos aspectos do céu. Estou a ver que trouxeste um visitante. Mas nós já temos um. E temos um problema.Nessa pousou o saco. O outro cão devia ter vagabundeado por ali e devia ter-se abrigado no dólmen. O que não era preocupante, desde que os noruegueses não o quisessem de volta. O primeiro animal corria de um lado para o outro e esgravatava a terra à entrada do dólmen. Nessa encaminhou-se para lá. Desde aquele dia longínquo, em que descobrira a torre debaixo da terra, desenterrara a porta verdadeira e a passagem original, sempre com o devido respeito pelos antepassados. Agora, era possível entrar, se bem que fosse necessário inclinar-se e ficar de pé na primeira câmara. A luz podia ser conseguida desviando a laje do topo, onde a pequena Nessa desenhara, em tempos, o Sol, o mar e as fases da Lua. Havia pequenas lâmpadas de óleo no interior e um cobertor ou dois. Ela utilizava a torre para determinados rituais, solitários. Alguns poderes devem ser reverenciados em locais subterrâneos, secretos, lugares aconchegados como aquele.Cuidado avisou-a Rona, mas Nessa sabia que os cães não faziam mal; sabia-o desde que vira o animal caminhar a seu lado como uma graciosa sombra. Podiam ter vindo das terras geladas, mas agora pertenciam ali. De qualquer modo, Rona não a avisaria sem uma boa razão. Talvez o outro cão estivesse ferido e pudesse morder. Se não estava ferido, por que razão permanecia no interior?Nessa retrocedeu, foi buscar uma lâmpada à cabana de Rona e inclinou-se para a acender no fogo da lareira. Rona não dizia nada. Não valeria a pena com o barulho que os cães faziam. Nessa regressou à entrada baixa do dólmen e entrou através da passagem ladeada de lajes que ia dar à primeira câmara. O cão seguia-a, tocando-lhe nos lados do corpo; ela bateu com a cabeça e quase deixou cair a pequena lâmpada. Em frente ouvia-se um coro extático de latidos caninos de boas-vindas.Assim que emergiu do túnel e se endireitou, os dois cães saltaram, pousando-lhe as patas dianteiras no peito e nos braços, as línguas lambendo-a entusiasticamente. De pé nas patas traseiras, eram quase tão altos como ela. A lâmpada oscilou perigosamente.
Para baixo! ordenou Nessa asperamente. Os animais obedeceram, as línguas penduradas, os olhos escuros brilhando expectantemente na câmara sombria. O segundo animal era pele e osso, as orelhas rasgadas, o pêlo imundo. Parecia amistoso. Poderia afagá-lo sem grande dificuldade.Anda disse Nessa encorajadoramente. Linda menina. Anda. Ela retrocedeu pela passagem, estalando os dedos. Os cães ficaram imóveis como duas estátuas, olhando para ela. Teria de ir ao exterior e trazer pão. Anda, cãozinho.Nessa recuou outro passo, tropeçou em algo, perdeu o equilíbrio, caiu sobre um joelho e estendeu uma mão para tentar segurar-se. Sempre segurando a lâmpada tremeluzente, olhou para baixo. Ali, a seus pés, estava um pedaço de pano velho, uma pele e pedaços de metal, uma grande trouxa que não pertencia ali, porque aquele local era secreto, um local onde apenas podiam ir ela e Rona, um local onde nada era deixado ao acaso. Os cães aproximaram-se, silenciosos. Nessa olhou de novo. Havia um machado. Um belo machado, com desenhos na lâmina que faziam lembrar água tremeluzente e um cabo de carvalho. Ela aproximou a lâmpada e o seu coração deu um baque. Havia uma mão agarrada ao punho do machado. A mão pertencia a um homem, um homem que estava enrolado sobre si próprio como uma bola, os joelhos encostados ao peito, um braço sobre o rosto, o outro, protector, segurando aquela grande arma de morte. Parecia completamente adormecido num sono sem sonhos. Não estava morto: aqueles dedos, agarrados ao machado, eram a prova. Talvez acordasse subitamente e erguesse o braço para a matar ali mesmo onde estava, ajoelhada. Talvez. Mas os cães estavam tranquilos, não pressentindo qualquer perigo. Nessa estendeu a mão e, puxando um canto do pano de lã que lhe cobria o rosto, puxou-o delicadamente.Ela já vira aquele homem antes. Era aquele homem grande, silencioso, que olhava para o céu. Tinha as pálpebras pesadamente fechadas, o queixo áspero devido a uma barba de dias e a pele pálida e seca. Tinha olheiras e as feições cavadas. Mas ela conhecia-o. O seu cabelo brilhava, dourado, à luz da lâmpada. Tremia, a jovem sentia o tremor através da capa de lã que o cobria. Sob a sua cabeça estava a pele de lobo que usava pelos ombros. Estava tudo molhado; a capa, a pele, a túnica, o cabelo, tudo. Parecia que estivera muito tempo sem comida e sem água. Rona tinha razão. Tinham, na verdade, um problema.
Nessa colocou a lâmpada numa prateleira. Tirou a sua espessa capa e estendeu-a por cima do homem, aconchegando-a em redor do pescoço e ombros. Afastou-se. A capa, que lhe chegava aos tornozelos quando a usava, mal cobria o homem, mesmo naquela posição enroscada. A sua pele estava fria, mortalmente fria. Ela foi buscar os velhos cobertores, perguntando a si própria por que não os encontrara ele, perguntando a si própria por que não procurara ele a fogueira de Rona. Cobriu-o por completo, de maneira que a única coisa que via era uma madeixa ou duas dos seus cabelos claros e a pele pálida da sua testa.Nessa retrocedeu pela passagem, fazendo sinal aos cães para que a seguissem. Eles olharam para ela. Então, o segundo cão, a fêmea, foi para junto do guerreiro e deitou-se a seu lado com o focinho entre as patas. Podia estar esfomeada e ferida, mas era evidente que não ia deixá-lo. Talvez o jovem estivesse vivo devido ao seu calor. O outro cão seguiu Nessa até à fogueira.Rona entregou a Nessa uma taça com uma bebida aromática e fumegante. Era agradável sentir o seu calor nos ossos gelados das mãos. A velha e sábia mulher tinha chás de ervas para tempos de confusão, de tristeza ou simples frio. Tinha chás para todas as ocasiões. O cão instalou-se aos pés de Rona. Permaneceram em silêncio durante algum tempo.Como é que ele chegou aqui? perguntou Nessa finalmente. Quando é que chegou?A anciã sugou o chá por entre os dentes.Encontrei-o ontem. Pode muito bem ser que já lá esteja há sete ou oito dias; foi a última vez que nós lá entrámos, tu ou eu. Deve ter encontrado a entrada e instalou-se tranquilamente. Ele e a cadela. É difícil dizer qual deles mete mais pena.Deste-lhe comida? Agua? Ele disse alguma coisa? Rona virou os olhos cinzentos como seixos para Nessa.Eu? Não, filha. Saí a correr mal o vi. Que é ele senão um homem grande com um machado? A raça dele só sabe matar. O lugar dele não é aqui, nenhum homem deve vir aqui e a espécie dele muito menos. Quanto à comida e à água, já não precisa. O cão saiu uma vez ou duas desde que os encontrei, mas o homem ainda não mexeu um músculo. Enroscado como um bebé assustado e os olhos fechados com força: já não tem ajuda possível, aquele. O que não impediu que lhe desses a tua capa, pois não?
Nessa tremeu.Que achas que devemos fazer?Eu não acho, sei. Só estava à tua espera. Este homem significa sarilhos. Deves dizer ao teu tio que ele está aqui. Engus tem de vir aqui e tem de o levar daqui para fora. O Rei não há-de gostar de vir aqui, ele sabe muito bem o que está e não está certo. Mas não temos escolha e mais vale ele do que outro qualquer. Diz-lhe que traga o rapaz, o Kinart. Creio que vão ser precisos dois para o levarem. É a única maneira. Uma vez fora daqui, eles que façam o que quiserem do homem.Nessa conseguia imaginar. O seu tio talvez percebesse a vantagem estratégica de um refém, uma ferramenta de troca para a nova aliança. Kinart seria menos magnânimo com o prisioneiro norueguês indefeso a seus pés.Eles matam-no disse ela com os dedos a afagaram o pêlo hisurto do cão.Estes homens são selvagens. Rona cuspiu para o chão. Ignorantes das coisas do espírito, espoliadores de terra e de gente. Não merecem a tua boa vontade, Nessa. Sabes muito bem o que aconteceu em Ramsbeck.Seguiu-se um silêncio pesado.Nessa? perguntou a anciã após uns momentos. O que é? Nessa torceu as mãos.E se tu estivesses realmente assustada disse ela e te escondesses num sítio qualquer, um sítio onde pensasses estar a salvo, e no fim descobrisses que, afinal, não estavas nada a salvo porque alguém te entregava aos teus inimigos? Seria uma traição terrível.Rona olhou para ela.Ele, assustado? espantou-se a anciã. Já viste o tamanho dele? É claro, tem uns belos cabelos louros. Talvez, para ti, a diferença seja essa, suponho.É evidente que não é! Essas coisas não significam nada para mim. Mas... mas não me parece que consiga fazer o que me pedes.Entregá-lo, disseste tu. Ele não é nosso para o entregarmos, ou darmos. Não existe traição se o homem for teu inimigo. Aquele machado ainda cheira ao sangue dos rapazes que foram chacinados há oito noites atrás. Um homem perdido não é a mesma coisa que um cão extraviado, Nessa. E agora põe a tua capa e vai para casa antes que o homem decida acordar e nos acrescente às duas à lista dele. Sabes o que tens a fazer. Confia nesta velha, sim?Nessa desfez a sua trouxa e vasculhou à procura dos bocados de pão. Colocou-os no chão em frente do cão. O animal farejou-os e agitou a cauda. Olhou para ela. Olhou para a torre subterrânea.Tenho de ir lá dentro disse Nessa só por um momento. Vou levar alguma água ao outro cão. Rona?O que é, filha?Tu és o meu mestre desde os meus dez anos, a melhor dos professores, a melhor das amigas. Sabes que confio no teu julgamento e sigo todos os teus conselhos. De outro modo, como poderia aprender o que me falta saber? Mas desta vez é diferente. Eu tenho a certeza acerca disto. E quanto mais penso, mais certeza tenho.Estás enganada disse Rona em tom neutro. Se não disseres nada, vais contra tudo o que está certo e que é natural. Estarás a desafiar os antepassados. O homem tem de sair daqui. Entrou onde não devia.Rona, quero pedir-te um favor. Enquanto eu estiver lá dentro, quero que olhes para o fumo e fales com eles, com os antepassados. Fala-lhes deste homem. Lê os sinais. Se eles disserem que tens razão, se eles disserem que ele é um perigo para nós, eu prometo que falo com o meu tio. Se não, dá-me algum tempo. Por favor?Tu sempre foste muito teimosa disse Rona. A anciã aproximou-se da fogueira, soprou para as brasas até estas ficarem rosadas e tirou uma mão-cheia de algas meio secas da panela que mantinha junto de si para o efeito. Muita coisa podia ser vista numa fogueira daquelas; visões, previsões, o passado, o presente e o futuro, tudo ao mesmo tempo. Só uma mulher sábia conseguiria tirar algum sentido de uma miscelânea assim. O fumo subiu no ar frio, pungente e espesso. Rona fechou os olhos e iniciou um cântico.No interior da torre, o homem continuava imóvel. Nessa dividiu o pão pelos dois cães. O macho esperou até que a sua companheira terminasse a sua parte e comesse metade da sua e só depois comeu o restante. A fêmea esvaziou a tigela de água. Nessa saiu de novo e foi buscar um balde à cabana de Rona. Encheu-o no ribeiro. Rona continuava sentada, longe da vista, junto da fogueira, balouçando para a frente e para trás, o seu cântico acompanhado pelo murmúrio da água. Nessa foi buscar roupas e mais um cobertor.
Os cães estavam agora deitados junto do homem e ele parecia um pouco mais quente, se bem que o tremor febril continuasse. As roupas dele estavam completamente molhadas; até as botas estavam ensopadas. Durante quanto tempo teria vagueado sem abrigo? Aquela gente não sabia cuidar de si própria? E estava sujíssimo; cheirava pior do que estrume. Mas era tão grande e pesado, e estava tão profundamente inconsciente que ela não conseguiria dar-lhe a volta, quanto mais tirar-lhe as roupas molhadas e vestir-lhe outras secas. Não que fosse apropriado ela tentar essa tarefa. Mas o homem estava doente, ferido e talvez estivesse assustado. Nessa lembrava-se de como ele se virara e olhara para ela na praia, muito quieto, muito calado. Havia uma certeza em tudo aquilo que não podia ser questionada. Com a sabedoria própria de uma visionária, ela sabia que não podia fazer outra coisa senão ajudá-lo.A jovem molhou o canto de um pano e limpou-lhe o rosto. As faces dele estavam encovadas, as órbitas escuras de exaustão. Havia algo de terrivelmente errado nele. Talvez acabasse por morrer e ela nunca saberia o que era. Talvez devesse dizer à sua gente que ele estava ali, para que pudessem ajudá-lo. Talvez fosse o que ele gostaria. Mas eles não podiam entrar ali. Se ele morresse, a culpa seria dela por não ter ido em busca de ajuda. De que se esconderia ele? Gentilmente, com os dedos, Nessa afastou-lhe os cabelos da testa. Os caracóis dourados estavam emaranhados e cheios de porcaria e suor. Seria uma batalha meter ali um pente. Ela encheu a taça, mergulhou nela um pano limpo e espremeu algumas gotas para cima dos lábios gretados. Não havia maneira de saber se ele as sentira. Ela tentou de novo e pareceu-lhe que os lábios dele se tinham mexido ligeiramente. Talvez as tivesse engolido, ou talvez não. Os cães observavam cada um dos seus movimentos.Após algum tempo, Nessa aconchegou mais uma vez os cobertores em redor do guerreiro como se ele fosse uma criança e regressou para junto de Rona. Um dos cães seguiu-a, enquanto o outro ficou para trás. Os olhos de Rona estavam abertos. O fumo desaparecera. Em lugar da panela, em cima das brasas estava uma frigideira com dois bolos a torrar.Não gosto nada disto disse a anciã rudemente. Nessa esperou.Não gosto. Parece-me errado. Rona mordeu o lábio. Mas tenho de te deixar fazer as coisas como queres. Foi o que os sinais me disseram.
Nessa sentiu-se percorrida por um grande alívio.Portanto, que vamos fazer? perguntou Rona um pouco irritada.Vamos mantê-lo quente. Fazer com que beba qualquer coisa. Descobrir o que se passa e tentar ajudá-lo.Hum, hum. Sabes muito bem que Engus não te vai deixar ficar fora de casa. E quando não estiveres aqui? Como vai ser?Esperava que me pudesses ajudar disse Nessa calmamente. Achas que és capaz?Teve de agir de mansinho com o tio Engus para que a deixasse ficar com Rona durante algum tempo, se bem que ele preferisse tê-la em casa. Havia uma desculpa plausível. Os dias eram muito pequenos e o tempo inclemente; cada vez menos há luz, a maré baixa e o tempo calmo andavam juntos, permitindo uma passagem segura antes do anoitecer. E ela tinha de observar os rituais, já que Rona estava cada vez mais velha e não podia fazer tudo sozinha. Era um argumento que nenhum Rei podia ignorar. Os Folk estavam em perigo. Engus recrutara um exército e tinha esperança num tratado. Nessa celebrava os mistérios, lia os ossos e ouvia os antepassados. Entre os dois talvez houvesse uma hipótese de futuro. Se Engus via uma vida futura para a sobrinha, não era a vida solitária de uma sábia, pelo menos não o mencionava abertamente. Por vezes, falava nos chefes de guerra dos Caitt e dos Dalriada, e dos filhos deles. Mas pouco mais dizia.Ela chegou com uma trouxa maior do que habitualmente; Kinart transportara-a ao longo da praia. Agora, o rapaz estava de regresso a casa com a lança ao ombro, os olhos escuros cheios de frustração por Engus o manter em Dorso de Baleia, já que o Rei não queria mais perdas inúteis. Tinham de renegociar o tratado. Em breve o Rei mandaria chamar o irmão Tadhg à Ilha Sagrada e mandá-lo-ia de novo para falar com o homem a quem chamavam o Senhor-dos-Cavalos. Mas ainda não. Até um homem santo precisa de descanso, por vezes.Enquanto tratava do guerreiro, Nessa praticava a língua norueguesa, preparando-se para o momento do seu despertar. Ensaiou possíveis coisas a dizer. O teu machado não está perdido, pu-lo em segurança. Ou talvez, Eu sou uma sacerdotisa. Posso ajudar-te. Aquilo soava um pouco pomposo. Aqui estás em segurança; não tenhas medo. Talvez esta última.
Rona perguntou-lhe o que andava ela a resmungar e acrescentou algumas sugestões da sua lavra, como, Não me mates, eu sou uma boa cozinheira, ou Que belos cabelos louros tens. Entre as duas conseguiram virar o jovem e trocar a maior parte das roupas molhadas por outras secas. Nessa trouxera algumas das roupas velhas do seu tio, as únicas suficientemente grandes. A jovem lavou as roupas do guerreiro no ribeiro e secou-as à lareira da cabana de Rona. Esfregou a capa hisurta e pendurou-a numa corda. Era muito grande: feita da pele de um único e enorme animal. A pele reflectiu a luz e pareceu estar viva. Era uma coisa bela e feroz, uma peça de vestuário que tinha a sua própria magia. Que pele é esta? Faz parte de ti?
Não conseguira tirar-lhe o machado. As brumas da inconsciência envolviam-no profundamente, mas os seus dedos mantinham-se-lhe agarrados, como se a arma fosse a sua única tábua de salvação, a sua última ligação com o que mais amava. Nessa sentou-se junto dele durante muito tempo, vigiada solenemente pelos dois cães e afagara os dedos do seu punho fechado como se tocasse num animal nervoso, ou numa criança assustada.
Está tudo bem. Descontrai-te. Descontrai-te, descansa. Aqui estás em segurança. Está tudo bem. Repetiu uma vez e outra aquelas palavras de tranquilidade. Havia ali uma justeza que ia contra toda a lógica; Nessa sentia-o. Enquanto permanecia ali sentada, sentia a força do local acumular-se à sua volta, uma força sombria, primitiva, que se insinuava na sua respiração e na sua voz, uma força curativa que a fazia mover os dedos, fluindo neles como um bálsamo e que parecia durar para sempre. As pequenas lâmpadas continuavam a arder; Rona entrou com uma taça de água para ela e voltou a sair em silêncio, uma sombra de mulher. Por fim, os dedos do jovem começaram a abrandar o aperto, a sua mão começou a descontrair-se e Nessa conseguiu puxar o cabo do grande machado e afastá-lo gentilmente do seu punho. Aquela coisa era tão pesada que mal podia com ela. Imagine-se a força que ele devia ter para o transportar consigo, para o erguer acima da cabeça e... não, não pensaria nisso. Nessa embrulhou a brilhante arma num pano e colocou-a cuidadosamente num dos recantos do dólmen. Havia várias dessas pequenas câmaras. Rona dissera que em tempos, antes de haver memória, era nelas que se guardavam os ossos dos antepassados. Nessa inclinou a cabeça em sinal de respeito enquanto depositava o machado e a seu lado fez um desenho com algumas pedras brancas: a lua cheia, uma gruta profunda e a mãe coruja, sinais de protecção. Em seguida sentou-se ao lado dele um pouco mais, segurando-lhe na mão, movendo e afagando os dedos crispados. O guerreiro não tinha, agora, nada a que se agarrar senão a ela. Por fim, ela estendeu os cobertores por cima dele e foi-se embora.Na cabana, Rona aquecia papas de aveia na lareira. Havia coisas pertencentes ao seu estranho visitante por toda a parte: as botas perto da porta, a túnica e as perneiras em cima de um banco, a grande pele brilhante pendurada a um canto, sussurrando sob a chaminé.Ele, hoje, bebeu bem disse Nessa, sentando-se à lareira. Parece estar capaz de engolir apesar do sono profundo em que está mergulhado. Mas parece que não quer acordar.Ele há-de acordar e isso é que é pena grunhiu Rona, deixando cair uma pitada de sal na panela de ferro e provocando uma viva agitação nas papas. Então é que os teus problemas vão começar. Ao menos, vai poder dar uma ajuda a limpar isto. Eu nunca quis crianças, chateiam muito. Nunca pensei arranjar uma grande com esta idade. Toma, miúda, come. Pareces esgotada. Por que é que isto te interessa tanto?Nessa abanou a cabeça.Não sei. Mas interessa. Todos os sinais me dizem isso. Que devo seguir este caminho.É isso que me preocupa disse Rona, mergulhando uma colher de osso na sua tigela. Sempre pensei que tinhas o destino traçado; vi isso nitidamente no dia em que apareceste aqui pela primeira vez e fizeste os teus desenhos com pedras. Agora, parece que me enganei.Disparate disse Nessa enquanto se sentia percorrida por um arrepio. Damos-lhe de comer, obrigamo-lo a levantar-se e a regressar para junto dos dele. Depois, tudo voltará a ser como dantes.Hum, hum. Era claro, pelo tom de Rona, que acreditava tanto naquela previsão como a própria Nessa. Enquanto ouviam, sentadas, o vento que rugia no exterior, batendo nas janelas, fazendo com que as traves do tecto batessem nas paredes, sabiam que o futuro mudara no momento em que o guerreiro entrara no lugar proibido. Ele quebrara um padrão; não alterara apenas o próprio destino, alterara também o delas.Se não fosse pelos antepassados disse Rona, raspando os restos das papas da sua tigela tirava-o do ninho e tu com ele e eu continuaria a ser dona de mim própria, como antes. Mas não podemos ignorar os sinais. E se ele acorda de noite?Os cães avisam-me.Acabaram ambas a frugal refeição. Nessa pôs de lado as tigelas, lavou a panela e apagou a lareira. Enquanto o vento crescente açoitava o telhado e batia à porta, prepararam-se para passar a noite. Um dos cães dormiu junto da enxerga de Nessa, o nariz pousado nas patas. O outro estava no dólmen, enroscado junto do guerreiro adormecido. Era evidente que tinham uma espécie de vigília montada.Naquela noite, Nessa sonhou com crianças, dois rapazes trepando a uma grande árvore, mais alta do que qualquer das árvores que cresciam nas ilhas, uma árvore que só podia existir em histórias, ou em visões. Ela achou que os rapazes eram irmãos, se bem que um tivesse cabelos escuros como a noite e o outro claros como o dia. Subiram até ao alto, um ajudando o outro, esticando os braços, escolhendo o melhor lugar para se equilibrarem, ajudando-se mutuamente com palavras de encorajamento. Chegaram ao topo. Havia lá uma pequena plataforma e por um momento ficaram ambos lá empoleirados lado-a-lado como um par de mochos, olhando para uma extensão de terra fértil e belos canais. Então, o rapaz de cabelos escuros empurrou o outro pelas costas e o rapaz de cabelos claros ficou subitamente pendurado, agarrando-se precariamente com uma mão, os dedos fincados num ramo delgado que se dobrava e estalava sob o seu peso. Rápido, rápido, o outro tinha de agarrá-lo e puxá-lo para cima; era tão alto que uma queda era morte certa. E agora era a própria Nessa que estava pendurada, os seus dedos escorregavam e ela gritava, Socorro! Ajudem! O rapaz de cabelos escuros inclinou-se, estendeu um braço, ele ia salvá-la e então, oh... então ela viu a pequena faca na sua mão, sentiu o corte no braço, olhou para cima, para um par de olhos escuros e sombrios e para um rosto desprovido de qualquer sentimento humano, salvo alguma curiosidade. Oh, coitadinha, disse o rapaz, os seus dedos escorregaram e ela começou a cair, a cair...Nessa acordou abruptamente. Um sonho: um sonho terrível, mais nada. O seu coração batia a toda a velocidade e tinha a pele toda transpirada. No canto mais afastado da cabana, Rona ressonava gentilmente por baixo dos cobertores. O cão estava acordado, as orelhas esticadas, de olhos em Nessa enquanto a jovem punha um xaile por cima da camisa de noite. Chegara a hora. Não importava se se estava a meio da noite e se havia uma tempestade lá fora. O sonho fora um sinal. Tremendo, Nessa pegou na sua capa e acendeu uma lanterna nas brasas da lareira.Quando pôs os pés no exterior da cabana, a lanterna apagou-se. Estava demasiado escuro para ver o caminho; ela agarrou-se ao longo pêlo do cão e deixou que ele a guiasse. Quando chegou à torre subterrânea e entrou aos trambolhões pela passagem, tinha os cabelos todos emaranhados em frente dos olhos e a capa caía-lhe dos ombros. Não estava completamente escuro dentro do dolmen; a pequena lâmpada de óleo que colocara no recanto quando saíra ainda ardia, porque aquele lugar guardado pela terra era mais abrigado do que a cabana. Não permanecera seguro desde o tempo dos primeiros antepassados? O guerreiro escolhera o seu esconderijo sabiamente.Ela sabia que estaria acordado. O jovem estava sentado e tinha bebido alguma da água que ela ali deixara; segurava a taça na mão. À luz da lâmpada, as suas feições fortes pareciam mais as de um fantasma, pálidas e sombrias.Nessa praticara vezes sem conta as palavras que diria. A jovem acendeu a lanterna na lâmpada e olhou para ele durante um momento. As palavras, quando saíram, não eram as que preparara.Tive um... um pesadelo. Fiquei assustada. Pensei que talvez estivesses acordado.O homem olhou para ela com os seus brilhantes olhos azuis. Devia pensar que ela era maluca; tinha de organizar os pensamentos e tentar parecer que estava no seu perfeito juízo.Não bebas demasiado a princípio continuou ela. Estiveste muito tempo... qual era a palavra para inconsciência, esquecera-a ... a dormir sem saber; é mau beber muita água muito depressa.O homem continuava a tremer.Pesadelo disse ele e estendeu o braço na direcção dela. Parecia não ter outra hipótese senão agarrar a mão estendida e sentar-se a seu lado. Ela não sabia se ele se estava a referir a si próprio ou a ela.Sim, um pesadelo muito mau concordou ela, perguntando a si própria porque não conseguia dizer nada mais prático, algo mais sensível. Fiquei assustada. Estava quase a cair, ele cortou-me e eu caí.O homem acenou com a cabeça. A sua mão continuava em redor da dela, uma mão muito grande, de acordo com os braços que tinham manejado aquele machado de guerra. Parecia que ele não ia dizer mais nada.
Eyvi? tentou Nessa um pouco depois. É esse o teu nome, não é? Esperava que o nome fosse aquele. Estás perdido?
Ele olhou de relance para ela e depois afastou o olhar. Nessa tentou de novo.
É esse o teu nome?
O homem fez uma espécie de aceno com a cabeça, como se não estivesse muito seguro de si mesmo.
O meu nome é Nessa. Tu estás em segurança, aqui. Eu tomo conta de ti. Pronto, finalmente conseguira dizer o que queria. Sentia-se muito estranha, sentada ali ao lado dele, permitindo que ele lhe segurasse na mão como se fosse ela que precisasse de conforto. Nunca permitira que um homem fizesse aquilo e não tencionava permitir. Os dois cães instalaram-se juntos nos cobertores aos pés do guerreiro. Ele não perguntara pelo machado.
O jovem encostou-se à parede de pedra e fechou os olhos. A sua pele parecia quase transparente, os ossos salientes. Há muito tempo que não comia nada: demasiado tempo.
Tens fome? tentou Nessa. Eu tenho pão, peixe; posso ir buscar. Tu estás muito fraco. Estiveste muitos dias sem comida.
Ele limitou-se a abanar a cabeça sem abrir os olhos; talvez o esforço para falar fosse demasiado.
De manhã, então disse ela. Tens de comer. Tens de te pôr bom.
Ele abanou de novo a cabeça, como se compreendesse mal. Ela tinha a certeza que as palavras eram aquelas.
Queres ir para casa? perguntou ela. Comer, descansar e ir depois para casa?
Não murmurou ele, abrindo subitamente os olhos. Não! O tremor começou de novo, tão violento que ele largou-lhe a mão e colocou os braços em redor de si mesmo, como que fazendo um grande esforço para ficar imóvel. Desculpa disse ele através dos dentes a bater, e então bocejou convulsivamente.
Deves tentar dormir disse Nessa, indicando que ele devia deitar-se. Está frio, eu sei. Amanhã podemos fazer aqui uma pequena fogueira. Toma, embrulha-te neste cobertor, isso e...
A pele de lobo disse ele subitamente. Onde está a minha pele de lobo?Ela não conhecia a palavra lobo, mas compreendeu.Salva disse-lhe enquanto ele se deitava uma vez mais, as pálpebras já fechadas. Estava molhada; estou a secá-la. Amanhã dou-ta. É uma bela pele. Deve ter sido um belo animal, um grande caçador de qualquer espécie.Em tempos, talvez disse ele. - Mas já não. Já não consegue ouvir.Ouvir? Ouvir o quê?O chamamento. O chamamento de Thor.Lamento disse ela, não compreendendo o que ele queria dizer. Talvez eu possa ajudar. Mas, primeiro, dorme.Frio disse ele sentando-se de novo e agarrando na mão dela como se tentasse puxar o cobertor para cima do corpo. Frio. Perdido. Sonhei, só que era real. O que é que tu sonhaste?Eu... Nessa hesitou. O pesadelo continuava na sua mente, não muito longe; não o ajudaria ouvi-lo. Eu não...Conta. Talvez, no fim de contas, ele não estivesse tão fraco, porque a obrigou a sentar-se ao pé dele, suficientemente perto para partilhar o calor do cobertor, suficientemente perto para sentir o tremor do corpo dele contra o seu: demasiado perto. Conta murmurou ele.Eu... eu estava a trepar por uma árvore acima, os rapazes estavam a trepar pela árvore acima, ajudando-se um ao outro. Era excitante, a árvore era enorme, tão alta, tão alta, a árvore mais alta do mundo. Quando eles chegaram ao topo, pareciam dois reis. Podiam ver uma extensão enorme de terreno, aldeias, herdades, vacas, pequenos pontos nos campos verdes. E então... e então...O braço dele esticou-se e rodeou-lhe os ombros; curiosamente, aquilo não a alarmou. Sentiu-se segura.Continua disse ele.Então, o rapaz empurrou-o... empurrou-me... e eu caí, não me consegui segurar. Ele era meu amigo, mas cortou-me com a faca e eu caí. Mas ele era meu amigo.Por que razão dissera aquilo de maneira tão abrupta? O homem era um perfeito estranho, um inimigo. Mas ali, na escuridão daquele pequeno espaço, havia um estranho sentido de justeza. As regras habituais não se aplicavam naquela noite.
Nessa disse o jovem, tentando pronunciar o seu nome. Nessa, por que é que sonhaste o meu sonho?Aquilo chocou-a.Não sei disse ela. Foi o mesmo sonho?Um dos muitos. O tremor, subitamente, tornou-se mais violento, um enorme tremor que lhe agitou o corpo todo. Talvez ele tivesse uma sezão, ou uma doença nova qualquer que ela desconhecia. Frio disse ele de novo. Desculpa. Eles vêm, os sonhos, vêm vezes sem conta. E não se vão embora. Deixam-me a tremer como um... como um estúpido, um fraco...São os antepassados que estão a falar contigo disse-lhe Nessa. Quando tens um sonho e não consegues esquecê-lo, mesmo que seja um pesadelo, é porque eles estão a tentar dizer-te qualquer coisa. Cabe-te a ti fazeres com que tenham sentido, descobrir o que significam.Antepassados? Os dentes dele batiam, uma música feita por ossos, uma música de morte. Que antepassados?Podes chamar-lhes deuses, ou espíritos. O cobertor escorregou, desalojado pelo tiritar involuntário. Nessa cobriu ambos de novo com ele. Ficaram uns momentos em silêncio, o tremor abrandou lentamente e ela pôde sentir o calor que imanava dele.Se eles são deuses a sua voz subiu de tom lentamente, como se ele estivesse a fazer um grande esforço, quem és tu? Não és uma deusa, ou um espírito? Não fazes parte de outro sonho, um sonho bom, desta vez?Aquilo explicava muita coisa, pensou Nessa retorcidamente.Não, Eyvi disse ela Eu sou uma... uma mulher sábia, uma sacerdotisa. Tu vieste parar a um lugar proibido, um lugar onde os homens não podem entrar, nem sequer os da nossa raça.Eu vi-te disse ele. Junto ao mar. Pensei que não fosses real. Se calhar, isto também não é real. Nada disto, nenhum dos sonhos, nenhuma das recordações, talvez eu acorde e Thor regresse, como se nunca me tivesse abandonado e... O guerreiro começara de novo a tremer apesar do calor, um tiritar terrível que talvez não fosse de frio, antes de medo. Ela recordava-se do ar dele na primeira vez que o vira na passagem entre a terra e o mar, uma ilha tranquila entre as outras. Aquela figura alta e imóvel não parecia a de um homem que se assustasse com facilidade.
É real, Eyvi disse-lhe ela. Talvez seja mau para ti, não sei. Eu não sei o que te aconteceu. Mas tu estás acordado, eu também estou e amanhã ainda estaremos os dois aqui. E porque eu sou uma mulher real, não posso ficar aqui contigo esta noite. Tenho outro sítio para dormir e devo ir para lá. Amanhã de manhã trago-te comida e acendo uma fogueira para te aqueceres.Não. Por favor. As suas palavras soaram extremamente baixas; o seu braço apertou-se em redor dos ombros dela. Frio. E tinha razão, estava escuro e ventoso no exterior e o calor do seu corpo era agradável, como se fosse capaz de afastar pensamentos indesejados até ao dia seguinte. Os cães dormiam, um conjunto de membros, caudas, focinhos peludos e respirações como suspiros.Só mais um bocadinho, então.O teu nome é como o mar, como uma pequena onda a bater nos seixos, ou como um suspiro disse o jovem. Nessa. Nunca ouvi um nome assim antes.Ela ouviu aquilo como se fosse um suspiro suave, que desapareceu logo a seguir, de modo que decidiu que tinha imaginado, porque certamente um guerreiro com um grande machado não diria uma coisa daquelas. Ela achava que era a única pessoa no mundo que pensava nos nomes daquele modo, como se pudessem dizer algo acerca dos seus donos. Ela esperou até que a respiração acalmasse, a tiritação parasse e achou que ele tinha adormecido. Dentro de instantes deslizaria para fora do braço dele, sairia dali e regressaria à cabana escura de Rona. Dentro de alguns instantes...Os velhos precisam de dormir pouco. Ainda bem para Nessa, porque acordou muito cedo, antes de a anciã começar a mexer-se. A jovem jazia numa confusão de cobertores e cães, o guerreiro estava estendido por trás com o braço confortavelmente em redor dela como se tivesse todo o direito de o fazer e ela sentia a sua respiração no pescoço. Era completamente inapropriado. Não acreditava que fora tão tola ao ponto de adormecer ali. Imagine-se se Rona tivesse aparecido ali. Quanto à agradável sensação de acordar assim, abrigada sob o braço dele e aquecida pelo seu corpo, nem sequer devia atrever-se a pensar nela. Nessa deslizou cuidadosamente de sob o braço dele e saiu para a manhã escura. A cadela não se agitou, mantendo-se antes encostada ao companheiro num sono abençoado.
Quando Rona se levantou, gemendo, da cama, já Nessa tinha acendido o lume e já uns bolos torravam na frigideira. Deitou umas folhas secas numa taça, acrescentou-lhe uma colher de mel, encheu-a de água quente e colocou-a ao lado da anciã.Mmmm gemeu Rona, descontraindo os músculos. Talvez não seja assim tão mau ter companhia, no fim de contas. Grande pequeno-almoço. Tens fome?Ele acordou disse Nessa.O quê?Acordou durante a noite. Alguma desta comida é para ele. Parece... confuso. E talvez assustado. Pensava que eu era um espírito.O olhar de Rona era penetrante.Ah sim? Quando é que isso tudo aconteceu?Durante a noite. Deixei-o a dormir. Os cães estão lá.Ah sim disse Rona, o que podia não querer dizer nada e a anciã olhou através de uns olhos semicerrados enquanto Nessa levava consigo um tabuleiro com comida e um jarro de chá.Nessa perguntara a si própria o que diria o jovem e qual seria a sua resposta. Era um pouco estranho. De facto, ele não dizia grande coisa, pelo menos para já. Estava sentado, encostado à parede e os cobertores estavam de lado apesar do frio. Quando ela entrou, ele pestanejou, como se regressasse a si vindo de muito longe. Nessa pousou o tabuleiro junto dele, foi buscar a taça e encheu-a com a bebida do jarro.Deves ter fome disse ela, partindo o bolo com as mãos e oferecendo-lhe um pedaço. Cheirava bem, estava quente e sabia a salsa e cogumelos secos. O jovem abanou a cabeça; fechou os olhos.Devias comer, Eyvi disse Nessa sentando-se no chão, mas não demasiado perto. Os cães farejaram, os narizes torcendo-se ansiosamente. Está bom. Fui eu que fiz.Ouviu-se um ruído vindo do exterior, o ranger da porta da cabana provocado por Rona a caminho da privada. Os olhos do jovem abriram-se. Fez uma tentativa para se pôr de pé; as pernas cederam e ele caiu no chão murmurando qualquer coisa em voz baixa.Estás muito fraco para te manteres de pé comentou Nessa. Estás a ver? E agora come o teu pequeno-almoço.Quem anda ali? sibilou ele. Quem é que está lá fora? Quem é que sabe que eu estou aqui?
Ninguém disse Nessa, alarmada com o olhar dele, mais parecido com a expressão confusa de um animal selvagem encurralado. Apenas a minha amiga, uma anciã, uma sacerdotisa como eu. Não é nenhuma ameaça para ti. Já te disse, este lugar é proibido. Ninguém do meu povo sabe que estás aqui, salvo Rona e eu.Aquilo pareceu não responder à pergunta dele, porque recomeçou a tremer; Nessa podia ver como ele se agarrava ao cobertor, à parede de pedra, numa vã tentativa para parar o tremor que lhe percorria o corpo. Ela tentou adivinhar.Ninguém sabe. Nem sequer o teu próprio povo. Aqui estás em segurança. E agora faz o que eu te digo. Começa pelo chá, as ervas vão dar-te forças. Pega na taça. Muito bem. E agora bebe. Um bocadinho de cada vez. E agora a comida. Não muito, só um bocadinho e mastiga como deve ser. Espero não ter de te alimentar como um bebé.A mão dele tremia tanto que o chá entornou-se. Ele conseguiu beber um gole, ao mesmo tempo que fazia uma careta. Pegou com a outra mão num pedaço de bolo. Já era alguma coisa. Aquilo podia tornar-se trabalhoso. Nessa também tinha fome, porque fora uma longa noite. Começou com o seu próprio pequeno-almoço, atirando um pedaço a cada um dos cães. O guerreiro observava-a por cima da taça, os olhos azuis desconfiados.Não gostas dos meus cozinhados? tentou ela. É tudo o que terás enquanto aqui estiveres. É melhor aproveitares. Por que vieste aqui parar, Eyvi? De que vinhas a fugir?De nada grunhiu ele.Eu quero ajudar-te disse Nessa cautelosamente. Percebo muito bem que há algo errado.Por que me havias de ajudar? murmurou ele. Vocês são assassinos, destruidores de inocentes. Faltam às promessas.Nessa olhou para ele de olhos abertos.Que queres dizer? perguntou ela. Isso não é verdade.Primeiro Ulf. Ele fez a paz e vocês fizeram com que tivesse uma morte lenta. Eu sei; fui eu que o encontrei. E uma mulher foi queimada com os filhos só porque casou com um dos nossos. Hakon era um bom homem. Não merecia aquilo. Se vocês nos odeiam assim tanto, por que me abrigaste? Por que não me entregas ao Rei Engus?Nessa ficou espantada.
Como podes dizer isso? Aquela viúva, Ara, foi morta pela nossa gente? Nós nunca faríamos uma coisa dessas, é contra tudo aquilo em que acreditamos. Foi a tua gente que a matou. Um assassínio selvagem, cruel, como o do teu chefe de guerra, Ulf. Como te atreves a acusar-nos de tais actos? Achas-nos capazes de destruir as nossas próprias crianças, quando restam tão poucas?Seguiu-se um silêncio.Desculpa acrescentou ela, vendo as diferentes expressões nas feições distorcidas dele. Mas é verdade. O nosso povo não teve nada a ver com esse acto diabólico.Estás a dizer então, que foi a minha gente que provocou o incêndio? Não acredito.Não tenho razão para te mentir.A nossa gente não assassinaria um Pele-de-Lobo juntamente com a sua família. Eu vi os corpos deles. Ajudei a enterrá-los. Não pode ser. Havia algo no tom de voz que traía as suas palavras; ocorreu a Nessa que ele tentava negar a si próprio a verdade que já conhecia.Que palavra é essa, Pele-de-Lobo? perguntou-lhe ela. Não a compreendo.Um tipo especial de guerreiro; um homem como eu... era. Para passar o teste, temos de lutar com um lobo. Depois, usamos a pele dele. Thor chama-nos; nós respondemos. Hakon, o que morreu queimado, era um Pele-de-Lobo. Um amigo. Nenhum homem merece uma morte daquelas, é uma morte sem honra.Nessa franziu o sobrolho. Terminara o seu bolo; ele comera apenas uma pequena porção.Não é desonra nenhuma morrer a proteger a família disse ela. Pelo menos, foi o que ouvi. Foi terrível, mas, pelo menos, estavam juntos. Ele protegeu-os o melhor que pôde.O jovem pousou abruptamente a taça e meteu a cabeça entre as mãos. Os cães aproximaram-se em busca dos restos de comida.Lamento disse Nessa de novo.Um Pele-de-Lobo vive e morre no campo de batalha. A voz dele não passava de um murmúrio. Apenas obedece à vontade de Thor; é o seu único objectivo. Se morrer nessas condições, vai directamente para junto da mão direita do deus, uma recompensa sem igual durante a vida. Um Pele-de-Lobo ataca sempre, sejam quais forem as circunstâncias, armado apenas com a sua coragem; a sua força de vontade. Se não o fizer, deixa de ouvir a voz de Thor, fica... A voz do jovem extinguiu-se.Perdido? perguntou Nessa gentilmente e, quando não recebeu nenhuma resposta, levantou-se, começou a limpar as coisas e abriu a laje do tecto para poderem fazer uma fogueira, tentando dar-lhe um pouco mais de tempo. Não tinha a certeza de ter compreendido tudo o que ele dissera. Ele odiava a própria fraqueza, isso era evidente. O vazio dos seus olhos e a monotonia da sua voz provocavam arrepios na jovem. Se ele não tivesse estendido o braço para ela na noite anterior, ela teria pensado que ele tinha desistido. No entanto, um homem que quer morrer não procura abrigo. E os cães, sempre junto dele, guardando-o quase como... como uma família.Eu não sei o que é um lobo disse ela. É como um cão, só que maior?É um animal muito corajoso. Feroz, selvagem, leal aos seus. Um óptimo caçador. Um líder. O que eu matei era um chefe de guerra: Rei dos lobos.Mataste-o com o teu machado?Com as mãos.As tuas mãos? Nessa pensou naquela pele enorme pendurada na cabana de Rona, uma pele quase do tamanho de um pónei. A jovem ajoelhou-se junto dele e virou-lhe as palmas das mãos para cima, perguntando a si própria como era possível um homem, mesmo tão grande como ele, conseguir uma façanha daquelas. Quando é que fizeste isso?Ele abanou a cabeça.Há muito tempo, noutra terra. Quando era rapaz. Quando fiz quinze anos.Eras muito novo. Como pudeste matar um animal tão grande com as mãos?Não sei disse ele com firmeza.O que é isto? perguntou-lhe Nessa, os dedos tocando-lhe na cicatriz acima do pulso, uma longa Unha profundamente gravada no braço. Ela já a vira antes, quando lhe tinha mudado as roupas e tinha perguntado a si própria o que seria.As mãos dele transformaram-se em dois punhos.Não é nada cortou ele, tentando afastar-se dela.
É estranho disse Nessa. Quando toco nisto, vejo... A jovem calou-se. Diante dos olhos tinha o sonho da noite anterior, a escalada, a vista, o corte, a queda. Estremeceu.
O que é que se passa? A voz dele mudou completamente. O que é que se passa? A sua grande mão tapou a dela e desta vez foi a jovem que afastou os dedos, recuando ao mesmo tempo e abrindo um espaço entre os dois.
Nada. Só... só estava a pensar. Desculpa, não tenho nada com isso.
Por que é que fazes tantas perguntas? Que queres que eu faça?
Já te disse, quero ajudar-te. Ajudar-te a recobrar forças para depois... para depois poderes ir para onde quiseres.
Não vais querer fazer isso quando eu te disser... quando eu te disser... A voz do jovem começou a tremer.
Devias descansar, agora disse Nessa. Deita-te. Isso.
É demasiado murmurou ele. Tu não passas de uma rapariga... mas eu não posso, nem sequer posso levantar-me, já não presto para nada...
Se isso te preocupa, a solução é simples. Come o que te dou, descansa quando te digo, e põe-te bom depressa para que possas tomar conta de ti próprio. Nem um... nem um Pele-de-Lobo pode passar tantos dias sem comer e beber. Deita-te um bocado. Conheces o irmão Tadhg? O homem santo?
Ele acenou debilmente com a cabeça.
Uma vez, Tadhg disse uma coisa. Disse que, por mais que tenhamos feito, por mais terrível que tenha sido, desde que nos arrependamos sinceramente, podemos ser perdoados. O que quer dizer que podes continuar, não importa os erros que cometeste. O deus dele é um deus de amor; Ele ama todas as criaturas, seja qual for o seu passado.
Tu és cristã, então? perguntou-lhe ele. É por isso que cuidas de um homem cujo machado tem ainda o sangue de gente do teu povo?
Nessa estremeceu.
Não, eu sou de uma fé muito mais antiga, uma fé mais sombria. Para mim, não é assim tão fácil perdoar e os antepassados não esquecem. A sombra do mal introduz os seus dedos em todos os buracos da terra e escurece as águas. Sussurra nas folhas das árvores; o vento geme canções de dor. Não consigo pôr as coisas de lado, como se nunca tivessem acontecido.
Nesse caso, por que me manténs aqui?Porque acredito que devo fazê-lo. Soube-o mal te vi a primeira vez. Pelos sinais.Sinais? Que sinais?Shhh. Tens de descansar.Ficas aqui comigo?Só até adormeceres. E só se prometeres comer, mais tarde. Promete.Mas o jovem foi acometido, de novo, por tremores e não pôde responder-lhe. O seu sono, quando finalmente adormeceu, era incerto, breves fragmentos de sono interrompidos por bruscos despertares, o rosto pálido, como se o que vira em sonhos fosse demasiado terrível para durar mais tempo. Mais tarde, o guerreiro tentou comer o que ela lhe preparara, mas não conseguiu aguentar no estômago os poucos pedaços que meteu na boca. Depois de vomitar para dentro da tigela que ela segurava, desviou o rosto.Desculpa disse ele. Parece-me que não vale a pena.Estás a dizer que não devo fazer isto? perguntou Nessa, zangada, surpreendida subitamente por sentimentos que não conseguia explicar: frustração, medo e algo muito perigoso, como o que sentira, por um momento, quando acordara naquela manhã nos braços dele. Estás a dizer que devemos simplesmente... desistir?Tu não me conheces murmurou ele. Em tempos fui um homem, um guerreiro. Agora não sou nada, não mereço os teus esforços, não mereço os teus cuidados. Thor abandonou-me. Dei-lhe um desgosto. Dei um desgosto a mim próprio. Por que te havias de preocupar comigo?Podias contar-me tudo, se quisesses disse Nessa. Então, já eu saberia o que fazer.Ficarias angustiada, assustada.Eu sou uma sacerdotisa recordou-o ela. Não me assusto com facilidade. Podes contar-me amanhã. Ou no dia seguinte. Estamos ambos num caminho novo; talvez possamos começar a caminhar por ele lentamente até ganharmos confiança.Na verdade, o progresso era lento. Ele mordiscava a comida que ela lhe dava, comendo apenas o suficiente para se manter vivo. Bebia os chás que ela lhe fazia. Falava cada vez menos à medida que os dias passavam, respondendo só quando ela lhe fazia uma pergunta directa e com poucas palavras. Desconfiava de Rona, um sentimento que a anciã retribuía.
Como o seu sono era irregular e muito visitado por terrores nocturnos, as duas mulheres tentaram ficar com ele por turnos e manter a pequena fogueira acesa, já que o jovem parecia sentir muito frio.
O frio está dentro deleobservou Rona. O espírito está gelado; não admira que não cesse de tremer apesar do fogo, dos cães e da bela capa que devia estar por cima dos teus ombros, não dos dele. Ele padece de uma maldição qualquer, uma espécie de trevas. Nunca há-de aquecer enquanto não se libertar dela. Não gosto disto e não gosto dele, filha. Se não tens cuidado, ele tira-te tudo e ficarás sem nada para dar.
Nessa abanou apenas a cabeça. Talvez aquele jovem guerreiro parecesse fraco e sem esperança, um destroço humano incapaz de se ajudar a si próprio. Mas ela vira-o antes. Vira e reconhecera o tipo de homem que era. Os antepassados sabiam quem ele era. Os cães guardavam-no. Era apenas uma questão de tempo e de dar um passo de cada vez.
Por vezes, falava sozinho.
Malditas ilhas ouviu-o Nessa murmurar um dia enquanto o observava a fingir que comia a sopa que lhe tinha preparado. Os cães estavam cada vez mais gordos, lustrosos e felizes, mas ele era a sombra de um guerreiro. Lugar maldito. É só morte, morte e mais morte.
Nessa atirou com um pouco mais de turfa para a fogueira. No exterior, o vento varria a terra, levantando a areia e fazendo dela uma cortina, atirando com a espuma das ondas para as dunas, fazendo com que estivesse tudo encharcado e húmido. Rona mantinha-se dentro da cabana. Nessa sabia que as articulações da anciã lhe doíam mais naqueles dias, se bem que ela nunca se queixasse.
Odeio isto murmurou o jovem, desistindo e colocando a tigela no chão, onde a cadela a esvaziou. Odeio este lugar. Estas ilhas enchem-me os ossos de frio e fazem entrar o Inverno no meu coração.
Nessa olhou para ele.
Oh não disse ela suavemente. Tu vês tudo através da tua dor e por isso não vês como deve ser. As Ilhas Brilhantes são um lugar maravilhoso, Eyvi. Só tens de abrir os olhos. E tu podes fazê-lo, já te vi fazê-lo. Já te vi a olhar para o mar e para o céu. Foi assim que eu soube... Não sabia como terminar aquilo.
Soubeste o quê?Que soube que tens um papel a desempenhar aqui. Que soube que, de certo modo, pertences a estas ilhas. Se não fosse assim, teria cedido ao pedido de Rona e ter-te-ia entregue ao Rei Engus. Acredita-me, eu não estou habituada a esconder guerreiros inimigos neste lugar sagrado para os rictos das mulheres. Fi-lo porque sei que há algo em ti que tu próprio esqueceste, ou que ainda não reconheceste.Dizes que pertenço a estas ilhas. Ele não olhava para ela, mas ela podia ver a sombra da descrença nos seus olhos. Mas não é verdade. Este lugar destruiu-me.Queres ir para casa, nesse caso? Queres atravessar de novo o oceano? Isso faria com que tudo se compusesse?Ele ficou silencioso por uns momentos; parecia que o esforço para manter a conversação o esgotara.Quando o lobo está demasiado fraco para caçar, quando não pode comandar ou seguir a alcateia, é o seu fim disse ele, por fim. Eu não pertenço a lugar nenhum.Podias ficar forte de novo tentou Nessa. Se comesses. Este cão chegou aqui tão fraco como tu, mas olha para ele agora. Está bom. Já lhe viste os olhos brilhantes? Podias ajudar-te a ti próprio, Eyvi.Ficar mais forte com que propósito? Não há propósito nenhum. Ficar mais forte para enfrentar o meu inimigo e ouvir apenas o silêncio de Thor? Ficar bom e descobrir que não posso continuar a fazer aquilo para que me preparei durante toda a minha vida? Não devia ter vindo para aqui. Devia ter tido a coragem de pôr fim a tudo. Thor não queria que eu viesse para estas ilhas; castigou-me com a vergonha para a vida toda.Nessa odiava aquele tom neutro, sem esperança, da sua voz.Estás a deixar-me zangada, Eyvi disse ela asperamente. Ele olhou para ela.- Zangada? Porquê?Porque é um desperdício. Ao contrário do lobo, um homem pode escolher outro caminho. Ao contrário de um animal selvagem, um homem pode ouvir outros chamamentos, pode escolher o seu futuro. Eu também desejo que o Inverno acabe. O tempo das trevas prolonga-se muito; cobre cada espírito com uma sombra, mesmo o mais alegre e inocente. Mas precisamos dele. Precisamos de descansar, reflectir e tornar-nos receptivos aos mistérios. O despertar não pode existir sem o sono.
Ele parecia estar a ouvir; os seus olhos estavam fixos no rosto dela. Mas não disse nada.
Se fosse Primavera, levava-te para as montanhas a sul da baía disse Nessa, imaginando a cena enquanto falava. Existe lá uma pequena reentrância, uma taça verdejante mesmo por baixo do topo da montanha, onde podes sentar-te e olhar para longe, para o mar, para tão longe que até parece que estás no fim do mundo. O Sol aquece esse lugar pequeno e seguro; ali estás na palma da mão de uma terra mais antiga do que as mais antigas histórias dos primeiros antepassados. No entanto, ficar ali sentado é como estar equilibrado na berma de algo novo: um começo novo, límpido e forte, como o vento que vem do mar. Há lá tantas aves, Eyvi, de todas as espécies, circulando e deslizando, saindo e regressando com peixe para os filhotes nas saliências. É uma dança sem fim de vento e penas, de equilíbrio e luz. Os seus gritos são música, uma canção selvagem que soa acima do rugido interminável do mar, nascida do sopro do vento. Se estivesses bom e se fosse Primavera, levava-te lá. Para te sentares tranquilamente, para te deixares envolver e conheceres a maravilha daquele lugar.
Ele ficou silencioso; os seus dedos moveram-se, afagando o pêlo cinzento do cão por trás das orelhas. Os seus olhos não tinham qualquer expressão.
Os dias de Verão são maiores nas Ilhas Brilhantes continuou ela. A melhor hora é de manhã cedo, quando o mar está de mil cores: pérola, cinzento, prateado, verde, azul-claro. A essa hora é fácil ouvir as vozes dos antepassados murmurando palavras de paz, palavras de amor. Costumo passear lentamente pela praia a essa hora porque há muitos tesouros por descobrir: tantas maravilhas para ver. Cada pequena pedra é diferente da outra, com a sua própria forma e cor; e todas são belas e misteriosas. Algumas têm desenhos, linhas meio apagadas, que lembram uma escrita antiga, perdida na memória. Por vezes, sento-me, pego numa e tento perceber se a mensagem flui através de mim, tornando-me mais conhecedora das coisas da terra. As algas lavam e adornam essas pedras com uma capa muito leve; a areia agarra-se a elas e forma pequenas montanhas e vales em redor das suas curvas. Há lá tanta coisa para descobrir: limos emaranhados como num quebra-cabeças, conchas delicadas, fechadas, caranguejos minúsculos parecidos com jóias brilhantes, plantas rasteiras, tímidas, aves pernaltas cujas patas traçam a sua própria escrita na areia. Tanto para ver, se os nossos olhos estiverem abertos. Quando o Sol se põe, na Primavera, a areia molhada brilha como o fogo, e o céu fica incandescente com um conjunto encantado de cores. Estas coisas fazem parte de nós, Eyvi; fazem parte da nossa vida, e nós da delas. É por causa disso que não devemos perder a esperança, mesmo em tempos terríveis de trevas. E por isso que eu gostava que as coisas fossem diferentes, para que eu pudesse ir lá contigo, para te mostrar.Numa vida como a minha não há lugar para essas coisas disse ele. A cadela tinha-lhe pousado a cabeça no colo e a mão dele continuava a afagar-lhe gentilmente o pêlo. É um mundo diferente.Não, Eyvi disse Nessa. O mundo é o mesmo. Tu é que és diferente. Não és fraco, não és inútil, não estás perdido: mudado, apenas. Talvez não quisesses vir para estas ilhas, mas vieste, e as ilhas mudaram-te. Reclamaram-te. Não as amaldiçoes por isso. Os antepassados precisam de ti. Querem que fiques. Penso que só precisamos de descobrir porquê.Eu não faço parte disso disse ele num sussurro. Nessa não respondeu. Para ela, os sinais tinham sido evidentes de que ele tinha de ficar, mas a jovem não lhos podia mostrar; era proibido. Como poderia mostrar-lhe? Ele não tinha forças para sair daquele esconderijo e um guerreiro não vê com os olhos do espírito. Como conseguir comunicar com ele?Já começaste a fazer parte disse ela. Talvez precisemos apenas de esperar para percebermos o que devemos fazer.Os dias, muitos, passaram-se. Ele continuava muito fraco, incapaz de andar e os tremores continuavam a atormentá-lo apesar dos seus furiosos esforços para os controlar. Não falava muito, limitando-se apenas a observar Nessa enquanto ela desempenhava as suas tarefas. O silêncio entre ambos não era desconfortável; se ambos tinham os mesmos sonhos, pensou Nessa, isso era uma espécie de entendimento que dispensava palavras. De qualquer modo, abençoava aquelas sessões práticas com Tadhg, porque tinha de tentar atravessar a barreira que o jovem tinha erguido à sua volta tão ferozmente. O homem do Ulster ensinara-a bem, a linguagem fluía cada vez mais livremente, as palavras saíam-lhe com rapidez, quando ela precisava delas.
Eu sei o que é estar triste, sentir que tudo está contra mim disse-lhe ela enquanto reacendia a fogueira, uma manhã. Houve uma época, não há muito tempo, em que eu me senti assim. E também estava zangada. Mas bastou-me sentar-me quieta e abrir os meus olhos para o mundo à minha volta para que o meu caminho se me tornasse claro de novo. Lamento que não estejamos na Primavera, Eyvi. Lamento que o que aconteceu entre o teu povo e o meu signifique que não te posso levar aos lugares de que te falei. Gostaria de te mostrar a teia da própria vida: as maravilhas que nos rodeiam, o padrão antigo de que fazemos parte. Se compreenderes isso, o mistério e a beleza disso, nunca ficarás desesperado, perdido. Precisas apenas de abrir os olhos e olhar, mais nada. Olha para além do machado e da espada.
O machado e a espada são o meu mundo disse ele. Para mim não há mais nada.
Não acredito. Nessa colocou uma pequena panela de água ao lume. Vejo mais do que isso em ti desde que te vi pela primeira vez.
Ele não disse nada, ficou apenas a olhar para ela. Apesar de ser fluente naquela língua estrangeira, a jovem perguntava a si mesma, por vezes, se ele a compreendia. Se ao menos conseguisse fazê-lo ver para além do chamamento da batalha. Levaria tempo; tinha de ser paciente, mais nada.
Chegou o dia em que o vento acalmou e ela perguntou a si própria se conseguira persuadi-lo a testar as pernas e sair para o exterior. Ele continuava muito fraco, mas ela sabia que ele odiava que outros cuidassem de todas as necessidades do seu corpo e se conseguisse, pelo menos, ir sozinho à privada apenas com uma pequena ajuda, talvez começasse a ter menos desprezo por si próprio. Rona tinha a fogueira acesa ao ar livre; era a primeira vez que isso era possível desde há muitos dias. Nessa espreguiçou-se, olhando para as nuvens pesadas e para a luz do Sol inclinada, baixa, tentando atravessá-las. Era estranho. Enquanto confinada à torre subterrânea, cuidando do seu guerreiro, quase se esquecera de que havia outro mundo lá fora. Talvez algumas das coisas que Rona dissera fossem verdadeiras.
Ouviu-se um chamamento vindo da praia.
Nessa! Nessa, aparece se estás aí!
A voz de Kinart. Kinart viera trazer-lhe comida, ou talvez uma mensagem. Teria de ir lá e falar com ele, explicar-lhe que tinha de ficar um pouco mais. Ainda bem que ele estava proibido de se aproximar e ainda bem que ela não conseguira convencer o norueguês a sair. Nessa caminhou ao longo das dunas e por cima das pedras em desordem até chegar à pequena praia de seixos. Dali, via-se perfeitamente Dorso de Baleia a norte, as ondas quebrando-se e formando um lençol branco envolvendo as falésias voltadas para o mar. A praia estava cheia de algas, espessos troncos castanhos, delicada folhagem verde e uma confusão de conchas partidas. O primo dela estava à espera de lança em punho. Não parecia ter trazido provisões.Podes parar de gritar, Kinart, estou aqui. O que é?Levaste tempo. Tens de vir para casa, Nessa. A tua mãe piorou. O pai precisa lá de ti. E está preocupado, tem havido mais sarilhos nas fronteiras. Não é seguro continuares aqui sozinha.Nessa engoliu em seco. Ir para casa? Ainda não, ainda era muito cedo. Mas a mãe doente: A mãe a morrer, talvez. Como não ir?Eu... eu tenho um ritual para celebrar. É importante. Tenho de ficar aqui mais alguns dias, pelo menos. Diz ao tio Engus que vou para casa dentro... dentro... digamos, de quatro ou cinco dias! Se as marés forem boas. O que é que aconteceu à mãe?As sobrancelhas escuras de Kinart franziram-se.Ela está mal disse ele asperamente. Vagueia, angustiada. Passa a vida a perguntar onde estás. Nós dizemos-lhe, mas depois ela não se lembra. Diz que perdeu as filhas todas e chora. As mulheres já não podem mais. Devias regressar comigo hoje, Nessa. O pai disse-me para te levar.Três dias disse ela, imaginando a mãe só, numa espécie de loucura, pensando que perdera também a filha mais nova. Diz à mãe que volto dentro de três dias. Depois disso só visitarei Rona com a maré baixa, como antes. Mas hoje não posso ir.Tens de ir. Os maxilares de Kinart estavam cerrados; cada vez que o via parecia mais homem, mais guerreiro. Isto aqui já não é seguro. E também não vais poder voltar. Só depois de o pai conseguir o tratado. O jovem cuspiu no solo juncado de seixos. Não que eu tenha muitas esperanças com aqueles selvagens. Eles preferem pilhar e chacinar a fazer acordos. Homens como eles não nos respeitam, Nessa. Para eles, não passas de uma rapariga para eles violarem. Tens de vir para Dorso de Baleia e ficar lá, onde te podemos proteger.E Rona? A voz de Nessa fraquejou com uma súbita raiva. Deixo-a aqui a celebrar os mistérios sozinha? Uma velha?
Ela também pode ir, suponho disse Kinart. Pelo menos, teve a graça de ficar um pouco embaraçado.Foi o tio Engus que te disse para dizeres isso tudo? perguntou ela cruzando os braços. Ou foi só ideia tua? O tio Engus sabe que nós devemos guardar este lugar. Ele sabe que devemos honrar os antepassados. E agora, ouve. Eu disse que iria para casa dentro de três dias. Podes voltar cá para me buscares, se quiseres, se achas que não sou capaz de ir sozinha, se bem que eu faça este caminho quase todos os dias desde há dez anos. Mas pronto. Diz à mãe que volto daqui a três dias. Diz-lhe que a amo e que volto. Mas não abandono este lugar e o que ele representa. Tenho de continuar a fazer o que faço em nome dos Folk. Sem os antepassados seremos derrotados, Kinart. As vossas lanças e flechas, a vossa raiva e a vossa coragem não serão suficientes se houver guerra total.Tu não passas de uma rapariga disse o primo, como ela sabia que ele diria. Não podemos pôr-te em risco. Aquela gente é capaz de tudo. Ontem à noite morreram mais dois homens, saíram de um barco vindos da Ilha Alta e caíram numa emboscada, foram cortados em bocados. Não há qualquer razão para uma coisa destas, a não ser provocar sarilhos. Escumalha, é o que eles são, uma completa escumalha. Não sei o que é que esse Somerled está a querer provar.Um arrepio percorreu o corpo de Nessa. Por um momento, a jovem sentiu-se noutro lado qualquer a jogar um jogo, um jogo com homenzinhos de pedra gravada, pretos e verdes; ela estendia a mão para mudar um pequeno guerreiro de um quadrado para outro e uma outra mão surgia varrendo tudo do tabuleiro, um exército inteiro varrido com um simples gesto. Ela olhou para cima e viu aquele rosto de novo, os olhos escuros, calmo, inteligente, sem qualquer sentimento. Não o ouviu falar mas soube todos os seus pensamentos. Não podes vencer se não souberes as regras. Deixa lá, velho amigo. Não precisas de dar cabo da cabeça por causa disto. Eu jogo pelos dois.O que é? perguntou Kinart olhando para ela. O que se passa?Nada. Nessa pestanejou e lá estavam outra vez o mar, a praia e as gaivotas debicando em tudo o que as ondas tinham trazido. O primo dela perscrutou-a de perto com uma expressão preocupada. Nada. Eu sei o que é que ele está a tentar provar. Aquele homem, Somerled, Senhor-dos-Cavalos. Está a tentar provar que é o melhor. O Rei.
Para cima, até ao topo da árvore. Está a tentar provar que ganha sempre. O tio Engus não o vencerá com um exército, a não ser que os senhores dos Caitt venham em grande número apoiá-lo, e por que razão fariam uma coisa dessas? Os próprios ilhéus é que hão-de vencer este chefe de guerra. Magia profunda: o conhecimento antigo. Não nos podemos dar ao luxo de negligenciar os rituais. Diz isso ao meu tio. E diz-lhe que regresso dentro de três dias.Mas...Diz-lhe, Kinart. E agora tenho de ir. Podias ter trazido algum peixe e um bocado de queijo. Rona não tem aqui muita coisa, só o que as pessoas lhe dão.Andas com fome, é? Talvez eu tenha aqui qualquer coisa. O jovem retrocedeu até um local mais atrás na praia e pegou num saco que tinha meio escondido. Toma. Eu tinha um pressentimento de que te recusarias a voltar. Trouxe-te algum peixe, que vai dar para ti e para Rona até eu regressar. Tem cuidado contigo, está bem? O jovem inclinou-se para lhe dar um beliscão na face, franzindo de novo o sobrolho.Adeus, Kinart. E obrigada. Até daqui a três dias.Três dias: tão pouco tempo. Nessa deu o peixe a Rona e contou-lhe.Que maravilha comentou a anciã secamente. Vou ficar aqui sozinha com o bebé grande, todinho para mim. Se eu quisesse ser ama-de-leite não teria escolhido o caminho do espírito. O homem não tem remédio, Nessa. Não tem garra nenhuma. Parece mais um homem morto.Mas Nessa sabia que a anciã estava errada. Tinha de estar errada. Os sinais não mentiam. Tudo o que ele tinha de fazer era recuperar as forças de novo.Achas que consegues descobrir o que o aflige? perguntou Rona. Imaginemos que consegues. Imaginemos que tens sucesso. Nesse caso, tudo o que terás conseguido será devolver àquela gente mais um guerreiro, como se eles não tivessem já os suficientes para passar o nosso povo a fio de espada. Não compreendo por que razão os sinais conduziram a isto. A mim, parece-me mais uma traição. O homem seria mais útil como refém. Por que não disseste nada a Kinart? Como é que eu vou fazer o que tenho a fazer e cuidar dele ao mesmo tempo?Enquanto ia dizendo aquilo, a mulher resmungava, uma faca afiada na mão, abrindo e escamando o peixe para assar nas brasas. As gaivotas apareceram, voando em círculos, gritando, prontas para descerem sobre os despojos. Os dois cães saíram, farejando esfomeados, as caudas abanando em uníssono. E sim, aquele som à entrada do dólmen era o sussurro dos pés descalços de um homem, o arrastar da capa de um homem ao arrastar-se pela passagem, o som áspero da respiração enquanto ele se erguia cuidadosamente para se manter de pé, oscilando, uma mão tacteando nas pedras em busca de apoio, a outra protegendo os olhos do Sol. O seu rosto estava branco como a cal.Não conseguiu resistir ao aroma dos meus cozinhados disse Rona com uma careta, atirando as entranhas do peixe aos cães. Nessa já estava ao lado do jovem, oferecendo-lhe o ombro para que ele se apoiasse, escutando cuidadosamente quaisquer sinais de aflição, mudanças de respiração, porque se ele entrasse em colapso ali fora não conseguiria levá-lo sozinha para o abrigo.Muito bem, Eyvi. Muito bem, muito bem mesmo. Vejamos se consegues caminhar até à fogueira; não precisas de abrir ainda os olhos, encosta-te a mim, que eu guio-te. Devagarinho. Bem, muito bem. Os passos dele eram arrastados, o seu peso no ombro dela quase a fazia cair, mas conseguiram chegar à fogueira. As pernas dele dobraram-se; o jovem sentou-se abruptamente, pestanejando, bocejando, tremendo apesar do sol de Inverno.É melhor dizeres-lhe. Rona olhou de relance para Nessa. É melhor dares-lhe a notícia de que não vai ficar com a sua gentil enfermeirazinha durante muito mais tempo. O homem vai ter que se habituar a esta velha coruja. E eu a ele, o que ainda é pior. Bem, pelo menos já anda, o que é uma bênção.Nessa abriu a boca e fechou-a de novo. Era difícil escolher as palavras.Digo-lhe mais tarde.O que é que estás a dizer? Os olhos dele estavam abertos; ela já se tinha esquecido de como eram azuis, da cor do céu azul no Verão, azuis como as primaveras. O que é que a velha está a dizer?Diz-lhe agora disse Rona asperamente. Ele já é crescido, não é nenhuma criança e está onde não devia.Eyvi. O tom de Nessa era hesitante. A jovem clareou a garganta. Eu tenho de ir para casa dentro de dias. Três dias. Sou precisa lá, a minha mãe está doente. Rona cuida de ti.Seguiu-se um silêncio.
Eu não vivo aqui o tempo todo acrescentou ela. Tenho ficado porque tu vieste aqui parar. Mas não posso ficar mais tempo. Rona está velha. Ela ajudará no que puder, mas tu também terás de ajudar.Onde? foi tudo o que ele disse.Onde o quê?Onde é a tua casa? Para onde vais?Para além. Ela apontou para norte. Não é longe. Venho ver-te sempre que puder. Depende da maré e... e de outras coisas.Rona estava a envolver o peixe em algas; colocou-o nas brasas. Ouviu-se um sibilar; o vapor subiu.Tu vives em Dorso de Baleia? Nessa acenou com a cabeça.O que é que ele está a dizer? perguntou Rona azedamente.Nada de especial. Eu já lhe disse.Diz-lhe que precisa de aprender a ir sozinho à privada e a lavar a louça que sujar. Será um bom começo.O que é que ela disse?Disse que olhará por ti disse-lhe Nessa. E que ainda bem que és forte, porque ela é velha e não pode fazer tudo.Ela não vai poder falar comigo como tu, nem eu com ela disse ele calmamente. Tenho de sair daqui, percebo muito bem. Sou um fardo, não sirvo para nada. Eu já consigo andar. Eu vou-me embora. O jovem cerrou os maxilares; ela percebeu que ele estava a tentar parar os tremores.Para onde é que queres ir? perguntou-lhe ela. Para junto dos teus amigos? Para casa, para as terras geladas?Não interessa. A sua voz era monótona; as suas mãos estavam apertadas uma contra a outra enquanto ele tentava parar de tremer. Não existe nenhum lugar para onde eu possa ir. Assim como estou. Mas vou sair daqui; não é seguro para ti nem para ela.Pois disse Nessa, olhando para ele de frente. No meio do Inverno, com as costelas a verem-se por causa da fome, a tremeres de frio e a cabeça cheia de visões sombrias, vais atravessar os campos em direcção a parte nenhuma. Esperas que eu concorde com isso?Estás... zangada comigo? perguntou ele, virando os olhos azuis directamente para ela. Eu não quero ofender-te. Seria mais rápido assim, acho eu. Mais fácil.
Nessa estremeceu.O que é que ele está a dizer? Rona estava a comer os restos dos bolos e a espetar uma pequena faca no peixe.Penso que me está a dizer polidamente que vai vaguear pelos montes, morrer e facilitar-te a vida.Estúpido! Rona virou-se para o jovem guerreiro, deixando sair uma torrente de palavras que ele não compreendia. - Como te atreves a atirar-lhe à cara toda a bondade que ela teve por ti? Fazes uma ideia do que ela fez por ti? Não vês as olheiras por baixo dos olhos dela, não vês como ela está cansada por andar a aturar-te? Que vergonha! A mim não me interessa o que se passa contigo, não me interessa se vives ou morres, mas ela sim, ela é como uma filha para mim e se tu a magoas, vais ter de responder por isso, meu querido. Nessa é o meu tesouro. E ela é uma sacerdotisa, a propósito. Não te esqueças. A anciã espetou com força a faca no peixe; os fluidos do animal morto chiaram ao caírem nas brasas.O guerreiro ficou de boca aberta.O que é que ela está a dizer?Está zangada contigo por desistires.Não, foi mais do que isso. Qualquer coisa acerca de ti. Tu e eu. Por que é que ela está zangada?Nessa sentiu-se corar.Ela estava a recordar-te que eu sou aluna dela, uma sacerdotisa como ela. Mencionou que eu estou um pouco cansada e sugeriu que tu faças o que eu digo, para que os meus esforços não sejam em vão. Ela não está mesmo zangada; ela é assim.Ele não replicou, mas ficou a olhar para o fogo durante alguns instantes. Rona foi buscar um tabuleiro à cabana com um jarro de cerveja e três taças.Quando é que regressas? perguntou ele após um longo silêncio. Quando?Assim que puder. Mas ainda temos três dias. Se o tempo se aguentar, talvez tentemos caminhar um pouco mais. Também podíamos conversar. Se quiseres.Mas ele não andava, não conseguia andar, pelo menos não muito. O constante tremor no corpo tornava qualquer movimento difícil. Conseguia ir até à privada, assim como até à fogueira, mas cada jornada parecia secar as forças que conseguia encontrar dentro de si.
Tentou comer, mas não conseguia meter na boca mais do que a porção de uma criança; as suas feições antes largas e cheias eram agora pele e osso, os olhos encovados nas órbitas. Nessa via como ele tentava parar os tremores agarrando na taça com força, cruzando os braços, encostando-se à parede com as mãos atrás das costas. O tempo passou e ela temia o momento em que teria de partir, porque lhe parecia impossível que aqueles dois conseguissem sem ela, que o jovem guerreiro se considerasse, acreditando ser um fardo, um homem condenado: que a anciã não tolerasse a sua fraqueza, a sua presença perturbando a paz e o carácter sagrado do seu domínio.Não sabe como ajudar-se a si próprio fungou Rona enquanto continuava com o que estava a fazer. Bem, não passa de um homem. Que outra coisa seria de esperar?Ele tem de começar a falar, pensou Nessa. Sem falar, não poderia ajudá-lo. Havia uma coisa qualquer acerca de Thor, um deus de que Tadhg lhe falara e outra coisa acerca da pele de lobo. O que é que ele dissera? Que Thor já não o chamava: que Thor estava desgostoso. Aquilo era a origem de tudo. Ela pedira-lhe que lhe falasse de Thor, mas ele não falara. Não interessa. Ele dissera aquilo várias vezes. Assim, ela tentara uma aproximação diferente. Tu não me terias ajudado se soubesses o que eu fiz. Muito bem, ele que lhe dissesse aquilo e veria se ela era da mesma opinião. Perguntou-lhe directamente: estivera ele em Ramsbeck? Fora isso o que ele quisera dizer quando falara do machado e do sangue? Mas ele não respondeu, limitando-se a fechar os olhos e a pôr-lhe de novo as mãos por cima. E quando ela pensou bem, aquelas duas coisas não jogavam. Se ele queria ouvir o chamamento de Thor, isso queria dizer que queria ser um guerreiro, entrar em batalhas, matar. Se ele tinha matado e a recordação disso o magoava tanto que nem sequer queria falar do assunto naquele lugar seguro a uma... a uma amiga, então... então, talvez fosse esse o problema. Ele pensava que era o que sempre quisera em toda a sua vida e subitamente tudo ficara confuso, o bem transformara-se em mal, não admirava que se sentisse perdido.E havia os sonhos. Ela conhecia alguns dos sonhos, mas havia mais; ele tinha-os diante dos olhos, mesmo quando estava acordado e o frio sol de Inverno brilhava. Nessa percebia isso pelo rosto dele, que aprendera a ler tão bem. Ele teria de falar daquelas coisas ou vaguearia por aquele lugar solitário para sempre. Se não começasse a falar antes de ela ir para casa, talvez fugisse daquele pequeno paraíso, como disse que faria, e acabasse por morrer sozinho, gelado e assustado, algures nos vales a leste de Dorso de Baleia, ou caindo de alguma falésia, levado pelas suas visões sombrias. Ele falara com ela naquela primeira noite, quando não sabia se ela era uma mulher ou um espírito. Tinham sido umas horas à parte, de certo modo fora do tempo normal. Seria essa a chave?Rona não ficaria nada contente. Felizmente, apesar de acordar cedo, tinha o sono pesado. Tinha uma noite, um dia e outra noite antes da chegada de Kinart; a maré baixa seria logo a seguir ao último pôr do Sol.O peixe fresco do primo de Nessa tinha acabado, por isso a jovem fez um caldo de aveia e beberam-no junto da fogueira. Ela tentou, futilmente, ensinar a cada um deles algumas palavras da língua de cada um. Rona ripostou que não queria ser incomodada com coisas daquelas; se os estrangeiros entravam nas terras dos outros povos, o mínimo que podiam fazer era aprender a falar como deve ser. O jovem olhou para Nessa e não disse nada. Ele fazia cada vez mais aquilo, o que a deixava perturbada.Deitaram-se, os cães no dolmen com o guerreiro, as duas mulheres na cabana. Nessa dera instruções a si própria no sentido de acordar quando estivesse mais escuro, o que aconteceu. Então, foi a capa, as botas, a lanterna e a pequena caminhada através da noite até à torre subterrânea. Seria bom que ele não compreendesse mal o seu propósito, ou aquilo tornar-se-ia muito difícil.A lâmpada estava acesa; ele estava sentado como da primeira vez, o cobertor por cima dos joelhos, de braços cruzados e os olhos abertos, mas, pensou ela, sem verem. Nessa não disse nada. A pequena fogueira continuava a arder por baixo da abertura no tecto; lá em cima, uma única estrela tremeluzia num pedaço de céu escuro. Ela instalou-se junto da fogueira, soprou as brasas, acrescentou-lhe uma mão-cheia de fetos secos e um pedaço ou dois de esterco de vaca seco. Esperou. Desta vez seria poupada com as perguntas.Regressaste disse ele, como se não a tivesse visto desde a primeira noite. Não pensei que viesses. Voltaste a sonhar?Nessa abanou a cabeça.Eu tenho sonhos continuou ele. São sempre os mesmos, mas misturam-se. Eu não sou muito inteligente. Não os consigo compreender.
Nessa voltou a acenar com a cabeça, mas não disse nada.Nessa, não sei o que fazer. Não sei para onde ir. Não no estado em que estou. O meu irmão está cá, eu confio nele. Mas não posso permitir que ele me veja assim, tão desamparado, tão inútil.Onde é que está o teu irmão? perguntou ela suavemente.No sul. Em Hafnarvagr, a guardar as ovelhas. Regressa a casa na Primavera.Ela procurou qualquer coisa nos olhos dele, qualquer coisa que lhe dissesse em que direcção seguir. Mas só via sombras que nada lhe revelavam.Tens mais família, ou é só esse irmão?Duas irmãs, dois irmãos. Eu sou o mais novo. O meu pai morreu numa batalha há muito tempo. A minha mãe ainda é viva. Está em casa.E onde é a tua casa?Num lugar chamado Hammarsby.É uma aldeia? Uma ilha?Uma herdade. Mas não é como aqui; há muitas, muitas árvores, árvores altas de diferentes espécies, e montanhas que fazem parecer anãs as da Ilha Alta. Às vezes é um sítio muito frio, mas não como aqui. As neves de Inverno obrigam as pessoas a ficar dentro de casa; os lagos ficam gelados. Passámos lá bons tempos. Mas...Mas?Aquilo não era o que nós queríamos, Eirik e eu. Nós queríamos ser homens de Thor, e somos. Éramos. Eu, agora, já não sou um guerreiro, como vês. Já nem sequer sirvo para camponês, como o meu irmão, Karl. Em tempos desprezei-o por ter escolhido aquela vida. Mas agora sou muito menos homem do que ele, incapaz de fazer qualquer trabalho árduo, de tratar do gado, de cortar madeira, de proteger uma família. Isto... isto ele estendeu uma mão, mostrando como ela tremia se isto não pára, não servirei para nada, Nessa. Por que é que isto não pára?Há-de parar disse ela firmemente. Tem de parar. Eu vejo mais longe do que isso, Eyvi. Vejo como és forte. Trata-se apenas de tentar descobrir como fazer com que isso pare. Eu acho que tu deves compreender que há vidas diferentes da que tu sempre desejaste para ti. Quero que me fales de Thor. Como é que um deus pode pedir coisas tão terríveis aos seus seguidores? Como é que ele pode pedir que te arrisques tanto por ele? Ele franziu o sobrolho.
É um desafio: um estandarte. O que é um homem sem coragem? Quando o deus chama, um Pele-de-Lobo ataca. O seu coração bate ao ritmo da canção de Thor, os seus olhos só vêem a neblina vermelha da fúria de Thor, o seu corpo só obedece à vontade de Thor. É como uma dança. É como uma oração. E a verdadeira manifestação da bravura. Não há nada que se lhe compare. Não há outro chamamento que se lhe compare. As nossas vidas são curtas, mas não pensamos nisso, porque as nossas mortes são gloriosas; Thor recompensa a nossa lealdade.Estou a ver disse Nessa após alguns momentos. Mas...Mas o quê?Talvez eu tenha compreendido mal. Esse deus é um deus essencialmente masculino e eu não sou homem. No entanto, não me parece que o que me contaste esteja certo.Ele não respondeu.Primeiro, esse homem chamado Hakon, aquele que morreu queimado pelo teu próprio povo. Tu disseste que ele era um Pele-de-Lobo como tu. Mas deixou de ser um guerreiro. Casou, teve um filho, tratava dos campos de Ara. Para ele abriu-se um novo caminho e ele escolheu-o de livre vontade.Com ele foi diferente. Hakon estava doente, estava a perder a audição. Não podia continuar.Depois, há o teu irmão. Eirik, não é esse o nome dele? Não está com os homens do teu chefe de guerra, não pega em armas contra o meu... contra o Rei Engus e está algures no sul à espera de regressar a casa. No entanto, também é um Pele-de-Lobo.Ele tem mulher e filhos em Hammarsby. Eirik surpreendeu-me. Mas talvez seja mais difícil continuar se um homem tem mulher e filhos.E tu, Eyvi? Já pensaste que, se Thor deixou de te chamar para a batalha, pode ser por uma razão qualquer?Não sei o que queres dizer. Que razão pode haver senão a minha fraqueza, que lhe provoca náuseas?O jovem assumiu um ar lúgubre; ela não gostou nada do aspecto dos olhos dele. Em vez de continuar, ela encheu uma pequena panela de água, colocou-a ao lume, foi buscar ervas secas ao recanto e meteu-as lá dentro. O machado continuava lá, esquecido. O jovem nunca perguntara por ele, nem pela sua bela espada. A água começou a ferver; ela verteu o chá para duas taças. A mistura era para provocar tranquilidade e clareza.Tive outro sonho disse ela. Um sonho acerca de um homem que era muito bom com jogos, um homem que era tão inteligente que fazia as suas próprias regras enquanto ia jogando, de tal modo que ninguém as compreendia. Um homem que tinha sempre de ser o primeiro; que tinha sempre de ganhar. Também tiveste este sonho?Ele inclinou a cabeça.Eu tentei jogar, mas não consegui continuou ela. E ele disse algo parecido com: "Não te rales por não seres suficientemente inteligente, eu jogo pelos dois." Pensei muito neste sonho e no outro, porque me pareceu que o rapaz que me empurrou e este homem eram a mesma pessoa. Tu não tens outro irmão, ou tens?Ele engasgou-se com o chá.Diz-me, Eyvi. A jovem jurara a si própria que não se aproximaria dele, que não o tocaria, mas aproximou-se e segurou-lhe na mão. Diz-me. Ela sentia o sítio, acima do pulso, onde começava a longa cicatriz, marcando-lhe o braço, como se fosse um sinal de pertença. Quando ele falou, não disse nada do que ela esperava.Uma vez ouvi uma história, uma história terrível. Nunca mais a esqueci. Foi na primeira vez, na primeira noite em que conheci Ulf, e... foi Hakon que a contou, uma história acerca de dois homens que fizeram um juramento de lealdade e do que isso representou para eles. Um dos homens chamava-se Niall e o outro, um guerreiro, chamava-se Brynjolf. Conheceram-se uma noite...Era uma longa e trágica história. Agora que começara, as palavras fluíam com rapidez e ela tinha de concentrar-se para não perder o fio à meada. Era uma história que fazia com que uma pessoa amaldiçoasse, chorasse de raiva e frustração pela loucura dos homens. O jovem chegou ao fim: Niall, o poeta, velho, só e cheio de uma profunda tristeza que se reflectia em cada verso que fazia, que ensombrava cada canção que compunha. A rapariga, Thora, morta na sua juventude e inocência. O guerreiro, Brynjolf, vivendo a sua curta vida sem se aperceber da desgraça que causara ao seu leal amigoÉ uma história muito triste disse Nessa. Tão injusta, tãoinjusta.Quando Hakon a contou, senti o mesmo. No entanto, todos os homens aplaudiram a lealdade de Niall. Todos os homens acreditaram que ele agira correctamente. Um juramento de sangue é uma coisa muito solene; o homem com quem fazemos esse juramento passa a ser nosso irmão. Mais do que um irmão. Como é que um homem pode quebrar um tal voto? Ela tinha que ir com delicadeza.Um homem pode fazer um voto a um deus, ou a outro homem. Ou a uma mulher: um casamento é uma espécie de promessa. Mas a mim parece-me que há coisas mais profundas, que devem transcender tais juramentos. As coisas não são sempre iguais, Eyvi. As pessoas mudam. Os destinos mudam. Tu não sabes, quando és novo, qual será a tua vida quando fores homem, ou eu, quando for mulher. Eu acho que nunca faria como Niall, porque teria de quebrar o voto se ele me compelisse a agir erradamente, a agir contra o que o meu coração me dissesse. Nenhum juramento de sangue me levaria a agir com crueldade, ou falsidade, ou em desafio às leis naturais, fosse ele qual fosse. E... Eyvi?Ele olhou para ela com um olhar sombrio.É preciso ser um homem muito forte, um homem muito corajoso, para trilhar esse caminho de verdade, em vez de ficar agarrado cegamente a uma promessa. Há muitas espécies de coragem. Essa é a mais difícil.Nessa!Sim?Eu só percebo de guerra. Sempre fui o primeiro: o primeiro a atacar, o primeiro a oferecer-me para uma missão perigosa, o primeiro a tentar um desafio. Era capaz de ganhar qualquer luta, derrotar qualquer inimigo. Mas sempre fui muito estúpido nas outras coisas, lento a compreender, ignorante nas coisas da lei e do raciocínio, muitas vezes nem consigo encontrar as palavras certas. Não sei ler mapas, não sei fazer versos, não sei conversar com homens instruídos. Sem a minha força, sem a minha ânsia de combate, para que sirvo? O meu amigo... ele tentou ensinar-me caracteres rúnicos, uma vez. Foi, até, muito paciente. Mas tudo o que consegui aprender foi a escrever o meu nome.Mostra-me disse Nessa. Aqui, no chão.Ele largou-lhe a mão e começou a desenhar no chão com o dedo indicador. Estava muito concentrado, a ponta da língua de fora, os olhos semicerrados, toda a sua atenção na tarefa. Nessa observava-o em silêncio. A sua mão, desenhando as linhas e os pequenos ramos à esquerda e à direita com alguma perfeição, não tremia.Pronto disse ele. Não está muito bem, mas creio que fiz bem. Eyvind. Foi tudo o que consegui aprender.Eyvind repetiu ela. Um lindo nome. Um nome de chefe, um nome de herói. Tenho-o dito, este tempo todo, de maneira errada. Por que não me disseste? Ela desviou a vista dos caracteres, olhou de relance para ele e surpreendeu uma expressão estranha no seu rosto, um sorriso fantasma.Gosto mais do outro nome disse ele. E... é entre tu e eu, especial, não faz parte das outras coisas. Gosto de to ouvir dizer.Nessa foi incapaz de encontrar palavras para responder. Voltou a estudar os caracteres.Disseste que o meu nome é um nome de chefe disse ele. Mas não pode ser. Eu não sou chefe nenhum. Fui uma vez, de livre vontade, confiante de que conseguiria. De certo modo, creio que consegui, porque levámos a cabo a missão exactamente como o nosso chefe de guerra nos ordenou. Mas foi... foi uma coisa cruel, horrível. Não foi uma batalha, foi um massacre. Não posso culpar o homem que me confiou essa missão. O responsável fui eu.Conta-me.Creio que não posso contar-te, se queres que eu continue aqui. Se te contar, tenho de partir. Seria impossível continuares a dar-me abrigo. As suas mãos estavam de novo a tremer; com uma praga abafada, colocou-as sob os sovacos e franziu ferozmente o sobrolho.Era isso que eu queria dizer disse Nessa calmamente. Algumas espécies de coragem são muito mais difíceis do que outras. Pôr algumas coisas em palavras pode ser muito difícil. Já deves ter percebido que eu sei a verdade. Já sei, pelo menos em parte, o que fizeste e não te vou mentir, só de pensar nisso fico aterrada. Sinto-me diminuída. Mas não me sinto diminuída por ti, Eyvi. Estou aqui, não estou? Se ele não fosse tão alto, ter-lhe-ia posto um braço em redor dos ombros. Dá-me a tua mão outra vez, isso. Ela aproximou-se para que ele pudesse sentir o seu calor. Conta-me Eyvi.Ele suspirou e deixou sair tudo, tremendo.Eu pensava que tinha sido o teu povo a matar Hakon e a família dele. Vi os ossos carbonizados deles; sepultei-os. Pensava que tinham sido os guerreiros de Engus que tinham feito aquilo. Então Grim chegou e disse-nos que os ilhéus estavam em marcha, que vinham atacar a colónia. Eu ansiara tanto por uma batalha, durante todo o Verão e durante o Outono. Nem sequer queria vir para aqui, tinha o meu trabalho na minha terra, com os Pele-de-Lobo do Jarl Magnus. Lá sobressaía; era o favorito, tinham confiança em mim, tinha sempre um objectivo, compreendes? Quase não se passava uma semana sem que não houvesse acção e nos intervalos fazíamos desporto e havia camaradagem. E... e havia uma mulher, também. Tenho tido saudades dela. Mas vim para aqui. Somerled fez com que eu viesse. Foi uma longa espera; o meu machado permaneceu silencioso durante muitas luas, a minha espada dormiu durante muito tempo na bainha. E agora, por fim, tinha uma hipótese de mostrar do que era capaz. E ele encarregou-me da missão. Disse: "trata disto por mim". Era a minha primeira missão como chefe. Estava determinado a fazer tudo bem, com perfeição. Escolhi os meus homens, um bando equilibrado, não muitos, porque tinha de ser um combate justo. Os suficientes, porque precisávamos de estar confiantes na vitória. Usei o elmo que o Jarl Magnus me deu, uma recompensa, belo e resistente. E... e... Ela afagou-lhe gentilmente a mão.Portanto, foste e descobriste que o inimigo não era o que esperavas?Por que é que eu não vi? Por que é que eu não vi antes de ser demasiado tarde? A voz de Thor, durante tanto tempo silenciosa, soava alto e bom som; nós respondemos à chamada. Matámo-los a todos, um a um. Os meus homens fizeram exactamente o que eu lhes disse que fizessem. Mas...Continua, Eyvi. Já chegaste até aqui.Algo mudou. Eu estava ali, a bruma vermelha clareou e eu vi-os. Não como guerreiros, não como inimigos, mas como homens verdadeiros, homens que trabalhavam a terra e pescavam no mar, homens que tinham mulheres, mães e filhos em casa, que dependiam deles. E... e quando olhei melhor vi que a maior parte tinha barba grisalha, ou eram rapazes, não guerreiros experimentados, como os meus. Tínhamos chacinado um bando de avós e crianças. Mas os meus homens continuaram a cortar, a furar, a bater em carne viva. E... e depois foi aquele rapaz, um rapaz que estava a esticar o arco com os dedos a tremer. O meu machado saiu-me da mão antes de eu ter percebido como era novo, como estava assustado. Rachei-lhe a cabeça ao meio, Nessa.
Então, corri como um cobarde. Corri, corri e quando já não tinha forças, escondi-me. Thor abandonou-me; a sua voz desapareceu. Estás a ver o destroço em que me transformei? Tornei-me tão fraco e inútil que a minha mãe é capaz de me renegar.
O nome dele era Taran disse ela, fazendo um grande esforço para manter a voz firme. Irmão mais novo de Ara. Eles não queriam que ele fosse, mas ele teimou e foi. Estava furioso. Os Folk estão todos muito zangados. Ouvi falar no que lhe aconteceu. Quando peguei no teu machado, quando o escondi, não sabia que ainda estava fresco dessa morte. Isto é... isto é muito difícil para mim, tenho dificuldade em... em olhar para ti e... Foi-lhe impossível continuar; as lágrimas começaram a cair-lhe pelas faces abaixo e a jovem largou a mão dele para as limpar, lutando com o tumulto de sentimentos que lhe ia na alma.
Fiz-te chorar. E afastas-te de mim. Apesar de todas as tuas boas intenções, não consegues esconder o nojo. Até a mim próprio meto nojo. Isto não foi um erro, foram muitos erros; não foi um acto maldoso, foram centenas de actos maldosos. Eu tenho um escudo, mas não o uso muitas vezes. Tem pequenos cortes, uns a seguir aos outros, incontáveis, que representam os homens que já matei. Muitos eram guerreiros, mortos em combate. Mas quem sabe se, no meio de tantos, não haveria outros que seriam avós, ou jovens inocentes? Nunca saberei. Só naquele dia, em Ramsbeck, é que os vi pela primeira vez.
Oh, Eyvi sussurrou ela. Oh, Eyvi. Então, a jovem levantou-se, espevitou as brasas e aqueceu água de novo, porque aquele chá familiar ajudava-a a manter por mais algum tempo a pretensão de que as coisas estavam todas bem entre ambos. Ela deitou as ervas na água e foi buscar as malgas. Ele observava-a sem se mexer. Quando ela verteu o chá, colocou um dos recipientes junto dele e afastou-se, sentando-se, sozinha, a olhar para o fogo.
Não compreendo disse ele monotonamente, os olhos sem qualquer expressão. Sempre que acordo anseio pelo chamamento de Thor; sem a voz do deus a minha vida não é nada e eu não sou nada. O Pai da guerra sempre foi a minha fantasia e o meu objectivo. No entanto, agora, tenho medo... tenho medo de ouvir a voz dele, encolho-me todo só de pensar no que fiz e no que posso voltar a fazer. Não vejo outro destino, Nessa. Por mais que digas, acho que não tenho mais nenhum destino. Vejo o horror nos teus olhos; não o podes esconder.
Como guerreiro de Thor, só mereço o teu desprezo. No entanto, sem esse chamamento, sou um falhado aos olhos do meu povo e aos meus próprios olhos: um reles cobarde, mentalmente estropiado pela guerra. Sou um homem perdido: uma causa perdida.
Nessa não disse nada. Sentia-se como se estivesse a ser empurrada em duas direcções diferentes ao mesmo tempo, e isso doía; doía como se o seu coração se estivesse a rasgar.
Devias ir-te embora disse ele pousando a malga. Não está certo estares aqui sozinha comigo. Leva a tua lanterna e vai para a cabana.
Se é isso que queres. Por todos os poderes, era, na verdade, uma grande dor e tudo o que ele dizia parecia agravá-la ainda mais. Não devia ter ido para junto dele; devia ter dado ouvidos a Rona, que era, no fim de contas, uma mulher sábia.
O que eu quero não é para aqui chamado disse ele. Nessa levantou-se, deixando o seu chá intocado junto da fogueira.
Desculpa conseguiu ela dizer. Preciso de passar alguns momentos sozinha.
Eyvind acenou com a cabeça. O seu rosto estava da cor da cal, os olhos dois buracos escuros. Parecia uma coisa terrível deixá-lo naquele momento, mas como poderia ficar? Não conseguia olhar para ele sem imaginar Taran enfrentando-o e o machado assobiando através do ar na sua missão de morte.
Boa noite. A voz dele era quase inaudível. A sério, acho que o melhor é tu esqueceres-me, como Thor fez. Não mereço mais.
Nessa noite não houve sono. Nessa permaneceu deitada de olhos abertos, escutando o restolhar de pequenas criaturas no telhado de colmo até que achou que eram horas de se levantar. Ainda estava escuro; os dias de Inverno eram, na verdade, muito curtos nas ilhas e uma pessoa acostumava-se a fazer o que tinha a fazer à luz de lanternas. A jovem acendeu o fogo; fez chá mas não conseguiu bebê-lo. Varreu o chão, amassou farinha para fazer bannocks e deu de comer às galinhas magricelas de Rona. Em seguida, fez uma pequena trouxa com as poucas coisas que trouxera de casa e sentou-se à espera que a anciã acordasse.
Vou-me embora esta manhã disse ela assim que Rona se sentou na sua enxerga com uma malga fumegante nas mãos. Fiz-te Bolos chatos de cevada ou de aveia.
O pequeno-almoço. E o dele. Vais ter que ser tu a levá-lo lá. Tenho de ir antes da maré.Estou a ver. Rona bebeu um gole de chá, os olhos cinzentos como seixos fixos na sua aluna. Pensei que o Kinart só viesse amanhã.- Mudei de ideias. A minha mãe precisa de mim.E aquele grandalhão não? A tua mãe não distingue um dia do outro, pelo menos foi o que ouvi dizer. Por que a pressa?Pensei que não quisesses saber dele disse Nessa exasperada. Isto já é difícil assim, quanto mais contigo a discutir assim.Não é com ele que eu me preocupo. É contigo, filha. Por que hás-de perder um dia se não é preciso? Por que hás-de ir a correr para casa, se não queres?Nessa apertou os lábios; não ia chorar outra vez, estava a comportar-se como uma rapariguinha tola, não como a sacerdotisa que era.O que é que eu lhe digo? perguntou Rona calmamente.Nada.Rona olhou para ela.Diz-lhe que eu fui para casa porque a minha mãe precisa de mim. É a verdade. Foi loucura minha passar aqui tanto tempo, não imagino por que... diz-lhe só isso. Eu volto assim que puder para te ver, Rona. Espero que fiques bem.Nessa pegou na sua pequena trouxa e pô-la ao ombro; já levava a capa leve e as botas. A outra capa, a mais quente, estava no dólmen, não iria lá buscá-la.Que aconteceu, Nessa?Nada. Tenho de ir, ou perco a maré. Adeus; tem cuidado. Eu volto assim que puder. Nessa inclinou-se para beijar as faces encarquilhadas da anciã. Talvez tenhas de... talvez tenhas de o vigiar. Não conseguiu evitar que aquelas palavras saíssem e os olhos de Rona semicerraram-se, atentos. Acho que ele é capaz de tentar... tenho medo que ele tente... Não conseguiu dizer o que lhe ia no pensamento.Ah sim? Rona franziu os lábios. E tu vais-te embora assim, sem uma palavra?Acho que só estou a piorar as coisas murmurou Nessa e, virando as costas, afastou-se, pestanejando com força. O Sol estava a lutar por subir; o vento frio, vindo de oeste, vinha carregado de odores marítimos. Um dos cães estava à espera dela junto dos restos da fogueira ao ar livre, as orelhas espetadas, a cabeça erguida, alerta, como se estivesse de guarda. Com o coração a pesar-lhe no peito como chumbo, Nessa virou costas à torre subterrânea e dirigiu-se para casa. A mãe precisava dela. O tio precisava dela. Os Folk estavam em perigo. Tinha de estar junto deles, não ali; fora tola ao imaginar que aquilo podia acabar em bem. Nunca lera erradamente os sinais antes, mas desta vez parecia que se tinha enganado. Deitaria aquilo para trás das costas. Nem sequer se daria ao trabalho de pensar naquilo. Ou nele. Ou nele, acordando sozinho e descobrindo que ela se tinha ido embora. Ou nele, descobrindo que ela tinha fugido. Nele, caminhando até ao mar e nadando firmemente para oeste até as ondas o engolirem, ou vagueando através dos montes até encontrar uma morte gelada. Pelos antepassados, a dor no seu coração era mesmo terrível. No entanto... no entanto havia aquele machado ainda com o sangue fresco de uma criança, aquele machado que matara tanta gente ao longo dos anos ao serviço incondicional de um deus. Era repugnante; era impensável. As lágrimas começaram a cair e ela deixou-as correr à-vontade, quentes e dolorosas, porque mais ninguém a estava a ver senão o cão que caminhava firme e silenciosamente a seu lado a caminho de Dorso de Baleia.
Somerled tinha um certo estilo. Quando, chegou, finalmente, caminhou através da estreita passagem na sua capa ondulante e na sua túnica de algodão, o cabelo escuro preso atrás com uma fita de seda vermelha e os seus homens atrás de si com os seus elmos polidos e belas armas afiadas. Todos repararam que aquele novo chefe de guerra trazia consigo um escudo redondo, pintado de fresco com um cavalo negro em fundo vermelho. Parecia que o nome que os seus camaradas lhe davam não lhe desagradava. Kinart praguejou em voz baixa, as mãos fechadas com força no cabo da sua lança. Os homens dos Folk discutiram o alcance dos seus arcos e se conseguiriam acertar num qualquer de entre eles. Mas Engus disse: deixem-nos vir. Era tempo de diplomacia, não de assassinatos. Convidara Somerled para fazerem um tratado e Somerled viera. Era, talvez, um pouco tarde, já que o Inverno estava quase no fim, mas, pelo menos, o homem viera. Reunir-se-iam no salão grande e ouviriam o que ele tinha para dizer.Antes, as mulheres teriam sido excluídas de uma reunião daquelas. Engus, em particular, nunca quisera que as suas sobrinhas se mostrassem. Mas agora era diferente. A peste e a guerra tinham dizimado os Folk e enfraquecido a sua determinação. Agora, o Rei queria Nessa junto de si, como princesa real e mulher sábia da sua casa. A sua presença moderaria o comportamento dos seus próprios homens e o de Kinart em particular. Bastaria uma centelha para destruir aquela ínfima esperança de paz.Esperaram. Nessa estava sentada à direita de Engus, Kinart à sua esquerda. Tadhg, recentemente chegado da Ilha Sagrada, estava atrás do Rei. Os homens da casa estavam todos juntos com as lanças e facas à mão, os rostos carrancudos de raiva, ressentimento, frustração e medo. Estavam cansados; tinham os corações despedaçados. No entanto, tinham esperança, porque com que outro propósito viria aquele homem até ali, senão para um tratado de paz?Nessa sentiu os olhos de Somerled em si no momento em que ele entrou no salão grande. O pesadelo apareceu-lhe na mente: a facada, a queda, a mão varrendo com confiança as peças do tabuleiro. Oh, que pena. Agora, aqueles mesmos olhos escuros viajavam pelo seu corpo de cima abaixo, avaliando, admirando, e um pequeno sorriso bailou nos seus lábios. O novo chefe de guerra sentou-se em frente de Engus e uniu as mãos por cima da mesa. Usava um belo anel de prata, lavrado com as cabeças de animais estranhos e com pedras vermelhas brilhantes.Rei Engus disse ele de modo agradável. Há quanto tempo. Espero que estejas bem?A voz de Tadhg ouviu-se, firme, traduzindo.Estou bem, obrigado, e espero que o mesmo aconteça contigo, se bem que me pareça uma pergunta estranha depois do que aconteceu - disse o Rei gravemente. Certamente, não desconheces as perdas que sofremos às mãos dos teus guerreiros, este Inverno. Peço-te que me perdoes se sou brusco. Mas nós esperávamos melhor depois das promessas do teu irmão. Esqueceste as palavras que Ulf proferiu na Grande Pedra dos Juramentos?Ah disse Somerled. Direito aos negócios, então. Gosto disso. Não vale a pena andarmos com rodeios, pois não? Dizes que eu sou esquecido. Julgas-me mal. Eu nunca esqueço. Não esqueço o assassínio do meu irmão. Não esqueço que a tua gente queimou um dos meus guerreiros vivo com a mulher e os filhos. Não esqueço a sua tentativa descarada de emboscar a nossa colónia, nem as muitas vezes que foram às minhas terras com lanças e arcos com o propósito de provocar sarilhos. Falas de promessas. Essas promessas foram invalidadas quando a tua gente pôs as mãos em Ulf.Nessa sentiu a raiva que percorria os corpos de todos os homens do Rei ao ouvirem aquelas palavras traduzidas. O maxilar de Engus cerrou-se. Os olhos de Kinart chispavam de fúria. Quanto a Somerled, estava sentado calmamente com as mãos unidas diante de si e uma expressão doce no rosto. Podia ter estado a falar de um bom dia de pesca, ou a falar do jantar.
Eu desejei falar disso antes, logo após a morte do teu irmão disse Engus, mantendo a sua voz firme. Tu tornaste isso difícil. Compreendo a tua dor e a tua raiva pelo que aconteceu. Não é fácil perdermos uma pessoa tão chegada.Tu o dizes.Mas a tua informação está errada. Os meus homens não mataram o teu irmão. Nós respeitávamo-lo; admirávamos o que ele fazia e estávamos gratos pela sua ajuda. Cheguei a ver Ulf como um amigo. Devo dizer-te que fiz um inquérito; falei pessoalmente com todos os homens que viajaram até à Ilha Alta naquele dia e com todos aqueles que vivem na aldeia onde fundeámos. Fosse quem fosse que assassinou o teu irmão, não foi ninguém do nosso povo.Que estás a sugerir? Que foi um dos nossos que levou a cabo esse acto bárbaro?Não estou a sugerir nada. Limito-me a realçar que essas acusações são falsas. Assim como as que dizem respeito à morte da viúva, Ara, e do homem dela. Não é hábito dos Folk queimarem pessoas vivas. Não matamos crianças. Também nisso deves procurar o culpado entre os teus.Onde estão as tuas provas? Somerled ergueu as sobrancelhas.Onde estão as tuas? A voz de Engus estava ligeiramente alterada, como se estivesse a ponto de perder o controlo. E o que aconteceu em Ramsbeck, uma chacina tão selvagem que nenhum homem escapou? Que espécie de guerreiro combate assim, como se a morte não satisfizesse a sua luxúria por sangue, que corta, que perfura, que esmaga até fazer do seu adversário uma pasta de carne putrefacta? Aquilo foi acto de um demente. Ele olhou de relance para Nessa, como se se tivesse apercebido da presença dela demasiado tarde. Desculpa, minha querida.Os teus homens atacaram-nos disse Somerled. E eu também sofri perdas nesse dia: morreram dois homens e desapareceu outro, o meu melhor guerreiro, o meu guarda-costas pessoal. Chacinado, presumo, ou já teria regressado, já que nenhuma prisão é suficientemente forte para conseguir aguentar esse guerreiro muito especial. Onde está Eyvind? O corpo dele jaz nas tuas terras por sepultar? Ele era o meu maior amigo, o meu companheiro desde a infância. É como se me tivessem tirado dois irmãos. Agora, nem sequer posso deitar os ossos dele à terra; não me posso despedir dele. E os teus homens é que são os responsáveis. Um lampejo de verdadeira emoção passou-lhe pelas feições pálidas, impassíveis, e desapareceu. Nessa estremeceu.Eu não sei nada dissoDisse Engus. Nós só trouxemos para casa os destroços dos nossos. Não vimos esse guerreiro, vivo ou morto. Farei um inquérito por ti. Ninguém te negaria o direito de sepultar o teu amigo, apesar do que ele pode ter feito: apesar do que era.Obrigado. E agora falemos de negócios. Não posso ficar muito tempo disse Somerled encostando-se e cruzando os braços. Espero que possamos chegar hoje a uma espécie de acordo, para que a minha visita não tenha sido em vão. Nós somos homens ocupados.As tuas palavras confortam-me disse Engus cautelosamente. Eu também desejo muito um tratado, talvez a renovação daquele que concluí com lorde Ulf. Podíamos discutir aqui os termos gerais e depois os pormenores em privado. Estou-te grato por esta oportunidade. Na verdade, teria acolhido com agrado esta reunião mais cedo.A sério? Somerled ergueu de novo as sobrancelhas. Nessa olhou para ele e sentiu o sonho, sombrio como uma sombra, demorando-se algures na sua mente. Ele parecia tão afável, tão confiante, tão descontraído. O ar de um homem que não vê qualquer possibilidade de insucesso.Certamente replicou Engus. E nós temos um presente para ti como prova da nossa boa vontade. Temos tido algumas dificuldades desde que o teu irmão morreu. Oferecemos-te este pequeno tesouro num gesto de amizade, um símbolo do nosso desejo de começarmos de novo. Isto é muito antigo e muito raro, os únicos exemplares que temos. Engus fez um gesto a um dos seus homens, que apareceu com uma caixa feita de osso de baleia, uma bela peça que jazia no armazém do Rei à espera de um momento daqueles. Qualquer monarca experiente deve ter uma certa quantidade de bens capazes de agradar a um vizinho perigoso, a um dignitário em visita, a um chefe de guerra que, de repente, passa de amigo leal a perigoso inimigo apenas por capricho. Tais presentes fazem parte de uma diplomacia essencial.Engus ergueu a tampa de dobradiças para mostrar o brilhante conjunto de colheres de prata que estavam no interior, uns instrumentos de curvas graciosas com a forma de golfinhos. Era um presente encantador. O trabalho era sem igual; Nessa ouvira o seu tio dizê-lo quando o tirara do sítio onde estava, na esperança de que aquele difícil chefe de guerra se sentasse, finalmente, à mesa das negociações.Requintado observou Somerled. Maravilhoso. Fora do vulgar. O nórdico não estava a olhar para as colheres. Apresenta-me àquela jovem senhora, sim? Estalou os dedos e um dos seus grandes guerreiros vestidos de peles avançou para fechar a caixa e metê-la debaixo do braço. Os Pele-de-Lobo: havia dois ali presentes, ambos homens formidáveis, se bem que nenhum deles, pensou Nessa, fosse tão alto e largo de ombros como Eyvind. A jovem olhou para Somerled desejando não corar, não baixar os olhos, embaraçada, ou envergonhada. Não lhe daria essa satisfação. Os olhos dele abriram-se um pouco quando ela o fixou; a sua boca torceu-se maliciosamente, como se quisesse que ela partilhasse com ele uma brincadeira privada.O nome da jovem é Nessa disse-lhe directamente o irmão Tadhg, sem traduzir o que Somerled dissera. Aconselho-te a que não fales fora de tempo. Qualquer sinal de desrespeito para com ela, à menor palavra imprudente, os homens enfurecer-se-ão.O olhar de escuro de Somerled virou-se para o cristão.Bem, bem disse ele lentamente com um divertimento simulado. Que defesa tão rápida, tão veemente. Não és um monge, portanto votado à castidade? Juraria que tens uma fraqueza pela jovem, de tal modo corres em sua defesa. Ela é maravilhosa, não é? Eu acho aquele "não me toques" irresistível.Avisei-te disse Tadhg calmamente. O problema é teu.Pergunta ao Rei se a filha está prometida em casamento. Nessa franziu o sobrolho. E Engus virou-se para o seu tradutorexigindo uma resposta.O que é que ele está a dizer? Por que é que não traduzes as palavras dele? Ele falou de Nessa?Tahdg tossiu para aclarar a garganta.Eu não sou filha dele. As palavras de Nessa ouviram-se claras e confiantes na língua dos estrangeiros. O Rei Engus é meu tio. Creio que já sabes isso. E não estou prometida, nem estarei. Eu sou uma sacerdotisa dos Folk, votada a uma vida de solidão em observância aos rituais. O meu futuro está nas minhas mãos, não nas de um homem qualquer ansioso de poder. Aquelas últimas palavras tinham sido mal-avisadas; no entanto, a jovem sentiu uma certa satisfação por tê-las dito.
Bem, bem disse Somerled, o seu sorriso abrindo-se para algo que pareceu, por um momento fugaz, genuíno, de modo nenhum fazendo parte de um jogo. Maravilhosa, intocável e inteligente. Uma voz que parece música e a falar a nossa língua. Estou impressionado. Gostaria de te ter conhecido antes. Votada a uma vida de solidão, dizes tu. Custa a acreditar.É a verdade. A jovem percebeu que a dificuldade seria aquela: não quando ele torcia e manipulava as coisas, não quando era abertamente desagradável, antes naqueles raros momentos em que parecia uma pessoa diferente, escondida algures no mais profundo do seu ser. Para um homem como Eyvind, aquela devia ser a grande dificuldade.Não me parece, minha querida. Alguém me disse qualquer coisa acerca da linha de descendência feminina e da necessidade de um herdeiro, uma necessidade desesperada tendo em conta as perdas recentes do vosso povo. És capaz de vir a descobrir que o teu tio tem outra coisa em mente para ti, acho eu, uma coisa muito mais terra-a-terra. É uma pena. É uma pena desperdiçar uma criatura tão rara como tu. O chefe de guerra virou-se para o irmão Tahdg. Diz ao Rei que também eu trago um presente; um presente especial. Duvido que ele tenha visto uma coisa parecida.Tahdg traduziu com o rosto impassível. Enquanto falava, um dos guerreiros de Somerled avançou com um rolo de pergaminho que passou ao seu chefe. Estava atado com uma fita de seda. Os dedos de Somerled retiraram-na com destreza. O chefe de guerra desenrolou o rolo sobre a mesa, em frente do Rei. Os cantos enrolaram-se; Somerled esticou os braços para os segurar e Nessa viu nitidamente, na pele do seu braço esquerdo, a marca da faca: o juramento de lealdade para toda a vida. Ele era o meu maior amigo. Uma dor imensa percorreu-lhe o corpo; a jovem apanhou o olhar dele, perspicaz, como se soubesse no que estava a pensar. Nessa olhou rapidamente para o mapa. Porque aquilo era um mapa: um mapa das ilhas, preciso, colorido, chegando ao ponto de ter todo o relevo desenhado, o mais pequeno dos lagos, o último e mais ínfimo bosque de árvores. Lá estava a Ilha Alta, podiam ver-se os dois grande picos e até a pedra gigante com o buraco no seu vale solitário. A costa sul da Ilha da Rainha, a Ilha Gartnait, a Pequena Lança e até a pequena e oval Ilha Sagrada com a casa marcada com o sinal da cruz.Que belo trabalho disse Engus lentamente, passando a mão pela linha de costa muito belo. Tens um artesão muito habilidoso na tua casa, é evidente. Os seus dedos pararam na parte noroeste da ilha em que estavam, onde um pequeno círculo mostrava Dorso de Baleia com uma fina sequência de pontos unindo-o à costa. O mapa era meticuloso em todos os pormenores: falésias, baías, reentrâncias. Ancoradouros, estábulos, aldeias, armazéns. Muralhas, fortificações, locais de esconderijo. O que é que está aqui escrito? perguntou o Rei. Somerled sorriu levemente.Não tens aqui perguntou ele suavemente quem possa ler por ti?Está escrito Hrossey, meu senhor Rei disse Tahdg, olhando para Somerled. Pode ser traduzido como a Ilha do Cavalo. Esse nome está escrito na parte norte desta ilha; envolve Dorso de Baleia, as tuas herdades e as terras que cedeste ao povo de Ulf. Estende-se para sul até ao ancoradouro e até Baía de Prata, a leste. O grande círculo de pedra está no interior desse território.Achei o nome adequado disse Somerled sem sorrir. Engus pôs-se de pé lentamente.O que é isto? perguntou ele e algo na sua voz fez com que o coração de Nessa desse um salto. Ouviu-se um tilintar de metal, um arrastar de ferro contra ferro quando todos os guerreiros no salão grande levaram as mãos às espadas.São as minhas condições de paz disse Somerled suavemente. Tu querias um tratado e é isso, exactamente, o que eu te ofereço. Não precisas de perder mais homens. Eu sei ser magnânimo. Sei que te sobrou pouca gente. Este mapa mostra-te como será a ilha quando chegarmos a acordo. Estas ilhas são pequenas. Não há espaço, aqui, para dois líderes.Nessa não conseguiu manter-se por mais tempo em silêncio.Isto é... isto é ultrajante! A sua voz tremia de fúria. É um insulto, uma chacota, que nenhum líder verdadeiro seria capaz de sugerir sem sentir a maior das vergonhas. Tu sabes o que o teu irmão queria para estas ilhas, para o nosso povo e para o teu. Como te atreves a apresentar este tratado-fantoche ao Rei? Metes-me nojo!Somerled juntou as mãos; ela pensou que ele ia aplaudi-la.Muito bem disse ele, mas não estava a sorrir, desta vez. Tanta paixão, tanto fogo! Faremos com que não se perca. E o domínio da língua, também. Gostaria de saber onde a praticaste, para seres assim tão fluente. Havia uma pergunta no seu tom.
Aprendeu comigo. O irmão Tahdg falou em tom neutro; os seus olhos transmitiam outra mensagem. E não te esqueças do que te disse antes. Alguns homens não aceitarão os teus insultos velados a esta senhora. E agora creio que devias explicar claramente ao Rei Engus o que pretendes com isto. Fala claro e vai direito ao assunto. Há homens aqui muito zangados, meu senhor; espero que não seja o que lady Nessa pensa.
Não brinques comigo, mongezinho disse Somerled. Limita-te ao que sabes fazer e não te metas onde não és chamado, sim? Muito bem, meu senhor, é justo que eu esclareça tudo, como me é pedido. Percebo muito bem. O facto é que receio que a tua situação seja muito delicada, Rei Engus. Viste o que aconteceu em Ramsbeck. Nós temos um número superior de guerreiros, mais capazes no campo de batalha e com armas mais avançadas. Temos fazedores de mapas. Temos eruditos. Temos estrategas. E tu, o que tens? Uma mão-cheia de aprendizes de guerreiros com lanças malfeitas e muita fúria. Talvez seja melhor explicar-te ainda outra coisa. Ulf foi-se; eu não sou o meu irmão. Como chefe de guerra, tenho a minha própria maneira de conduzir os meus negócios. E na minha visão de Hrossey não há lugar para ti.
De rosto pálido, Tadhg traduziu o discurso para o rei; suavizou-o um pouco para alívio de Nessa, porque a jovem sentia que faltava uma centelha, apenas, para que se desse uma explosão de violência.
Abandona o meu salão. - Engus não gritou, não deu um murro na mesa, furioso. Disse aquelas palavras com grande dignidade. Abandona o meu salão e abandona as minhas terras. Não quero ouvir mais nada.
Eu disse... Somerled ergueu as mãos num gesto de impotência eu disse que não precisavas de perder mais homens. Ou mulheres, ou crianças. Se não queres ouvir, assim seja. O norueguês virou-se para sair; os dois Pele-de-Lobo cerraram fileiras em torno dele.
Tio disse Nessa em tom insistente devias ouvir o que ele tem para dizer. Seja o que for, talvez seja melhor do que um massacre.
Seguiu-se um silêncio.
Muito bem disse Engus com ar pesado. Diz-nos. Nesse teu grande plano, qual é o papel dos Folk? Onde é que nós ficamos, nestas ilhas que são o nosso lar desde os tempos antes da memória
Oh, ides embora. O tom de Somerled era leve. Tu e o teu filho. Seria um louco se te deixasse ficar como ponto de referência para a tua tribo, e não me parece que te possa deixar ir para junto daqueles a quem vós chamais os Caitt. Primos afastados, não são? Há sempre a possibilidade de regressares com visitantes indesejáveis. Mas talvez fosses um refém excelente. Rogaland seria uma boa escolha; suficientemente longe e com gente interessada nas oportunidades que esta terra oferece. O teu povo? Levarias contigo para o exílio todos os guerreiros que quisesses; não poderíamos ficar com eles aqui. Os rapazes podem ser úteis na terra. As mulheres ficariam; as suas camas não ficariam frias durante muito tempo. Como vês, é uma solução simples e limpa e não se derrama nem uma gota de sangue a partir de hoje. Ulf ficaria orgulhoso de mim.O rosto de Engus parecia talhado em granito.O teu irmão daria voltas no túmulo se ouvisse as tuas palavras. Ele era amante da paz. Tu não passas de um oportunista. E agora sai das minhas terras e leva os teus rufias contigo. O meu estômago revolta-se só de olhar para ti.Tahdg traduziu as palavras com precisão. Somerled riu-se.Os insultos baratos são um hábito de família? Não te preocupes, nós vamo-nos embora. Não faço tenção de ficar aqui preso pela maré; mas não respondo pelo que possa vir a acontecer. O teu filho parece um cão de caça na ponta de uma trela. Oh, é verdade, já me esquecia. De quem é aquele belo mastim que eu vi lá fora? Parece-se mesmo com um dos do meu irmão, que desapareceu no dia do funeral dele. Certamente, o teu povo não acrescentou esse roubo à sua lista de delitos?O cão é meu. Nessa falou o mais firmemente que pôde, se bem que tremesse de fúria.A sério? Aquele pequeno sorriso bailou-lhe de novo na boca. Não posso discutir com uma senhora. Fica com ele, por quem és. Considera-o um presente da parte de um admirador. Ah, é verdade, esquecia-me de outra coisa. Somerled virou-se para Engus. A minha generosidade, ao poupar-te a vida e as dos teus seguidores, depende de uma outra condição.Nessa sentiu o sangue fugir-lhe do rosto.Preciso de um herdeiro e ainda não me casei disse ele suavemente. Ouvi dizer que essa jovem ainda não está prometida. Quero a mão dela em casamento. Isso deve agradar-te; beneficia o teu estatuto de princesa real. Na verdade, é claro como água. Eu governo as ilhas; a jovem torna-se Rainha. Com o tempo, o meu filho suceder-me-á. E, pensa só, o pequeno será o verdadeiro herdeiro segundo as vossas leis de sucessão. Rei dos Folk e Rei norueguês de Hrossey, tudo ao mesmo tempo. Engenhoso, modéstia à parte.Nessa ficou a olhar para ele, incapaz de expressar a sua repulsa. Somerled, na verdade, raciocinava com rapidez: era um adversário formidável. Mas talvez aquilo fizesse parte do seu plano desde o princípio e estivesse agora apenas a representar. Tadhg apertou as mãos uma na outra. A sua tradução do discurso de Somerled foi uma obra de arte de tacto. Mas não conseguiu dissimular a mensagem.Tens-me em pouca conta disse Engus calmamente, lançando um olhar em redor pelos seus guerreiros inquietos. A minha sobrinha não concederia, sequer, um momento a essa proposta, assim como ninguém do nosso povo. Esta terra está à nossa guarda desde o tempo dos antigos antepassados. Preferimos morrer a sacrificá-la. Se preferes não aceitar os meus avisos, tu é que sabes. Faz-nos guerra à-vontade. Marcha sobre os lugares sagrados, pisa com as tuas botas as ossadas da memória. Nós daremos as nossas vidas pelas ilhas, todos nós. Tu não és nada, Somerled. És um rato com ambição, um ratito que se esforça para ser igual ao irmão, mas que nem aos calcanhares lhe chega. Achas que lady Nessa seria capaz de se aliar com escumalha como tu? Eu, aqui, sou o Rei, e estas ilhas estão à minha guarda sagrada. E agora desaparece das minhas terras com os teus carniceiros e não voltes a pôr os pés em Dorso de Baleia.O meu senhor diz que se ri da tua oferta. Prefere lutar até à morte a aceitar disse o irmão Tahdg. E pede-te que abandones as suas terras.Isso percebi eu disse Somerled mas também percebi o resto, porque também eu tenho um certo jeito para línguas. Por favor, diz ao Rei Engus que acho a sua decisão precipitada muito infeliz e que, como sou um homem muito ponderado, dou-lhe algum tempo. Pouco. O Inverno não é uma estação muito boa para campanhas militares; não se pode confiar no tempo. Por favor, diz ao Rei que espero até que sintamos os primeiros calores da Primavera; saberá ao mesmo tempo que eu. Então, enviar-lhe-ei um mensageiro. Adeus, Nessa. Mal posso esperar pela próxima vez em que nos veremos de novo e nos conheceremos melhor.
Nessa olhou-os nos olhos e manteve, com algum custo, a voz neutra.Acho muito pouco provável disse ela. É claro que não aceitas o presente do meu tio. Tenho a certeza que seria totalmente inapropriado.Somerled dirigiu-lhe um sorriso gelado; o seu olhar deixou-a profundamente perturbada.Devolve-lhe as colheres, Erlend disse ele. Quanto ao nosso presente, o teu tio pode ficar com ele, Nessa. Que ninguém diga que Somerled de Hrossey é um homem mesquinho. Esse mapa, creio eu, servirá como lembrança do seu futuro provável caso se obstine na sua determinação. Uma tolice. Uma grande tolice.Não temos mais nada a dizer um ao outro. A voz de Engus era a voz de um Rei. Abandona este salão e abandona esta ilha. Não voltaremos a encontrar-nos, salvo no campo de batalha.Gostaria tanto que conseguisses compreender-me, mãe sussurrou Nessa, passando a agulha de osso através da bainha do vestido que estava a coser e puxando a linha. Estavam ambas sentadas num banco de pedra no exterior da casa, porque estava um daqueles dias de Inverno em que o Sol decide mostrar-se apesar do frio, de modo a recordar às pessoas que não se esqueceu delas. Nessa passou os dedos pelo pano, procurando o outro local que era preciso remendar. Lá estava ele; precisava de cerzir aquilo com mais força se queria continuar a usá-lo. Uma vez, a sua mãe tirara-lhe o trabalho das mãos com um sorriso e fizera-o ela própria, lembrando-lhe que ela era uma sacerdotisa. Mas não desta vez. A sua mãe estava sentada com as mãos no colo, os olhos aguados e a boca ligeiramente aberta. Não parecia ver nem ouvir, se bem que, por vezes, falasse: palavras que nem Nessa conseguia compreender. Era difícil ver a própria mãe como uma espécie de idiota, uma louca. Parecia impossível que se tivessem passado apenas duas estações desde a doença, quando as suas irmãs passavam o tempo com mexericos, lhe penteavam os cabelos e quando a sua mãe era uma mulher forte, carinhosa, a espécie de mãe a quem era possível contar todos os segredos.Gostava tanto de pedir o teu conselho continuou Nessa. E se soubesses que alguém tinha feito uma coisa má, uma coisa cruel, mas que o teu coração te dizia que esse alguém era um bom homem? Achas que faz diferença se alguém, apesar de ter feito uma coisa má, acreditar que fez bem? Achas que os seus actos podem ser perdoados se forem feitos por ignorância?
A mãe da jovem tossiu levemente e murmurou qualquer coisa. Talvez tivesse dito: Agua. Nessa pousou o trabalho de costura e foi buscar uma taça. As feições da sua progenitora estavam apáticas; não fez menção de beber a água. Nessa levou a taça aos lábios da mãe e esperou que ela bebesse. Era como amamentar uma criança moribunda, era inútil e despedaçava o coração.
Mãe? Pergunto a mim própria se me podes ouvir, bem lá no fundo. O que achas? Estou a ser mesmo tola? Como é que um homem bom pode permanecer fiel a um tirano sem coração? Como é que os sinais me dizem que estou certa, quando me parece tão errado preocupar-me deste modo? Eu fugi, virei as costas a um amigo. Nunca tinha feito uma tal coisa, por favor, fala comigo. Oh, por favor. Tudo o que eu quero é uma palavra, só uma palavra; basta uma sombra nos teus olhos, para eu saber que estás aí. Sinto-me tão só. Pára com isso, Nessa, disse ela a si própria, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe começavam a cair pelas faces. Pára de ter pena por ti própria. E a tua mãe, a dor dela? E Evind, que tu abandonaste? E a pobre Rona? Se queres respostas, encontra-as tu mesma.
Ela olhou de relance para o declive que descia de Dorso de Baleia até à parte coberta de erva, a leste, onde Kinart e os outros homens tiravam vantagem do tempo bom para praticarem esgrima. Ataque, parada, esquiva, rotação, ataque de novo. Para os seus olhos amadores, aquilo parecia-lhe bem-feito. Imaginou Eyvind entre eles. Seria mais alto e mais largo do que o maior dos homens de Engus e, provavelmente, bastante mais habilidoso. Kinart segurava a sua espada como se lutasse contra demónios; estava consumido pela fúria. Estavam todos. Quando, finalmente, chegasse a ocasião para enfrentar os homens de Somerled, não veriam mais nada senão os corpos destroçados de Ramsbeck, os restos queimados da cabana de Ara. Atacariam com essas imagens nos olhos. A fúria torná-los-ia cegos e os homens de Somerled ceifá-los-iam como uma seara madura. O seu tio seria banido, a sua família escravizada. As Ilhas Brilhantes seriam governadas por um tirano e ela própria seria... seria... A jovem estremeceu, incapaz de visionar um futuro no qual se deitaria ao lado daquele homem.
No entanto, era uma hipótese. Concordar em casar com Somerled e dar à luz o seu filho, salvando assim os Folk da aniquilação. Mas casar com Somerled significava desobedecer à sabedoria dos antepassados, ao conhecimento que lhe corria no sangue. Uma escolha sombria. Uma escolha impossível.Kinart e Ferach estavam embrenhados num combate feroz; a sua feroz dedicação ao treino da guerra estava a levá-los longe demais. A memória de Ramsbeck atormentava-os como um aguilhão sangrento. Eyvind também vira amigos seus chacinados: Hakon, que fora um Pele-de-Lobo e aqueles que Hakon amava. O jovem achava que o povo dela é que fora o responsável. Ter-se-ia passado o mesmo com Eyvind, comandando os seus guerreiros em Ramsbeck, atirando o seu machado pelo ar numa cintilante dança de morte? Teria sentido a mesma raiva? Ela viu Kinart pôr de lado a espada e começar a treinar o arremesso da lança com um olhar selvagem e a boca cerrada. Talvez a diferença entre os dois não fosse assim tão grande. Talvez só tivesse a ver com aquilo em que cada um deles acreditava.Nessa estava junto da Pedra do Povo, observando um sol sangrento a mergulhar no escuro turbilhão do mar. O ar estava húmido da espuma salgada. No topo da subida inclinada onde se encontrava Dorso de Baleia, a falésia caía abruptamente e as vagas invisíveis esmagavam-se na sua base, em baixo. Só um louco chegaria até tão perto. Até as ovelhas se mantinham afastadas. Engus estava a seu lado, os olhos fixos no horizonte distante: no fim do mundo, talvez. O cão farejava por ali em busca de coelhos.O Sol, demasiado cedo, já quase tinha desaparecido. Naquela época do ano já todos desejavam a Primavera; era difícil manter o coração alegre e o espírito esperançoso quando a noite cobria tudo com o seu manto pesado. Tudo tinha de ser feito durante as poucas horas de luz: caçar, pescar, tratar do gado, remendar casas deterioradas pelas tempestades, render sentinelas, reforçar as pequenas defesas que tinham.Os últimos raios de sol incidiram na rocha gravada, iluminando os três guerreiros que se mantinham de pé, com dignidade, guardando-a como defensores das ilhas. A Pedra do Povo estava ali há muito tempo; era o símbolo e o centro do domínio dos Folk. No entanto, era um monumento recente na ilha. Os círculos de pedras, as câmaras escondidas, os montículos antigos, os seres invisíveis que moravam, misteriosos e subtis, sob os acidentes de terreno e sob a água brilhante é que eram a memória e a magia, o bater do coração e a história. Faziam parte das Ilhas Brilhantes desde tempos tão distantes que a mente de um homem não conseguia recordar. E perdurariam, acontecesse o que acontecesse. Mas, para os Folk, o futuro parecia menos certo.É impensável disse Engus à sua sobrinha um homem como Somerled governar aqui. Intolerável. No entanto, vejo que é possível. Seria o fim do nosso povo, Nessa. Esta raça de homens é cruel, sem coração e ignorante. Cometi um erro terrível ao deixá-los ficar. Julguei-os todos iguais a Ulf. Agora, parece-me que ele era um homem raro entre eles. Se o fim é este, a responsabilidade é minha. Nunca pensei ver um dia tão negro; nunca pensei suportar um tal fardo.Tio?- Sim, Nessa?A propósito de Ulf: a morte dele, a maneira como aconteceu, as tuas investigações. É evidente que nenhum dos nossos homens esteve envolvido. Tens alguma teoria que explique o que aconteceu naquele dia? Quem pensas que fez aquilo? Foi a morte dele que transformou tudo. Se Ulf não tivesse morrido, o teu tratado continuaria em vigor e os dois povos estariam a viver lado-a-lado, tal como ele planeou.Teoria? - disse Engus olhando de relance para a sobrinha. Sim, tenho uma teoria, mas não tem qualquer importância, já que este novo chefe de guerra parece ter o seu povo na palma da mão. Mesmo que tivesse provas, duvido que fizesse diferença. Ele é um adversário muito subtil, Nessa, esperto como o diabo.Nesse caso, tenho razão disse ela tranquilamente. Achas que Somerled foi o responsável.Talvez não tenha sido ele o instrumento. Mas acredito que foi ele que planeou tudo. Ele esteve ausente naquela noite e no dia seguinte. Apareceu ileso, falando de vozes na escuridão e de luzes misteriosas. Os homens que estavam com ele contaram a mesma história. Brude andou perdido durante toda a noite devido a essas manifestações, até que, finalmente, o sono o venceu. Acordou longe do nosso acampamento quando o Sol já ia alto. Quanto a Drest, as vozes levaram-no ao alto da escarpa, onde foi atacado, pensa ele, pela Tribo Perdida. Estava escuro; não conseguiu distinguir se eram homens, ou outra coisa qualquer. Teve sorte em escapar com uma perna partida. A pergunta é: onde estava Somerled durante esse espaço de tempo? Ele diz que também andou perdido. Mas tinha homens ali, no vale, e no ancoradouro. Os meus guardas não podiam vigiá-los a todos. Os próprios homens de confiança de Somerled podiam tê-lo ajudado. Aquele assassínio cruel não foi tarefa de um só homem. Somerled esteve implicado, Nessa.Mas, porquê? O próprio irmão, isso é contra todas as leis naturais. E Ulf era bom homem. Certamente, Somerled não fez uma coisa daquelas para tomar o lugar do irmão como chefe de guerra. Como é possível um homem viver com esse sentimento de culpa?Aquele homem não é como os outros disse Engus com gravidade. Aquele homem é impelido por forças maléficas. E creio que não é como chefe de guerra que ele se vê a si próprio, é como Rei. É por isso que o tratado está fora de questão. Não se fazem acordos com um homem como ele. No entanto, para sobrevivermos, temos de o fazer. O irmão Tadhg sabe mais coisas sobre aquele homem. Falou muitas vezes com Ulf na Ilha Sagrada; teve conhecimento dos segredos do seu coração. Mas, como irmão santo, não pode falar dessas coisas. O que é pena; esse conhecimento podia ajudar-nos.O Sol desaparecera por completo. Tinham de regressar antes que ficasse escuro como tinta.Há outras maneiras disse Nessa lentamente. Podemos seguir outros caminhos que nos podem dar algumas respostas. Posso fazer isso por ti com a ajuda de Rona. A tarefa não me agrada, mas os tempos vão desesperados, tio.Não quero que regresses para junto daquela mulher. A voz de Engus era severa. Viste o homem, ouviste a sugestão ultrajante dele. Viste aqueles imbecis com as suas capas bárbaras. O único lugar onde podes estar em segurança é aqui em Dorso de Baleia, Nessa, e talvez nem aqui seja suficiente. Se não estivéssemos no Inverno, mandava-te para longe. Há gente nas ilhas do norte que te dariam abrigo até tudo isto passar. Tu és demasiado valiosa para que nos arrisquemos a perder-te. Não podes executar esse ritual aqui, convocar as vozes de que necessitas? íamos buscar Rona; continuar lá é perigoso. Os segredos do espírito não têm qualquer significado para os imbecis de Somerled.
Começaram ambos a caminhar na direcção da aldeia, onde os archotes ardiam no exterior do salão grande.
Tio?
O que é, Nessa?
Este ritual... não te posso dizer o que é, mas tem de ser celebrado lá, no lugar das mulheres. A voz que eu devo chamar é muito antiga, muito misteriosa; só há uma câmara onde posso ouvi-la, e essa câmara não é aqui em Dorso de Baleia. Tenho de voltar lá se quiser obter algumas respostas. Não te preocupes. Irei sob a protecção dos antepassados.
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