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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FIO DA NAVALHA / Willian Somerset Maugham
O FIO DA NAVALHA / Willian Somerset Maugham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Nunca senti maior apreensão ao começar um romance. E se digo romance é por não saber de que outra maneira chamá-lo. Não tem grande enredo, não acaba com morte nem com casamento. A morte põe termo a todas as coisas e é, portanto, fim lógico para uma história; mas também o casamento é solução muito correta e os blasés fariam mal em escarnecer daquilo que comumente se diz que “acabou bem”. O instinto popular anda acertado ao afirmar que, com isto, tudo o que devia ser dito foi dito. Quando, depois de inúmeras vicissitudes, macho e fêmea finalmente se reúnem, sua função biológica foi cumprida e o interesse passa à geração vindoura. Mas estou deixando o meu leitor no escuro. Este livro consiste nas recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contato; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar fatos de que tenho conhecimento.
Há anos escrevi um romance intitulado Um gosto e seis vinténs. Nele, destaquei um famoso pintor, Paul Gauguin, e, valendo-me do privilégio do romancista, imaginei vários incidentes, no intuito de ilustrar o tipo que eu criara inspirado nos escassos fatos que conhecia da vida do artista francês. Na obra atual nada tentei de semelhante. Não inventei coisa alguma. Para poupar constrangimento a pessoas que ainda vivem, dei aos personagens desta história nomes fictícios e procurei, por outros meios, evitar que sejam reconhecidos. O homem sobre quem escrevo não é célebre; talvez nunca chegue a sê-lo. É possível que, ao atingir o fim da vida, não deixe, de sua passagem pela terra, vestígio maior que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas. Neste caso, se o meu livro for lido, sê-lo-á exclusivamente pelo interesse intrínseco que possa ter. Mas é possível que o gênero de vida que esse homem escolheu para si próprio e a singular força e doçura do seu caráter tenham uma influência sempre crescente sobre seus semelhantes, de modo que, mesmo muito tempo depois de sua morte, talvez se compreenda que nesta época viveu uma criatura extraordinária. Ficará, então, claro sobre quem escrevi neste livro, e aqueles que desejarem conhecer alguma coisa dos primeiros anos da existência desse homem talvez aqui encontrem algo que lhes satisfaça. Creio que o meu livro, dentro de suas possibilidades, que reconheço limitadas, será uma útil fonte de informações para os biógrafos do meu amigo.
Não é minha intenção fazer crer que as conversas foram registradas literalmente. Não tomei nota sobre o que foi dito nesta ou naquela ocasião, mas tenho boa memória quanto ao que me diz respeito e creio que, embora expressas em minhas próprias palavras, essas conversas representam fielmente o que foi dito. Há pouco declarei nada ter inventado; quero agora modificar essa asserção. Tomei a liberdade, que desde o tempo de Heródoto os historiadores têm tomado, de pôr nos lábios dos meus personagens palavras que eu, pessoalmente, não poderia ter ouvido. Agi pela mesma razão que os fez agir; para dar vida e verossimilhança a cenas que teriam sido incolores se apenas relatadas. Quero ser lido, e creio estar no meu direito quando faço o possível para tornar agradável a leitura do meu livro. O leitor inteligente facilmente perceberá em que ocasiões me vali deste artifício e tem toda a liberdade de rejeitá-lo.
Outro motivo que me fez iniciar esta obra com apreensão foi o fato de eu aqui lidar a maior parte do tempo com americanos. É difícil a gente compreender bem as criaturas e não creio que possamos conhecer ninguém a fundo, a não ser os nossos próprios compatriotas. Pois os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos com que brincaram quando crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que frequentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas coisas fizeram deles o que são, e essas coisas ninguém pode conhecê-las somente por ouvir dizer, e sim se as tiver sentido. Só pode conhecê-las quem é parte delas. E, por não se poder conhecer as pessoas de um país estrangeiro a não ser por observação, é difícil torná-las reais nas páginas de um livro. Mesmo um observador sutil e cuidadoso como Henry James, embora tivesse vivido quarenta anos na Inglaterra, jamais conseguiu criar um inglês que fosse cem por cento inglês. Quanto a mim, a não ser em alguns contos, nunca tentei manejar a não ser os meus próprios compatriotas; e se nas histórias curtas me aventurei à exceção, foi porque nelas o escritor pode tratar os tipos mais sumariamente. Dá ao leitor indicações gerais e deixa por conta dele os detalhes. Possivelmente perguntarão por que motivo, já que transformei Paul Gauguin em inglês, não pude fazer o mesmo com os personagens deste livro. A resposta é simples: não pude. Eles não teriam sido quem são. Não quero dizer que sejam americanos como os americanos veem a si mesmos; são americanos, sob o ponto de vista inglês. Não tentei reproduzir as singularidades do seu modo de falar. A barafunda que fazem os escritores ingleses quando se atiram à empreitada só pode ser comparada à confusão que fazem os escritores americanos quando tentam reproduzir o idioma inglês como é falado na Inglaterra. A gíria é a grande arapuca. Nos seus contos ingleses, Henry James sempre fez uso dela, mas nunca da mesma maneira que os ingleses; assim sendo, em vez de conseguir o desejado efeito coloquial, a maior parte das vezes dá ao leitor inglês um desagradável sobressalto.

 

 

 


 

 

 


2
Aconteceu-me estar em Chicago em 1919, a caminho do Extremo Oriente, pretendendo, por motivos que nada têm com esta história, ali me demorar durante duas ou três semanas. Pouco tempo antes eu publicara um romance que obtivera sucesso; estando, portanto, em evidência, fui entrevistado assim que desembarquei.

No dia seguinte meu telefone tocou. Atendi.

– Quem fala aqui é Elliott Templeton.

– Elliott? Pensei que você estivesse em Paris.

– Não; vim visitar minha irmã. Queremos que você venha almoçar conosco.

– Com muito prazer.

Ele indicou a hora e o endereço.

Meu conhecimento com Elliott datava de quinze anos. Na ocasião em que me telefonou ele devia estar perto dos sessenta anos, homem alto e elegante, de traços agradáveis e espessos cabelos escuros e ondulados, com a nota grisalha apenas suficiente para acentuar a distinção de sua aparência. Ele comprava os acessórios de toalete em Charvet, mas seus ternos, chapéus e sapatos eram de Londres. Tinha em Paris um apartamento na Rive Gauche da elegante Rue St. Guillaume. As pessoas que não o apreciavam diziam que ele era negociante, acusação que o indignava. Elliott tinha gosto e entendia de arte, não se importando de confessar que, em anos idos, quando pela primeira vez se instalara em Paris, dera a ricos colecionadores o favor de sua opinião; e, quando devido às suas relações sociais ouvia falar de algum fidalgo arruinado, inglês ou francês, que estava disposto a vender um bom quadro, ficava satisfeito de poder pô-lo em contato com os diretores de museus americanos que, acontecia ele saber, estavam à procura de uma obra-prima de tal ou tal mestre. Havia na França e na Inglaterra muitas famílias antigas cujas circunstâncias as obrigavam a dispor de uma peça assinada, de Buhl, ou de uma escrivaninha feita pelo próprio Chippendale, se o negócio pudesse ser feito sem alarde, e que gostavam de conhecer um homem de grande cultura e finas maneiras que saberia tratar discretamente do assunto. Supunha-se, naturalmente, que Elliott lucrava com essas transações, mas a boa educação não deixava que se tecessem comentários a respeito. Pessoas pouco generosas afirmavam que em seu apartamento tudo estava à venda e que, depois de ter oferecido a milionários americanos um ótimo almoço, com vinhos velhos, uma ou duas de suas valiosas telas desapareceriam, ou uma cômoda de madeira entalhada seria substituída por uma outra, laqueada. Quando lhe perguntavam por que razão sumira determinada peça, ele muito logicamente explicava que não a achara bem à sua altura e resolvera, portanto, substituí-la por outra de superior qualidade. Acrescentava que era enfadonho estar sempre a ver as mesmas coisas.

– Nous autres américains, nós, americanos, gostamos e variar – dizia ele. – É, ao mesmo tempo, a nossa fraqueza e a nossa força.

Algumas das senhoras americanas residentes em Paris, que se gabavam de saber tudo a respeito de Elliott, diziam que sua família era muito pobre e que, se ele conseguia manter-se no padrão em que vivia, era por ter sido muito hábil. Não sei a quanto montava a sua fortuna, mas o duque de quem era inquilino certamente o fazia pagar muito pelo apartamento que, além do mais, era mobiliado com peças de valor. Havia, nas paredes, desenhos dos grandes mestres franceses, Watteau, Fragonard, Claude Lorraine e outros; tapetes Savonnerie e Aubusson exibiam sua beleza em soalhos de parquete; e na sala de visitas havia um conjunto Luís xv, em petit paint, de tal elegância que poderia ter pertencido, como afirmava ele, a madame Pompadour. Em todo caso, Elliott possuía bastante para viver no estilo que considerava correto para um cavalheiro, sem precisar para isso ganhar dinheiro, e o método que no passado usara para consegui-lo era assunto que, a não ser que se quisesse romper relações com ele, era conveniente evitar. Liberto assim de preocupações materiais, ele se dedicou à paixão máxima de sua vida – relações sociais. Suas transações comerciais com os fidalgos empobrecidos, tanto na França como na Inglaterra, consolidaram a posição que ele conseguira ao chegar à Europa, moço, com cartas de apresentação a pessoas importantes. Sua origem o favorecia aos olhos das titulares americanas a quem vinha recomendado, pois ele pertencia à antiga família da Virgínia, e do lado materno podia reclamar parentesco direto com um dos signatários da Declaração da Independência. Tinha boa aparência, era vivo, dançava bem, atirava regularmente e sobressaía no tênis. Era elemento que valia a pena ter-se em qualquer festa. Ninguém mais pródigo, em se tratando de flores e caixas de bombons. Embora recebesse pouco, quando o fazia era com originalidade que agradava; aquelas ricaças achavam divertido ser convidadas a restaurantes boêmios no Soho ou bistrôs no Quartier Latin. Ele estava sempre pronto a servir e não havia favor, por maçante que fosse, que se lhe pedisse que ele não fizesse com prazer. Esforçava-se bastante por ser agradável a senhoras maduras, e rapidamente se tornava o ami de la maison, o queridinho de muita mansão imponente. Era extrema a sua gentileza; nunca se ofendia por ser convidado à última hora, quando alguém deixava a dona da casa em apuros, e a gente podia colocá-lo ao lado de uma velhota enfadonha, tendo certeza de que seria espirituoso e amável como só ele sabia ser.

Dentro de dois anos, tanto em Londres – para onde ia durante a última parte da temporada, e no princípio do outono para fazer algumas visitas a casas de campo – como em Paris, onde se instalara definitivamente, Elliott conhecia todas as pessoas que era possível a um jovem americano conhecer. As senhoras que o tinham introduzido na sociedade surpreenderam-se ao verificar como se alargara o seu círculo de relações. Os sentimentos dessas senhoras eram confusos. Por um lado, ficaram satisfeitas com o sucesso do seu protégé, e por outro, um tanto despeitadas ao vê-lo em tais termos de intimidade com pessoas com quem elas continuavam a manter relações de absoluta cerimônia. Embora Elliott continuasse a ser obsequioso e serviçal, elas tinham a desagradável impressão de que ele as usara como escada para o seu avanço social.

Desconfiavam que ele fosse esnobe. Claro que o era. Incrivelmente esnobe. Um esnobe sem a menor vergonha. Ele engoliria qualquer afronta, ignoraria qualquer desfeita, toleraria qualquer descortesia para ser convidado a uma festa a que desejasse ir ou para conseguir aproximar-se de alguma rabugenta duquesa-mãe. Neste particular era incansável. Quando fixava o olhar na presa, perseguia-a com a tenacidade do botânico que, para conseguir uma orquídea rara, desafia enchentes, terremotos, febres e nativos hostis. A guerra de 1914 deu-lhe a sua oportunidade decisiva. Logo no início, entrou para o Corpo de Saúde e serviu, primeiro em Flandres, depois em Argonne; voltou ao fim de um ano com uma fita vermelha na lapela e conseguiu um posto na Cruz Vermelha de Paris. Nessa época, já estava em ótima situação financeira e contribuiu generosamente para obras de caridade patrocinadas por pessoas importantes. Com seu fino gosto e dom de organização, estava sempre pronto a trabalhar para qualquer festa de caridade que fosse amplamente anunciada. Ficou sócio de dois dos mais seletos clubes de Paris. Era ce cher Elliott para as maiores damas da França. Finalmente vencera.


3

Quando conheci Elliott, eu era um jovem autor como qualquer outro e ele não me deu a mínima atenção. Ótimo fisionomista, quando nos encontrávamos por acaso aqui ou acolá sempre me apertava cordialmente a mão, sem no entanto manifestar desejo de estreitar relações; e quando eu o via na Ópera, digamos, com uma pessoa da alta-roda, ele dava um jeitinho de não me ver. Mas aconteceu que, pouco depois, tive inesperado sucesso como dramaturgo e não tardei a perceber que Elliott me olhava com mais entusiasmo. Certo dia recebi dele um bilhete, convidando-me para almoçar no Claridge, onde se hospedava quando em Londres. Fui. Grupo pequeno e pouco elegante; pareceu-me que Elliott estava a experimentar-me. Mas dali por diante, já que o meu sucesso me valera muitos amigos novos, comecei a vê-lo mais assiduamente. Pouco depois, no outono, fui passar algumas semanas em Paris e encontrei-o na casa de um amigo comum. Perguntou-me onde eu estava hospedado e dali a dois ou três dias recebi novo convite para almoçar, dessa vez no apartamento; quando cheguei, fiquei surpreendido ao verificar que era reunião muito seleta. Ri intimamente. Percebi que, com o seu perfeito discernimento de coisas sociais, ele compreendera que na sociedade inglesa, como escritor, eu não era pessoa importante, mas que na França, onde um autor tem prestígio só pelo fato de ser autor, o caso mudava de figura. Nos anos seguintes nossas relações se estreitaram, sem no entanto tomar o cunho da amizade. Duvido que Elliott Templeton jamais tenha sido amigo de alguém. Não se interessava pelas pessoas a não ser pela sua posição social. Quando acontecia estar eu em Paris, ou ele em Londres, continuava a chamar-me às suas reuniões, sempre que precisava de um avulso, ou quando era obrigado a convidar americanos em viagem. Alguns destes eram, creio eu, velhos fregueses; outros, desconhecidos que o procuravam com cartas de apresentação. Eram a cruz de sua vida. Elliott achava que devia fazer alguma coisa por eles, não desejando, no entanto, pô-los em contato com seus amigos elegantes. A melhor maneira de se livrar deles era oferecer-lhes um jantar e levá-los depois ao teatro; mas mesmo isso às vezes se tornava difícil, pelo fato de Elliott ter compromissos para todas as noites, num espaço de três semanas, e também por achar que isso não iria satisfazê-los. Já que eu era escritor e, portanto, pessoa sem muita importância, ele não se incomodava de me fazer confidências a respeito.

– O pessoal na América tem tão pouca consideração quando se trata de cartas de apresentação! Não que eu não tenha muito prazer em receber os que me procuram, mas não vejo razão para impingi-los aos meus amigos.

Procurava reparar, mandando-lhes belas cestas de flores e enormes caixas de bombons, mas às vezes isso não bastava. Foi aí que, um tanto ingenuamente, em vista do que me contara, ele me convidou a uma festa que estava organizando.

“Eles desejam imensamente conhecê-lo”, escreveu-me Elliott, para me lisonjear. “A Sra. Fulana de Tal é muito culta e leu todas as suas obras.”

A Sra. Fulana de Tal me diria então que apreciara muitíssimo o meu livro Mr. Perrin e Mr. Trail, felicitando-me pela minha peça The Mollusc. A primeira destas obras foi escrita por Hugh Walpole e a segunda por Hubert Henry Davies.


4

Se dei ao leitor a impressão de que Elliott Templeton era um tipo desprezível, cometi uma injustiça.

Ele era, em primeiro lugar, aquilo que os franceses chamam de serviable, palavra para a qual, pelo que me consta, não existe equivalente na língua inglesa. O dicionário me ensina que serviceable, no sentido de prestadio, obsequioso e amável, é arcaico. Elliott era justamente isto. Generoso, também; embora no princípio de sua carreira provavelmente houvesse cumulado seus conhecidos de flores, doces e presentes movido pelo interesse, continuava a agir da mesma forma quando isso já não era necessário. Sentia prazer em dar. Hospitaleiro, também. Seu cozinheiro não tinha em Paris quem o superasse, e todos podiam estar certos de encontrar à mesa de Elliott as coisas raras de princípio de estação. Seus vinhos indicavam a excelência do seu critério. É verdade que os convidados eram escolhidos mais pela posição social do que pelo encanto pessoal que pudessem ter, mas ele se dava ao trabalho de convidar duas ou três pessoas somente por serem boa companhia, e desta forma suas reuniões eram quase sempre divertidas. Muitos se riam dele pelas costas, chamando-o de esnobe indecente, mas apesar disso aceitavam alegremente os seus convites. O francês de Elliott era correto e fluente, a pronúncia impecável. Esforçara-se ele grandemente para adotar a maneira de falar dos ingleses, e somente uma pessoa de ouvido muito fino perceberia de vez em quando uma entonação americana. Era um conversador agradável, contanto que a gente o mantivesse afastado do assunto de duques e duquesas; mas, mesmo a respeito deles, agora que sua posição era inexpugnável, ele se permitia, principalmente quando a sós com a gente, uma observação espirituosa. Tinha uma língua agradavelmente maliciosa e não havia escândalo sobre esses altos personagens que não lhe chegasse aos ouvidos. Por ele, vim a saber quem era o pai do último filho da princesa X e quem era a amante do marquês de Y. Creio que nem mesmo Marcel Proust conhecia melhor do que Elliott Templeton a vida íntima da aristocracia.

Quando eu estava em Paris, constantemente almoçávamos juntos, às vezes no seu apartamento, outras num restaurante. Gosto de vaguear pelas lojas de antiguidades, ocasionalmente para comprar alguma coisa, mas mais frequentemente só para espiar, e Elliott sempre sentia prazer em acompanhar-me. Era conhecedor e tinha verdadeiro amor aos objetos de arte.

Creio que não havia em Paris, no gênero, loja que ele não conhecesse, parecendo sempre íntimo do proprietário. Adorava pechinchar; quando saíamos, ele me dizia:

– Se quiser comprar alguma coisa, não faça você o negócio. Dê-me uma indicação e deixe o resto por minha conta.

Ficava encantado quando, pela metade do preço, conseguia para mim alguma coisa que me despertara o interesse. Era um gozo vê-lo pechinchar. Discutiria, adularia, perderia a calma, apelaria para os bons sentimentos do vendedor, ridicularizaria-o, apontaria os defeitos do objeto em questão, ameaçaria nunca mais pôr os pés naquela casa, suspiraria, encolheria os ombros, advertiria, ganharia colericamente a porta e finalmente, ao conseguir o desejado, sacudiria a cabeça tristemente, como se aceitasse a derrota com resignação. Depois me diria baixinho, em inglês:

– Leve-o. Pelo dobro do preço ainda seria barato.

Elliott era católico fervoroso. Algum tempo depois de estar vivendo em Paris, ficou conhecendo um padre célebre pelo seu sucesso em atrair ao rebanho hereges e infiéis. O padre gostava muito de jantar fora e era conhecido pela sua vivacidade. Reservava seu consolo espiritual para os ricos e aristocratas. Inevitável, portanto, que Elliott se sentisse atraído por um homem que, embora de origem humilde, era bem-vindo nos lares mais fechados; assim sendo, confessou a uma rica senhora americana, uma das recentes convertidas do padre, que, embora sua família sempre tivesse pertencido à seita episcopal, ele pessoalmente havia muito estava interessado na religião católica. Essa senhora um dia con vidou Elliott para jantar em sua casa, só os três, e o sacerdote brilhou como nunca. A dona da casa puxou a conversa para o catolicismo e o padre exprimiu-se com fervor, mas sem pedantismo, como homem vivido, embora sacerdote, dirigindo-se a outro homem vivido. Elliott ficou lisonjeado ao ver que o padre sabia tudo a seu respeito.

– A duquesa de Vendôme estava falando do senhor, no outro dia. Disse que o acha sumamente inteligente.

Elliott enrubesceu de prazer. Fora apresentado à Sua Alteza Real, mas nunca lhe ocorrera que ela o tivesse notado. O padre discursou sobre a fé, com sabedoria e benevolência; tinha ideias largas, moderno ponto de vista e era tolerante. Fez Elliott sentir que, mais do que qualquer outra coisa, a Igreja era um clube seleto a que um homem fino tinha obrigação de pertencer. Seis meses mais tarde Elliott abraçava a nova fé. Sua conversão, aliada à generosidade de que deu provas em contribuições para obras de caridade católicas, abriu-lhe várias portas que até então lhe tinham estado fechadas.

É possível que fossem confusas as razões que o fizeram abandonar a fé dos seus antepassados, mas não houve dúvida quanto à sua devoção, uma vez que se decidiu àquele passo. Assistia à missa todos os domingos, na igreja frequentada pelo pessoal mais fino, confessava-se regularmente e fazia periódicas visitas a Roma. Com tempo, essa piedade foi recompensada pela sua nomeação para camareiro da corte pontifícia, e a assiduidade com que cumpriu os deveres do ofício mereceu-lhe, creio, a honra de pertencer à Ordem do Santo Sepulcro. Em resumo, sua carreira como católico não foi menos brilhante que sua carreira como homme du monde.

Muitas vezes fiquei cogitando na causa do esnobismo que obcecava aquele homem tão inteligente, tão bom e tão culto. Ele não era nenhum adventício. Seu pai fora presidente de uma das universidades do Sul e seu avô um teólogo de certa importância. Elliott era inteligente demais para não perceber que muitas das pessoas que lhe aceitavam os convites o faziam para ter uma refeição grátis, e que algumas eram tolas e outras completamente sem valor. O fulgor dos títulos sonoros cegava-o aos defeitos daquela gente. Só o que me ocorre é que o fato de estar em termos de intimidade com aqueles cavalheiros de alta linhagem, e de ser o fiel servo de suas damas, lhe dava uma sensação de triunfo nunca diminuída; e creio que atrás de tudo isso havia um incurável romantismo que o fazia ver, no raquítico duquezinho francês, o cruzado que acompanhara S. Luís à Terra Santa; e no fanfarrão conde inglês que ia à caça de raposas, o antepassado que acompanhara Henrique viii à entrevista no Campo do Pano de Ouro. Em companhia de tais pessoas, tinha a impressão de estar vivendo num passado de galanteria e esplendor. Creio que, quando virava as páginas do Almanach de Gotha, seu coração batia tumultuoso, à medida que os nomes sucessivos lhe traziam recordações de antigas pelejas, cercos históricos e duelos célebres, intrigas diplomáticas e amores de reis. Em todo caso, assim era Elliott Templeton.


5

Eu estava me preparando para ir ao almoço a que Elliott me convidara quando da portaria telefonaram que ele me esperava embaixo. Admirei-me, mas desci assim que fiquei pronto.

– Achei mais seguro vir buscá-lo – disse ele ao apertar-me a mão. – Não sei se você conhece bem Chicago.

Tinha a mesma ideia que observei em outros americanos que durante muito tempo residiram fora do seu país, de achar que a América é um lugar difícil e mesmo perigoso, onde o europeu não pode, sem risco, locomover-se sozinho.

– Ainda é cedo; podemos andar parte do caminho – sugeriu ele. O ar estava levemente abafadiço, mas no céu não havia uma única nuvem; era agradável poder espichar as pernas.

– Achei preferível falar-lhe de minha irmã, antes que você lhe seja apresentado – disse-me Elliott enquanto caminhávamos. – Ela hospedou-se comigo uma ou duas vezes em Paris, mas não creio que você estivesse lá na ocasião. Não é uma reunião grande, você sabe. Apenas minha irmã, sua filha Isabel e Gregory Brabazon.

– O decorador? – perguntei.

– Ele mesmo. A casa de minha irmã é pavorosa e Isabel e eu queremos que ela a reforme. Por acaso cheguei a saber, que Gregory se achava em Chicago e fiz com que Louisa o convidasse para almoçar. Ele não é exatamente um cavalheiro, é claro, mas tem gosto. Foi quem decorou o Castelo Raney para Mary Olifant, e St. Clement Talbot para os St. Erth. A duquesa ficou encantada com ele. Você vai ver com seus próprios olhos a casa de Louisa. Não compreendo como pôde ali viver durante todos estes anos! Para ser franco, jamais compreenderei como é que ela pode mesmo viver em Chicago.

Vim a saber que mrs. Bradley era viúva, com três filhos, dois rapazes e uma menina; mas os rapazes eram muito mais velhos e já estavam casados. Um ocupava um posto oficial nas Filipinas e o outro, que a exemplo do pai seguira a carreira diplomática, morava em Buenos Aires. O marido de mrs. Bradley ocupara postos em várias partes do mundo e, depois de ter sido durante alguns anos primeiro-secretário em Roma, fora nomeado ministro para uma das repúblicas da costa ocidental da América do Sul, onde viera a falecer.

– Eu quis então que Louisa vendesse a casa de Chicago – continuou Elliott. – Mas ela não concordou, por razões sentimentais. Há muitos anos que pertence à família Bradley, que é uma das mais antigas de Illinois. Eles vieram da Virgínia em 1839, instalando-se mais ou menos a sessenta milhas do que é hoje Chicago. Ainda são deles, as terras. – Elliott hesitou ligeiramente e olhou-me para ver como eu iria receber suas palavras. – O Bradley que aqui se fixou era o que você com certeza chamaria de fazendeiro. Talvez você não saiba, mas em meados do século passado, quando o Oeste Central começou a ser desvendado, muitos habitantes da Virgínia, filhos mais novos de boas famílias, deixaram seus lares, sucumbindo à atração do desconhecido. O pai do meu cunhado, Chester Bradley, viu que aqui em Chicago havia futuro e entrou para um escritório de advocacia. Em todo caso, ganhou bastante para deixar o filho garantido.

Mais que as palavras de Elliott, sua maneira de falar indicava que talvez não fosse exatamente de bom-tom o falecido Chester Bradley ter abandonado a imponente mansão, e as vastas terras que herdara, para entrar num escritório de advocacia, mas que o fato de ter acumulado grande fortuna era, em parte, uma compensação. Também não ficou lá muito satisfeito quando, em outra ocasião, mrs. Bradley me mostrou alguns instantâneos do que ele chamava a sua “propriedade” no campo e vi uma modesta casa de madeira, com um bonito jardinzinho, mas com celeiro, curral e chiqueiro bem à vista, cercados por áridas planícies. Não pude deixar de refletir que mr. Bradley sabia o que estava fazendo, quando abandonara aquilo para ir ganhar a vida na cidade.

Dali a pouco fizemos sinal a um táxi. Este nos deixou diante de uma casa de pedra marrom, estreita e muito alta; da numa fileira de outras casas, numa rua que saía de Lake Shore Drive, e, mesmo naquela bela manhã de outono, sua aparência era tão insípida que a gente se admirava de que alguém pudesse ter sentimentalismos a seu respeito. A porta foi aberta por um negro alto e forte, de cabelos brancos, que nos fez entrar na sala de visitas. Mrs. Bradley ergueu-se ao ver-nos e Elliott me apresentou a ela. Devia ter sido bonita quando jovem, pois seus traços, embora graúdos, eram benfeitos, e seus olhos, bonitos. Mas o rosto pálido, quase que acintosamente desprovido de pintura, tinha linhas caídas, e evidentemente ela desistira de lutar contra a corpulência da idade madura. Pareceu-me que aceitara de má vontade a derrota, pois se sentava muito tesa na cadeira de espaldar reto, onde, devido à cruel armadura do colete, provavelmente se sentia melhor do que numa cadeira estofada. Usava um vestido azul, com pesados alamares, e a gola alta mantinha-se firme à custa de barbatanas. Bela cabeça; cabelos brancos ondulados a ferro, num penteado muito complicado. O outro convidado ainda não chegara e, enquanto esperávamos, falamos de uma coisa e outra.

– Elliott me contou que o senhor veio pelo Sul – disse mrs. Bradley. – Parou em Roma?

– Sim, passei lá uma semana.

– E como vai indo a boa rainha Margherita?

Um tanto surpreso com a pergunta, respondi que não sabia.

– Oh! não foi vê-la, então? É muito simpática. Foi tão amável conosco quando estivemos em Roma! Mr. Bradley era primeiro-secretário. Por que não foi visitá-la? O senhor não é como Elliott, tão vil que não pode ir ao Quirinal?

– Absolutamente – respondi sorrindo. – A questão é que não a conheço.

– Não conhece? – exclamou mrs. Bradley como se não acreditasse nos seus ouvidos. – Por que não?

– Para lhe falar com franqueza, geralmente os escritores não convivem com reis e rainhas.

– Mas ela é uma mulher tão simpática – disse mrs. Bradley em tom de censura, como se fosse muito malfeito da minha parte não conhecer a augusta personagem. – Tenho certeza que o senhor iria gostar dela.

Neste momento a porta abriu-se e o criado introduziu Gregory Brabazon.

Apesar do seu nome, Gregory Brabazon não era um sujeito romântico. Baixo, muito gordo, completamente calvo, a não ser por um círculo de ondulados cabelos negros na nuca e à volta das orelhas, rosto vermelho, nu, dando a impressão de que a qualquer momento iria cobrir-se de violento suor, vivos olhos cinzentos, lábios sensuais e maxilar pesado. Era inglês, e eu já o vira em festas boêmias, em Londres. Tinha uma voz barulhenta, mãos pequenas e gordas, extraordinariamente expressivas. Com gestos eficazes e uma torrente de palavras animadas ele conseguia excitar a imaginação do freguês hesitante, a ponto de tornar impossível a desistência da encomenda que ele parecia fazer favor em aceitar.

O criado entrou novamente, com uma bandeja de aperitivos.

– Não vamos esperar por Isabel – disse mrs. Bradley, servindo-se de um.

– Onde está ela? – perguntou Elliott.

– Foi jogar golfe com Larry. Preveniu que talvez chegasse atrasada.

Elliott virou-se para mim e explicou:

– Larry é Laurence Darrell. Parece que ele e Isabel estão noivos.

– Não pensei que você tomasse coquetéis, Elliott –comentei.

– Não tomo – disse ele lugubremente, bebericando o que tinha em mão. – Mas, nesta bárbara terra de proibição, que é que se pode fazer? – Suspirou e prosseguiu: – Estão começando a servi-los em algumas casas em Paris. As más relações corrompem as boas maneiras.

– Tolice! – exclamou mrs. Bradley.

Disse isso bastante afavelmente, mas com uma firmeza que indicava uma mulher de opinião e, pelo olhar divertido, mas sagaz, que atirou a Elliott, percebi que não tinha grandes ilusões a seu respeito. Que iria ela pensar de Gregory Brabazon? Eu notara o olhar profissional que o decorador lançara à sala, ao entrar, assim como o involuntário arquear das espessas sobrancelhas. Era realmente uma sala extraordinária. O papel das paredes, o cretone das cortinas e o estofamento da mobília tinham o mesmo desenho; nas paredes, em pesadas molduras douradas, dependuravam-se quadros a óleo, provavelmente trazidos de Roma pelos Bradley. Virgens da escola de Rafael, virgens da escola de Guido Reni, paisagens da escola de Zuccarelli, ruínas da escola de Pannini. Havia troféus da permanência deles em Pequim, mesas de ébano excessivamente entalhadas, enormes vasos cloisonné e também lembranças do Chile e do Peru, obesas figuras de granito e vasos de barro. Vi uma escrivaninha Chippendale e uma vitrina entalhada. Os abajures eram de seda branca e neles algum artista mal inspirado pintara pastores e pastoras em trajes de Watteau. Sala pavorosa e, no entanto, não sei dizer por quê, agradável. Tinha um ar familiar, caseiro; a gente sentia que a incrível mixórdia tinha significação. Todos aqueles incongruentes objetos combinavam uns com os outros porque faziam parte da vida de mrs. Bradley.

Tínhamos acabado nossos aperitivos quando a porta se abriu e entrou uma moça, seguida por um rapaz.

– Estamos atrasados? – perguntou ela. – Trouxe Larry comigo. Há alguma coisa para ele comer?

– Creio que sim – sorriu mrs. Bradley. – Toque a campainha e diga a Eugene que ponha mais um lugar à mesa.

– Já disse a ele. Foi ele quem nos abriu a porta.

– Esta é a minha filha Isabel – apresentou mrs. Bradley, virando-se para mim. – E aqui, Laurence Darrell.

Isabel apertou-me rapidamente a mão e virou-se impulsivamente para Gregory Brabazon.

– O senhor é que é mr. Brabazon? Estava louca por conhecê-lo. Fiquei encantada com o que o senhor fez para Clementine Dormer. Não acha esta sala horrível? Há anos procuro convencer mamãe a reformá-la e agora que o senhor está em Chicago não há melhor oportunidade. Diga-me sinceramente a sua opinião.

Eu sabia que isto seria a última coisa que Brabazon faria. Ele atirou um rápido olhar a mrs. Bradley, mas o rosto impassível nada lhe contou. Viu que Isabel era a pessoa que contava e soltou uma ruidosa gargalhada.

– Não duvido que seja muito confortável e essa história toda – disse ele. – Mas, se quer que eu fale com franqueza, pois bem, acho-a pavorosa.

Isabel era uma moça alta, de rosto oval, nariz reto, olhos bonitos e lábios carnudos, traço este que parecia característico da família. Era bonita, se bem que ligeiramente inclinada à obesidade, o que se podia atribuir à idade; achei que afinaria quando ficasse mais velha. Tinha mãos boas, fortes, embora um pouco gordas; as pernas, que a saia curta deixava bem à mostra, eram também um pouco grossas. Tinha boa pele e o corado natural provavelmente estava agora acentuado pelo exercício e pela viagem de volta, em carro aberto. Era animada e viva. Sua exuberância, sua risonha alegria, o gosto pela vida, a felicidade que havia nela causavam prazer à gente. Sua naturalidade era tão grande que fazia com que Elliott, malgrado a sua elegância, parecesse espalhafatoso. Era tal a sua frescura que a seu lado mrs. Bradley, de rosto enrugado e pálido, parecia velha e cansada.

Descemos para o almoço. Gregory Brabazon piscou os olhos quando viu a sala de jantar. Paredes cobertas por um papel vermelho-escuro, imitando tecido, onde se viam retratos muito pouco artísticos, de mulheres e homens de rosto sombrio e azedo, os antepassados próximos do falecido mr. Bradley. Lá estava ele, também, com um vasto bigode, muito teso, de fraque e colarinho engomado; mrs. Bradley, pintada por um artista francês do fim do século xix, estava dependurada sobre a lareira, num vestido comprido de cetim azul-claro, com um colar de pérolas à volta do pescoço e uma estrela de brilhantes nos cabelos. Com a mão cheia de anéis ela acariciava uma echarpe de renda, tão cuidadosamente pintada que se lhe poderia contar os pontos; com a outra segurava despreocupadamente um leque de penas de avestruz. A mobília, de carvalho preto, era pesada e opressiva,– Que acha o senhor? – perguntou Isabel a Gregory Brabazon, quando nos sentamos.

– Não duvido que tenha custado um dinheirão – respondeu ele.

– E custou mesmo – declarou mrs. Bradley. – Foi-nos dada, como presente de casamento, pelo pai de meu marido. Tem nos acompanhado pelo mundo inteiro. Lisboa, Pequim, Quito, Roma. A boa rainha Margherita admirava-a muito.

– Que faria o senhor com ela, se fosse sua? – perguntou Isabel a Brabazon.

Elliott antecipou-o na resposta.

– Queimava-a.

Começaram os três a discutir a reforma da sala. Elliott inclinava-se para o estilo Luís xv, mas Isabel preferia uma mesa de refeitório com cadeiras italianas. Brabazon achava que Chippendale estava mais de acordo com a personalidade de mrs. Bradley.– Sempre achei isto muito importante – disse ele. – A personalidade de uma pessoa. – E virando-se para Elliott: – O senhor, naturalmente, conhece a duquesa de Olifant?

– Mary? É uma de minhas maiores amigas.

– Ela queria que eu decorasse a sua sala de jantar e, assim que vi a duquesa, declarei: George ii.

– E como acertou! Notei a sala, da última vez que lá jantei. É de um gosto impecável.

E assim continuou a conversa. Mrs. Bradley ouvia, mas não se podia dizer qual a sua opinião. Eu pouco falei; quanto ao namorado de Isabel, Larry – no momento não me lembrei do sobrenome –, não disse nada. Estava sentado do outro lado da mesa, entre Brabazon e Elliott; de vez em quando eu o olhava de relance. Parecia muito moço. Era aproximadamente da altura de Elliott, devendo ter pouco menos de dois metros; magro e despreocupado. Simpático; nem bonito nem feio; um tanto tímido e em nada extraordinário. Despertou o meu interesse porque, embora não tivesse pronunciado meia dúzia de palavras desde que entrara, parecia perfeitamente à vontade e, estranhamente, dava a impressão de participar da conversa mesmo sem abrir a boca. Notei-lhe as mãos. Longas, mas não grandes demais para o seu tamanho, de belo formato e ao mesmo tempo fortes. Ocorreu-me que um artista teria prazer em pintá-las. Era miúdo, sem parecer frágil; pelo contrário, eu antes o diria vigoroso e resistente. Seu rosto, grave quando em repouso, estava bem queimado; a não ser por isso, quase não tinha cor; suas feições, embora regulares, não chamavam atenção. Maçãs do rosto salientes, têmporas entradas. Cabelos de um castanhoescuro levemente ondulados. Os olhos pareciam maiores do que realmente eram, por estarem plantados profundamente nas órbitas; pestanas grossas e longas. Olhos singulares, não do castanho rico que era o tom dos de Isabel, de sua mãe e de Elliott, mas tão escuros que a íris se confundia com a pupila, dando-lhes estranha penetração. Larry tinha uma graça natural, muito atraente, e achei compreensível Isabel estar caída por ele. De vez em quando o olhar dela pousava no rapaz por um momento e julguei nele distinguir não somente amor, mas afeição.


Os olhos de ambos se encontraram e havia nos de Larry uma ternura bela de se ver. Nada mais comovente que o espetáculo de um amor moço, e eu, homem de meiaidade naquele tempo, invejei-os, mas, ao mesmo tempo, não sei por quê, não pude deixar de ter pena deles. Tolice da minha parte, pois, ao que me parecia, não havia empecilho à sua felicidade; as circunstâncias eram favoráveis e não existia razão para que não se casassem e vivessem felizes dali por diante.

Isabel, Elliott e Gregory Brabazon continuavam falando da redecoração da casa, procurando forçar mrs. Bradley a, pelo menos, reconhecer que se devia fazer alguma coisa; mas esta apenas sorria amavelmente.

– Não procurem me afobar. Quero ter tempo para refletir. – E virando-se para o rapaz: – Que acha você de tudo isso, Larry?

Ele passeou um olhar sorridente pela mesa e disse:

– Creio que tanto faz de um jeito ou de outro.

– Oh! Larry, “sua” peste! – exclamou Isabel. – Depois de eu tanto lhe ter recomendado que nos apoiasse!

– Se a tia Louisa está satisfeita com o que tem, para que fazer modificações?

A observação era tão lógica e sensata que desatei a rir. Ele olhou-me e sorriu.

– E não sorria deste jeito só porque fez uma observação idiota – disse Isabel.

Mas ele apenas alargou o sorriso e notei então que seus dentes eram pequenos, brancos e regulares. Qualquer coisa no olhar que ele lançou a Isabel fez com que ela enrubescesse e ficasse de respiração suspensa. A não ser que eu me enganasse redondamente, ela estava loucamente apaixonada por ele; mas, não sei por quê, tive a impressão de que no seu amor havia também algo de maternal. Estranhável, em criatura tão moça. Com um sorriso doce nos lábios ela dedicou de novo sua atenção a Gregory Brabazon.

– Não dê confiança a Larry. É muito tolo e completamente ignorante. Não entende de coisa alguma, a não ser de aviação.

– Aviação? – perguntei.

– Ele foi aviador na guerra.

– Pensei que fosse muito moço para ter estado na guerra.

– E era. Moço demais. Ele comportou-se muito mal. Fugiu da escola e foi para o Canadá. Mentindo a torto e a direito, conseguiu convencê-los de que tinha dezoito anos e entrou para a aviação. Estava lutando na França na ocasião do armistício.

– Você está chateando os convidados de sua mãe, Isabel – disse Larry.

– Conheço-o desde menino; quando voltou, estava um amor de farda, com todas aquelas fitas bonitas na túnica, de modo que fiquei plantada à soleira de sua porta – em sentido figurado – até que, para ter um pouco de sossego, ele concordou em casar comigo! A concorrência era enorme.

– Francamente, Isabel – admoestou sua mãe. Larry inclinou-se para mim.

– Espero que não acredite em uma palavra do que ela diz. Isabel não é má pessoa, mas é mentirosa.

Terminou-se o almoço e logo depois Elliott e eu saímos. Eu lhe contara que ia ver os quadros no museu e ele disse que me levaria. Ir a museus acompanhado é coisa que não me agrada, mas eu não podia dizer que preferia ir sozinho e, portanto, aceitei-lhe o oferecimento. No caminho falamos de Isabel e Larry.

– É um prazer a gente ver duas criaturas tão jovens assim apaixonadas uma pela outra – disse eu.

– São moços demais para se casar.

– Por quê? É tão divertido ser moço, amar e casar.

– Não seja ridículo. Ela tem dezenove anos e Larry apenas vinte. Ele está desempregado. Tem uma rendazinha, só três mil dólares anuais, a julgar pelo que me contou Louisa, e Louisa não é nenhuma milionária. Precisa do que tem para viver.

– Bom, ele pode arranjar emprego.

– É justamente essa a questão. Ele não se esforça. Parece muito satisfeito de não fazer nada.

– Provavelmente passou uma temporada dura na guerra. Talvez queira descansar.

– Há um ano que está descansando. É mais do que suficiente.

– Pareceu-me um bom rapaz.

– Oh! nada tenho contra ele. É de muito boa família, e essa história toda. Seu pai era de Baltimore. Foi, em Yale, assistente de professor de línguas neolatinas, ou coisa que o valha. Sua mãe era de Filadélfia, da velha raça dos Quaker.

– Você fala deles no passado. Morreram?

– Sim; a mãe morreu de parto e o pai há mais ou menos doze anos. Larry foi educado por um velho colega do pai, um médico de Marvin. Foi assim que Louisa e Isabel o conheceram.

– Onde fica Marvin?

– É onde os Bradley têm a sua propriedade. Louisa costuma ali passar o verão. Ela ficou com pena do menino. O dr. Nelson é solteiro e não entendia patavina da educação de uma criança. Foi Louisa quem insistiu para que Larry fosse mandado para St. Paul, e sempre o convidou à sua casa para as férias de Natal. – Elliott encolheu os ombros em gesto bem gaulês e continuou: – Ela devia ter previsto o inevitável resultado.

Tínhamos chegado ao museu e concentramos nossa atenção nos quadros. Mais uma vez fiquei impressionado com o conhecimento e bom gosto de Elliott. Conduzia-me pelas salas como se eu fosse um grupo de turistas, e nenhum professor de arte teria sabido instruir melhor do que ele. Conformei-me, tomando a resolução de voltar sozinho quando pudesse andar a esmo e distrair-me à vontade; depois de algum tempo ele consultou o relógio.

– Vamos indo – disse-me. – Nunca passo mais de uma hora numa galeria de arte; é o máximo a que resiste o nosso poder de apreciação. Voltaremos um outro dia.

Agradeci-lhe calorosamente quando nos separamos. Segui o meu caminho, indubitavelmente mais esclarecido, mas de humor bem mais azedo.

Ao despedir-se de mim, mrs. Bradley me dissera que no dia seguinte Isabel receberia alguns amiguinhos para jantar, pois iriam todos a uma festa; se eu quisesse vir também, depois que eles partissem Elliott e eu poderíamos conversar à vontade.– É um favor que o senhor lhe faz – acrescentou ela. – Elliott viveu fora tanto tempo, que se sente um pouco desambientado aqui. Parece que não encontra ninguém com quem tenha afinidade.

Aceitei e, antes de nos despedirmos nos degraus do museu, Elliott me disse que isso lhe causara prazer.

– Sou uma alma perdida nesta vasta cidade – declarou. – Prometi a Louisa que passaria seis semanas com ela, pois não nos víamos desde 1912, mas estou contando os dias até a minha volta para Paris. É o único lugar do mundo onde um homem civilizado pode viver. Caro amigo, sabe como me olham nestas bandas? Consideram-me uma aberração. Selvagens!

Ri-me e deixei-o.


6

Na noite seguinte, tendo recusado o oferecimento de Elliott de vir buscar-me, cheguei sem risco à casa de mrs. Bradley. Eu fora detido por uma pessoa que viera ver-me e cheguei um pouco atrasado. Quando subi a escada, ouvi tanto barulho vindo da sala de visitas que julguei tratar-se de uma reunião importante; admirei-me ao verificar que éramos, eu inclusive, apenas doze pessoas. Mrs. Bradley estava muito imponente, de vestido de cetim verde e colar de aljôfares em volta do pescoço; e Elliott, no seu bem talhado dinner jacket, apresentava-se elegante como só ele sabia ser. Quando me apertou a mão, todos os perfumes da Arábia penetraram-me pelas narinas. Fui apresentado a um homem troncudo e alto, de rosto vermelho, que não parecia muito à vontade em traje de rigor. Era um tal dr. Nelson, mas naquele momento o nome não me disse nada. O resto do grupo compunha-se de amigos de Isabel, mas os nomes me escaparam assim que os ouvi. As mulheres eram moças e bonitas, os homens, moços e simpáticos. Nenhum deles me impressionou, a não ser talvez um rapaz – e isso por ser ele muito alto e maciço. Devia ter mais de dois metros de altura; ombros largos e fortes. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda branca, de saia comprida que lhe escondia as pernas gordas: o talho do vestido deixava adivinhar que tinha seios bem desenvolvidos; os braços talvez fossem um pouco rechonchudos, mas o pescoço era lindo. Estava animada e de olhos luzentes. Não havia dúvida: era uma rapariga muito bonita e desejável, mas, se não abrisse os olhos, acabaria adquirindo uma corpulência pouco atraente.

À mesa do jantar vi-me entre mrs. Bradley e uma mocinha desenxabida e tímida, que parecia ainda mais jovem do que as outras. Quando tomamos os nossos lugares, para facilitar a conversa mrs. Bradley explicou-me que os avós da minha vizinha moravam em Marvin, e que ela e Isabel haviam sido colegas de escola. Seu nome, o único que guardei, era Sophie. Durante o jantar houve muita brincadeira de um lado ao outro da mesa; todos falavam alto e riam à toa. Pareciam íntimos. Quando minha atenção não estava voltada para a dona da casa, procurei puxar prosa com a minha vizinha, embora sem grande resultado. Era mais quieta que os outros. Não se podia dizer que fosse bonita, mas tinha um rosto engraçado, de narizinho arrebitado, boca larga e olhos de um azul-esverdeado; seu cabelo, penteado com simplicidade, era de um castanho-pálido. Muito magra, com peito quase tão chato como o de um rapaz. Ria das brincadeiras que iam pela mesa, mas de maneira um pouco forçada, como se não achasse tanta graça como queria dar a entender. Pareceu-me que estava fazendo um esforço para se mostrar boa companheira. Não consegui descobrir se era um pouco tola ou apenas muito tímida e, depois de ter tentado inutilmente vários tópicos, por falta de coisa melhor pedi-lhe que me explicasse quem eram os outros convidados.

– Pois bem, o dr. Nelson o senhor conhece – disse-me, indicando o homem maduro que estava à minha frente, do outro lado de mrs. Bradley. – É tutor de Larry e nosso médico em Marvin. Muito inteligente; inventa bugigangas para aviões, de que ninguém quer saber; e, quando não está assim ocupado, bebe.

Ao dizer isso, havia nos seus olhos pálidos um brilho que me fez supor que eu me enganara a seu respeito. Continuou a dizer-me os nomes de toda aquela mocidade, quem eram seus pais e, no caso dos rapazes, que colégio haviam frequentado e em que negócio trabalhavam. Nada de muito esclarecedor.

“Ela é um amor”; ou então, “Ele joga muito bem golfe”.

– E quem é aquele grandalhão de sobrancelhas cerradas?

– Quem?... Oh! aquele é Gray Maturin. Seu pai tem uma casa enorme em Marvin, à beira do rio. É o nosso milionário. Temos muito orgulho dele; dá-nos importância. Maturin, Hobbes, Rayner e Smith. É um dos homens mais ricos de Chicago e Gray é seu único filho.

A lista de nomes fora recitada com tão agradável ironia que lancei a Sophie um olhar indagador. Ela notou-o e corou.

– Conte-me mais alguma coisa de mr. Maturin – pedi.

– Não há nada para contar. É rico. Muito respeitado. Deu a Marvin uma nova igreja, e um milhão de dólares à Universidade de Chicago.

– O filho é um rapagão bonito.

– É correto. Ninguém havia de pensar que seu avô foi um irlandês sem eira nem beira, e sua avó uma garçonete sueca num restaurante qualquer.

Gray Maturin era mais vistoso do que bonito. Tinha um ar rude, inacabado; nariz curto e chato, boca sensual e a pele corada dos irlandeses; grande quantidade de cabelos negros, bem lisos, olhos muito azuis sob as cerradas sobrancelhas. Embora de compleição tão robusta, era muito bem proporcionado e, nu, devia ser um belo tipo de homem. Parecia ter muita força. Sua virilidade era impressionante. Fazia com que Larry, que estava sentado ao seu lado e tinha somente oito ou dez centímetros menos que ele, parecesse insignificante.

– Gray é muito apreciado – disse a minha tímida vizinha. – Conheço várias moças que dariam a vida para agarrá-lo. Mas não têm a mínima probabilidade.

– Por que não?

– O senhor não sabe nada, sabe?

– Como poderia eu saber?

– Ele está cego de paixão por Isabel, e Isabel gosta de Larry.

– Por que é que ele não tenta suplantar o rival?

– Larry é o seu maior amigo.

– Creio que isto complica o caso.

– Sim, quando se têm os elevados princípios de Gray.

Não sei se ela disse isto seriamente, ou se havia na sua voz uma nota de zombaria. Na sua atitude nada havia de impertinente, confiado ou petulante, e, no entanto, tive impressão de que não lhe faltavam nem espírito nem perspicácia. Em que estaria pensando enquanto conversava comigo? Bom, isto eu nunca chegaria a saber. Não havia dúvida de que ela não era senhora de si e ocorreu-me que devia ser filha única, tendo levado vida isolada, em companhia de pessoas muito mais velhas. Havia nela uma modéstia, uma discrição que achei encantadoras; mas, se eu acertara ao imaginar que vivera sozinha, então achei que devia ter tranquilamente observado as pessoas com quem convivia, formando opinião categórica a respeito delas. Nós, de idade madura, raramente suspeitamos com que crueldade, e ao mesmo tempo com que clarividência, os muito moços nos julgam. Olhei de novo dentro daqueles olhos esverdeados.

– Que idade tem você? – perguntei.

– Dezessete.

– Lê muito? – indaguei ao acaso.

Mas, antes que ela me respondesse, mrs. Bradley atraiu minha atenção com uma observação qualquer; logo depois terminou o jantar. Os moços saíram imediatamente para onde tinham que ir; quanto a nós, os quatro restantes, subimos para a sala de visitas.

Fiquei admirado de ter sido convidado para aquela reunião, ao ver que após alguma conversa fiada eles encetaram um assunto que, imaginei, haviam de preferir discutir sozinhos. Fiquei sem saber se seria mais discreto levantar-me e sair ou se, como ouvinte desinteressado, eu lhes seria útil. O ponto discutido era a estranha má vontade de Larry em começar a trabalhar, e que agora vinha à baila devido a um emprego que mr. Maturin, pai do rapaz que eu conhecera ao jantar, lhe oferecera em seu escritório. Era uma bela oportunidade. Com habilidade e perseverança Larry poderia, com o tempo, vir a ganhar muito dinheiro. O jovem Gray Maturin desejava ardentemente que ele aceitasse.

Não me recordo de tudo o que foi dito, mas minha memória reteve o essencial. Quando Larry voltara da França, o dr. Nelson, seu tutor, sugerira que ele fosse para a escola; mas o rapaz recusara. Era natural que desejasse ficar na ociosidade durante algum tempo; passara uma temporada dura, na guerra, e duas vezes recebera ferimentos, embora sem gravidade. O dr. Nelson achava que ele ainda estava sofrendo as consequências do choque, e o descanso parecia indicado até ele ficar completamente restabelecido. Mas as semanas se converteram em meses; já fazia agora mais de um ano que ele despira a farda. Fiquei sabendo que sobressaíra na aviação, tendo ficado em evidência ao voltar para Chicago; assim sendo, vários chefes de firmas lhe tinham oferecido emprego. Larry agradecera, mas recusara. Não deu desculpa, a não ser que ainda não sabia o que queria fazer. Pouco depois ficava noivo de Isabel. Isto não causou surpresa a mrs. Bradley, pois os dois tinham sido inseparáveis durante anos e ela sabia da paixão da filha por Larry. Gostava do rapaz e achava que ele poderia fazer Isabel feliz.

– O caráter dela é mais forte que o dele. Isabel lhe dará exatamente aquilo que lhe falta.

Embora fossem tão moços, mrs. Bradley não se opunha a um casamento imediato, contanto que Larry começasse a trabalhar. Ele tinha um dinheirinho seu; mas, mesmo que tivesse dez vezes mais, ela não cederia nesse ponto. Pelo que pude perceber, ela e Elliott desejavam saber do dr. Nelson quais as intenções de Larry. Queriam que ele usasse sua influência para obrigá-lo a aceitar o emprego que mr. Maturin lhe oferecia.

– Vocês sabem que nunca tive muita autoridade sobre Larry – alegou o médico. – Mesmo quando criança ele sempre fez o que quis.

– Sei disso. Você lhe deu liberdade demais. É um milagre ele ter saído tão bom como é – disse mrs. Bradley.

O dr. Nelson, que estivera bebendo sem cessar, olhou-a com azedume. Seu rosto tornou-se ainda mais rubro.

– Eu era muito ocupado; tinha que cuidar dos meus interesses. Recebi-o porque ele não tinha para onde ir e seu pai era meu amigo. Não era fácil lidar com ele.

– Não sei como você pode dizer isso – replicou secamente mrs. Bradley. – Larry tem um gênio ótimo.

– Que é que a gente pode fazer com um menino que nunca discute, mas faz exatamente o que quer e, quando é repreendido, apenas diz que “sente muito” e deixa que a gente esbraveje à vontade? Se fosse meu filho, eu poderia ter-lhe batido. Mas eu não podia dar num menino que não tinha um único parente no mundo e cujo pai o deixara a meus cuidados por achar que eu seria bom para ele.

– Isto não vem ao caso – disse Elliott um tanto irritado. – A questão é esta: ele já vadiou bastante; agora lhe aparece um bom emprego, onde terá oportunidade de ganhar muito dinheiro; se quiser casar-se com Isabel, terá que aceitá-lo.

– Larry precisa ver que, no estado do mundo atual, um homem tem que trabalhar – interveio mrs. Bradley.

– Ele está agora em perfeitas condições físicas. Todos nós sabemos que, terminada a guerra entre os estados, muitos homens nunca mais trabalharam depois que voltaram para casa. Eram um fardo para a família e inúteis à comunidade.

Neste momento entrei na conversa.

– Mas que razão apresenta ele para recusar as várias ofertas que lhe têm sido feitas?

– Nenhuma; a não ser que não lhe agradam.

– Mas ele não quer fazer nada?

– É o que parece.

O dr. Nelson serviu-se de outro uísque. Tomou um longo trago e depois olhou para os seus dois amigos.

– Querem saber qual a minha impressão? Não digo que eu seja grande conhecedor da natureza humana, mas, em todo caso, depois de ter clinicado durante trinta anos, creio entender um pouco do assunto. A guerra teve um efeito qualquer sobre Larry. Ele não voltou o mesmo. Não que esteja somente mais velho; aconteceu alguma coisa que modificou a sua personalidade.

– Que espécie de coisa? – indaguei.

– Não sei dizer. Ele é muito reservado quanto às suas peripécias na guerra. – O dr. Nelson virou-se para mrs. Bradley e perguntou: – Falou alguma vez sobre isso com você, Louisa?

Ela sacudiu a cabeça.

– Não. Logo que chegou, tentamos ver se nos descrevia algumas das suas aventuras, mas ele apenas riu daquele seu jeito e disse que nada tinha para contar. Não falou sobre isso nem mesmo com Isabel. Ela tentou várias vezes, mas não lhe arrancou palavra.

A conversa continuou desta maneira pouco satisfatória e dali a pouco, consultando o seu relógio, o dr. Nelson declarou que tinha que ir embora. Fiz menção de sair com ele, mas Elliott insistiu para que eu ficasse. Depois que o importunado com seus negócios particulares, dizendo que receava que eu estivesse me chateando.

– Mas o senhor compreende que isto me preocupa enormemente – terminou ela.

– Mr. Maugham é muito discreto, Louisa; você não precisa ter medo de confiar nele. Não creio que Bob Nelson e Larry sejam muito íntimos, e há certas coisas que Louisa e eu achamos preferível não falar na presença dele.

– Elliott!

– Você já lhe contou tanta coisa que é melhor contar-lhe o resto. – E virando-se para mim: – Não sei se você notou Gray Maturin ao jantar?

– É tão grande que não pode passar despercebido – respondi.

– É um dos apaixonados de Isabel. Cumulou-a de atenções durante toda a ausência de Larry. Ela gosta dele e, se a guerra se tivesse prolongado, é bem provável que acabassem noivos. Gray pediu-a em casamento. Isabel não aceitou, nem recusou. Louisa desconfiou que ela não queria decidir-se antes da volta de Larry.

– Como é que ele não foi para a guerra? – perguntei.

– Ele forçou o coração jogando futebol. Nada de sério, mas não foi aceito. Em todo caso, depois que Larry voltou, não houve mais esperanças para ele. Isabel deu-lhe um fora definitivo.

Eu não sabia que comentário esperavam que eu fizesse e, portanto, preferi calar-me. Elliott continuou a falar. Com sua distinta aparência e pronúncia oxfordiana, ele mais parecia um alto funcionário do Ministério da Guerra.

– Claro que Larry é um ótimo rapaz, e foi muito correto da sua parte fazer tanto empenho em se alistar, mas sou profundo conhecedor do gênero humano... – Aqui Elliott teve um sorrizinho astuto e ousou a única referência que jamais lhe ouvi ao fato de ter feito fortuna negociando com objetos de arte. – Do contrário eu não teria hoje uma boa quantiazinha em ações do governo. E minha opinião é que Larry nunca chegará a ser alguém. Não tem dinheiro, por assim dizer, nem posição. Agora, com Gray Maturin o caso é outro. Ele tem um bom e antigo nome irlandês. Houve um bispo na família, um dramaturgo, vários militares que se distinguiram e alguns intelectuais.

– Como é que você chegou a saber de tudo isto? – perguntei.

– São coisas que a gente fica sabendo – respondeu ele em tom despreocupado. – Para ser exato, estive dando uma olhada no Dictionary of National Biography, um dia desses, no clube, e dei com o nome por acaso.

Achei que não era da minha conta repetir o que a minha vizinha, ao jantar, me contara do irlandês sem eira nem beira e da garçonete sueca que tinham sido avós de Gray. Elliott prosseguiu:

– Há anos que conhecemos Henry Maturin. É um homem muito direito e muito rico. Gray vai herdar o melhor escritório de corretagens de Chicago. Tem o mundo a seus pés. Quer casar-se com Isabel e não se pode negar que, para ela, seria um ótimo casamento. Sou francamente favorável a ele, e Louisa concorda comigo.

– Você esteve tanto tempo fora da América, Elliott, que se esqueceu de que neste país as moças não se casam só para satisfazer suas mães e tios – disse mrs. Bradley com um sorriso árido.

– Isto não é motivo de orgulho, Louisa – replicou Elliott bruscamente. – Graças a uma experiência de trinta anos, posso asseverar-lhe que o casamento que é considerado sob o ponto de vista de posição, fortuna e igualdade de meio leva vantagem sobre o casamento de amor. Na França, que afinal de contas é o único país civilizado do mundo, Isabel não hesitaria em casar-se com Gray; ao fim de um ou dois anos, se a tal se sentisse inclinada, tornar-se-ia amante de Larry; Gray instalaria uma atriz de fama num luxuoso apartamento, e todos ficariam satisfeitos.

Mrs. Bradley não era nenhuma tola. Fitou o irmão com ar de brejeira ironia e replicou:

– A questão, Elliott, é que, como as companhias teatrais de Nova York só ficam aqui durante certo tempo, Gray não poderia conservar as inquilinas do seu luxuoso apartamento a não ser por prazo limitado. Isto seria, certamente, um inconveniente para todos os interessados.

Elliott sorriu.

– Gray poderia comprar uma cadeira na Bolsa de Nova York. Afinal de contas, se uma pessoa tem que viver na América, não vejo razão para viver noutro lugar a não ser em Nova York.

Saí logo depois; mas antes, não sei por que cargas-d’água, Elliott me perguntou se eu queria almoçar com ele para ficar conhecendo os Maturin, pai e filho. – Henry é o melhor tipo do negociante americano

– disse ele. – Você precisa conhecê-lo. É quem há anos aplica o nosso dinheiro.

Eu não tinha muita vontade de aceitar, mas, faltando-me motivo para a recusa, respondi que iria com prazer.


7

Eu fora admitido, pela minha permanência em Chicago, como sócio temporário de um clube que contava com uma boa biblioteca; na manhã seguinte fui até lá dar uma espiada numa ou duas revistas universitárias, que quem não é assinante sempre tem dificuldade em obter. Era cedo e lá só havia mais uma pessoa, sentada numa vasta poltrona de couro e parecendo absorta na leitura. Foi com surpresa que reconheci Larry. Era a última pessoa que eu esperaria encontrar em tal lugar. Ergueu os olhos quando passei por ele, reconheceu-me e fez menção de se levantar.

– Não se incomode – disse eu. E depois, quase que automaticamente: – Que está lendo?

– Um livro – replicou ele, mas com um sorriso tão simpático que a secura da resposta não podia absolutamente melindrar.

Fechou o livro e, fitando-me com aqueles seus olhos singularmente opacos, segurou-o de modo a não me deixar ver o título.

– Divertiu-se ontem à noite? – perguntei.

– Muitíssimo. Cheguei em casa às cinco da manhã.

– É uma façanha estar aqui tão cedo.

– Venho muito aqui. Em geral a esta hora tenho a sala à minha disposição.

– Eu não o incomodarei.

– O senhor não me está incomodando – disse ele, sorrindo de novo; ocorreu-me então que o seu sorriso era de uma extraordinária doçura. Não animado, nem vivo; era um sorriso que parecia iluminar-lhe o rosto com alguma luz interior. Ele estava sentado numa alcova formada por prateleiras salientes. Apoiou a mão no braço da poltrona a seu lado e prosseguiu: – Não quer sentar-se um pouco?

– Está certo.

Larry entregou-me o livro que segurava.

– Era isto que eu estava lendo.

Vi que se tratava de Principles of Psychology, de William James. É, naturalmente, uma obra clássica, e importante na história da ciência de que se ocupa; de agradável leitura, além do mais, mas não era absolutamente o tipo de livro que eu esperaria ver nas mãos de pessoa tão jovem, um aviador, que estivera dançando até as cinco da manhã.

– Por que está lendo isto? – perguntei.

– Sou muito ignorante.

– É também muito moço – repliquei sorrindo.

Larry ficou calado durante tanto tempo que comecei a achar o silêncio constrangedor e estive a ponto de me levantar para ir à procura das revistas que tinham me levado ali. Mas dominava-me a impressão de que ele queria dizer alguma coisa. Tinha o olhar perdido no espaço, seu rosto era grave e atento e ele parecia meditar. Esperei. Estava curioso por saber do que se tratava. Quando ele falou, foi como se continuasse a conversa, não parecendo ter notado o prolongado silêncio.

– Quando voltei da França, queriam todos que eu fosse para o colégio. Impossível. Depois de tudo por que passei, compreendi que não poderia voltar para a escola. Além do mais, eu pouco aprendera na escola preparatória. Senti que não me convinha a vida de calouro. Eles não teriam gostado de mim. Eu não queria fingir aquilo que não sentia. E não achei que os professores pudessem ensinar-me as coisas que eu desejava conhecer.

– Naturalmente reconheço que isto não é de minha conta, mas não sei se você teve razão – disse eu. – Creio que compreendo o que quer dizer e acho que, depois de dois anos de guerra, teria realmente sido aborrecido voltar a ser pouco mais que um colegial, pois todo primeiro e segundanista não passa disto. Não posso acreditar que eles não teriam gostado de você. Não conheço bem as universidades daqui, mas duvido que os estudantes americanos sejam muito diferentes dos ingleses; talvez um pouco mais barulhentos e mais brincalhões, mas no fundo muito corretos e sensatos; e ouvi dizer que, se um colega não quer levar a vida deles, estão plenamente de acordo, se esse colega tiver um pouco de tato, em deixá-lo seguir seu caminho. Não estive em Cambridge, como meus irmãos. Tive essa oportunidade, mas desprezei-a; eu queria correr mundo. Até hoje me arrependo. Creio que isso me teria evitado muitos erros. A gente aprende mais depressa sob a orientação de professores experientes. Perdemos muito tempo enveredando por becos sem saída, quando não temos ninguém que nos conduza.

– Talvez o senhor tenha razão. Mas não me importo de errar. É possível que num desses becos sem saída eu encontre alguma coisa do que procuro.

– O que é que você procura?

Ele hesitou durante alguns segundos.

– Aí está. Ainda não sei ao certo.

Fiquei em silêncio, pois não parecia haver resposta para isso.

Eu, que desde muito cedo sempre soube o que quis, senti-me ligeiramente impacientado. Mas dominei-me, pois, devido ao que só posso chamar de intuição, senti que na alma daquele rapaz se travava uma luta obscura – não sei se de pensamentos mal esboçados ou emoções confusamente sentidas – que determinava uma inquietação que o impelia nem ele mesmo sabia para onde. Senti-me estranhamente condoído dele. Nunca o ouvira falar muito, e só agora notava como a sua voz era melodiosa. Muito convincente. Como se fosse um bálsamo. Ao considerar essa sua qualidade, o sorriso simpático e os expressivos olhos negros, achei perfeitamente compreensível que Isabel o amasse. Havia realmente nele qualquer coisa que atraía. Larry virou a cabeça e olhou-me sem constrangimento, mas com expressão ao mesmo tempo perscrutadora e divertida.

– Será que tenho razão ao imaginar que ontem, depois que saímos para a festa, ficaram falando de mim?

– Durante algum tempo.

– Achei que foi por isso que insistiram tanto para que o tio Bob fosse jantar. Ele detesta sair de casa.

– Ouvi dizer que você teve oferta de um bom emprego.

– Ótimo.

– Vai aceitá-lo?

– Acho que não.

– Por quê?

– Não tenho vontade.

Eu estava me metendo no que não era da minha conta, mas tive a impressão de que, justamente pelo fato de eu ser um desconhecido, e de um país estrangeiro, Larry não tinha má vontade em discutir o caso comigo.

– Bom, você sabe que, quando uma pessoa não consegue fazer nada, vira escritor – disse eu com uma risadinha.

– Não tenho talento.

– Mas, então, que pretende fazer?

Ele me atirou um dos seus sorrisos radiosos, fascinantes.

– Vadiar – respondeu. Não pude deixar de rir.

– Não me consta que Chicago seja o melhor lugar para isso – repliquei. – Em todo caso, deixo-o à sua leitura. Quero dar uma olhada na Yale Quarterly.

Levantei-me. Quando saí da biblioteca, Larry ainda estava absorto no livro de William James. Almocei sozinho no clube e, como a biblioteca era lugar sossegado, fui para lá fumar o meu charuto e distrair-me por uma ou duas horas, lendo e escrevendo cartas. Fiquei admirado por ver Larry ainda mergulhado na leitura. Pareceu-me que não se movera desde que eu o deixara. Quando saí, às quatro horas, ainda lá estava. Fiquei impressionado com o seu poder de concentração. Ele não me vira entrar ou sair. Tendo muito que fazer durante a tarde, não voltei ao Blackstone senão à hora de me vestir para ir a um jantar a que fora convidado. No caminho tive um acesso de curiosidade. Entrei de novo no clube e fui até a biblioteca. Havia ali, agora, muita gente, lendo jornais e outras coisas. Larry continuava na mesma cadeira, atento no mesmo livro. Esquisito!


8

No dia seguinte Elliott me convidou para almoçar no Palmer House, para encontrar-me com o velho Maturin e seu filho. Éramos somente quatro. Henry Maturin era um homem quase tão grande como seu filho, com um carnudo rosto vermelho e maxilar pesado; tinha o mesmo nariz chato, agressivo, mas seus olhos eram menores que os de Gray, não tão azuis, e extraordinariamente sagazes. Embora não pudesse ter mais de cinquenta anos, parecia ter dez anos mais; seus cabelos, que rapidamente se aproximavam da calvície, eram brancos como a neve. À primeira vista não era simpático. Dava a impressão de ter durante anos vivido bem demais, e pareceu-me um sujeito brutal, inteligente e competente e que, pelo menos em matéria de negócios, devia ser implacável.

A princípio ele pouco falou e ocorreu-me que estava tomando o meu pulso. Não pude deixar de perceber que não levava Elliott muito a sério. Gray, amável e delicado, ficou quase que em completo silêncio e a reunião teria sido um fracasso se, com seu incomparável tato social, Elliott não tivesse mantido uma conversa fácil e agradável. Achei que, em outros tempos, ele devia ter adquirido certa experiência lidando com negociantes do Oeste Central, que necessitavam de persuasão para pagar um preço exorbitante por alguma obra de arte. Dali a pouco mr. Maturin começou a sentir-se mais à vontade, tendo feito uma ou duas observações que indicavam que ele era mais vivo do que parecia e tinha mesmo um árido senso do humor. Durante algum tempo a conversa girou sobre títulos e ações. Eu teria ficado admirado por ver como Elliott entendia do assunto, se há muito já não tivesse percebido que, apesar de todas as suas bobices, ele não era nenhum tolo. Foi aí que mr. Maturin observou:

– Recebi hoje uma carta do amigo de Gray, Larry Darrell.

– Você não me contou nada, papai – disse Gray. Mr. Maturin voltou-se para mim.

– O senhor conhece Larry, não conhece? – Inclinei a cabeça e ele continuou: – Gray convenceu-me a convidá-lo para trabalhar conosco. São muito amigos. Gray tem dele uma opinião muito elevada.

– O que foi que ele disse, papai?

– Agradeceu-me. Declarou que sabia que não podia haver melhor oportunidade para um rapaz e que refletira seriamente sobre o assunto, chegando à conclusão de que iria decepcionar-me e que era preferível recusar.

– É uma grande tolice da parte dele – disse Elliott.

– De fato – concordou mr. Maturin.

– Sinto muito, papai – disse Gray. – Teria sido ótimo trabalharmos juntos.

– A gente pode conduzir um cavalo ao rio, mas não pode obrigá-lo a beber.

Ao dizer isto, mr. Maturin olhou para o filho e a expressão dos seus olhos suavizou-se. Vi que havia outra faceta no caráter daquele duro negociante; ele adorava aquele seu filhão desajeitado. Virou-se de novo para mim:

– Sabe de uma coisa, no domingo este rapaz deu a volta em dois abaixo do par. Ele me bateu sete e seis. Tive vontade de abrir-lhe a cabeça com o meu taco. E pensar que fui eu que lhe ensinei golfe!

O homem não cabia em si de orgulho. Comecei a gostar dele.

– Tive muita sorte, papai.

– Absolutamente. Acha então que é sorte sair da banca e colocar a bola a seis polegadas da bandeira? No mínimo trinta e oito jardas, aquela batida. Quero que no próximo ano ele tome parte no campeonato de amadores.

– Não vou ter tempo para isso.

– Sou eu o seu patrão, não sou?

– Se é!... O barulho que você faz quando chego um minuto atrasado no escritório!

Mr. Maturin deu uma risadinha e virou-se para mim.

– Ele está querendo me fazer de tirano. Não acredite. O meu negócio sou eu, pois meus sócios não prestam para nada, e tenho muito orgulho do meu negócio. Fiz este meu filho começar de baixo, e espero que ele vá subindo por merecimento, como qualquer outro empregado, de momento oportuno. Um escritório como o nosso é uma grande responsabilidade. Há trinta anos que cuido do emprego de capital de alguns dos meus clientes e eles têm confiança em mim. Para falar com franqueza, prefiro perder o meu dinheiro a vê-los perder o seu.

Gray deu uma risada.

– Um destes dias, quando uma velhota veio procurá-lo para empregar mil dólares num projeto fantástico que o seu pastor lhe recomendara, ele se recusou a aceitar a incumbência; e, quando a mulher insistiu, passou-lhe uma tal descompostura que ela foi embora chorando. Depois ele chamou o pastor e passou-lhe também um sabão.

– Falam muito mal da nossa classe, mas há corretores e corretores – disse mr. Maturin. – Não quero que meus clientes tenham prejuízo; quero que tenham lucro, mas, pela atitude de muitos, a gente pensaria que estão loucos para se ver livres do último centavo que possuem!


– Então, que tal é ele? – perguntou-me Elliott enquanto caminhávamos, depois que os Maturin nos deixaram para voltar ao escritório.

– Sempre tenho prazer em conhecer tipos novos. Achei enternecedora a mútua afeição entre pai e filho. Não creio que isto seja muito comum na Inglaterra.

– Ele adora aquele rapaz. É um sujeito esquisito. Saiba que é verdade o que disse a respeito dos seus clientes.

Toma conta das economias de centenas de velhas, militares aposentados e pastores. Na minha opinião isso dá mais trabalho do que lucro, mas Maturin se orgulha da confiança que depositam nele. Mas, quando se trata de um negócio de vulto e ele tem que lutar contra poderosos interesses, não há homem mais duro. Inexorável. Piedade é palavra que então desconhece. Quer o seu lucro, e não há obstáculo que o detenha. Se uma pessoa pisar nos seus calos, não somente ele a arruinará, mas ainda achará graça à situação.

Ao chegar em casa Elliott contou a mrs. Bradley que Larry recusara a oferta de Henry Maturin. Isabel fora almoçar com algumas amiguinhas e chegou quando ainda discutiam o assunto. Deram-lhe a notícia. Pelo que Elliott me repetiu da cena, cheguei à conclusão de que ele se exprimira com grande eloquência. Embora tivesse vivido na ociosidade naqueles últimos dez anos, não tendo o seu trabalho anterior, que lhe valera a fortuna, sido dos mais árduos, Elliott era de opinião que, para o bem da humanidade, o trabalho era essencial. Larry era um rapazinho como qualquer outro, sem nenhuma importância social, e não havia absolutamente razão para que não se conformasse com aquele louvável hábito do seu país. Era evidente, para um homem de visão como Elliott, que a América entrava numa época de prosperidade como jamais conhecera. Larry tinha a oportunidade de participar dessa prosperidade e, se fosse perseverante, quando chegasse aos quarenta anos, poderia ser muitas vezes milionário. Se aí então quisesse aposentar-se e viver como um cavalheiro, digamos em Paris, com um apartamento na Avenue du Bois e um castelo em Touraine, ele (Elliott) nada teria a dizer. Mas Louisa Bradley foi mais concisa e mais categórica. Disse:

– Se ele gosta de você, deve estar disposto a trabalhar para você.

Não sei que resposta Isabel deu a isso, mas teve o bom senso de reconhecer que os mais velhos estavam com a razão. Todos os rapazes de sua roda estavam estudando para uma profissão ou trabalhando em algum escritório. Larry não podia pretender passar a vida inteira dormindo sobre suas glórias de aviador. A guerra acabara, estavam todos fartos dela e aflitos por esquecê-la. A conversa teve como resultado a promessa de Isabel de discutir o assunto com Larry de uma vez por todas. Mrs. Bradley sugeriu que ela pedisse ao rapaz que a levasse de carro até Marvin. Pretendia encomendar cortinas novas para a sala de visitas e perdera as dimensões, querendo portanto que Isabel as tomasse novamente.

– Vocês podem almoçar na casa de Bob Nelson – concluiu.

– Tenho ideia melhor – disse Elliott. – Ponha no carro uma cesta de piquenique; eles poderão comer na varanda e conversar depois do almoço.

– Seria divertido – disse Isabel.

– Há poucas coisas no mundo tão agradáveis como um almoço de piquenique saboreado com todo conforto – declarou Elliott sentenciosamente. – A velha duquesa d’Uzès costumava dizer que, em tais circunstâncias, o macho mais recalcitrante se torna sugestionável. Que é que você pretende dar-lhes para o almoço?

– Ovos cozidos e sanduíches de galinha.

– Absurdo. Ninguém pode fazer um piquenique sem pâté de foie gras. Eles precisam levar, em primeiro lugar, camarões com caril; peito de galinha em gelatina, com uma salada de alfaces tenras, que eu mesmo prepararei; e depois do pâté, se você quiser, como concessão ao hábito nacional, uma torta de maçã.

– Eles levarão ovos cozidos e sanduíches de galinha, Elliott – declarou mrs. Bradley em tom decidido.

– Pois bem, tome nota do que digo: vai ser um fracasso e a culpa será sua.

– Larry come muito pouco, tio Elliott – interveio Isabel. – E creio que nem nota o que come.

– Espero que você não considere isto uma qualidade, minha pobre menina – replicou ele.

Mas aquilo que mrs. Bradley dissera que os dois levariam foi exatamente o que levaram. Ao contar-me o resultado da excursão, Elliott encolheu os ombros em gesto muito francês.

– Bem que as preveni de que seria um fracasso. Supliquei a Louisa que enfiasse na cesta uma garrafa de Montrachet, que eu lhe enviara pouco antes da guerra, mas ela não me deu ouvidos. Levaram uma garrafa térmica com café, e nada mais. Que se poderia então esperar?

Parece que Louisa Bradley e Elliott estavam sozinhos na sala quando ouviram o carro parar à porta e Isabel entrar em casa. Caíra a tarde e as cortinas estavam descidas. Elliott estava à vontade numa poltrona, lendo um romance, e mrs. Bradley trabalhava numa tapeçaria que ia servir de biombo para a lareira. Isabel subira diretamente para o quarto. Elliott fitara a irmã por cima dos óculos.

– Com certeza ela foi tirar o chapéu – disse mrs. Bradley. – Daqui a pouco vai descer.

Mas passaram-se vários minutos sem que Isabel viesse.

– Talvez ela esteja cansada; com certeza deitou-se por um pouco.

– Não acha que seria mais natural Larry ter entrado?

– Não seja irritante, Elliott.

– Bom, isso não é comigo, é com você.

Elliott voltou à sua leitura. Mrs. Bradley recomeçou a bordar.

Mas depois de se ter passado meia hora ela se levantou bruscamente.

– Acho melhor eu subir para ver se ela está bem. Se estiver descansando, não a incomodarei.

Saiu da sala, mas voltou logo em seguida.

– Ela esteve chorando. Larry vai para Paris; pretende ficar ausente dois anos. Isabel prometeu esperar por ele.

– Por que motivo deseja ele ir para Paris?

– Não adianta fazer-me perguntas, Elliott. Não sei. Isabel não me quis contar nada. Diz que compreende e que não quer ser um estorvo para ele. Eu disse: “Se Larry está disposto a deixá-la por dois anos, Isabel, então seu amor não pode ser muito forte”. E ela respondeu: “Paciência. O essencial é que eu o amo muito”. “Mesmo depois do que aconteceu hoje?”, perguntei. “O dia de hoje fez com que eu o amasse mais ainda. E ele também me ama, mamãe; tenho certeza disso.”

Elliott refletiu durante alguns instantes.

– E que vai acontecer depois desses dois anos?

– Já lhe disse que não sei, Elliott.

– Não acha o arranjo pouco satisfatório?

– Acho.

– Só resta um consolo: é que são ambos muito moços. Não lhes fará mal esperar dois anos, e nesse espaço de tempo muita coisa pode acontecer.

Concordaram em que seria preferível deixar Isabel em paz, pois iam jantar fora aquela noite.

– Não quero perturbá-la – disse mrs. Bradley. – Todo mundo ficaria fazendo conjeturas se ela aparecesse de olhos inchados.

Mas no dia seguinte, ao almoço, que foi tomado na intimidade, de novo mrs. Bradley tocou no assunto. Mas pouco arrancou de Isabel.

– Não há realmente quase mais nada para contar além do que lhe contei ontem à noite, mamãe – disse ela.

– Mas que é que Larry pretende fazer em Paris? Isabel sorriu, pois sabia quanto a resposta ia parecer absurda à sua mãe.

– Vadiar.

– Vadiar? Que quer você dizer com isso?

– Foi o que ele me disse.

– Francamente, você me faz perder a paciência. Se tivesse um pouco de energia, teria desmanchado o noivado ali na hora. Ele está brincando com você.

Isabel olhou para o anel que trazia na mão esquerda.

– Que hei de fazer? Eu o amo.

Neste momento Elliott entrou na conversa. Discutiu o assunto com o seu tato habitual. “Não como um tio, meu caro amigo, mas como um homem vivido que se dirigisse a uma donzela inexperiente.” Mas não obteve melhores resultados. A impressão que tive foi que, delicadamente mas com firmeza, Isabel lhe dissera que não se metesse no que não era da sua conta. Elliott me repetiu tudo isto no mesmo dia, um pouco mais tarde, quando estávamos ambos na saleta que eu tinha no Blackstone.

– Claro que Louisa tem razão – disse ele. – É muito pouco satisfatório, mas é o que acontece quando deixam que os moços resolvam um casamento que só tem por base uma afeição mútua. Eu disse a Louisa que não se preocupe; creio que as coisas se resolverão melhor do que ela espera. Com Larry no estrangeiro e o jovem Maturin sempre presente... Bom, se é que entendo alguma coisa da psicologia humana, não é difícil prever-se o resultado. Aos dezoito anos nossas emoções são violentas, mas pouco duradouras.

– Você hoje está filósofo, Elliott – comentei sorrindo.

– Não foi à toa que li o meu La Rochefoucauld. Você conhece Chicago; eles se encontrarão constantemente. Uma moça fica lisonjeada por ter alguém que lhe faça a corte o tempo todo e, quando ela sabe que não há uma de suas amigas que não ficaria radiante de poder casar-se com ele... Pois bem, diga-me lá: acha natural que resista à tentação de suplantar todas as outras? Explico-me melhor: é o mesmo que você ir a uma festa, sabendo que vai se aborrecer à grande e que lá só servirão limonada e biscoitos; mas você vai porque sabe que seus amigos dariam a vida por ir, e no entanto não foram convidados.

– Quando é que Larry pretende partir?

– Não sei. Creio que ainda não foi resolvido. – Elliott sacou do bolso uma cigarreira de ouro e platina e tirou de dentro um cigarro egípcio. Nada de Fátimas, para ele, ou Chesterfields ou Camels, ou Lucky Strikes. Fitou-me com um sorriso repleto de insinuações e continuou:

– Claro que eu não diria isso a Louisa, mas a você não me importo de confessar que no fundo compreendo o ponto de vista do rapazinho. Parece que ele tomou um gostinho de Paris durante a guerra, e não o censuro por se sentir atraído pela única cidade do mundo onde um homem civilizado pode viver. É moço e com certeza quer divertir-se um pouco, antes de se assentar na vida de casado. Muito natural e muito certo. Olharei por ele. Apresentá-lo-ei na boa sociedade; ele tem maneiras finas e, com uma ou duas indiretas que eu lhe der, ficará mais apresentável; garanto que posso mostrar-lhe um aspecto da vida na França que a bem poucos americanos é dado conhecer. Creia-me, caro amigo, é mais fácil ao tipo comum de americano entrar no reino dos céus do que no Boulevard St. Germain. Larry tem vinte anos e é simpático. Não será difícil arranjar-lhe uma ligação com uma mulher mais velha. Isto o formaria. Sempre achei que não há melhor educação para um rapaz do que se tornar amante de uma mulher de certa idade e, naturalmente, se ela for do tipo de mulher que tenho em vista, uma femme du monde, você compreende, isto imediatamente lhe daria uma posição em Paris.

– Você disse isso a mrs. Bradley? – perguntei sorrindo. Elliott deu uma risadinha.

– Meu caro amigo, se há uma coisa de que me orgulho neste mundo é do meu tato. Não lhe disse absolutamente nada. Ela não entenderia, a coitadinha. Está aí uma coisa que jamais compreendi em Louisa; embora tenha passado metade de sua vida na diplomacia, residindo em inúmeras capitais do mundo, ela se conservou irremediavelmente americana.


9

Aquela noite fui jantar em Lake Shore Drive, numa enorme casa de pedra que dava a impressão de que o arquiteto iniciara a construção de um castelo medieval e depois, mudando repentinamente de ideia, resolvera transformá-lo em chalé suíço. Era uma reunião grande e, quando entrei na vasta e suntuosa sala de visitas, cheia de estátuas, palmeiras, candelabros, quadros célebres e pesadíssima mobília, fiquei satisfeito por ver que pelo menos algumas das pessoas presentes eu conhecia. Henry Maturin apresentou-me à sua magra, pouco interessante e frágil esposa. Cumprimentei mrs. Bradley e sua filha. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda vermelha que dava realce aos seus cabelos escuros e olhos castanhos. Parecia muito animada e ninguém diria que acabara de ter um grande aborrecimento. Conversava alegremente com dois ou três rapazes, Gray entre eles, que a cercavam. Ao jantar sentou-se a outra mesa e não pude vê-la; mas mais tarde, quando nós, homens, depois de termos nos eternizado nos nossos cafés, licores e cigarros, voltamos para a sala de visitas e tive oportunidade de falar-lhe. Eu a conhecia muito pouco para tocar diretamente no assunto a que Elliott se referira, mas tinha alguma coisa para contar-lhe, que, achei, iria causar-lhe prazer.

– Vi o seu namorado no clube, há poucos dias – disse eu despreocupadamente.

– Ah! viu?...

Seu tom era tão despreocupado quanto o meu, mas percebi que ela ficara imediatamente alerta. Seus olhos adquiriram uma expressão vigilante e creio ter notado neles a sombra da apreensão.

– Ele estava lendo na biblioteca. Fiquei impressionadíssimo com o seu poder de concentração. Lia quando cheguei, pouco depois das dez, lia quando apareci depois do almoço, e ainda estava lendo quando lá voltei à hora do jantar. Não creio que tenha se levantado da cadeira durante a maior parte de um espaço de dez horas.

– O que ele estava lendo?

– Principles of Psychology de William James.

Isabel baixou os olhos para que eu não pudesse ver a impressão que isso lhe causara, mas pareceu-me que ela ficara ao mesmo tempo perplexa e aliviada. Neste momento o dono da casa veio chamar-me para o bridge; quando o jogo acabou, Isabel e sua mãe já tinham ido para casa.


10

Dois dias mais tarde fui despedir-me de mrs. Bradley e Elliott. Encontrei-os tomando chá. Logo depois Isabel apareceu. Falamos da minha próxima viagem, agradeci-lhes as gentilezas que me tinham dispensado durante minha permanência em Chicago, e depois de um prazo regular levantei-me para partir.

– Vou com o senhor até a drugstore – disse Isabel. – Lembrei-me agora que tenho uma compra a fazer.

As últimas palavras que mrs. Bradley me disse foram: “O senhor dará lembranças minhas à querida rainha Margherita, não é?”.

Eu desistira de procurar convencê-la de que não conhecia aquela augusta personagem, e mais que depressa respondi que lhe faria a vontade.

Quando ganhamos a rua, Isabel lançou-me de soslaio um olhar sorridente.

– O senhor acha que poderia tomar um ice-cream-soda? – perguntou-me.

– Só experimentando – respondi prudentemente. Isabel não falou até chegarmos à drugstore e eu, por nada ter a dizer, também fiquei em silêncio. Entramos e tomamos uma mesa, sentando-nos em cadeiras com encosto de ferro forjado e pés no mesmo estilo. Muito pouco confortáveis. Encomendei dois ice-cream-soda. Algumas pessoas faziam compras diante dos balcões; dois ou três casais, sentados a outras mesas, só pareciam atentos aos seus interesses; estávamos, pois, por assim dizer, sozinhos. Acendi um cigarro e esperei, observando Isabel que, com aparente satisfação, chupava o seu refresco por meio de uma longa palhinha. Pareceu-me nervosa.

– Eu queria falar com o senhor – disse-me bruscamente.

– Foi o que me pareceu – respondi sorrindo.

Ela me fitou, pensativa, durante um ou dois minutos.

– Por que motivo me disse aquilo de Larry a noite retrasada na casa dos Satterthwaites?

– Achei que lhe ia interessar. Ocorreu-me que talvez você não soubesse o que ele queria dizer com “vadiar”.

– Tio Elliott é um linguarudo. Quando me disse que ia ao Blackstone dar uma perobinha com o senhor, logo vi que ia contar-lhe tudo.

– Eu o conheço há muitos anos, sabe. Ele tem prazer em comentar a vida alheia.

– É verdade – disse ela, com um sorriso apenas esboçado. Fitou-me atentamente, com expressão séria no olhar. – Que é que acha de Larry?

– Só o vi três vezes. Parece-me muito bom rapaz.

– Só isso?

Havia uma nota de tristeza na voz dela.

– Não; não é. Fica difícil eu dar opinião; você vê, conheço-o há muito pouco tempo. Claro que é simpático. Há nele qualquer coisa de modesto, amável e suave, que é deveras atraente. E é muito senhor de si, considerando-se a sua mocidade. Não se parece com nenhum dos rapazes que fiquei conhecendo aqui.

Enquanto eu assim desajeitadamente procurava dar forma a uma impressão ainda confusa no meu pensamento, Isabel me fitava atentamente. Quando terminei, ela soltou um suspirozinho, como que aliviada, e lançou-me um sorriso encantador, meio maroto.

– O tio Elliott diz que muitas vezes tem ficado admirado do seu dom de observação, mr. Maugham. Diz que pouca coisa lhe escapa, mas que a sua maior qualidade como escritor é o seu bom senso.

– Conheço uma qualidade mais apreciável – repliquei secamente. – Talento, por exemplo.

– Sabe, não tenho ninguém com quem discutir o meu caso. Mamãe só enxerga as coisas sob o seu ponto de vista. Quer garantir o meu futuro.

– É mais que natural, não é?

– E o tio Elliott só vê o lado social. Minhas amigas, refiro-me às da minha geração, acham Larry muito pouco interessante. Isto dói terrivelmente.

– Claro.

– Não digo que elas não sejam gentis com ele. Ninguém pode deixar de ser gentil com Larry. Mas não o levam a sério. Fazem muita troça dele e ficam exasperadas por ver que ele não faz caso. Larry apenas ri. O senhor sabe em que pé estão as coisas atualmente?

– Só sei o que Elliott me contou.

– Posso contar-lhe exatamente o que se passou quando fomos a Marvin?

– Claro.

Consegui reconstruir o episódio que Isabel me descreveu, em parte pela lembrança que tenho do que ela me disse naquele dia, e em parte acudido pela imaginação. Mas foi longa a conversa entre ela e Larry e não duvido que tenham dito muito mais do que pretendo agora relatar. Creio que, como acontece com todo mundo nessas ocasiões, eles não somente disseram muita coisa que não vinha ao caso, mas repetiram várias vezes as mesmas frases.

Quando se levantou, naquele dia, ao ver a beleza da manhã Isabel telefonou a Larry, dizendo que sua mãe queria que ela fosse até Marvin, e pedindo-lhe que a levasse de carro. Tomara a precaução de acrescentar uma garrafa térmica, de martíni, à de café que sua mãe ordenara a Eugene que pusesse na cesta. O carro era novo e Larry tinha orgulho dele. Gostava de guiar depressa, e a velocidade os deixou muito animados. Chegando a Marvin, Isabel mediu as cortinas que deviam ser substituídas, enquanto Larry ia anotando os números. Depois prepararam o almoço na varanda. Esta era protegida contra todo e qualquer vento, e o sol do verão de S. Martinho aquecia agradavelmente. A casa, à beira de uma estrada poeirenta, nada tinha da elegância das velhas casas de madeira da Nova Inglaterra e, mesmo com boa vontade, o mais que se poderia dizer era que era grande e confortável; mas da varanda tinha-se uma vista agradável, do barracão vermelho com o seu telhado negro, uma moita de velhas árvores, e além, até onde alcançava a vista, campos pardacentos. Paisagem monótona, mas o sol e as tintas brilhantes do fim do ano davam-lhe uma beleza toda sua. Era intoxicante aquela amplidão. Por mais fria, nua e melancólica que se apresentasse no inverno, por mais seca, crestada e opressiva que fosse em outros dias, naquela ocasião era estranhamente excitante, pois a vastidão do panorama convidava a alma à aventura.

Eles saborearam o almoço como criaturas moças e sadias que eram, sentindo prazer na companhia um do outro. Isabel serviu o café e Larry acendeu o cachimbo.

– Agora, desabafe-se, meu bem – disse ele com um sorriso divertido nos olhos.

Isabel foi apanhada de surpresa.

– Desabafar-me sobre o quê? – perguntou com o ar mais inocente que lhe foi possível assumir.

Ele deu uma risadinha.

– Pensa que sou algum idiota, meu amor? Se sua mãe não conhecer perfeitamente as dimensões das janelas da sala, quero ser mico de cavalinho! Não foi por isso que você me pediu para trazê-la aqui.

Novamente senhora de si, Isabel lançou-lhe um sorriso encantador.

– Pode ser que eu tenha achado que seria agradável passarmos um dia juntos, só nós dois.

– Pode ser, mas não creio que tenha sido. Meu palpite é que o tio Elliott lhe contou que recusei o convite de Henry Maturin.

Ele falava alegre e despreocupadamente e Isabel achou conveniente adotar o mesmo tom.

– Gray deve ter ficado profundamente decepcionado. Achava que seria ótimo ter você com ele no escritório. Você tem que trabalhar um dia e, quanto mais for adiando, pior.

Larry tirou uma cachimbada e fitou-a, sorrindo ternamente, de modo que Isabel não soube dizer se ele estava falando sério ou não.

– Sabe, tenho a impressão de que quero fazer da minha vida alguma coisa mais do que vender títulos.

– Está certo, então. Entre para um escritório de advocacia ou vá estudar medicina.

– Não; não é também isto que eu quero.

– O que é que você quer, então?

– Vadiar – replicou ele calmamente.

– Oh! Larry, não se faça de engraçado. Isto é muito, muito sério.

A voz de Isabel tremia e seus olhos se encheram de lágrimas.

– Não chore, querida. Não desejo fazê-la sofrer.

Ele foi sentar-se ao lado de Isabel, passando o braço à volta dos ombros dela. Havia uma tão grande ternura na sua voz que Isabel não pôde conter as lágrimas. Mas enxugou-as e tentou chamar aos lábios um sorriso.

– É muito fácil dizer que não quer fazer-me sofrer. Você está me fazendo sofrer. Porque, sabe, eu gosto de você, Larry.

– Eu também gosto de você, Isabel.

Ela suspirou profundamente. Depois se desvencilhou dos braços dele, afastando-se ligeiramente.

– Sejamos sensatos. Um homem tem que trabalhar, Larry. É uma questão de amor-próprio. Vivemos num país novo e é dever de todo homem tomar parte nas atividades deste país. Ainda no outro dia, Henry Maturin estava dizendo que nos encontramos no início de uma era que fará com que as realizações passadas pareçam insignificantes. Disse que não vê limites para o nosso progresso, e está convencido de que lá para 1930 seremos o país maior e mais rico do mundo. Você não acha isto formidável?

– Formidável.

– Nunca os moços tiveram igual oportunidade. Pensei que você fosse sentir-se orgulhoso de participar do trabalho que temos à nossa frente. É uma maravilhosa aventura.

Ele riu ligeiramente.

– Creio que você tem razão. As Armour e Swift produzirão melhores conservas e em maior escala, as McCormick farão melhores foices e em maior quantidade, Henry Ford porá no mercado maior número de melhores carros. E todo mundo ficará mais rico e ainda mais rico. E por que não?

– Sim, como diz você, por que não? Mas acontece que o dinheiro não me interessa.

Isabel riu nervosamente.

– Meu bem, não diga tolices. Ninguém pode viver sem dinheiro.

– Tenho um pouquinho; é por isso que posso fazer o que quero.

– Vadiar?

– Sim – respondeu ele sorrindo.

– Você está dificultando tanto as coisas para mim, Larry – suspirou Isabel.

– Sinto muito. Eu não o faria, se dependesse da minha vontade.

– Depende da sua vontade.

Ele sacudiu a cabeça. Ficou quieto durante alguns instantes, imerso nos seus pensamentos. Quando finalmente quebrou o silêncio, foi para dizer algo que a sobressaltou.

– Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos quando mortos.

– O que quer você exatamente dizer com isto? – perguntou ela, perturbada.

– Justamente isto. – Ele sorriu, meio encabulado. – A gente tem muito tempo para pensar, quando está voando, sozinho. Fica-se com ideias esquisitas.

– Que espécie de ideias?

– Vagas – respondeu ele sorrindo. – Incoerentes. Confusas.

Isabel refletiu durante alguns instantes.

– Não acha que, se você começasse a trabalhar, elas se coordenariam e você ficaria sabendo em que terreno pisava?

– A ideia me ocorreu. Pensei em ir trabalhar numa carpintaria ou em alguma garagem.

– Oh! Larry, todo mundo pensaria que você está maluco.

– Teria isto importância?

– Para mim, sim.

De novo se fez silêncio entre eles. Foi Isabel quem o quebrou. Soltou um suspiro e disse:

– Você está tão diferente do que era quando foi para a França!

– Isto não é de estranhar. Muita coisa me aconteceu, você sabe.

– Como por exemplo?

– Oh, nada de extraordinário. Meu maior amigo na aviação morreu ao salvar-me a vida. Não foi fácil conformar-me com isso.

– Conte-me como foi, Larry.

Ele fitou-a com profunda angústia no olhar.

– Prefiro não falar nisso. Afinal de contas, foi um incidente corriqueiro.

Emotiva por natureza, Isabel sentiu de novo lágrimas nos olhos.

– Você é infeliz, meu bem?

– Não – respondeu ele sorrindo. – A única coisa que me torna infeliz é saber que estou tornando você infeliz.

– Ele segurou a mão de Isabel, e era tão amigo o aperto daquela mão firme e forte, havia nele tão afetuosa intimidade que Isabel teve que morder os lábios para não chorar.

– Creio que não terei paz de espírito enquanto não resolver certas coisas – continuou Larry gravemente. Hesitou e depois: – É difícil explicar. A gente experimenta e logo fica constrangida. Pensa: “Quem sou eu para quebrar minha cabeça sobre isso, aquilo e aquele outro? Mas talvez eu não passe de um pedante pretensioso. Não seria melhor seguir o caminho que os outros trilharam e deixar que os acontecimentos venham como têm que vir?”. Mas então a gente se lembra de um sujeito que uma hora antes estava cheio de vida e de alegria e agora está morto. Tudo tão cruel e sem significação! É difícil deixar de perguntar a si próprio que finalidade tem a vida, se ela tem algum sentido ou se não passa de um erro trágico por parte do destino cego.

Quando Larry falava com aquela sua voz maravilhosamente melodiosa, interrompendo-se como se fizesse um esforço para dizer coisas que preferia calar, e exprimindo-se, no entanto, com tão angustiosa sinceridade, era impossível ao ouvinte não se comover; assim sendo, durante algum tempo Isabel teve medo de falar.

– Acha que adiantaria se você se ausentasse durante algum tempo?

Isabel formulara a pergunta com o coração na mão. Larry levou muito tempo para responder.

– Creio que sim. A gente procura mostrar-se indiferente à opinião pública, mas não é assim tão fácil. Quando essa opinião é antagônica, excita em nós antagonismo e isto nos perturba.

– Então, por que não vai?

– Bom, por sua causa.

– Sejamos francos um com o outro, meu bem. No momento atual não há lugar na sua vida para mim.

– Quer dizer que você prefere desmanchar o nosso noivado?

Ela conseguiu chamar um sorriso aos lábios trêmulos.

– Não, tolinho; quer dizer que estou disposta a esperar.

– Talvez seja um ano. Talvez dois.

– Não faz mal. Talvez seja menos. Para onde você quer ir?

Ele fitou-a atentamente, como se desejasse ler-lhe o mais íntimo pensamento. Isabel sorriu despreocupadamente para esconder o seu profundo desgosto. Larry disse:

– Pois bem, pensei em começar indo para Paris. Não conheço ali ninguém. Não haveria ninguém para se meter com a minha vida. Fui diversas vezes a Paris quando em licença. Não sei por quê, mas tenho impressão de que ali tudo o que está confuso no meu espírito se aclararia. É um lugar engraçado; a gente tem impressão de que ali poderá analisar a fundo os próprios pensamentos. Creio que assim eu talvez chegue a saber que caminho tomar.

– E que acontecerá se não ficar sabendo? Ele deu uma risadinha.

– Então recuperarei o proverbial bom senso americano, darei a experiência por malsucedida e voltarei para Chicago, aceitando o emprego que conseguir arranjar.

A cena impressionara demasiadamente Isabel para que ela pudesse repetir-me sem ficar emocionada. Ao terminar, fitou-me com um arzinho que me penalizou.

– Acha que fiz bem?

– Acho que fez a única coisa possível e, mais ainda, acho que foi extraordinariamente boa, generosa e compreensiva.

– Gosto de Larry e quero que ele seja feliz. E, sabe, até certo ponto acho preferível que ele vá. Quero que se veja livre desta atmosfera hostil, não somente por sua causa, mas pela minha também. Não posso criticar as pessoas que afirmam que ele nunca dará coisa alguma; detesto-as por dizerem isso e, no entanto, bem no fundo, tenho um medo horrível de que estejam com a razão. Mas não diga que sou compreensiva. Não tenho a mínima ideia do que ele procura.

– Talvez você compreenda mais com o coração do que com a razão – repliquei sorrindo. – Por que não se casa imediatamente com ele e não o acompanha a Paris?

O olhar de Isabel teve o brilho de um sorriso.

– Nada que eu desejasse mais. Mas não posso. E, o senhor sabe, embora eu deteste reconhecer semelhante coisa, acho que ele estará melhor sem a minha companhia. Se o dr. Nelson acerta ao dizer que Larry está sofrendo as consequências do choque, então um ambiente novo e outros interesses o curarão e, ao recuperar o equilíbrio, ele voltará para Chicago e vai trabalhar como todo mundo. Não tenho a mínima vontade de me casar com um vadio.

Isabel fora educada de certa maneira e aceitava os princípios que lhe haviam sido incutidos. Não pensava em dinheiro, porque ignorava o que era não ter tudo de que necessitava, mas instintivamente compreendia a sua importância. Poder, influência, posição social. Era natural e óbvio que um homem procurasse ganhá-lo.

Era esta a sua missão na terra.

– Não me admiro que você não compreenda Larry, pois garanto que nem ele se compreende a si próprio – disse eu. – Se ele se mostra reservado quanto aos seus desígnios, talvez seja porque esses desígnios ainda lhe são obscuros. Previno-a: conheço-o muito pouco e isto é apenas um palpite, mas não acha possível que ele esteja procurando por alguma coisa, mas uma coisa que ele ignora qual seja, de cuja existência talvez nem mesmo certeza tenha? É possível que o que lhe aconteceu na guerra, seja o que for, tenha determinado uma inquietação que nunca o abandona. Não acha que ele talvez esteja à procura de um ideal que se oculta na névoa do desconhecido, como o astrônomo que busca a estrela que somente um cálculo matemático lhe diz que existe?

– Sinto que alguma coisa o está afligindo.

– Sua alma? É possível que ele esteja com um pouco de medo de si próprio. É possível que não acredite na autenticidade da visão que vagamente distingue no seu espírito.

– Às vezes ele me dá uma impressão esquisita; como se fosse um sonâmbulo que de repente acordasse num lugar estranho, não podendo imaginar onde está. Era tão normal antes da guerra! Um dos seus maiores atrativos era o seu amor à vida. Tão alegre e estouvado que era um prazer a gente estar na sua companhia; tão meigo e ridículo! Que é que pode ter acontecido para tê-lo mudado desta forma?

– Não sei. Às vezes uma coisinha de nada tem sobre a pessoa um efeito completamente fora de proporção com o acontecimento. Depende das circunstâncias, e do estado de espírito dessa pessoa no momento. Lembro-me de ter ido à missa num Dia de Todos os Santos, que os franceses chamavam Dia de Finados, na igreja de uma aldeia que, no seu primeiro avanço sobre a França, os alemães tinham estragado um pouco. Estava repleta de soldados e mulheres de preto. No cemitério ao lado, havia fileiras de cruzes de madeira e, à medida que o serviço solene, triste, prosseguia, e homens e mulheres choravam, experimentei a sensação de que talvez aqueles que descansavam sob as cruzes fossem mais felizes do que nós, os vivos. Contei a um amigo o que sentia e ele me perguntou o que queria eu dizer. Não me foi possível explicar e percebi que ele me considerava um grandíssimo idiota. E lembro-me de ter visto, depois de uma batalha, um monte de franceses mortos, empilhados uns sobre os outros. Pareciam fantoches de uma companhia falida, que haviam sido atirados desordenadamente num canto poeirento, por não prestarem para mais nada. Pensei, então, aquilo que Larry disse a você, no outro dia: “Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos”.

Não quero que o leitor pense que estou fazendo mistério do que acontecera a Larry na guerra, fosse o que fosse, que tão profundamente o afetara – mistério que revelarei no momento oportuno.

Não creio que ele jamais tenha contado a quem quer que seja. Anos mais tarde, no entanto, ele falou a uma mulher, Suzanne Rouvier, também minha conhecida, sobre o aviador que morrera ao salvar-lhe a vida. Ela repetiu-me o caso e só posso, portanto, relatá-lo de segunda mão.

Traduzi-o do francês em que ela me falou. Parece que Larry ficara muito amigo de outro rapaz de seu esquadrão. Suzanne só o conhecia pelo irônico apelido com que Larry se referia a ele.

– Era um sujeitinho pequeno de cabelos vermelhos, um irlandês – disse Larry. – Costumávamos chamá-lo de Patsy e ele tinha mais vivacidade do que qualquer outra pessoa que jamais conheci. Céus, era um azougue! Tinha uma cara engraçada e um sorriso engraçado, de modo que só de olhar para ele a gente tinha vontade de rir. Era um diabo temerário e fazia as maiores loucuras; estava sempre sendo chamado à ordem pelos superiores. Não sabia o que era medo e, depois de ter escapado da morte por um triz, seu rosto se alargaria num sorriso, como se aquilo fosse a maior pilhéria do mundo. Mas era um aviador nato e lá em cima, nas nuvens, sabia ser frio e cauteloso. Ensinou-me muita coisa. Era um pouco mais velho do que eu e tomou-me sob sua proteção; isto era realmente um pouco cômico, considerando-se que eu tinha bem uns quinze centímetros a mais de altura do que ele e, se por um acaso brigássemos, eu poderia pô-lo a nocaute em dois tempos. Foi o que aconteceu, certa vez, em Paris, quando ele estava bêbado e fiquei com medo de que se metesse em alguma embrulhada.

Larry fez uma pausa e continuou:

– Eu não me sentia muito à vontade quando me reuni ao esquadrão e tinha medo de não me sair bem, mas ele me obrigou a ter confiança em mim. Tinha ideias engraçadas sobre a guerra; não sentia ódio dos alemães; gostava de uma brigazinha e achava divertidíssimo combatê-los. Não podia considerar o fato de pôr abaixo um avião inimigo a não ser como grandíssima pilhéria. Era impudente e louco e irresponsável, mas ao mesmo tempo tão sincero que a gente não podia deixar de lhe querer bem. Daria a um companheiro o seu último níquel, com a mesma facilidade com que aceitaria o dele. Se um de nós se sentia isolado, ou com saudade de casa, ou com medo, como algumas vezes me aconteceu, ele logo o perceberia e, a carinha feia enrugando-se de riso, diria exatamente aquilo que podia fazer a gente sentir-se bem outra vez.

Larry tirou uma cachimbada e Suzanne esperou que ele continuasse.

– Costumávamos manobrar de jeito a ter nossas licenças juntos e quando íamos a Paris ele ficava endiabrado. Divertíamo-nos à grande. Íamos ter uns dias de licença em princípio de março, isto em 1918, e traçamos nossos planos de antemão. Não havia o que não pretendêssemos fazer! Na véspera da partida, recebemos ordem de voar sobre as linhas inimigas e apresentar o nosso relatório. Subitamente demos com alguns aviões alemães e, quando menos esperávamos, estávamos no meio de uma batalha. Um deles me perseguiu, mas peguei-o primeiro. Espiei para ver se ele ia cair e com o rabo do olho vi outro aparelho no meu encalço. Mergulhei para ver se escapava, mas o inimigo se aproximou como um relâmpago e pensei que eu estivesse liquidado; nisto vi Patsy cair sobre ele como se fosse um raio e despejar-lhe toda a munição que tinha. Os alemães deram-se por vencidos e fugiram, e nós voltamos às nossas linhas. Meu avião estava bem avariado e eu mal consegui aterrissar. Patsy chegara antes de mim. Quando desci do meu avião, vi que tinham acabado de tirá-lo do seu. Estava deitado no chão; esperavam que chegasse a ambulância. Ele sorriu ao ver-me. Disse:

“Derrubei aquele sujeito que estava atrás de você”. “Que foi que aconteceu, Patsy?”, perguntei.

“Oh! nada. Ele me pegou na asa.”

– Estava mortalmente pálido. De repente uma expressão estranha cobriu-lhe o rosto. Só neste momento percebeu que estava agonizante, e a ideia da morte jamais lhe passara pela cabeça. Antes que alguém pudesse impedi-lo, ele sentou-se e soltou uma risada.

“Ora, essa é boa!”

– Caiu morto. Tinha vinte e dois anos. Ia casar-se com uma moça na Irlanda quando acabasse a guerra.

No dia seguinte à minha conversa com Isabel, saí de Chicago para São Francisco, onde devia tomar o vapor que me levaria ao Extremo Oriente.


Dois

Dois


1

Só tornei a ver Elliott quando ele veio a Londres, em fins de junho do ano seguinte. Perguntei-lhe se, afinal de contas, Larry tinha ido mesmo para Paris. Respondeu-me que sim. Achei graça ao perceber como Elliott ficara exasperado com ele.

– No fundo eu compreendia o ponto de vista do rapazinho – disse-me. – Não o censurava por querer passar um ou dois anos em Paris, e estava disposto a lançá-lo na sociedade. Pedi-lhe que me avisasse assim que chegasse, mas só quando Louisa se referiu a isso numa carta foi que eu soube que ele estava em Paris. Escrevi-lhe aos cuidados do American Express, endereço que ela me dera, convidando-o para vir jantar e ser apresentado a algumas das pessoas que eu achava que ele devia conhecer. Queria primeiro experimentá-lo com o grupo franco-americano, Emily de Montadour, Gracie de Chãteau-Gaillard e outras, mas sabe você o que ele me respondeu? Que sentia não poder aceitar, uma vez que não trouxera traje de noite.

Elliott encarou-me para ver no meu rosto o espanto que certamente eu iria sentir. Ergueu um tanto desdenhosamente as sobrancelhas ao verificar que eu aceitava com calma a comunicação.

– Respondeu à minha carta numa folha de papel ordinário, que tinha em cima o nome de um café do Quartier Latin; quando lhe escrevi novamente, pedi-lhe que me dissesse onde estava hospedado. Achei que, em consideração a Isabel, precisava fazer alguma coisa por ele, e pensei que talvez fosse apenas uma questão de timidez – isto é, não achei crível que um rapaz no seu juízo perfeito viesse para Paris sem traje de noite; além do mais, há ali alfaiates passáveis. Convidei-o, portanto, para almoçar, avisando que seria um grupo pequeno e, imagine você, não somente ele ignorou o meu pedido sobre o endereço, mas disse que nunca almoçava! Isto fez com que eu lavasse definitivamente as mãos a seu respeito.

– O que será que anda fazendo?

– Não sei e, para ser franco, tanto se me dá. Acho que é um rapazinho indesejável, e que seria um grande erro da parte de Isabel casar-se com ele. Afinal de contas, se ele levasse vida normal, eu o teria visto no bar do Ritz, ou no Fouquet, ou em qualquer outro lugar.

Vou às vezes a estes lugares elegantes, mas vou também a outros, e aconteceu que passei vários dias em Paris, no princípio do outono daquele ano, a caminho de Marselha, onde pretendia tomar um dos vapores da Messagerie, para Cingapura. Jantei uma noite com alguns amigos em Montparnasse e depois do jantar fomos ao Dôme tomar um copo de cerveja. Dali a pouco meu olhar vadio deu com Larry sentado sozinho a uma mesa de mármore, no terraço repleto de gente. Observava desinteressadamente as pessoas que passeavam para lá e para cá a apreciar a frescura da noite depois de um dia opressivo. Deixei o meu grupo e fui até lá. Seu rosto iluminou-se quando me viu. Dirigiu-me um sorriso amável e convidou-me para sentar, mas respondi que não podia por estar com uns amigos.

– Quis apenas cumprimentá-lo – disse eu.

– O senhor está aqui? – perguntou-me.

– Apenas por alguns dias.

– Quer almoçar comigo amanhã?

– Pensei que você nunca almoçasse. Ele riu baixinho.

– O senhor esteve com Elliott! Em geral não almoço, pois não posso perder tempo; tomo só um copo de leite, com um brioche, mas gostaria que o senhor almoçasse comigo.

– Está certo.

Combinamos encontro no Dôme, no dia seguinte, para um aperitivo; iríamos depois almoçar em qualquer restaurante do boulevard. Voltei para a companhia dos meus amigos. Ficamos sentados, conversando. Quando procurei por Larry, dali a pouco, vi que ele havia saído.


2

No dia seguinte passei uma manhã muito agradável. Fui ao Luxemburgo e ali me demorei durante uma hora, vendo alguns quadros do meu gosto. Depois vaguei pelos jardins, tentando recapturar as memórias da mocidade. Nada mudara. Poderiam ter sido os mesmos estudantes, aqueles que passeavam aos pares pelas alamedas de pedregulho, a discutir os autores que lhes tinham despertado o interesse. Poderiam ter sido as mesmas crianças, a rodar os mesmos arcos, sob a vigilância das mesmas amas. Poderiam ter sido os mesmos velhos, que se aqueciam ao sol e liam o jornal da manhã. Poderiam ter sido as mesmas mulheres maduras, de luto, sentadas nos bancos a discutir o preço dos mantimentos e a insolência das empregadas. Depois fui ao Odeon, examinei os livros novos nas galerias e vi os rapazinhos que, como eu trinta anos antes, procuravam, sob o olhar petulante dos empregados de avental, ler o maior número possível de livros que eles não estavam em condições de comprar. Caminhei em seguida vagarosamente pelas ruas sujas e queridas, até chegar ao Boulevard du Montparnasse e finalmente ao Dôme. Larry estava à minha espera. Tomamos um aperitivo e procuramos depois um restaurante onde pudéssemos comer ao ar livre.

Talvez ele estivesse um pouco mais pálido, e isto fazia com que seus olhos muito escuros, nas órbitas fundas, atraíssem mais ainda atenção; mas continuava igualmente senhor de si, fato curioso em pessoa tão jovem, e tinha o mesmo sorriso franco. Quando encomendou o almoço, notei que falava francês corretamente e com boa pronúncia. Felicitei-o.

– Bom, eu já sabia um pouco de francês – explicou ele. – Tia Louisa tinha uma governanta francesa para Isabel e, quando estávamos em Marvin, ela nos obrigava a praticar o tempo todo.

Perguntei-lhe se estava gostando de Paris.

– Muito.

– Mora em Montparnasse?

– Moro – disse ele depois de um momento de hesitação, que interpretei como indicando má vontade de contar exatamente onde morava.

– Elliott ficou um pouco vexado por você lhe ter dado como endereço somente o American Express.

Larry sorriu, mas não respondeu.

– O que é que você faz o tempo todo?

– Vagabundeio.

– E lê?

– Leio, sim.

– Tem notícias de Isabel?

– De vez em quando. Nenhum de nós dois é muito dado a escrever cartas. Está se divertindo à grande em Chicago. No próximo ano elas vêm para cá, visitar

Elliott.

– Que bom para você!

– Creio que Isabel não conhece Paris. Vai ser divertido mostrar-lhe a cidade.

Larry estava curioso por conhecer detalhes de minha viagem pela China e ouviu com atenção o que lhe contei; mas, quando tentei fazê-lo falar sobre si próprio, fracassei. Mostrou-se tão pouco comunicativo que me vi forçado à conclusão de que me convidara somente pelo prazer da minha companhia. Fiquei contente, mas perplexo. Nem bem tínhamos acabado o café, ele pediu a conta, pagou-a e levantou-se.

– Bom, tenho que ir caminhando – disse.

Separamo-nos. Eu estava na mesma quanto às suas atividades. Não tornei a vê-lo.


3

Quando, mais cedo do que pretendiam, mrs. Bradley e Isabel vieram hospedar-se com Elliott, na primavera, eu não me achava em Paris; para completar, portanto, a narrativa do que sei que sucedeu, vejo-me de novo obrigado a recorrer à imaginação. Mãe e filha desembarcaram em Cherburgo e, com a costumeira gentileza, Elliott foi esperá-las. Passaram pela Alfândega. O trem partiu. Com ar um tanto benevolente, Elliott participou-lhes que tomara para elas uma ótima empregada particular; e quando mrs. Bradley replicou que achava a medida desnecessária, ele falou-lhe com rudeza.

– Não comece a implicar desde o momento da chegada, Louisa. Nenhuma senhora pode ficar bem-vestida sem o auxílio de uma criada particular, e resolvi tomar Antoinette não somente por sua causa e de Isabel, mas pela minha. Ficaria mortificado se vocês não se apresentassem impecavelmente vestidas.

Elliott lançou aos trajes das duas viajantes um olhar desdenhoso e continuou:

– Vocês, naturalmente, vão precisar de vestidos novos. Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que Chanel é a última palavra.

– Sempre tenho procurado Worth – declarou mrs. Bradley. Pela atenção que Elliott lhe deu, foi o mesmo que não ter falado.

– Conversei pessoalmente com Chanel e marquei hora para amanhã, às três. Depois temos que tratar dos chapéus. Quanto a isso, não há dúvida: Reboux.

– Não quero gastar muito, Elliott.

– Sei disso. Estou disposto a pagar por tudo. Quero que vocês me façam honra. Oh! enquanto me lembro, Louisa, arranjei várias reuniões para vocês e disse aos meus amigos franceses que Myron era embaixador, o que naturalmente ele chegaria a ser, se tivesse vivido um pouco mais; isso causa melhor efeito. Não creio que o assunto venha à baila, mas achei preferível preveni-la.

– Você é ridículo, Elliott.

– Não, não sou. Conheço a humanidade. Sei que a viúva de um embaixador tem mais prestígio que a viúva de um ministro.

Quando o trem ia entrando na Gare du Nord, Isabel, que estava à janela, exclamou:

– Lá está Larry.

Nem bem o trem parara, ela pulou para a plataforma e correu ao encontro do rapaz. Larry abraçou-a.

– Como é que ele soube que vocês vinham? – perguntou Elliott, secamente, à irmã.

– Isabel radiografou do navio.

Mrs. Bradley beijou Larry afetuosamente e Elliott estendeu-lhe molemente a mão. Eram dez horas da noite.nhã? – perguntou vivamente Isabel, de rosto corado e olhos cintilantes, com o braço enfiado no do rapaz.

– Eu teria nisso muito prazer, mas Larry me deu a entender que nunca almoça.

– Você almoça amanhã, não é verdade, Larry?

– Almoço – respondeu ele sorrindo.

– Espero então ter o prazer de vê-lo à uma hora. Elliott estendeu-lhe mais uma vez a mão, com evidente intenção de despedi-lo, mas Larry sorriu impudentemente.

– Vou ajudar com a bagagem e lhes arranjarei um táxi.

– Meu carro está esperando e meu criado tomará conta da bagagem – disse Elliott com dignidade.

– Ótimo. Então só nos resta partir. Se houver lugar para mim, irei até a porta de sua casa.

– Sim, venha, Larry – disse Isabel.

Desceram juntos a plataforma, seguidos por mrs. Bradley e Elliott. No rosto de Elliott havia uma expressão de gélida censura.

– Quelles manières – murmurou de si para si, pois em certas circunstâncias achava que podia exprimir seus sentimentos com mais energia em francês.

Não sendo madrugador, no dia seguinte às onze horas, quando acabou de se vestir, Elliott mandou um bilhete à irmã, por intermédio de seu criado Joseph e da criada dela, Antoinette, convidando-a a vir à biblioteca para conversarem um pouco. Quando mrs. Bradley apareceu, ele fechou cautelosamente a porta e, enfiando um cigarro numa imensa piteira de ágata, acendeu-o e sentou-se.

– Devo compreender que Isabel e Larry continuam noivos? – perguntou.

– Sim, pelo que me consta.

– Infelizmente não tenho muito boas notícias a dar-lhe sobre o rapaz. – Elliott contou-lhe como estivera disposto a apresentar Larry na sociedade e os planos que fizera para instalá-lo condignamente. – Eu estava mesmo de olho num rez-de-chaussée, que era exatamente o que lhe convinha. Pertence ao jovem marquês de Rethel, que queria sublocá-lo por ter sido nomeado embaixador em Madri.

Mas Larry recusara seus convites de uma maneira que indicava claramente que não queria auxílio.

– Para que vem uma pessoa a Paris, quando não pretende aproveitar-se das vantagens que esta cidade oferece, é coisa que está acima da minha compreensão. Não sei de que maneira ele passa o tempo; parece-me que não conhece ninguém. Sabe onde ele mora?

– O único endereço que nos deu foi o American Express.

– Tal um viajante de casa comercial, ou mestre-escola em férias! Não me admiraria se ele estivesse vivendo com alguma prostitutazinha num estúdio de Montmartre.

– Oh! Elliott!

– Que outra razão pode haver para o mistério em que envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe? envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe?

– Larry não é desse tipo. E, a noite passada, você não teve a impressão de que está tão apaixonado por Isabel como antes? Ele não poderia ser assim tão dissimulado.

Elliott encolheu os ombros, como a dizer que não há limites para a falsidade masculina.

– O que me conta de Gray Maturin? Ainda está na arena?

– Ele se casaria amanhã com Isabel se ela o aceitasse. Mrs. Bradley contou-lhe então o motivo que as trouxera à Europa mais cedo do que pretendiam. Não andava passando bem ultimamente, e os médicos lhe haviam dito que estava sofrendo de diabetes. Não era caso grave e, com dieta e doses módicas de insulina, não havia motivo para que não vivesse ainda por muitos anos; mas o fato de saber que sofria de uma moléstia incurável deixara-a ansiosa por ver a filha instalada na vida. As duas tinham discutido o assunto. Isabel era sensata; concordou que, se Larry não quisesse voltar para Chicago ao cabo dos dois anos combinados, e arranjar emprego, então a única coisa a fazer seria romper o noivado. Mas mrs. Bradley era de opinião que sua dignidade sofreria, se esperassem até o fim do prazo marcado, vindo depois buscá-lo como um fugitivo da justiça. Achava que Isabel se colocaria numa posição humilhante. No entanto era muito natural que quisessem passar o verão na Europa, aonde Isabel não vinha desde criança. Depois de uma visita a Paris, poderiam ir para uma estação de águas indicada para a moléstia de mrs. Bradley; em seguida, por algum tempo, para o Tirol austríaco; de lá iriam viajar calmamente pela Itália. Mrs. Bradley tinha intenção de convidar Larry a acompanhá-las, para que ele e Isabel pudessem verificar se a longa separação não lhes alterara os sentimentos. Depois de certo tempo ficaria claro se, tendo-se divertido à vontade, Larry estava ou não disposto a aceitar sua parte de responsabilidade na vida.

– Henry Maturin ofendeu-se por Larry ter recusado a colocação que ele lhe ofereceu, mas Gray conseguiu acalmá-lo e Larry pode começar a trabalhar assim que voltar para Chicago.

– Gray é um bom rapaz.

– Se é! – Mrs. Bradley suspirou e acrescentou: – Tenho certeza que faria Isabel feliz.

Elliott falou então das festas que organizara em honra delas. Ia dar um grande almoço no dia seguinte, e no fim da semana um grande jantar. Pretendia levá-las a uma recepção na casa dos Château-Gaillard e conseguira convites para um baile que os Rothschild iam dar.

– Você vai convidar Larry, não vai?

– Ele me disse que não tem traje a rigor – fungou

Elliott.

– Bom, convide-o assim mesmo. Afinal de contas ele é um bom rapaz e não há vantagem em boicotá-lo. Só serviria para aumentar a teima de Isabel.

– Claro que o convidarei, se é este o seu desejo.

À hora marcada, Larry compareceu ao almoço; e Elliott, que tinha maneiras impecáveis, procurou propositalmente ser amável com ele. Não foi difícil, pois Larry estava tão alegre e animado que somente um homem muito mais maldoso do que Elliott poderia deixar de ficar encantado. A conversa girou sobre Chicago e os amigos comuns que ali tinham, de modo que a Elliott bastava mostrar-se cortês e fingir interessar-se pela vida de pessoas que ele considerava sem a mínima importância social. Não lhe causava tédio escutar; pelo contrário, achava enternecedor ouvi-los comentar o noivado daquele jovem par, o casamento de outro jovem par e o divórcio de um terceiro jovem par. Quem jamais ouvira falar dessa gente? Agora: ele sabia que a linda marquesa de Clinchant tentara suicidar-se porque seu amante, o príncipe de Colombey, a abandonara para casar-se com a filha de um milionário sul-americano. Isto era fato que se comentasse. Observando Larry, viu-se obrigado a reconhecer que havia nele qualquer coisa de singularmente atraente; com seus olhos fundos, muito escuros, maçãs salientes, tez pálida e boca expressiva, ele lembrava a Elliott um retrato por Botticelli, e ocorreu-lhe que, se o rapazinho se vestisse à moda da época, ficaria extraordinariamente romântico. Lembrou-se do seu plano de lhe arranjar um “caso” com uma francesa distinta, e sorriu matreiramente ao refletir que no sábado esperava para jantar Marie Louise de Florimond, que combinava irrepreensíveis relações sociais com uma notória imoralidade. Já atingira os quarenta anos, mas aparentava dez anos menos; tinha a delicada beleza de uma de suas antepassadas que fora pintada por Nattier, quadro que, graças ao próprio Elliott, fazia agora parte de uma das grandes coleções americanas; e sua voracidade sexual era insaciável. Elliott resolveu colocar Larry a seu lado. Sabia que ela não perderia tempo em patentear-lhe os seus desejos. Já convidara um jovem attaché da embaixada britânica com quem, assim o julgava ele, provavelmente Isabel ia simpatizar. Isabel era muito bonita e, como o rapaz era inglês, e rico, pouco importava que ela não tivesse fortuna. Abrandado pelo excelente Montrachet, com que haviam iniciado o almoço, e pelo ótimo Bordeaux que veio em seguida, Elliott refletiu com calma e satisfação sobre as possibilidades que se apresentavam a seu espírito. Se as coisas se resolvessem como ele achava provável, a querida Louisa não mais teria motivo de inquietação. No íntimo ela sempre o criticara um pouco; coitadinha, era tão provinciana!... mas Elliott lhe queria bem. Seria um prazer arranjar tudo para ela, valendo-se da sua experiência da vida.

Para não perder tempo, Elliott decidira levar as senhoras para escolherem os vestidos logo depois do almoço, de seu forte ele insinuou a Larry que sua companhia era agora dispensável – mas ao mesmo tempo insistiu amavelmente para que o rapaz comparecesse às duas reuniões que estava organizando. Tanta diplomacia não teria sido necessária, pois Larry aceitou alegremente os dois convites.

Mas o plano de Elliott fracassou. Ele ficou aliviado quando Larry compareceu ao jantar num dinner-jacket muito apresentável, pois receara vê-lo surgir metido no mesmo terno de casimira azul que usara ao almoço; e depois do jantar, chamando Marie Louise de Florimond à parte, perguntou-lhe que tal achava o seu jovem amigo americano.

– Ele tem olhos bonitos e bons dentes.

– Só isto? Coloquei-o perto de você porque achei que era exatamente o seu bocado.

Madame de Florimond olhou-o desconfiada.

– Ele me disse que está noivo de sua sobrinha.

– Voyons, ma chère, o fato de um homem pertencer a outra mulher nunca foi obstáculo para você se apossar dele, se possível.

– É isto que você está querendo? Pois bem, não estou disposta a fazer o seu trabalhinho sujo por você, meu pobre Elliott.

Elliott deu uma risadinha.

– Presumo que isto significa que você entrou com o seu joguinho e viu que não adiantava.

– Gosto de você, Elliott, porque sua moral não é mais elevada que a de uma cafetina. Você não quer que o rapaz se case com sua sobrinha. Por quê? Ele é bem-educado e muito simpático. Mas é de fato inocente demais. Creio que nem de longe suspeitou das minhas intenções.

– Você devia ter sido mais explícita, cara amiga.

– Tenho suficiente experiência para saber quando estou perdendo meu tempo. A verdade é que ele só tem olhos para a sua Isabelzinha e, cá entre nós, a pequena tem vinte anos de vantagem sobre mim. E é um amor, ainda por cima.

– Você gosta do vestido dela? Eu mesmo o escolhi.

– É bonito e apropriado. Mas naturalmente ela não tem chie.

Elliott tomou aquilo como um insulto pessoal, e não ia deixar que madame de Florimond escapasse sem uma alfinetada. Sorriu alegremente e disse:

– Para ter o seu chie, cara amiga, uma pessoa precisa ter atingido a sua completa maturidade.

Madame de Florimond desferiu não um golpe de florete, e sim uma cacetada. Sua réplica fez ferver o sangue virginiano de Elliott.

– Mas garanto que no seu belo país de bandidos (votre heau pays d’apaches) ninguém notará a falta de coisa tão sutil e inimitável.

Mas, se madame de Florimond criticou, os outros amigos de Elliott mostraram-se encantados com Isabel e cia e vitalidade; gostaram da pitoresca aparência de Larry, de suas maneiras finas e espírito calmo, irônico. Ambos tinham a vantagem de falar correntemente o francês. Quanto a mrs. Bradley, depois de ter vivido vários anos em círculos diplomáticos, falava a língua com bastante correção, mas com um descarado sotaque americano. Elliott procurou distraí-las com incomparável prodigalidade.

Satisfeita com seus vestidos e chapéus novos, encantada com todos aqueles folguedos que Elliott lhe proporcionava, e feliz na companhia de Larry, Isabel achou que nunca se divertira tanto na vida.


4

Para Elliott, o café da manhã era refeição que só podia ser compartilhada com estranhos, e assim mesmo quando não havia outro remédio; em vista disso, contra a vontade de mrs. Bradley e com satisfação de Isabel, as duas tomavam aquela refeição no quarto. Mas às vezes, ao acordar, Isabel dizia à imponente Antoinette que levasse o seu café au lait para o quarto de mrs. Bradley, para poder conversar com a mãe. Na movimentada vida que levava, era esse o único momento em que podia ficar a sós com ela. Certa manhã, um mês depois de estarem em Paris, quando Isabel acabou de narrar os acontecimentos da noite anterior, que passara a visitar cabarés em companhia de Larry e de alguns amigos, mrs. Bradley aventurou a pergunta que desejava fazer desde o dia da chegada.

– Quando é que Larry pretende voltar para Chicago?

– Não sei. Ainda não falou nisso.

– Você não lhe perguntou?

– Não.

– Está com medo?

– Não; claro que não.

Deitada na chaise-longue, metida num roupão elegante com que Elliott fizera questão de presenteá-la, mrs. Bradley lustrava as unhas.

– Sobre que falam vocês durante todo tempo em que estão juntos?

– Não falamos o tempo todo. É agradável estarmos juntos. A senhora sabe, Larry sempre foi mais ou menos calado. Creio que, quando conversamos, sou eu que falo quase todo tempo.

– O que é que ele andou fazendo?

– Francamente não sei. Mas não creio que tenha sido grande coisa. Provavelmente esteve se divertindo.

– E onde está morando?

– Também não sei.

– Ele é muito reservado, não é?

Isabel acendeu um cigarro e, ao soltar fumaça pelo nariz, olhou friamente a mãe.

– O que é que você quer exatamente dizer com isto, mamãe?

– Seu tio Elliott acha que ele está vivendo com alguma mulher, num apartamento.

Isabel desatou a rir.

– Você não acredita nisto, acredita?

– Para ser franca, não. – Mrs. Bradley examinou as unhas com ar pensativo. – Você nunca lhe fala sobre Chicago?

– Sim, muitas vezes.

– Ele não deu nenhuma indicação de que pretende voltar?

– Não posso dizer que tenha dado.

– Em outubro vai fazer dois anos que ele se ausentou.

– Sei disso.

– Bom, isto é com você, meu bem; faça o que achar direito. Mas as coisas não se tornam mais fáceis pelo fato de serem adiadas. – Olhou de relance para a filha, mas os olhos de Isabel não encontraram os seus. mrs. Bradley sorriu afetuosamente. – Se você não quiser ficar atrasada para o almoço, é melhor ir tomar o seu banho.

– Vou almoçar com Larry, num restaurante do Quartier Latin.

– Divirtam-se.

Uma hora mais tarde, Larry veio buscá-la. Tomaram um táxi até Pont St. Michel e andaram pelo movimentado boulevard, até chegarem a um café cuja aparência lhes agradou. Sentaram-se no terraço e encomendaram dois Dubonnets. Depois tomaram outro táxi e foram a um restaurante. Isabel tinha bom apetite e apreciou as coisas gostosas que Larry encomendou para ela. Sentia prazer em observar as pessoas que quase roçavam neles, pois o restaurante estava repleto, e achava graça no visível prazer com que comiam; mas, acima de tudo, estava a satisfação de sentar-se a uma mesinha a sós com Larry. Agradava-lhe a expressão divertida do olhar dele, enquanto ela tagarelava alegremente. Que maravilha sentir-se tão à vontade com Larry! Mas, no subconsciente, sentia uma vaga inquietação, pois, embora ele também parecesse perfeitamente à vontade, Isabel percebia que era mais com o ambiente do que com ela. Ficara ligeiramente perturbada com o que a mãe lhe dissera e, embora parecesse conversar com despreocupação, observava todas as expressões de Larry. Ele não era o mesmo de quando saíra de Chicago, mas Isabel não podia dizer onde estava a diferença. Aparentemente era o mesmo Larry de quem ela se lembrava, igualmente moço, franco; mas sua expressão mudara. Não que estivesse mais sério, pois seu rosto, em repouso, sempre fora grave; tinha agora uma calma que Isabel nunca vira nele, como se tivesse resolvido alguma coisa consigo mesmo, sentindo uma tranquilidade que antes desconhecera.

Terminado o almoço, Larry propôs uma volta pelo

Luxemburgo. – Não; não quero ver quadros.

– Está certo. Vamos nos sentar nos jardins, então.

– Não; não é também isto que eu quero. Quero ver onde você mora.

– Não há nada para ver. Moro num quartinho sujo, num hotel.

– O tio Elliott diz que você tem um apartamento e está vivendo pecaminosamente com uma modelo.

– Pois bem, venha então verificar – propôs ele rindo.

– É a um pulo daqui. Podemos ir a pé.

Levou-a por ruas estreitas e tortuosas, escuras apesar da faixa de céu azul que aparecia entre as casas altas; pouco depois parou diante de um hotelzinho de fachada pretensiosa e disse:

– Chegamos.

Isabel entrou com ele num hall estreito. Viu, a um lado, uma escrivaninha a que estava sentado, lendo um jornal, um homem em mangas de camisa, com um colete de listas fininhas em branco e amarelo, e um avental sujo. Larry pediu sua chave e o homem deu-lha, tirando-a de uma prateleira logo atrás e lançando a Isabel um olhar indagador, que imediatamente se transformou num sorrisinho sabido. Estava claro que achava que ela não ia ao quarto de Larry para fins honestos.

Subiram dois lances de uma escada coberta por surrada passadeira vermelha, e Larry abriu sua porta. Isabel entrou num quartinho de duas janelas que davam para uma cinzenta casa de apartamentos, em cujo andar térreo funcionava uma papelaria. No quarto, uma cama de solteiro com criado-mudo ao lado, um pesado guarda-roupa de espelho grande, uma poltrona estofada mas de espaldar reto e, entre duas janelas, uma mesa onde se viam uma máquina de escrever, papéis e alguns livros. Na lareira estavam empilhadas algumas brochuras.

– Sente-se na poltrona. Não é muito confortável, mas é o melhor que lhe posso oferecer.

Larry puxou outra cadeira e sentou-se.

– É aqui que você vive? – perguntou Isabel.

Ele riu baixinho da expressão do rosto dela.

– É. Moro aqui desde que vim para Paris.

– Mas por quê?

– É cômodo. Fica perto da Bibliothèque Nationale e da Sorbonne. – Larry apontou para uma porta que ela não notara. – Tem banheiro. Tomo o café da manhã aqui e geralmente janto naquele restaurante onde almoçamos hoje.

– É horrivelmente sórdido.

– Oh! não; está muito bom. Não desejo mais que isso.

– Mas, que tipo de gente mora aqui?

– Oh! não sei. No sótão, alguns estudantes. Dois ou três solteirões, funcionários públicos; uma atriz do Odeon, aposentada; no único outro quarto com banheiro, a amante de um sujeito que vem visitá-la de quinze em quinze dias, às quintas-feiras; e mais alguns forasteiros. É um lugar muito quieto e familiar.

Isabel ficou um tanto desconcertada e, vendo que Larry disso se apercebera e estava achando graça, quase se melindrou.

– Que livro é aquele enorme ali na mesa? – perguntou ela.

– Aquele? Oh! é o meu dicionário grego.

– Seu o quê? – exclamou Isabel.

– Calma. Ele não tem garras.

– Você está estudando grego?

– Estou.

– Por quê?

– Porque me deu vontade.

Larry fitava-a com um sorriso nos olhos e Isabel correspondeu a esse sorriso.

– Você não acha que poderia contar-me o que andou fazendo durante todo esse tempo em que esteve em Paris?

– Tenho lido muito. Oito ou dez horas por dia. Tenho ido a conferências na Sorbonne. Creio que li tudo que há de importante na literatura francesa, e posso ler latim, prosa pelo menos, com a mesma facilidade com que leio francês. Claro que grego é mais difícil. Mas tenho um ótimo professor. Até você chegar eu ia três noites por semana à casa dele.

– E qual a finalidade de tudo isto?

– Adquirir cultura – respondeu ele sorrindo.

– Não me parece muito prático.

– Talvez não seja e, por outro lado, talvez seja. Mas é divertidíssimo. Você não pode imaginar como é emocionante ler a Odisseia no original. A gente tem a impressão de que bastaria ficar na ponta dos pés e estender as mãos para tocar as estrelas.

Larry levantou-se, como que impulsionado pela excitação que dele se apoderara, e pôs-se a andar de um lado ao outro do quartinho.

– Há um ou dois meses estive lendo Spinoza. Creio que não o entendo ainda muito bem, mas que delícia!... É como a gente descer do seu próprio avião num grande planalto, nas montanhas. Solidão e ar tão puro que intoxica como um vinho e faz a gente sentir-se como um rei.

– Quando é que você pretende voltar para Chicago?

– Chicago? Não sei. Não pensei nisso.

– Você disse que, se ao cabo de dois anos não alcançasse o que buscava, daria a experiência por mal-sucedida.

– Não me seria possível voltar agora. Estou no limiar. Vejo vastas planícies do espírito à minha frente, acenando-me, e estou ansioso por explorá-las.

– O que é que você espera encontrar ali?

– Respostas às minhas perguntas. – Larry relanceou para Isabel um olhar quase brincalhão, de modo que, se o não conhecesse tão bem, ela poderia pensar que ele estava troçando. – Quero ter certeza da existência ou da não existência de Deus. Quero conhecer a origem do mal. Quero saber se tenho uma alma imortal, ou se a morte põe fim a tudo.

Isabel ficou de respiração suspensa. Não se sentia à vontade quando Larry se exprimia dessa forma, e deu graças a Deus por ele ter falado tão despreocupadamente, no habitual tom de conversa, que lhe permitiu dominar o constrangimento.

– Mas, Larry, há milhares de anos a humanidade está fazendo essas perguntas – replicou ela sorrindo. – Se tivesse resposta, certamente há muito já teriam sido respondidas.

Larry deu uma risadinha.

– Não ria como se eu tivesse dito alguma tolice – replicou secamente Isabel.

– Pelo contrário, acho muito bem observado. Mas, por outro lado, a gente pode argumentar que o fato de os homens fazerem essas perguntas há milhares de anos prova que eles não podem deixar de perguntar, e continuarão perguntando. Além do mais, não é verdade que ninguém encontrou resposta. Existem mais respostas do que perguntas, e a muitas pessoas elas satisfizeram plenamente. O velho Ruysbroek, por exemplo.

– Quem é ele?

– Oh! apenas um sujeito que não conheci no colégio – respondeu Larry petulantemente.

Isabel não entendeu o que ele quis dizer, mas não insistiu.

– Acho isto muito infantil. São coisas que excitam a imaginação dos segundanistas, mas de que eles se esquecem por completo quando saem do colégio. Têm que ganhar a vida.

– Não os censuro. Mas, você vê, tenho a vantagem de possuir o suficiente para viver. Do contrário, eu teria que fazer como todo mundo e procurar ganhar dinheiro.

– Mas você não dá valor ao dinheiro?

– Nenhum – respondeu ele sorrindo.

– Quanto tempo acha que isso vai levar?

– Não posso saber. Cinco anos. Dez.

– E depois? Que pretende fazer com toda essa sabedoria?

– Se eu algum dia adquirir sabedoria, creio que serei então bastante sábio para saber o que fazer com ela.

Isabel apertou violentamente as mãos e inclinou-se para a frente.

– Você está tão errado, Larry. Você é americano. Seu lugar não é aqui, é na América.

– Voltarei quando estiver pronto.

– Mas você está perdendo tanta coisa! Como é que consegue ficar aqui nesta pasmaceira, quando estamos vivendo a mais maravilhosa aventura que o mundo jamais conheceu? A Europa está acabada. Somos a maior, a mais poderosa nação do mundo. Caminhamos aos saltos. Nada nos falta. É seu dever participar do progresso da sua pátria. Você já se esqueceu, você não sabe como é empolgante a vida na América hoje em dia. Tem certeza de que não está agindo assim por não ter coragem de enfrentar o trabalho que aguarda todo americano? Oh! Sei que de certo modo você está trabalhando, mas não será isto apenas uma maneira de fugir às suas responsabilidades? Será alguma coisa mais do que uma espécie de ociosidade laboriosa? Que fim levaria a América se todo mundo se esquivasse como você?

– Você é muito severa, meu bem – replicou ele sorrindo. – A resposta a isto é que nem todo mundo sente o que eu sinto. Felizmente para eles, talvez, a maioria dos homens está pronta a seguir o curso normal; você se esquece de que tenho tanta sede de saber como... Gray, por exemplo, tem de ganhar rios e rios de dinheiro. Serei, por acaso, traidor à minha pátria, só pelo fato de querer passar alguns anos a educar-me? É possível que, ao terminar, eu possa dar à humanidade alguma coisa que ela tenha prazer em receber. Não é certo, naturalmente; mas, se eu fracassar, estarei na mesma posição do homem que entra num negócio e não consegue ir adiante.

– E quanto a mim? Não tenho nenhum valor para você?

– Muitíssimo. Quero que você se case comigo.

– Quando? Daqui a dez anos?

– Não. Agora. O mais depressa possível.

– De que jeito? Mamãe não está em condições de me dar um níquel. Além do mais, mesmo que pudesse, ela não o faria. Acharia errado ajudá-lo a viver na ociosidade.

– Não quero nada de sua mãe – replicou Larry. – Tenho três mil dólares anuais. Isto é mais do que suficiente aqui em Paris. Poderíamos ter um apartamentozinho e uma bonne à tout faire. Seria tão divertido, querida!

– Mas, Larry, ninguém pode viver com três mil dólares anuais.

– Claro que pode. Inúmeras pessoas vivem com muito menos.

– Mas eu não quero viver assim. Não há razão para isso.

– Tenho vivido com a metade.

– Mas como!

Ela olhou para o sujo quartinho com um estremecimento de repulsa.

– Isto significa que tenho algumas economias. Poderíamos ir a Capri na lua de mel e à Grécia no outono. Tenho uma vontade louca de ir até lá. Não se lembra como falávamos em viajar juntos pelo mundo?

– Claro que desejo viajar. Mas não dessa forma. Não quero ir de segunda classe, nos vapores, nem me hospedar em hotéis de terceira categoria, sem banheiro, nem comer em restaurantes baratos.

– Em outubro passado viajei assim por toda a Itália. Diverti-me imensamente. Poderíamos percorrer o mundo inteiro com três mil dólares por ano.

– Mas eu quero ter filhos, Larry.

– Está certo. Eles irão conosco.

– Você é tão tolo! – disse ela rindo. – Sabe quanto custa ter um filho? Violet Tomlinson teve um, no ano passado, e fez tudo com a maior economia possível, mas mesmo assim gastou mil duzentos e cinquenta dólares. E quanto pensa você que ganha uma ama? – Isabel ia-se animando, à medida que as ideias lhe ocorriam. – Você é muito pouco prático. Não sabe o que me está pedindo. Sou moça, quero divertir-me. Quero fazer o que os outros fazem. Quero ir a festas, quero ir a bailes, quero jogar golfe e andar a cavalo. Quero vestir-me bem. Você é capaz de imaginar o que significa para uma mulher não se sentir tão bem-vestida como as outras do seu grupo? Compreende o que significa, Larry, ter que comprar os vestidos usados das amigas que se fartaram deles, e ficar agradecida quando, por piedade, alguém se lembra de lhe fazer presente de um novo? Eu não poderia nem mesmo ir a um cabeleireiro decente! Não quero andar de ônibus pelas ruas; quero ter o meu carro particular. E que pensa você que eu iria fazer o dia inteiro, enquanto você estivesse lendo na biblioteca? Andar pelas ruas namorando as vitrinas, ou sentar-me no jardim do Luxemburgo a vigiar meus filhos para que nada lhes acontecesse? Não poderíamos ter amigos...

– Oh! Isabel – interrompeu ele.

– Não do tipo a que estou habituada. Oh! sim, os amigos do tio Elliott de vez em quando nos convidariam em consideração a ele, mas não poderíamos aceitar porque eu não teria vestido, nem estaríamos em condição de lhes retribuir as gentilezas. Não quero ter relações com uma porção de gente malvestida e suja; eu não teria nada a dizer-lhes, nem eles a mim. Quero viver, Larry. – Subitamente ela percebeu a expressão dos olhos dele, afetuosos como sempre, quando pousados nela, mas levemente irônicos. – Você acha que sou uma tola, não é verdade? Acha que estou sendo fútil e maldosa.

– Não, não acho. É muito natural que diga o que está dizendo.

Larry estava de pé, de costas para a lareira. Isabel ergueu-se e aproximou-se; viram-se frente a frente.

– Larry, se você não possuísse um níquel, mas tivesse um emprego que lhe rendesse três mil dólares por ano, eu não hesitaria em me casar com você. Eu cozinharia, arrumaria as camas, pouco me importaria com vestidos, faria qualquer sacrifício e acharia tudo divertidíssimo, pois estaria certa de que seria apenas uma questão de tempo, até você acabar vencendo. Mas isso que você quer significa viver miseravelmente, sordidamente, a vida inteira, sem uma esperança pela frente. Eu seria uma escrava até o dia da minha morte. E para quê? Para que você pudesse passar anos procurando respostas a perguntas que você mesmo considera insolúveis. Está errado. Um homem tem que trabalhar. É para isso que está no mundo. É assim que ele contribui para o bem-estar da comunidade.

– Em resumo, é meu dever instalar-me em Chicago e entrar para o escritório de Henry Maturin. Você acha que, pelo fato de convencer meus amigos a adquirirem títulos em que Henry Maturin está interessado, eu contribuiria grandemente para o bem-estar da comunidade?

– É preciso que haja corretores no mundo, e é uma maneira muito decente e honrosa de ganhar a vida.

– Você pintou um quadro muito negro da vida em Paris com uma renda módica. Sabe, não é exatamente assim. Uma moça pode vestir-se muito bem sem procurar Chanel. Nem todas as pessoas interessantes vivem na vizinhança do Arc de Triomphe e da Avenue Foch. Para falar a verdade, são mesmo poucas, porque em geral as pessoas interessantes não têm grande fortuna. Conheço muita gente aqui, pintores, escritores e estudantes, franceses, americanos e de outras nacionalidades, que considero muito mais interessante do que as definhadas marquesas e as narigudas duquesas de Elliott. Você tem uma inteligência viva e bastante senso de humor. Garanto que acharia divertido vê-los trocar ideias à mesa, mesmo que o vinho fosse somente vin ordinaire e o jantar não fosse servido por um mordomo e dois lacaios.

– Não seja tolo, Larry. Claro que acharia divertido. Você sabe que não sou esnobe. Teria prazer em conhecer gente interessante.

– Sim, num vestido de Chanel. Pensa que eles não perceberiam que você considerava aquilo como uma espécie de aventura? Eles não se sentiriam à vontade, você tampouco; e você não tiraria nenhum proveito, a não ser o de poder depois contar a Emily de Montadour e Gracie de Château-Gaillard como achava divertido ficar conhecendo uma porção de boêmios excêntricos no Quartier Latin.

Isabel encolheu levemente os ombros.

– Talvez você tenha razão. Eles não são do tipo de gente com quem estou habituada a conviver. Não são do tipo de gente com quem eu possa ter afinidade.

– Como ficamos, então?

– Exatamente onde começamos. Moro em Chicago desde que me entendo por gente. Ali estão os meus amigos, todos os meus interesses. Ali me sinto em casa. É a minha terra, Larry, como é também a sua. Mamãe está doente e não se restabelecerá. Mesmo que eu quisesse, não poderia deixá-la.

– Isto significa que, a não ser que eu esteja disposto a voltar para Chicago, você não se casará comigo?

Isabel hesitou. Amava Larry. Queria casar-se com ele. Desejava-o com toda a força dos seus sentidos e sabia-se desejada por ele. Não achava possível que, chegado o momento decisivo, ele não fraquejasse. Teve medo, mas precisava arriscar.

– Sim, Larry, significa exatamente isso.

Ele riscou um fósforo na lareira, um daqueles antigos fósforos franceses, de enxofre, que nos enchem as narinas de um odor acre, e acendeu o cachimbo. Depois, passando por Isabel, foi postar-se a uma das janelas e ficou olhando para fora. Guardou silêncio pelo que pareceu um espaço de tempo interminável. Isabel continuou de pé, no mesmo lugar onde estivera de frente para ele, e olhou para o espelho da lareira, mas com olhos que nada viam. Seu coração batia loucamente e ela estava morta de apreensão. Finalmente Larry voltou-se.

– Eu gostaria de poder fazê-la compreender como a vida que lhe ofereço é mais cheia do que qualquer outra que você possa ter imaginado. Gostaria que você pudesse experiência. É ilimitada. E tão feliz! Só uma coisa se lhe compara: quando se está sozinho num avião, alto, bem alto, circundado apenas pelo infinito. Aquela amplidão é intoxicante. A gente experimenta tão intensa sensação de júbilo que não a trocaria por todas as riquezas e glórias deste mundo. Há poucos dias estive lendo Descartes. Que desembaraço, que graça, que lucidez. Céus!

Isabel interrompeu-o em tom de desespero:

– Mas, Larry, não vê que me está pedindo uma coisa para a qual não fui feita, pela qual não me interesso, e não me quero interessar? Quantas vezes terei que repetir que sou apenas uma moça medíocre, normal, que tenho vinte anos, que daqui a dez estarei velha, que quero divertir-me enquanto posso? Oh! Larry, gosto tanto, tanto, de você! Isso é uma fantasia; não o conduzirá a parte alguma. No seu próprio interesse, imploro-lhe que desista. Seja homem, Larry, e cumpra o seu dever de homem. Você está perdendo anos preciosos, de que outros estão tirando o máximo proveito. Larry, se você tem mesmo amor por mim, não me trocará por um sonho. Você já se divertiu bastante. Volte conosco para a América.

– Não posso, querida. Seria uma verdadeira morte para mim. Seria atraiçoar minha alma.

– Oh! Larry, por que fala dessa forma? É assim que se exprimem as mulheres histéricas, metidas a intelectuais. Que significa? Nada. Nada. Nada.

– Significa exatamente o que sinto – respondeu ele

– Como é que você pode brincar? Não vê que isto é muito sério? Chegamos à encruzilhada, e o que agora fizermos vai afetar toda a nossa vida.

– Sei disso. Creia-me, estou falando sério. Ela suspirou.

– Se você não quer ser razoável, então não há mais nada a dizer.

– Mas não acho que seja razoável. Acho que você só esteve dizendo disparates.

– Eu? – exclamou Isabel. Se não se sentisse tão infeliz, ela teria rido. – Meu pobre Larry, você está doido varrido.

Lentamente ela tirou do dedo o anel de noivado, colocou-o na palma da mão e ficou a contemplá-lo. Era um rubi quadrado, incrustado num fino aro de platina e Isabel sempre o apreciara.

– Se você gostasse de mim, não me faria sofrer tanto.

– Gosto de você. Infelizmente, às vezes a gente não pode fazer o que acha direito sem causar sofrimento a alguém.

Ela estendeu a mão onde estava o rubi e obrigou-se a sorrir.

– Aqui está, Larry.

– De nada me serve. Não quer guardá-lo como lembrança da nossa amizade? Você pode usá-lo no dedinho. Isto não altera a nossa amizade, não é mesmo?

– Sempre hei de gostar de você, Larry.

– Guarde-o, então, que me dará prazer.

Ela hesitou, depois enfiou o anel no dedo da mão direita.

– É grande demais.

– Você pode mandar diminuí-lo. Vamos até o bar do

Ritz, tomar um drinque.

– Está certo.

Isabel admirou-se de tudo ter se passado tão simplesmente. Ela não chorara. Nada parecia ter mudado; só que agora já não ia casar-se com Larry. Mal podia acreditar que estava tudo acabado. Ficou um tanto mortificada pelo fato de não ter havido uma violentíssima cena. Tinham resolvido o caso quase tão friamente como se estivessem a discutir a escolha de uma casa de aluguel. Ela se sentia como que lesada, mas ao mesmo tempo experimentou uma ligeira satisfação por terem se comportado de maneira tão civilizada. Daria muito para conhecer exatamente os sentimentos de Larry no momento. Mas isso era sempre difícil de saber; o rosto suave, os olhos escuros eram uma máscara que mesmo Isabel, que o conhecia há tantos anos, jamais poderia penetrar.

Ao entrar ela tirara o chapéu e o pusera sobre a cama; agora, em frente ao espelho, colocou-o de novo e, arranjando o cabelo, perguntou:

– Apenas por curiosidade: você queria desmanchar o nosso noivado?

– Não.

– Pensei que talvez fosse um alívio para você. – Como Larry não respondesse, ela virou-se com um sorriso alegre e acrescentou: – Estou pronta.

Ao sair, Larry trancou o quarto. Quando entregou a chave ao homem da portaria, este os envolveu num olhar de insolente cumplicidade. Isabel não pôde deixar de perceber que ideia o homem fazia da ida deles ao quarto.

– Não creio que aquele sujeito tenha muita fé na minha virgindade – disse ela.

Foram de táxi até o Ritz e ali tomaram um drinque. Falaram de coisas triviais, aparentemente sem constrangimento, como dois velhos amigos que se veem todos os dias. Embora Larry fosse calado por natureza, Isabel era tagarela, com amplo estoque de conversa-fiada, e estava decidida a não permitir que entre eles se fizesse um silêncio que seria depois difícil de quebrar. Não queria que Larry pensasse que lhe guardava ressentimento, e o orgulho obrigava-a a agir de forma a não deixá-lo suspeitar que estava magoada e infeliz. Dali a pouco sugeriu que Larry a levasse até em casa.

Quando chegaram à porta, Isabel disse alegremente:

– Não se esqueça que você vem almoçar conosco amanhã.

– Não há perigo!

Ela apresentou-lhe a face para ser beijada e passou pela porte-cochère.


5

Ao entrar na sala de visitas, Isabel viu que havia ali algumas pessoas para o chá. Lá estavam duas americanas que moravam em Paris, muito bem-vestidas, com colares de pérolas em volta do pescoço, braceletes de brilhantes nos pulsos e custosos anéis nos dedos. Embora o cabelo de uma fosse tinto de um negro carregado, e o da outra de um dourado artificial, ambas eram extraordinariamente semelhantes. Tinham as mesmas pestanas muito pintadas, os mesmos lábios rubros, as mesmas faces carregadas de carmim, a mesma delgada silhueta, mantida à custa de incríveis sacrifícios, as mesmas feições nítidas, agudas, o mesmo olhar faminto e inquieto; e ninguém podia deixar de perceber que sua vida era uma luta desesperada pela conservação de encantos que atingiam o ocaso. Falavam sobre futilidades, numa voz alta, metálica, sem uma pausa, como se temessem que, se ficassem por um momento silenciosas, a máquina enguiçasse, e o monumento artificial de que era símbolo se esfacelasse por completo. Lá estava um secretário da embaixada americana, suave, silencioso, pois não o deixavam dizer uma palavra, e homem muito fino; e também um trigueiro principezinho romeno, servil e todo cheio de mesuras, com vivos olhinhos pretos e escuro rosto barbeado, e que a cada momento pulava para oferecer uma xícara de chá, passar um prato de bolinhos ou acender um cigarro, e que cinicamente fazia às pessoas presentes os mais exagerados e vulgares elogios. Estava pagando pelos jantares que recebera das pessoas a quem assim adulava, e por todos os jantares a que esperava ser convidado.

Sentada a uma mesinha de chá e, para ser agradável a Elliott, vestida com maior luxo do que achava apropriado para a ocasião, mrs. Bradley cumpria os deveres de dona de casa com sua habitual, se bem que fria, gentileza. Que opinião tinha dos amigos de Elliott é coisa que deixo a cargo da imaginação. Só a conheci superficialmente, e era pessoa muito reservada. Nada tola; durante todos aqueles anos vividos em capitais estrangeiras, conhecera inúmeras pessoas, de vários tipos, e creio que as soubera julgar com bastante perspicácia, de acordo com o ponto de vista da cidadezinha da Virgínia onde nascera e fora criada. Parece-me que ela achava divertido observar os pontos ridículos dessas pessoas; e não creio que tenha dado maior importância aos seus dengues e mesuras do que aos sofrimentos e peripécias dos personagens de um romance que desde o princípio (pois do contrário não o teria lido) sabia que ia acabar bem. Paris, Roma, Pequim não tinham sobre o seu americanismo maior efeito do que o fervor católico de Elliott sobre sua firme, se bem que não exagerada, fé presbiteriana.

Com sua mocidade, aparência robusta e vitalidade, Isabel trouxe um sopro de ar fresco àquela atmosfera meretrícia. Irrompeu na sala como uma jovem deusa terrestre. O príncipe romeno levantou-se de um salto para lhe oferecer uma cadeira, e com ampla gesticulação desempenhou o seu papel. Com frases de estridente amabilidade, as duas americanas olharam-na da cabeça aos pés, notaram os detalhes do seu traje, e é possível que, no fundo do coração, tenham ficado consternadas com o confronto daquela exuberante mocidade. O diplomata americano sorriu intimamente, ao notar como a presença de Isabel fazia com que as outras duas parecessem artificiais e envelhecidas. Mas Isabel achou-as formidáveis: gostou dos ricos trajes e das valiosas pérolas, e sentiu uma pontinha de inveja da imponência e da pose que elas tinham. Gostaria de saber se jamais conseguiria atingir aquela suprema elegância. O principezinho romeno era, naturalmente, ridículo; mas não deixava de ser um amor e, mesmo que não fossem sinceras as coisas amáveis que dizia, sempre era um prazer ouvi-las. A conversa que a chegada de Isabel interrompera foi reatada, e falaram com tanta vivacidade, com tão grande convicção da importância do que diziam que quase se chegava a acreditar que havia sentido em tudo aquilo. Falaram das festas a que tinham ido e das festas a que pretendiam ir.

Comentaram o último escândalo. Reduziram os amigos à expressão mais simples. Citaram grandes nomes a torto e a direito. Pareciam íntimos de todo mundo. Não havia segredo que desconhecessem. Quase no mesmo fôlego, falaram da peça teatral da moda, da costureira da moda, do pintor da moda, da última amante do ministro da moda. Era de se pensar que não havia o que elas ignorassem. Isabel escutava deliciada. Tudo aquilo lhe parecia maravilhosamente civilizado. Aquilo, sim, era vida. Experimentou a emoção de quem sente que está compartilhando de coisas de interesse. Aquilo era real. O cenário, perfeito. A espaçosa sala com o seu tapete Savonnerie, os lindos desenhos nas paredes de lambris, as cadeiras de petit point, os valiosos móveis de madeira entalhada, as cômodas e mesas avulsas, peças todas dignas de um museu... A sala devia ter custado uma fortuna, mas valia a pena. A sóbria beleza mais do que nunca impressionou Isabel, pois ela ainda conservava vívida a lembrança do pobre quartinho de hotel, com sua cama de ferro, e aquela cadeira dura, tão pouco confortável, onde se sentara; aquele quarto em que Larry não via defeito algum... Nu, sombrio, horrível. Só a lembrança lhe causou um estremecimento.

As visitas saíram e Isabel ficou sozinha com sua mãe e Elliott.

– Senhoras encantadoras – disse Elliott, depois de ter acompanhado à porta os dois pobres farrapos pintados. – Conheci-as quando se instalaram em Paris. Nunca pensei que chegassem a ficar tão elegantes! É realmente extraordinário o poder de adaptação das nossas compatriotas.

Hoje ninguém diria que são americanas, e do Oeste Central, ainda por cima.

Com um arquear de sobrancelhas, mas sem dizer palavra, mrs. Bradley lançou a Elliott um olhar que com a sua perspicácia ele não pôde deixar de compreender.

– Ninguém poderia jamais dizer isto de você, minha pobre Louisa – continuou ele em tom ao mesmo tempo azedo e afetuoso. – Se bem que não lhe faltaram oportunidades!

Mrs. Bradley contraiu os lábios.

– Creio que sempre fui a sua grande decepção na vida, Elliott, mas, para ser franca, estou muito satisfeita comigo mesma assim como sou.

– Tous les goûts sont dans la nature – murmurou Elliott.

– Acho que é meu dever contar-lhes que não estou mais noiva de Larry – interveio Isabel.

– Ora, ora! – exclamou Elliott. – Isto vai transtornar o arranjo da minha mesa de almoço, amanhã. Como é que vou arranjar avulso em tão curto prazo?

– Oh! pode estar certo de que ele virá almoçar.

– Depois de vocês terem desmanchado o noivado? Mas não fica bem.

Isabel riu abafadamente. Continuou virada para Elliott, pois sabia que a mãe a fitava e não queria encontrar o olhar dela.

– Não brigamos. Discutimos o assunto hoje à tarde e chegamos à conclusão de que tínhamos cometido um erro. Ele não quer voltar para a América; quer continuar em Paris. Está falando em ir para a Grécia.

– Para quê, Santo Deus? Não há vida social em Atenas. Para ser franco, nunca dei mesmo grande valor à arte grega. Algumas daquelas coisas helênicas têm um encanto decadente, que não deixa de ser interessante. Mas Fídias, não, não!

– Olhe para mim, Isabel – disse mrs. Bradley.

Isabel virou-se e fitou-a com um leve sorriso. Mrs. Bradley observou-a com um olhar perscrutador, mas só o que disse foi “Humm”. Viu que a filha não chorara; parecia mesmo calma e senhora de si.

– A vantagem foi toda sua, Isabel – disse Elliott. – Eu estava disposto a fazer cara alegre, mas nunca achei que fosse um bom casamento. Larry não estava realmente à sua altura, e o procedimento dele aqui em Paris indica claramente que nunca chegará a ser alguém. Com sua beleza e relações você pode aspirar a coisa muito melhor. Na minha opinião, você agiu com raro discernimento.

Mrs. Bradley lançou à filha um olhar não de todo destituído de ansiedade.

– Você não fez isto por minha causa, Isabel? A moça sacudiu enfaticamente a cabeça.

– Não, meu bem. A responsabilidade é inteiramente minha.


6

Tendo regressado do Oriente, justamente nesta ocasião eu estava passando uns tempos em Londres. Quinze dias, talvez, após os acontecimentos que descrevi, Elliott chamou-me ao telefone. Não fiquei admirado ao reconhecer-lhe a voz, pois sabia que ele costumava vir gozar em Londres o fim da temporada. Contou-me que mrs. Bradley e Isabel tinham vindo com ele e que, se eu quisesse aparecer aquela tarde, às seis horas, para tomar um drinque, teriam muito prazer em receber-me. Estavam, naturalmente, hospedados no Claridge. Naquele tempo eu não morava muito longe dali, de modo que desci por Park Lane, a pé, e percorri as calmas e corretas ruas de Mayfair, até chegar ao hotel. Elliott estava no seu apartamento de costume. As paredes eram de lambris de tom havana, como o de uma caixa de charutos, e a mobília de uma sóbria suntuosidade. Encontrei-o só. Mrs. Bradley e Isabel tinham ido às compras, mas deviam voltar a qualquer minuto. Contou-me que Isabel já não estava noiva de Larry.

Com suas ideias românticas e excessivamente convencionais, a respeito do procedimento das pessoas em determinadas circunstâncias, Elliott ficara chocado com o comportamento dos dois jovens. Não somente Larry comparecera ao almoço no dia imediato ao rompimento, mas agira como se sua posição em nada estivesse alterada. Mostrou-se amável, atencioso e discretamente alegre como de costume. Tratou Isabel com a mesma afetuosa camaradagem; não parecia nervoso, perturbado, ou pesaroso. Tampouco Isabel se mostrara inconsolável. Parecendo tão feliz como antes, ria com a mesma despreocupação, pilheriava com igual vivacidade, como se não tivesse dado um passo decisivo, e certamente desagradável, na sua vida. Elliott não entendia mais nada. Por trechos de conversa que ouviu deles, veio a saber que não pretendiam cancelar nenhum dos compromissos que tinham assumido um com o outro. Na primeira oportunidade ele falou nisso a mrs. Bradley.

– Não fica bem – declarou. – Os dois não podem andar de lá para cá como se ainda fossem noivos. Francamente, Larry podia ter um pouco mais de respeito às convenções. Além do mais, isto prejudica Isabel. O jovem Fotheringham, aquele rapaz da embaixada inglesa, está visivelmente caído por ela. Tem dinheiro e boas relações; se soubesse que o terreno está livre, garanto que se candidataria. Acho que você deve falar a Isabel sobre isso.

– Meu caro, Isabel está com vinte anos, e tem – para dizer às pessoas, sem ofendê-las, que não se metam no que não é da sua conta – uma técnica contra a qual sempre achei dificílimo lutar.

– Pois então você educou-a pessimamente, Louisa. Além do mais, é da sua conta.

– Está aí um ponto em que ela, certamente, não concordaria com você.

– Você está esgotando a minha paciência, Louisa.

– Meu pobre Elliott, se você tivesse uma filha moça, ficaria sabendo que é relativamente mais fácil lidar com um tourinho do que com ela. Quanto a saber o que Isabel está sentindo... Bom, é preferível eu fingir ser a velha simples e inocente por quem ela me toma.

– Mas você discutiu o caso com ela?

– Experimentei. Isabel riu e disse que não havia realmente nada para contar.

– Está muito pesarosa?

– Não sei. Só o que posso dizer é que come bem e dorme como um anjinho.

– Pois bem, ouça o que lhe digo: se você deixar que continuem assim, um destes dias eles acabam fugindo e casando-se sem dizer nada a ninguém.

Mrs. Bradley condescendeu em sorrir.

– Deve ser para você um alívio saber que no momento atual estamos vivendo num país onde toda irregularidade sexual é facilitada, e onde o casamento encontra inúmeros obstáculos.

– E acertadamente. O casamento é uma instituição muito séria, sobre a qual se firmam a segurança da família e a estabilidade do Estado. Mas o casamento só pode conservar sua força se as relações extraconjugais forem não somente toleradas, mas permitidas. A prostituição, minha pobre Louisa...

– Basta, Elliott – interrompeu mrs. Bradley. – Não estou interessada em conhecer o seu ponto de vista sobre a importância social e moral da fornicação promíscua.

Foi aí que Elliott sugeriu o plano que iria interromper a convivência de Isabel com Larry, que tanto repugnava ao seu convencionalismo. A estação em Paris agonizava e a melhor gente estava providenciando sua ida para estações de águas, ou Deauville, antes de se retirar, para o resto do verão, para seus castelos ancestrais em Touraine, Anjou ou Bretanha. Em geral Elliott só ia para Londres em fins de junho, mas seu instinto de família era muito forte, e sincera a afeição que sentia por sua irmã e Isabel; estivera pronto a fazer o sacrifício de ficar em Paris, se elas assim o desejassem, quando ali já não havia pessoa que contasse socialmente; mas via-se agora na agradável posição de poder fazer o que era de vantagem para os outros e ao mesmo tempo conveniente para si próprio. Sugeriu a mrs. Bradley partirem imediatamente para Londres, onde a estação ainda estava no auge e onde novos interesses e novos amigos iriam distrair o pensamento de Isabel do seu malfadado romance. A julgar pelos jornais, um dos maiores especialistas em diabetes se encontrava em Londres, na ocasião, e a vantagem de consultá-lo justificaria amplamente a súbita partida, vencendo qualquer má vontade que Isabel pudesse ter em abandonar Paris. Mrs. Bradley aprovou a ideia. Isabel deixava-a perplexa. Impossível saber se a sua despreocupação era sincera ou se, magoada, zangada, ou infeliz, ela adotara aquela máscara ousada para esconder sua humilhação. Mrs. Bradley concordou com Elliott que faria bem a Isabel conhecer gente e lugares novos.

Elliott não perdeu tempo em telefonar, e, quando Isabel entrou em casa, depois de ter passado o dia em Versailles com Larry, ele pôde comunicar-lhe que conseguira marcar hora com o célebre especialista para dali a três dias, que reservara um apartamento no Claridge e que dois dias depois iam para Londres.

Mrs. Bradley observou Isabel, enquanto Elliott um tanto pedantemente lhe dava a notícia; mas a moça não se mostrou absolutamente perturbada.

– Oh! mamãe, estou tão contente de você poder consultar o especialista! – exclamou Isabel com a sua habitual impetuosidade. – Claro que não deve perder esta ocasião. E será ótimo, um passeio a Londres. Quanto tempo vamos ficar lá?

– Não adiantaria voltarmos para Paris – disse Elliott.

– Dentro de oito dias não haverá aqui uma alma. Quero que vocês fiquem comigo no Claridge até o fim da estação. Em julho há sempre bons bailes; além do mais, não nos devemos esquecer de Wimbledon. E, depois, Goodwood e Cowes. Tenho certeza de que os Ellingham terão prazer em nos convidar ao seu iate, para Cowes, e os Bantock sempre levam um grupo grande, para Goodwood.

Isabel parecia encantada e mrs. Bradley sentiu-se mais tranquila. A julgar pelas aparências, ela não estava dando a mínima importância a Larry.

Elliott acabara de me contar tudo isso, quando mãe e filha entraram. Fazia mais de ano e meio que eu não as via. Achei mrs. Bradley mais magra e de fisionomia ainda mais lívida; parecia cansada e não estava com boa aparência. Mas Isabel estava florescente. Com seu rosto corado, cabelos bronzeados, vivos olhos castanhos e pele transparente, dava tal impressão de mocidade, de tão intensa alegria de viver, que a gente quase tinha vontade de rir de puro gozo. Absurdamente, comparei-a a uma pera, dourada e saborosa, perfeitamente madura e tentando o apetite alheio. Irradiava calor, dando a impressão de que bastaria a gente estender as mãos para sentir o seu conforto. Pareceu-me mais alta, não sei se por estar usando salto mais alto ou se porque uma costureira habilidosa soubera escolher um modelo que lhe disfarçasse o excessivo arredondamento da mocidade; mantinha-se com a graça despreocupada da pessoa que desde a infância faz esportes ao ar livre. Em resumo, sexualmente era uma rapariga muitíssimo atraente. Se eu fosse sua mãe, trataria logo de casá-la.

Satisfeito com a oportunidade de poder retribuir a mrs. Bradley as gentilezas que ela me havia dispensado em Chicago, sugeri que os três fossem comigo ao teatro numa daquelas noites. Convidei-os também para um almoço.

– Trate de não deixar para muito tarde, meu caro – disse-me Elliott. – Participei aos amigos a minha chegada, e daqui a dois ou três dias provavelmente já estaremos comprometidos para toda a temporada.

Achei que com isso ele queria dizer que, nesse caso, não teria tempo a perder com gente da minha espécie, e não pude deixar de rir. Elliott lançou-me um olhar onde havia uma expressão altiva.

– Mas, naturalmente, você sempre nos encontrará aqui às seis horas, e teremos imenso prazer em vê-lo – disse-me amavelmente, mas com a visível intenção de me colocar, como escritor, na minha humilde posição.

Mas às vezes a vingança é doce...

– Você precisa procurar os St. Olpherd – disse-lhe eu. – Contaram-me que eles pretendem dispor do seu Constable of Salisbury Cathedral.

– No momento atual não tenho intenção de comprar quadros. – Sei disso, mas achei que talvez você pudesse servir de intermediário.

Os olhos de Elliott tiveram um brilho de aço.

– Meu caro amigo, a Inglaterra é uma grande nação, mas os ingleses nunca souberam e nunca saberão pintar. A escola inglesa não me interessa.


7

Naquelas quatro semanas pouco vi Elliott e sua família. Ele soube tratá-las. Levou-as para um fim de semana numa aristocrática mansão, em Sussex, e para outro fim de semana, ainda mais aristocrático, em Wiltshire. Foram à Ópera, ao camarote real, como convidadas de uma princesa de menos importância da Casa de Windsor. Almoçaram e jantaram com a nobreza. Isabel foi a vários bailes. Elliott deu, no Claridge, recepção a que compareceram convidados cujo nome fazia um vistão no jornal, no dia seguinte. Promoveu ceias no Ciro e na embaixada. Em resumo, fez tudo como devia ser feito, e Isabel precisaria ter sido muito mais blasé para não ficar ofuscada com a elegância e o esplendor exibidos para o seu deleite. Elliott podia gabar-se de estar fazendo tudo aquilo por um motivo puramente desinteressado, para que Isabel esquecesse o seu malogrado caso de amor; mas desconfiei que no fundo ele sentia grande satisfação em poder mostrar a mrs. Bradley como era íntimo dos ilustres e dos elegantes. Recebia admiravelmente e tinha imenso prazer em exibir essa sua qualidade.

Fui a uma ou duas de suas recepções, e de vez em quando passava pelo Claridge, às seis horas. Encontrava Isabel cercada por mocetões bonitos e bem-vestidos, da Household Brigade, ou por rapazes elegantes, mas menos bem-vestidos, do Ministério do Exterior. Numa dessas ocasiões ela me chamou de lado.

– Quero fazer-lhe uma pergunta – disse-me ela. – Lembra-se daquela noite em que fomos à drugstore tomar um ice-cream-soda?

– Lembro-me perfeitamente.

– O senhor foi muito camarada e me ajudou bastante. Quer ser camarada e ajudar-me de novo?

– Farei o possível.

– Quero falar com o senhor sobre certo assunto. Não podíamos almoçar juntos um destes dias?

– Quando quiser.

– Num lugar quieto.

– Que tal irmos de carro até Hampton Court e almoçar ali? Os jardins devem estar no auge da beleza e você poderia ver a cama da rainha Isabel.

O plano lhe agradou; ficou tudo combinado. Mas, quando chegou o dia, o tempo até então firme e quente mudou. Céu cinzento; caía uma chuvinha miúda. Telefonei a Isabel, perguntando-lhe se não preferia almoçar na cidade.

– Impossível nos sentarmos nos jardins, e os quadros estarão tão escuros que não distinguiremos coisa alguma – disse eu.

– Tenho me sentado em muitos jardins e estou farta dos grandes mestres. Vamos assim mesmo.

– Está certo.

Fui buscá-la de automóvel. Eu conhecia um hotelzinho onde a comida era passável; seguimos diretamente para lá. No caminho, com a sua habitual vivacidade Isabel falou das festas a que fora e das pessoas que ficara conhecendo. Estava se divertindo à grande, mas, pelos comentários que fez sobre seus novos conhecidos, vi que a pequena era perspicaz e sabia facilmente distinguir o ridículo. O mau tempo afugentara os visitantes e éramos os únicos na sala de jantar. A especialidade do hotel era a simples comida inglesa. Serviram-nos uma fatia de excelente perna de carneiro com ervilhas e batatinhas, e uma torta de maçã com creme Devonshire. Com um copo de cerveja, foi um ótimo almoço. Quando acabamos, sugeri irmos para a saleta do café, que estava vazia, e onde poderíamos nos sentar em confortáveis poltronas. Fazia frio ali, mas o fogo estava preparado e risquei um fósforo para acendê-lo. As chamas tornaram a fria salinha mais acolhedora.

– Pronto – disse eu. – Conte-me agora sobre que deseja conversar comIgo.

– A mesma coisa da última vez – disse ela com uma risadinha abafada. – Larry.

– Foi o que pensei.

– O senhor sabe que rompemos o nosso noivado.

– Elliott contou-me.

– Mamãe ficou aliviada e meu tio encantado.

Isabel hesitou por um instante e depois iniciou a descrição da cena com Larry, que já fiz o possível por narrar fielmente. Talvez o leitor se admire de Isabel ter escolhido, para confidente, uma pessoa que ela conhecia tão pouco. Não creio que eu a tivesse visto mais que uma dúzia de vezes e, a não ser naquela ocasião na drugstore, nunca a sós. Mas a mim isto não surpreendeu. Em primeiro lugar, fato que qualquer escritor confirmará, em geral as pessoas fazem a um escritor confidências que não fariam a outros. Desconheço a razão, a não ser que, pelo fato de terem lido um ou dois dos seus livros, se consideram em termos de intimidade com ele. Ou talvez elas se dramatizam a si próprias e, vendo-se como personagens de um romance, resolvam falar-lhe com a mesma franqueza com que, imaginam, lhe falam os tipos por ele criados. E penso que Isabel sentia que eu gostava dela e de Larry, que sua mocidade me comovia e que eu me condoía dos seus pesares. Ela não podia esperar encontrar um confidente de boa vontade em Elliott, pois este não tinha o menor desejo de se preocupar com pessoa que desprezara a melhor oportunidade que um rapaz jamais tivera de entrar na sociedade. Nem sua mãe poderia ajudá-la. Mrs. Bradley tinha princípios elevados e bom senso. Seu bom senso lhe dizia que, se uma pessoa deseja ir adiante neste mundo, tem que se conformar com as convenções do mundo e não fazer aquilo que todos consideram como sinal de desequilíbrio mental. Seus princípios elevados faziam com que achasse dever de um homem trabalhar num negócio onde, com energia e iniciativa, tivesse a oportunidade de ganhar dinheiro suficiente para sustentar mulher e filhos de acordo com a sua posição, dar aos filhos uma educação que lhes permitisse, mais tarde, ganhar honestamente a vida, e, ao morrer, deixar a viúva com recursos para se manter.

Isabel tinha boa memória e ainda se lembrava das várias fases da longa discussão com Larry. Ouvi em silêncio, até ela terminar. Interrompeu-se apenas uma vez, para me fazer uma pergunta:

– Quem foi Ruysdael?

– Ruysdael? Era um paisagista holandês. Por quê? Contou-me que Larry o mencionara. Dissera ele que pelo menos Ruysdael encontrara solução para o que desejara saber, e Isabel me repetiu a petulante réplica de Larry, quando ela lhe perguntara quem era aquele sujeito.

– O que quereria ele dizer? Tive uma inspiração.

– Você tem certeza de que ele não disse Ruysbroek? – perguntei.

– É bem possível. Quem era ele?

– Um místico flamengo que viveu no século xiv.

– Oh! – exclamou Isabel, decepcionada.

Para ela nada significava. Mas significava alguma coisa para mim. Era a primeira indicação que eu tinha do rumo que estavam tomando as reflexões de Larry; e, enquanto Isabel continuava a narrativa, embora eu a ouvisse atentamente, com outra parte do pensamento preocupei-me com as possibilidades que aquela referência de Larry sugeria. Não quis dar muita importância ao fato, pois era bem possível que ele houvesse citado o nome do Teólogo Místico apenas como argumento; mas podia também ter uma significação que escapara a Isabel. Ao dizer-lhe que Ruysbroek era apenas um sujeito que ele não conhecera no colégio, evidentemente Larry procurava despistá-la.

– Qual a sua opinião sobre tudo isso? – perguntou-me a moça ao terminar.

Esperei alguns instantes antes de responder.

– Lembra-se de Larry ter dito que ia apenas vadiar? Se o que ele lhe contou é verdade, então sua vagabundagem parece abranger um trabalho muito cansativo.

– Tenho certeza que é verdade. Mas não acha o senhor que, se ele se tivesse igualmente esforçado num trabalho produtivo, poderia estar com uma boa renda?

– Algumas pessoas têm um temperamento esquisito. Existem criminosos que trabalham como mouros a organizar planos que os levam à prisão e que, nem bem recuperam a liberdade, reincidem e acabam sendo novamente presos. Se eles empregassem a mesma perseverança, a mesma inteligência, a mesma paciência e os mesmos recursos em algum projeto honesto, poderiam ter uma ótima renda e ocupar posições de destaque. Mas a questão é que são feitos daquela massa. Gostam do crime.

– Pobre Larry – disse ela, rindo baixinho. – O senhor não me vai dizer que ele está aprendendo grego para assaltar um banco.

Também ri.

– Não vou, não; o que estou tentando dizer-lhe é que há homens que sentem tão intenso desejo de fazer uma determinada coisa que não podem absolutamente deixar de fazê-la. Estão dispostos a sacrificar tudo para satisfazer esse anseio.

– Até mesmo as pessoas que gostam deles?

– Oh! sim.

– Não acha que isso é puro egoísmo?

– Não sei dizer – respondi sorrindo.

– Que utilidade prática pode ter para Larry o estudo de línguas mortas?

– Algumas pessoas têm um desejo desinteressado de adquirir cultura. Não se pode dizer que seja um desejo ignóbil.

– Mas de que adianta a cultura, se a pessoa não pretende utilizá-la?

– Talvez ele pretenda. Talvez só o fato de saber seja uma satisfação, como ao artista basta a satisfação de produzir uma obra de arte. E talvez seja apenas um passo para coisa mais avançada.

– Se ele tem tanta sede de saber, por que não foi então para o colégio quando voltou da guerra? Era o que o dr. Nelson e mamãe queriam que ele fizesse.

– Falei com Larry sobre isso em Chicago. Um diploma de nada lhe adiantaria. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Você sabe, no estudo existe o lobo solitário, da mesma maneira que existe o lobo que se move com a alcateia. Acho que Larry é uma dessas pessoas que não podem tomar outro caminho a não ser o seu próprio.

– Lembro-me de que uma vez lhe perguntei se não sentia vontade de escrever. Ele me respondeu que não tinha sobre o quê escrever.

– É esta a razão mais inconcludente que conheço para uma pessoa não escrever – comentei sorrindo.

Isabel fez um gesto de impaciência. Não estava em estado de espírito de apreciar nem mesmo a mais leve pilhéria.

– Não posso compreender como ele chegou a ficar assim. Antes da guerra era como todo mundo. Talvez o senhor não acredite, mas ele joga muito bem tênis e é também perito no golfe. Costumava fazer tudo que o nosso grupo fazia. Era um rapaz perfeitamente normal e não havia razão para se supor que não viesse a ser um homem perfeitamente normal. Afinal de contas, o senhor é um romancista, deve ter uma explicação para isso.

– Quem sou eu para explicar as inúmeras complexidades da natureza humana?

– É por isso que eu queria falar hoje com o senhor – continuou Isabel, sem ligar ao que eu dissera.

– Você é infeliz?

– Infeliz, exatamente não. Quando Larry não está presente, tudo vai bem; quando estou perto dele é que me sinto tão fraca. Agora é apenas uma sensação dolorida, como a rigidez que sentimos após um longo passeio a cavalo, quando ficamos muito tempo sem montar; não é dor, não é insuportável, mas está ali. Isso passará, é lógico. Acho detestável pensar que Larry está estragando sua vida dessa forma.

– Talvez isto não aconteça. Ele está começando a viajar por uma estrada longa e árdua, mas é possível que no fim da jornada encontre o que procura.

– E o que ele procura?

– Ainda não lhe ocorreu? Parece-me, pelo que ele lhe disse, que não há dúvida a respeito: Deus.

– Deus! – exclamou Isabel. Mas foi uma exclamação de surpresa e incredulidade. Nosso emprego da mesma palavra, mas em sentido diverso, teve tão cômico efeito que não pudemos deixar de rir. Mas Isabel imediatamente ficou de novo séria, e notei em toda a sua atitude qualquer coisa que lembrava o medo.

– Mas, francamente, por que motivo chegou o senhor a essa conclusão?

– Estou apenas adivinhando. Mas você me pediu minha opinião como romancista. Infelizmente você não sabe qual foi o acontecimento, na guerra, que tão profundamente o afetou. Algum choque, suponho, com o qual ele absolutamente não contava. É possível que isto tenha feito Larry compreender como é transitória a vida, dando-lhe o angustioso desejo de saber que há uma compensação para os males e tristezas do mundo.

Percebi que Isabel não estava gostando do rumo que eu dera à conversa. Parecia intimidada e constrangida.

– Mas não será isto incrivelmente mórbido? A gente tem que aceitar o mundo como é. Se estamos aqui, é certamente para tirarmos o máximo proveito da vida.

– É provável que você tenha razão.

– Não tenho a pretensão de ser nada mais que uma moça perfeitamente normal, comum. Quero divertir-me.

– Parece-me que havia uma absoluta incompatibilidade de gênios entre vocês dois – disse eu. – Foi muito melhor terem descoberto isto antes do casamento.

– Quero casar-me, e ter filhos, e viver...

– Na condição de vida que uma misericordiosa Providência houve por bem lhe dar – interrompi sorrindo.

– Pois bem, não há mal nisso, há? É uma condição agradável e estou muito satisfeita com ela.

– Vocês são como dois amigos que desejam tirar férias juntos, mas um deles quer galgar as montanhas cobertas de neve da Groenlândia, ao passo que o outro quer ir pescar perto do banco de coral da Índia.

– Em todo caso, nas montanhas da Groenlândia talvez eu arranjasse um casaco de pele, mas duvido que haja peixes perto do banco de coral da Índia.

– É o que ainda se precisa ver.

– Por que diz isto? – perguntou-me Isabel, contraindo de leve as sobrancelhas. – O tempo todo o senhor parece estar guardando alguma coisa para si! Claro que sei que em tudo isto o papel bonito não é meu. Este papel cabe a Larry. É ele o idealista, o que teve um lindo sonho, e, mesmo que o sonho não se torne realidade, será sempre belo tê-lo sonhado. A mim me toca a parte dura, mercenária, prática. Bom senso nunca foi coisa muito simpática, não é verdade? Mas do que o senhor se esquece é que eu é que teria que sofrer. Larry avançaria majestosamente, com sua cauda gloriosa, e a mim só me restaria seguir atrás dele, procurando fazer o dinheiro render de um jeito ou de outro. Quero viver.

– Não me esqueci disso, em absoluto. Há anos, quando eu era moço, conheci um médico, nada mau, mas que não clinicava. Passou anos enfurnado na biblioteca do Museu Britânico e, com longos intervalos, surgia com um livro pseudocientífico, pseudofilosófico, que ninguém lia e que ele era obrigado a publicar por conta própria. Escreveu quatro ou cinco, antes de morrer; livros absolutamente sem valor. Tinha um filho que queria seguir a carreira militar, mas não havia dinheiro para mandá-lo para Sandhurst, de modo que o rapaz teve que se alistar e acabou morrendo na guerra. Tinha também uma filha. Era bem bonita e eu tinha uma quedinha por ela. Entrou para o teatro, mas, não tendo talento, andou de província em província representando papéis sem importância, em companhias de segunda classe, ganhando salário irrisório. Quanto à esposa do médico, depois de anos de luta e sórdida pobreza, adoeceu, e a filha teve que voltar para casa para tratar dela, vendo-se obrigada a fazer o trabalho penoso e ingrato para o qual a mãe já não tinha forças. Vidas perdidas, frustradas; e tudo sem proveito para ninguém. É uma verdadeira loteria, quando a pessoa resolve sair do caminho habitualmente trilhado. Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos.

– Mamãe e tio Elliott aprovam o que fiz. O senhor também aprova?

– Minha querida, que importância pode isto ter? Você mal me conhece.

– Considero-o um observador desinteressado – replicou ela com um sorriso simpático. – Gostaria de ter a sua aprovação. O senhor acha que fiz bem, não acha?

– Acho que sob o seu ponto de vista você fez bem – respondi, tendo quase certeza de que ela não perceberia a ligeira distinção que a minha resposta implicava.

– Então por que motivo não estou com a consciência tranquila?

– Não está?...

Ainda com um sorriso nos lábios, mas um sorriso um tanto encabulado, ela inclinou a cabeça e continuou:

– Sei que agi de acordo com a razão. Que qualquer pessoa sensata dirá que era a única coisa a fazer. Que, sob o ponto de vista prático, sob o ponto de vista da sabedoria humana, sob o ponto de vista do que é correto, sob o ponto de vista do bem e do mal, fiz o que devia fazer. E no entanto, no fundo do coração, sinto uma inquietude que me diz que se eu fosse melhor, mais desinteressada, mais desprendida e mais nobre, não teria hesitado em casar-me com Larry e levar sua vida. Se o meu amor fosse bastante forte, eu daria por bem empregado o sacrifício.

– Você pode argumentar de outra forma. Se o amor de Larry fosse bastante forte, ele não teria hesitado em fazer o que você pedia.

– Também pensei nisso. Mas não adianta. Creio que está mais na natureza da mulher sacrificar-se do que na do homem. – Ela riu baixinho. – Ruth e o trigo estrangeiro e aquela história toda.

– Por que você não arrisca?

Tínhamos até então conversado em tom despreocupado, como se estivéssemos a comentar casualmente a vida de pessoas que ambos conhecíamos, mas que não nos interessavam diretamente; mesmo quando me repetira sua conversa com Larry, Isabel falara com alegre vivacidade, pontilhando-a de observações espirituosas, como se não desejasse que eu levasse muito a sério o que dizia.

Mas agora ela empalideceu.

– Tenho medo.

Ficamos em silêncio durante alguns momentos. Um calafrio percorreu-me a espinha, como sempre acontece quando me vejo diante de uma emoção profunda e verdadeira.

– Você gosta muito dele? – perguntei afinal.

– Não sei. Ele me impacienta. Ele me exaspera. Estou sempre ansiando pela sua presença.

De novo se fez silêncio entre nós. Eu não sabia o que responder. A sala onde estávamos era pequena; pesadas cortinas de renda, nas janelas, impediam a claridade de fora. Nas paredes, empapeladas de amarelo, dependuravam-se velhas gravuras sobre caçadas. Com sua mobília de mogno, surradas cadeiras de couro e cheiro bolorento, lembrava estranhamente uma saleta de café de um romance de Dickens. Remexi o fogo e atirei-lhe mais carvão. Subitamente Isabel começou a falar.

– Sabe, achei que quando chegasse o momento de pôr as cartas na mesa Larry cederia. Eu sabia que ele era fraco.

– Fraco? – exclamei. – Aonde foi você buscar essa ideia? Um homem que durante um ano suportou a reprovação de amigos e conhecidos, por estar resolvido a seguir o seu caminho.

– Sempre consegui fazer dele o que quis. Era meu escravo. Ele nunca encabeçou o que fazíamos; apenas acompanhava o grupo.

Eu acendera um cigarro e observava o círculo azul da fumaça, que se foi alargando até se dissolver no ar.

– Mamãe e tio Elliott achavam que eu não devia con tinuar saindo com ele, como se nada tivesse acontecido; mas eu não levava aquilo muito a sério. Até o último dia pensei que ele acabaria cedendo. Não achei possível que, quando naquela sua cabeça dura penetrasse a ideia de que eu não estava brincando, ele não acabasse entregando os pontos. – Isabel hesitou e atirou-me um sorriso maroto, brincalhão. – O senhor ficará escandalizado se eu lhe contar uma coisa?

– Acho muito pouco provável.

– Quando resolvemos vir para Londres, telefonei a Larry e perguntei-lhe se não poderíamos passar juntos minha última noite em Paris. Quando contei isso aos meus, o tio Elliott declarou que não ficava nada bem, e mamãe que achava desnecessário. Quando mamãe diz que acha uma coisa desnecessária, significa que a desaprova em toda a linha. Tio Elliott me perguntou o que pretendíamos fazer; respondi que íamos jantar fora e dar depois um giro pelos cabarés. Ele virou-se para mamãe dizendo que ela devia proibir-me. Mamãe me perguntou: “Você me atenderia se eu a proibisse de ir?”. “Não, querida, nem por sombras.” E ela disse então: “Foi o que imaginei. Neste caso não vejo muita vantagem em proibir”.

– Sua mãe parece uma senhora extraordinariamente sensata.

– Não creio que muita coisa lhe escape. Quando Larry veio buscar-me, entrei no quarto dela para lhe dizer boa-noite. Eu me pintara um pouco; o senhor sabe, em Paris isto é preciso, senão a gente parece tão nua!... Quando mamãe notou o meu vestido, pelo olhar com que me examinou de cima a baixo tive a desagradável impressão de que desconfiava das minhas intenções. Mas não fez comentário algum. Beijou-me, apenas, dizendo que esperava que eu me divertisse.

– E quais eram as suas intenções?

Isabel olhou-me desconfiada, como se ainda não soubesse até que ponto levar a franqueza.

– Não creio que eu estivesse muito feia e era aquela a minha última oportunidade. Larry reservara uma mesa no Maxim. Comemos coisas gostosas, da minha preferência, e tomamos champanhe. Falamos os maiores absurdos, pelo menos eu falei, e fiz Larry rir. Uma das coisas que mais me agradam nele é o fato de eu poder sempre diverti-lo. Dançamos. Quando nos cansamos disso, fomos para o Château de Madrid. Ali encontramos alguns conhecidos, juntamo-nos ao seu grupo e tomamos mais champanhe. Depois fomos todos para o Acádia. Larry dança bem, e combinamos. O calor, a música, o vinho... eu estava um pouco tonta. Não tinha medo de nada. Dancei com a face contra a de Larry e vi que ele me desejava. Só Deus sabe como eu o desejava! Tive uma ideia... Provavelmente estivera no meu subconsciente o tempo todo. Resolvi fazer com que ele me acompanhasse até em casa; uma vez que o pegasse ali, pois bem, era inevitável que acontecesse o inevitável.

– Por Deus, você não poderia ter-se expressado com maior delicadeza.

– Meu quarto era bem afastado do de mamãe e do de tio Elliott, de modo que eu sabia que não havia perigo. Quando estivéssemos de novo na América, pensei, eu escreveria a Larry dizendo que ia ter um bebê. Ele seria obrigado a voltar, para casar-se comigo, e achei que, uma vez que o apanhasse na América, não seria difícil prendê-lo, principalmente com mamãe doente. “Que idiota fui em não me lembrar disso antes”, pensei com os meus botões. “Não há dúvida de que assim fica resolvido o caso.” Quando a música parou, continuei nos braços dele. Disse-lhe depois que estava ficando tarde e que, como eu tinha que tomar o trem ao meio-dia, era melhor irmos embora. Tomamos um táxi. Aconcheguei-me a ele; Larry enlaçou-me e beijou-me. Beijou-me e beijou-me e... oh! que paraíso! Quando o táxi parou à porta, pareceu-me que se passara apenas um minuto. Larry pagou o homem.

“Vou a pé para casa”, disse-me ele.

– O táxi afastou-se barulhentamente e eu pus os braços à volta do pescoço de Larry.

“Não quer entrar e tomar um último drinque?”, perguntei. “Sim, se você quiser.”

– Larry tocara a campainha e a porta estava aberta. Ele acendeu a luz e entramos. Olhei dentro dos seus olhos. Tão confiantes, tão sinceros, tão... ingênuos; evidentemente ele não tinha a menor ideia da armadilha que eu estava lhe preparando. Vi então que não me seria possível fazer papel tão indecente; era o mesmo que tirar um doce da boca de uma criança. Sabe o que eu disse? “Oh! bom, talvez seja melhor você não entrar. Mamãe não está hoje passando muito bem e não quero acordá-la, caso tenha adormecido. Boa noite.” Ergui o rosto para que ele me beijasse e empurrei-o para a rua. E assim acabou-se a história.

– Você está arrependida? – perguntei.

– Nem satisfeita nem arrependida. Não pude agir de outra forma. Não fui eu que fiz aquilo. Foi um impulso que se apossou de mim e agiu por mim. – Isabel sorriu. – Com certeza dirão que foi o meu lado bom.

– Com certeza.

– Então o meu lado bom tem que sofrer as consequências. Espero que no futuro ele seja mais prevenido.

Foi este, por assim dizer, o fim de nossa conversa. Talvez Isabel tenha sentido algum consolo em poder conversar com absoluta franqueza, mas foi esse o único auxílio que lhe pude prestar. Sentindo que não correspondera à expectativa, tentei pelo menos dizer-lhe uma coisinha que talvez a confortasse.

– Você sabe, quando amamos, e as coisas não correm a nosso contento, sentimo-nos profundamente infelizes e temos a impressão de que nunca nos consolaremos. Mas você ficará atônita ao ver o que o mar pode fazer.

– Que quer dizer com isso? – perguntou ela sorrindo.

– Bom, o amor não é bom marinheiro e definha-se numa viagem por mar. Quando o Atlântico se interpuser entre você e Larry, você vai ficar admirada ao verificar como é leve a dor que antes lhe parecia intolerável.

– Fala por experiência própria?

– Experiência de um tormentoso passado. Quando eu sofria as agonias de um amor não correspondido, metia-me imediatamente num navio.

A chuva não dava mostras de cessar; concordamos, portanto, em que Isabel não ia morrer por deixar de ver o nobre edifício de Hampton Court, ou mesmo o leito da rainha Isabel, e voltamos para Londres. Ainda a vi duas ou três vezes depois disso, mas sempre quando havia outras pessoas presentes; e então, tendo-me fartado de Londres por algum tempo, parti para o Tirol.


Três

Três


1

Nos dez anos seguintes perdi Isabel e Larry de vista. Continuei a ver Elliott e, por uma razão que mais tarde explicarei, mais frequentemente do que antes; por ele de vez em quando eu tinha notícias de Isabel. Mas a respeito de Larry ele nada soube contar-me.

– É bem possível que ainda esteja em Paris, mas duvido que nos venhamos a encontrar. Não frequentamos a mesma roda – acrescentou Elliott, com certa complacência. – É uma pena ele ter-se estragado dessa forma. É de uma ótima família. Garanto que teria dado alguma coisa, se tivesse seguido a minha orientação. Em todo caso foi uma sorte para Isabel.

Meu círculo de relações não era tão restrito quanto o de Elliott e eu conhecia, em Paris, muita gente que ele sem dúvida consideraria indesejável. Nas minhas breves mas não raras idas àquela capital perguntei a uma ou outra dessas pessoas se tinham visto Larry ou ouvido falar dele; algumas o conheciam ligeiramente, mas ninguém com suficiente intimidade para me dar informações a seu respeito. Fui ao restaurante onde ele costumava jantar, mas fazia tempo que ali não aparecia; julgavam que se ausentara de Paris. Nunca o vi em nenhum dos cafés do Boulevard du Montparnasse, geralmente frequentado pelas pessoas da vizinhança.

Sua intenção, depois que Isabel deixou Paris, era ir à Grécia, mas o projeto foi abandonado. Muitos anos mais tarde ele me contou o que fizera, mas vou relatar agora esses acontecimentos, pois, na medida do possível, acho mais conveniente colocá-los em ordem cronológica. Larry ficou em Paris durante o verão, trabalhando intensamente, até o outono já ir bem avançado.

– Achei então que precisava descansar dos livros – disse-me ele. – Durante dois anos eu estivera estudando de oito a dez horas por dia. Fui, portanto, trabalhar numa mina de carvão.

– Trabalhar onde? – exclamei. Ele riu do meu espanto.

– Achei que, durante alguns meses, o trabalho manual me faria bem. Pareceu-me que me daria oportunidade de coordenar as ideias e chegar a um entendimento comigo mesmo.

Fiquei em silêncio. Seria essa a única razão para aquele passo inesperado, ou teria relação com o rompimento do noivado com Isabel? A questão é que eu não sabia até que ponto Larry a amava. Muitas pessoas, quando apaixonadas, inventam razões para convencer a si próprias de que devem fazer o que desejam. Creio que é por isso que há tantos casamentos desastrosos. São como aquelas pessoas que entregam seus negócios a um homem reconhecidamente desonesto, só porque acontece tratar-se de um amigo; e, não querendo acreditar que um ladrão é primeiro ladrão, e depois amigo, pensam que por mais desonesto que ele seja com os outros, com elas o caso muda de figura. Larry tivera força suficiente para não sacrificar, por causa de Isabel, a vida que o atraía, mas talvez tivesse achado a dor de perdê-la mais amarga do que supusera. É bem possível que, como todos nós, ele tivesse querido comer o bolo e guardá-lo ao mesmo tempo.

– Pois bem, continue – disse eu.

– Arrumei meus livros e roupas em duas malas e mandei-as para o depósito do American Express. Depois enfiei um terno e algumas roupas de baixo numa maleta e parti. Meu professor de grego tinha uma irmã casada com o gerente de uma mina perto de Lens e deu-me uma carta de apresentação para ele. Conhece Lens?

– Não.

– Fica no norte da França, não muito distante da fronteira belga. Só passei ali uma noite, no hotel da estação; no dia seguinte tomei o trem de subúrbio que vai para o local da mina. Já esteve numa vila de mineiros?

– Sim, na Inglaterra.

– Bom, deve ser a mesma coisa. Havia a mina, a residência do gerente, e fileiras e fileiras de casas jeitosinhas, de dois andares; iguais, tão iguais, que chegavam a confranger o coração. Uma igreja mais ou menos nova, feia; vários bares. O tempo estava enfarruscado e frio quando lá cheguei; caía uma chuvinha miúda. Fui até o escritório do gerente e mandei-lhe a minha carta. Era ele um homem pequeno, gordo, de rosto rubro e ar de quem gosta de passar bem. Havia falta de braços, pois vários mineiros tinham morrido na guerra; ali trabalhavam muitos poloneses, de duzentos a trezentos, creio eu. Ele me fez duas ou três perguntas, não parecendo apreciar o fato de eu ser americano; tive a impressão de que achou isso meio suspeito. Mas na carta o cunhado me fazia boas referências e, em todo caso, ele ficou satisfeito de poder contar com mais alguém. Quis dar-me um lugar na superfície, mas eu lhe disse que preferia trabalhar no subsolo. Replicou que, não estando habituado, eu ia achar o serviço duro; como insisti, deu-me o lugar de ajudante de mineiro. Era realmente serviço de menino, mas não havia suficiente número deles para preencher as vagas. O gerente era um bom sujeito. Perguntou-me se eu já tinha providenciado acomodação e, ante minha resposta negativa, escreveu um endereço num papelzinho, dizendo que se eu fosse até lá a dona da casa me arranjaria um leito. Era viúva de um mineiro que morrera na guerra e seus dois filhos trabalhavam na mina.

“Peguei de novo a maleta e segui o meu caminho. Encontrei a casa. Uma mulher alta, emaciada, de cabelos grisalhos e grandes olhos negros veio abrir-me a porta. Tinha traços benfeitos e devia ter sido bonita. Mesmo agora não seria feia, no seu tipo esquálido, a não ser pelos dois dentes que lhe faltavam na frente. Disse-me que quarto ela não tinha, mas que havia duas camas no quarto que alugara a um polonês e que eu podia ficar com a que estava vaga. O aposento que ela me mostrou era no andar de baixo e devia ter sido sala de visitas. Eu teria preferido um quarto só para mim, mas resolvi deixar de exigências; a garoa transformara-se em chuva leve e persistente e eu já estava molhado; não me agradava a perspectiva de ir para diante e ficar encharcado até os ossos. Disse, portanto, que aceitava, e instalei-me. A cozinha, onde notei duas poltronas pouco firmes, servia também de sala. Havia, no pátio, um barracão onde guardavam o carvão, e que era também o banheiro. Os dois rapazes e o polonês tinham levado o seu almoço, mas a mulher me disse que eu poderia almoçar com ela ao meio-dia. Sentei-me depois na cozinha, com o meu cachimbo. Enquanto trabalhava, a mulher me contou sua história e a de sua família. Os outros chegaram assim que sua turma deixou de trabalhar. Primeiro o polonês, logo em seguida os dois rapazes. O polonês passou pela cozinha, cumprimentou-me com a cabeça, nada dizendo quando a dona da casa lhe participou que íamos compartilhar do mesmo quarto; tirou da chapa uma chaleira e foi lavar-se no barracão. Apesar da sujeira do rosto, os filhos da dona eram mocetões bonitos, e pareciam inclinados à camaradagem. Consideravam-me uma aberração pelo fato de eu ser americano. Um deles estava com dezenove anos e logo teria que fazer o serviço militar; o outro com dezoito.

“O polonês voltou e os rapazes foram lavar-se. Meu companheiro de quarto tinha um daqueles complicados nomes poloneses, mas chamavam-no de Kosti. Era um sujeito grande e pesado, quase dez centímetros mais alto do que eu. Pálido rosto carnudo, nariz curto e chato, boca larga. Seus olhos eram azuis e, por não ter conseguido tirar o carvão das pestanas e sobrancelhas, ele parecia estar pintado. As pestanas negras tornavam quase chocante o azul dos olhos. Sujeito feio, abrutalhado. Tendo trocado de roupa, os dois rapazes saíram. O polonês sentou-se na cozinha e pôs-se a ler o jornal, fumando o seu cachimbo. Eu tinha um livro no bolso; tirei-o e comecei também a ler. Notei que duas ou três vezes o polonês me olhou; dali a pouco largou o jornal.

“Que é que você está lendo?”, perguntou-me.

– Entreguei-lhe o livro para que ele mesmo verificasse. Era um exemplar da Princesse de Clèves que eu comprara na estação, em Paris, pela vantagem de poder carregá-lo no bolso. O polonês examinou o livro, fitou-me curiosamente e devolveu-mo. Notei-lhe o sorriso irônico.

“Acha graça nisso?”, perguntou.

“Acho interessantíssimo; absorvente, mesmo”, respondi.

“Li-o na escola, em Varsóvia. Achei-o cacetérrimo.” Ele falava bem o francês, quase sem sotaque estrangeiro. “Agora só leio os jornais e livros policiais.”

– Madame Duclerc, a dona da casa, estava sentada à mesa, cerzindo meias, mas de olho na sopa sobre o fogão. Contou a Kosti que eu fora mandado pelo gerente da mina e repetiu aquilo que me aprouvera contar-lhe. Ele ouviu, fumando, e olhou-me com aqueles seus brilhantes olhos azuis. Olhos duros e perspicazes. Fez-me algumas perguntas sobre a minha pessoa. Quando declarei que nunca trabalhara numa mina, de novo seus lábios se encresparam num sorriso irônico.

“Você não sabe em que se meteu. Quem pode trabalhar em outra coisa nunca devia procurar serviço numa mina. Mas isto não é da minha conta e com certeza você tem as suas razões. Onde morava em Paris?”

– Contei-lhe; Kosti disse, então:

“Houve época em que eu costumava ir todos os anos a Paris, mas ficava ali pelos Grands Boulevards. Conhece o Larue? Era um dos meus restaurantes prediletos.”

– Isto me surpreendeu, pois, como você sabe, não é barato.

– Longe disso.

– Creio que Kosti notou a minha surpresa, pois de novo teve um sorriso zombeteiro, mas não achou necessário entrar em explicações. Continuamos a conversar de uma coisa e outra e dali a pouco os dois rapazes chegaram. Terminada a ceia, Kosti me perguntou se eu queria acompanhá-lo ao bistrô para tomarmos uma cerveja. Fomos. Nada mais era que uma sala grande, com bar na extremidade e várias mesas de mármore, com cadeiras de madeira à volta. O piano automático, onde alguém colocara uma moeda, esganiçava uma música de dança. Além da nossa, só três mesas estavam ocupadas. Kosti perguntou-me se eu jogava belote. Respondi afirmativamente, pois aprendera a jogar com meus colegas; ele propôs então disputarmos a cerveja. Concordei. Veio o baralho. Perdi a primeira e a segunda rodadas. Kosti sugeriu então que jogássemos a dinheiro. Ele tinha boas cartas e eu estava de azar. As apostas eram insignificantes, mas mesmo assim perdi vários francos. Isto e a cerveja deixaram-no de bom humor, desatando-lhe a língua. Não levei tempo a perceber, tanto pelo seu modo de falar como por suas maneiras, que ele era um homem educado. Quando de novo se referiu a Paris, foi para perguntar-me se eu conhecia Fulana ou Sicrana, senhoras americanas que eu encontrara na casa de Elliott quando tia Louisa e Isabel ali estiveram hospedadas. Parecia conhecê-las melhor do que eu e fiquei a conjeturar como chegara ele à situação presente. Não era ainda muito tarde; tínhamos, no entanto, que nos retirar, pois precisávamos nos levantar de madrugada.

“Vamos tomar mais uma cerveja antes de sair”, propôs

Kosti.

– Sorveu-a aos bocadinhos, espiando-me com seus olhinhos vivos. Percebi então de que me fazia ele lembrar: de um porco mal-humorado.

“Por que motivo veio você trabalhar nesta mina infecta?”, perguntou-me.

“Pela experiência.”

“Tu es fou, mon petit.”

“E por que motivo está você trabalhando aqui?”

– Kosti encolheu os ombros desajeitados e maciços e respondeu:

“Entrei para a escola de cadetes, dos nobres, quando era criança. Meu pai era general do czar e eu fui oficial de cavalaria na última guerra. Mas eu não suportava Pilsudski. Tramamos matá-lo, mas alguém nos denunciou. Ele mandou fuzilar aqueles que foram capturados. Consegui atravessar a fronteira a tempo. Para mim só havia duas alternativas: a Legião Estrangeira ou uma mina de carvão. Escolhi dos males o menor.”

– Eu contara a Kosti qual ia ser o meu serviço na mina e ele não fizera comentário algum; mas agora, cravando o cotovelo na mesa, disse:

“Experimente abaixar minha mão.”

– Eu conhecia esta velha prova de força e coloquei minha palma aberta sobre a dele. Riu e disse: “Daqui a algumas semanas sua mão não estará assim macia”. Fiz toda a força possível, mas nada consegui contra aquela rocha; pouco a pouco ele foi empurrando minha mão até deitá-la sobre o mármore.

“Você é bem forte”, condescendeu ele em dizer. “Não são muitos que aguentam tanto tempo assim. Escute aqui: meu auxiliar não vale nada, é um francezinho esmirrado, sem um pingo de força. Venha comigo amanhã, que eu peço ao capataz que lhe dê o lugar dele.”

“Isto me agradaria”, respondi. “Acha que ele vai concordar?”

“Por um certo preço. Você pode dispor de cinquenta francos?”

– Kosti estendeu a mão e eu tirei uma nota da carteira. Fomos para casa e caímos na cama. Eu estava cansado e dormi como uma pedra.

– Achou o trabalho muito pesado? – perguntei a Larry.

– De quebrar os costados, a princípio – respondeu ele sorrindo. – Kosti ajeitou a coisa com o capataz e fui designado seu ajudante. Naquela ocasião ele estava trabalhando num espaço do tamanho de um banheiro de hotel; para chegar lá a gente tinha que atravessar um túnel tão baixo que era necessário andar de gatinhas.

Fazia ali um calor dos infernos e trabalhávamos só de calça. O vasto tronco branco e gordo de Kosti tinha qualquer coisa de intensamente repulsivo; parecia uma lesma enorme. O ruído do cortador pneumático, naquele espaço acanhado, era ensurdecedor. Meu trabalho era recolher os blocos de carvão que ele cortava, enfiá-los numa cesta e arrastá-la por todo o túnel até a boca, de onde seriam recolhidos para um vagonete quando, de intervalo em intervalo, por ali passasse o trem rumo aos elevadores. É a única mina de carvão que conheço, de modo que não sei se é esse o costume. Pareceu-me um tanto primitivo e dava um trabalhão dos infernos. Na metade do tempo parávamos para descansar, comíamos o nosso almoço e fumávamos. Eu me dava por feliz quando acabava o dia, e, céus, que coisa boa, um banho! Pensei que nunca conseguisse fazer com que meus pés ficassem limpos. Claro que minhas mãos ficaram cheias de bolhas, e doíam como o diabo; mas acabaram sarando. Habituei-me ao trabalho.

– Quanto tempo você aguentou?

– Só fiquei nesse serviço durante algumas semanas. Os vagonetes que levavam o carvão para os elevadores eram puxados por um trator, e o condutor era péssimo mecânico. Quando o motor enguiçava, o homem ficava sem saber o que fazer. Pois bem, acontece que sou um bom mecânico; examinei a máquina e em meia hora consegui pô-la a funcionar. O capataz contou ao gerente e este mandou me chamar, perguntando-me se eu entendia mesmo do assunto; o resultado foi ele dar-me o lugar do mecânico. Era monótono, naturalmente, mas fácil; e, como não tiveram mais aborrecimentos com a máquina, ficaram satisfeitos comigo.

Kosti ficou furioso com a mudança. Eu lhe convinha e ele estava habituado à minha companhia. Cheguei a conhecê-lo muito bem, trabalhando a seu lado o dia todo, indo com ele ao bistrô depois da ceia e dormindo no mesmo quarto. Era um sujeito engraçado. Tipo que você teria achado interessante. Não se misturava com os outros poloneses, e não frequentávamos os cafés que eles frequentavam. Kosti não podia esquecer que fora oficial de cavalaria e tratava-os como se fossem lixo. Eles, naturalmente, ficavam ofendidos com isso, mas o que podiam fazer? O sujeito era um touro; se houvesse uma briga, com ou sem faca, daria conta de meia dúzia deles. Mesmo assim, fiquei conhecendo alguns dos outros; e eles me contaram que Kosti fora de fato oficial de cavalaria de um dos mais elegantes regimentos, mas que mentia ao dizer que deixara a Polônia por razões políticas. Fora expulso do Clube dos Oficiais de Varsóvia e da cavalaria por ter sido apanhado trapaceando no jogo. Preveniram-me que não jogasse com ele, afirmando que era por esse motivo que Kosti os evitava – porque eles sabiam com quem estavam lidando.

Eu andara perdendo sistematicamente, não muito, apenas alguns francos cada noite; além do mais, quando ganhava, Kosti sempre insistia em pagar pelas bebidas, de modo que o prejuízo era insignificante. Pensei que estivesse numa maré de azar, ou que não jogasse tão bem quanto ele. Mas depois disso fiquei de olho atento e tive certeza de que ele roubava, mas juro que por mais que eu fizesse não conseguia descobrir o truque. Céus, que habilidade! Mas não achei possível ele ter as melhores cartas o tempo todo e continuei a observá-lo com olhar de lince. Kosti era esperto como ninguém e creio que percebeu que me haviam prevenido. Certa noite, depois de termos jogado durante algum tempo, fitou-me com um sorriso um tanto cruel, sarcástico, sua única maneira de sorrir, e disse:

“Quer ver uma mágica?”

– Pegou o baralho e me mandou dizer uma carta. Baralhou-as e pediu-me que escolhesse uma; ao aceder, verifiquei que era a carta que eu nomeara. Fez mais uma ou duas mágicas e depois me perguntou se eu jogava pôquer. Respondi que sim e ele deu as cartas. Quando olhei a minha mão, verifiquei que tinha uma quadra de ases e um rei ao lado.

‘’Você estaria disposto a apostar muito nesta mão, não estaria?”, perguntou-me.

“Todas as minhas fichas”, respondi.

“Pois seria tolice.” Ele mostrou a mão que dera para si próprio. Um straight flush. Como o conseguira, não sei. Riu do meu espanto. “Se eu não fosse um homem honesto, há muito já o teria depenado.”

“Não se pode dizer que você se saiu assim tão mal”, repliquei sorrindo.

“Isto é café pequeno. Não daria para pagar um jantar no Larue.”

– Continuamos a jogar quase todas as noites. Cheguei à conclusão de que ele roubava, não tanto pelo dinheiro, mas pela satisfação de roubar. Sentia um estranho prazer em me fazer de tolo, achando divertidíssimo saber que eu desconfiava de sua malandragem, sem no entanto poder atinar com ela.

Mas este era apenas um lado seu, e o outro é que o tornava interessante. Eu não podia conciliar os dois. Embora se gabasse de só ler jornais e histórias de detetive, Kosti era um homem culto. Tinha boa prosa, era sarcástico, áspero, cínico, mas que prazer ouvi-lo! Fervoroso católico; tinha um crucifixo na parede, em cima da cama, e ia à missa todos os domingos. Nos sábados à noite costumava embriagar-se. O bistrô que frequentávamos ficava repleto nesse dia; ar carregado de fumaça. Lá iam pacatos mineiros de meia-idade, com suas famílias, grupos de moços que faziam um barulho dos diabos, e homens de rosto coberto de transpiração, que se punham à volta de uma mesa, jogando belote com ruidosas exclamações, enquanto suas mulheres, sentadas um pouco atrás, sapeavam o jogo. A multidão e o barulho tinham um estranho efeito sobre Kosti; ele ficava sério e começava a falar daquilo que menos se esperava – misticismo. Naquela ocasião eu não entendia do assunto, a não ser por um ensaio de Maeterlinck, sobre Ruysbroek, que eu lera em Paris. Mas Kosti falava de Plotino e Dionísio, o Areopagita, de Jacob Boehme, o sapateiro, de Meister Eckhart. Fantástico, ouvir aquele sujeito desajeitado e grandalhão, que fora expulso do seu meio, aquele homem vencido, sarcástico e amargurado, falar da derradeira realidade das coisas e da bem-aventurança da união com Deus. Aquilo me era desconhecido e me deixava confuso e excitado. Eu me sentia como uma pessoa que, fechada num quarto escuro, sabe que lhe bastará afastá-la para ter diante dos olhos a beleza pura da madrugada sobre os campos. Mas, quando estava sóbrio e eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, Kosti ficava furioso.

Seus olhos adquiriam uma expressão despeitada. “Como é que posso explicar o que é, se eu não sabia o que estava dizendo?”, rosnava ele.

– Mas eu via que estava mentindo. Ele sabia perfeitamente sobre o que estivera falando. Sabia muita coisa. Claro que estivera bêbado; mas o olhar, a expressão arrebatada do seu rosto feio não tinham por causa única a bebida. Havia alguma coisa mais. Quando me falou nisso pela primeira vez, disse-me algo de que não me esqueci e que me deixou horrorizado: que o mundo não é coisa criada, pois do nada nada pode provir, e sim uma manifestação da natureza eterna; bom, até aí, vá lá; mas depois ele acrescentou que, tanto quanto o bem, o mal é uma direta manifestação da divindade. Estranhas palavras para serem ditas naquele café barulhento e sórdido, ao som de músicas populares que um piano automático tocava.


2

Para descanso do leitor, começo aqui nova seção; faço-o, porém, apenas para conveniência dele, pois a conversa foi ininterrupta. Aproveito a oportunidade para dizer que Larry falava sem pressa, muitas vezes escolhendo com cuidado os vocábulos e, embora eu não queira dar a entender que estive a repeti-los com exatidão, tentei reproduzir, não somente a essência, mas também a forma da narrativa. Sua voz, de timbre rico, possuía uma qualidade musical que agradava ao ouvido; e, enquanto falava, sem gesticulação de espécie alguma, fumando o seu cachimbo e parando de vez em quando para acendê-lo, fitava a gente com expressão simpática, às vezes quase patética, nos olhos negros.

– Depois veio a primavera – continuou Larry. – Chegou tarde àquela região lúgubre e plana, onde ainda chovia e fazia frio. Mas às vezes, com um dia bonito, era sacrifício a gente entranhar-se pela terra, num elevador gigante, repleto de mineiros metidos em sujos macacões. Era primavera, sim, mas chegava timidamente àquela paisagem sombria, como que incerta da recepção que lhe fariam. Lembrava uma flor, narciso ou lírio, que desabrochasse no vaso de uma janela de cortiço, deixando a gente a imaginar por que razão estaria ali. Certo domingo de manhã, lia eu na cama – sempre nos levantávamos tarde aos domingos – quando Kosti me disse sem mais aquela:

“Vou-me embora daqui. Quer ir comigo?”.

– Eu sabia que muitos poloneses voltavam à pátria, no verão, para ajudar na colheita, mas ainda era cedo para isso; além do mais, Kosti não podia voltar para a Polônia.

“Para onde vai você?”, perguntei.

“A pé, pela estrada afora. Através da Bélgica, pela Alemanha, e Reno abaixo. Poderíamos trabalhar em alguma fazenda durante o verão.”

– Não levei dois minutos a resolver. “Parece ótimo”, respondi.

– No dia seguinte avisamos o capataz que íamos sair. Encontrei um sujeito que concordou em ficar com a minha maleta, a troco de um saco de viagem. As roupas que eu não quis ou não pude levar dei-as ao filho mais novo de madame Duclerc, que era mais ou menos do meu tamanho. Kosti deixou sua mala e levou algumas roupas num saco de viagem; no dia seguinte, assim que a velha nos deu o café, partimos.

Não tínhamos pressa e sabíamos que nas fazendas não nos aceitariam a não ser quando o feno estivesse pronto para ser cortado. Vagueamos, portanto, pela França e Bélgica, passando por Namur e Liège, entrando na Alemanha por Aachen. Não caminhávamos mais que dez ou doze milhas por dia; quando o aspecto de uma aldeia nos agradava, parávamos ali. Sempre havia uma hospedaria onde nos arranjavam duas camas, e uma taverna onde podíamos comer e beber. Tivemos, em geral, sorte com o tempo. Ótimo, viver ao ar livre, depois de tantos meses enfurnados na mina. Creio que até então eu não compreendera, realmente, como é agradável o espetáculo de um campo verdejante, e como é bela a árvore cheia de brotos, quando os galhos estão velados por uma tênue neblina verde. Kosti começou a ensinar-me alemão e creio que conhecia tão bem essa língua quanto o francês. À medida que avançávamos ele me dizia os nomes dos objetos que íamos vendo, fazendo-me também repetir simples sentenças em alemão. Isto ajudava a passar o tempo e, quando chegamos à Alemanha, pelo menos eu podia pedir o que queria.

Colônia ficava um pouco fora do caminho, mas Kosti insistiu em ir até lá, por causa das Onze Mil Virgens, disse ele; mas, ali chegando, caiu na farra. Não o vi durante três dias; quando apareceu no quartinho que havíamos alugado numa espécie de pensão de operários, veio muito mal-humorado. Metera-se numa briga, levara um tapa-olho e tinha um lábio cortado. Não parecia nenhum Adônis, garanto-lhe! Dormiu durante vinte e quatro horas; depois começamos a descer o vale do Reno, rumo a Darmstadt, onde, dizia ele, teríamos mais probabilidade de conseguir trabalho, por ser região mais fértil.

Nunca houve coisa que me desse maior prazer! O bom tempo perdurava; andamos por cidades e aldeias.

Quando dávamos com uma vista bonita, parávamos para apreciá-la. Pernoitávamos onde podíamos e certa vez dormimos no feno, num paiol. Comíamos em estalagens à beira da estrada; quando penetramos na região vinícola, abandonamos a cerveja pelo vinho. Quase sempre fazíamos camaradagem com as pessoas que encontrávamos nas tavernas. Kosti tinha uma rude jovialidade, que lhes inspirava confiança; jogava com elas skat, jogo de cartas alemão, e as depenava com tão ruidoso bom humor, contando as piadas grosseiras que aquela gente apreciava, que elas quase não sentiam o prejuízo de alguns pfennigs. Pratiquei assim o meu alemão. Eu comprara em Colônia uma gramaticazinha anglo-germânica, e ia indo muito bem. Mas à noite, depois de ter ingerido alguns litros de vinho, de um modo estranho e mórbido Kosti falava da fuga do Só para o Só, da Negra Noite da Alma, e da união, em êxtase final, das criaturas com o Bem-Amado. Mas de madrugada, quando sobre a relva orvalhada caminhávamos em meio à risonha natureza, ao ver que eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, ficava tão indignado que parecia querer bater-me.

“Cale a boca, seu idiota”, dizia ele. “Que pretende você com toda essa bobice? Vamos continuar com o nosso alemão.”

– A gente não pode discutir com um sujeito que tem um punho que é um martelo e que não faria cerimônia em usá-lo – continuou Larry. – Eu já o vira com raiva. Sabia que era capaz de me pôr a nocaute e de me largar numa valeta, esvaziando-me os bolsos, ainda por cima. Por mais que eu tentasse, não conseguia compreendê-lo. Quando o vinho lhe desatava a língua, ele falava do Inefável, abandonando a linguagem obscena de que comumente se servia, como os sujos macacões que usava na mina; falava bem, e até mesmo com eloquência. Eu achava impossível que não estivesse sendo sincero. Não sei por quê, mas ocorreu-me que havia escolhido aquele trabalho duro, bruto, de mineiro para castigar a carne. Achei que detestava aquele seu corpo vasto e rude, desejando torturá-lo, e que sua desonestidade no jogo, sua amargura e crueldade eram a revolta da vontade contra... – oh! não sei como me exprimir – um arraigado instinto de santidade, contra um sujeito de Deus, que o apavorava e obcecava ao mesmo tempo.

Não nos tínhamos apressado; a primavera estava quase finda e as árvores enfolhadas. As uvas, nas parreiras, começavam a desenvolver-se. Fazíamos o possível para seguir pelas estradas, cada vez mais poeirentas. Nos arredores de Darmstadt, Kosti disse que era melhor começarmos a procurar trabalho. Nosso dinheiro estava escasseando. Eu tinha no bolso uma meia dúzia de letras de crédito, mas tomara a resolução de não usá-las, se possível. Quando víamos uma fazenda prometedora, parávamos e perguntávamos se não precisavam de dois camaradas. Confesso que não devíamos inspirar muita confiança. Sujos, cobertos de suor e de poeira. Kosti parecia um bandido e não creio que eu estivesse com melhor aparência. Não houve quem nos quisesse. Numa delas, o fazendeiro disse que tomaria Kosti, mas que não precisava de mim; Kosti replicou que éramos companheiros e não nos separaríamos. Eu lhe disse que ficasse, mas não consegui convencê-lo. Fiquei admirado. Sabia que ele simpatizara comigo; por quê, não sei, pois eu não era do tipo que deveria atraí-lo; mas nunca pensei que me tivesse suficiente amizade para recusar um emprego por minha causa. Cheguei a sentir remorsos, pois, para ser franco, eu não gostava dele, achando-o mesmo um tanto repulsivo; mas quando tentei exprimir o prazer que sua recusa me causara, ele logo me deu o contra.

Finalmente nossa sorte mudou. Tínhamos acabado de atravessar uma vila, numa baixada, quando chegamos a uma fazenda que não tinha muito má aparência. Batemos à porta; uma mulher veio abrir. Oferecemos nossos serviços, como de costume. Dissemos que não queríamos salário, mas que estávamos dispostos a trabalhar por casa e comida; qual nossa surpresa quando, em vez de nos bater com a porta na cara, ela nos disse que esperássemos! Chamou por alguém dentro de casa e um homem apareceu. Ele nos encarou bem e perguntou de onde vínhamos, pedindo para examinar nossos documentos. Olhou-me de novo, quando viu que eu era americano. Não pareceu muito satisfeito com isso, mas mesmo assim nos convidou para entrar e tomar um copo de vinho. Fomos para a cozinha; sentamo-nos. A mulher trouxe uma garrafa de mesa e uns copos. O fazendeiro nos contou que um touro investira contra seu empregado, que este estava no hospital e só ficaria bom depois de terminada a colheita. Com tantos homens mortos, e outros empregando-se nas fábricas que pululavam ao longo do Reno, havia enorme falta de braços nas fazendas. Para nós não era novidade; estivéramos mesmo contando com isso. Pois bem, para encurtar a história, o homem nos aceitou. Havia muito espaço na casa, mas creio que ele não nos queria com a família; em todo caso disse que havia duas camas no paiol e que podíamos dormir lá.

O trabalho não era duro. Tínhamos de cuidar das vacas e dos porcos; as máquinas estavam em mau estado e tratamos de consertá-las; mesmo assim, tínhamos momentos de lazer. Eu gostava do cheiro adocicado dos campos, e à noite ia passear por ali, a sonhar. Era uma boa vida.

A família consistia no velho Becker, sua mulher, sua nora viúva e os filhos desta. Becker era um homem troncudo, de cabelos grisalhos, que devia estar beirando os cinquenta anos. Estivera na guerra e mancava devido a um ferimento recebido na perna. Doía-lhe muito e ele bebia para disfarçar a dor. Geralmente estava bem embalado quando ia para a cama. Kosti deu-se admiravelmente com ele; habituaram-se a ir até a taverna, depois do jantar, jogar skat e empanturrar-se de vinho. Frau Becker fora criada da casa. Tinham-na tirado de um orfanato e Becker casara-se com ela pouco depois da morte de sua mulher. Era bem mais moça do que ele, bonitona, robusta, rosto corado e cabelos louros, ar profundamente sensual. Kosti não levou tempo para perceber que ali havia futuro. Eu lhe disse que não fosse idiota; não valia a pena arriscarmos o nosso emprego. Ele apenas zombou de mim, dizendo que Becker não a satisfazia e que ela não queria outra coisa. Eu sabia que era inútil apelar para a sua noção de honra, mas aconselhei-o a ter cuidado; talvez Becker não percebesse suas intenções, mas ali estava a nora, e a esta nada escapava.

Ellie, assim se chamava ela, era uma jovem alta, grande, de vinte e poucos anos; cabelos e olhos negros, pálido rosto quadrado, expressão taciturna. Ainda estava de luto pelo marido, que morrera em Verdun. Era muito devota e todos os domingos de manhã lá ia ela à aldeia assistir à primeira missa: à tarde voltava para a bênção. Tinha três filhos, um dos quais nascera depois da morte do marido; à hora das refeições nunca falava, a não ser para repreendê-los. Trabalhava pouco na fazenda, mas passava a maior parte do tempo tomando conta das crianças; à noite sentava-se sozinha na sala, com um romance, deixando aberta a porta para poder ouvir, caso algum deles chorasse. As duas mulheres odiavam-se. Ellie desprezava Frau Becker porque era enjeitada e fora empregada doméstica, não se conformando com o fato de ser ela a dona da casa e estar em posição de dar ordens.

Ellie era filha de um fazendeiro abastado e trouxera bom dote. Não fora educada na escola da aldeia, e sim em Zwingenberg, a cidade mais próxima, onde havia um gymnasium para meninas. A pobre Frau Becker viera para a fazenda com catorze anos, e quando muito sabia ler e escrever. Era este outro ponto da discórdia entre as duas mulheres. Ellie não perdia oportunidade de exibir sua sabedoria; e Frau Becker, muito vermelha, perguntava de que adiantava aquilo para uma mulher de fazendeiro. Ellie olhava então a medalha de identificação do marido, que usava no pulso, presa por uma corrente de ferro, e com expressão amarga no rosto taciturno, dizia:

“Mulher de fazendeiro, não. Apenas viúva de fazendeiro. Apenas viúva de um herói que deu sua vida pela pátria.”

– O pobre Becker tinha um trabalhão para conservar a paz entre as duas.

– Mas que pensavam eles de você? – perguntei a Larry.

– Oh! achavam que eu desertara do Exército americano e não podia voltar, pois do contrário seria preso. Era assim que explicavam a minha recusa em acompanhar Becker e Kosti à taverna. Julgavam que eu não queria chamar atenção sobre minha pessoa, nem correr o risco de ter que responder às perguntas do sargento de polícia. Quando Ellie descobriu que eu estava querendo aprender alemão, foi buscar seus livros escolares e disse que estava pronta a ensinar-me. E assim, depois da ceia, íamos para a sala, deixando Frau Becker na cozinha. Eu lia em voz alta enquanto ela me corrigia a pronúncia, procurando fazer-me compreender o sentido de palavras sobre as quais eu não tinha a mínima ideia. Desconfiei que estava fazendo isto não tanto para me ajudar, mas para levar vantagem sobre Frau Becker.

Durante todo esse tempo Kosti estava dando em cima de Frau Becker, mas sem nenhum resultado. Ela era uma mulher alegre, folgazã, sempre pronta a pilheriar e rir com ele, e Kosti tinha jeito para tratar as mulheres. Creio que ela desconfiava das intenções do polonês e sentia-se lisonjeada, mas, quando ele começou a beliscá-la, disse-lhe que não lhe pusesse as mãos em cima e deu-lhe uma bofetada na cara. E garanto que foi uma boa bofetada!

Larry hesitou durante alguns instantes, sorrindo um tanto encabulado.

– Nunca fui do tipo de achar que as mulheres me perseguem, mas ocorreu-me que... pois bem, que Frau Becker estava caída por mim. Não fiquei nada satisfeito. Para começar, ela era muito mais velha do que eu; além do mais, o marido fora muito correto conosco. Era ela quem servia à mesa, e não pude deixar de notar que era mais generosa comigo do que com os outros; pareceu-me também que estava sempre procurando ocasião de ficar a sós comigo. Dirigia-me sorrisos que, creio eu, poderiam ser qualificados de provocantes. Costumava perguntar-me se eu não tinha namorada, dizendo que um rapaz novo como eu deveria sentir falta disso, num lugar daqueles. O senhor sabe como são essas coisas. Eu só tinha três camisas e assim mesmo bem surradas. Certa vez ela me disse que era o cúmulo eu usar aqueles trapos; que as trouxesse, pois ela as consertaria para mim. Ellie ouviu-a e, da próxima vez que nos vimos a sós, disse-me que se eu tivesse alguma coisa para consertar, era só lhe trazer. Respondi que não valia a pena. Um ou dois dias depois notei que minhas meias estavam cerzidas, minhas camisas remendadas e de volta ao banco do paiol onde guardávamos as nossas coisas; mas até hoje não sei a qual das duas devo gratidão. Naturalmente não levei Frau Becker a sério; era uma boa alma e achei que aquilo devia ser apenas instinto maternal da sua parte. Mas certo dia Kosti me disse:

“Escute aqui; não é a mim que ela está querendo; é a você. Não tenho a mínima probabilidade.”

“Não diga tolices”, repliquei. “Ela tem idade bastante para ser minha mãe.”

“E que tem isso? Não faça cerimônia, meu rapaz; eu não sou obstáculo. Talvez ela não seja lá muito moça, mas é bem bonitona.”

“Oh! cale a boca.”

“Por que é que você hesita? Não por minha causa, espero. Sou filósofo e sei que coisa que não falta no mar é peixe. Não a censuro. Você é moço. Também já tive o

– Não me agradou verificar que Kosti tinha tão absoluta certeza daquilo em que eu não queria acreditar. Não sabia bem como agir; lembrei-me então de vários incidentes que no momento não me tinham chamado atenção. Frases ditas por Ellie, às quais eu não dera importância, mas que agora adquiriam significação; não havia dúvida de que também Ellie sabia. Muitas vezes ela aparecia de supetão na cozinha, quando acontecia de Frau Becker e eu estarmos a sós. Fiquei com a impressão de que estava nos espionando.

Não gostei daquilo; pareceu-me que estava querendo apanhar-nos. Eu sabia que ela detestava Frau Becker e que ao menor pretexto armaria um barulho. Naturalmente ela nada poderia descobrir, mas era uma criatura maldosa e eu não sabia que mentiras não iria inventar para envenenar o espírito do velho Becker. Fiquei sem saber o que fazer, a não ser fingir-me de tão ingênuo que não percebia o manejo da mulher. Estava satisfeito na fazenda, gostava do trabalho e não queria partir antes de terminada a colheita.

Não pude deixar de sorrir. Imaginei Larry, de shorts e

camisa remendada, rosto e pescoço queimados pelo sol quente do vale do Reno, corpo delgado e flexível, olhos negros cravados nas órbitas... Não duvidei de que o seu físico tivesse feito palpitar de desejo aquela matrona loura e de seios opulentos.

– Pois bem, passou-se o verão. Trabalhávamos como loucos; cortamos e empilhamos o feno. Depois, quando as cerejas amadureceram, Kosti e eu trepamos em escadas para colhê-las; as mulheres recolhiam nas cestas que o velho Becker ia vender em Zwingenberg. Depois cortamos o centeio. E, naturalmente, ainda tínhamos que tratar dos animais. Estávamos de pé antes do amanhecer e só parávamos com o cair da noite. Julguei que Frau Becker houvesse desistido da conquista; eu fazia o possível, sem ofendê-la, para conservá-la a distância. À noite eu tinha sono demais para querer estudar alemão, de modo que logo depois da ceia fugia para o paiol e caía na cama. Em geral Kosti e Becker iam à taverna, mas eu estava ferrado no sono quando Kosti voltava. Fazia calor no paiol e eu dormia nu.

Certa noite acordei. No primeiro momento não atinei com o que era; eu estava ainda meio adormecido. Senti uma mão quente na minha boca e percebi que havia alguém na cama comigo. Afastei com força a mão, mas uma boca se colou à minha, dois braços me enlaçaram e senti os pesados seios de Frau Becker contra o meu corpo.

“Sei still”, murmurou ela. “Fique quieto.”

– Ela me apertou, beijou-me o rosto com lábios quentes e carnudos, suas mãos desceram pelo meu corpo e suas pernas se entrelaçaram com as minhas.

Larry fez uma pausa. Não pude deixar de rir.

– E o que fez você?

Ele me atirou um sorriso modesto. Chegou mesmo a corar.

– Que podia eu fazer? Eu ouvia a respiração pesada de Kosti na cama pegada à minha. A situação de José sempre me pareceu um tanto ridícula. Eu tinha apenas vinte e três anos. Não podia fazer um escândalo e expulsá-la dali. Não quis ofendê-la. Fiz o que se esperava de mim.

Depois ela escorregou da cama e saiu do paiol na ponta dos pés. Garanto-lhe que suspirei de alívio. Sabe, eu tivera medo. “Céus, que perigo!”, pensei. Provavelmente Becker chegara completamente embriagado, tendo caído numa espécie de torpor; mas eles dormiam na mesma cama e existia a possibilidade de o velho acordar e ver que a mulher não estava a seu lado. E ainda havia Ellie. Ela sempre dizia que não dormia bem. Se estivesse acordada, poderia ter ouvido Frau Becker descer a escada e sair de casa. Subitamente, lembrei-me de uma coisa. Quando Frau Becker estivera na cama comigo, eu sentira um frio de metal contra a minha pele. Não prestara atenção a isso; como você sabe, a gente não liga a nada em tais circunstâncias, e nunca me passara pela cabeça procurar saber que diabo de coisa era aquela. Mas agora se tinha feito luz no meu espírito. Eu estava sentado na beira da cama, refletindo e preocupando-me com as consequências, e tão grande foi o meu choque que me pus de pé. A peça de metal era a medalha de identificação do marido de Ellie, que ela usava em volta do pulso, e não fora Frau Becker que se deitara comigo. Fora Ellie.

Ri a bandeiras despregadas. Não pude conter-me.

– Pode ser engraçado para os outros – disse Larry. – Mas não foi nada engraçado para mim.

– Pois bem, agora que você examina o caso a sangue-frio, não lhe parece que há nele uma nota cômica?

Larry não pôde reprimir um sorriso.

– Talvez. Mas era uma situação embaraçosa. Quais seriam as consequências? Eu não gostava de Ellie. Achava-a mesmo muito pouco simpática.

– Mas como é que você pôde confundi-las?

– Estava escuro como breu. Ela não disse uma palavra, a não ser para me recomendar que ficasse de bico calado. Ambas eram mulheres altas e robustas. Eu andava desconfiado de que Frau Becker estava de olho em mim. Nem por sombras me ocorrera que Ellie me desse confiança, pois estava sempre pensando no marido. Acendi um cigarro e refleti sobre a situação; quanto mais refletia, menos ela me agradava. Pareceu-me que a melhor coisa a fazer era sumir.

Inúmeras vezes eu amaldiçoara Kosti por ter sono tão pesado.

Quando trabalhávamos na mina, eu tinha que sacudi-lo com toda a força para fazê-lo levantar-se a tempo para o serviço. Mas agora me dei por feliz! Acendi a lamparina, vesti-me, meti minhas coisas no saco – não era muito, de modo que não me levou mais que um minuto – e enfiei os braços nas correias. Atravessei o paiol, só de meias, não calçando os sapatos a não ser quando cheguei embaixo da escada. Soprei então a lamparina. Noite escura, sem lua, mas eu sabia como ganhar a estrada; dali tomei a direção da aldeia.

Caminhei a passos rápidos, pois queria atravessá-la enquanto todos estivessem dormindo. Distava apenas doze milhas de Zwingenberg, e lá cheguei justamente quando a cidade começava a despertar. Nunca me esquecerei daquela caminhada. Silêncio absoluto, a não ser pelo som dos meus passos na estrada, e de vez em quando o canto de um galo numa fazenda. E então, aquela luz acinzentada, quando já não é mais noite e ainda não está claro; os primeiros sintomas da madrugada, o nascer do sol, os pássaros começando a cantar; e aquela luxuriante paisagem verde, prados, bosques, e nos campos o centeio de um ouro-prateado, à fria luz do novo dia...

Tomei uma xícara de café com pão em Zwingenberg; fui depois ao correio e telegrafei para o American Express, pedindo que mandassem minhas roupas e meus livros para Bonn.

– Por que Bonn? – interrompi.

– Eu simpatizara com a cidade quando ali paramos, na nossa descida pelo Reno. Gostei do reflexo da luz sobre os telhados e o rio, das ruas antigas e estreitas, das vilas, e jardins, e avenidas de castanheiros, e dos edifícios rococós da universidade. Ocorreu-me, na ocasião, que não seria mau lugar para a gente ali passar uns tempos. Mas achei preferível tornar-me mais apresentável antes de surgir por lá; eu parecia um vagabundo e, se fosse procurar lugar numa pensão, não inspiraria muita confiança. Tomei, portanto, o trem para Frankfurt e ali comprei uma maleta e algumas roupas. Fiquei um ano em Bonn.

– E tirou algum proveito da sua experiência, na mina, digo, e na fazenda?

– Tirei – respondeu Larry inclinando a cabeça e sorrindo.

Mas não me disse qual fora, e naquela ocasião eu já o conhecia bastante para saber que, quando queria contar uma coisa, contava-a, mas, quando não estava disposto a isso aparava as perguntas com calmos gracejos que tornavam inútil a insistência. Preciso, no entanto, lembrar ao leitor que Larry me narrou tudo isto dez anos mais tarde. Até então, até estar de novo em contato com ele, eu não tinha a menor ideia do seu paradeiro ou do que andara fazendo. Era mesmo possível que tivesse morrido. A não ser por minha amizade com Elliott, que me punha a par da vida de Isabel, e me fazia, portanto, lembrar de Larry, provavelmente eu teria me esquecido da sua existência.


3

Isabel casou-se com Gray Maturin em princípios de junho do ano seguinte àquele em que desmanchou o seu noivado com Larry. Embora Elliott achasse detestável sair de Paris quando a estação estava no auge, tendo portanto que perder inúmeras festas elegantíssimas, seu instinto de família era muito forte para permitir-lhe que deixasse de cumprir aquilo que considerava um dever social. Os irmãos de Isabel não podiam abandonar seus postos, em lugares tão remotos, de modo que ele se viu obrigado a fazer a penosa viagem a Chicago, para levar a noiva ao altar. Lembrando-se de que os aristocratas franceses tinham ido para a guilhotina nos seus trajes mais esplendorosos, foi especialmente a Londres para comprar um novo fraque, um colete cinza, transpassado, e um chapéu de seda. Quando voltou para Paris, convidou-me para ir inspecionar essas elegâncias. Estava um tanto preocupado, pois o alfinete de pérola cinza que ele geralmente usava não iria fazer vista contra a gravata cinzento-clara, que achava apropriada para a festiva solenidade. Lembrei-lhe o seu alfinete de esmeralda e brilhante.

– Se eu fosse um convidado... está certo – disse ele.

– Mas, na posição que vou ocupar, sinto que a pérola é indicada.

Estava muito satisfeito com o casamento, tão de acordo com suas ideias convencionais, e se referia a ele com a untuosidade de uma duquesa-mãe que desse opinião sobre as vantagens de uma união entre um rebento dos La Rochefoucauld e uma filha dos Montmorency. Sem medir despesas e como sinal evidente de sua aprovação, ia levando como presente de casamento um belo retrato, por Nattier, de uma princesa real da França.

Parece que Henry Maturin comprara para o jovem par uma casa em Astor Street, para que eles ficassem perto de mrs. Bradley e não muito longe do seu palácio em Lake Shore Drive. Por uma feliz coincidência, em que suspeitei da cumplicidade de Elliott, Gregory Brabazon se achava em Chicago na ocasião da compra e a decoração da casa lhe foi confiada. Ao voltar para a Europa, tendo desistido por completo da estação em Paris e indo diretamente para Londres, Elliott trouxe várias fotografias. Brabazon se lançara a todo pano. Nas salas de visitas e de jantar ele se limitara exclusivamente ao estilo George ii, e com amplo êxito. Quanto à biblioteca, aposento reservado a Gray, ele se inspirara numa sala do Palácio Amalienburg, de Munique; e que, exceto pelo inconveniente de ali não haver lugar para livros, ficara perfeita. A não ser pelas camas gêmeas, Luís xv em visita a madame de Pompadour se teria sentido perfeitamente à vontade no quarto que Brabazon decorara para o jovem casal; mas o banheiro de Isabel o teria deixado embasbacado: todo de espelhos – paredes, teto e banheira –, e nas paredes peixes prateados, em profusão, brincavam no meio de douradas plantas aquáticas.

– É, naturalmente, uma casa pequena – disse Elliott. – Mas Henry Maturin me contou que a decoração lhe custou nada menos que cem mil dólares. Uma fortuna para muita gente.

A cerimônia foi feita com a maior pompa que a Igreja Episcopal permitia.

– Em nada comparável a um casamento em Notre-Dame – disse-me Elliott em tom benevolente. – Mas, para um casamento protestante, não deixou de ser correto.

A imprensa se mantivera à altura; com ar despreocupado Elliott me atirou os recortes. Mostrou-me também fotografias de Isabel, pesadona, mas bonita no seu vestido de noiva; e Gray, maciço, mas belo rapaz, não parecendo muito à vontade nos trajes próprios para a ocasião. Havia um grupo dos noivos com as damas de honra; outro com mrs. Bradley num suntuoso vestido e Elliott segurando o seu chapéu de seda com uma graça que só mesmo ele sabia ter. Perguntei-lhe como ia indo mrs. Bradley.

– Emagreceu muito, e não gostei nada da sua cor, mas vai indo bem. Tudo isso, naturalmente, foi um esforço para ela, mas agora poderá descansar tranquilamente.

Um ano mais tarde Isabel teve uma filha a quem, de acordo com a moda da época, deu o nome de Joan; dali a dois anos teve outra filha, que, também para acompanhar a moda, se chamou Priscilla.

Um dos sócios de Henry Maturin morreu e os outros, sob pressão, se retiraram da firma, de modo que ele ficou sendo o único dono de um negócio que sempre administrara despoticamente. Viu então realizada a maior ambição de sua vida, que era admitir Gray como sócio. Nunca a firma estivera tão florescente.

– Estão ganhando dinheiro a rodo, caro amigo – contou-me Elliott. – Imagine você, com vinte e cinco anos de idade Gray está ganhando cinquenta mil dólares por ano, e isso é apenas o começo. Os recursos da América são inesgotáveis. Não se trata de falsa prosperidade, é apenas o desenvolvimento natural de uma grande nação.

Seu peito se encheu de exagerado patriotismo.

– Henry Maturin não viverá eternamente; ele tem pressão muito alta, você sabe. Quando chegar aos quarenta anos, provavelmente Gray terá uma fortuna de vinte milhões de dólares. Principesco, caro amigo, principesco.

Elliott mantinha regular correspondência com a irmã; de vez em quando, à medida que os anos iam passando, me contava as notícias que mrs. Bradley lhe dava. Gray e Isabel eram muito felizes, as crianças uns amores. Viviam num estilo que com prazer Elliott reconhecia ser o apropriado; recebiam muito e saíam muito. Foi com visível satisfação que ele me contou que Isabel e Gray não tinham jantado sós num espaço de três meses. A corrente de divertimentos foi interrompida pela morte de mrs. Maturin, aquela senhora apagada e de boa família, com quem Henry Maturin se casara pelas suas ótimas relações, quando estava procurando vencer na cidade aonde seu pai chegara como matuto. Em respeito à sua memória, durante um ano o jovem par nunca recebeu, para jantar, mais que seis pessoas de uma vez.

– Sempre achei que oito era o número ideal – disse Elliott, resolvido a encarar o lado bom das coisas. – É suficientemente íntimo para permitir uma conversa geral, e bastante grande para dar impressão de uma reunião.

Gray era generosíssimo com a esposa. No nascimento da primeira filha deu-lhe um brilhante quadrado e no da segunda um casaco de vison. Andava muito ocupado para poder sair de Chicago, mas, quando podia sair de férias, iam para a importante mansão de Henry Maturin, em Marvin. Henry não podia negar coisa alguma ao filho adorado, e em certo Natal presenteou-o com uma plantação na Carolina do Sul, para que ali pudesse caçar patos, na estação propícia.

– Claro que nossos reis do comércio correspondem aos grandes patronos das artes da Renascença italiana, que fizeram fortuna no comércio – disse-me Elliott. – Os Medici, por exemplo. Houve dois reis franceses que não se julgaram diminuídos por casar com filhas dessa ilustre família, e vejo o dia em que as cabeças coroadas da Europa procurarão a mão das nossas princesas dos dólares. Que foi mesmo que Shelley disse? A grande idade recomeça agora, voltam os anos de ouro.

Durante tantos anos zelara Henry Maturin pelos interesses de mrs. Bradley e Elliott, que estes tinham imensa confiança no seu critério. Maturin nunca fora a favor de especulações e empregara o dinheiro deles em títulos seguros; mas, com a valorização, os dois irmãos viram suas fortunas, relativamente modestas, aumentadas de uma maneira que os deixou surpresos e encantados. Elliott contou-me que, sem que ele tivesse mexido uma palha, de 1918 a 1926 sua fortuna duplicara. Estava agora com sessenta e cinco anos, tinha cabelos grisalhos, rosto enrugado e olhos empapuçados, mas mesmo assim suportava com galhardia o peso dos anos; era magro e mantinha-se mais teso do que nunca; sempre fora moderado e cuidara do físico. Enquanto pudesse fazer seus ternos no melhor alfaiate de Londres, entregar-se aos cuidados do seu barbeiro particular, e de uma massagista que vinha todas as manhãs ajudá-lo a manter em perfeitas condições o corpo esbelto, Elliott não tinha a menor intenção de submeter-se aos estragos do tempo. Havia muito se esquecera que houvera época em que se rebaixara a ponto de negociar; e por meias palavras, pois não sendo idiota não ia dizer uma flagrante mentira, dava a entender que na mocidade fizera parte do corpo diplomático. Confesso que, se algum dia eu houvesse de pintar o retrato de um embaixador, teria sem hesitação escolhido Elliott para modelo. Mas as coisas estavam mudando. As grandes damas que o tinham auxiliado na sua carreira estavam ou mortas ou em idade avançada. As nobres inglesas, tendo perdido os maridos, viam-se obrigadas a entregar suas mansões às noras, retirando-se para vilas em Cheltenham ou modestas casas em Regent Park. Stafford House foi transformada em museu, Curzon House tornou-se o centro de uma organização, Devonshire House foi posta à venda. O iate onde Elliott costumava ficar quando ia a Cowes mudara de dono. As pessoas elegantes que atualmente ocupavam o centro do palco pouco se importavam com o homem idoso que Elliott era agora. Achavam-no cansativo e ridículo. Ainda compareciam de boa vontade aos seus complicados almoços, no Claridge, mas Elliott era bastante perspicaz para perceber que vinham mais por causa uns dos outros do que para vê-lo. Agora já ele não podia escolher à vontade entre os convites que antigamente lhe abarrotavam a escrivaninha e, mais frequentemente do que desejaria que se soubesse, sofria a humilhação de jantar sozinho na intimidade do seu apartamento. As senhoras da alta roda, na Inglaterra, quando devido a algum escândalo lhes veem fechadas as portas da sociedade, começam a interessar-se por arte e artistas, cercando-se de pintores, escritores, músicos. Elliott era por demais orgulhoso para sujeitar-se a tal humilhação.

– Os impostos de transmissão causa mortis e os aproveitadores da guerra estragaram a sociedade inglesa – disse-me ele. – Hoje ninguém mais faz questão de escolher suas relações. Londres ainda tem seus alfaiates, sapateiros e chapeleiros, e espero que durem enquanto eu durar; mas, fora disso, não vale mais nada. Meu caro amigo, imagine que a mesa dos St. Erth é agora servida por mulheres.

Elliott fez esses comentários quando nos afastávamos do Carlton House Terrace, após um almoço onde se dera um desagradável incidente. O nobre que nos convidara possuía uma boa coleção de quadros, e um americano chamado Paul Barton, que lá ia pela primeira vez, manifestou desejo de conhecê-la.

– O senhor tem um Ticiano, não tem?

– Tínhamos. Está agora na América. Um judeu qualquer nos ofereceu por ele um bom dinheiro e, como estávamos apertados na ocasião, o velho vendeu-o.

Notei que Elliott, todo eriçado, atirou um olhar venenoso ao jovial marquês, e adivinhei que fora ele quem comprara o quadro. Ficou furioso por se ver assim descrito, ele, um virginiano e descendente de um dos signatários da Declaração da Independência. Jamais sofrera igual afronta. E o pior era que detestava Paul Barton. O rapaz aparecera em Londres logo depois da guerra; tinha vinte e três anos, era louro, bonito e simpático, dançava admiravelmente e tinha ampla fortuna. Viera recomendado a Elliott e este, com sua bondade natural, o apresentara a vários amigos. Não satisfeito com isso, dera-lhe alguns valiosos conselhos sobre conduta. Baseando-se em sua própria experiência, deu-lhe a entender que, com pequenas gentilezas a senhoras idosas, e dando ouvidos a homens de destaque, por mais tediosos que fossem, não seria difícil a um estranho introduzir-se na sociedade.

Mas o mundo que aguardava Paul Barton era muito diferente daquele onde, uma geração antes, Elliott Templeton penetrara à custa de incrível perseverança. Era um mundo que só pensava em divertir-se. O gênio alegre de Paul Barton, seu físico agradável e maneiras insinuantes fizeram por ele em algumas semanas o que Elliott só conseguira com anos de persistência e força de vontade. Logo já ele não precisou do auxílio de Elliott e pouco fez para esconder esse fato. Tratava-o amavelmente, quando se encontravam, mas de uma maneira distante que ofendia profundamente o homem idoso. Elliott não escolhia seus convidados por simpatia, e sim visando ao sucesso da reunião; como Paul Barton era muito popular, continuou a convidá-lo a um ou outro dos seus almoços semanais, mas o afortunado rapazinho em geral estava comprometido e por duas vezes deixou Elliott na mão à última hora. Elliott fizera isto muitas vezes para não desconfiar que o outro recebera convite mais tentador.

– Você não é obrigado a acreditar, mas juro que agora, quando nos encontramos, é ele quem toma ares protetores para comigo – disse-me Elliott, fulo de raiva. – comigo. Ticiano. Ticiano – gaguejou ele. – Garanto que se visse um Ticiano não saberia reconhecê-lo.

Eu nunca vira Elliott tão encolerizado e calculei que talvez fosse por acreditar que Paul Barton perguntara sobre o quadro por maldade, tendo chegado a saber que fora comprado por Elliott, e pretendendo divertir-se à custa dele, quando contasse o caso e a resposta do marquês.

– Ele não passa de um esnobezinho indecente, e se há coisa que detesto no mundo é o esnobismo. Se não fosse por mim, não teria dado um passo. Talvez você não acredite, mas o pai dele fabricava móveis de escritório. Móveis de escritório! – Elliott conseguiu pôr um causticante desprezo nessas três palavras. – E quando digo que ele nem existe na América, que sua origem não podia ser mais humilde, ninguém parece dar a isso a mínima importância. Ouça o que lhe digo, meu caro; a sociedade inglesa exalou o seu último suspiro.

E nem Elliott achava a França em melhores condições. Ali, as nobres damas do seu tempo que ainda viviam tinham-se dedicado ao bridge (jogo que ele abominava), a obras de caridade e à educação dos netos. As imponentes mansões da aristocracia eram agora habitadas por industriais, argentinos, chilenos e senhoras americanas separadas dos maridos, que recebiam muito e com grande pompa; mas nas suas festas Elliott tinha a surpresa de encontrar políticos que falavam o francês com pronúncia vulgar, jornalistas que não sabiam comportar-se à mesa, e até mesmo atores. Rebentos de famílias reais não se envergonhavam de casar com filhas de negociantes. Inegavelmente Paris era uma cidade alegre, mas com que falsa alegria! Na sua insaciável sede de gozo, os moços não achavam nada mais divertido do que correr de um abafado cabaré a outro, tomando champanhe a cem francos a garrafa, e dançando, até cinco da madrugada, lado a lado com a ralé. A fumaça, o calor, o barulho davam dor de cabeça a Elliott. Não era esta a Paris que trinta anos antes ele aceitara como sua morada espiritual. Não era esta a Paris para onde os bons americanos iam quando morriam.


4

Mas Elliott tinha faro. Uma voz íntima sussurrou-lhe que a Riviera ia tornar-se novamente o ponto de reunião dos nobres e dos elegantes. Conhecia bem o litoral; várias vezes, ao voltar de Roma onde fora cumprir seus deveres na corte pontifícia, passara alguns dias em Monte Carlo, ou em Cannes, na vila de um ou outro dos seus amigos. Mas isso fora no inverno, e ultimamente os murmúrios indicavam que estava sendo procurada para lugar de veraneio. Os grandes hotéis conservavam-se abertos; os nomes dos veranistas apareceram nas colunas sociais do Herald de Paris e Elliott leu os conhecidos nomes com ar de aprovação.

– Estou cansado do mundo – disse ele. – Cheguei a uma época da vida em que meu desejo é apreciar os encantos da natureza.

Talvez a observação pareça obscura. Mas não o é. Elliott sempre considerara a natureza um empecilho à vida social, e não tinha muita paciência com as pessoas que se davam ao trabalho de ir ver um lago, ou uma montanha, quando tinham diante dos olhos uma cômoda da Regência ou um quadro de Watteau. Naquela ocasião ele podia dispor de uma grande quantia. Atiçado por Gray e exasperado por ver seus amigos fazerem, na Bolsa, fortunas da noite para o dia, Henry Maturin finalmente se deixara arrastar pela corrente, e, abandonando pouco a pouco seus métodos conservadores, não vira motivo para não se aproveitar também da situação. Escreveu a Elliott, dizendo que como sempre continuava avesso a jogatinas, mas que aquilo não era especulação e sim uma prova da confiança que tinha nos inesgotáveis recursos do país. Seu otimismo tinha por base o bom senso. Ele não via obstáculo ao progresso da América. Terminava dizendo que comprara para Louisa Bradley, depositando margem, um certo número de títulos seguros, e que tinha o prazer de participar a Elliott que ela estava com um lucro de vinte mil dólares. Finalmente, se Elliott quisesse ganhar dinheiro e lhe permitisse seguir o seu critério, tinha ele quase certeza de que não o decepcionaria. Inclinado a usar as mais surradas citações, Elliott disse que tinha forças para resistir a tudo, menos à tentação; como consequência disso, quando lhe traziam o Herald, ao café da manhã, em vez de olhar a coluna social, hábito de tantos anos, concentrava toda a sua atenção nas cotações da Bolsa. Tão bom resultado tiveram as transações de Henry Maturin em seu favor que Elliott se via agora com a bela quantia de cinquenta mil dólares, que nada fizera para ganhar.

Decidiu liquidar, e com o lucro comprar uma casa na Riviera. Como retiro do mundo, escolheu Antibes, que ficava em posição estratégica entre Cannes e Monte Carlo, sendo acessível a essas duas cidades; mas é impossível dizer-se se foi a mão da Providência ou o seu instinto seguro que determinou a escolha de um lugar que logo se tornaria o centro da moda. Morar numa vila com jardim era de uma vulgaridade suburbana que repugnava ao seu exigente paladar; assim sendo, Elliott comprou duas casas dando para o mar, na parte velha da cidade, demoliu-as e construiu uma só, ali instalando aquecimento central, banheiros e todas as comodidades sanitárias que o exemplo americano impusera a um recalcitrante continente. A grande moda naquela época era decapé e, portanto, ele mobiliou a casa com móveis em estilo provençal, onde foi antes, devidamente, feito o serviço de decapé; além disso, cedeu discretamente ao modernismo escolhendo tecidos da atualidade. Tinha ainda má vontade em aceitar pintores como Picasso e Braque – “horrores, caro amigo, horrores!” –, de quem entusiastas mal orientados faziam muita propaganda, mas finalmente se achara no direito de estender sua proteção aos impressionistas, e nas paredes de sua casa se viam quadros bem bonitos. Lembro-me de um Monet, de algumas pessoas remando num rio; um Pissarro, de um trecho do cais e uma ponte do Sena; de uma paisagem do Taiti, de Gauguin; e de um encantador Renoir, uma moça de perfil com longos cabelos louros soltos nas costas. Depois de pronta, a casa ficou alegre, fresca, original; e simples, também, com aquela simplicidade que a gente sabe que só pode ser adquirida à custa de muito dinheiro.

Começou então o período de maior esplendor da vida de Elliott. Ele trouxe de Paris o seu excelente cozinheiro, e logo foi devidamente reconhecido que ele tinha a melhor mesa da Riviera. Vestiu de branco o mordomo e o lacaio, com galões dourados nos ombros. Recebia com uma magnificência que jamais ultrapassou os limites do bom gosto. O litoral do Mediterrâneo estava repleto de nobres de todas as partes da Europa, alguns atraídos pelo clima; outros em exílio; outros porque um passado escandaloso ou casamento desigual tornava preferível a existência no estrangeiro. Havia Rumanoffs da Rússia, Habsburgos da Áustria, Bourbons da Espanha, das duas Sicílias e Parma; havia príncipes da Casa de Windsor e príncipes da Casa de Bragança; Altezas da Suécia e Altezas da Grécia; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Havia príncipes e princesas não de sangue real, duques e duquesas, marqueses e marquesas da Áustria, Itália, Espanha, Rússia e Bélgica; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. No inverno, o rei da Suécia e o rei da Dinamarca vieram passar uns tempos no litoral; de vez em quando Afonso da Espanha aparecia para uma rápida visita; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Nunca me cansei de admirar, quando com graça cortesã ele se curvava diante daqueles augustos personagens, da maneira com que conseguia manter a atitude independente de cidadão de um país onde dizem que todos os homens são iguais.

Depois de ter viajado durante alguns anos, eu comprara uma casa em Cap Ferrat e, portanto, via Elliott frequentemente. Tão alto subira eu no seu conceito que muitas vezes ele me convidava às suas mais pomposas reuniões.

– É um favor que me faz, caro amigo – dizia ele. – Garanto-lhe que, tanto quanto você, sei que os nobres estragam uma reunião. Mas as outras pessoas gostam de encontrá-los e acho que a gente tem obrigação de dar um pouco de atenção aos pobres coitados. Se bem que só Deus sabe que não são merecedores! São as pessoas mais ingratas deste mundo; usam e abusam da gente e, quando acham que não temos mais serventia, empurram-nos para um lado como um trapo; aceitam inúmeros favores, mas nenhum deles se daria ao trabalho de atravessar a rua para em troca nos fazer uma gentileza.

Elliott se esforçava por ficar de bem com as autoridades locais; o prefeito do distrito, assim como o bispo da diocese e o vigário-geral muitas vezes honravam a sua mesa. Antes de se ordenar, o bispo fora oficial de cavalaria e na guerra comandara um regimento. Homem atarracado, rubicundo, que fazia questão de usar a linguagem rude da caserna; seu austero e cadavérico vigário-geral estava sempre em palpos de aranha, tal o medo de que ele dissesse alguma coisa escabrosa. Ouvia com um sorriso súplice, quando seu superior contava alguma das suas histórias prediletas. Mas o bispo dirigia a diocese com grande competência, e sua eloquência no púlpito só podia ser comparada ao espírito dos seus ditos à mesa. Ele apreciava Elliott pela generosidade de suas contribuições para a Igreja, e gostava dele pela sua amabilidade e bons almoços que proporcionava; os dois tornaram-se grandes amigos. Elliott podia congratular-se por estar assim cuidando ao mesmo tempo deste mundo e do outro; e, se me é permitida uma observação, ia conseguindo um arranjo muito satisfatório entre Deus e Mamon.

Elliott sabia apreciar o que era seu, e estava aflito para mostrar a casa nova à irmã; sempre notara nela certa reserva, e queria que mrs. Bradley visse em que estilo vivia ele agora e que roda frequentava. Isso poria ponto final às suas hesitações; ela teria que concordar que ele vencera. Escreveu-lhe, portanto, convidando-a para vir com Gray e Isabel, não para a casa dele, pois não tinha acomodações, mas para se hospedarem, como seus convidados, no vizinho Hôtel du Capo. Mrs. Bradley replicou que seus dias de viagem estavam findos, pois sua saúde não era boa e ela se sentia melhor em casa; além do mais, Gray não poderia ausentar-se de Chicago, pois os negócios estavam florescendo e ele ganhando muito dinheiro, tendo que ficar ali à mão. Elliott era afeiçoado à irmã e a carta o alarmou. Escreveu a Isabel sobre isso. Ela respondeu por cabograma que, embora sua mãe não andasse nada boa, tendo que ficar de cama um dia por semana, nem por isso estava em perigo de vida, podendo mesmo, com cuidado, durar ainda muito tempo; mas Gray precisava de descanso, e, com o pai a cuidar dos negócios, não havia motivo para que ele não tirasse umas férias. Assim sendo, não neste verão, mas no próximo, ela e Gray lhe aceitariam o convite.

No dia 23 de outubro de 1929 deu-se o pânico na Bolsa de Nova York.


5

Estava eu em Londres, nessa época, e a princípio ninguém na Inglaterra compreendeu a gravidade da situação nem como seriam funestas as consequências. Quanto a mim, embora pesaroso pelo prejuízo de enorme quantia, perdi na realidade lucros realizados no papel; assim sendo, quando a coisa serenou vi que, em dinheiro, eu não estava muito mais pobre do que antes. Sabia que Elliott andara jogando pesadamente e temi que tivesse sofrido enorme perda, mas só o vi no Natal quando fomos ambos para a Riviera. Ele me contou então que Henry Maturin morrera e Gray estava arruinado.

Pouco entendo de negócios e é possível que minha relação dos acontecimentos, como me foram contados por Elliott, pareça confusa. Pelo que pude compreender, a catástrofe que se abatera sobre a firma fora causada em parte pela teimosia de Henry Maturin e em parte pela precipitação de Gray. A princípio Henry Maturin não quisera acreditar que a baixa fosse séria, convencido de que se tratava de uma conspiração por parte dos corretores de Nova York, para passarem a perna nos seus colegas provincianos; assim sendo, ficara firme e começara a desembolsar dinheiro para sustentar o mercado. Vociferava contra os corretores de Chicago, que se deixavam atemorizar por aqueles canalhas de Nova York. Sempre se vangloriara de que seus clientes modestos, viúvas com renda certa, oficiais aposentados etc., jamais tinham perdido por lhe seguir os conselhos; e agora, em vez de permitir que cada um arcasse com seus prejuízos, ele completava as margens com sua fortuna particular. Dizia que estava disposto a aceitar a ruína, que poderia fazer depois nova fortuna, mas que, se permitisse que os coitados que haviam confiado nele perdessem tudo o que tinham, nunca mais poderia andar de cabeça erguida. Pensava que estava sendo magnânimo, mas na realidade estava apenas sendo vaidoso. Sua imensa fortuna evaporou-se e certa noite ele teve um ataque de coração. Estava com mais de sessenta anos, e sempre trabalhara com afinco, jogara muito, comera demais e bebera em excesso; após algumas horas de agonia, morreu de trombose coronária. Gray ficou só para enfrentar a situação. Também ele especulara grandemente pelo seu lado, sem o conhecimento do pai, e estava em grandes dificuldades. Seus esforços para salvar-se falharam. Os bancos não lhe faziam empréstimos; homens mais velhos, na Bolsa, disseram-lhe que a única coisa a fazer era entregar os pontos. Não estou muito certo quanto ao resto da história. Não conseguindo saldar seus compromissos ele foi, creio eu, declarado falido; já hipotecara sua casa e sentiu alívio em entregá-la aos credores; a casa de seu pai, em Lake Shore Drive, e a de Marvin foram vendidas pelo que puderam alcançar; Isabel vendeu suas joias. Tudo que lhe restou foi a plantação na Carolina do Sul, que estava em nome de Isabel, mas para a qual não foi possível encontrar comprador. Gray ficou limpo.

– E quanto a você, Elliott? – perguntei.

– Oh! não me queixo – respondeu ele despreocupadamente. – Deus dá o frio conforme a coberta.

Não insisti, pois nada tinha com sua situação financeira, mas, fossem quais fossem os prejuízos, achei que ele devia ter sofrido como todos nós.

A princípio a depressão não atingiu em cheio a Riviera. Ouvi falar de duas ou três pessoas que tinham tido grandes prejuízos, muitas vilas ficaram fechadas durante o inverno e outras foram postas à venda. Os hotéis estavam vazios e a gerência do Cassino de Monte Cado queixou-se da pobreza do movimento. Mas foi somente dali a dois anos que se compreendeu a extensão do desastre. Um corretor de imóveis contou-me que, na faixa de litoral que ia de Toulon à fronteira italiana, havia quarenta e oito mil propriedades, grandes e pequenas, à venda. As ações do Cassino caíram repentinamente. Os grandes hotéis baixaram seus preços, numa vã tentativa de atrair. Os únicos estrangeiros que se viam eram aqueles que tinham sido sempre tão pobres que não podiam ficar mais pobres, e que não gastavam porque não tinham o que gastar. Os lojistas desesperavam-se. Mas Elliott não somente não despediu nenhum dos seus empregados, como também não lhes diminuiu o ordenado, como muitos haviam feito; continuou a oferecer, aos nobres e aos de sangue real, lautos jantares regados a bons vinhos. Comprou um vasto carro novo, importado da América e sobre o qual teve que pagar pesados direitos alfandegários. Contribuiu, generosamente, para as obras de caridade que o bispo organizara para distribuir comida grátis aos desempregados. Em resumo, vivia como se não houvesse crise e metade do mundo não estivesse a sofrer as consequências.

Descobri por acaso a razão disso. Elliott já não ia à Inglaterra, a não ser por quinze dias ao ano, para comprar suas roupas, mas conservava o hábito de transferir sua residência para o apartamento de Paris durante três meses, no outono, e em maio e junho, época em que seus amigos abandonavam a Riviera. Era aqui que gostava de passar o verão, em parte por causa dos banhos, mas principalmente, pelo menos assim o julgo eu, porque os dias quentes lhe permitiam satisfazer o gosto que tinha pelas vestimentas alegres, que sua dignidade até então não lhe permitira usar. Ele apareceria com calças de cores surpreendentes, vermelhas, azuis, verdes ou amarelas, usando camisas de tons contrastantes – lilás, violeta, castanho-escuro – ou mesmo axadrezadas; e, com o modesto sorriso da atriz a quem dizem que representou um novo papel divinamente, aceitaria os parabéns que seus trajes estavam a exigir.

Aconteceu que passei um dia em Paris, na primavera, antes de voltar para Cap Ferrat, e convidei Elliott para almoçar comigo. Encontramo-nos no bar do Ritz, não mais repleto de estudantes que vinham da América para se divertir, mas deserto como um teatro após a estreia de uma peça que fracassou. Tomamos um coquetel, hábito transatlântico com o qual Elliott finalmente se conformara, e encomendamos o almoço. Quando acabamos ele propôs um giro pelos antiquários; respondi que, embora não tivesse dinheiro para gastar, teria muito prazer em acompanhá-lo. Atravessamos a Place Vendôme e ele me perguntou se eu me importava de dar com ele um pulinho até Charvet; tinha encomendado umas roupas e desejava saber se estavam prontas. Pareceu-me que encomendara umas camisas e umas cuecas e nelas mandara bordar suas iniciais. As camisas ainda não haviam chegado, mas as cuecas estavam ali, e o caixeiro perguntou-lhe se gostaria de vê-las.

– Gostaria, sim – respondeu Elliott. Depois que o homem se afastou ele virou-se para mim e acrecentou: – Mandei fazê-las, sob encomenda, de acordo com um modelo que eu mesmo imaginei.

Vieram as cuecas e, a não ser pelo fato de serem de seda, pareceram-me idênticas às que eu costumava comprar em Macy; mas o que me chamou atenção foi uma coroa de conde sobre as iniciais E. T. Não fiz, porém, o mínimo comentário.

– Ótimas, ótimas – declarou Elliott. – Pois bem, quando as camisas estiverem prontas, faça o favor de me mandar tudo junto.

Saímos da loja e, enquanto caminhávamos, Elliott virou-se para mim, sorrindo:

– Você reparou na coroa? Para ser franco, tinha-me esquecido disso quando o convidei para vir comigo até Charvet. Não sei se já tive ocasião de lhe contar que Sua Santidade houve por bem ressuscitar em meu favor o nosso velho título de família.

– Seu o quê? – exclamei, o espanto fazendo-me esquecer a polidez.

Elliott ergueu as sobrancelhas em ar desaprovador.

– Você não sabia? Descendo, pelo lado materno, do conde de Lauria que veio para a Inglaterra na comitiva de Filipe ii, casando-se com uma dama de honra da rainha Maria.

– Nossa velha amiga Maria, a Sanguinária?

– Parece-me que é assim que a chamam os hereges – replicou Elliott secamente. – Creio que nunca lhe contei que passei o mês de setembro de 29 em Roma. Achei enfadonho ter que ir, pois Roma está vazia nessa ocasião; mas foi para mim uma sorte ter o sentimento do dever prevalecido sobre o meu desejo de divertir-me. Meus amigos do Vaticano avisaram-me que a crise era inevitável e me aconselharam vivamente a vender meus títulos americanos.

A Igreja Católica conta com a sabedoria de vinte séculos, e não hesitei por um momento sequer. Mandei a Henry Maturin um cabograma, dando-lhe instruções para vender tudo e comprar ouro, e um a Louisa, aconselhando-a a fazer o mesmo. Henry mandou-me outro, perguntando se eu enlouquecera e declarando que nada faria até receber confirmação. Foi o que fiz e de maneira peremptória, dizendo-lhe que seguisse minhas instruções e me avisasse assim que as tivesse cumprido. A pobre Louisa não me deu atenção e sofreu as consequências.

– Quer dizer que, quando houve o pânico, você já se tinha defendido direitinho?

– Expressão de gíria, caro amigo, para a qual não vejo necessidade, mas que define bem a situação. Não tive prejuízo algum; ao contrário, pode-se mesmo dizer que ganhei uma bolada. Tempos depois, por uma fração do preço primitivo, pude comprar novamente os meus títulos; e, já que devia isso ao que considero direta intervenção da Providência, achei mais do que justo que, em troca, fizesse também alguma coisa para a Providência.

– E de que maneira você se desempenhou disso?

– Pois bem, você não ignora que o Duce mandou sanear os Pântanos Pontinos, e cheguei a saber que Sua Santidade estava gravemente preocupado com a falta de lugares de oração para os colonos. E, portanto, para encurtar uma longa história, construí uma igrejinha românica, reprodução exata de uma que visitei na Provença, perfeita em todos os detalhes e que, embora seja eu quem o diga, é uma verdadeira joia. Foi consagrada a são Martinho, porque tive a sorte de encontrar um vitral antigo representando são Martinho no ato de rasgar sua capa em duas para dar a metade a um mendigo nu; e, como o simbolismo me pareceu tão adequado, comprei-o e coloquei-o sobre o altar-mor.

Não interrompi Elliott para lhe perguntar que relação via ele entre a célebre ação do santo e a desistência dele, Elliott, de parte do lucro que tivera por vender na hora certa e que, como a comissão de um agente, ele pagava a um poder superior. Mas, para uma pessoa prosaica como eu, muitas vezes o simbolismo é obscuro. Elliott continuou:

– Quando tive a honra de mostrar as fotografias ao Santo Padre, ele condescendeu em dizer-me que de relance podia ver que eu era um homem de gosto impecável, acrescentando ser para ele um prazer encontrar nessa era de perdição uma pessoa que combinava fervor religioso com raros dons artísticos. Uma experiência memorável, caro amigo, uma experiência memorável. Mas ninguém ficou mais admirado do que eu quando, pouco depois, vim a saber que ele houvera por bem conferir-me um título. Como cidadão americano acho mais modesto não usá-lo, a não ser, naturalmente, no Vaticano, e proibi meu criado Joseph de me chamar de monsieur le Comte. Espero que você respeite o meu segredo; não quero que a notícia se espalhe. Mas também não desejo que o Santo Padre julgue que não aprecio a honra que me conferiu, e é puramente em consideração a ele que mandei bordar a coroa na minha roupa de baixo. Não me importo de confessar-lhe, caro amigo, que sinto um modesto orgulho em esconder minha classe sob o simples título de cavalheiro norte-americano.

Separamo-nos, tendo Elliott me dito que viria à Riviera em fins de junho. Mas não veio. Acabara de providenciar a transferência de sua criadagem, de Paris para a Riviera, pretendendo ele viajar tranquilamente de carro, a fim de encontrar tudo em ordem quando chegasse, quando recebeu um cabograma de Isabel avisando que o estado de saúde de sua mãe se agravara. Além de ser afeiçoado à irmã, Elliott tinha, como já disse, um arraigado instinto de família. Tomou em Cherburgo o primeiro vapor, e de Nova York foi para Chicago. Escreveu-me contando que mrs. Bradley estava muito doente e que ele levara um choque ao ver como emagrecera. Talvez ela durasse algumas semanas, ou mesmo meses; em todo caso, cabia-lhe o triste dever de ficar ao lado dela até o fim. Disse que achara o intenso calor mais suportável do que imaginara, mas que a falta de convivência com pessoas com quem pudesse ter afinidade só não lhe pesava pelo fato de não estar no momento em disposição festiva. Ficara decepcionado com a maneira pela qual seus compatriotas haviam reagido contra a depressão; esperara deles maior serenidade na desgraça. Sabendo eu que não há nada mais fácil do que suportar com fortaleza de ânimo os desastres alheios, achei que, mais rico agora do que em qualquer outra época da vida, talvez Elliott não tivesse o direito de se mostrar tão severo. Terminava a carta mandando recados para vários amigos seus, recomendando que eu não esquecesse de explicar a todos a razão pela qual sua casa permanecia fechada no verão.

Dali a um mês e pouco recebi outra carta sua, comunicando-me a morte de mrs. Bradley. Escreveu com sinceridade e emoção. Eu não o teria julgado capaz de se exprimir com tanta dignidade, sentimento e simplicidade, se há muito não tivesse percebido que apesar de seu esnobismo e incrível afetação Elliott era um homem bom, amoroso e sincero. Na carta ele me contou que os negócios de mrs. Bradley não estavam muito em ordem. Seu filho mais velho, diplomata, encarregado de negócios em Tóquio na ausência do embaixador, não pudera, naturalmente, abandonar seu posto. O segundo filho, Templeton, que estivera morando nas Filipinas quando eu conhecera os Bradley, fora, com o tempo, devidamente chamado a Washington e ocupava um posto importante no Departamento de Estado. Viera a Chicago com a esposa, ao ser notificado do estado desesperador de sua mãe, mas vira-se obrigado a voltar para a capital logo depois do enterro. Nestas circunstâncias, Elliott julgava-se na obrigação de ficar na América até que as coisas endireitassem. Mrs. Bradley dividira igualmente a fortuna entre os três filhos, mas parece que seus prejuízos na crise de 29 haviam sido pesadíssimos. Felizmente tinham encontrado comprador para a fazenda de Marvin. Na carta, Elliott dizia “a propriedade rural da cara Louisa”.

“É sempre triste quando uma família tem que dispor de sua morada ancestral”, escreveu-me ele. “Mas ultimamente tenho visto tantas vezes meus amigos ingleses forçados a isso, que acho que Isabel e meus sobrinhos devem aceitar o inevitável com a mesma coragem e resignação que eles demonstraram. Noblesse oblige.”

Tinham também tido a sorte de vender a casa de Chicago. Desde muito havia um projeto de derrubar a fila de casas da qual fazia parte a de mrs. Bradley, para ali construírem um bloco de apartamentos, mas os interessados tinham sido detidos pela teimosia da velha senhora, que queria morrer na casa onde sempre vivera. Nem bem exalara ela o último suspiro, de novo apresentaram uma proposta, que desta vez foi imediatamente aceita. Mas, mesmo assim, Isabel não ficava em boa situação financeira.

Depois do pânico da Bolsa, Gray tentara arranjar colocação, mesmo como empregado no escritório de algum corretor que houvesse sobrevivido à catástrofe, mas os negócios estavam parados. Pediu aos antigos amigos que lhe dessem qualquer serviço, por mais humilde e mal remunerado que fosse, mas nada conseguiu. Os frenéticos esforços que fizera para impedir o desastre, o peso da ansiedade, a humilhação resultaram num esgotamento nervoso e ele começou a ter tremendas dores de cabeça, que durante vinte e quatro horas o deixavam inutilizado e completamente sem forças depois que passavam. Isabel achou que não havia melhor solução do que irem com as crianças para a plantação da Carolina do Sul, até Gray se restabelecer. Nos bons tempos o arroz ali tinha dado cem mil dólares por ano, mas agora não passava de um lugar abandonado e selvagem, que só servia para os esportistas que quisessem caçar patos, e para o qual não se achava comprador. Ali tinham eles vivido desde a crise e para lá pretendiam voltar até que a situação melhorasse e Gray pudesse arranjar emprego.

“Eu não podia consentir numa coisa dessas”, escreveu-me Elliott. “Imagine, caro amigo, eles iriam viver como animais. Isabel sem uma criada, sem governanta para as crianças e com apenas duas negras como pajens. Resolvi, portanto, oferecer-lhes o meu apartamento em Paris e sugeri que ali fiquem até que as coisas mudem neste fantástico país. Fornecerei os empregados; além do mais, a ajudante do meu chefe sabe cozinhar muito bem, de modo que pretendo deixá-la com Isabel e arranjar alguém para substituí-la. Pagarei eu as contas, para que Isabel possa gastar sua pequena renda em vestidos e nos menus plaisirs da família. Isto, naturalmente, significa que terei que passar muito mais tempo na Riviera, e espero, portanto, ter o prazer de vê-lo mais amiúde, caro amigo.

Londres e Paris sendo o que atualmente são, sinto-me realmente mais em casa na Riviera. É o único lugar onde ainda encontro gente que fale a minha língua. Não digo que não vá a Paris de vez em quando, mas não me importarei absolutamente de me hospedar no Ritz. É com satisfação que lhe participo que finalmente convenci Gray e Isabel a acederem aos meus desejos, e pretendo levá-los comigo assim que os necessários preparativos estiverem terminados. A mobília e os quadros (insignificantes, meu caro, e da mais duvidosa autenticidade!) serão vendidos daqui a quinze dias. Neste meio-tempo, como achei que lhes seria penoso continuar a viver na casa onde minha querida irmã faleceu, trouxe-os para ficarem comigo no Drake. Assim que os tiver instalado em Paris, voltarei para a Riviera. Não se esqueça de transmitir minhas lembranças ao seu real vizinho.”

Quem poderia negar que Elliott, aquele ultraesnobe, era também o mais bondoso, mais delicado e generoso dos homens?


Quatro

Quatro


1

Tendo instalado os Maturin no seu apartamento da Margem Esquerda, no fim do ano Elliott voltou para a Riviera. Construíra a casa para si próprio e nela não havia lugar para uma família de quatro pessoas, de modo que, mesmo que fosse esse o seu desejo, ele não os poderia ter ali recebido. Não creio, no entanto, que o fato lhe causasse desprazer. Sabia perfeitamente que, sozinho, teria mais cotação do que se estivesse sempre na companhia de sobrinho e sobrinha; além do mais, a tarefa de organizar suas distintíssimas reuniões (assunto que tanto o preocupava) ficaria dificultada se tivesse invariavelmente que contar com a presença de dois hóspedes.

– É preferível que eles se instalem em Paris e se habituem à vida civilizada – disse-me Elliott. – Além do mais, as duas meninas já estão em idade de ir para a escola. Encontrei, mais ou menos perto do apartamento, uma que me afirmaram ser muito seleta.

Assim sendo, só vi Isabel na primavera, na ocasião em que, devido a um trabalho que pedia a minha permanência em Paris durante algumas semanas, tomei quartos num hotel perto da Place Vendôme. Era um hotel que eu frequentava não somente por ser bem situado, mas porque tinha atmosfera. Casarão antigo, à volta de um pátio; funcionava como hospedaria havia bem uns duzentos anos. Os banheiros estavam longe de ser luxuosos, os encanamentos deixavam muito a desejar; os quartos, com suas camas esmaltadas de branco, colchas brancas fora de moda e enormes armoires à glace, tinham uma aparência pobre; mas os salões eram mobiliados com belas peças antigas. O sofá e as poltronas datavam do alegre reinado de Napoleão iii e, embora eu não possa dizer que fossem confortáveis, tinham um garrido encanto. Naquela sala eu vivia no passado dos romancistas franceses. Ao olhar para o relógio Império sob a sua redoma de vidro, eu imaginava uma bela mulher de cabelos cacheados e vestido de franja a observar o ponteiro dos minutos enquanto esperava pela visita de Rastignac, aquele aristocrático aventureiro cuja carreira, em romance após romance, Balzac acompanhou desde o seu humilde começo até o esplendor final. E o dr. Bianchon – médico tão real a Balzac que no seu leito de morte este exclamou: “Somente Bianchon poderá salvar-me” – talvez tivesse entrado naquela sala, para tomar o pulso e examinar a língua de uma duquesa-mãe, que viera da província consultar um advogado sobre um complicado processo e chamara um médico devido a uma indisposição passageira. É possível que, à escrivaninha, uma dama de crinolina e cabelos repartidos ao meio tivesse escrito uma carta apaixonada ao amante infiel, ou um velho e assanhado fidalgo de casaco verde e pescocinho talvez houvesse redigido irada epístola ao seu extravagante primogênito.

No dia seguinte ao de minha chegada, telefonei a Isabel perguntando se podia ir tomar uma xícara de chá em sua companhia, às cinco horas. Fazia dez anos que não a via. Quando o circunspecto mordomo me introduziu na sala, ela estava lendo um romance francês. Levantou-se, tomou-me ambas as mãos, recebendo-me com um sorriso caloroso e amável. Em toda a minha vida eu não a vira mais que uma dúzia de vezes, e apenas duas a sós, mas ela me fez, imediatamente, sentir como se fôssemos velhos amigos e não apenas conhecidos. Os dez anos decorridos haviam diminuído o abismo que separara a mocinha do homem maduro, e eu já não sentia a disparidade de idade entre nós. Com a lisonjeira delicadeza de uma dama da sociedade, tratou-me como se eu fosse seu contemporâneo, e dali a cinco minutos tagarelávamos com a naturalidade e franqueza de companheiros habituados a um convívio diário. Ela adquirira desembaraço, domínio sobre si e segurança.

Mas o que mais me chamou atenção foi a diferença no seu físico. Eu me lembrava de uma moça bonita, viva, com tendência para engordar; não sei se, compenetrando-se do perigo, ela fizera heroicos sacrifícios para diminuir de peso, ou se isso era uma consequência feliz, se bem que rara, da maternidade; mas agora era de uma esbeltez que satisfaria aos mais exigentes. A moda da época acentuava essa sua qualidade. Estava de preto; num relance notei que seu vestido de seda, nem muito simples, nem excessivamente complicado, fora confeccionado por uma das melhores costureiras de Paris – e ela o usava com o confiante desembaraço da mulher que está habituada a roupas caras. Dez anos antes, mesmo sob a orientação de Elliott, seus vestidos inclinavam-se para o lado vistoso e ela não parecera muito à vontade dentro deles. Mas hoje, Marie Louise de Florimond não poderia dizer que lhe faltava chie. Isabel era chie até a ponta das unhas esmaltadas de cor-de-rosa.

Suas feições tinham-se afinado; ocorreu-me que em mulher alguma eu jamais vira nariz tão bonito e tão reto. Nenhuma ruga na testa ou sob os olhos castanhos; embora sua pele tivesse perdido a resplendente frescura da adolescência, continuava tão delicada quanto antes. Provavelmente devia algum favor a loções, cremes e massagens, mas com isso adquirira uma transparência macia, suave, de singular atração. As faces magras estavam pintadas de leve e a boca discretamente acentuada. Conforme a moda do momento, Isabel usava cortados e ondulados os seus luzidios cabelos castanhos. Não lhe vi anéis nos dedos; lembrei-me então de que Elliott me contara que ela vendera suas joias. Embora não muito pequenas, as mãos eram benfeitas. Naquela época as mulheres usavam vestidos curtos durante o dia; notei que as pernas de Isabel, sob as meias cor de champanhe, eram bem torneadas, longas e finas. Perna é coisa que estraga muita mulher bonita; mas as de Isabel, antigamente o seu maior defeito, agora nada deixavam a desejar. Em resumo, de moça que atraíra pela exuberante saúde, animação e vivacidade, transformara-se em bela mulher. Pouco importava que devesse parte desse encanto à arte, disciplina e mortificações; o resultado era mais que satisfatório. É possível que a graça dos movimentos e a elegância do porte tivessem sido adquiridos intencionalmente, mas davam a impressão de absoluta espontaneidade. Provavelmente aqueles quatro meses em Paris tinham dado os últimos retoques na consciente obra de arte que levara anos a ser completada. Nem mesmo Elliott, nos seus momentos mais exigentes, encontraria nela motivo de crítica; e eu, pessoa bem mais fácil de contentar, achei-a encantadora.

Gray fora jogar golfe em Montefontaine, mas Isabel me disse que ele não tardaria.

– E você precisa ver minhas filhas. Foram ao jardim das Tulherias, mas não devem demorar. São uns amores.

Falamos de uma coisa e outra. Isabel gostava de Paris e estavam bem instalados no apartamento de Elliott. Antes de partir, este os apresentara aos amigos com quem achara que eles iriam simpatizar; tinham, portanto, um agradável círculo de relações. Elliott insistira para que recebessem com a frequência a que ele estava habituado.

– Sabe de uma coisa, acho engraçadíssimo estarmos vivendo como gente rica, quando na realidade estamos completamente arruinados – disse-me Isabel.

– Tanto assim?

Ela riu baixinho e lembrei-me agora do riso despreocupado, alegre, que tanto me agradara dez anos antes.

– Gray não tem um níquel e eu tenho quase que exatamente a mesma renda com que Larry contava na época em que queria que me casasse com ele, quando não concordei por achar que não poderíamos viver com tal quantia; e agora tenho duas filhas, ainda por cima! Não deixa de ser engraçado, não é verdade?

– Agrada-me verificar que você percebe o humorismo da situação.

– Que notícias me dá de Larry?

– Eu? Nenhuma. Nunca mais o vi, desde aquela época em que vocês estiveram aqui em Paris. Eu me dava ligeiramente com algumas pessoas que também o conheciam e perguntei que fim levara ele; mas isso há anos. Ninguém soube dizer-me. Ele sumira, simplesmente.

– Conhecemos, em Chicago, o gerente do banco onde Larry tem a sua conta, e ele nos disse que de vez em quando recebe um aviso de pagamento de algum lugar esquisito, China, Birmânia, Índia. Parece que ele tem corrido o mundo.

Não hesitei em fazer a pergunta que estava na ponta da minha língua. Afinal de contas, se a gente quer saber uma coisa, o melhor meio é perguntar.

– Você se arrependeu de não ter casado com Larry? Um sorriso insinuante apareceu nos lábios de Isabel. – Tenho sido muito feliz com Gray. É um ótimo marido. Sabe, até vir a crise, divertimo-nos imensamente. Temos os mesmos gostos, simpatizamos com as mesmas pessoas. Ele é muito bom. E é agradável ser adorada; Gray está hoje tão apaixonado por mim como quando nos casamos; considera-me a mulher mais maravilhosa deste mundo. Você não pode imaginar como é amável e delicado. E foi sempre de uma generosidade exagerada; nada era bom demais para mim. E em todos estes anos de casados, nunca me disse uma palavra áspera ou pouco amável.

Acharia ela que respondera à minha pergunta? Mudei de assunto.

– Fale-me de suas filhinhas. Nisto a campainha tocou.

– Aí estão elas. Veja você mesmo.

No momento seguinte as meninas entraram acompanhadas pela governanta; fui apresentado primeiro a Joan, a mais velha, depois a Priscilla. Cada uma me fez uma delicada reverenciazinha ao estender-me a mão. Uma tinha oito anos, a outra seis. Eram altas para a idade; Isabel, naturalmente, era alta, e lembrei-me de que Gray era imenso; mas as meninas só eram bonitas no sentido em que são bonitas todas as crianças. Pareciam frágeis. Tinham herdado os cabelos pretos do pai e os olhos castanhos da mãe. A presença de um estranho não as intimidou: em tom animado contaram a Isabel suas peripécias nos jardins. Lançaram um olhar cobiçoso às coisas gostosas que a cozinheira preparara para o chá e em que não ha víamos tocado; recebendo licença de tirar uma, viram-se no terrível dilema de não saber qual escolher. Era agradável notar com que carinho tratavam a mãe, e as três assim juntas formavam um grupo encantador. Depois de cada uma ter comido o seu bolinho, Isabel mandou-as embora e elas saíram sem uma palavra de protesto. Pareceu-me que estavam sendo educadas a obedecer.

Quando ficamos sós, eu disse as coisas que a gente costuma dizer a uma mãe a respeito de seus filhos, e Isabel aceitou os elogios com evidente, se bem que despreocupado, prazer. Pergunteilhe se Gray estava gostando de Paris.

– Bastante. Tio Elliott nos deixou um carro, de modo que ele pode jogar golfe quase todos os dias; além disso, entrou para sócio do Clube dos Viajantes, onde costuma jogar bridge. O oferecimento do tio Elliott, de nos sustentar neste apartamento, veio, naturalmente, como uma bênção dos céus. Os nervos de Gray estão em mísero estado e ele ainda tem aquelas terríveis enxaquecas; mesmo que arranjasse emprego, não estaria em condições de aceitá-lo e isso, naturalmente, o aborrece. Ele tem vontade de trabalhar, acha que deve trabalhar e sente-se humilhado por não o quererem. Sim, pois é de opinião que a missão do homem é lutar e que, não podendo cumpri-la, é preferível morrer de uma vez. Não se conforma com a sua inutilidade; só consegui trazê-lo para cá depois de convencê-lo de que a mudança e o descanso o fariam voltar ao seu normal. Mas tenho certeza de que só se sentirá feliz quando estiver de novo em plena atividade.

– Vejo que vocês sofreram bastante nestes últimos dois anos e meio.

– Pois bem, saiba que, quando veio a crise, eu simplesmente não pude acreditar nela. Parecia-me impossível que estivéssemos arruinados. Compreendia que outras pessoas estivessem na miséria, mas nós... não; era inconcebível. Continuei pensando que à última hora aconteceria alguma coisa que nos viesse salvar. E então, quando foi desferido o golpe final, achei que não valia mais a pena viver, que não me seria possível enfrentar o futuro; era por demais sombrio. Durante uma semana me senti profundamente infeliz. Céus, foi horrível ter que dispor de tudo, sabendo que estavam acabados os divertimentos, que iria ficar privada de todas as coisas de que gostava... Mas ao fim de quinze dias exclamei: “Oh! com os diabos, não vou pensar mais nisso”, e juro-lhe que não pensei mesmo. Não choro o que perdi. Diverti-me muito enquanto durou, mas agora que terminou está acabado.

– Não há dúvida de que a ruína é bem mais suportável num luxuoso apartamento, num bairro elegante, com um mordomo competente e uma excelente cozinheira – de graça, ainda por cima – e quando a gente pode cobrir a carcaça com um vestido de Chanel, não é verdade?

– Lanvin – corrigiu ela rindo baixinho. – Vejo que você não mudou muito, em dez anos. Não sei se vai acreditar-me, cínico como é, mas se não fosse por Gray e pelas crianças não garanto que eu tivesse aceito a oferta do tio Elliott. Com os meus dois mil e oitocentos dólares anuais poderíamos perfeitamente ter vivido na plantação; cultivaríamos arroz e centeio, criaríamos porcos. Afinal de contas, nasci e fui criada numa fazenda de Illinois.

– Por assim dizer – repliquei sorrindo, pois sabia que na realidade ela nascera numa luxuosa maternidade de Nova York.

Neste momento Gray entrou. É verdade que eu só me encontrara com ele duas ou três vezes, e isso doze anos antes, mas vira sua fotografia ao lado da noiva (Elliott conservava-a sobre o piano, em esplêndida moldura, ao lado das fotografias autografadas do rei da Suécia, da rainha da Espanha e do duque de Guise, mas lembrava-me muito bem dele). Fiquei agora estupefato. Estava calvo no alto da cabeça, e as entradas tinham aumentado consideravelmente; rosto rubro e intumescido, papada. Engordara demais naqueles anos de boa vida e muito álcool, e somente sua grande altura impedira que se tornasse vulgarmente obeso. Mas foram os olhos que mais me chamaram atenção. Eu me lembrava perfeitamente da sua expressão franca, confiante, quando Gray via o mundo à sua frente e não tinha uma única preocupação na vida; mas agora pareceu-me distinguir neles uma espécie de perplexa consternação e, mesmo que eu desconhecesse os fatos, creio que teria adivinhado que acontecera alguma coisa que destruíra a confiança que Gray tivera em si e na ordem natural dos acontecimentos. Senti nele uma espécie de modéstia, como se tivesse agido mal, embora involuntariamente, e disso se envergonhasse. Evidentemente seus nervos estavam em petição de miséria. Cumprimentou-me muito cordialmente, como se eu fosse um velho amigo; mas pareceu-me que a sua ruidosa amabilidade era mais uma atitude, pouco de acordo com seus sentimentos.

Trouxeram as bebidas e ele nos preparou um coquetel. Estivera no clube de golfe e ficara satisfeito com o seu jogo. Meteu-se a descrever, com exagerada loquacidade, as dificuldades que vencera num dos buracos. Isabel ouviu-o aparentemente com vivo interesse. Dali a pouco, após termos combinado um dia para eles irem jantar comigo, e um teatro depois, despedi-me e saí.


2

Adquiri o hábito de ir ver Isabel três ou quatro vezes por semana, à tarde, terminada a minha tarefa do dia. Em geral ela estava só nesta hora e gostava de uma prosinha. As pessoas a quem Elliott a apresentara eram muito mais velhas; percebi que poucas companheiras tinham sua idade. Meus amigos estavam geralmente ocupados até a hora do jantar e, a ir ao clube jogar bridge com alguns franceses rabugentos que não apreciavam a presença de um intruso, eu preferia a companhia de Isabel. Sua encantadora maneira de me tratar como se fôssemos da mesma idade tornava fácil a conversa; pilheriávamos, ríamos, caçoávamos um do outro, falando às vezes sobre nós, às vezes sobre amigos comuns, de outras sobre livros e quadros; assim o tempo passava agradavelmente. Um dos meus defeitos é nunca me acostumar com a fealdade das pessoas; por melhor gênio que tenha um amigo meu, nem com anos de intimidade consigo conformar-me com seus maus dentes ou nariz torto; por outro lado, jamais me canso de apreciar a beleza, e depois de vinte anos de convivência ainda me agrada ver uma sobrancelha benfeita ou o delicado contorno de um rosto. E, portanto, ao chegar à presença de Isabel, nunca deixei de experimentar uma leve sensação de prazer ante o oval perfeito do rosto, o acetinado da pele e o cálido brilho dos olhos castanhos.

Nisto aconteceu um fato inesperado.


3

Em todas as grandes cidades existem grupos fechados que não se comunicam entre si, pequenos mundos dentro de um mundo maior, a viver a sua vida, dependendo seus componentes da companhia uns dos outros, como habitantes de ilhas separadas entre si por canais inavegáveis. De acordo com a minha experiência, mais do que de qualquer outra cidade pode-se dizer isso de Paris. Ali, raramente a alta sociedade permite intrusos no seu meio; os políticos vivem no seu círculo corrupto; os burgueses, grandes e pequenos convivem uns com os outros; escritores se congregam com escritores (é interessante notar, no Journal de André Gide, como ele teve pouca intimidade com pessoas que não eram da sua profissão), pintores misturam-se com pintores e músicos com músicos. O mesmo acontece em Londres, se bem que de maneira menos acentuada; ali os pássaros da mesma plumagem já não se juntam tanto, e há uma dúzia de casas onde a gente pode encontrar ao mesmo tempo uma duquesa, uma atriz, um pintor, um membro do Parlamento, um advogado, uma costureira e um escritor.

As circunstâncias da minha vida levaram-me a viver transitoriamente em quase todos os mundos de Paris, até mesmo (por intermédio de Elliott) no círculo fechado do Boulevard St. Germain; mas aquele de que mais gosto, mais que da roda discreta que tem seu centro no que hoje se chama Avenue Foch, mais que do grupo cosmopolita, que dá sua preferência ao Larue e ao Café de Paris, mais que da ruidosa e sórdida alegria de Montmartre, é o trecho que tem por artéria principal o Boulevard du Montparnasse. Na minha mocidade passei um ano num apartamentozinho próximo ao Lion de Belfort, no quinto andar, de onde se avistava perfeitamente o cemitério. Para mim, Montparnasse ainda tem um pacato ar de cidade de interior, característico naquele tempo. Quando passo pela sombria e estreita Rue d’Odessa, é com dor no coração que me lembro do modesto restaurante onde nos reuníamos para jantar, pintores, ilustradores, escultores e eu, o único escritor, a não ser por Arnold Bennett, que aparecia de vez em quando, ali ficando até tarde a discutir animadamente, absurdamente, colericamente, sobre pintura e literatura. Ainda é para mim um prazer descer pelo boulevard e observar as pessoas que têm a mocidade que eu tinha naquele tempo, e inventar, para meu gozo particular, histórias a respeito delas. Quando não tenho o que fazer, tomo um táxi e vou sentar-me no velho Café de Dôme. Já não é o que era naquele tempo, ponto de reunião exclusivamente da boêmia; os pequenos comerciantes da vizinhança habituaram-se a frequentá-lo, e surgem estranhos do outro lado do Sena, na esperança de ver um mundo que deixou de existir. Naturalmente os estudantes ainda aparecem, e pintores, e escritores; mas são, na maioria, estrangeiros; quem está ali sentado ouve tanto russo, alemão e inglês como francês. Mas tenho a impressão de que dizem mais ou menos as mesmas coisas que dizíamos há quarenta anos, só que discutem Picasso em vez de Manet, e André Breton em vez de Guillaume Apollinaire. Meu coração voa para perto deles.

Certa tarde, mais ou menos quinze dias depois de me achar em Paris, estava eu sentado no Dôme; tendo encontrado cheio o terraço, vira-me obrigado a tomar uma mesa da primeira fila. Tempo bonito e quente. Os plátanos começavam a enfolhar-se e havia no ar aquela nota de ociosidade, despreocupação e alegria, própria da cidade de Paris. Sentei-me em paz comigo mesmo, mas não letargicamente; pelo contrário, quase que com júbilo. Subitamente um homem que passara por mim parou e, exibindo os dentes brancos num sorriso, exclamou: “Alô”. Fitei-o inexpressivamente. Alto e magro. Estava sem chapéu; notei-lhe a cabeleira escura, que estava clamando por uma tesoura. O lábio superior e o queixo se escondiam sob cerrada barba castanha. Testa e pescoço muito queimados do sol. Estava com uma camisa puída, sem gravata, paletó marrom surradíssimo e uma calça cinzenta em não muito melhores condições. Parecia um vagabundo e eu poderia jurar que nunca o tinha visto. Tomei-o por um daqueles sujeitos ordinários que decaíram completamente em Paris, e esperei que me contasse uma série de infelicidades, no intuito de me arrancar alguns francos que lhe garantissem cama e comida por uma noite. Ele estava de pé, diante da minha mesa, mãos enfiadas nos bolsos, dentes brancos à mostra, expressão divertida nos olhos escuros.

– Não se lembra de mim? – perguntou.

– É a primeira vez que o vejo na vida.

Eu estava disposto a lhe dar vinte francos, mas não tinha a menor intenção de permitir que continuasse com o blefe de que éramos conhecidos.

– Larry – disse ele.

– Deus do céu! Sente-se – exclamei. Ele deu uma risadinha abafada, adiantou-se e ocupou a cadeira vazia à minha mesa. – Tome alguma coisa – continuei, chamando o garçom. – Como é que você esperou que eu o reconhecesse com todos esses pelos no rosto?

Veio o garçom e Larry encomendou uma laranjada. Agora que podia vê-lo melhor, lembrei-me da singularidade dos olhos, que residia no fato de ser a íris tão negra quanto a pupila, dando-lhes ao mesmo tempo penetração e opacidade.

– Há quanto tempo está em Paris? – perguntei.

– Há um mês.

– Vai continuar aqui?

– Por algum tempo.

Enquanto eu fazia essas perguntas, meu pensamento trabalhava. Notei que a bainha da calça estava puída, roto o paletó nos cotovelos. Tinha a aparência pobre de qualquer vagabundo que eu tivesse encontrado num porto oriental. Naquela época era difícil a gente se esquecer da depressão, e fiquei a conjeturar se a crise de 29 não o teria arruinado. O pensamento desagradou-me e, não sendo amigo de rodeios, perguntei-lhe francamente:

– Você está mal de finanças?

– Não; absolutamente. Que ideia foi essa?

– Pois bem, você está com ar de quem precisa de uma boa refeição, e as roupas que está usando só servem para o lixo.

– Tanto assim? Não pensei nisso. Para falar a verdade, eu estava com ideia de fazer algumas compras, mas nunca chega a hora.

Pensei que fosse orgulho, ou timidez, e não vi motivo para concordar com essa tolice.

– Não seja idiota, Larry. Não sou nenhum milionário, mas também não sou pobre. Se você está em apuros, deixe que lhe empreste alguns milhares de francos, que nem por isso ficarei quebrado.

Ele soltou uma gargalhada.

– Muito agradecido; mas não estou em apuros. Nem chego mesmo a gastar o que tenho.

– Apesar da crise?

– Oh! a crise não me atingiu. Tudo o que eu tinha estava em títulos do governo. Não sei se baixaram de cotação, não indaguei a respeito, mas o fato é que o Tio Sam continua a pagar os juros, como sujeito correto que é. Para ser franco, estive gastando tão pouco nestes últimos anos, que devo mesmo ter uma boa reserva.

– De onde é que você está vindo, então?

– Da Índia.

– Oh! eu soube que você tinha andado por lá. Isabel contou-me. Parece que ela conhece o gerente do seu banco, em Chicago.

– Isabel? Quando foi que a viu pela última vez?

– Ontem.

– Ela não está em Paris, está?

– Claro que está. Moram no apartamento de Elliott Templeton.

– Ótimo. Teria imenso prazer em vê-la.

Embora eu o observasse atentamente, notei nos seus olhos apenas prazer, e uma surpresa natural, mas nenhum sentimento mais complexo.

– Gray também está aqui. Você sabe que eles se casaram?

– Sei. O tio Bob – o dr. Nelson, meu tutor – escreveu, contando-me. Ele morreu há alguns anos.

Ocorreu-me que, com a quebra daquilo que era aparentemente o único elo que o prendia a Chicago, provavelmente Larry não estava a par dos acontecimentos. Falei-lhe do nascimento das duas filhas de Isabel, da morte de Henry Maturin e de Louisa Bradley, da ruína completa de Gray e da generosidade de Elliott.

– Elliott também está aqui?

– Não.

Pela primeira vez em quarenta anos Elliott não passava a primavera em Paris. Embora não aparentasse essa idade, estava agora com setenta anos e, como acontece comumente com homens tão idosos, havia dias em que se sentia cansado e doente. Ia aos poucos abandonando os exercícios e agora quase que só se limitava aos passeios a pé. Preocupava-se muito com a saúde e seu médico vinha vê-lo duas vezes por semana, para espetar alternadamente numa das nádegas uma agulha com a injeção da moda. Em todas as refeições, tanto em casa como fora, Elliott tirava do bolso um estojinho de ouro e dele extraía um comprimido, engolindo-o com o ar compenetrado de quem está cumprindo um rito sagrado. Seu médico lhe recomendara uma cura em Montecatini, estação de águas no norte da Itália, e de lá ele pretendia ir a Veneza, a fim de procurar um modelo de pia batismal apropriado para a sua igreja românica. Agora já não lhe era tanto sacrifício não visitar Paris, pois de ano em ano achava a vida social ali menos satisfatória. Não gostava de gente velha, ofendendo-se quando o convidavam para encontrar somente pessoas da sua idade; e, quanto aos moços, achava-os enfadonhos. A igreja que ele construíra era agora o interesse máximo da sua vida; podia, assim, satisfazer o seu arraigado gosto de adquirir obras de arte, tendo a agradável certeza de que o fazia para a glória de Deus. Encontrara em Roma um altar antigo, de melite, e durante seis meses estivera remexendo Florença à procura de um tríptico da escola sienense, para colocá-lo sobre o altar.

Larry perguntou-me que tal Gray estava achando Paris.

– Creio que se sente um tanto desambientado. Tentei explicar a impressão que Gray me causara. Larry ouviu-me com olhos fixos no meu rosto, sem pestanejar, e, não sei por quê, a expressão contemplativa me fez pensar que ele escutava, não com os ouvidos, mas com algum mais sensível e mais íntimo órgão auditivo. Esquisito, e para mim não muito agradável.

– Mas você verá por si mesmo – concluí.

– Sim, eu teria muito prazer em vê-los. Com certeza encontrarei o endereço na lista telefônica.

– Mas, a não ser que você queira pregar-lhes um susto e tanto, e arrancar gritos histéricos às crianças, vá cortar o cabelo e tirar essa barba.

Ele riu.

– A ideia já me ocorreu. Não tenho nenhum interesse em chamar atenção.

– E, enquanto estiver com a mão na massa, compre um terno novo.

– Creio que estou mesmo um tanto esfarrapado. Quando saí da Índia, verifiquei que não tinha outras roupas a não ser estas que trago no corpo.

Olhou para o meu terno e perguntou quem era o meu alfaiate. Contei-lhe, mas acrescentei que o homem estava em Londres e que, portanto, não poderia ser de grande utilidade. Mudamos de assunto, falando de novo sobre Gray e Isabel.

– Tenho-os visto frequentemente – disse eu. – São muito felizes. Ainda não tive oportunidade de conversar a sós com Gray e, em todo caso, acho que não me falaria sobre Isabel, mas sei que gosta muito dela. Seu rosto, em repouso, é um tanto taciturno; os olhos têm uma expressão atormentada, mas quando descansam em Isabel adquirem uma suavidade e uma meiguice realmente comovedoras. É minha impressão que, durante toda aquela época de luta, ela se manteve como uma rocha ao lado do marido e ele não se esquece de quanto lhe deve. Você vai achar Isabel mudada. – Não disse a Larry que ela estava linda como jamais o fora, pois não sabia se ele tinha suficiente discernimento para ver como a moça bonita e sacudida soubera transformar-se em mulher adoravelmente graciosa, delicada e fina. Há homens que se escandalizam com o auxílio que a arte presta à beleza feminina... Acrescentei: – Ela é muito boa para Gray. Está fazendo o possível para que ele readquira confiança em si.

Mas estava ficando tarde; perguntei a Larry se não queria descer comigo o boulevard, para jantarmos juntos.

– Não, obrigado; creio que hoje não – respondeu ele. – Tenho que ir caminhando.

Levantou-se, cumprimentou-me amavelmente e passou para a calçada.


4

Estive com Gray e Isabel no dia seguinte e contei-lhes que vira Larry. Ficaram tão admirados quanto eu.

– Que vontade de vê-lo novamente! – exclamou Isabel. – Vamos telefonar-lhe agora mesmo.

Lembrei-me então de que não pensara em pedir a Larry o seu endereço. Isabel me passou uma descompostura em regra.

– Não sei se ele me teria contado – defendi-me, rindo. Com certeza o meu subconsciente teve interferência no caso. Você não se lembra, ele não gostava de dizer onde estava morando. Era uma das suas esquisitices; mas é bem capaz de aparecer aqui a qualquer momento.

– Não seria de admirar – disse Gray. – Mesmo nos velhos tempos ninguém podia contar com ele onde era esperado. Estava hoje aqui, amanhã ali. A gente o via numa sala e pensava em ir cumprimentá-lo dali a pouco, mas quando lá chegava ele já tinha desaparecido.

– Larry sempre foi uma criatura exasperante – disse Isabel. – Quanto a isto, não há dúvida. Provavelmente teremos que esperar até que ele se lembre de aparecer.

Ele não veio neste dia, nem no seguinte, nem no outro. Isabel acusou-me de ter inventado a história só para aborrecer. Garanti-lhe que não, procurando apresentar razões que explicassem a ausência de Larry. Mas não eram plausíveis. Pensei comigo mesmo que, refletindo melhor, talvez ele tivesse achado preferível não ver Gray e Isabel, tendo mesmo saído de Paris. Já naquela época eu sentia que ele não criava raízes em parte alguma, estando sempre pronto – por uma razão que lhe parecesse boa, ou por capricho a continuar o seu caminho de um momento para outro.

Finalmente ele apareceu. Chovia, e Gray não fora a Mortefontaine. Estávamos os três na sala, Isabel e eu tomando uma xícara de chá, Gray um uísque com perrier, quando o mordomo abriu a porta e Larry entrou. Isabel pulou da cadeira com uma exclamação e, atirando-se nos braços dele, beijou-o em ambas as faces. Gray, seu rosto rubro tornando-se ainda mais rubro, apertou-lhe calorosamente a mão.

– Viva, que prazer em vê-lo – disse, em voz trêmula de emoção. Isabel mordeu os lábios e percebi que se esforçava para não chorar.

– Tome qualquer coisa, meu velho – disse Gray em voz ainda pouco firme.

Fiquei comovido com o prazer que lhes causava a volta do amigo errante. E para Larry deve ter sido agradável verificar quanto lhe queriam bem. Sorriu, satisfeito. Percebi, no entanto, que estava absolutamente senhor de si. Notando a bandeja do chá, disse:

– Aceito uma xícara de chá.

– Oh! céus, você não há de querer chá! – exclamou Gray. – Vamos abrir uma garrafa de champanhe.

– Prefiro chá – sorriu Larry.

Sua serenidade teve nos outros o efeito que ele provavelmente desejava que tivesse. Acalmaram-se, mas ainda o olhavam com afeição. Não quero com isso dizer que ele tenha correspondido com frieza pouco simpática à espontânea exuberância dos outros; pelo contrário, não podia ter sido mais cordial e encantador; senti, no entanto, na sua atitude qualquer coisa que só posso qualificar como “remota” e fiquei a imaginar o que seria.

– Por que não veio logo nos ver, “sua” peste? – exclamou Isabel, fingindo indignação. – Passei estes últimos cinco dias dependurada na janela, e todas as vezes que a campainha tocava meu coração batia acelerado, dando-me um trabalhão para acalmá-lo novamente!

Larry riu baixinho.

– Mr. Maugham me disse que eu estava com aparência tão pouco respeitável que o seu criado não me deixaria entrar. Fui a Londres de avião, para comprar umas roupas.

– Isto não teria sido necessário – disse eu. – Você poderia ter comprado uma roupa feita aqui no Printemps ou na Belle Jardinière.

– Achei que, já que estava decidido, era melhor fazer a coisa em estilo – respondeu Larry. – Há dez anos que não compro trajes europeus. Procurei o seu alfaiate e disse-lhe que queria um terno em três dias. Ele respondeu que levaria quinze, de modo que concordamos com quatro. Faz uma hora que cheguei de Londres.

Ele usava um terno de casimira azul bem assentado no seu corpo esguio, camisa branca de colarinho mole, gravata azul e sapato marrom. Cortara curto o cabelo e tirara a barba. Estava não somente decente, mas bem tratado. Verdadeira transformação. Muito magro; maçãs ainda mais salientes, têmporas mais entradas, olhos maiores nas órbitas fundas; apesar disso, estava muito bem-disposto. Para falar a verdade, com seu rosto muito queimado, sem uma ruga, ele parecia extraordinariamente jovem. Era um ano mais moço do que Gray, tendo ambos pouco mais de trinta anos; mas, se Gray dava a impressão de ter dez anos mais, Larry parecia ter dez menos. Os movimentos de Gray, devido ao seu volume, eram deliberados e um tanto pesados; os de Larry, leves e naturais. Tinha um jeito de adolescente, alegre e donairoso, mas no íntimo possuía uma serenidade que singularmente me era perceptível, e que eu não me lembrava de ter notado no rapazinho que conhecera em Chicago. À medida que a conversa prosseguia, com muita naturalidade, como acontece entre velhos amigos que têm muitas recordações em comum, com notícias de Chicago fornecidas por Gray e Isabel – conversa trivial, entremeada de risos, uma coisa conduzindo a outra–, eu continuava com a impressão de que, embora fosse espontâneo o seu riso e ele ouvisse com evidente prazer o alegre tagarelar de Isabel, havia em Larry um singular desprendimento. Não que estivesse representando um papel, pois era natural demais para isso, e sua sinceridade era inegável; senti que havia qualquer coisa dentro dele, não sei se devo chamá-la de percepção, sensibilidade, ou força, que se conservava estranhamente isolada.

As crianças apareceram, foram apresentadas a Larry e fizeram suas delicadas reverenciazinhas. Ele lhes estendeu a mão, fitando-as com encantadora ternura nos olhos suaves, e elas a apertaram com ar grave. Com muita vivacidade Isabel contou a Larry que as filhas iam muito bem nos estudos, deu um bolinho a cada uma e mandou-as embora.

– Vou depois ler para vocês durante dez minutos, quando estiverem na cama.

Naquele momento ela não queria ver interrompido o prazer que lhe causava a presença de Larry. As meninas foram dar boa-noite ao pai. Achei comovente ver iluminar-se o rosto vermelho daquele homem pesadão, quando as abraçou e beijou. Ninguém podia deixar de notar com que orgulho as adorava; quando elas saíram, virou-se para Larry e disse:

– Podiam ser piores, não podiam?

Isabel lançou ao marido um olhar afetuoso.

– Se eu deixasse Gray fazer o que quer, elas estariam completamente estragadas. Este brutamontes me deixaria foie gras.

Gray fitou-a sorrindo e disse:

– Você é uma mentirosa e sabe disso. Tenho verdadeira paixão por você.

Nos olhos de Isabel brilhou um sorriso compreensivo. Ela sabia disso e o fato lhe causava prazer. Um casal feliz.

Isabel insistiu em que ficássemos para jantar. Achando que talvez eles preferissem ficar sós, inventei uma desculpa, mas Isabel não se conformou.

– Direi a Marie que ponha mais uma cenoura na sopa e assim dará bem para quatro. Temos frango; você e Gray poderão comer as pernas e Larry e eu ficaremos com as asas; e ela que faça o suflê de um tamanho que dê para todos nós.

Também Gray parecia querer que eu ficasse, de modo que me deixei persuadir a fazer o que eu desejava.

Enquanto esperávamos, Isabel contou detalhadamente a Larry aquilo que eu já lhe contara por alto. Embora narrasse a lamentável história da maneira mais alegre possível, o rosto de Gray tornou-se taciturnamente melancólico. Ela procurou animá-lo.

– Em todo caso, agora está tudo acabado. Caímos de pé e temos o futuro à nossa frente. Assim que as coisas melhorarem, Gray vai arranjar um ótimo emprego e ganhar milhões. Vieram os coquetéis, e dois conseguiram levantar o moral do pobre coitado. Notei que, embora tivesse tirado um, Larry mal tocou nele; e quando Gray, mau observador, lhe ofereceu outro, Larry recusou-o. Fomos lavar as mãos e sentamo-nos à mesa. Gray mandara abrir uma garrafa de champanhe, mas, quando o mordomo começou a servir Larry, este lhe disse que não queria.

– Oh! mas você precisa tomar um pouco! – exclamou Isabel. – É o melhor champanhe do tio Elliott, que ele reserva para os convidados especiais.

– Para ser franco, prefiro água. Depois de ter vivido tanto tempo no Oriente, é um prazer poder beber uma água que não seja perigosa.

– Mas é uma ocasião especial.

– Está certo; tomarei um pouco.

O jantar estava ótimo, mas, assim como eu, Isabel notou que Larry comeu muito pouco. Ocorreu-lhe então, creio, que estivera falando o tempo todo e que pouca oportunidade tivera ele de dizer alguma coisa; em vista disso, começou a indagar dos seus atos durante aqueles dez anos em que não se tinham visto. Ele respondeu com a sua amável franqueza, mas tão vagamente que não ficamos lá muito bem informados.

– Oh! você sabe, estive vagando por aí. Passei um ano na Alemanha e algum tempo na Espanha e Itália. E perambulei um pouco pelo Oriente.

– De onde está vindo agora?

– Da Índia.

– Quanto tempo ficou lá?

– Cinco anos.

– Divertiu-se? – perguntou Gray. – Matou algum tigre?

– Não – respondeu Larry sorrindo.

– Mas, francamente, o que esteve você fazendo na Índia durante cinco anos? – perguntou Isabel.

– Divertindo-me – respondeu ele com um sorriso de amável zombaria.

– Que tal a Mágica da Corda? – perguntou Gray. – Viu-a?

– Não, não vi.

– Que foi que você viu?

– Muita coisa.

Nesta altura fiz uma pergunta.

– É verdade que os iogues adquirem poderes que nos pareceriam sobrenaturais?

– Não sei. Só o que posso dizer é que, na Índia, geralmente se acredita nisso. Mas os mais sensatos não dão muito valor a poderes dessa natureza; acham que retardam o progresso espiritual. Lembro-me de que um deles me falou de um iogue que chegou à beira de um rio, e que não tinha dinheiro para pagar o barqueiro que devia levá-lo à outra margem, recusando-se este a transportá-lo de graça; e, portanto, o homem pisou a água e andou sobre a superfície, até chegar ao outro lado. O iogue que me contou o fato encolheu os ombros desdenhosamente e disse: “Tal milagre não vale mais que o níquel que teria custado a passagem”.

– Mas você acha que o iogue andou realmente sobre a água?

– O iogue que me contou acreditava nisso piamente. Era um prazer ouvir Larry falar, pois sua voz era adoravelmente melodiosa; leve, rica sem ser profunda, e com uma singular variedade de entonações. Terminado o jantar, fomos para a sala de visitas, onde nos foi servido o café. Eu não conhecia a Índia e estava ansioso por mais detalhes.

– Você chegou a conhecer escritores e pensadores? – perguntei.

– Noto que você faz uma distinção entre os dois – disse Isabel, para troçar comigo.

– Fiz questão disso – declarou Larry.

– Como é que você se comunicou com eles? Em inglês?

– Os mais interessantes, quando sabiam inglês, não falavam muito bem e entendiam menos ainda. Aprendi hindustani. E, quando fui para o sul, cheguei a entender bastante tamul para não me sentir perdido.

– Quantas línguas você conhece, Larry?

– Não sei. Mais ou menos uma meia dúzia.

– Conte-me mais alguma coisa sobre os iogues – pediu Isabel. – Chegou a conhecer algum intimamente?

– O mais intimamente que se possa conhecer uma pessoa que vive a maior parte do tempo no Infinito – respondeu ele sorrindo. – Passei dois anos no ashrama de um deles.

– Dois anos? Que é ashrama?

– Bom, suponho que é o que chamaríamos de eremitério. Há homens santos que vivem sós, num templo, na floresta ou nas encostas do Himalaia. Há outros que atraem discípulos. Uma pessoa caridosa, que queira adquirir mérito, constrói um quarto grande ou pequeno, para que ali viva um iogue cuja piedade o impressionou, e os discípulos vivem com ele, dormindo na varanda, ou na cozinha se existe uma, ou mesmo embaixo das árvores. Eu tinha uma choça, perto, onde apenas havia lugar para minha cama de lona, uma cadeira, uma mesa e uma estante.

– Onde foi isso? – perguntei.

– Em Travancore, bela região de morros verdejantes, vales poéticos e rios de águas mansas. Lá em cima, nas montanhas, há tigres, leopardos, elefantes e bisões, mas o ashrama ficava numa laguna cercada de arecas e coqueirais. Distava cinco ou seis quilômetros da cidade mais próxima, mas vinha gente de lá, e mesmo de mais longe, a pé ou de carro de boi, para ouvir o iogue falar quando a tal se sentia inclinado, ou apenas para se sentar a seus pés e compartilhar da paz e bem-aventurança que, tal a fragrância que a tuberosa espalha no ar, sua santa presença irradiava.

Gray moveu-se desajeitadamente na cadeira. Pareceu-me que a conversa estava tomando um rumo que não o deixava lá muito à vontade.

– Quer tomar um uísque? – perguntou-me.

– Não, obrigado.

– Bom, eu vou tomar um. E você, Isabel?

Ergueu da cadeira o corpo pesadão e foi até a mesa onde havia uísque Perrier e alguns copos.

– Havia lá outros homens brancos?

– Não; eu era o único.

– Como é que você pôde aguentar isso durante dois anos? – exclamou Isabel.

– Passaram voando. Tenho conhecido dias que me pareceriam mais longos.

– O que é que você fazia o tempo todo?

– Lia. Fazia longos passeios a pé. Saía de barco pela laguna.

Meditava. A meditação é tarefa árdua; depois de duas ou três horas, a pessoa fica exausta como se tivesse guiado um carro durante mil quilômetros, e só o que deseja é repousar.

Isabel franziu de leve as sobrancelhas. Estava perplexa e não garanto que não estivesse também um pouco amedrontada. Creio que começava a achar que o Larry que horas antes entrara na sala, embora aparentemente inalterado, franco e amigo como antigamente, não era o mesmo Larry ingênuo, alegre e de gênio fácil, quase seu escravo, mas encantador, que ela conhecera no passado. Perdera-o uma vez e, ao vê-lo novamente, tomando-o pelo mesmo de outros tempos, julgava que, por diferentes que fossem as circunstâncias, ele ainda lhe pertencia; mas estava agora ligeiramente consternada, como se tivesse querido capturar um raio de sol e ele lhe houvesse escapado pelos dedos no momento em que o agarrara. Eu a observara bastante naquela noite, tarefa, aliás, sempre agradável, e notara a expressão afetuosa do seu olhar quando pousara na cabeça benfeita de Larry, de orelhas pequenas rentes ao crânio, e vira essa expressão mudar ao fixar-se nas têmporas fundas e faces macilentas. Olhou de relance para as mãos longas, finas, que apesar de emaciadas eram fortes e viris. Depois seu olhar se demorou na boca expressiva, benfeita, carnuda sem ser sensual, e na fronte serena e nariz benfeito. Larry usava suas roupas, não com a elegância de figurino de Elliott, mas com a despreocupação de quem as tivesse usado todos os dias durante um ano. Vi que ele inspirava em Isabel um sentimento maternal que eu não lhe notara no trato com as filhas. Era ela uma mulher experiente; ele parecia ainda um rapazinho; creio ter percebido na atitude de Isabel um orgulho de mãe pelo filho crescido, pelo fato de estar ele falando inteligentemente e ser ouvido como se suas palavras tivessem sentido. Não creio que ela alcançasse o que ele dizia.

Mas eu ainda não acabara com as perguntas.

– Como era o seu iogue?

– Quer dizer, fisicamente? Pois bem, não era alto; nem magro nem gordo; pele de um pardo acinzentado, barba feita, cabelo branco cortado rente. Usava apenas uma tanga, e no entanto conseguia ter a aparência limpa e correta de qualquer rapaz de um anúncio de Brooks Brothers.

– E qual a maior atração que você viu nele?

Larry fitou-me durante um longo momento antes de responder. Os olhos profundos pareciam querer penetrar-me até o mais íntimo da alma.

– Santidade.

Fiquei um tanto desconcertado com a resposta. Naquela sala de mobília fina e belos desenhos nas paredes, a palavra caiu como uma gota-d’água que houvesse filtrado pelo teto, oriunda de uma banheira transbordante.

– Temos lido muito sobre os santos, são Francisco, são João da Cruz e outros, mas isto aconteceu há centenas de anos. Nunca pensei que fosse possível conhecer um que vivesse atualmente. Desde o primeiro momento em que o vi, tive certeza de que era um santo. Foi um maravilhoso acontecimento.

– E o que você ganhou com isso?

– Paz – respondeu ele despreocupadamente, com um leve sorriso. Depois, bruscamente, ergueu-se e disse: – Tenho que ir.

– Oh! ainda não, Larry – exclamou Isabel. – É muito cedo.

– Boa-noite – disse ele, ainda sorrindo, sem ligar ao protesto. Beijou-a na face e acrescentou: – Provavelmente nos veremos daqui a um ou dois dias.

– Onde é que você está morando? Eu lhe telefonarei.

– Oh! não se incomode. Você sabe como é difícil a gente conseguir uma ligação em Paris e, além do mais, o nosso telefone está sempre com defeito.

Ri-me intimamente ao ver com que habilidade Larry se esquivara. Era uma esquisitice sua, guardar segredo sobre o seu endereço. Propus jantarem todos comigo, não na noite seguinte, mas na outra, no Bois de Boulogne. Naquele verão ameno era muito agradável a gente comer ao ar livre, sob as árvores; Gray poderia levar-nos no cupê. Saí com Larry e de boa vontade teria andado um trecho do caminho em sua companhia, mas assim que ganhamos a rua ele me estendeu a mão, afastando-se rapidamente. Tomei um táxi.


C O N T I N U A

Nunca senti maior apreensão ao começar um romance. E se digo romance é por não saber de que outra maneira chamá-lo. Não tem grande enredo, não acaba com morte nem com casamento. A morte põe termo a todas as coisas e é, portanto, fim lógico para uma história; mas também o casamento é solução muito correta e os blasés fariam mal em escarnecer daquilo que comumente se diz que “acabou bem”. O instinto popular anda acertado ao afirmar que, com isto, tudo o que devia ser dito foi dito. Quando, depois de inúmeras vicissitudes, macho e fêmea finalmente se reúnem, sua função biológica foi cumprida e o interesse passa à geração vindoura. Mas estou deixando o meu leitor no escuro. Este livro consiste nas recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contato; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar fatos de que tenho conhecimento.
Há anos escrevi um romance intitulado Um gosto e seis vinténs. Nele, destaquei um famoso pintor, Paul Gauguin, e, valendo-me do privilégio do romancista, imaginei vários incidentes, no intuito de ilustrar o tipo que eu criara inspirado nos escassos fatos que conhecia da vida do artista francês. Na obra atual nada tentei de semelhante. Não inventei coisa alguma. Para poupar constrangimento a pessoas que ainda vivem, dei aos personagens desta história nomes fictícios e procurei, por outros meios, evitar que sejam reconhecidos. O homem sobre quem escrevo não é célebre; talvez nunca chegue a sê-lo. É possível que, ao atingir o fim da vida, não deixe, de sua passagem pela terra, vestígio maior que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas. Neste caso, se o meu livro for lido, sê-lo-á exclusivamente pelo interesse intrínseco que possa ter. Mas é possível que o gênero de vida que esse homem escolheu para si próprio e a singular força e doçura do seu caráter tenham uma influência sempre crescente sobre seus semelhantes, de modo que, mesmo muito tempo depois de sua morte, talvez se compreenda que nesta época viveu uma criatura extraordinária. Ficará, então, claro sobre quem escrevi neste livro, e aqueles que desejarem conhecer alguma coisa dos primeiros anos da existência desse homem talvez aqui encontrem algo que lhes satisfaça. Creio que o meu livro, dentro de suas possibilidades, que reconheço limitadas, será uma útil fonte de informações para os biógrafos do meu amigo.
Não é minha intenção fazer crer que as conversas foram registradas literalmente. Não tomei nota sobre o que foi dito nesta ou naquela ocasião, mas tenho boa memória quanto ao que me diz respeito e creio que, embora expressas em minhas próprias palavras, essas conversas representam fielmente o que foi dito. Há pouco declarei nada ter inventado; quero agora modificar essa asserção. Tomei a liberdade, que desde o tempo de Heródoto os historiadores têm tomado, de pôr nos lábios dos meus personagens palavras que eu, pessoalmente, não poderia ter ouvido. Agi pela mesma razão que os fez agir; para dar vida e verossimilhança a cenas que teriam sido incolores se apenas relatadas. Quero ser lido, e creio estar no meu direito quando faço o possível para tornar agradável a leitura do meu livro. O leitor inteligente facilmente perceberá em que ocasiões me vali deste artifício e tem toda a liberdade de rejeitá-lo.
Outro motivo que me fez iniciar esta obra com apreensão foi o fato de eu aqui lidar a maior parte do tempo com americanos. É difícil a gente compreender bem as criaturas e não creio que possamos conhecer ninguém a fundo, a não ser os nossos próprios compatriotas. Pois os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos com que brincaram quando crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que frequentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas coisas fizeram deles o que são, e essas coisas ninguém pode conhecê-las somente por ouvir dizer, e sim se as tiver sentido. Só pode conhecê-las quem é parte delas. E, por não se poder conhecer as pessoas de um país estrangeiro a não ser por observação, é difícil torná-las reais nas páginas de um livro. Mesmo um observador sutil e cuidadoso como Henry James, embora tivesse vivido quarenta anos na Inglaterra, jamais conseguiu criar um inglês que fosse cem por cento inglês. Quanto a mim, a não ser em alguns contos, nunca tentei manejar a não ser os meus próprios compatriotas; e se nas histórias curtas me aventurei à exceção, foi porque nelas o escritor pode tratar os tipos mais sumariamente. Dá ao leitor indicações gerais e deixa por conta dele os detalhes. Possivelmente perguntarão por que motivo, já que transformei Paul Gauguin em inglês, não pude fazer o mesmo com os personagens deste livro. A resposta é simples: não pude. Eles não teriam sido quem são. Não quero dizer que sejam americanos como os americanos veem a si mesmos; são americanos, sob o ponto de vista inglês. Não tentei reproduzir as singularidades do seu modo de falar. A barafunda que fazem os escritores ingleses quando se atiram à empreitada só pode ser comparada à confusão que fazem os escritores americanos quando tentam reproduzir o idioma inglês como é falado na Inglaterra. A gíria é a grande arapuca. Nos seus contos ingleses, Henry James sempre fez uso dela, mas nunca da mesma maneira que os ingleses; assim sendo, em vez de conseguir o desejado efeito coloquial, a maior parte das vezes dá ao leitor inglês um desagradável sobressalto.

 


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2
Aconteceu-me estar em Chicago em 1919, a caminho do Extremo Oriente, pretendendo, por motivos que nada têm com esta história, ali me demorar durante duas ou três semanas. Pouco tempo antes eu publicara um romance que obtivera sucesso; estando, portanto, em evidência, fui entrevistado assim que desembarquei.

No dia seguinte meu telefone tocou. Atendi.

– Quem fala aqui é Elliott Templeton.

– Elliott? Pensei que você estivesse em Paris.

– Não; vim visitar minha irmã. Queremos que você venha almoçar conosco.

– Com muito prazer.

Ele indicou a hora e o endereço.

Meu conhecimento com Elliott datava de quinze anos. Na ocasião em que me telefonou ele devia estar perto dos sessenta anos, homem alto e elegante, de traços agradáveis e espessos cabelos escuros e ondulados, com a nota grisalha apenas suficiente para acentuar a distinção de sua aparência. Ele comprava os acessórios de toalete em Charvet, mas seus ternos, chapéus e sapatos eram de Londres. Tinha em Paris um apartamento na Rive Gauche da elegante Rue St. Guillaume. As pessoas que não o apreciavam diziam que ele era negociante, acusação que o indignava. Elliott tinha gosto e entendia de arte, não se importando de confessar que, em anos idos, quando pela primeira vez se instalara em Paris, dera a ricos colecionadores o favor de sua opinião; e, quando devido às suas relações sociais ouvia falar de algum fidalgo arruinado, inglês ou francês, que estava disposto a vender um bom quadro, ficava satisfeito de poder pô-lo em contato com os diretores de museus americanos que, acontecia ele saber, estavam à procura de uma obra-prima de tal ou tal mestre. Havia na França e na Inglaterra muitas famílias antigas cujas circunstâncias as obrigavam a dispor de uma peça assinada, de Buhl, ou de uma escrivaninha feita pelo próprio Chippendale, se o negócio pudesse ser feito sem alarde, e que gostavam de conhecer um homem de grande cultura e finas maneiras que saberia tratar discretamente do assunto. Supunha-se, naturalmente, que Elliott lucrava com essas transações, mas a boa educação não deixava que se tecessem comentários a respeito. Pessoas pouco generosas afirmavam que em seu apartamento tudo estava à venda e que, depois de ter oferecido a milionários americanos um ótimo almoço, com vinhos velhos, uma ou duas de suas valiosas telas desapareceriam, ou uma cômoda de madeira entalhada seria substituída por uma outra, laqueada. Quando lhe perguntavam por que razão sumira determinada peça, ele muito logicamente explicava que não a achara bem à sua altura e resolvera, portanto, substituí-la por outra de superior qualidade. Acrescentava que era enfadonho estar sempre a ver as mesmas coisas.

– Nous autres américains, nós, americanos, gostamos e variar – dizia ele. – É, ao mesmo tempo, a nossa fraqueza e a nossa força.

Algumas das senhoras americanas residentes em Paris, que se gabavam de saber tudo a respeito de Elliott, diziam que sua família era muito pobre e que, se ele conseguia manter-se no padrão em que vivia, era por ter sido muito hábil. Não sei a quanto montava a sua fortuna, mas o duque de quem era inquilino certamente o fazia pagar muito pelo apartamento que, além do mais, era mobiliado com peças de valor. Havia, nas paredes, desenhos dos grandes mestres franceses, Watteau, Fragonard, Claude Lorraine e outros; tapetes Savonnerie e Aubusson exibiam sua beleza em soalhos de parquete; e na sala de visitas havia um conjunto Luís xv, em petit paint, de tal elegância que poderia ter pertencido, como afirmava ele, a madame Pompadour. Em todo caso, Elliott possuía bastante para viver no estilo que considerava correto para um cavalheiro, sem precisar para isso ganhar dinheiro, e o método que no passado usara para consegui-lo era assunto que, a não ser que se quisesse romper relações com ele, era conveniente evitar. Liberto assim de preocupações materiais, ele se dedicou à paixão máxima de sua vida – relações sociais. Suas transações comerciais com os fidalgos empobrecidos, tanto na França como na Inglaterra, consolidaram a posição que ele conseguira ao chegar à Europa, moço, com cartas de apresentação a pessoas importantes. Sua origem o favorecia aos olhos das titulares americanas a quem vinha recomendado, pois ele pertencia à antiga família da Virgínia, e do lado materno podia reclamar parentesco direto com um dos signatários da Declaração da Independência. Tinha boa aparência, era vivo, dançava bem, atirava regularmente e sobressaía no tênis. Era elemento que valia a pena ter-se em qualquer festa. Ninguém mais pródigo, em se tratando de flores e caixas de bombons. Embora recebesse pouco, quando o fazia era com originalidade que agradava; aquelas ricaças achavam divertido ser convidadas a restaurantes boêmios no Soho ou bistrôs no Quartier Latin. Ele estava sempre pronto a servir e não havia favor, por maçante que fosse, que se lhe pedisse que ele não fizesse com prazer. Esforçava-se bastante por ser agradável a senhoras maduras, e rapidamente se tornava o ami de la maison, o queridinho de muita mansão imponente. Era extrema a sua gentileza; nunca se ofendia por ser convidado à última hora, quando alguém deixava a dona da casa em apuros, e a gente podia colocá-lo ao lado de uma velhota enfadonha, tendo certeza de que seria espirituoso e amável como só ele sabia ser.

Dentro de dois anos, tanto em Londres – para onde ia durante a última parte da temporada, e no princípio do outono para fazer algumas visitas a casas de campo – como em Paris, onde se instalara definitivamente, Elliott conhecia todas as pessoas que era possível a um jovem americano conhecer. As senhoras que o tinham introduzido na sociedade surpreenderam-se ao verificar como se alargara o seu círculo de relações. Os sentimentos dessas senhoras eram confusos. Por um lado, ficaram satisfeitas com o sucesso do seu protégé, e por outro, um tanto despeitadas ao vê-lo em tais termos de intimidade com pessoas com quem elas continuavam a manter relações de absoluta cerimônia. Embora Elliott continuasse a ser obsequioso e serviçal, elas tinham a desagradável impressão de que ele as usara como escada para o seu avanço social.

Desconfiavam que ele fosse esnobe. Claro que o era. Incrivelmente esnobe. Um esnobe sem a menor vergonha. Ele engoliria qualquer afronta, ignoraria qualquer desfeita, toleraria qualquer descortesia para ser convidado a uma festa a que desejasse ir ou para conseguir aproximar-se de alguma rabugenta duquesa-mãe. Neste particular era incansável. Quando fixava o olhar na presa, perseguia-a com a tenacidade do botânico que, para conseguir uma orquídea rara, desafia enchentes, terremotos, febres e nativos hostis. A guerra de 1914 deu-lhe a sua oportunidade decisiva. Logo no início, entrou para o Corpo de Saúde e serviu, primeiro em Flandres, depois em Argonne; voltou ao fim de um ano com uma fita vermelha na lapela e conseguiu um posto na Cruz Vermelha de Paris. Nessa época, já estava em ótima situação financeira e contribuiu generosamente para obras de caridade patrocinadas por pessoas importantes. Com seu fino gosto e dom de organização, estava sempre pronto a trabalhar para qualquer festa de caridade que fosse amplamente anunciada. Ficou sócio de dois dos mais seletos clubes de Paris. Era ce cher Elliott para as maiores damas da França. Finalmente vencera.


3

Quando conheci Elliott, eu era um jovem autor como qualquer outro e ele não me deu a mínima atenção. Ótimo fisionomista, quando nos encontrávamos por acaso aqui ou acolá sempre me apertava cordialmente a mão, sem no entanto manifestar desejo de estreitar relações; e quando eu o via na Ópera, digamos, com uma pessoa da alta-roda, ele dava um jeitinho de não me ver. Mas aconteceu que, pouco depois, tive inesperado sucesso como dramaturgo e não tardei a perceber que Elliott me olhava com mais entusiasmo. Certo dia recebi dele um bilhete, convidando-me para almoçar no Claridge, onde se hospedava quando em Londres. Fui. Grupo pequeno e pouco elegante; pareceu-me que Elliott estava a experimentar-me. Mas dali por diante, já que o meu sucesso me valera muitos amigos novos, comecei a vê-lo mais assiduamente. Pouco depois, no outono, fui passar algumas semanas em Paris e encontrei-o na casa de um amigo comum. Perguntou-me onde eu estava hospedado e dali a dois ou três dias recebi novo convite para almoçar, dessa vez no apartamento; quando cheguei, fiquei surpreendido ao verificar que era reunião muito seleta. Ri intimamente. Percebi que, com o seu perfeito discernimento de coisas sociais, ele compreendera que na sociedade inglesa, como escritor, eu não era pessoa importante, mas que na França, onde um autor tem prestígio só pelo fato de ser autor, o caso mudava de figura. Nos anos seguintes nossas relações se estreitaram, sem no entanto tomar o cunho da amizade. Duvido que Elliott Templeton jamais tenha sido amigo de alguém. Não se interessava pelas pessoas a não ser pela sua posição social. Quando acontecia estar eu em Paris, ou ele em Londres, continuava a chamar-me às suas reuniões, sempre que precisava de um avulso, ou quando era obrigado a convidar americanos em viagem. Alguns destes eram, creio eu, velhos fregueses; outros, desconhecidos que o procuravam com cartas de apresentação. Eram a cruz de sua vida. Elliott achava que devia fazer alguma coisa por eles, não desejando, no entanto, pô-los em contato com seus amigos elegantes. A melhor maneira de se livrar deles era oferecer-lhes um jantar e levá-los depois ao teatro; mas mesmo isso às vezes se tornava difícil, pelo fato de Elliott ter compromissos para todas as noites, num espaço de três semanas, e também por achar que isso não iria satisfazê-los. Já que eu era escritor e, portanto, pessoa sem muita importância, ele não se incomodava de me fazer confidências a respeito.

– O pessoal na América tem tão pouca consideração quando se trata de cartas de apresentação! Não que eu não tenha muito prazer em receber os que me procuram, mas não vejo razão para impingi-los aos meus amigos.

Procurava reparar, mandando-lhes belas cestas de flores e enormes caixas de bombons, mas às vezes isso não bastava. Foi aí que, um tanto ingenuamente, em vista do que me contara, ele me convidou a uma festa que estava organizando.

“Eles desejam imensamente conhecê-lo”, escreveu-me Elliott, para me lisonjear. “A Sra. Fulana de Tal é muito culta e leu todas as suas obras.”

A Sra. Fulana de Tal me diria então que apreciara muitíssimo o meu livro Mr. Perrin e Mr. Trail, felicitando-me pela minha peça The Mollusc. A primeira destas obras foi escrita por Hugh Walpole e a segunda por Hubert Henry Davies.


4

Se dei ao leitor a impressão de que Elliott Templeton era um tipo desprezível, cometi uma injustiça.

Ele era, em primeiro lugar, aquilo que os franceses chamam de serviable, palavra para a qual, pelo que me consta, não existe equivalente na língua inglesa. O dicionário me ensina que serviceable, no sentido de prestadio, obsequioso e amável, é arcaico. Elliott era justamente isto. Generoso, também; embora no princípio de sua carreira provavelmente houvesse cumulado seus conhecidos de flores, doces e presentes movido pelo interesse, continuava a agir da mesma forma quando isso já não era necessário. Sentia prazer em dar. Hospitaleiro, também. Seu cozinheiro não tinha em Paris quem o superasse, e todos podiam estar certos de encontrar à mesa de Elliott as coisas raras de princípio de estação. Seus vinhos indicavam a excelência do seu critério. É verdade que os convidados eram escolhidos mais pela posição social do que pelo encanto pessoal que pudessem ter, mas ele se dava ao trabalho de convidar duas ou três pessoas somente por serem boa companhia, e desta forma suas reuniões eram quase sempre divertidas. Muitos se riam dele pelas costas, chamando-o de esnobe indecente, mas apesar disso aceitavam alegremente os seus convites. O francês de Elliott era correto e fluente, a pronúncia impecável. Esforçara-se ele grandemente para adotar a maneira de falar dos ingleses, e somente uma pessoa de ouvido muito fino perceberia de vez em quando uma entonação americana. Era um conversador agradável, contanto que a gente o mantivesse afastado do assunto de duques e duquesas; mas, mesmo a respeito deles, agora que sua posição era inexpugnável, ele se permitia, principalmente quando a sós com a gente, uma observação espirituosa. Tinha uma língua agradavelmente maliciosa e não havia escândalo sobre esses altos personagens que não lhe chegasse aos ouvidos. Por ele, vim a saber quem era o pai do último filho da princesa X e quem era a amante do marquês de Y. Creio que nem mesmo Marcel Proust conhecia melhor do que Elliott Templeton a vida íntima da aristocracia.

Quando eu estava em Paris, constantemente almoçávamos juntos, às vezes no seu apartamento, outras num restaurante. Gosto de vaguear pelas lojas de antiguidades, ocasionalmente para comprar alguma coisa, mas mais frequentemente só para espiar, e Elliott sempre sentia prazer em acompanhar-me. Era conhecedor e tinha verdadeiro amor aos objetos de arte.

Creio que não havia em Paris, no gênero, loja que ele não conhecesse, parecendo sempre íntimo do proprietário. Adorava pechinchar; quando saíamos, ele me dizia:

– Se quiser comprar alguma coisa, não faça você o negócio. Dê-me uma indicação e deixe o resto por minha conta.

Ficava encantado quando, pela metade do preço, conseguia para mim alguma coisa que me despertara o interesse. Era um gozo vê-lo pechinchar. Discutiria, adularia, perderia a calma, apelaria para os bons sentimentos do vendedor, ridicularizaria-o, apontaria os defeitos do objeto em questão, ameaçaria nunca mais pôr os pés naquela casa, suspiraria, encolheria os ombros, advertiria, ganharia colericamente a porta e finalmente, ao conseguir o desejado, sacudiria a cabeça tristemente, como se aceitasse a derrota com resignação. Depois me diria baixinho, em inglês:

– Leve-o. Pelo dobro do preço ainda seria barato.

Elliott era católico fervoroso. Algum tempo depois de estar vivendo em Paris, ficou conhecendo um padre célebre pelo seu sucesso em atrair ao rebanho hereges e infiéis. O padre gostava muito de jantar fora e era conhecido pela sua vivacidade. Reservava seu consolo espiritual para os ricos e aristocratas. Inevitável, portanto, que Elliott se sentisse atraído por um homem que, embora de origem humilde, era bem-vindo nos lares mais fechados; assim sendo, confessou a uma rica senhora americana, uma das recentes convertidas do padre, que, embora sua família sempre tivesse pertencido à seita episcopal, ele pessoalmente havia muito estava interessado na religião católica. Essa senhora um dia con vidou Elliott para jantar em sua casa, só os três, e o sacerdote brilhou como nunca. A dona da casa puxou a conversa para o catolicismo e o padre exprimiu-se com fervor, mas sem pedantismo, como homem vivido, embora sacerdote, dirigindo-se a outro homem vivido. Elliott ficou lisonjeado ao ver que o padre sabia tudo a seu respeito.

– A duquesa de Vendôme estava falando do senhor, no outro dia. Disse que o acha sumamente inteligente.

Elliott enrubesceu de prazer. Fora apresentado à Sua Alteza Real, mas nunca lhe ocorrera que ela o tivesse notado. O padre discursou sobre a fé, com sabedoria e benevolência; tinha ideias largas, moderno ponto de vista e era tolerante. Fez Elliott sentir que, mais do que qualquer outra coisa, a Igreja era um clube seleto a que um homem fino tinha obrigação de pertencer. Seis meses mais tarde Elliott abraçava a nova fé. Sua conversão, aliada à generosidade de que deu provas em contribuições para obras de caridade católicas, abriu-lhe várias portas que até então lhe tinham estado fechadas.

É possível que fossem confusas as razões que o fizeram abandonar a fé dos seus antepassados, mas não houve dúvida quanto à sua devoção, uma vez que se decidiu àquele passo. Assistia à missa todos os domingos, na igreja frequentada pelo pessoal mais fino, confessava-se regularmente e fazia periódicas visitas a Roma. Com tempo, essa piedade foi recompensada pela sua nomeação para camareiro da corte pontifícia, e a assiduidade com que cumpriu os deveres do ofício mereceu-lhe, creio, a honra de pertencer à Ordem do Santo Sepulcro. Em resumo, sua carreira como católico não foi menos brilhante que sua carreira como homme du monde.

Muitas vezes fiquei cogitando na causa do esnobismo que obcecava aquele homem tão inteligente, tão bom e tão culto. Ele não era nenhum adventício. Seu pai fora presidente de uma das universidades do Sul e seu avô um teólogo de certa importância. Elliott era inteligente demais para não perceber que muitas das pessoas que lhe aceitavam os convites o faziam para ter uma refeição grátis, e que algumas eram tolas e outras completamente sem valor. O fulgor dos títulos sonoros cegava-o aos defeitos daquela gente. Só o que me ocorre é que o fato de estar em termos de intimidade com aqueles cavalheiros de alta linhagem, e de ser o fiel servo de suas damas, lhe dava uma sensação de triunfo nunca diminuída; e creio que atrás de tudo isso havia um incurável romantismo que o fazia ver, no raquítico duquezinho francês, o cruzado que acompanhara S. Luís à Terra Santa; e no fanfarrão conde inglês que ia à caça de raposas, o antepassado que acompanhara Henrique viii à entrevista no Campo do Pano de Ouro. Em companhia de tais pessoas, tinha a impressão de estar vivendo num passado de galanteria e esplendor. Creio que, quando virava as páginas do Almanach de Gotha, seu coração batia tumultuoso, à medida que os nomes sucessivos lhe traziam recordações de antigas pelejas, cercos históricos e duelos célebres, intrigas diplomáticas e amores de reis. Em todo caso, assim era Elliott Templeton.


5

Eu estava me preparando para ir ao almoço a que Elliott me convidara quando da portaria telefonaram que ele me esperava embaixo. Admirei-me, mas desci assim que fiquei pronto.

– Achei mais seguro vir buscá-lo – disse ele ao apertar-me a mão. – Não sei se você conhece bem Chicago.

Tinha a mesma ideia que observei em outros americanos que durante muito tempo residiram fora do seu país, de achar que a América é um lugar difícil e mesmo perigoso, onde o europeu não pode, sem risco, locomover-se sozinho.

– Ainda é cedo; podemos andar parte do caminho – sugeriu ele. O ar estava levemente abafadiço, mas no céu não havia uma única nuvem; era agradável poder espichar as pernas.

– Achei preferível falar-lhe de minha irmã, antes que você lhe seja apresentado – disse-me Elliott enquanto caminhávamos. – Ela hospedou-se comigo uma ou duas vezes em Paris, mas não creio que você estivesse lá na ocasião. Não é uma reunião grande, você sabe. Apenas minha irmã, sua filha Isabel e Gregory Brabazon.

– O decorador? – perguntei.

– Ele mesmo. A casa de minha irmã é pavorosa e Isabel e eu queremos que ela a reforme. Por acaso cheguei a saber, que Gregory se achava em Chicago e fiz com que Louisa o convidasse para almoçar. Ele não é exatamente um cavalheiro, é claro, mas tem gosto. Foi quem decorou o Castelo Raney para Mary Olifant, e St. Clement Talbot para os St. Erth. A duquesa ficou encantada com ele. Você vai ver com seus próprios olhos a casa de Louisa. Não compreendo como pôde ali viver durante todos estes anos! Para ser franco, jamais compreenderei como é que ela pode mesmo viver em Chicago.

Vim a saber que mrs. Bradley era viúva, com três filhos, dois rapazes e uma menina; mas os rapazes eram muito mais velhos e já estavam casados. Um ocupava um posto oficial nas Filipinas e o outro, que a exemplo do pai seguira a carreira diplomática, morava em Buenos Aires. O marido de mrs. Bradley ocupara postos em várias partes do mundo e, depois de ter sido durante alguns anos primeiro-secretário em Roma, fora nomeado ministro para uma das repúblicas da costa ocidental da América do Sul, onde viera a falecer.

– Eu quis então que Louisa vendesse a casa de Chicago – continuou Elliott. – Mas ela não concordou, por razões sentimentais. Há muitos anos que pertence à família Bradley, que é uma das mais antigas de Illinois. Eles vieram da Virgínia em 1839, instalando-se mais ou menos a sessenta milhas do que é hoje Chicago. Ainda são deles, as terras. – Elliott hesitou ligeiramente e olhou-me para ver como eu iria receber suas palavras. – O Bradley que aqui se fixou era o que você com certeza chamaria de fazendeiro. Talvez você não saiba, mas em meados do século passado, quando o Oeste Central começou a ser desvendado, muitos habitantes da Virgínia, filhos mais novos de boas famílias, deixaram seus lares, sucumbindo à atração do desconhecido. O pai do meu cunhado, Chester Bradley, viu que aqui em Chicago havia futuro e entrou para um escritório de advocacia. Em todo caso, ganhou bastante para deixar o filho garantido.

Mais que as palavras de Elliott, sua maneira de falar indicava que talvez não fosse exatamente de bom-tom o falecido Chester Bradley ter abandonado a imponente mansão, e as vastas terras que herdara, para entrar num escritório de advocacia, mas que o fato de ter acumulado grande fortuna era, em parte, uma compensação. Também não ficou lá muito satisfeito quando, em outra ocasião, mrs. Bradley me mostrou alguns instantâneos do que ele chamava a sua “propriedade” no campo e vi uma modesta casa de madeira, com um bonito jardinzinho, mas com celeiro, curral e chiqueiro bem à vista, cercados por áridas planícies. Não pude deixar de refletir que mr. Bradley sabia o que estava fazendo, quando abandonara aquilo para ir ganhar a vida na cidade.

Dali a pouco fizemos sinal a um táxi. Este nos deixou diante de uma casa de pedra marrom, estreita e muito alta; da numa fileira de outras casas, numa rua que saía de Lake Shore Drive, e, mesmo naquela bela manhã de outono, sua aparência era tão insípida que a gente se admirava de que alguém pudesse ter sentimentalismos a seu respeito. A porta foi aberta por um negro alto e forte, de cabelos brancos, que nos fez entrar na sala de visitas. Mrs. Bradley ergueu-se ao ver-nos e Elliott me apresentou a ela. Devia ter sido bonita quando jovem, pois seus traços, embora graúdos, eram benfeitos, e seus olhos, bonitos. Mas o rosto pálido, quase que acintosamente desprovido de pintura, tinha linhas caídas, e evidentemente ela desistira de lutar contra a corpulência da idade madura. Pareceu-me que aceitara de má vontade a derrota, pois se sentava muito tesa na cadeira de espaldar reto, onde, devido à cruel armadura do colete, provavelmente se sentia melhor do que numa cadeira estofada. Usava um vestido azul, com pesados alamares, e a gola alta mantinha-se firme à custa de barbatanas. Bela cabeça; cabelos brancos ondulados a ferro, num penteado muito complicado. O outro convidado ainda não chegara e, enquanto esperávamos, falamos de uma coisa e outra.

– Elliott me contou que o senhor veio pelo Sul – disse mrs. Bradley. – Parou em Roma?

– Sim, passei lá uma semana.

– E como vai indo a boa rainha Margherita?

Um tanto surpreso com a pergunta, respondi que não sabia.

– Oh! não foi vê-la, então? É muito simpática. Foi tão amável conosco quando estivemos em Roma! Mr. Bradley era primeiro-secretário. Por que não foi visitá-la? O senhor não é como Elliott, tão vil que não pode ir ao Quirinal?

– Absolutamente – respondi sorrindo. – A questão é que não a conheço.

– Não conhece? – exclamou mrs. Bradley como se não acreditasse nos seus ouvidos. – Por que não?

– Para lhe falar com franqueza, geralmente os escritores não convivem com reis e rainhas.

– Mas ela é uma mulher tão simpática – disse mrs. Bradley em tom de censura, como se fosse muito malfeito da minha parte não conhecer a augusta personagem. – Tenho certeza que o senhor iria gostar dela.

Neste momento a porta abriu-se e o criado introduziu Gregory Brabazon.

Apesar do seu nome, Gregory Brabazon não era um sujeito romântico. Baixo, muito gordo, completamente calvo, a não ser por um círculo de ondulados cabelos negros na nuca e à volta das orelhas, rosto vermelho, nu, dando a impressão de que a qualquer momento iria cobrir-se de violento suor, vivos olhos cinzentos, lábios sensuais e maxilar pesado. Era inglês, e eu já o vira em festas boêmias, em Londres. Tinha uma voz barulhenta, mãos pequenas e gordas, extraordinariamente expressivas. Com gestos eficazes e uma torrente de palavras animadas ele conseguia excitar a imaginação do freguês hesitante, a ponto de tornar impossível a desistência da encomenda que ele parecia fazer favor em aceitar.

O criado entrou novamente, com uma bandeja de aperitivos.

– Não vamos esperar por Isabel – disse mrs. Bradley, servindo-se de um.

– Onde está ela? – perguntou Elliott.

– Foi jogar golfe com Larry. Preveniu que talvez chegasse atrasada.

Elliott virou-se para mim e explicou:

– Larry é Laurence Darrell. Parece que ele e Isabel estão noivos.

– Não pensei que você tomasse coquetéis, Elliott –comentei.

– Não tomo – disse ele lugubremente, bebericando o que tinha em mão. – Mas, nesta bárbara terra de proibição, que é que se pode fazer? – Suspirou e prosseguiu: – Estão começando a servi-los em algumas casas em Paris. As más relações corrompem as boas maneiras.

– Tolice! – exclamou mrs. Bradley.

Disse isso bastante afavelmente, mas com uma firmeza que indicava uma mulher de opinião e, pelo olhar divertido, mas sagaz, que atirou a Elliott, percebi que não tinha grandes ilusões a seu respeito. Que iria ela pensar de Gregory Brabazon? Eu notara o olhar profissional que o decorador lançara à sala, ao entrar, assim como o involuntário arquear das espessas sobrancelhas. Era realmente uma sala extraordinária. O papel das paredes, o cretone das cortinas e o estofamento da mobília tinham o mesmo desenho; nas paredes, em pesadas molduras douradas, dependuravam-se quadros a óleo, provavelmente trazidos de Roma pelos Bradley. Virgens da escola de Rafael, virgens da escola de Guido Reni, paisagens da escola de Zuccarelli, ruínas da escola de Pannini. Havia troféus da permanência deles em Pequim, mesas de ébano excessivamente entalhadas, enormes vasos cloisonné e também lembranças do Chile e do Peru, obesas figuras de granito e vasos de barro. Vi uma escrivaninha Chippendale e uma vitrina entalhada. Os abajures eram de seda branca e neles algum artista mal inspirado pintara pastores e pastoras em trajes de Watteau. Sala pavorosa e, no entanto, não sei dizer por quê, agradável. Tinha um ar familiar, caseiro; a gente sentia que a incrível mixórdia tinha significação. Todos aqueles incongruentes objetos combinavam uns com os outros porque faziam parte da vida de mrs. Bradley.

Tínhamos acabado nossos aperitivos quando a porta se abriu e entrou uma moça, seguida por um rapaz.

– Estamos atrasados? – perguntou ela. – Trouxe Larry comigo. Há alguma coisa para ele comer?

– Creio que sim – sorriu mrs. Bradley. – Toque a campainha e diga a Eugene que ponha mais um lugar à mesa.

– Já disse a ele. Foi ele quem nos abriu a porta.

– Esta é a minha filha Isabel – apresentou mrs. Bradley, virando-se para mim. – E aqui, Laurence Darrell.

Isabel apertou-me rapidamente a mão e virou-se impulsivamente para Gregory Brabazon.

– O senhor é que é mr. Brabazon? Estava louca por conhecê-lo. Fiquei encantada com o que o senhor fez para Clementine Dormer. Não acha esta sala horrível? Há anos procuro convencer mamãe a reformá-la e agora que o senhor está em Chicago não há melhor oportunidade. Diga-me sinceramente a sua opinião.

Eu sabia que isto seria a última coisa que Brabazon faria. Ele atirou um rápido olhar a mrs. Bradley, mas o rosto impassível nada lhe contou. Viu que Isabel era a pessoa que contava e soltou uma ruidosa gargalhada.

– Não duvido que seja muito confortável e essa história toda – disse ele. – Mas, se quer que eu fale com franqueza, pois bem, acho-a pavorosa.

Isabel era uma moça alta, de rosto oval, nariz reto, olhos bonitos e lábios carnudos, traço este que parecia característico da família. Era bonita, se bem que ligeiramente inclinada à obesidade, o que se podia atribuir à idade; achei que afinaria quando ficasse mais velha. Tinha mãos boas, fortes, embora um pouco gordas; as pernas, que a saia curta deixava bem à mostra, eram também um pouco grossas. Tinha boa pele e o corado natural provavelmente estava agora acentuado pelo exercício e pela viagem de volta, em carro aberto. Era animada e viva. Sua exuberância, sua risonha alegria, o gosto pela vida, a felicidade que havia nela causavam prazer à gente. Sua naturalidade era tão grande que fazia com que Elliott, malgrado a sua elegância, parecesse espalhafatoso. Era tal a sua frescura que a seu lado mrs. Bradley, de rosto enrugado e pálido, parecia velha e cansada.

Descemos para o almoço. Gregory Brabazon piscou os olhos quando viu a sala de jantar. Paredes cobertas por um papel vermelho-escuro, imitando tecido, onde se viam retratos muito pouco artísticos, de mulheres e homens de rosto sombrio e azedo, os antepassados próximos do falecido mr. Bradley. Lá estava ele, também, com um vasto bigode, muito teso, de fraque e colarinho engomado; mrs. Bradley, pintada por um artista francês do fim do século xix, estava dependurada sobre a lareira, num vestido comprido de cetim azul-claro, com um colar de pérolas à volta do pescoço e uma estrela de brilhantes nos cabelos. Com a mão cheia de anéis ela acariciava uma echarpe de renda, tão cuidadosamente pintada que se lhe poderia contar os pontos; com a outra segurava despreocupadamente um leque de penas de avestruz. A mobília, de carvalho preto, era pesada e opressiva,– Que acha o senhor? – perguntou Isabel a Gregory Brabazon, quando nos sentamos.

– Não duvido que tenha custado um dinheirão – respondeu ele.

– E custou mesmo – declarou mrs. Bradley. – Foi-nos dada, como presente de casamento, pelo pai de meu marido. Tem nos acompanhado pelo mundo inteiro. Lisboa, Pequim, Quito, Roma. A boa rainha Margherita admirava-a muito.

– Que faria o senhor com ela, se fosse sua? – perguntou Isabel a Brabazon.

Elliott antecipou-o na resposta.

– Queimava-a.

Começaram os três a discutir a reforma da sala. Elliott inclinava-se para o estilo Luís xv, mas Isabel preferia uma mesa de refeitório com cadeiras italianas. Brabazon achava que Chippendale estava mais de acordo com a personalidade de mrs. Bradley.– Sempre achei isto muito importante – disse ele. – A personalidade de uma pessoa. – E virando-se para Elliott: – O senhor, naturalmente, conhece a duquesa de Olifant?

– Mary? É uma de minhas maiores amigas.

– Ela queria que eu decorasse a sua sala de jantar e, assim que vi a duquesa, declarei: George ii.

– E como acertou! Notei a sala, da última vez que lá jantei. É de um gosto impecável.

E assim continuou a conversa. Mrs. Bradley ouvia, mas não se podia dizer qual a sua opinião. Eu pouco falei; quanto ao namorado de Isabel, Larry – no momento não me lembrei do sobrenome –, não disse nada. Estava sentado do outro lado da mesa, entre Brabazon e Elliott; de vez em quando eu o olhava de relance. Parecia muito moço. Era aproximadamente da altura de Elliott, devendo ter pouco menos de dois metros; magro e despreocupado. Simpático; nem bonito nem feio; um tanto tímido e em nada extraordinário. Despertou o meu interesse porque, embora não tivesse pronunciado meia dúzia de palavras desde que entrara, parecia perfeitamente à vontade e, estranhamente, dava a impressão de participar da conversa mesmo sem abrir a boca. Notei-lhe as mãos. Longas, mas não grandes demais para o seu tamanho, de belo formato e ao mesmo tempo fortes. Ocorreu-me que um artista teria prazer em pintá-las. Era miúdo, sem parecer frágil; pelo contrário, eu antes o diria vigoroso e resistente. Seu rosto, grave quando em repouso, estava bem queimado; a não ser por isso, quase não tinha cor; suas feições, embora regulares, não chamavam atenção. Maçãs do rosto salientes, têmporas entradas. Cabelos de um castanhoescuro levemente ondulados. Os olhos pareciam maiores do que realmente eram, por estarem plantados profundamente nas órbitas; pestanas grossas e longas. Olhos singulares, não do castanho rico que era o tom dos de Isabel, de sua mãe e de Elliott, mas tão escuros que a íris se confundia com a pupila, dando-lhes estranha penetração. Larry tinha uma graça natural, muito atraente, e achei compreensível Isabel estar caída por ele. De vez em quando o olhar dela pousava no rapaz por um momento e julguei nele distinguir não somente amor, mas afeição.


Os olhos de ambos se encontraram e havia nos de Larry uma ternura bela de se ver. Nada mais comovente que o espetáculo de um amor moço, e eu, homem de meiaidade naquele tempo, invejei-os, mas, ao mesmo tempo, não sei por quê, não pude deixar de ter pena deles. Tolice da minha parte, pois, ao que me parecia, não havia empecilho à sua felicidade; as circunstâncias eram favoráveis e não existia razão para que não se casassem e vivessem felizes dali por diante.

Isabel, Elliott e Gregory Brabazon continuavam falando da redecoração da casa, procurando forçar mrs. Bradley a, pelo menos, reconhecer que se devia fazer alguma coisa; mas esta apenas sorria amavelmente.

– Não procurem me afobar. Quero ter tempo para refletir. – E virando-se para o rapaz: – Que acha você de tudo isso, Larry?

Ele passeou um olhar sorridente pela mesa e disse:

– Creio que tanto faz de um jeito ou de outro.

– Oh! Larry, “sua” peste! – exclamou Isabel. – Depois de eu tanto lhe ter recomendado que nos apoiasse!

– Se a tia Louisa está satisfeita com o que tem, para que fazer modificações?

A observação era tão lógica e sensata que desatei a rir. Ele olhou-me e sorriu.

– E não sorria deste jeito só porque fez uma observação idiota – disse Isabel.

Mas ele apenas alargou o sorriso e notei então que seus dentes eram pequenos, brancos e regulares. Qualquer coisa no olhar que ele lançou a Isabel fez com que ela enrubescesse e ficasse de respiração suspensa. A não ser que eu me enganasse redondamente, ela estava loucamente apaixonada por ele; mas, não sei por quê, tive a impressão de que no seu amor havia também algo de maternal. Estranhável, em criatura tão moça. Com um sorriso doce nos lábios ela dedicou de novo sua atenção a Gregory Brabazon.

– Não dê confiança a Larry. É muito tolo e completamente ignorante. Não entende de coisa alguma, a não ser de aviação.

– Aviação? – perguntei.

– Ele foi aviador na guerra.

– Pensei que fosse muito moço para ter estado na guerra.

– E era. Moço demais. Ele comportou-se muito mal. Fugiu da escola e foi para o Canadá. Mentindo a torto e a direito, conseguiu convencê-los de que tinha dezoito anos e entrou para a aviação. Estava lutando na França na ocasião do armistício.

– Você está chateando os convidados de sua mãe, Isabel – disse Larry.

– Conheço-o desde menino; quando voltou, estava um amor de farda, com todas aquelas fitas bonitas na túnica, de modo que fiquei plantada à soleira de sua porta – em sentido figurado – até que, para ter um pouco de sossego, ele concordou em casar comigo! A concorrência era enorme.

– Francamente, Isabel – admoestou sua mãe. Larry inclinou-se para mim.

– Espero que não acredite em uma palavra do que ela diz. Isabel não é má pessoa, mas é mentirosa.

Terminou-se o almoço e logo depois Elliott e eu saímos. Eu lhe contara que ia ver os quadros no museu e ele disse que me levaria. Ir a museus acompanhado é coisa que não me agrada, mas eu não podia dizer que preferia ir sozinho e, portanto, aceitei-lhe o oferecimento. No caminho falamos de Isabel e Larry.

– É um prazer a gente ver duas criaturas tão jovens assim apaixonadas uma pela outra – disse eu.

– São moços demais para se casar.

– Por quê? É tão divertido ser moço, amar e casar.

– Não seja ridículo. Ela tem dezenove anos e Larry apenas vinte. Ele está desempregado. Tem uma rendazinha, só três mil dólares anuais, a julgar pelo que me contou Louisa, e Louisa não é nenhuma milionária. Precisa do que tem para viver.

– Bom, ele pode arranjar emprego.

– É justamente essa a questão. Ele não se esforça. Parece muito satisfeito de não fazer nada.

– Provavelmente passou uma temporada dura na guerra. Talvez queira descansar.

– Há um ano que está descansando. É mais do que suficiente.

– Pareceu-me um bom rapaz.

– Oh! nada tenho contra ele. É de muito boa família, e essa história toda. Seu pai era de Baltimore. Foi, em Yale, assistente de professor de línguas neolatinas, ou coisa que o valha. Sua mãe era de Filadélfia, da velha raça dos Quaker.

– Você fala deles no passado. Morreram?

– Sim; a mãe morreu de parto e o pai há mais ou menos doze anos. Larry foi educado por um velho colega do pai, um médico de Marvin. Foi assim que Louisa e Isabel o conheceram.

– Onde fica Marvin?

– É onde os Bradley têm a sua propriedade. Louisa costuma ali passar o verão. Ela ficou com pena do menino. O dr. Nelson é solteiro e não entendia patavina da educação de uma criança. Foi Louisa quem insistiu para que Larry fosse mandado para St. Paul, e sempre o convidou à sua casa para as férias de Natal. – Elliott encolheu os ombros em gesto bem gaulês e continuou: – Ela devia ter previsto o inevitável resultado.

Tínhamos chegado ao museu e concentramos nossa atenção nos quadros. Mais uma vez fiquei impressionado com o conhecimento e bom gosto de Elliott. Conduzia-me pelas salas como se eu fosse um grupo de turistas, e nenhum professor de arte teria sabido instruir melhor do que ele. Conformei-me, tomando a resolução de voltar sozinho quando pudesse andar a esmo e distrair-me à vontade; depois de algum tempo ele consultou o relógio.

– Vamos indo – disse-me. – Nunca passo mais de uma hora numa galeria de arte; é o máximo a que resiste o nosso poder de apreciação. Voltaremos um outro dia.

Agradeci-lhe calorosamente quando nos separamos. Segui o meu caminho, indubitavelmente mais esclarecido, mas de humor bem mais azedo.

Ao despedir-se de mim, mrs. Bradley me dissera que no dia seguinte Isabel receberia alguns amiguinhos para jantar, pois iriam todos a uma festa; se eu quisesse vir também, depois que eles partissem Elliott e eu poderíamos conversar à vontade.– É um favor que o senhor lhe faz – acrescentou ela. – Elliott viveu fora tanto tempo, que se sente um pouco desambientado aqui. Parece que não encontra ninguém com quem tenha afinidade.

Aceitei e, antes de nos despedirmos nos degraus do museu, Elliott me disse que isso lhe causara prazer.

– Sou uma alma perdida nesta vasta cidade – declarou. – Prometi a Louisa que passaria seis semanas com ela, pois não nos víamos desde 1912, mas estou contando os dias até a minha volta para Paris. É o único lugar do mundo onde um homem civilizado pode viver. Caro amigo, sabe como me olham nestas bandas? Consideram-me uma aberração. Selvagens!

Ri-me e deixei-o.


6

Na noite seguinte, tendo recusado o oferecimento de Elliott de vir buscar-me, cheguei sem risco à casa de mrs. Bradley. Eu fora detido por uma pessoa que viera ver-me e cheguei um pouco atrasado. Quando subi a escada, ouvi tanto barulho vindo da sala de visitas que julguei tratar-se de uma reunião importante; admirei-me ao verificar que éramos, eu inclusive, apenas doze pessoas. Mrs. Bradley estava muito imponente, de vestido de cetim verde e colar de aljôfares em volta do pescoço; e Elliott, no seu bem talhado dinner jacket, apresentava-se elegante como só ele sabia ser. Quando me apertou a mão, todos os perfumes da Arábia penetraram-me pelas narinas. Fui apresentado a um homem troncudo e alto, de rosto vermelho, que não parecia muito à vontade em traje de rigor. Era um tal dr. Nelson, mas naquele momento o nome não me disse nada. O resto do grupo compunha-se de amigos de Isabel, mas os nomes me escaparam assim que os ouvi. As mulheres eram moças e bonitas, os homens, moços e simpáticos. Nenhum deles me impressionou, a não ser talvez um rapaz – e isso por ser ele muito alto e maciço. Devia ter mais de dois metros de altura; ombros largos e fortes. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda branca, de saia comprida que lhe escondia as pernas gordas: o talho do vestido deixava adivinhar que tinha seios bem desenvolvidos; os braços talvez fossem um pouco rechonchudos, mas o pescoço era lindo. Estava animada e de olhos luzentes. Não havia dúvida: era uma rapariga muito bonita e desejável, mas, se não abrisse os olhos, acabaria adquirindo uma corpulência pouco atraente.

À mesa do jantar vi-me entre mrs. Bradley e uma mocinha desenxabida e tímida, que parecia ainda mais jovem do que as outras. Quando tomamos os nossos lugares, para facilitar a conversa mrs. Bradley explicou-me que os avós da minha vizinha moravam em Marvin, e que ela e Isabel haviam sido colegas de escola. Seu nome, o único que guardei, era Sophie. Durante o jantar houve muita brincadeira de um lado ao outro da mesa; todos falavam alto e riam à toa. Pareciam íntimos. Quando minha atenção não estava voltada para a dona da casa, procurei puxar prosa com a minha vizinha, embora sem grande resultado. Era mais quieta que os outros. Não se podia dizer que fosse bonita, mas tinha um rosto engraçado, de narizinho arrebitado, boca larga e olhos de um azul-esverdeado; seu cabelo, penteado com simplicidade, era de um castanho-pálido. Muito magra, com peito quase tão chato como o de um rapaz. Ria das brincadeiras que iam pela mesa, mas de maneira um pouco forçada, como se não achasse tanta graça como queria dar a entender. Pareceu-me que estava fazendo um esforço para se mostrar boa companheira. Não consegui descobrir se era um pouco tola ou apenas muito tímida e, depois de ter tentado inutilmente vários tópicos, por falta de coisa melhor pedi-lhe que me explicasse quem eram os outros convidados.

– Pois bem, o dr. Nelson o senhor conhece – disse-me, indicando o homem maduro que estava à minha frente, do outro lado de mrs. Bradley. – É tutor de Larry e nosso médico em Marvin. Muito inteligente; inventa bugigangas para aviões, de que ninguém quer saber; e, quando não está assim ocupado, bebe.

Ao dizer isso, havia nos seus olhos pálidos um brilho que me fez supor que eu me enganara a seu respeito. Continuou a dizer-me os nomes de toda aquela mocidade, quem eram seus pais e, no caso dos rapazes, que colégio haviam frequentado e em que negócio trabalhavam. Nada de muito esclarecedor.

“Ela é um amor”; ou então, “Ele joga muito bem golfe”.

– E quem é aquele grandalhão de sobrancelhas cerradas?

– Quem?... Oh! aquele é Gray Maturin. Seu pai tem uma casa enorme em Marvin, à beira do rio. É o nosso milionário. Temos muito orgulho dele; dá-nos importância. Maturin, Hobbes, Rayner e Smith. É um dos homens mais ricos de Chicago e Gray é seu único filho.

A lista de nomes fora recitada com tão agradável ironia que lancei a Sophie um olhar indagador. Ela notou-o e corou.

– Conte-me mais alguma coisa de mr. Maturin – pedi.

– Não há nada para contar. É rico. Muito respeitado. Deu a Marvin uma nova igreja, e um milhão de dólares à Universidade de Chicago.

– O filho é um rapagão bonito.

– É correto. Ninguém havia de pensar que seu avô foi um irlandês sem eira nem beira, e sua avó uma garçonete sueca num restaurante qualquer.

Gray Maturin era mais vistoso do que bonito. Tinha um ar rude, inacabado; nariz curto e chato, boca sensual e a pele corada dos irlandeses; grande quantidade de cabelos negros, bem lisos, olhos muito azuis sob as cerradas sobrancelhas. Embora de compleição tão robusta, era muito bem proporcionado e, nu, devia ser um belo tipo de homem. Parecia ter muita força. Sua virilidade era impressionante. Fazia com que Larry, que estava sentado ao seu lado e tinha somente oito ou dez centímetros menos que ele, parecesse insignificante.

– Gray é muito apreciado – disse a minha tímida vizinha. – Conheço várias moças que dariam a vida para agarrá-lo. Mas não têm a mínima probabilidade.

– Por que não?

– O senhor não sabe nada, sabe?

– Como poderia eu saber?

– Ele está cego de paixão por Isabel, e Isabel gosta de Larry.

– Por que é que ele não tenta suplantar o rival?

– Larry é o seu maior amigo.

– Creio que isto complica o caso.

– Sim, quando se têm os elevados princípios de Gray.

Não sei se ela disse isto seriamente, ou se havia na sua voz uma nota de zombaria. Na sua atitude nada havia de impertinente, confiado ou petulante, e, no entanto, tive impressão de que não lhe faltavam nem espírito nem perspicácia. Em que estaria pensando enquanto conversava comigo? Bom, isto eu nunca chegaria a saber. Não havia dúvida de que ela não era senhora de si e ocorreu-me que devia ser filha única, tendo levado vida isolada, em companhia de pessoas muito mais velhas. Havia nela uma modéstia, uma discrição que achei encantadoras; mas, se eu acertara ao imaginar que vivera sozinha, então achei que devia ter tranquilamente observado as pessoas com quem convivia, formando opinião categórica a respeito delas. Nós, de idade madura, raramente suspeitamos com que crueldade, e ao mesmo tempo com que clarividência, os muito moços nos julgam. Olhei de novo dentro daqueles olhos esverdeados.

– Que idade tem você? – perguntei.

– Dezessete.

– Lê muito? – indaguei ao acaso.

Mas, antes que ela me respondesse, mrs. Bradley atraiu minha atenção com uma observação qualquer; logo depois terminou o jantar. Os moços saíram imediatamente para onde tinham que ir; quanto a nós, os quatro restantes, subimos para a sala de visitas.

Fiquei admirado de ter sido convidado para aquela reunião, ao ver que após alguma conversa fiada eles encetaram um assunto que, imaginei, haviam de preferir discutir sozinhos. Fiquei sem saber se seria mais discreto levantar-me e sair ou se, como ouvinte desinteressado, eu lhes seria útil. O ponto discutido era a estranha má vontade de Larry em começar a trabalhar, e que agora vinha à baila devido a um emprego que mr. Maturin, pai do rapaz que eu conhecera ao jantar, lhe oferecera em seu escritório. Era uma bela oportunidade. Com habilidade e perseverança Larry poderia, com o tempo, vir a ganhar muito dinheiro. O jovem Gray Maturin desejava ardentemente que ele aceitasse.

Não me recordo de tudo o que foi dito, mas minha memória reteve o essencial. Quando Larry voltara da França, o dr. Nelson, seu tutor, sugerira que ele fosse para a escola; mas o rapaz recusara. Era natural que desejasse ficar na ociosidade durante algum tempo; passara uma temporada dura, na guerra, e duas vezes recebera ferimentos, embora sem gravidade. O dr. Nelson achava que ele ainda estava sofrendo as consequências do choque, e o descanso parecia indicado até ele ficar completamente restabelecido. Mas as semanas se converteram em meses; já fazia agora mais de um ano que ele despira a farda. Fiquei sabendo que sobressaíra na aviação, tendo ficado em evidência ao voltar para Chicago; assim sendo, vários chefes de firmas lhe tinham oferecido emprego. Larry agradecera, mas recusara. Não deu desculpa, a não ser que ainda não sabia o que queria fazer. Pouco depois ficava noivo de Isabel. Isto não causou surpresa a mrs. Bradley, pois os dois tinham sido inseparáveis durante anos e ela sabia da paixão da filha por Larry. Gostava do rapaz e achava que ele poderia fazer Isabel feliz.

– O caráter dela é mais forte que o dele. Isabel lhe dará exatamente aquilo que lhe falta.

Embora fossem tão moços, mrs. Bradley não se opunha a um casamento imediato, contanto que Larry começasse a trabalhar. Ele tinha um dinheirinho seu; mas, mesmo que tivesse dez vezes mais, ela não cederia nesse ponto. Pelo que pude perceber, ela e Elliott desejavam saber do dr. Nelson quais as intenções de Larry. Queriam que ele usasse sua influência para obrigá-lo a aceitar o emprego que mr. Maturin lhe oferecia.

– Vocês sabem que nunca tive muita autoridade sobre Larry – alegou o médico. – Mesmo quando criança ele sempre fez o que quis.

– Sei disso. Você lhe deu liberdade demais. É um milagre ele ter saído tão bom como é – disse mrs. Bradley.

O dr. Nelson, que estivera bebendo sem cessar, olhou-a com azedume. Seu rosto tornou-se ainda mais rubro.

– Eu era muito ocupado; tinha que cuidar dos meus interesses. Recebi-o porque ele não tinha para onde ir e seu pai era meu amigo. Não era fácil lidar com ele.

– Não sei como você pode dizer isso – replicou secamente mrs. Bradley. – Larry tem um gênio ótimo.

– Que é que a gente pode fazer com um menino que nunca discute, mas faz exatamente o que quer e, quando é repreendido, apenas diz que “sente muito” e deixa que a gente esbraveje à vontade? Se fosse meu filho, eu poderia ter-lhe batido. Mas eu não podia dar num menino que não tinha um único parente no mundo e cujo pai o deixara a meus cuidados por achar que eu seria bom para ele.

– Isto não vem ao caso – disse Elliott um tanto irritado. – A questão é esta: ele já vadiou bastante; agora lhe aparece um bom emprego, onde terá oportunidade de ganhar muito dinheiro; se quiser casar-se com Isabel, terá que aceitá-lo.

– Larry precisa ver que, no estado do mundo atual, um homem tem que trabalhar – interveio mrs. Bradley.

– Ele está agora em perfeitas condições físicas. Todos nós sabemos que, terminada a guerra entre os estados, muitos homens nunca mais trabalharam depois que voltaram para casa. Eram um fardo para a família e inúteis à comunidade.

Neste momento entrei na conversa.

– Mas que razão apresenta ele para recusar as várias ofertas que lhe têm sido feitas?

– Nenhuma; a não ser que não lhe agradam.

– Mas ele não quer fazer nada?

– É o que parece.

O dr. Nelson serviu-se de outro uísque. Tomou um longo trago e depois olhou para os seus dois amigos.

– Querem saber qual a minha impressão? Não digo que eu seja grande conhecedor da natureza humana, mas, em todo caso, depois de ter clinicado durante trinta anos, creio entender um pouco do assunto. A guerra teve um efeito qualquer sobre Larry. Ele não voltou o mesmo. Não que esteja somente mais velho; aconteceu alguma coisa que modificou a sua personalidade.

– Que espécie de coisa? – indaguei.

– Não sei dizer. Ele é muito reservado quanto às suas peripécias na guerra. – O dr. Nelson virou-se para mrs. Bradley e perguntou: – Falou alguma vez sobre isso com você, Louisa?

Ela sacudiu a cabeça.

– Não. Logo que chegou, tentamos ver se nos descrevia algumas das suas aventuras, mas ele apenas riu daquele seu jeito e disse que nada tinha para contar. Não falou sobre isso nem mesmo com Isabel. Ela tentou várias vezes, mas não lhe arrancou palavra.

A conversa continuou desta maneira pouco satisfatória e dali a pouco, consultando o seu relógio, o dr. Nelson declarou que tinha que ir embora. Fiz menção de sair com ele, mas Elliott insistiu para que eu ficasse. Depois que o importunado com seus negócios particulares, dizendo que receava que eu estivesse me chateando.

– Mas o senhor compreende que isto me preocupa enormemente – terminou ela.

– Mr. Maugham é muito discreto, Louisa; você não precisa ter medo de confiar nele. Não creio que Bob Nelson e Larry sejam muito íntimos, e há certas coisas que Louisa e eu achamos preferível não falar na presença dele.

– Elliott!

– Você já lhe contou tanta coisa que é melhor contar-lhe o resto. – E virando-se para mim: – Não sei se você notou Gray Maturin ao jantar?

– É tão grande que não pode passar despercebido – respondi.

– É um dos apaixonados de Isabel. Cumulou-a de atenções durante toda a ausência de Larry. Ela gosta dele e, se a guerra se tivesse prolongado, é bem provável que acabassem noivos. Gray pediu-a em casamento. Isabel não aceitou, nem recusou. Louisa desconfiou que ela não queria decidir-se antes da volta de Larry.

– Como é que ele não foi para a guerra? – perguntei.

– Ele forçou o coração jogando futebol. Nada de sério, mas não foi aceito. Em todo caso, depois que Larry voltou, não houve mais esperanças para ele. Isabel deu-lhe um fora definitivo.

Eu não sabia que comentário esperavam que eu fizesse e, portanto, preferi calar-me. Elliott continuou a falar. Com sua distinta aparência e pronúncia oxfordiana, ele mais parecia um alto funcionário do Ministério da Guerra.

– Claro que Larry é um ótimo rapaz, e foi muito correto da sua parte fazer tanto empenho em se alistar, mas sou profundo conhecedor do gênero humano... – Aqui Elliott teve um sorrizinho astuto e ousou a única referência que jamais lhe ouvi ao fato de ter feito fortuna negociando com objetos de arte. – Do contrário eu não teria hoje uma boa quantiazinha em ações do governo. E minha opinião é que Larry nunca chegará a ser alguém. Não tem dinheiro, por assim dizer, nem posição. Agora, com Gray Maturin o caso é outro. Ele tem um bom e antigo nome irlandês. Houve um bispo na família, um dramaturgo, vários militares que se distinguiram e alguns intelectuais.

– Como é que você chegou a saber de tudo isto? – perguntei.

– São coisas que a gente fica sabendo – respondeu ele em tom despreocupado. – Para ser exato, estive dando uma olhada no Dictionary of National Biography, um dia desses, no clube, e dei com o nome por acaso.

Achei que não era da minha conta repetir o que a minha vizinha, ao jantar, me contara do irlandês sem eira nem beira e da garçonete sueca que tinham sido avós de Gray. Elliott prosseguiu:

– Há anos que conhecemos Henry Maturin. É um homem muito direito e muito rico. Gray vai herdar o melhor escritório de corretagens de Chicago. Tem o mundo a seus pés. Quer casar-se com Isabel e não se pode negar que, para ela, seria um ótimo casamento. Sou francamente favorável a ele, e Louisa concorda comigo.

– Você esteve tanto tempo fora da América, Elliott, que se esqueceu de que neste país as moças não se casam só para satisfazer suas mães e tios – disse mrs. Bradley com um sorriso árido.

– Isto não é motivo de orgulho, Louisa – replicou Elliott bruscamente. – Graças a uma experiência de trinta anos, posso asseverar-lhe que o casamento que é considerado sob o ponto de vista de posição, fortuna e igualdade de meio leva vantagem sobre o casamento de amor. Na França, que afinal de contas é o único país civilizado do mundo, Isabel não hesitaria em casar-se com Gray; ao fim de um ou dois anos, se a tal se sentisse inclinada, tornar-se-ia amante de Larry; Gray instalaria uma atriz de fama num luxuoso apartamento, e todos ficariam satisfeitos.

Mrs. Bradley não era nenhuma tola. Fitou o irmão com ar de brejeira ironia e replicou:

– A questão, Elliott, é que, como as companhias teatrais de Nova York só ficam aqui durante certo tempo, Gray não poderia conservar as inquilinas do seu luxuoso apartamento a não ser por prazo limitado. Isto seria, certamente, um inconveniente para todos os interessados.

Elliott sorriu.

– Gray poderia comprar uma cadeira na Bolsa de Nova York. Afinal de contas, se uma pessoa tem que viver na América, não vejo razão para viver noutro lugar a não ser em Nova York.

Saí logo depois; mas antes, não sei por que cargas-d’água, Elliott me perguntou se eu queria almoçar com ele para ficar conhecendo os Maturin, pai e filho. – Henry é o melhor tipo do negociante americano

– disse ele. – Você precisa conhecê-lo. É quem há anos aplica o nosso dinheiro.

Eu não tinha muita vontade de aceitar, mas, faltando-me motivo para a recusa, respondi que iria com prazer.


7

Eu fora admitido, pela minha permanência em Chicago, como sócio temporário de um clube que contava com uma boa biblioteca; na manhã seguinte fui até lá dar uma espiada numa ou duas revistas universitárias, que quem não é assinante sempre tem dificuldade em obter. Era cedo e lá só havia mais uma pessoa, sentada numa vasta poltrona de couro e parecendo absorta na leitura. Foi com surpresa que reconheci Larry. Era a última pessoa que eu esperaria encontrar em tal lugar. Ergueu os olhos quando passei por ele, reconheceu-me e fez menção de se levantar.

– Não se incomode – disse eu. E depois, quase que automaticamente: – Que está lendo?

– Um livro – replicou ele, mas com um sorriso tão simpático que a secura da resposta não podia absolutamente melindrar.

Fechou o livro e, fitando-me com aqueles seus olhos singularmente opacos, segurou-o de modo a não me deixar ver o título.

– Divertiu-se ontem à noite? – perguntei.

– Muitíssimo. Cheguei em casa às cinco da manhã.

– É uma façanha estar aqui tão cedo.

– Venho muito aqui. Em geral a esta hora tenho a sala à minha disposição.

– Eu não o incomodarei.

– O senhor não me está incomodando – disse ele, sorrindo de novo; ocorreu-me então que o seu sorriso era de uma extraordinária doçura. Não animado, nem vivo; era um sorriso que parecia iluminar-lhe o rosto com alguma luz interior. Ele estava sentado numa alcova formada por prateleiras salientes. Apoiou a mão no braço da poltrona a seu lado e prosseguiu: – Não quer sentar-se um pouco?

– Está certo.

Larry entregou-me o livro que segurava.

– Era isto que eu estava lendo.

Vi que se tratava de Principles of Psychology, de William James. É, naturalmente, uma obra clássica, e importante na história da ciência de que se ocupa; de agradável leitura, além do mais, mas não era absolutamente o tipo de livro que eu esperaria ver nas mãos de pessoa tão jovem, um aviador, que estivera dançando até as cinco da manhã.

– Por que está lendo isto? – perguntei.

– Sou muito ignorante.

– É também muito moço – repliquei sorrindo.

Larry ficou calado durante tanto tempo que comecei a achar o silêncio constrangedor e estive a ponto de me levantar para ir à procura das revistas que tinham me levado ali. Mas dominava-me a impressão de que ele queria dizer alguma coisa. Tinha o olhar perdido no espaço, seu rosto era grave e atento e ele parecia meditar. Esperei. Estava curioso por saber do que se tratava. Quando ele falou, foi como se continuasse a conversa, não parecendo ter notado o prolongado silêncio.

– Quando voltei da França, queriam todos que eu fosse para o colégio. Impossível. Depois de tudo por que passei, compreendi que não poderia voltar para a escola. Além do mais, eu pouco aprendera na escola preparatória. Senti que não me convinha a vida de calouro. Eles não teriam gostado de mim. Eu não queria fingir aquilo que não sentia. E não achei que os professores pudessem ensinar-me as coisas que eu desejava conhecer.

– Naturalmente reconheço que isto não é de minha conta, mas não sei se você teve razão – disse eu. – Creio que compreendo o que quer dizer e acho que, depois de dois anos de guerra, teria realmente sido aborrecido voltar a ser pouco mais que um colegial, pois todo primeiro e segundanista não passa disto. Não posso acreditar que eles não teriam gostado de você. Não conheço bem as universidades daqui, mas duvido que os estudantes americanos sejam muito diferentes dos ingleses; talvez um pouco mais barulhentos e mais brincalhões, mas no fundo muito corretos e sensatos; e ouvi dizer que, se um colega não quer levar a vida deles, estão plenamente de acordo, se esse colega tiver um pouco de tato, em deixá-lo seguir seu caminho. Não estive em Cambridge, como meus irmãos. Tive essa oportunidade, mas desprezei-a; eu queria correr mundo. Até hoje me arrependo. Creio que isso me teria evitado muitos erros. A gente aprende mais depressa sob a orientação de professores experientes. Perdemos muito tempo enveredando por becos sem saída, quando não temos ninguém que nos conduza.

– Talvez o senhor tenha razão. Mas não me importo de errar. É possível que num desses becos sem saída eu encontre alguma coisa do que procuro.

– O que é que você procura?

Ele hesitou durante alguns segundos.

– Aí está. Ainda não sei ao certo.

Fiquei em silêncio, pois não parecia haver resposta para isso.

Eu, que desde muito cedo sempre soube o que quis, senti-me ligeiramente impacientado. Mas dominei-me, pois, devido ao que só posso chamar de intuição, senti que na alma daquele rapaz se travava uma luta obscura – não sei se de pensamentos mal esboçados ou emoções confusamente sentidas – que determinava uma inquietação que o impelia nem ele mesmo sabia para onde. Senti-me estranhamente condoído dele. Nunca o ouvira falar muito, e só agora notava como a sua voz era melodiosa. Muito convincente. Como se fosse um bálsamo. Ao considerar essa sua qualidade, o sorriso simpático e os expressivos olhos negros, achei perfeitamente compreensível que Isabel o amasse. Havia realmente nele qualquer coisa que atraía. Larry virou a cabeça e olhou-me sem constrangimento, mas com expressão ao mesmo tempo perscrutadora e divertida.

– Será que tenho razão ao imaginar que ontem, depois que saímos para a festa, ficaram falando de mim?

– Durante algum tempo.

– Achei que foi por isso que insistiram tanto para que o tio Bob fosse jantar. Ele detesta sair de casa.

– Ouvi dizer que você teve oferta de um bom emprego.

– Ótimo.

– Vai aceitá-lo?

– Acho que não.

– Por quê?

– Não tenho vontade.

Eu estava me metendo no que não era da minha conta, mas tive a impressão de que, justamente pelo fato de eu ser um desconhecido, e de um país estrangeiro, Larry não tinha má vontade em discutir o caso comigo.

– Bom, você sabe que, quando uma pessoa não consegue fazer nada, vira escritor – disse eu com uma risadinha.

– Não tenho talento.

– Mas, então, que pretende fazer?

Ele me atirou um dos seus sorrisos radiosos, fascinantes.

– Vadiar – respondeu. Não pude deixar de rir.

– Não me consta que Chicago seja o melhor lugar para isso – repliquei. – Em todo caso, deixo-o à sua leitura. Quero dar uma olhada na Yale Quarterly.

Levantei-me. Quando saí da biblioteca, Larry ainda estava absorto no livro de William James. Almocei sozinho no clube e, como a biblioteca era lugar sossegado, fui para lá fumar o meu charuto e distrair-me por uma ou duas horas, lendo e escrevendo cartas. Fiquei admirado por ver Larry ainda mergulhado na leitura. Pareceu-me que não se movera desde que eu o deixara. Quando saí, às quatro horas, ainda lá estava. Fiquei impressionado com o seu poder de concentração. Ele não me vira entrar ou sair. Tendo muito que fazer durante a tarde, não voltei ao Blackstone senão à hora de me vestir para ir a um jantar a que fora convidado. No caminho tive um acesso de curiosidade. Entrei de novo no clube e fui até a biblioteca. Havia ali, agora, muita gente, lendo jornais e outras coisas. Larry continuava na mesma cadeira, atento no mesmo livro. Esquisito!


8

No dia seguinte Elliott me convidou para almoçar no Palmer House, para encontrar-me com o velho Maturin e seu filho. Éramos somente quatro. Henry Maturin era um homem quase tão grande como seu filho, com um carnudo rosto vermelho e maxilar pesado; tinha o mesmo nariz chato, agressivo, mas seus olhos eram menores que os de Gray, não tão azuis, e extraordinariamente sagazes. Embora não pudesse ter mais de cinquenta anos, parecia ter dez anos mais; seus cabelos, que rapidamente se aproximavam da calvície, eram brancos como a neve. À primeira vista não era simpático. Dava a impressão de ter durante anos vivido bem demais, e pareceu-me um sujeito brutal, inteligente e competente e que, pelo menos em matéria de negócios, devia ser implacável.

A princípio ele pouco falou e ocorreu-me que estava tomando o meu pulso. Não pude deixar de perceber que não levava Elliott muito a sério. Gray, amável e delicado, ficou quase que em completo silêncio e a reunião teria sido um fracasso se, com seu incomparável tato social, Elliott não tivesse mantido uma conversa fácil e agradável. Achei que, em outros tempos, ele devia ter adquirido certa experiência lidando com negociantes do Oeste Central, que necessitavam de persuasão para pagar um preço exorbitante por alguma obra de arte. Dali a pouco mr. Maturin começou a sentir-se mais à vontade, tendo feito uma ou duas observações que indicavam que ele era mais vivo do que parecia e tinha mesmo um árido senso do humor. Durante algum tempo a conversa girou sobre títulos e ações. Eu teria ficado admirado por ver como Elliott entendia do assunto, se há muito já não tivesse percebido que, apesar de todas as suas bobices, ele não era nenhum tolo. Foi aí que mr. Maturin observou:

– Recebi hoje uma carta do amigo de Gray, Larry Darrell.

– Você não me contou nada, papai – disse Gray. Mr. Maturin voltou-se para mim.

– O senhor conhece Larry, não conhece? – Inclinei a cabeça e ele continuou: – Gray convenceu-me a convidá-lo para trabalhar conosco. São muito amigos. Gray tem dele uma opinião muito elevada.

– O que foi que ele disse, papai?

– Agradeceu-me. Declarou que sabia que não podia haver melhor oportunidade para um rapaz e que refletira seriamente sobre o assunto, chegando à conclusão de que iria decepcionar-me e que era preferível recusar.

– É uma grande tolice da parte dele – disse Elliott.

– De fato – concordou mr. Maturin.

– Sinto muito, papai – disse Gray. – Teria sido ótimo trabalharmos juntos.

– A gente pode conduzir um cavalo ao rio, mas não pode obrigá-lo a beber.

Ao dizer isto, mr. Maturin olhou para o filho e a expressão dos seus olhos suavizou-se. Vi que havia outra faceta no caráter daquele duro negociante; ele adorava aquele seu filhão desajeitado. Virou-se de novo para mim:

– Sabe de uma coisa, no domingo este rapaz deu a volta em dois abaixo do par. Ele me bateu sete e seis. Tive vontade de abrir-lhe a cabeça com o meu taco. E pensar que fui eu que lhe ensinei golfe!

O homem não cabia em si de orgulho. Comecei a gostar dele.

– Tive muita sorte, papai.

– Absolutamente. Acha então que é sorte sair da banca e colocar a bola a seis polegadas da bandeira? No mínimo trinta e oito jardas, aquela batida. Quero que no próximo ano ele tome parte no campeonato de amadores.

– Não vou ter tempo para isso.

– Sou eu o seu patrão, não sou?

– Se é!... O barulho que você faz quando chego um minuto atrasado no escritório!

Mr. Maturin deu uma risadinha e virou-se para mim.

– Ele está querendo me fazer de tirano. Não acredite. O meu negócio sou eu, pois meus sócios não prestam para nada, e tenho muito orgulho do meu negócio. Fiz este meu filho começar de baixo, e espero que ele vá subindo por merecimento, como qualquer outro empregado, de momento oportuno. Um escritório como o nosso é uma grande responsabilidade. Há trinta anos que cuido do emprego de capital de alguns dos meus clientes e eles têm confiança em mim. Para falar com franqueza, prefiro perder o meu dinheiro a vê-los perder o seu.

Gray deu uma risada.

– Um destes dias, quando uma velhota veio procurá-lo para empregar mil dólares num projeto fantástico que o seu pastor lhe recomendara, ele se recusou a aceitar a incumbência; e, quando a mulher insistiu, passou-lhe uma tal descompostura que ela foi embora chorando. Depois ele chamou o pastor e passou-lhe também um sabão.

– Falam muito mal da nossa classe, mas há corretores e corretores – disse mr. Maturin. – Não quero que meus clientes tenham prejuízo; quero que tenham lucro, mas, pela atitude de muitos, a gente pensaria que estão loucos para se ver livres do último centavo que possuem!


– Então, que tal é ele? – perguntou-me Elliott enquanto caminhávamos, depois que os Maturin nos deixaram para voltar ao escritório.

– Sempre tenho prazer em conhecer tipos novos. Achei enternecedora a mútua afeição entre pai e filho. Não creio que isto seja muito comum na Inglaterra.

– Ele adora aquele rapaz. É um sujeito esquisito. Saiba que é verdade o que disse a respeito dos seus clientes.

Toma conta das economias de centenas de velhas, militares aposentados e pastores. Na minha opinião isso dá mais trabalho do que lucro, mas Maturin se orgulha da confiança que depositam nele. Mas, quando se trata de um negócio de vulto e ele tem que lutar contra poderosos interesses, não há homem mais duro. Inexorável. Piedade é palavra que então desconhece. Quer o seu lucro, e não há obstáculo que o detenha. Se uma pessoa pisar nos seus calos, não somente ele a arruinará, mas ainda achará graça à situação.

Ao chegar em casa Elliott contou a mrs. Bradley que Larry recusara a oferta de Henry Maturin. Isabel fora almoçar com algumas amiguinhas e chegou quando ainda discutiam o assunto. Deram-lhe a notícia. Pelo que Elliott me repetiu da cena, cheguei à conclusão de que ele se exprimira com grande eloquência. Embora tivesse vivido na ociosidade naqueles últimos dez anos, não tendo o seu trabalho anterior, que lhe valera a fortuna, sido dos mais árduos, Elliott era de opinião que, para o bem da humanidade, o trabalho era essencial. Larry era um rapazinho como qualquer outro, sem nenhuma importância social, e não havia absolutamente razão para que não se conformasse com aquele louvável hábito do seu país. Era evidente, para um homem de visão como Elliott, que a América entrava numa época de prosperidade como jamais conhecera. Larry tinha a oportunidade de participar dessa prosperidade e, se fosse perseverante, quando chegasse aos quarenta anos, poderia ser muitas vezes milionário. Se aí então quisesse aposentar-se e viver como um cavalheiro, digamos em Paris, com um apartamento na Avenue du Bois e um castelo em Touraine, ele (Elliott) nada teria a dizer. Mas Louisa Bradley foi mais concisa e mais categórica. Disse:

– Se ele gosta de você, deve estar disposto a trabalhar para você.

Não sei que resposta Isabel deu a isso, mas teve o bom senso de reconhecer que os mais velhos estavam com a razão. Todos os rapazes de sua roda estavam estudando para uma profissão ou trabalhando em algum escritório. Larry não podia pretender passar a vida inteira dormindo sobre suas glórias de aviador. A guerra acabara, estavam todos fartos dela e aflitos por esquecê-la. A conversa teve como resultado a promessa de Isabel de discutir o assunto com Larry de uma vez por todas. Mrs. Bradley sugeriu que ela pedisse ao rapaz que a levasse de carro até Marvin. Pretendia encomendar cortinas novas para a sala de visitas e perdera as dimensões, querendo portanto que Isabel as tomasse novamente.

– Vocês podem almoçar na casa de Bob Nelson – concluiu.

– Tenho ideia melhor – disse Elliott. – Ponha no carro uma cesta de piquenique; eles poderão comer na varanda e conversar depois do almoço.

– Seria divertido – disse Isabel.

– Há poucas coisas no mundo tão agradáveis como um almoço de piquenique saboreado com todo conforto – declarou Elliott sentenciosamente. – A velha duquesa d’Uzès costumava dizer que, em tais circunstâncias, o macho mais recalcitrante se torna sugestionável. Que é que você pretende dar-lhes para o almoço?

– Ovos cozidos e sanduíches de galinha.

– Absurdo. Ninguém pode fazer um piquenique sem pâté de foie gras. Eles precisam levar, em primeiro lugar, camarões com caril; peito de galinha em gelatina, com uma salada de alfaces tenras, que eu mesmo prepararei; e depois do pâté, se você quiser, como concessão ao hábito nacional, uma torta de maçã.

– Eles levarão ovos cozidos e sanduíches de galinha, Elliott – declarou mrs. Bradley em tom decidido.

– Pois bem, tome nota do que digo: vai ser um fracasso e a culpa será sua.

– Larry come muito pouco, tio Elliott – interveio Isabel. – E creio que nem nota o que come.

– Espero que você não considere isto uma qualidade, minha pobre menina – replicou ele.

Mas aquilo que mrs. Bradley dissera que os dois levariam foi exatamente o que levaram. Ao contar-me o resultado da excursão, Elliott encolheu os ombros em gesto muito francês.

– Bem que as preveni de que seria um fracasso. Supliquei a Louisa que enfiasse na cesta uma garrafa de Montrachet, que eu lhe enviara pouco antes da guerra, mas ela não me deu ouvidos. Levaram uma garrafa térmica com café, e nada mais. Que se poderia então esperar?

Parece que Louisa Bradley e Elliott estavam sozinhos na sala quando ouviram o carro parar à porta e Isabel entrar em casa. Caíra a tarde e as cortinas estavam descidas. Elliott estava à vontade numa poltrona, lendo um romance, e mrs. Bradley trabalhava numa tapeçaria que ia servir de biombo para a lareira. Isabel subira diretamente para o quarto. Elliott fitara a irmã por cima dos óculos.

– Com certeza ela foi tirar o chapéu – disse mrs. Bradley. – Daqui a pouco vai descer.

Mas passaram-se vários minutos sem que Isabel viesse.

– Talvez ela esteja cansada; com certeza deitou-se por um pouco.

– Não acha que seria mais natural Larry ter entrado?

– Não seja irritante, Elliott.

– Bom, isso não é comigo, é com você.

Elliott voltou à sua leitura. Mrs. Bradley recomeçou a bordar.

Mas depois de se ter passado meia hora ela se levantou bruscamente.

– Acho melhor eu subir para ver se ela está bem. Se estiver descansando, não a incomodarei.

Saiu da sala, mas voltou logo em seguida.

– Ela esteve chorando. Larry vai para Paris; pretende ficar ausente dois anos. Isabel prometeu esperar por ele.

– Por que motivo deseja ele ir para Paris?

– Não adianta fazer-me perguntas, Elliott. Não sei. Isabel não me quis contar nada. Diz que compreende e que não quer ser um estorvo para ele. Eu disse: “Se Larry está disposto a deixá-la por dois anos, Isabel, então seu amor não pode ser muito forte”. E ela respondeu: “Paciência. O essencial é que eu o amo muito”. “Mesmo depois do que aconteceu hoje?”, perguntei. “O dia de hoje fez com que eu o amasse mais ainda. E ele também me ama, mamãe; tenho certeza disso.”

Elliott refletiu durante alguns instantes.

– E que vai acontecer depois desses dois anos?

– Já lhe disse que não sei, Elliott.

– Não acha o arranjo pouco satisfatório?

– Acho.

– Só resta um consolo: é que são ambos muito moços. Não lhes fará mal esperar dois anos, e nesse espaço de tempo muita coisa pode acontecer.

Concordaram em que seria preferível deixar Isabel em paz, pois iam jantar fora aquela noite.

– Não quero perturbá-la – disse mrs. Bradley. – Todo mundo ficaria fazendo conjeturas se ela aparecesse de olhos inchados.

Mas no dia seguinte, ao almoço, que foi tomado na intimidade, de novo mrs. Bradley tocou no assunto. Mas pouco arrancou de Isabel.

– Não há realmente quase mais nada para contar além do que lhe contei ontem à noite, mamãe – disse ela.

– Mas que é que Larry pretende fazer em Paris? Isabel sorriu, pois sabia quanto a resposta ia parecer absurda à sua mãe.

– Vadiar.

– Vadiar? Que quer você dizer com isso?

– Foi o que ele me disse.

– Francamente, você me faz perder a paciência. Se tivesse um pouco de energia, teria desmanchado o noivado ali na hora. Ele está brincando com você.

Isabel olhou para o anel que trazia na mão esquerda.

– Que hei de fazer? Eu o amo.

Neste momento Elliott entrou na conversa. Discutiu o assunto com o seu tato habitual. “Não como um tio, meu caro amigo, mas como um homem vivido que se dirigisse a uma donzela inexperiente.” Mas não obteve melhores resultados. A impressão que tive foi que, delicadamente mas com firmeza, Isabel lhe dissera que não se metesse no que não era da sua conta. Elliott me repetiu tudo isto no mesmo dia, um pouco mais tarde, quando estávamos ambos na saleta que eu tinha no Blackstone.

– Claro que Louisa tem razão – disse ele. – É muito pouco satisfatório, mas é o que acontece quando deixam que os moços resolvam um casamento que só tem por base uma afeição mútua. Eu disse a Louisa que não se preocupe; creio que as coisas se resolverão melhor do que ela espera. Com Larry no estrangeiro e o jovem Maturin sempre presente... Bom, se é que entendo alguma coisa da psicologia humana, não é difícil prever-se o resultado. Aos dezoito anos nossas emoções são violentas, mas pouco duradouras.

– Você hoje está filósofo, Elliott – comentei sorrindo.

– Não foi à toa que li o meu La Rochefoucauld. Você conhece Chicago; eles se encontrarão constantemente. Uma moça fica lisonjeada por ter alguém que lhe faça a corte o tempo todo e, quando ela sabe que não há uma de suas amigas que não ficaria radiante de poder casar-se com ele... Pois bem, diga-me lá: acha natural que resista à tentação de suplantar todas as outras? Explico-me melhor: é o mesmo que você ir a uma festa, sabendo que vai se aborrecer à grande e que lá só servirão limonada e biscoitos; mas você vai porque sabe que seus amigos dariam a vida por ir, e no entanto não foram convidados.

– Quando é que Larry pretende partir?

– Não sei. Creio que ainda não foi resolvido. – Elliott sacou do bolso uma cigarreira de ouro e platina e tirou de dentro um cigarro egípcio. Nada de Fátimas, para ele, ou Chesterfields ou Camels, ou Lucky Strikes. Fitou-me com um sorriso repleto de insinuações e continuou:

– Claro que eu não diria isso a Louisa, mas a você não me importo de confessar que no fundo compreendo o ponto de vista do rapazinho. Parece que ele tomou um gostinho de Paris durante a guerra, e não o censuro por se sentir atraído pela única cidade do mundo onde um homem civilizado pode viver. É moço e com certeza quer divertir-se um pouco, antes de se assentar na vida de casado. Muito natural e muito certo. Olharei por ele. Apresentá-lo-ei na boa sociedade; ele tem maneiras finas e, com uma ou duas indiretas que eu lhe der, ficará mais apresentável; garanto que posso mostrar-lhe um aspecto da vida na França que a bem poucos americanos é dado conhecer. Creia-me, caro amigo, é mais fácil ao tipo comum de americano entrar no reino dos céus do que no Boulevard St. Germain. Larry tem vinte anos e é simpático. Não será difícil arranjar-lhe uma ligação com uma mulher mais velha. Isto o formaria. Sempre achei que não há melhor educação para um rapaz do que se tornar amante de uma mulher de certa idade e, naturalmente, se ela for do tipo de mulher que tenho em vista, uma femme du monde, você compreende, isto imediatamente lhe daria uma posição em Paris.

– Você disse isso a mrs. Bradley? – perguntei sorrindo. Elliott deu uma risadinha.

– Meu caro amigo, se há uma coisa de que me orgulho neste mundo é do meu tato. Não lhe disse absolutamente nada. Ela não entenderia, a coitadinha. Está aí uma coisa que jamais compreendi em Louisa; embora tenha passado metade de sua vida na diplomacia, residindo em inúmeras capitais do mundo, ela se conservou irremediavelmente americana.


9

Aquela noite fui jantar em Lake Shore Drive, numa enorme casa de pedra que dava a impressão de que o arquiteto iniciara a construção de um castelo medieval e depois, mudando repentinamente de ideia, resolvera transformá-lo em chalé suíço. Era uma reunião grande e, quando entrei na vasta e suntuosa sala de visitas, cheia de estátuas, palmeiras, candelabros, quadros célebres e pesadíssima mobília, fiquei satisfeito por ver que pelo menos algumas das pessoas presentes eu conhecia. Henry Maturin apresentou-me à sua magra, pouco interessante e frágil esposa. Cumprimentei mrs. Bradley e sua filha. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda vermelha que dava realce aos seus cabelos escuros e olhos castanhos. Parecia muito animada e ninguém diria que acabara de ter um grande aborrecimento. Conversava alegremente com dois ou três rapazes, Gray entre eles, que a cercavam. Ao jantar sentou-se a outra mesa e não pude vê-la; mas mais tarde, quando nós, homens, depois de termos nos eternizado nos nossos cafés, licores e cigarros, voltamos para a sala de visitas e tive oportunidade de falar-lhe. Eu a conhecia muito pouco para tocar diretamente no assunto a que Elliott se referira, mas tinha alguma coisa para contar-lhe, que, achei, iria causar-lhe prazer.

– Vi o seu namorado no clube, há poucos dias – disse eu despreocupadamente.

– Ah! viu?...

Seu tom era tão despreocupado quanto o meu, mas percebi que ela ficara imediatamente alerta. Seus olhos adquiriram uma expressão vigilante e creio ter notado neles a sombra da apreensão.

– Ele estava lendo na biblioteca. Fiquei impressionadíssimo com o seu poder de concentração. Lia quando cheguei, pouco depois das dez, lia quando apareci depois do almoço, e ainda estava lendo quando lá voltei à hora do jantar. Não creio que tenha se levantado da cadeira durante a maior parte de um espaço de dez horas.

– O que ele estava lendo?

– Principles of Psychology de William James.

Isabel baixou os olhos para que eu não pudesse ver a impressão que isso lhe causara, mas pareceu-me que ela ficara ao mesmo tempo perplexa e aliviada. Neste momento o dono da casa veio chamar-me para o bridge; quando o jogo acabou, Isabel e sua mãe já tinham ido para casa.


10

Dois dias mais tarde fui despedir-me de mrs. Bradley e Elliott. Encontrei-os tomando chá. Logo depois Isabel apareceu. Falamos da minha próxima viagem, agradeci-lhes as gentilezas que me tinham dispensado durante minha permanência em Chicago, e depois de um prazo regular levantei-me para partir.

– Vou com o senhor até a drugstore – disse Isabel. – Lembrei-me agora que tenho uma compra a fazer.

As últimas palavras que mrs. Bradley me disse foram: “O senhor dará lembranças minhas à querida rainha Margherita, não é?”.

Eu desistira de procurar convencê-la de que não conhecia aquela augusta personagem, e mais que depressa respondi que lhe faria a vontade.

Quando ganhamos a rua, Isabel lançou-me de soslaio um olhar sorridente.

– O senhor acha que poderia tomar um ice-cream-soda? – perguntou-me.

– Só experimentando – respondi prudentemente. Isabel não falou até chegarmos à drugstore e eu, por nada ter a dizer, também fiquei em silêncio. Entramos e tomamos uma mesa, sentando-nos em cadeiras com encosto de ferro forjado e pés no mesmo estilo. Muito pouco confortáveis. Encomendei dois ice-cream-soda. Algumas pessoas faziam compras diante dos balcões; dois ou três casais, sentados a outras mesas, só pareciam atentos aos seus interesses; estávamos, pois, por assim dizer, sozinhos. Acendi um cigarro e esperei, observando Isabel que, com aparente satisfação, chupava o seu refresco por meio de uma longa palhinha. Pareceu-me nervosa.

– Eu queria falar com o senhor – disse-me bruscamente.

– Foi o que me pareceu – respondi sorrindo.

Ela me fitou, pensativa, durante um ou dois minutos.

– Por que motivo me disse aquilo de Larry a noite retrasada na casa dos Satterthwaites?

– Achei que lhe ia interessar. Ocorreu-me que talvez você não soubesse o que ele queria dizer com “vadiar”.

– Tio Elliott é um linguarudo. Quando me disse que ia ao Blackstone dar uma perobinha com o senhor, logo vi que ia contar-lhe tudo.

– Eu o conheço há muitos anos, sabe. Ele tem prazer em comentar a vida alheia.

– É verdade – disse ela, com um sorriso apenas esboçado. Fitou-me atentamente, com expressão séria no olhar. – Que é que acha de Larry?

– Só o vi três vezes. Parece-me muito bom rapaz.

– Só isso?

Havia uma nota de tristeza na voz dela.

– Não; não é. Fica difícil eu dar opinião; você vê, conheço-o há muito pouco tempo. Claro que é simpático. Há nele qualquer coisa de modesto, amável e suave, que é deveras atraente. E é muito senhor de si, considerando-se a sua mocidade. Não se parece com nenhum dos rapazes que fiquei conhecendo aqui.

Enquanto eu assim desajeitadamente procurava dar forma a uma impressão ainda confusa no meu pensamento, Isabel me fitava atentamente. Quando terminei, ela soltou um suspirozinho, como que aliviada, e lançou-me um sorriso encantador, meio maroto.

– O tio Elliott diz que muitas vezes tem ficado admirado do seu dom de observação, mr. Maugham. Diz que pouca coisa lhe escapa, mas que a sua maior qualidade como escritor é o seu bom senso.

– Conheço uma qualidade mais apreciável – repliquei secamente. – Talento, por exemplo.

– Sabe, não tenho ninguém com quem discutir o meu caso. Mamãe só enxerga as coisas sob o seu ponto de vista. Quer garantir o meu futuro.

– É mais que natural, não é?

– E o tio Elliott só vê o lado social. Minhas amigas, refiro-me às da minha geração, acham Larry muito pouco interessante. Isto dói terrivelmente.

– Claro.

– Não digo que elas não sejam gentis com ele. Ninguém pode deixar de ser gentil com Larry. Mas não o levam a sério. Fazem muita troça dele e ficam exasperadas por ver que ele não faz caso. Larry apenas ri. O senhor sabe em que pé estão as coisas atualmente?

– Só sei o que Elliott me contou.

– Posso contar-lhe exatamente o que se passou quando fomos a Marvin?

– Claro.

Consegui reconstruir o episódio que Isabel me descreveu, em parte pela lembrança que tenho do que ela me disse naquele dia, e em parte acudido pela imaginação. Mas foi longa a conversa entre ela e Larry e não duvido que tenham dito muito mais do que pretendo agora relatar. Creio que, como acontece com todo mundo nessas ocasiões, eles não somente disseram muita coisa que não vinha ao caso, mas repetiram várias vezes as mesmas frases.

Quando se levantou, naquele dia, ao ver a beleza da manhã Isabel telefonou a Larry, dizendo que sua mãe queria que ela fosse até Marvin, e pedindo-lhe que a levasse de carro. Tomara a precaução de acrescentar uma garrafa térmica, de martíni, à de café que sua mãe ordenara a Eugene que pusesse na cesta. O carro era novo e Larry tinha orgulho dele. Gostava de guiar depressa, e a velocidade os deixou muito animados. Chegando a Marvin, Isabel mediu as cortinas que deviam ser substituídas, enquanto Larry ia anotando os números. Depois prepararam o almoço na varanda. Esta era protegida contra todo e qualquer vento, e o sol do verão de S. Martinho aquecia agradavelmente. A casa, à beira de uma estrada poeirenta, nada tinha da elegância das velhas casas de madeira da Nova Inglaterra e, mesmo com boa vontade, o mais que se poderia dizer era que era grande e confortável; mas da varanda tinha-se uma vista agradável, do barracão vermelho com o seu telhado negro, uma moita de velhas árvores, e além, até onde alcançava a vista, campos pardacentos. Paisagem monótona, mas o sol e as tintas brilhantes do fim do ano davam-lhe uma beleza toda sua. Era intoxicante aquela amplidão. Por mais fria, nua e melancólica que se apresentasse no inverno, por mais seca, crestada e opressiva que fosse em outros dias, naquela ocasião era estranhamente excitante, pois a vastidão do panorama convidava a alma à aventura.

Eles saborearam o almoço como criaturas moças e sadias que eram, sentindo prazer na companhia um do outro. Isabel serviu o café e Larry acendeu o cachimbo.

– Agora, desabafe-se, meu bem – disse ele com um sorriso divertido nos olhos.

Isabel foi apanhada de surpresa.

– Desabafar-me sobre o quê? – perguntou com o ar mais inocente que lhe foi possível assumir.

Ele deu uma risadinha.

– Pensa que sou algum idiota, meu amor? Se sua mãe não conhecer perfeitamente as dimensões das janelas da sala, quero ser mico de cavalinho! Não foi por isso que você me pediu para trazê-la aqui.

Novamente senhora de si, Isabel lançou-lhe um sorriso encantador.

– Pode ser que eu tenha achado que seria agradável passarmos um dia juntos, só nós dois.

– Pode ser, mas não creio que tenha sido. Meu palpite é que o tio Elliott lhe contou que recusei o convite de Henry Maturin.

Ele falava alegre e despreocupadamente e Isabel achou conveniente adotar o mesmo tom.

– Gray deve ter ficado profundamente decepcionado. Achava que seria ótimo ter você com ele no escritório. Você tem que trabalhar um dia e, quanto mais for adiando, pior.

Larry tirou uma cachimbada e fitou-a, sorrindo ternamente, de modo que Isabel não soube dizer se ele estava falando sério ou não.

– Sabe, tenho a impressão de que quero fazer da minha vida alguma coisa mais do que vender títulos.

– Está certo, então. Entre para um escritório de advocacia ou vá estudar medicina.

– Não; não é também isto que eu quero.

– O que é que você quer, então?

– Vadiar – replicou ele calmamente.

– Oh! Larry, não se faça de engraçado. Isto é muito, muito sério.

A voz de Isabel tremia e seus olhos se encheram de lágrimas.

– Não chore, querida. Não desejo fazê-la sofrer.

Ele foi sentar-se ao lado de Isabel, passando o braço à volta dos ombros dela. Havia uma tão grande ternura na sua voz que Isabel não pôde conter as lágrimas. Mas enxugou-as e tentou chamar aos lábios um sorriso.

– É muito fácil dizer que não quer fazer-me sofrer. Você está me fazendo sofrer. Porque, sabe, eu gosto de você, Larry.

– Eu também gosto de você, Isabel.

Ela suspirou profundamente. Depois se desvencilhou dos braços dele, afastando-se ligeiramente.

– Sejamos sensatos. Um homem tem que trabalhar, Larry. É uma questão de amor-próprio. Vivemos num país novo e é dever de todo homem tomar parte nas atividades deste país. Ainda no outro dia, Henry Maturin estava dizendo que nos encontramos no início de uma era que fará com que as realizações passadas pareçam insignificantes. Disse que não vê limites para o nosso progresso, e está convencido de que lá para 1930 seremos o país maior e mais rico do mundo. Você não acha isto formidável?

– Formidável.

– Nunca os moços tiveram igual oportunidade. Pensei que você fosse sentir-se orgulhoso de participar do trabalho que temos à nossa frente. É uma maravilhosa aventura.

Ele riu ligeiramente.

– Creio que você tem razão. As Armour e Swift produzirão melhores conservas e em maior escala, as McCormick farão melhores foices e em maior quantidade, Henry Ford porá no mercado maior número de melhores carros. E todo mundo ficará mais rico e ainda mais rico. E por que não?

– Sim, como diz você, por que não? Mas acontece que o dinheiro não me interessa.

Isabel riu nervosamente.

– Meu bem, não diga tolices. Ninguém pode viver sem dinheiro.

– Tenho um pouquinho; é por isso que posso fazer o que quero.

– Vadiar?

– Sim – respondeu ele sorrindo.

– Você está dificultando tanto as coisas para mim, Larry – suspirou Isabel.

– Sinto muito. Eu não o faria, se dependesse da minha vontade.

– Depende da sua vontade.

Ele sacudiu a cabeça. Ficou quieto durante alguns instantes, imerso nos seus pensamentos. Quando finalmente quebrou o silêncio, foi para dizer algo que a sobressaltou.

– Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos quando mortos.

– O que quer você exatamente dizer com isto? – perguntou ela, perturbada.

– Justamente isto. – Ele sorriu, meio encabulado. – A gente tem muito tempo para pensar, quando está voando, sozinho. Fica-se com ideias esquisitas.

– Que espécie de ideias?

– Vagas – respondeu ele sorrindo. – Incoerentes. Confusas.

Isabel refletiu durante alguns instantes.

– Não acha que, se você começasse a trabalhar, elas se coordenariam e você ficaria sabendo em que terreno pisava?

– A ideia me ocorreu. Pensei em ir trabalhar numa carpintaria ou em alguma garagem.

– Oh! Larry, todo mundo pensaria que você está maluco.

– Teria isto importância?

– Para mim, sim.

De novo se fez silêncio entre eles. Foi Isabel quem o quebrou. Soltou um suspiro e disse:

– Você está tão diferente do que era quando foi para a França!

– Isto não é de estranhar. Muita coisa me aconteceu, você sabe.

– Como por exemplo?

– Oh, nada de extraordinário. Meu maior amigo na aviação morreu ao salvar-me a vida. Não foi fácil conformar-me com isso.

– Conte-me como foi, Larry.

Ele fitou-a com profunda angústia no olhar.

– Prefiro não falar nisso. Afinal de contas, foi um incidente corriqueiro.

Emotiva por natureza, Isabel sentiu de novo lágrimas nos olhos.

– Você é infeliz, meu bem?

– Não – respondeu ele sorrindo. – A única coisa que me torna infeliz é saber que estou tornando você infeliz.

– Ele segurou a mão de Isabel, e era tão amigo o aperto daquela mão firme e forte, havia nele tão afetuosa intimidade que Isabel teve que morder os lábios para não chorar.

– Creio que não terei paz de espírito enquanto não resolver certas coisas – continuou Larry gravemente. Hesitou e depois: – É difícil explicar. A gente experimenta e logo fica constrangida. Pensa: “Quem sou eu para quebrar minha cabeça sobre isso, aquilo e aquele outro? Mas talvez eu não passe de um pedante pretensioso. Não seria melhor seguir o caminho que os outros trilharam e deixar que os acontecimentos venham como têm que vir?”. Mas então a gente se lembra de um sujeito que uma hora antes estava cheio de vida e de alegria e agora está morto. Tudo tão cruel e sem significação! É difícil deixar de perguntar a si próprio que finalidade tem a vida, se ela tem algum sentido ou se não passa de um erro trágico por parte do destino cego.

Quando Larry falava com aquela sua voz maravilhosamente melodiosa, interrompendo-se como se fizesse um esforço para dizer coisas que preferia calar, e exprimindo-se, no entanto, com tão angustiosa sinceridade, era impossível ao ouvinte não se comover; assim sendo, durante algum tempo Isabel teve medo de falar.

– Acha que adiantaria se você se ausentasse durante algum tempo?

Isabel formulara a pergunta com o coração na mão. Larry levou muito tempo para responder.

– Creio que sim. A gente procura mostrar-se indiferente à opinião pública, mas não é assim tão fácil. Quando essa opinião é antagônica, excita em nós antagonismo e isto nos perturba.

– Então, por que não vai?

– Bom, por sua causa.

– Sejamos francos um com o outro, meu bem. No momento atual não há lugar na sua vida para mim.

– Quer dizer que você prefere desmanchar o nosso noivado?

Ela conseguiu chamar um sorriso aos lábios trêmulos.

– Não, tolinho; quer dizer que estou disposta a esperar.

– Talvez seja um ano. Talvez dois.

– Não faz mal. Talvez seja menos. Para onde você quer ir?

Ele fitou-a atentamente, como se desejasse ler-lhe o mais íntimo pensamento. Isabel sorriu despreocupadamente para esconder o seu profundo desgosto. Larry disse:

– Pois bem, pensei em começar indo para Paris. Não conheço ali ninguém. Não haveria ninguém para se meter com a minha vida. Fui diversas vezes a Paris quando em licença. Não sei por quê, mas tenho impressão de que ali tudo o que está confuso no meu espírito se aclararia. É um lugar engraçado; a gente tem impressão de que ali poderá analisar a fundo os próprios pensamentos. Creio que assim eu talvez chegue a saber que caminho tomar.

– E que acontecerá se não ficar sabendo? Ele deu uma risadinha.

– Então recuperarei o proverbial bom senso americano, darei a experiência por malsucedida e voltarei para Chicago, aceitando o emprego que conseguir arranjar.

A cena impressionara demasiadamente Isabel para que ela pudesse repetir-me sem ficar emocionada. Ao terminar, fitou-me com um arzinho que me penalizou.

– Acha que fiz bem?

– Acho que fez a única coisa possível e, mais ainda, acho que foi extraordinariamente boa, generosa e compreensiva.

– Gosto de Larry e quero que ele seja feliz. E, sabe, até certo ponto acho preferível que ele vá. Quero que se veja livre desta atmosfera hostil, não somente por sua causa, mas pela minha também. Não posso criticar as pessoas que afirmam que ele nunca dará coisa alguma; detesto-as por dizerem isso e, no entanto, bem no fundo, tenho um medo horrível de que estejam com a razão. Mas não diga que sou compreensiva. Não tenho a mínima ideia do que ele procura.

– Talvez você compreenda mais com o coração do que com a razão – repliquei sorrindo. – Por que não se casa imediatamente com ele e não o acompanha a Paris?

O olhar de Isabel teve o brilho de um sorriso.

– Nada que eu desejasse mais. Mas não posso. E, o senhor sabe, embora eu deteste reconhecer semelhante coisa, acho que ele estará melhor sem a minha companhia. Se o dr. Nelson acerta ao dizer que Larry está sofrendo as consequências do choque, então um ambiente novo e outros interesses o curarão e, ao recuperar o equilíbrio, ele voltará para Chicago e vai trabalhar como todo mundo. Não tenho a mínima vontade de me casar com um vadio.

Isabel fora educada de certa maneira e aceitava os princípios que lhe haviam sido incutidos. Não pensava em dinheiro, porque ignorava o que era não ter tudo de que necessitava, mas instintivamente compreendia a sua importância. Poder, influência, posição social. Era natural e óbvio que um homem procurasse ganhá-lo.

Era esta a sua missão na terra.

– Não me admiro que você não compreenda Larry, pois garanto que nem ele se compreende a si próprio – disse eu. – Se ele se mostra reservado quanto aos seus desígnios, talvez seja porque esses desígnios ainda lhe são obscuros. Previno-a: conheço-o muito pouco e isto é apenas um palpite, mas não acha possível que ele esteja procurando por alguma coisa, mas uma coisa que ele ignora qual seja, de cuja existência talvez nem mesmo certeza tenha? É possível que o que lhe aconteceu na guerra, seja o que for, tenha determinado uma inquietação que nunca o abandona. Não acha que ele talvez esteja à procura de um ideal que se oculta na névoa do desconhecido, como o astrônomo que busca a estrela que somente um cálculo matemático lhe diz que existe?

– Sinto que alguma coisa o está afligindo.

– Sua alma? É possível que ele esteja com um pouco de medo de si próprio. É possível que não acredite na autenticidade da visão que vagamente distingue no seu espírito.

– Às vezes ele me dá uma impressão esquisita; como se fosse um sonâmbulo que de repente acordasse num lugar estranho, não podendo imaginar onde está. Era tão normal antes da guerra! Um dos seus maiores atrativos era o seu amor à vida. Tão alegre e estouvado que era um prazer a gente estar na sua companhia; tão meigo e ridículo! Que é que pode ter acontecido para tê-lo mudado desta forma?

– Não sei. Às vezes uma coisinha de nada tem sobre a pessoa um efeito completamente fora de proporção com o acontecimento. Depende das circunstâncias, e do estado de espírito dessa pessoa no momento. Lembro-me de ter ido à missa num Dia de Todos os Santos, que os franceses chamavam Dia de Finados, na igreja de uma aldeia que, no seu primeiro avanço sobre a França, os alemães tinham estragado um pouco. Estava repleta de soldados e mulheres de preto. No cemitério ao lado, havia fileiras de cruzes de madeira e, à medida que o serviço solene, triste, prosseguia, e homens e mulheres choravam, experimentei a sensação de que talvez aqueles que descansavam sob as cruzes fossem mais felizes do que nós, os vivos. Contei a um amigo o que sentia e ele me perguntou o que queria eu dizer. Não me foi possível explicar e percebi que ele me considerava um grandíssimo idiota. E lembro-me de ter visto, depois de uma batalha, um monte de franceses mortos, empilhados uns sobre os outros. Pareciam fantoches de uma companhia falida, que haviam sido atirados desordenadamente num canto poeirento, por não prestarem para mais nada. Pensei, então, aquilo que Larry disse a você, no outro dia: “Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos”.

Não quero que o leitor pense que estou fazendo mistério do que acontecera a Larry na guerra, fosse o que fosse, que tão profundamente o afetara – mistério que revelarei no momento oportuno.

Não creio que ele jamais tenha contado a quem quer que seja. Anos mais tarde, no entanto, ele falou a uma mulher, Suzanne Rouvier, também minha conhecida, sobre o aviador que morrera ao salvar-lhe a vida. Ela repetiu-me o caso e só posso, portanto, relatá-lo de segunda mão.

Traduzi-o do francês em que ela me falou. Parece que Larry ficara muito amigo de outro rapaz de seu esquadrão. Suzanne só o conhecia pelo irônico apelido com que Larry se referia a ele.

– Era um sujeitinho pequeno de cabelos vermelhos, um irlandês – disse Larry. – Costumávamos chamá-lo de Patsy e ele tinha mais vivacidade do que qualquer outra pessoa que jamais conheci. Céus, era um azougue! Tinha uma cara engraçada e um sorriso engraçado, de modo que só de olhar para ele a gente tinha vontade de rir. Era um diabo temerário e fazia as maiores loucuras; estava sempre sendo chamado à ordem pelos superiores. Não sabia o que era medo e, depois de ter escapado da morte por um triz, seu rosto se alargaria num sorriso, como se aquilo fosse a maior pilhéria do mundo. Mas era um aviador nato e lá em cima, nas nuvens, sabia ser frio e cauteloso. Ensinou-me muita coisa. Era um pouco mais velho do que eu e tomou-me sob sua proteção; isto era realmente um pouco cômico, considerando-se que eu tinha bem uns quinze centímetros a mais de altura do que ele e, se por um acaso brigássemos, eu poderia pô-lo a nocaute em dois tempos. Foi o que aconteceu, certa vez, em Paris, quando ele estava bêbado e fiquei com medo de que se metesse em alguma embrulhada.

Larry fez uma pausa e continuou:

– Eu não me sentia muito à vontade quando me reuni ao esquadrão e tinha medo de não me sair bem, mas ele me obrigou a ter confiança em mim. Tinha ideias engraçadas sobre a guerra; não sentia ódio dos alemães; gostava de uma brigazinha e achava divertidíssimo combatê-los. Não podia considerar o fato de pôr abaixo um avião inimigo a não ser como grandíssima pilhéria. Era impudente e louco e irresponsável, mas ao mesmo tempo tão sincero que a gente não podia deixar de lhe querer bem. Daria a um companheiro o seu último níquel, com a mesma facilidade com que aceitaria o dele. Se um de nós se sentia isolado, ou com saudade de casa, ou com medo, como algumas vezes me aconteceu, ele logo o perceberia e, a carinha feia enrugando-se de riso, diria exatamente aquilo que podia fazer a gente sentir-se bem outra vez.

Larry tirou uma cachimbada e Suzanne esperou que ele continuasse.

– Costumávamos manobrar de jeito a ter nossas licenças juntos e quando íamos a Paris ele ficava endiabrado. Divertíamo-nos à grande. Íamos ter uns dias de licença em princípio de março, isto em 1918, e traçamos nossos planos de antemão. Não havia o que não pretendêssemos fazer! Na véspera da partida, recebemos ordem de voar sobre as linhas inimigas e apresentar o nosso relatório. Subitamente demos com alguns aviões alemães e, quando menos esperávamos, estávamos no meio de uma batalha. Um deles me perseguiu, mas peguei-o primeiro. Espiei para ver se ele ia cair e com o rabo do olho vi outro aparelho no meu encalço. Mergulhei para ver se escapava, mas o inimigo se aproximou como um relâmpago e pensei que eu estivesse liquidado; nisto vi Patsy cair sobre ele como se fosse um raio e despejar-lhe toda a munição que tinha. Os alemães deram-se por vencidos e fugiram, e nós voltamos às nossas linhas. Meu avião estava bem avariado e eu mal consegui aterrissar. Patsy chegara antes de mim. Quando desci do meu avião, vi que tinham acabado de tirá-lo do seu. Estava deitado no chão; esperavam que chegasse a ambulância. Ele sorriu ao ver-me. Disse:

“Derrubei aquele sujeito que estava atrás de você”. “Que foi que aconteceu, Patsy?”, perguntei.

“Oh! nada. Ele me pegou na asa.”

– Estava mortalmente pálido. De repente uma expressão estranha cobriu-lhe o rosto. Só neste momento percebeu que estava agonizante, e a ideia da morte jamais lhe passara pela cabeça. Antes que alguém pudesse impedi-lo, ele sentou-se e soltou uma risada.

“Ora, essa é boa!”

– Caiu morto. Tinha vinte e dois anos. Ia casar-se com uma moça na Irlanda quando acabasse a guerra.

No dia seguinte à minha conversa com Isabel, saí de Chicago para São Francisco, onde devia tomar o vapor que me levaria ao Extremo Oriente.


Dois

Dois


1

Só tornei a ver Elliott quando ele veio a Londres, em fins de junho do ano seguinte. Perguntei-lhe se, afinal de contas, Larry tinha ido mesmo para Paris. Respondeu-me que sim. Achei graça ao perceber como Elliott ficara exasperado com ele.

– No fundo eu compreendia o ponto de vista do rapazinho – disse-me. – Não o censurava por querer passar um ou dois anos em Paris, e estava disposto a lançá-lo na sociedade. Pedi-lhe que me avisasse assim que chegasse, mas só quando Louisa se referiu a isso numa carta foi que eu soube que ele estava em Paris. Escrevi-lhe aos cuidados do American Express, endereço que ela me dera, convidando-o para vir jantar e ser apresentado a algumas das pessoas que eu achava que ele devia conhecer. Queria primeiro experimentá-lo com o grupo franco-americano, Emily de Montadour, Gracie de Chãteau-Gaillard e outras, mas sabe você o que ele me respondeu? Que sentia não poder aceitar, uma vez que não trouxera traje de noite.

Elliott encarou-me para ver no meu rosto o espanto que certamente eu iria sentir. Ergueu um tanto desdenhosamente as sobrancelhas ao verificar que eu aceitava com calma a comunicação.

– Respondeu à minha carta numa folha de papel ordinário, que tinha em cima o nome de um café do Quartier Latin; quando lhe escrevi novamente, pedi-lhe que me dissesse onde estava hospedado. Achei que, em consideração a Isabel, precisava fazer alguma coisa por ele, e pensei que talvez fosse apenas uma questão de timidez – isto é, não achei crível que um rapaz no seu juízo perfeito viesse para Paris sem traje de noite; além do mais, há ali alfaiates passáveis. Convidei-o, portanto, para almoçar, avisando que seria um grupo pequeno e, imagine você, não somente ele ignorou o meu pedido sobre o endereço, mas disse que nunca almoçava! Isto fez com que eu lavasse definitivamente as mãos a seu respeito.

– O que será que anda fazendo?

– Não sei e, para ser franco, tanto se me dá. Acho que é um rapazinho indesejável, e que seria um grande erro da parte de Isabel casar-se com ele. Afinal de contas, se ele levasse vida normal, eu o teria visto no bar do Ritz, ou no Fouquet, ou em qualquer outro lugar.

Vou às vezes a estes lugares elegantes, mas vou também a outros, e aconteceu que passei vários dias em Paris, no princípio do outono daquele ano, a caminho de Marselha, onde pretendia tomar um dos vapores da Messagerie, para Cingapura. Jantei uma noite com alguns amigos em Montparnasse e depois do jantar fomos ao Dôme tomar um copo de cerveja. Dali a pouco meu olhar vadio deu com Larry sentado sozinho a uma mesa de mármore, no terraço repleto de gente. Observava desinteressadamente as pessoas que passeavam para lá e para cá a apreciar a frescura da noite depois de um dia opressivo. Deixei o meu grupo e fui até lá. Seu rosto iluminou-se quando me viu. Dirigiu-me um sorriso amável e convidou-me para sentar, mas respondi que não podia por estar com uns amigos.

– Quis apenas cumprimentá-lo – disse eu.

– O senhor está aqui? – perguntou-me.

– Apenas por alguns dias.

– Quer almoçar comigo amanhã?

– Pensei que você nunca almoçasse. Ele riu baixinho.

– O senhor esteve com Elliott! Em geral não almoço, pois não posso perder tempo; tomo só um copo de leite, com um brioche, mas gostaria que o senhor almoçasse comigo.

– Está certo.

Combinamos encontro no Dôme, no dia seguinte, para um aperitivo; iríamos depois almoçar em qualquer restaurante do boulevard. Voltei para a companhia dos meus amigos. Ficamos sentados, conversando. Quando procurei por Larry, dali a pouco, vi que ele havia saído.


2

No dia seguinte passei uma manhã muito agradável. Fui ao Luxemburgo e ali me demorei durante uma hora, vendo alguns quadros do meu gosto. Depois vaguei pelos jardins, tentando recapturar as memórias da mocidade. Nada mudara. Poderiam ter sido os mesmos estudantes, aqueles que passeavam aos pares pelas alamedas de pedregulho, a discutir os autores que lhes tinham despertado o interesse. Poderiam ter sido as mesmas crianças, a rodar os mesmos arcos, sob a vigilância das mesmas amas. Poderiam ter sido os mesmos velhos, que se aqueciam ao sol e liam o jornal da manhã. Poderiam ter sido as mesmas mulheres maduras, de luto, sentadas nos bancos a discutir o preço dos mantimentos e a insolência das empregadas. Depois fui ao Odeon, examinei os livros novos nas galerias e vi os rapazinhos que, como eu trinta anos antes, procuravam, sob o olhar petulante dos empregados de avental, ler o maior número possível de livros que eles não estavam em condições de comprar. Caminhei em seguida vagarosamente pelas ruas sujas e queridas, até chegar ao Boulevard du Montparnasse e finalmente ao Dôme. Larry estava à minha espera. Tomamos um aperitivo e procuramos depois um restaurante onde pudéssemos comer ao ar livre.

Talvez ele estivesse um pouco mais pálido, e isto fazia com que seus olhos muito escuros, nas órbitas fundas, atraíssem mais ainda atenção; mas continuava igualmente senhor de si, fato curioso em pessoa tão jovem, e tinha o mesmo sorriso franco. Quando encomendou o almoço, notei que falava francês corretamente e com boa pronúncia. Felicitei-o.

– Bom, eu já sabia um pouco de francês – explicou ele. – Tia Louisa tinha uma governanta francesa para Isabel e, quando estávamos em Marvin, ela nos obrigava a praticar o tempo todo.

Perguntei-lhe se estava gostando de Paris.

– Muito.

– Mora em Montparnasse?

– Moro – disse ele depois de um momento de hesitação, que interpretei como indicando má vontade de contar exatamente onde morava.

– Elliott ficou um pouco vexado por você lhe ter dado como endereço somente o American Express.

Larry sorriu, mas não respondeu.

– O que é que você faz o tempo todo?

– Vagabundeio.

– E lê?

– Leio, sim.

– Tem notícias de Isabel?

– De vez em quando. Nenhum de nós dois é muito dado a escrever cartas. Está se divertindo à grande em Chicago. No próximo ano elas vêm para cá, visitar

Elliott.

– Que bom para você!

– Creio que Isabel não conhece Paris. Vai ser divertido mostrar-lhe a cidade.

Larry estava curioso por conhecer detalhes de minha viagem pela China e ouviu com atenção o que lhe contei; mas, quando tentei fazê-lo falar sobre si próprio, fracassei. Mostrou-se tão pouco comunicativo que me vi forçado à conclusão de que me convidara somente pelo prazer da minha companhia. Fiquei contente, mas perplexo. Nem bem tínhamos acabado o café, ele pediu a conta, pagou-a e levantou-se.

– Bom, tenho que ir caminhando – disse.

Separamo-nos. Eu estava na mesma quanto às suas atividades. Não tornei a vê-lo.


3

Quando, mais cedo do que pretendiam, mrs. Bradley e Isabel vieram hospedar-se com Elliott, na primavera, eu não me achava em Paris; para completar, portanto, a narrativa do que sei que sucedeu, vejo-me de novo obrigado a recorrer à imaginação. Mãe e filha desembarcaram em Cherburgo e, com a costumeira gentileza, Elliott foi esperá-las. Passaram pela Alfândega. O trem partiu. Com ar um tanto benevolente, Elliott participou-lhes que tomara para elas uma ótima empregada particular; e quando mrs. Bradley replicou que achava a medida desnecessária, ele falou-lhe com rudeza.

– Não comece a implicar desde o momento da chegada, Louisa. Nenhuma senhora pode ficar bem-vestida sem o auxílio de uma criada particular, e resolvi tomar Antoinette não somente por sua causa e de Isabel, mas pela minha. Ficaria mortificado se vocês não se apresentassem impecavelmente vestidas.

Elliott lançou aos trajes das duas viajantes um olhar desdenhoso e continuou:

– Vocês, naturalmente, vão precisar de vestidos novos. Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que Chanel é a última palavra.

– Sempre tenho procurado Worth – declarou mrs. Bradley. Pela atenção que Elliott lhe deu, foi o mesmo que não ter falado.

– Conversei pessoalmente com Chanel e marquei hora para amanhã, às três. Depois temos que tratar dos chapéus. Quanto a isso, não há dúvida: Reboux.

– Não quero gastar muito, Elliott.

– Sei disso. Estou disposto a pagar por tudo. Quero que vocês me façam honra. Oh! enquanto me lembro, Louisa, arranjei várias reuniões para vocês e disse aos meus amigos franceses que Myron era embaixador, o que naturalmente ele chegaria a ser, se tivesse vivido um pouco mais; isso causa melhor efeito. Não creio que o assunto venha à baila, mas achei preferível preveni-la.

– Você é ridículo, Elliott.

– Não, não sou. Conheço a humanidade. Sei que a viúva de um embaixador tem mais prestígio que a viúva de um ministro.

Quando o trem ia entrando na Gare du Nord, Isabel, que estava à janela, exclamou:

– Lá está Larry.

Nem bem o trem parara, ela pulou para a plataforma e correu ao encontro do rapaz. Larry abraçou-a.

– Como é que ele soube que vocês vinham? – perguntou Elliott, secamente, à irmã.

– Isabel radiografou do navio.

Mrs. Bradley beijou Larry afetuosamente e Elliott estendeu-lhe molemente a mão. Eram dez horas da noite.nhã? – perguntou vivamente Isabel, de rosto corado e olhos cintilantes, com o braço enfiado no do rapaz.

– Eu teria nisso muito prazer, mas Larry me deu a entender que nunca almoça.

– Você almoça amanhã, não é verdade, Larry?

– Almoço – respondeu ele sorrindo.

– Espero então ter o prazer de vê-lo à uma hora. Elliott estendeu-lhe mais uma vez a mão, com evidente intenção de despedi-lo, mas Larry sorriu impudentemente.

– Vou ajudar com a bagagem e lhes arranjarei um táxi.

– Meu carro está esperando e meu criado tomará conta da bagagem – disse Elliott com dignidade.

– Ótimo. Então só nos resta partir. Se houver lugar para mim, irei até a porta de sua casa.

– Sim, venha, Larry – disse Isabel.

Desceram juntos a plataforma, seguidos por mrs. Bradley e Elliott. No rosto de Elliott havia uma expressão de gélida censura.

– Quelles manières – murmurou de si para si, pois em certas circunstâncias achava que podia exprimir seus sentimentos com mais energia em francês.

Não sendo madrugador, no dia seguinte às onze horas, quando acabou de se vestir, Elliott mandou um bilhete à irmã, por intermédio de seu criado Joseph e da criada dela, Antoinette, convidando-a a vir à biblioteca para conversarem um pouco. Quando mrs. Bradley apareceu, ele fechou cautelosamente a porta e, enfiando um cigarro numa imensa piteira de ágata, acendeu-o e sentou-se.

– Devo compreender que Isabel e Larry continuam noivos? – perguntou.

– Sim, pelo que me consta.

– Infelizmente não tenho muito boas notícias a dar-lhe sobre o rapaz. – Elliott contou-lhe como estivera disposto a apresentar Larry na sociedade e os planos que fizera para instalá-lo condignamente. – Eu estava mesmo de olho num rez-de-chaussée, que era exatamente o que lhe convinha. Pertence ao jovem marquês de Rethel, que queria sublocá-lo por ter sido nomeado embaixador em Madri.

Mas Larry recusara seus convites de uma maneira que indicava claramente que não queria auxílio.

– Para que vem uma pessoa a Paris, quando não pretende aproveitar-se das vantagens que esta cidade oferece, é coisa que está acima da minha compreensão. Não sei de que maneira ele passa o tempo; parece-me que não conhece ninguém. Sabe onde ele mora?

– O único endereço que nos deu foi o American Express.

– Tal um viajante de casa comercial, ou mestre-escola em férias! Não me admiraria se ele estivesse vivendo com alguma prostitutazinha num estúdio de Montmartre.

– Oh! Elliott!

– Que outra razão pode haver para o mistério em que envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe? envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe?

– Larry não é desse tipo. E, a noite passada, você não teve a impressão de que está tão apaixonado por Isabel como antes? Ele não poderia ser assim tão dissimulado.

Elliott encolheu os ombros, como a dizer que não há limites para a falsidade masculina.

– O que me conta de Gray Maturin? Ainda está na arena?

– Ele se casaria amanhã com Isabel se ela o aceitasse. Mrs. Bradley contou-lhe então o motivo que as trouxera à Europa mais cedo do que pretendiam. Não andava passando bem ultimamente, e os médicos lhe haviam dito que estava sofrendo de diabetes. Não era caso grave e, com dieta e doses módicas de insulina, não havia motivo para que não vivesse ainda por muitos anos; mas o fato de saber que sofria de uma moléstia incurável deixara-a ansiosa por ver a filha instalada na vida. As duas tinham discutido o assunto. Isabel era sensata; concordou que, se Larry não quisesse voltar para Chicago ao cabo dos dois anos combinados, e arranjar emprego, então a única coisa a fazer seria romper o noivado. Mas mrs. Bradley era de opinião que sua dignidade sofreria, se esperassem até o fim do prazo marcado, vindo depois buscá-lo como um fugitivo da justiça. Achava que Isabel se colocaria numa posição humilhante. No entanto era muito natural que quisessem passar o verão na Europa, aonde Isabel não vinha desde criança. Depois de uma visita a Paris, poderiam ir para uma estação de águas indicada para a moléstia de mrs. Bradley; em seguida, por algum tempo, para o Tirol austríaco; de lá iriam viajar calmamente pela Itália. Mrs. Bradley tinha intenção de convidar Larry a acompanhá-las, para que ele e Isabel pudessem verificar se a longa separação não lhes alterara os sentimentos. Depois de certo tempo ficaria claro se, tendo-se divertido à vontade, Larry estava ou não disposto a aceitar sua parte de responsabilidade na vida.

– Henry Maturin ofendeu-se por Larry ter recusado a colocação que ele lhe ofereceu, mas Gray conseguiu acalmá-lo e Larry pode começar a trabalhar assim que voltar para Chicago.

– Gray é um bom rapaz.

– Se é! – Mrs. Bradley suspirou e acrescentou: – Tenho certeza que faria Isabel feliz.

Elliott falou então das festas que organizara em honra delas. Ia dar um grande almoço no dia seguinte, e no fim da semana um grande jantar. Pretendia levá-las a uma recepção na casa dos Château-Gaillard e conseguira convites para um baile que os Rothschild iam dar.

– Você vai convidar Larry, não vai?

– Ele me disse que não tem traje a rigor – fungou

Elliott.

– Bom, convide-o assim mesmo. Afinal de contas ele é um bom rapaz e não há vantagem em boicotá-lo. Só serviria para aumentar a teima de Isabel.

– Claro que o convidarei, se é este o seu desejo.

À hora marcada, Larry compareceu ao almoço; e Elliott, que tinha maneiras impecáveis, procurou propositalmente ser amável com ele. Não foi difícil, pois Larry estava tão alegre e animado que somente um homem muito mais maldoso do que Elliott poderia deixar de ficar encantado. A conversa girou sobre Chicago e os amigos comuns que ali tinham, de modo que a Elliott bastava mostrar-se cortês e fingir interessar-se pela vida de pessoas que ele considerava sem a mínima importância social. Não lhe causava tédio escutar; pelo contrário, achava enternecedor ouvi-los comentar o noivado daquele jovem par, o casamento de outro jovem par e o divórcio de um terceiro jovem par. Quem jamais ouvira falar dessa gente? Agora: ele sabia que a linda marquesa de Clinchant tentara suicidar-se porque seu amante, o príncipe de Colombey, a abandonara para casar-se com a filha de um milionário sul-americano. Isto era fato que se comentasse. Observando Larry, viu-se obrigado a reconhecer que havia nele qualquer coisa de singularmente atraente; com seus olhos fundos, muito escuros, maçãs salientes, tez pálida e boca expressiva, ele lembrava a Elliott um retrato por Botticelli, e ocorreu-lhe que, se o rapazinho se vestisse à moda da época, ficaria extraordinariamente romântico. Lembrou-se do seu plano de lhe arranjar um “caso” com uma francesa distinta, e sorriu matreiramente ao refletir que no sábado esperava para jantar Marie Louise de Florimond, que combinava irrepreensíveis relações sociais com uma notória imoralidade. Já atingira os quarenta anos, mas aparentava dez anos menos; tinha a delicada beleza de uma de suas antepassadas que fora pintada por Nattier, quadro que, graças ao próprio Elliott, fazia agora parte de uma das grandes coleções americanas; e sua voracidade sexual era insaciável. Elliott resolveu colocar Larry a seu lado. Sabia que ela não perderia tempo em patentear-lhe os seus desejos. Já convidara um jovem attaché da embaixada britânica com quem, assim o julgava ele, provavelmente Isabel ia simpatizar. Isabel era muito bonita e, como o rapaz era inglês, e rico, pouco importava que ela não tivesse fortuna. Abrandado pelo excelente Montrachet, com que haviam iniciado o almoço, e pelo ótimo Bordeaux que veio em seguida, Elliott refletiu com calma e satisfação sobre as possibilidades que se apresentavam a seu espírito. Se as coisas se resolvessem como ele achava provável, a querida Louisa não mais teria motivo de inquietação. No íntimo ela sempre o criticara um pouco; coitadinha, era tão provinciana!... mas Elliott lhe queria bem. Seria um prazer arranjar tudo para ela, valendo-se da sua experiência da vida.

Para não perder tempo, Elliott decidira levar as senhoras para escolherem os vestidos logo depois do almoço, de seu forte ele insinuou a Larry que sua companhia era agora dispensável – mas ao mesmo tempo insistiu amavelmente para que o rapaz comparecesse às duas reuniões que estava organizando. Tanta diplomacia não teria sido necessária, pois Larry aceitou alegremente os dois convites.

Mas o plano de Elliott fracassou. Ele ficou aliviado quando Larry compareceu ao jantar num dinner-jacket muito apresentável, pois receara vê-lo surgir metido no mesmo terno de casimira azul que usara ao almoço; e depois do jantar, chamando Marie Louise de Florimond à parte, perguntou-lhe que tal achava o seu jovem amigo americano.

– Ele tem olhos bonitos e bons dentes.

– Só isto? Coloquei-o perto de você porque achei que era exatamente o seu bocado.

Madame de Florimond olhou-o desconfiada.

– Ele me disse que está noivo de sua sobrinha.

– Voyons, ma chère, o fato de um homem pertencer a outra mulher nunca foi obstáculo para você se apossar dele, se possível.

– É isto que você está querendo? Pois bem, não estou disposta a fazer o seu trabalhinho sujo por você, meu pobre Elliott.

Elliott deu uma risadinha.

– Presumo que isto significa que você entrou com o seu joguinho e viu que não adiantava.

– Gosto de você, Elliott, porque sua moral não é mais elevada que a de uma cafetina. Você não quer que o rapaz se case com sua sobrinha. Por quê? Ele é bem-educado e muito simpático. Mas é de fato inocente demais. Creio que nem de longe suspeitou das minhas intenções.

– Você devia ter sido mais explícita, cara amiga.

– Tenho suficiente experiência para saber quando estou perdendo meu tempo. A verdade é que ele só tem olhos para a sua Isabelzinha e, cá entre nós, a pequena tem vinte anos de vantagem sobre mim. E é um amor, ainda por cima.

– Você gosta do vestido dela? Eu mesmo o escolhi.

– É bonito e apropriado. Mas naturalmente ela não tem chie.

Elliott tomou aquilo como um insulto pessoal, e não ia deixar que madame de Florimond escapasse sem uma alfinetada. Sorriu alegremente e disse:

– Para ter o seu chie, cara amiga, uma pessoa precisa ter atingido a sua completa maturidade.

Madame de Florimond desferiu não um golpe de florete, e sim uma cacetada. Sua réplica fez ferver o sangue virginiano de Elliott.

– Mas garanto que no seu belo país de bandidos (votre heau pays d’apaches) ninguém notará a falta de coisa tão sutil e inimitável.

Mas, se madame de Florimond criticou, os outros amigos de Elliott mostraram-se encantados com Isabel e cia e vitalidade; gostaram da pitoresca aparência de Larry, de suas maneiras finas e espírito calmo, irônico. Ambos tinham a vantagem de falar correntemente o francês. Quanto a mrs. Bradley, depois de ter vivido vários anos em círculos diplomáticos, falava a língua com bastante correção, mas com um descarado sotaque americano. Elliott procurou distraí-las com incomparável prodigalidade.

Satisfeita com seus vestidos e chapéus novos, encantada com todos aqueles folguedos que Elliott lhe proporcionava, e feliz na companhia de Larry, Isabel achou que nunca se divertira tanto na vida.


4

Para Elliott, o café da manhã era refeição que só podia ser compartilhada com estranhos, e assim mesmo quando não havia outro remédio; em vista disso, contra a vontade de mrs. Bradley e com satisfação de Isabel, as duas tomavam aquela refeição no quarto. Mas às vezes, ao acordar, Isabel dizia à imponente Antoinette que levasse o seu café au lait para o quarto de mrs. Bradley, para poder conversar com a mãe. Na movimentada vida que levava, era esse o único momento em que podia ficar a sós com ela. Certa manhã, um mês depois de estarem em Paris, quando Isabel acabou de narrar os acontecimentos da noite anterior, que passara a visitar cabarés em companhia de Larry e de alguns amigos, mrs. Bradley aventurou a pergunta que desejava fazer desde o dia da chegada.

– Quando é que Larry pretende voltar para Chicago?

– Não sei. Ainda não falou nisso.

– Você não lhe perguntou?

– Não.

– Está com medo?

– Não; claro que não.

Deitada na chaise-longue, metida num roupão elegante com que Elliott fizera questão de presenteá-la, mrs. Bradley lustrava as unhas.

– Sobre que falam vocês durante todo tempo em que estão juntos?

– Não falamos o tempo todo. É agradável estarmos juntos. A senhora sabe, Larry sempre foi mais ou menos calado. Creio que, quando conversamos, sou eu que falo quase todo tempo.

– O que é que ele andou fazendo?

– Francamente não sei. Mas não creio que tenha sido grande coisa. Provavelmente esteve se divertindo.

– E onde está morando?

– Também não sei.

– Ele é muito reservado, não é?

Isabel acendeu um cigarro e, ao soltar fumaça pelo nariz, olhou friamente a mãe.

– O que é que você quer exatamente dizer com isto, mamãe?

– Seu tio Elliott acha que ele está vivendo com alguma mulher, num apartamento.

Isabel desatou a rir.

– Você não acredita nisto, acredita?

– Para ser franca, não. – Mrs. Bradley examinou as unhas com ar pensativo. – Você nunca lhe fala sobre Chicago?

– Sim, muitas vezes.

– Ele não deu nenhuma indicação de que pretende voltar?

– Não posso dizer que tenha dado.

– Em outubro vai fazer dois anos que ele se ausentou.

– Sei disso.

– Bom, isto é com você, meu bem; faça o que achar direito. Mas as coisas não se tornam mais fáceis pelo fato de serem adiadas. – Olhou de relance para a filha, mas os olhos de Isabel não encontraram os seus. mrs. Bradley sorriu afetuosamente. – Se você não quiser ficar atrasada para o almoço, é melhor ir tomar o seu banho.

– Vou almoçar com Larry, num restaurante do Quartier Latin.

– Divirtam-se.

Uma hora mais tarde, Larry veio buscá-la. Tomaram um táxi até Pont St. Michel e andaram pelo movimentado boulevard, até chegarem a um café cuja aparência lhes agradou. Sentaram-se no terraço e encomendaram dois Dubonnets. Depois tomaram outro táxi e foram a um restaurante. Isabel tinha bom apetite e apreciou as coisas gostosas que Larry encomendou para ela. Sentia prazer em observar as pessoas que quase roçavam neles, pois o restaurante estava repleto, e achava graça no visível prazer com que comiam; mas, acima de tudo, estava a satisfação de sentar-se a uma mesinha a sós com Larry. Agradava-lhe a expressão divertida do olhar dele, enquanto ela tagarelava alegremente. Que maravilha sentir-se tão à vontade com Larry! Mas, no subconsciente, sentia uma vaga inquietação, pois, embora ele também parecesse perfeitamente à vontade, Isabel percebia que era mais com o ambiente do que com ela. Ficara ligeiramente perturbada com o que a mãe lhe dissera e, embora parecesse conversar com despreocupação, observava todas as expressões de Larry. Ele não era o mesmo de quando saíra de Chicago, mas Isabel não podia dizer onde estava a diferença. Aparentemente era o mesmo Larry de quem ela se lembrava, igualmente moço, franco; mas sua expressão mudara. Não que estivesse mais sério, pois seu rosto, em repouso, sempre fora grave; tinha agora uma calma que Isabel nunca vira nele, como se tivesse resolvido alguma coisa consigo mesmo, sentindo uma tranquilidade que antes desconhecera.

Terminado o almoço, Larry propôs uma volta pelo

Luxemburgo. – Não; não quero ver quadros.

– Está certo. Vamos nos sentar nos jardins, então.

– Não; não é também isto que eu quero. Quero ver onde você mora.

– Não há nada para ver. Moro num quartinho sujo, num hotel.

– O tio Elliott diz que você tem um apartamento e está vivendo pecaminosamente com uma modelo.

– Pois bem, venha então verificar – propôs ele rindo.

– É a um pulo daqui. Podemos ir a pé.

Levou-a por ruas estreitas e tortuosas, escuras apesar da faixa de céu azul que aparecia entre as casas altas; pouco depois parou diante de um hotelzinho de fachada pretensiosa e disse:

– Chegamos.

Isabel entrou com ele num hall estreito. Viu, a um lado, uma escrivaninha a que estava sentado, lendo um jornal, um homem em mangas de camisa, com um colete de listas fininhas em branco e amarelo, e um avental sujo. Larry pediu sua chave e o homem deu-lha, tirando-a de uma prateleira logo atrás e lançando a Isabel um olhar indagador, que imediatamente se transformou num sorrisinho sabido. Estava claro que achava que ela não ia ao quarto de Larry para fins honestos.

Subiram dois lances de uma escada coberta por surrada passadeira vermelha, e Larry abriu sua porta. Isabel entrou num quartinho de duas janelas que davam para uma cinzenta casa de apartamentos, em cujo andar térreo funcionava uma papelaria. No quarto, uma cama de solteiro com criado-mudo ao lado, um pesado guarda-roupa de espelho grande, uma poltrona estofada mas de espaldar reto e, entre duas janelas, uma mesa onde se viam uma máquina de escrever, papéis e alguns livros. Na lareira estavam empilhadas algumas brochuras.

– Sente-se na poltrona. Não é muito confortável, mas é o melhor que lhe posso oferecer.

Larry puxou outra cadeira e sentou-se.

– É aqui que você vive? – perguntou Isabel.

Ele riu baixinho da expressão do rosto dela.

– É. Moro aqui desde que vim para Paris.

– Mas por quê?

– É cômodo. Fica perto da Bibliothèque Nationale e da Sorbonne. – Larry apontou para uma porta que ela não notara. – Tem banheiro. Tomo o café da manhã aqui e geralmente janto naquele restaurante onde almoçamos hoje.

– É horrivelmente sórdido.

– Oh! não; está muito bom. Não desejo mais que isso.

– Mas, que tipo de gente mora aqui?

– Oh! não sei. No sótão, alguns estudantes. Dois ou três solteirões, funcionários públicos; uma atriz do Odeon, aposentada; no único outro quarto com banheiro, a amante de um sujeito que vem visitá-la de quinze em quinze dias, às quintas-feiras; e mais alguns forasteiros. É um lugar muito quieto e familiar.

Isabel ficou um tanto desconcertada e, vendo que Larry disso se apercebera e estava achando graça, quase se melindrou.

– Que livro é aquele enorme ali na mesa? – perguntou ela.

– Aquele? Oh! é o meu dicionário grego.

– Seu o quê? – exclamou Isabel.

– Calma. Ele não tem garras.

– Você está estudando grego?

– Estou.

– Por quê?

– Porque me deu vontade.

Larry fitava-a com um sorriso nos olhos e Isabel correspondeu a esse sorriso.

– Você não acha que poderia contar-me o que andou fazendo durante todo esse tempo em que esteve em Paris?

– Tenho lido muito. Oito ou dez horas por dia. Tenho ido a conferências na Sorbonne. Creio que li tudo que há de importante na literatura francesa, e posso ler latim, prosa pelo menos, com a mesma facilidade com que leio francês. Claro que grego é mais difícil. Mas tenho um ótimo professor. Até você chegar eu ia três noites por semana à casa dele.

– E qual a finalidade de tudo isto?

– Adquirir cultura – respondeu ele sorrindo.

– Não me parece muito prático.

– Talvez não seja e, por outro lado, talvez seja. Mas é divertidíssimo. Você não pode imaginar como é emocionante ler a Odisseia no original. A gente tem a impressão de que bastaria ficar na ponta dos pés e estender as mãos para tocar as estrelas.

Larry levantou-se, como que impulsionado pela excitação que dele se apoderara, e pôs-se a andar de um lado ao outro do quartinho.

– Há um ou dois meses estive lendo Spinoza. Creio que não o entendo ainda muito bem, mas que delícia!... É como a gente descer do seu próprio avião num grande planalto, nas montanhas. Solidão e ar tão puro que intoxica como um vinho e faz a gente sentir-se como um rei.

– Quando é que você pretende voltar para Chicago?

– Chicago? Não sei. Não pensei nisso.

– Você disse que, se ao cabo de dois anos não alcançasse o que buscava, daria a experiência por mal-sucedida.

– Não me seria possível voltar agora. Estou no limiar. Vejo vastas planícies do espírito à minha frente, acenando-me, e estou ansioso por explorá-las.

– O que é que você espera encontrar ali?

– Respostas às minhas perguntas. – Larry relanceou para Isabel um olhar quase brincalhão, de modo que, se o não conhecesse tão bem, ela poderia pensar que ele estava troçando. – Quero ter certeza da existência ou da não existência de Deus. Quero conhecer a origem do mal. Quero saber se tenho uma alma imortal, ou se a morte põe fim a tudo.

Isabel ficou de respiração suspensa. Não se sentia à vontade quando Larry se exprimia dessa forma, e deu graças a Deus por ele ter falado tão despreocupadamente, no habitual tom de conversa, que lhe permitiu dominar o constrangimento.

– Mas, Larry, há milhares de anos a humanidade está fazendo essas perguntas – replicou ela sorrindo. – Se tivesse resposta, certamente há muito já teriam sido respondidas.

Larry deu uma risadinha.

– Não ria como se eu tivesse dito alguma tolice – replicou secamente Isabel.

– Pelo contrário, acho muito bem observado. Mas, por outro lado, a gente pode argumentar que o fato de os homens fazerem essas perguntas há milhares de anos prova que eles não podem deixar de perguntar, e continuarão perguntando. Além do mais, não é verdade que ninguém encontrou resposta. Existem mais respostas do que perguntas, e a muitas pessoas elas satisfizeram plenamente. O velho Ruysbroek, por exemplo.

– Quem é ele?

– Oh! apenas um sujeito que não conheci no colégio – respondeu Larry petulantemente.

Isabel não entendeu o que ele quis dizer, mas não insistiu.

– Acho isto muito infantil. São coisas que excitam a imaginação dos segundanistas, mas de que eles se esquecem por completo quando saem do colégio. Têm que ganhar a vida.

– Não os censuro. Mas, você vê, tenho a vantagem de possuir o suficiente para viver. Do contrário, eu teria que fazer como todo mundo e procurar ganhar dinheiro.

– Mas você não dá valor ao dinheiro?

– Nenhum – respondeu ele sorrindo.

– Quanto tempo acha que isso vai levar?

– Não posso saber. Cinco anos. Dez.

– E depois? Que pretende fazer com toda essa sabedoria?

– Se eu algum dia adquirir sabedoria, creio que serei então bastante sábio para saber o que fazer com ela.

Isabel apertou violentamente as mãos e inclinou-se para a frente.

– Você está tão errado, Larry. Você é americano. Seu lugar não é aqui, é na América.

– Voltarei quando estiver pronto.

– Mas você está perdendo tanta coisa! Como é que consegue ficar aqui nesta pasmaceira, quando estamos vivendo a mais maravilhosa aventura que o mundo jamais conheceu? A Europa está acabada. Somos a maior, a mais poderosa nação do mundo. Caminhamos aos saltos. Nada nos falta. É seu dever participar do progresso da sua pátria. Você já se esqueceu, você não sabe como é empolgante a vida na América hoje em dia. Tem certeza de que não está agindo assim por não ter coragem de enfrentar o trabalho que aguarda todo americano? Oh! Sei que de certo modo você está trabalhando, mas não será isto apenas uma maneira de fugir às suas responsabilidades? Será alguma coisa mais do que uma espécie de ociosidade laboriosa? Que fim levaria a América se todo mundo se esquivasse como você?

– Você é muito severa, meu bem – replicou ele sorrindo. – A resposta a isto é que nem todo mundo sente o que eu sinto. Felizmente para eles, talvez, a maioria dos homens está pronta a seguir o curso normal; você se esquece de que tenho tanta sede de saber como... Gray, por exemplo, tem de ganhar rios e rios de dinheiro. Serei, por acaso, traidor à minha pátria, só pelo fato de querer passar alguns anos a educar-me? É possível que, ao terminar, eu possa dar à humanidade alguma coisa que ela tenha prazer em receber. Não é certo, naturalmente; mas, se eu fracassar, estarei na mesma posição do homem que entra num negócio e não consegue ir adiante.

– E quanto a mim? Não tenho nenhum valor para você?

– Muitíssimo. Quero que você se case comigo.

– Quando? Daqui a dez anos?

– Não. Agora. O mais depressa possível.

– De que jeito? Mamãe não está em condições de me dar um níquel. Além do mais, mesmo que pudesse, ela não o faria. Acharia errado ajudá-lo a viver na ociosidade.

– Não quero nada de sua mãe – replicou Larry. – Tenho três mil dólares anuais. Isto é mais do que suficiente aqui em Paris. Poderíamos ter um apartamentozinho e uma bonne à tout faire. Seria tão divertido, querida!

– Mas, Larry, ninguém pode viver com três mil dólares anuais.

– Claro que pode. Inúmeras pessoas vivem com muito menos.

– Mas eu não quero viver assim. Não há razão para isso.

– Tenho vivido com a metade.

– Mas como!

Ela olhou para o sujo quartinho com um estremecimento de repulsa.

– Isto significa que tenho algumas economias. Poderíamos ir a Capri na lua de mel e à Grécia no outono. Tenho uma vontade louca de ir até lá. Não se lembra como falávamos em viajar juntos pelo mundo?

– Claro que desejo viajar. Mas não dessa forma. Não quero ir de segunda classe, nos vapores, nem me hospedar em hotéis de terceira categoria, sem banheiro, nem comer em restaurantes baratos.

– Em outubro passado viajei assim por toda a Itália. Diverti-me imensamente. Poderíamos percorrer o mundo inteiro com três mil dólares por ano.

– Mas eu quero ter filhos, Larry.

– Está certo. Eles irão conosco.

– Você é tão tolo! – disse ela rindo. – Sabe quanto custa ter um filho? Violet Tomlinson teve um, no ano passado, e fez tudo com a maior economia possível, mas mesmo assim gastou mil duzentos e cinquenta dólares. E quanto pensa você que ganha uma ama? – Isabel ia-se animando, à medida que as ideias lhe ocorriam. – Você é muito pouco prático. Não sabe o que me está pedindo. Sou moça, quero divertir-me. Quero fazer o que os outros fazem. Quero ir a festas, quero ir a bailes, quero jogar golfe e andar a cavalo. Quero vestir-me bem. Você é capaz de imaginar o que significa para uma mulher não se sentir tão bem-vestida como as outras do seu grupo? Compreende o que significa, Larry, ter que comprar os vestidos usados das amigas que se fartaram deles, e ficar agradecida quando, por piedade, alguém se lembra de lhe fazer presente de um novo? Eu não poderia nem mesmo ir a um cabeleireiro decente! Não quero andar de ônibus pelas ruas; quero ter o meu carro particular. E que pensa você que eu iria fazer o dia inteiro, enquanto você estivesse lendo na biblioteca? Andar pelas ruas namorando as vitrinas, ou sentar-me no jardim do Luxemburgo a vigiar meus filhos para que nada lhes acontecesse? Não poderíamos ter amigos...

– Oh! Isabel – interrompeu ele.

– Não do tipo a que estou habituada. Oh! sim, os amigos do tio Elliott de vez em quando nos convidariam em consideração a ele, mas não poderíamos aceitar porque eu não teria vestido, nem estaríamos em condição de lhes retribuir as gentilezas. Não quero ter relações com uma porção de gente malvestida e suja; eu não teria nada a dizer-lhes, nem eles a mim. Quero viver, Larry. – Subitamente ela percebeu a expressão dos olhos dele, afetuosos como sempre, quando pousados nela, mas levemente irônicos. – Você acha que sou uma tola, não é verdade? Acha que estou sendo fútil e maldosa.

– Não, não acho. É muito natural que diga o que está dizendo.

Larry estava de pé, de costas para a lareira. Isabel ergueu-se e aproximou-se; viram-se frente a frente.

– Larry, se você não possuísse um níquel, mas tivesse um emprego que lhe rendesse três mil dólares por ano, eu não hesitaria em me casar com você. Eu cozinharia, arrumaria as camas, pouco me importaria com vestidos, faria qualquer sacrifício e acharia tudo divertidíssimo, pois estaria certa de que seria apenas uma questão de tempo, até você acabar vencendo. Mas isso que você quer significa viver miseravelmente, sordidamente, a vida inteira, sem uma esperança pela frente. Eu seria uma escrava até o dia da minha morte. E para quê? Para que você pudesse passar anos procurando respostas a perguntas que você mesmo considera insolúveis. Está errado. Um homem tem que trabalhar. É para isso que está no mundo. É assim que ele contribui para o bem-estar da comunidade.

– Em resumo, é meu dever instalar-me em Chicago e entrar para o escritório de Henry Maturin. Você acha que, pelo fato de convencer meus amigos a adquirirem títulos em que Henry Maturin está interessado, eu contribuiria grandemente para o bem-estar da comunidade?

– É preciso que haja corretores no mundo, e é uma maneira muito decente e honrosa de ganhar a vida.

– Você pintou um quadro muito negro da vida em Paris com uma renda módica. Sabe, não é exatamente assim. Uma moça pode vestir-se muito bem sem procurar Chanel. Nem todas as pessoas interessantes vivem na vizinhança do Arc de Triomphe e da Avenue Foch. Para falar a verdade, são mesmo poucas, porque em geral as pessoas interessantes não têm grande fortuna. Conheço muita gente aqui, pintores, escritores e estudantes, franceses, americanos e de outras nacionalidades, que considero muito mais interessante do que as definhadas marquesas e as narigudas duquesas de Elliott. Você tem uma inteligência viva e bastante senso de humor. Garanto que acharia divertido vê-los trocar ideias à mesa, mesmo que o vinho fosse somente vin ordinaire e o jantar não fosse servido por um mordomo e dois lacaios.

– Não seja tolo, Larry. Claro que acharia divertido. Você sabe que não sou esnobe. Teria prazer em conhecer gente interessante.

– Sim, num vestido de Chanel. Pensa que eles não perceberiam que você considerava aquilo como uma espécie de aventura? Eles não se sentiriam à vontade, você tampouco; e você não tiraria nenhum proveito, a não ser o de poder depois contar a Emily de Montadour e Gracie de Château-Gaillard como achava divertido ficar conhecendo uma porção de boêmios excêntricos no Quartier Latin.

Isabel encolheu levemente os ombros.

– Talvez você tenha razão. Eles não são do tipo de gente com quem estou habituada a conviver. Não são do tipo de gente com quem eu possa ter afinidade.

– Como ficamos, então?

– Exatamente onde começamos. Moro em Chicago desde que me entendo por gente. Ali estão os meus amigos, todos os meus interesses. Ali me sinto em casa. É a minha terra, Larry, como é também a sua. Mamãe está doente e não se restabelecerá. Mesmo que eu quisesse, não poderia deixá-la.

– Isto significa que, a não ser que eu esteja disposto a voltar para Chicago, você não se casará comigo?

Isabel hesitou. Amava Larry. Queria casar-se com ele. Desejava-o com toda a força dos seus sentidos e sabia-se desejada por ele. Não achava possível que, chegado o momento decisivo, ele não fraquejasse. Teve medo, mas precisava arriscar.

– Sim, Larry, significa exatamente isso.

Ele riscou um fósforo na lareira, um daqueles antigos fósforos franceses, de enxofre, que nos enchem as narinas de um odor acre, e acendeu o cachimbo. Depois, passando por Isabel, foi postar-se a uma das janelas e ficou olhando para fora. Guardou silêncio pelo que pareceu um espaço de tempo interminável. Isabel continuou de pé, no mesmo lugar onde estivera de frente para ele, e olhou para o espelho da lareira, mas com olhos que nada viam. Seu coração batia loucamente e ela estava morta de apreensão. Finalmente Larry voltou-se.

– Eu gostaria de poder fazê-la compreender como a vida que lhe ofereço é mais cheia do que qualquer outra que você possa ter imaginado. Gostaria que você pudesse experiência. É ilimitada. E tão feliz! Só uma coisa se lhe compara: quando se está sozinho num avião, alto, bem alto, circundado apenas pelo infinito. Aquela amplidão é intoxicante. A gente experimenta tão intensa sensação de júbilo que não a trocaria por todas as riquezas e glórias deste mundo. Há poucos dias estive lendo Descartes. Que desembaraço, que graça, que lucidez. Céus!

Isabel interrompeu-o em tom de desespero:

– Mas, Larry, não vê que me está pedindo uma coisa para a qual não fui feita, pela qual não me interesso, e não me quero interessar? Quantas vezes terei que repetir que sou apenas uma moça medíocre, normal, que tenho vinte anos, que daqui a dez estarei velha, que quero divertir-me enquanto posso? Oh! Larry, gosto tanto, tanto, de você! Isso é uma fantasia; não o conduzirá a parte alguma. No seu próprio interesse, imploro-lhe que desista. Seja homem, Larry, e cumpra o seu dever de homem. Você está perdendo anos preciosos, de que outros estão tirando o máximo proveito. Larry, se você tem mesmo amor por mim, não me trocará por um sonho. Você já se divertiu bastante. Volte conosco para a América.

– Não posso, querida. Seria uma verdadeira morte para mim. Seria atraiçoar minha alma.

– Oh! Larry, por que fala dessa forma? É assim que se exprimem as mulheres histéricas, metidas a intelectuais. Que significa? Nada. Nada. Nada.

– Significa exatamente o que sinto – respondeu ele

– Como é que você pode brincar? Não vê que isto é muito sério? Chegamos à encruzilhada, e o que agora fizermos vai afetar toda a nossa vida.

– Sei disso. Creia-me, estou falando sério. Ela suspirou.

– Se você não quer ser razoável, então não há mais nada a dizer.

– Mas não acho que seja razoável. Acho que você só esteve dizendo disparates.

– Eu? – exclamou Isabel. Se não se sentisse tão infeliz, ela teria rido. – Meu pobre Larry, você está doido varrido.

Lentamente ela tirou do dedo o anel de noivado, colocou-o na palma da mão e ficou a contemplá-lo. Era um rubi quadrado, incrustado num fino aro de platina e Isabel sempre o apreciara.

– Se você gostasse de mim, não me faria sofrer tanto.

– Gosto de você. Infelizmente, às vezes a gente não pode fazer o que acha direito sem causar sofrimento a alguém.

Ela estendeu a mão onde estava o rubi e obrigou-se a sorrir.

– Aqui está, Larry.

– De nada me serve. Não quer guardá-lo como lembrança da nossa amizade? Você pode usá-lo no dedinho. Isto não altera a nossa amizade, não é mesmo?

– Sempre hei de gostar de você, Larry.

– Guarde-o, então, que me dará prazer.

Ela hesitou, depois enfiou o anel no dedo da mão direita.

– É grande demais.

– Você pode mandar diminuí-lo. Vamos até o bar do

Ritz, tomar um drinque.

– Está certo.

Isabel admirou-se de tudo ter se passado tão simplesmente. Ela não chorara. Nada parecia ter mudado; só que agora já não ia casar-se com Larry. Mal podia acreditar que estava tudo acabado. Ficou um tanto mortificada pelo fato de não ter havido uma violentíssima cena. Tinham resolvido o caso quase tão friamente como se estivessem a discutir a escolha de uma casa de aluguel. Ela se sentia como que lesada, mas ao mesmo tempo experimentou uma ligeira satisfação por terem se comportado de maneira tão civilizada. Daria muito para conhecer exatamente os sentimentos de Larry no momento. Mas isso era sempre difícil de saber; o rosto suave, os olhos escuros eram uma máscara que mesmo Isabel, que o conhecia há tantos anos, jamais poderia penetrar.

Ao entrar ela tirara o chapéu e o pusera sobre a cama; agora, em frente ao espelho, colocou-o de novo e, arranjando o cabelo, perguntou:

– Apenas por curiosidade: você queria desmanchar o nosso noivado?

– Não.

– Pensei que talvez fosse um alívio para você. – Como Larry não respondesse, ela virou-se com um sorriso alegre e acrescentou: – Estou pronta.

Ao sair, Larry trancou o quarto. Quando entregou a chave ao homem da portaria, este os envolveu num olhar de insolente cumplicidade. Isabel não pôde deixar de perceber que ideia o homem fazia da ida deles ao quarto.

– Não creio que aquele sujeito tenha muita fé na minha virgindade – disse ela.

Foram de táxi até o Ritz e ali tomaram um drinque. Falaram de coisas triviais, aparentemente sem constrangimento, como dois velhos amigos que se veem todos os dias. Embora Larry fosse calado por natureza, Isabel era tagarela, com amplo estoque de conversa-fiada, e estava decidida a não permitir que entre eles se fizesse um silêncio que seria depois difícil de quebrar. Não queria que Larry pensasse que lhe guardava ressentimento, e o orgulho obrigava-a a agir de forma a não deixá-lo suspeitar que estava magoada e infeliz. Dali a pouco sugeriu que Larry a levasse até em casa.

Quando chegaram à porta, Isabel disse alegremente:

– Não se esqueça que você vem almoçar conosco amanhã.

– Não há perigo!

Ela apresentou-lhe a face para ser beijada e passou pela porte-cochère.


5

Ao entrar na sala de visitas, Isabel viu que havia ali algumas pessoas para o chá. Lá estavam duas americanas que moravam em Paris, muito bem-vestidas, com colares de pérolas em volta do pescoço, braceletes de brilhantes nos pulsos e custosos anéis nos dedos. Embora o cabelo de uma fosse tinto de um negro carregado, e o da outra de um dourado artificial, ambas eram extraordinariamente semelhantes. Tinham as mesmas pestanas muito pintadas, os mesmos lábios rubros, as mesmas faces carregadas de carmim, a mesma delgada silhueta, mantida à custa de incríveis sacrifícios, as mesmas feições nítidas, agudas, o mesmo olhar faminto e inquieto; e ninguém podia deixar de perceber que sua vida era uma luta desesperada pela conservação de encantos que atingiam o ocaso. Falavam sobre futilidades, numa voz alta, metálica, sem uma pausa, como se temessem que, se ficassem por um momento silenciosas, a máquina enguiçasse, e o monumento artificial de que era símbolo se esfacelasse por completo. Lá estava um secretário da embaixada americana, suave, silencioso, pois não o deixavam dizer uma palavra, e homem muito fino; e também um trigueiro principezinho romeno, servil e todo cheio de mesuras, com vivos olhinhos pretos e escuro rosto barbeado, e que a cada momento pulava para oferecer uma xícara de chá, passar um prato de bolinhos ou acender um cigarro, e que cinicamente fazia às pessoas presentes os mais exagerados e vulgares elogios. Estava pagando pelos jantares que recebera das pessoas a quem assim adulava, e por todos os jantares a que esperava ser convidado.

Sentada a uma mesinha de chá e, para ser agradável a Elliott, vestida com maior luxo do que achava apropriado para a ocasião, mrs. Bradley cumpria os deveres de dona de casa com sua habitual, se bem que fria, gentileza. Que opinião tinha dos amigos de Elliott é coisa que deixo a cargo da imaginação. Só a conheci superficialmente, e era pessoa muito reservada. Nada tola; durante todos aqueles anos vividos em capitais estrangeiras, conhecera inúmeras pessoas, de vários tipos, e creio que as soubera julgar com bastante perspicácia, de acordo com o ponto de vista da cidadezinha da Virgínia onde nascera e fora criada. Parece-me que ela achava divertido observar os pontos ridículos dessas pessoas; e não creio que tenha dado maior importância aos seus dengues e mesuras do que aos sofrimentos e peripécias dos personagens de um romance que desde o princípio (pois do contrário não o teria lido) sabia que ia acabar bem. Paris, Roma, Pequim não tinham sobre o seu americanismo maior efeito do que o fervor católico de Elliott sobre sua firme, se bem que não exagerada, fé presbiteriana.

Com sua mocidade, aparência robusta e vitalidade, Isabel trouxe um sopro de ar fresco àquela atmosfera meretrícia. Irrompeu na sala como uma jovem deusa terrestre. O príncipe romeno levantou-se de um salto para lhe oferecer uma cadeira, e com ampla gesticulação desempenhou o seu papel. Com frases de estridente amabilidade, as duas americanas olharam-na da cabeça aos pés, notaram os detalhes do seu traje, e é possível que, no fundo do coração, tenham ficado consternadas com o confronto daquela exuberante mocidade. O diplomata americano sorriu intimamente, ao notar como a presença de Isabel fazia com que as outras duas parecessem artificiais e envelhecidas. Mas Isabel achou-as formidáveis: gostou dos ricos trajes e das valiosas pérolas, e sentiu uma pontinha de inveja da imponência e da pose que elas tinham. Gostaria de saber se jamais conseguiria atingir aquela suprema elegância. O principezinho romeno era, naturalmente, ridículo; mas não deixava de ser um amor e, mesmo que não fossem sinceras as coisas amáveis que dizia, sempre era um prazer ouvi-las. A conversa que a chegada de Isabel interrompera foi reatada, e falaram com tanta vivacidade, com tão grande convicção da importância do que diziam que quase se chegava a acreditar que havia sentido em tudo aquilo. Falaram das festas a que tinham ido e das festas a que pretendiam ir.

Comentaram o último escândalo. Reduziram os amigos à expressão mais simples. Citaram grandes nomes a torto e a direito. Pareciam íntimos de todo mundo. Não havia segredo que desconhecessem. Quase no mesmo fôlego, falaram da peça teatral da moda, da costureira da moda, do pintor da moda, da última amante do ministro da moda. Era de se pensar que não havia o que elas ignorassem. Isabel escutava deliciada. Tudo aquilo lhe parecia maravilhosamente civilizado. Aquilo, sim, era vida. Experimentou a emoção de quem sente que está compartilhando de coisas de interesse. Aquilo era real. O cenário, perfeito. A espaçosa sala com o seu tapete Savonnerie, os lindos desenhos nas paredes de lambris, as cadeiras de petit point, os valiosos móveis de madeira entalhada, as cômodas e mesas avulsas, peças todas dignas de um museu... A sala devia ter custado uma fortuna, mas valia a pena. A sóbria beleza mais do que nunca impressionou Isabel, pois ela ainda conservava vívida a lembrança do pobre quartinho de hotel, com sua cama de ferro, e aquela cadeira dura, tão pouco confortável, onde se sentara; aquele quarto em que Larry não via defeito algum... Nu, sombrio, horrível. Só a lembrança lhe causou um estremecimento.

As visitas saíram e Isabel ficou sozinha com sua mãe e Elliott.

– Senhoras encantadoras – disse Elliott, depois de ter acompanhado à porta os dois pobres farrapos pintados. – Conheci-as quando se instalaram em Paris. Nunca pensei que chegassem a ficar tão elegantes! É realmente extraordinário o poder de adaptação das nossas compatriotas.

Hoje ninguém diria que são americanas, e do Oeste Central, ainda por cima.

Com um arquear de sobrancelhas, mas sem dizer palavra, mrs. Bradley lançou a Elliott um olhar que com a sua perspicácia ele não pôde deixar de compreender.

– Ninguém poderia jamais dizer isto de você, minha pobre Louisa – continuou ele em tom ao mesmo tempo azedo e afetuoso. – Se bem que não lhe faltaram oportunidades!

Mrs. Bradley contraiu os lábios.

– Creio que sempre fui a sua grande decepção na vida, Elliott, mas, para ser franca, estou muito satisfeita comigo mesma assim como sou.

– Tous les goûts sont dans la nature – murmurou Elliott.

– Acho que é meu dever contar-lhes que não estou mais noiva de Larry – interveio Isabel.

– Ora, ora! – exclamou Elliott. – Isto vai transtornar o arranjo da minha mesa de almoço, amanhã. Como é que vou arranjar avulso em tão curto prazo?

– Oh! pode estar certo de que ele virá almoçar.

– Depois de vocês terem desmanchado o noivado? Mas não fica bem.

Isabel riu abafadamente. Continuou virada para Elliott, pois sabia que a mãe a fitava e não queria encontrar o olhar dela.

– Não brigamos. Discutimos o assunto hoje à tarde e chegamos à conclusão de que tínhamos cometido um erro. Ele não quer voltar para a América; quer continuar em Paris. Está falando em ir para a Grécia.

– Para quê, Santo Deus? Não há vida social em Atenas. Para ser franco, nunca dei mesmo grande valor à arte grega. Algumas daquelas coisas helênicas têm um encanto decadente, que não deixa de ser interessante. Mas Fídias, não, não!

– Olhe para mim, Isabel – disse mrs. Bradley.

Isabel virou-se e fitou-a com um leve sorriso. Mrs. Bradley observou-a com um olhar perscrutador, mas só o que disse foi “Humm”. Viu que a filha não chorara; parecia mesmo calma e senhora de si.

– A vantagem foi toda sua, Isabel – disse Elliott. – Eu estava disposto a fazer cara alegre, mas nunca achei que fosse um bom casamento. Larry não estava realmente à sua altura, e o procedimento dele aqui em Paris indica claramente que nunca chegará a ser alguém. Com sua beleza e relações você pode aspirar a coisa muito melhor. Na minha opinião, você agiu com raro discernimento.

Mrs. Bradley lançou à filha um olhar não de todo destituído de ansiedade.

– Você não fez isto por minha causa, Isabel? A moça sacudiu enfaticamente a cabeça.

– Não, meu bem. A responsabilidade é inteiramente minha.


6

Tendo regressado do Oriente, justamente nesta ocasião eu estava passando uns tempos em Londres. Quinze dias, talvez, após os acontecimentos que descrevi, Elliott chamou-me ao telefone. Não fiquei admirado ao reconhecer-lhe a voz, pois sabia que ele costumava vir gozar em Londres o fim da temporada. Contou-me que mrs. Bradley e Isabel tinham vindo com ele e que, se eu quisesse aparecer aquela tarde, às seis horas, para tomar um drinque, teriam muito prazer em receber-me. Estavam, naturalmente, hospedados no Claridge. Naquele tempo eu não morava muito longe dali, de modo que desci por Park Lane, a pé, e percorri as calmas e corretas ruas de Mayfair, até chegar ao hotel. Elliott estava no seu apartamento de costume. As paredes eram de lambris de tom havana, como o de uma caixa de charutos, e a mobília de uma sóbria suntuosidade. Encontrei-o só. Mrs. Bradley e Isabel tinham ido às compras, mas deviam voltar a qualquer minuto. Contou-me que Isabel já não estava noiva de Larry.

Com suas ideias românticas e excessivamente convencionais, a respeito do procedimento das pessoas em determinadas circunstâncias, Elliott ficara chocado com o comportamento dos dois jovens. Não somente Larry comparecera ao almoço no dia imediato ao rompimento, mas agira como se sua posição em nada estivesse alterada. Mostrou-se amável, atencioso e discretamente alegre como de costume. Tratou Isabel com a mesma afetuosa camaradagem; não parecia nervoso, perturbado, ou pesaroso. Tampouco Isabel se mostrara inconsolável. Parecendo tão feliz como antes, ria com a mesma despreocupação, pilheriava com igual vivacidade, como se não tivesse dado um passo decisivo, e certamente desagradável, na sua vida. Elliott não entendia mais nada. Por trechos de conversa que ouviu deles, veio a saber que não pretendiam cancelar nenhum dos compromissos que tinham assumido um com o outro. Na primeira oportunidade ele falou nisso a mrs. Bradley.

– Não fica bem – declarou. – Os dois não podem andar de lá para cá como se ainda fossem noivos. Francamente, Larry podia ter um pouco mais de respeito às convenções. Além do mais, isto prejudica Isabel. O jovem Fotheringham, aquele rapaz da embaixada inglesa, está visivelmente caído por ela. Tem dinheiro e boas relações; se soubesse que o terreno está livre, garanto que se candidataria. Acho que você deve falar a Isabel sobre isso.

– Meu caro, Isabel está com vinte anos, e tem – para dizer às pessoas, sem ofendê-las, que não se metam no que não é da sua conta – uma técnica contra a qual sempre achei dificílimo lutar.

– Pois então você educou-a pessimamente, Louisa. Além do mais, é da sua conta.

– Está aí um ponto em que ela, certamente, não concordaria com você.

– Você está esgotando a minha paciência, Louisa.

– Meu pobre Elliott, se você tivesse uma filha moça, ficaria sabendo que é relativamente mais fácil lidar com um tourinho do que com ela. Quanto a saber o que Isabel está sentindo... Bom, é preferível eu fingir ser a velha simples e inocente por quem ela me toma.

– Mas você discutiu o caso com ela?

– Experimentei. Isabel riu e disse que não havia realmente nada para contar.

– Está muito pesarosa?

– Não sei. Só o que posso dizer é que come bem e dorme como um anjinho.

– Pois bem, ouça o que lhe digo: se você deixar que continuem assim, um destes dias eles acabam fugindo e casando-se sem dizer nada a ninguém.

Mrs. Bradley condescendeu em sorrir.

– Deve ser para você um alívio saber que no momento atual estamos vivendo num país onde toda irregularidade sexual é facilitada, e onde o casamento encontra inúmeros obstáculos.

– E acertadamente. O casamento é uma instituição muito séria, sobre a qual se firmam a segurança da família e a estabilidade do Estado. Mas o casamento só pode conservar sua força se as relações extraconjugais forem não somente toleradas, mas permitidas. A prostituição, minha pobre Louisa...

– Basta, Elliott – interrompeu mrs. Bradley. – Não estou interessada em conhecer o seu ponto de vista sobre a importância social e moral da fornicação promíscua.

Foi aí que Elliott sugeriu o plano que iria interromper a convivência de Isabel com Larry, que tanto repugnava ao seu convencionalismo. A estação em Paris agonizava e a melhor gente estava providenciando sua ida para estações de águas, ou Deauville, antes de se retirar, para o resto do verão, para seus castelos ancestrais em Touraine, Anjou ou Bretanha. Em geral Elliott só ia para Londres em fins de junho, mas seu instinto de família era muito forte, e sincera a afeição que sentia por sua irmã e Isabel; estivera pronto a fazer o sacrifício de ficar em Paris, se elas assim o desejassem, quando ali já não havia pessoa que contasse socialmente; mas via-se agora na agradável posição de poder fazer o que era de vantagem para os outros e ao mesmo tempo conveniente para si próprio. Sugeriu a mrs. Bradley partirem imediatamente para Londres, onde a estação ainda estava no auge e onde novos interesses e novos amigos iriam distrair o pensamento de Isabel do seu malfadado romance. A julgar pelos jornais, um dos maiores especialistas em diabetes se encontrava em Londres, na ocasião, e a vantagem de consultá-lo justificaria amplamente a súbita partida, vencendo qualquer má vontade que Isabel pudesse ter em abandonar Paris. Mrs. Bradley aprovou a ideia. Isabel deixava-a perplexa. Impossível saber se a sua despreocupação era sincera ou se, magoada, zangada, ou infeliz, ela adotara aquela máscara ousada para esconder sua humilhação. Mrs. Bradley concordou com Elliott que faria bem a Isabel conhecer gente e lugares novos.

Elliott não perdeu tempo em telefonar, e, quando Isabel entrou em casa, depois de ter passado o dia em Versailles com Larry, ele pôde comunicar-lhe que conseguira marcar hora com o célebre especialista para dali a três dias, que reservara um apartamento no Claridge e que dois dias depois iam para Londres.

Mrs. Bradley observou Isabel, enquanto Elliott um tanto pedantemente lhe dava a notícia; mas a moça não se mostrou absolutamente perturbada.

– Oh! mamãe, estou tão contente de você poder consultar o especialista! – exclamou Isabel com a sua habitual impetuosidade. – Claro que não deve perder esta ocasião. E será ótimo, um passeio a Londres. Quanto tempo vamos ficar lá?

– Não adiantaria voltarmos para Paris – disse Elliott.

– Dentro de oito dias não haverá aqui uma alma. Quero que vocês fiquem comigo no Claridge até o fim da estação. Em julho há sempre bons bailes; além do mais, não nos devemos esquecer de Wimbledon. E, depois, Goodwood e Cowes. Tenho certeza de que os Ellingham terão prazer em nos convidar ao seu iate, para Cowes, e os Bantock sempre levam um grupo grande, para Goodwood.

Isabel parecia encantada e mrs. Bradley sentiu-se mais tranquila. A julgar pelas aparências, ela não estava dando a mínima importância a Larry.

Elliott acabara de me contar tudo isso, quando mãe e filha entraram. Fazia mais de ano e meio que eu não as via. Achei mrs. Bradley mais magra e de fisionomia ainda mais lívida; parecia cansada e não estava com boa aparência. Mas Isabel estava florescente. Com seu rosto corado, cabelos bronzeados, vivos olhos castanhos e pele transparente, dava tal impressão de mocidade, de tão intensa alegria de viver, que a gente quase tinha vontade de rir de puro gozo. Absurdamente, comparei-a a uma pera, dourada e saborosa, perfeitamente madura e tentando o apetite alheio. Irradiava calor, dando a impressão de que bastaria a gente estender as mãos para sentir o seu conforto. Pareceu-me mais alta, não sei se por estar usando salto mais alto ou se porque uma costureira habilidosa soubera escolher um modelo que lhe disfarçasse o excessivo arredondamento da mocidade; mantinha-se com a graça despreocupada da pessoa que desde a infância faz esportes ao ar livre. Em resumo, sexualmente era uma rapariga muitíssimo atraente. Se eu fosse sua mãe, trataria logo de casá-la.

Satisfeito com a oportunidade de poder retribuir a mrs. Bradley as gentilezas que ela me havia dispensado em Chicago, sugeri que os três fossem comigo ao teatro numa daquelas noites. Convidei-os também para um almoço.

– Trate de não deixar para muito tarde, meu caro – disse-me Elliott. – Participei aos amigos a minha chegada, e daqui a dois ou três dias provavelmente já estaremos comprometidos para toda a temporada.

Achei que com isso ele queria dizer que, nesse caso, não teria tempo a perder com gente da minha espécie, e não pude deixar de rir. Elliott lançou-me um olhar onde havia uma expressão altiva.

– Mas, naturalmente, você sempre nos encontrará aqui às seis horas, e teremos imenso prazer em vê-lo – disse-me amavelmente, mas com a visível intenção de me colocar, como escritor, na minha humilde posição.

Mas às vezes a vingança é doce...

– Você precisa procurar os St. Olpherd – disse-lhe eu. – Contaram-me que eles pretendem dispor do seu Constable of Salisbury Cathedral.

– No momento atual não tenho intenção de comprar quadros. – Sei disso, mas achei que talvez você pudesse servir de intermediário.

Os olhos de Elliott tiveram um brilho de aço.

– Meu caro amigo, a Inglaterra é uma grande nação, mas os ingleses nunca souberam e nunca saberão pintar. A escola inglesa não me interessa.


7

Naquelas quatro semanas pouco vi Elliott e sua família. Ele soube tratá-las. Levou-as para um fim de semana numa aristocrática mansão, em Sussex, e para outro fim de semana, ainda mais aristocrático, em Wiltshire. Foram à Ópera, ao camarote real, como convidadas de uma princesa de menos importância da Casa de Windsor. Almoçaram e jantaram com a nobreza. Isabel foi a vários bailes. Elliott deu, no Claridge, recepção a que compareceram convidados cujo nome fazia um vistão no jornal, no dia seguinte. Promoveu ceias no Ciro e na embaixada. Em resumo, fez tudo como devia ser feito, e Isabel precisaria ter sido muito mais blasé para não ficar ofuscada com a elegância e o esplendor exibidos para o seu deleite. Elliott podia gabar-se de estar fazendo tudo aquilo por um motivo puramente desinteressado, para que Isabel esquecesse o seu malogrado caso de amor; mas desconfiei que no fundo ele sentia grande satisfação em poder mostrar a mrs. Bradley como era íntimo dos ilustres e dos elegantes. Recebia admiravelmente e tinha imenso prazer em exibir essa sua qualidade.

Fui a uma ou duas de suas recepções, e de vez em quando passava pelo Claridge, às seis horas. Encontrava Isabel cercada por mocetões bonitos e bem-vestidos, da Household Brigade, ou por rapazes elegantes, mas menos bem-vestidos, do Ministério do Exterior. Numa dessas ocasiões ela me chamou de lado.

– Quero fazer-lhe uma pergunta – disse-me ela. – Lembra-se daquela noite em que fomos à drugstore tomar um ice-cream-soda?

– Lembro-me perfeitamente.

– O senhor foi muito camarada e me ajudou bastante. Quer ser camarada e ajudar-me de novo?

– Farei o possível.

– Quero falar com o senhor sobre certo assunto. Não podíamos almoçar juntos um destes dias?

– Quando quiser.

– Num lugar quieto.

– Que tal irmos de carro até Hampton Court e almoçar ali? Os jardins devem estar no auge da beleza e você poderia ver a cama da rainha Isabel.

O plano lhe agradou; ficou tudo combinado. Mas, quando chegou o dia, o tempo até então firme e quente mudou. Céu cinzento; caía uma chuvinha miúda. Telefonei a Isabel, perguntando-lhe se não preferia almoçar na cidade.

– Impossível nos sentarmos nos jardins, e os quadros estarão tão escuros que não distinguiremos coisa alguma – disse eu.

– Tenho me sentado em muitos jardins e estou farta dos grandes mestres. Vamos assim mesmo.

– Está certo.

Fui buscá-la de automóvel. Eu conhecia um hotelzinho onde a comida era passável; seguimos diretamente para lá. No caminho, com a sua habitual vivacidade Isabel falou das festas a que fora e das pessoas que ficara conhecendo. Estava se divertindo à grande, mas, pelos comentários que fez sobre seus novos conhecidos, vi que a pequena era perspicaz e sabia facilmente distinguir o ridículo. O mau tempo afugentara os visitantes e éramos os únicos na sala de jantar. A especialidade do hotel era a simples comida inglesa. Serviram-nos uma fatia de excelente perna de carneiro com ervilhas e batatinhas, e uma torta de maçã com creme Devonshire. Com um copo de cerveja, foi um ótimo almoço. Quando acabamos, sugeri irmos para a saleta do café, que estava vazia, e onde poderíamos nos sentar em confortáveis poltronas. Fazia frio ali, mas o fogo estava preparado e risquei um fósforo para acendê-lo. As chamas tornaram a fria salinha mais acolhedora.

– Pronto – disse eu. – Conte-me agora sobre que deseja conversar comIgo.

– A mesma coisa da última vez – disse ela com uma risadinha abafada. – Larry.

– Foi o que pensei.

– O senhor sabe que rompemos o nosso noivado.

– Elliott contou-me.

– Mamãe ficou aliviada e meu tio encantado.

Isabel hesitou por um instante e depois iniciou a descrição da cena com Larry, que já fiz o possível por narrar fielmente. Talvez o leitor se admire de Isabel ter escolhido, para confidente, uma pessoa que ela conhecia tão pouco. Não creio que eu a tivesse visto mais que uma dúzia de vezes e, a não ser naquela ocasião na drugstore, nunca a sós. Mas a mim isto não surpreendeu. Em primeiro lugar, fato que qualquer escritor confirmará, em geral as pessoas fazem a um escritor confidências que não fariam a outros. Desconheço a razão, a não ser que, pelo fato de terem lido um ou dois dos seus livros, se consideram em termos de intimidade com ele. Ou talvez elas se dramatizam a si próprias e, vendo-se como personagens de um romance, resolvam falar-lhe com a mesma franqueza com que, imaginam, lhe falam os tipos por ele criados. E penso que Isabel sentia que eu gostava dela e de Larry, que sua mocidade me comovia e que eu me condoía dos seus pesares. Ela não podia esperar encontrar um confidente de boa vontade em Elliott, pois este não tinha o menor desejo de se preocupar com pessoa que desprezara a melhor oportunidade que um rapaz jamais tivera de entrar na sociedade. Nem sua mãe poderia ajudá-la. Mrs. Bradley tinha princípios elevados e bom senso. Seu bom senso lhe dizia que, se uma pessoa deseja ir adiante neste mundo, tem que se conformar com as convenções do mundo e não fazer aquilo que todos consideram como sinal de desequilíbrio mental. Seus princípios elevados faziam com que achasse dever de um homem trabalhar num negócio onde, com energia e iniciativa, tivesse a oportunidade de ganhar dinheiro suficiente para sustentar mulher e filhos de acordo com a sua posição, dar aos filhos uma educação que lhes permitisse, mais tarde, ganhar honestamente a vida, e, ao morrer, deixar a viúva com recursos para se manter.

Isabel tinha boa memória e ainda se lembrava das várias fases da longa discussão com Larry. Ouvi em silêncio, até ela terminar. Interrompeu-se apenas uma vez, para me fazer uma pergunta:

– Quem foi Ruysdael?

– Ruysdael? Era um paisagista holandês. Por quê? Contou-me que Larry o mencionara. Dissera ele que pelo menos Ruysdael encontrara solução para o que desejara saber, e Isabel me repetiu a petulante réplica de Larry, quando ela lhe perguntara quem era aquele sujeito.

– O que quereria ele dizer? Tive uma inspiração.

– Você tem certeza de que ele não disse Ruysbroek? – perguntei.

– É bem possível. Quem era ele?

– Um místico flamengo que viveu no século xiv.

– Oh! – exclamou Isabel, decepcionada.

Para ela nada significava. Mas significava alguma coisa para mim. Era a primeira indicação que eu tinha do rumo que estavam tomando as reflexões de Larry; e, enquanto Isabel continuava a narrativa, embora eu a ouvisse atentamente, com outra parte do pensamento preocupei-me com as possibilidades que aquela referência de Larry sugeria. Não quis dar muita importância ao fato, pois era bem possível que ele houvesse citado o nome do Teólogo Místico apenas como argumento; mas podia também ter uma significação que escapara a Isabel. Ao dizer-lhe que Ruysbroek era apenas um sujeito que ele não conhecera no colégio, evidentemente Larry procurava despistá-la.

– Qual a sua opinião sobre tudo isso? – perguntou-me a moça ao terminar.

Esperei alguns instantes antes de responder.

– Lembra-se de Larry ter dito que ia apenas vadiar? Se o que ele lhe contou é verdade, então sua vagabundagem parece abranger um trabalho muito cansativo.

– Tenho certeza que é verdade. Mas não acha o senhor que, se ele se tivesse igualmente esforçado num trabalho produtivo, poderia estar com uma boa renda?

– Algumas pessoas têm um temperamento esquisito. Existem criminosos que trabalham como mouros a organizar planos que os levam à prisão e que, nem bem recuperam a liberdade, reincidem e acabam sendo novamente presos. Se eles empregassem a mesma perseverança, a mesma inteligência, a mesma paciência e os mesmos recursos em algum projeto honesto, poderiam ter uma ótima renda e ocupar posições de destaque. Mas a questão é que são feitos daquela massa. Gostam do crime.

– Pobre Larry – disse ela, rindo baixinho. – O senhor não me vai dizer que ele está aprendendo grego para assaltar um banco.

Também ri.

– Não vou, não; o que estou tentando dizer-lhe é que há homens que sentem tão intenso desejo de fazer uma determinada coisa que não podem absolutamente deixar de fazê-la. Estão dispostos a sacrificar tudo para satisfazer esse anseio.

– Até mesmo as pessoas que gostam deles?

– Oh! sim.

– Não acha que isso é puro egoísmo?

– Não sei dizer – respondi sorrindo.

– Que utilidade prática pode ter para Larry o estudo de línguas mortas?

– Algumas pessoas têm um desejo desinteressado de adquirir cultura. Não se pode dizer que seja um desejo ignóbil.

– Mas de que adianta a cultura, se a pessoa não pretende utilizá-la?

– Talvez ele pretenda. Talvez só o fato de saber seja uma satisfação, como ao artista basta a satisfação de produzir uma obra de arte. E talvez seja apenas um passo para coisa mais avançada.

– Se ele tem tanta sede de saber, por que não foi então para o colégio quando voltou da guerra? Era o que o dr. Nelson e mamãe queriam que ele fizesse.

– Falei com Larry sobre isso em Chicago. Um diploma de nada lhe adiantaria. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Você sabe, no estudo existe o lobo solitário, da mesma maneira que existe o lobo que se move com a alcateia. Acho que Larry é uma dessas pessoas que não podem tomar outro caminho a não ser o seu próprio.

– Lembro-me de que uma vez lhe perguntei se não sentia vontade de escrever. Ele me respondeu que não tinha sobre o quê escrever.

– É esta a razão mais inconcludente que conheço para uma pessoa não escrever – comentei sorrindo.

Isabel fez um gesto de impaciência. Não estava em estado de espírito de apreciar nem mesmo a mais leve pilhéria.

– Não posso compreender como ele chegou a ficar assim. Antes da guerra era como todo mundo. Talvez o senhor não acredite, mas ele joga muito bem tênis e é também perito no golfe. Costumava fazer tudo que o nosso grupo fazia. Era um rapaz perfeitamente normal e não havia razão para se supor que não viesse a ser um homem perfeitamente normal. Afinal de contas, o senhor é um romancista, deve ter uma explicação para isso.

– Quem sou eu para explicar as inúmeras complexidades da natureza humana?

– É por isso que eu queria falar hoje com o senhor – continuou Isabel, sem ligar ao que eu dissera.

– Você é infeliz?

– Infeliz, exatamente não. Quando Larry não está presente, tudo vai bem; quando estou perto dele é que me sinto tão fraca. Agora é apenas uma sensação dolorida, como a rigidez que sentimos após um longo passeio a cavalo, quando ficamos muito tempo sem montar; não é dor, não é insuportável, mas está ali. Isso passará, é lógico. Acho detestável pensar que Larry está estragando sua vida dessa forma.

– Talvez isto não aconteça. Ele está começando a viajar por uma estrada longa e árdua, mas é possível que no fim da jornada encontre o que procura.

– E o que ele procura?

– Ainda não lhe ocorreu? Parece-me, pelo que ele lhe disse, que não há dúvida a respeito: Deus.

– Deus! – exclamou Isabel. Mas foi uma exclamação de surpresa e incredulidade. Nosso emprego da mesma palavra, mas em sentido diverso, teve tão cômico efeito que não pudemos deixar de rir. Mas Isabel imediatamente ficou de novo séria, e notei em toda a sua atitude qualquer coisa que lembrava o medo.

– Mas, francamente, por que motivo chegou o senhor a essa conclusão?

– Estou apenas adivinhando. Mas você me pediu minha opinião como romancista. Infelizmente você não sabe qual foi o acontecimento, na guerra, que tão profundamente o afetou. Algum choque, suponho, com o qual ele absolutamente não contava. É possível que isto tenha feito Larry compreender como é transitória a vida, dando-lhe o angustioso desejo de saber que há uma compensação para os males e tristezas do mundo.

Percebi que Isabel não estava gostando do rumo que eu dera à conversa. Parecia intimidada e constrangida.

– Mas não será isto incrivelmente mórbido? A gente tem que aceitar o mundo como é. Se estamos aqui, é certamente para tirarmos o máximo proveito da vida.

– É provável que você tenha razão.

– Não tenho a pretensão de ser nada mais que uma moça perfeitamente normal, comum. Quero divertir-me.

– Parece-me que havia uma absoluta incompatibilidade de gênios entre vocês dois – disse eu. – Foi muito melhor terem descoberto isto antes do casamento.

– Quero casar-me, e ter filhos, e viver...

– Na condição de vida que uma misericordiosa Providência houve por bem lhe dar – interrompi sorrindo.

– Pois bem, não há mal nisso, há? É uma condição agradável e estou muito satisfeita com ela.

– Vocês são como dois amigos que desejam tirar férias juntos, mas um deles quer galgar as montanhas cobertas de neve da Groenlândia, ao passo que o outro quer ir pescar perto do banco de coral da Índia.

– Em todo caso, nas montanhas da Groenlândia talvez eu arranjasse um casaco de pele, mas duvido que haja peixes perto do banco de coral da Índia.

– É o que ainda se precisa ver.

– Por que diz isto? – perguntou-me Isabel, contraindo de leve as sobrancelhas. – O tempo todo o senhor parece estar guardando alguma coisa para si! Claro que sei que em tudo isto o papel bonito não é meu. Este papel cabe a Larry. É ele o idealista, o que teve um lindo sonho, e, mesmo que o sonho não se torne realidade, será sempre belo tê-lo sonhado. A mim me toca a parte dura, mercenária, prática. Bom senso nunca foi coisa muito simpática, não é verdade? Mas do que o senhor se esquece é que eu é que teria que sofrer. Larry avançaria majestosamente, com sua cauda gloriosa, e a mim só me restaria seguir atrás dele, procurando fazer o dinheiro render de um jeito ou de outro. Quero viver.

– Não me esqueci disso, em absoluto. Há anos, quando eu era moço, conheci um médico, nada mau, mas que não clinicava. Passou anos enfurnado na biblioteca do Museu Britânico e, com longos intervalos, surgia com um livro pseudocientífico, pseudofilosófico, que ninguém lia e que ele era obrigado a publicar por conta própria. Escreveu quatro ou cinco, antes de morrer; livros absolutamente sem valor. Tinha um filho que queria seguir a carreira militar, mas não havia dinheiro para mandá-lo para Sandhurst, de modo que o rapaz teve que se alistar e acabou morrendo na guerra. Tinha também uma filha. Era bem bonita e eu tinha uma quedinha por ela. Entrou para o teatro, mas, não tendo talento, andou de província em província representando papéis sem importância, em companhias de segunda classe, ganhando salário irrisório. Quanto à esposa do médico, depois de anos de luta e sórdida pobreza, adoeceu, e a filha teve que voltar para casa para tratar dela, vendo-se obrigada a fazer o trabalho penoso e ingrato para o qual a mãe já não tinha forças. Vidas perdidas, frustradas; e tudo sem proveito para ninguém. É uma verdadeira loteria, quando a pessoa resolve sair do caminho habitualmente trilhado. Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos.

– Mamãe e tio Elliott aprovam o que fiz. O senhor também aprova?

– Minha querida, que importância pode isto ter? Você mal me conhece.

– Considero-o um observador desinteressado – replicou ela com um sorriso simpático. – Gostaria de ter a sua aprovação. O senhor acha que fiz bem, não acha?

– Acho que sob o seu ponto de vista você fez bem – respondi, tendo quase certeza de que ela não perceberia a ligeira distinção que a minha resposta implicava.

– Então por que motivo não estou com a consciência tranquila?

– Não está?...

Ainda com um sorriso nos lábios, mas um sorriso um tanto encabulado, ela inclinou a cabeça e continuou:

– Sei que agi de acordo com a razão. Que qualquer pessoa sensata dirá que era a única coisa a fazer. Que, sob o ponto de vista prático, sob o ponto de vista da sabedoria humana, sob o ponto de vista do que é correto, sob o ponto de vista do bem e do mal, fiz o que devia fazer. E no entanto, no fundo do coração, sinto uma inquietude que me diz que se eu fosse melhor, mais desinteressada, mais desprendida e mais nobre, não teria hesitado em casar-me com Larry e levar sua vida. Se o meu amor fosse bastante forte, eu daria por bem empregado o sacrifício.

– Você pode argumentar de outra forma. Se o amor de Larry fosse bastante forte, ele não teria hesitado em fazer o que você pedia.

– Também pensei nisso. Mas não adianta. Creio que está mais na natureza da mulher sacrificar-se do que na do homem. – Ela riu baixinho. – Ruth e o trigo estrangeiro e aquela história toda.

– Por que você não arrisca?

Tínhamos até então conversado em tom despreocupado, como se estivéssemos a comentar casualmente a vida de pessoas que ambos conhecíamos, mas que não nos interessavam diretamente; mesmo quando me repetira sua conversa com Larry, Isabel falara com alegre vivacidade, pontilhando-a de observações espirituosas, como se não desejasse que eu levasse muito a sério o que dizia.

Mas agora ela empalideceu.

– Tenho medo.

Ficamos em silêncio durante alguns momentos. Um calafrio percorreu-me a espinha, como sempre acontece quando me vejo diante de uma emoção profunda e verdadeira.

– Você gosta muito dele? – perguntei afinal.

– Não sei. Ele me impacienta. Ele me exaspera. Estou sempre ansiando pela sua presença.

De novo se fez silêncio entre nós. Eu não sabia o que responder. A sala onde estávamos era pequena; pesadas cortinas de renda, nas janelas, impediam a claridade de fora. Nas paredes, empapeladas de amarelo, dependuravam-se velhas gravuras sobre caçadas. Com sua mobília de mogno, surradas cadeiras de couro e cheiro bolorento, lembrava estranhamente uma saleta de café de um romance de Dickens. Remexi o fogo e atirei-lhe mais carvão. Subitamente Isabel começou a falar.

– Sabe, achei que quando chegasse o momento de pôr as cartas na mesa Larry cederia. Eu sabia que ele era fraco.

– Fraco? – exclamei. – Aonde foi você buscar essa ideia? Um homem que durante um ano suportou a reprovação de amigos e conhecidos, por estar resolvido a seguir o seu caminho.

– Sempre consegui fazer dele o que quis. Era meu escravo. Ele nunca encabeçou o que fazíamos; apenas acompanhava o grupo.

Eu acendera um cigarro e observava o círculo azul da fumaça, que se foi alargando até se dissolver no ar.

– Mamãe e tio Elliott achavam que eu não devia con tinuar saindo com ele, como se nada tivesse acontecido; mas eu não levava aquilo muito a sério. Até o último dia pensei que ele acabaria cedendo. Não achei possível que, quando naquela sua cabeça dura penetrasse a ideia de que eu não estava brincando, ele não acabasse entregando os pontos. – Isabel hesitou e atirou-me um sorriso maroto, brincalhão. – O senhor ficará escandalizado se eu lhe contar uma coisa?

– Acho muito pouco provável.

– Quando resolvemos vir para Londres, telefonei a Larry e perguntei-lhe se não poderíamos passar juntos minha última noite em Paris. Quando contei isso aos meus, o tio Elliott declarou que não ficava nada bem, e mamãe que achava desnecessário. Quando mamãe diz que acha uma coisa desnecessária, significa que a desaprova em toda a linha. Tio Elliott me perguntou o que pretendíamos fazer; respondi que íamos jantar fora e dar depois um giro pelos cabarés. Ele virou-se para mamãe dizendo que ela devia proibir-me. Mamãe me perguntou: “Você me atenderia se eu a proibisse de ir?”. “Não, querida, nem por sombras.” E ela disse então: “Foi o que imaginei. Neste caso não vejo muita vantagem em proibir”.

– Sua mãe parece uma senhora extraordinariamente sensata.

– Não creio que muita coisa lhe escape. Quando Larry veio buscar-me, entrei no quarto dela para lhe dizer boa-noite. Eu me pintara um pouco; o senhor sabe, em Paris isto é preciso, senão a gente parece tão nua!... Quando mamãe notou o meu vestido, pelo olhar com que me examinou de cima a baixo tive a desagradável impressão de que desconfiava das minhas intenções. Mas não fez comentário algum. Beijou-me, apenas, dizendo que esperava que eu me divertisse.

– E quais eram as suas intenções?

Isabel olhou-me desconfiada, como se ainda não soubesse até que ponto levar a franqueza.

– Não creio que eu estivesse muito feia e era aquela a minha última oportunidade. Larry reservara uma mesa no Maxim. Comemos coisas gostosas, da minha preferência, e tomamos champanhe. Falamos os maiores absurdos, pelo menos eu falei, e fiz Larry rir. Uma das coisas que mais me agradam nele é o fato de eu poder sempre diverti-lo. Dançamos. Quando nos cansamos disso, fomos para o Château de Madrid. Ali encontramos alguns conhecidos, juntamo-nos ao seu grupo e tomamos mais champanhe. Depois fomos todos para o Acádia. Larry dança bem, e combinamos. O calor, a música, o vinho... eu estava um pouco tonta. Não tinha medo de nada. Dancei com a face contra a de Larry e vi que ele me desejava. Só Deus sabe como eu o desejava! Tive uma ideia... Provavelmente estivera no meu subconsciente o tempo todo. Resolvi fazer com que ele me acompanhasse até em casa; uma vez que o pegasse ali, pois bem, era inevitável que acontecesse o inevitável.

– Por Deus, você não poderia ter-se expressado com maior delicadeza.

– Meu quarto era bem afastado do de mamãe e do de tio Elliott, de modo que eu sabia que não havia perigo. Quando estivéssemos de novo na América, pensei, eu escreveria a Larry dizendo que ia ter um bebê. Ele seria obrigado a voltar, para casar-se comigo, e achei que, uma vez que o apanhasse na América, não seria difícil prendê-lo, principalmente com mamãe doente. “Que idiota fui em não me lembrar disso antes”, pensei com os meus botões. “Não há dúvida de que assim fica resolvido o caso.” Quando a música parou, continuei nos braços dele. Disse-lhe depois que estava ficando tarde e que, como eu tinha que tomar o trem ao meio-dia, era melhor irmos embora. Tomamos um táxi. Aconcheguei-me a ele; Larry enlaçou-me e beijou-me. Beijou-me e beijou-me e... oh! que paraíso! Quando o táxi parou à porta, pareceu-me que se passara apenas um minuto. Larry pagou o homem.

“Vou a pé para casa”, disse-me ele.

– O táxi afastou-se barulhentamente e eu pus os braços à volta do pescoço de Larry.

“Não quer entrar e tomar um último drinque?”, perguntei. “Sim, se você quiser.”

– Larry tocara a campainha e a porta estava aberta. Ele acendeu a luz e entramos. Olhei dentro dos seus olhos. Tão confiantes, tão sinceros, tão... ingênuos; evidentemente ele não tinha a menor ideia da armadilha que eu estava lhe preparando. Vi então que não me seria possível fazer papel tão indecente; era o mesmo que tirar um doce da boca de uma criança. Sabe o que eu disse? “Oh! bom, talvez seja melhor você não entrar. Mamãe não está hoje passando muito bem e não quero acordá-la, caso tenha adormecido. Boa noite.” Ergui o rosto para que ele me beijasse e empurrei-o para a rua. E assim acabou-se a história.

– Você está arrependida? – perguntei.

– Nem satisfeita nem arrependida. Não pude agir de outra forma. Não fui eu que fiz aquilo. Foi um impulso que se apossou de mim e agiu por mim. – Isabel sorriu. – Com certeza dirão que foi o meu lado bom.

– Com certeza.

– Então o meu lado bom tem que sofrer as consequências. Espero que no futuro ele seja mais prevenido.

Foi este, por assim dizer, o fim de nossa conversa. Talvez Isabel tenha sentido algum consolo em poder conversar com absoluta franqueza, mas foi esse o único auxílio que lhe pude prestar. Sentindo que não correspondera à expectativa, tentei pelo menos dizer-lhe uma coisinha que talvez a confortasse.

– Você sabe, quando amamos, e as coisas não correm a nosso contento, sentimo-nos profundamente infelizes e temos a impressão de que nunca nos consolaremos. Mas você ficará atônita ao ver o que o mar pode fazer.

– Que quer dizer com isso? – perguntou ela sorrindo.

– Bom, o amor não é bom marinheiro e definha-se numa viagem por mar. Quando o Atlântico se interpuser entre você e Larry, você vai ficar admirada ao verificar como é leve a dor que antes lhe parecia intolerável.

– Fala por experiência própria?

– Experiência de um tormentoso passado. Quando eu sofria as agonias de um amor não correspondido, metia-me imediatamente num navio.

A chuva não dava mostras de cessar; concordamos, portanto, em que Isabel não ia morrer por deixar de ver o nobre edifício de Hampton Court, ou mesmo o leito da rainha Isabel, e voltamos para Londres. Ainda a vi duas ou três vezes depois disso, mas sempre quando havia outras pessoas presentes; e então, tendo-me fartado de Londres por algum tempo, parti para o Tirol.


Três

Três


1

Nos dez anos seguintes perdi Isabel e Larry de vista. Continuei a ver Elliott e, por uma razão que mais tarde explicarei, mais frequentemente do que antes; por ele de vez em quando eu tinha notícias de Isabel. Mas a respeito de Larry ele nada soube contar-me.

– É bem possível que ainda esteja em Paris, mas duvido que nos venhamos a encontrar. Não frequentamos a mesma roda – acrescentou Elliott, com certa complacência. – É uma pena ele ter-se estragado dessa forma. É de uma ótima família. Garanto que teria dado alguma coisa, se tivesse seguido a minha orientação. Em todo caso foi uma sorte para Isabel.

Meu círculo de relações não era tão restrito quanto o de Elliott e eu conhecia, em Paris, muita gente que ele sem dúvida consideraria indesejável. Nas minhas breves mas não raras idas àquela capital perguntei a uma ou outra dessas pessoas se tinham visto Larry ou ouvido falar dele; algumas o conheciam ligeiramente, mas ninguém com suficiente intimidade para me dar informações a seu respeito. Fui ao restaurante onde ele costumava jantar, mas fazia tempo que ali não aparecia; julgavam que se ausentara de Paris. Nunca o vi em nenhum dos cafés do Boulevard du Montparnasse, geralmente frequentado pelas pessoas da vizinhança.

Sua intenção, depois que Isabel deixou Paris, era ir à Grécia, mas o projeto foi abandonado. Muitos anos mais tarde ele me contou o que fizera, mas vou relatar agora esses acontecimentos, pois, na medida do possível, acho mais conveniente colocá-los em ordem cronológica. Larry ficou em Paris durante o verão, trabalhando intensamente, até o outono já ir bem avançado.

– Achei então que precisava descansar dos livros – disse-me ele. – Durante dois anos eu estivera estudando de oito a dez horas por dia. Fui, portanto, trabalhar numa mina de carvão.

– Trabalhar onde? – exclamei. Ele riu do meu espanto.

– Achei que, durante alguns meses, o trabalho manual me faria bem. Pareceu-me que me daria oportunidade de coordenar as ideias e chegar a um entendimento comigo mesmo.

Fiquei em silêncio. Seria essa a única razão para aquele passo inesperado, ou teria relação com o rompimento do noivado com Isabel? A questão é que eu não sabia até que ponto Larry a amava. Muitas pessoas, quando apaixonadas, inventam razões para convencer a si próprias de que devem fazer o que desejam. Creio que é por isso que há tantos casamentos desastrosos. São como aquelas pessoas que entregam seus negócios a um homem reconhecidamente desonesto, só porque acontece tratar-se de um amigo; e, não querendo acreditar que um ladrão é primeiro ladrão, e depois amigo, pensam que por mais desonesto que ele seja com os outros, com elas o caso muda de figura. Larry tivera força suficiente para não sacrificar, por causa de Isabel, a vida que o atraía, mas talvez tivesse achado a dor de perdê-la mais amarga do que supusera. É bem possível que, como todos nós, ele tivesse querido comer o bolo e guardá-lo ao mesmo tempo.

– Pois bem, continue – disse eu.

– Arrumei meus livros e roupas em duas malas e mandei-as para o depósito do American Express. Depois enfiei um terno e algumas roupas de baixo numa maleta e parti. Meu professor de grego tinha uma irmã casada com o gerente de uma mina perto de Lens e deu-me uma carta de apresentação para ele. Conhece Lens?

– Não.

– Fica no norte da França, não muito distante da fronteira belga. Só passei ali uma noite, no hotel da estação; no dia seguinte tomei o trem de subúrbio que vai para o local da mina. Já esteve numa vila de mineiros?

– Sim, na Inglaterra.

– Bom, deve ser a mesma coisa. Havia a mina, a residência do gerente, e fileiras e fileiras de casas jeitosinhas, de dois andares; iguais, tão iguais, que chegavam a confranger o coração. Uma igreja mais ou menos nova, feia; vários bares. O tempo estava enfarruscado e frio quando lá cheguei; caía uma chuvinha miúda. Fui até o escritório do gerente e mandei-lhe a minha carta. Era ele um homem pequeno, gordo, de rosto rubro e ar de quem gosta de passar bem. Havia falta de braços, pois vários mineiros tinham morrido na guerra; ali trabalhavam muitos poloneses, de duzentos a trezentos, creio eu. Ele me fez duas ou três perguntas, não parecendo apreciar o fato de eu ser americano; tive a impressão de que achou isso meio suspeito. Mas na carta o cunhado me fazia boas referências e, em todo caso, ele ficou satisfeito de poder contar com mais alguém. Quis dar-me um lugar na superfície, mas eu lhe disse que preferia trabalhar no subsolo. Replicou que, não estando habituado, eu ia achar o serviço duro; como insisti, deu-me o lugar de ajudante de mineiro. Era realmente serviço de menino, mas não havia suficiente número deles para preencher as vagas. O gerente era um bom sujeito. Perguntou-me se eu já tinha providenciado acomodação e, ante minha resposta negativa, escreveu um endereço num papelzinho, dizendo que se eu fosse até lá a dona da casa me arranjaria um leito. Era viúva de um mineiro que morrera na guerra e seus dois filhos trabalhavam na mina.

“Peguei de novo a maleta e segui o meu caminho. Encontrei a casa. Uma mulher alta, emaciada, de cabelos grisalhos e grandes olhos negros veio abrir-me a porta. Tinha traços benfeitos e devia ter sido bonita. Mesmo agora não seria feia, no seu tipo esquálido, a não ser pelos dois dentes que lhe faltavam na frente. Disse-me que quarto ela não tinha, mas que havia duas camas no quarto que alugara a um polonês e que eu podia ficar com a que estava vaga. O aposento que ela me mostrou era no andar de baixo e devia ter sido sala de visitas. Eu teria preferido um quarto só para mim, mas resolvi deixar de exigências; a garoa transformara-se em chuva leve e persistente e eu já estava molhado; não me agradava a perspectiva de ir para diante e ficar encharcado até os ossos. Disse, portanto, que aceitava, e instalei-me. A cozinha, onde notei duas poltronas pouco firmes, servia também de sala. Havia, no pátio, um barracão onde guardavam o carvão, e que era também o banheiro. Os dois rapazes e o polonês tinham levado o seu almoço, mas a mulher me disse que eu poderia almoçar com ela ao meio-dia. Sentei-me depois na cozinha, com o meu cachimbo. Enquanto trabalhava, a mulher me contou sua história e a de sua família. Os outros chegaram assim que sua turma deixou de trabalhar. Primeiro o polonês, logo em seguida os dois rapazes. O polonês passou pela cozinha, cumprimentou-me com a cabeça, nada dizendo quando a dona da casa lhe participou que íamos compartilhar do mesmo quarto; tirou da chapa uma chaleira e foi lavar-se no barracão. Apesar da sujeira do rosto, os filhos da dona eram mocetões bonitos, e pareciam inclinados à camaradagem. Consideravam-me uma aberração pelo fato de eu ser americano. Um deles estava com dezenove anos e logo teria que fazer o serviço militar; o outro com dezoito.

“O polonês voltou e os rapazes foram lavar-se. Meu companheiro de quarto tinha um daqueles complicados nomes poloneses, mas chamavam-no de Kosti. Era um sujeito grande e pesado, quase dez centímetros mais alto do que eu. Pálido rosto carnudo, nariz curto e chato, boca larga. Seus olhos eram azuis e, por não ter conseguido tirar o carvão das pestanas e sobrancelhas, ele parecia estar pintado. As pestanas negras tornavam quase chocante o azul dos olhos. Sujeito feio, abrutalhado. Tendo trocado de roupa, os dois rapazes saíram. O polonês sentou-se na cozinha e pôs-se a ler o jornal, fumando o seu cachimbo. Eu tinha um livro no bolso; tirei-o e comecei também a ler. Notei que duas ou três vezes o polonês me olhou; dali a pouco largou o jornal.

“Que é que você está lendo?”, perguntou-me.

– Entreguei-lhe o livro para que ele mesmo verificasse. Era um exemplar da Princesse de Clèves que eu comprara na estação, em Paris, pela vantagem de poder carregá-lo no bolso. O polonês examinou o livro, fitou-me curiosamente e devolveu-mo. Notei-lhe o sorriso irônico.

“Acha graça nisso?”, perguntou.

“Acho interessantíssimo; absorvente, mesmo”, respondi.

“Li-o na escola, em Varsóvia. Achei-o cacetérrimo.” Ele falava bem o francês, quase sem sotaque estrangeiro. “Agora só leio os jornais e livros policiais.”

– Madame Duclerc, a dona da casa, estava sentada à mesa, cerzindo meias, mas de olho na sopa sobre o fogão. Contou a Kosti que eu fora mandado pelo gerente da mina e repetiu aquilo que me aprouvera contar-lhe. Ele ouviu, fumando, e olhou-me com aqueles seus brilhantes olhos azuis. Olhos duros e perspicazes. Fez-me algumas perguntas sobre a minha pessoa. Quando declarei que nunca trabalhara numa mina, de novo seus lábios se encresparam num sorriso irônico.

“Você não sabe em que se meteu. Quem pode trabalhar em outra coisa nunca devia procurar serviço numa mina. Mas isto não é da minha conta e com certeza você tem as suas razões. Onde morava em Paris?”

– Contei-lhe; Kosti disse, então:

“Houve época em que eu costumava ir todos os anos a Paris, mas ficava ali pelos Grands Boulevards. Conhece o Larue? Era um dos meus restaurantes prediletos.”

– Isto me surpreendeu, pois, como você sabe, não é barato.

– Longe disso.

– Creio que Kosti notou a minha surpresa, pois de novo teve um sorriso zombeteiro, mas não achou necessário entrar em explicações. Continuamos a conversar de uma coisa e outra e dali a pouco os dois rapazes chegaram. Terminada a ceia, Kosti me perguntou se eu queria acompanhá-lo ao bistrô para tomarmos uma cerveja. Fomos. Nada mais era que uma sala grande, com bar na extremidade e várias mesas de mármore, com cadeiras de madeira à volta. O piano automático, onde alguém colocara uma moeda, esganiçava uma música de dança. Além da nossa, só três mesas estavam ocupadas. Kosti perguntou-me se eu jogava belote. Respondi afirmativamente, pois aprendera a jogar com meus colegas; ele propôs então disputarmos a cerveja. Concordei. Veio o baralho. Perdi a primeira e a segunda rodadas. Kosti sugeriu então que jogássemos a dinheiro. Ele tinha boas cartas e eu estava de azar. As apostas eram insignificantes, mas mesmo assim perdi vários francos. Isto e a cerveja deixaram-no de bom humor, desatando-lhe a língua. Não levei tempo a perceber, tanto pelo seu modo de falar como por suas maneiras, que ele era um homem educado. Quando de novo se referiu a Paris, foi para perguntar-me se eu conhecia Fulana ou Sicrana, senhoras americanas que eu encontrara na casa de Elliott quando tia Louisa e Isabel ali estiveram hospedadas. Parecia conhecê-las melhor do que eu e fiquei a conjeturar como chegara ele à situação presente. Não era ainda muito tarde; tínhamos, no entanto, que nos retirar, pois precisávamos nos levantar de madrugada.

“Vamos tomar mais uma cerveja antes de sair”, propôs

Kosti.

– Sorveu-a aos bocadinhos, espiando-me com seus olhinhos vivos. Percebi então de que me fazia ele lembrar: de um porco mal-humorado.

“Por que motivo veio você trabalhar nesta mina infecta?”, perguntou-me.

“Pela experiência.”

“Tu es fou, mon petit.”

“E por que motivo está você trabalhando aqui?”

– Kosti encolheu os ombros desajeitados e maciços e respondeu:

“Entrei para a escola de cadetes, dos nobres, quando era criança. Meu pai era general do czar e eu fui oficial de cavalaria na última guerra. Mas eu não suportava Pilsudski. Tramamos matá-lo, mas alguém nos denunciou. Ele mandou fuzilar aqueles que foram capturados. Consegui atravessar a fronteira a tempo. Para mim só havia duas alternativas: a Legião Estrangeira ou uma mina de carvão. Escolhi dos males o menor.”

– Eu contara a Kosti qual ia ser o meu serviço na mina e ele não fizera comentário algum; mas agora, cravando o cotovelo na mesa, disse:

“Experimente abaixar minha mão.”

– Eu conhecia esta velha prova de força e coloquei minha palma aberta sobre a dele. Riu e disse: “Daqui a algumas semanas sua mão não estará assim macia”. Fiz toda a força possível, mas nada consegui contra aquela rocha; pouco a pouco ele foi empurrando minha mão até deitá-la sobre o mármore.

“Você é bem forte”, condescendeu ele em dizer. “Não são muitos que aguentam tanto tempo assim. Escute aqui: meu auxiliar não vale nada, é um francezinho esmirrado, sem um pingo de força. Venha comigo amanhã, que eu peço ao capataz que lhe dê o lugar dele.”

“Isto me agradaria”, respondi. “Acha que ele vai concordar?”

“Por um certo preço. Você pode dispor de cinquenta francos?”

– Kosti estendeu a mão e eu tirei uma nota da carteira. Fomos para casa e caímos na cama. Eu estava cansado e dormi como uma pedra.

– Achou o trabalho muito pesado? – perguntei a Larry.

– De quebrar os costados, a princípio – respondeu ele sorrindo. – Kosti ajeitou a coisa com o capataz e fui designado seu ajudante. Naquela ocasião ele estava trabalhando num espaço do tamanho de um banheiro de hotel; para chegar lá a gente tinha que atravessar um túnel tão baixo que era necessário andar de gatinhas.

Fazia ali um calor dos infernos e trabalhávamos só de calça. O vasto tronco branco e gordo de Kosti tinha qualquer coisa de intensamente repulsivo; parecia uma lesma enorme. O ruído do cortador pneumático, naquele espaço acanhado, era ensurdecedor. Meu trabalho era recolher os blocos de carvão que ele cortava, enfiá-los numa cesta e arrastá-la por todo o túnel até a boca, de onde seriam recolhidos para um vagonete quando, de intervalo em intervalo, por ali passasse o trem rumo aos elevadores. É a única mina de carvão que conheço, de modo que não sei se é esse o costume. Pareceu-me um tanto primitivo e dava um trabalhão dos infernos. Na metade do tempo parávamos para descansar, comíamos o nosso almoço e fumávamos. Eu me dava por feliz quando acabava o dia, e, céus, que coisa boa, um banho! Pensei que nunca conseguisse fazer com que meus pés ficassem limpos. Claro que minhas mãos ficaram cheias de bolhas, e doíam como o diabo; mas acabaram sarando. Habituei-me ao trabalho.

– Quanto tempo você aguentou?

– Só fiquei nesse serviço durante algumas semanas. Os vagonetes que levavam o carvão para os elevadores eram puxados por um trator, e o condutor era péssimo mecânico. Quando o motor enguiçava, o homem ficava sem saber o que fazer. Pois bem, acontece que sou um bom mecânico; examinei a máquina e em meia hora consegui pô-la a funcionar. O capataz contou ao gerente e este mandou me chamar, perguntando-me se eu entendia mesmo do assunto; o resultado foi ele dar-me o lugar do mecânico. Era monótono, naturalmente, mas fácil; e, como não tiveram mais aborrecimentos com a máquina, ficaram satisfeitos comigo.

Kosti ficou furioso com a mudança. Eu lhe convinha e ele estava habituado à minha companhia. Cheguei a conhecê-lo muito bem, trabalhando a seu lado o dia todo, indo com ele ao bistrô depois da ceia e dormindo no mesmo quarto. Era um sujeito engraçado. Tipo que você teria achado interessante. Não se misturava com os outros poloneses, e não frequentávamos os cafés que eles frequentavam. Kosti não podia esquecer que fora oficial de cavalaria e tratava-os como se fossem lixo. Eles, naturalmente, ficavam ofendidos com isso, mas o que podiam fazer? O sujeito era um touro; se houvesse uma briga, com ou sem faca, daria conta de meia dúzia deles. Mesmo assim, fiquei conhecendo alguns dos outros; e eles me contaram que Kosti fora de fato oficial de cavalaria de um dos mais elegantes regimentos, mas que mentia ao dizer que deixara a Polônia por razões políticas. Fora expulso do Clube dos Oficiais de Varsóvia e da cavalaria por ter sido apanhado trapaceando no jogo. Preveniram-me que não jogasse com ele, afirmando que era por esse motivo que Kosti os evitava – porque eles sabiam com quem estavam lidando.

Eu andara perdendo sistematicamente, não muito, apenas alguns francos cada noite; além do mais, quando ganhava, Kosti sempre insistia em pagar pelas bebidas, de modo que o prejuízo era insignificante. Pensei que estivesse numa maré de azar, ou que não jogasse tão bem quanto ele. Mas depois disso fiquei de olho atento e tive certeza de que ele roubava, mas juro que por mais que eu fizesse não conseguia descobrir o truque. Céus, que habilidade! Mas não achei possível ele ter as melhores cartas o tempo todo e continuei a observá-lo com olhar de lince. Kosti era esperto como ninguém e creio que percebeu que me haviam prevenido. Certa noite, depois de termos jogado durante algum tempo, fitou-me com um sorriso um tanto cruel, sarcástico, sua única maneira de sorrir, e disse:

“Quer ver uma mágica?”

– Pegou o baralho e me mandou dizer uma carta. Baralhou-as e pediu-me que escolhesse uma; ao aceder, verifiquei que era a carta que eu nomeara. Fez mais uma ou duas mágicas e depois me perguntou se eu jogava pôquer. Respondi que sim e ele deu as cartas. Quando olhei a minha mão, verifiquei que tinha uma quadra de ases e um rei ao lado.

‘’Você estaria disposto a apostar muito nesta mão, não estaria?”, perguntou-me.

“Todas as minhas fichas”, respondi.

“Pois seria tolice.” Ele mostrou a mão que dera para si próprio. Um straight flush. Como o conseguira, não sei. Riu do meu espanto. “Se eu não fosse um homem honesto, há muito já o teria depenado.”

“Não se pode dizer que você se saiu assim tão mal”, repliquei sorrindo.

“Isto é café pequeno. Não daria para pagar um jantar no Larue.”

– Continuamos a jogar quase todas as noites. Cheguei à conclusão de que ele roubava, não tanto pelo dinheiro, mas pela satisfação de roubar. Sentia um estranho prazer em me fazer de tolo, achando divertidíssimo saber que eu desconfiava de sua malandragem, sem no entanto poder atinar com ela.

Mas este era apenas um lado seu, e o outro é que o tornava interessante. Eu não podia conciliar os dois. Embora se gabasse de só ler jornais e histórias de detetive, Kosti era um homem culto. Tinha boa prosa, era sarcástico, áspero, cínico, mas que prazer ouvi-lo! Fervoroso católico; tinha um crucifixo na parede, em cima da cama, e ia à missa todos os domingos. Nos sábados à noite costumava embriagar-se. O bistrô que frequentávamos ficava repleto nesse dia; ar carregado de fumaça. Lá iam pacatos mineiros de meia-idade, com suas famílias, grupos de moços que faziam um barulho dos diabos, e homens de rosto coberto de transpiração, que se punham à volta de uma mesa, jogando belote com ruidosas exclamações, enquanto suas mulheres, sentadas um pouco atrás, sapeavam o jogo. A multidão e o barulho tinham um estranho efeito sobre Kosti; ele ficava sério e começava a falar daquilo que menos se esperava – misticismo. Naquela ocasião eu não entendia do assunto, a não ser por um ensaio de Maeterlinck, sobre Ruysbroek, que eu lera em Paris. Mas Kosti falava de Plotino e Dionísio, o Areopagita, de Jacob Boehme, o sapateiro, de Meister Eckhart. Fantástico, ouvir aquele sujeito desajeitado e grandalhão, que fora expulso do seu meio, aquele homem vencido, sarcástico e amargurado, falar da derradeira realidade das coisas e da bem-aventurança da união com Deus. Aquilo me era desconhecido e me deixava confuso e excitado. Eu me sentia como uma pessoa que, fechada num quarto escuro, sabe que lhe bastará afastá-la para ter diante dos olhos a beleza pura da madrugada sobre os campos. Mas, quando estava sóbrio e eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, Kosti ficava furioso.

Seus olhos adquiriam uma expressão despeitada. “Como é que posso explicar o que é, se eu não sabia o que estava dizendo?”, rosnava ele.

– Mas eu via que estava mentindo. Ele sabia perfeitamente sobre o que estivera falando. Sabia muita coisa. Claro que estivera bêbado; mas o olhar, a expressão arrebatada do seu rosto feio não tinham por causa única a bebida. Havia alguma coisa mais. Quando me falou nisso pela primeira vez, disse-me algo de que não me esqueci e que me deixou horrorizado: que o mundo não é coisa criada, pois do nada nada pode provir, e sim uma manifestação da natureza eterna; bom, até aí, vá lá; mas depois ele acrescentou que, tanto quanto o bem, o mal é uma direta manifestação da divindade. Estranhas palavras para serem ditas naquele café barulhento e sórdido, ao som de músicas populares que um piano automático tocava.


2

Para descanso do leitor, começo aqui nova seção; faço-o, porém, apenas para conveniência dele, pois a conversa foi ininterrupta. Aproveito a oportunidade para dizer que Larry falava sem pressa, muitas vezes escolhendo com cuidado os vocábulos e, embora eu não queira dar a entender que estive a repeti-los com exatidão, tentei reproduzir, não somente a essência, mas também a forma da narrativa. Sua voz, de timbre rico, possuía uma qualidade musical que agradava ao ouvido; e, enquanto falava, sem gesticulação de espécie alguma, fumando o seu cachimbo e parando de vez em quando para acendê-lo, fitava a gente com expressão simpática, às vezes quase patética, nos olhos negros.

– Depois veio a primavera – continuou Larry. – Chegou tarde àquela região lúgubre e plana, onde ainda chovia e fazia frio. Mas às vezes, com um dia bonito, era sacrifício a gente entranhar-se pela terra, num elevador gigante, repleto de mineiros metidos em sujos macacões. Era primavera, sim, mas chegava timidamente àquela paisagem sombria, como que incerta da recepção que lhe fariam. Lembrava uma flor, narciso ou lírio, que desabrochasse no vaso de uma janela de cortiço, deixando a gente a imaginar por que razão estaria ali. Certo domingo de manhã, lia eu na cama – sempre nos levantávamos tarde aos domingos – quando Kosti me disse sem mais aquela:

“Vou-me embora daqui. Quer ir comigo?”.

– Eu sabia que muitos poloneses voltavam à pátria, no verão, para ajudar na colheita, mas ainda era cedo para isso; além do mais, Kosti não podia voltar para a Polônia.

“Para onde vai você?”, perguntei.

“A pé, pela estrada afora. Através da Bélgica, pela Alemanha, e Reno abaixo. Poderíamos trabalhar em alguma fazenda durante o verão.”

– Não levei dois minutos a resolver. “Parece ótimo”, respondi.

– No dia seguinte avisamos o capataz que íamos sair. Encontrei um sujeito que concordou em ficar com a minha maleta, a troco de um saco de viagem. As roupas que eu não quis ou não pude levar dei-as ao filho mais novo de madame Duclerc, que era mais ou menos do meu tamanho. Kosti deixou sua mala e levou algumas roupas num saco de viagem; no dia seguinte, assim que a velha nos deu o café, partimos.

Não tínhamos pressa e sabíamos que nas fazendas não nos aceitariam a não ser quando o feno estivesse pronto para ser cortado. Vagueamos, portanto, pela França e Bélgica, passando por Namur e Liège, entrando na Alemanha por Aachen. Não caminhávamos mais que dez ou doze milhas por dia; quando o aspecto de uma aldeia nos agradava, parávamos ali. Sempre havia uma hospedaria onde nos arranjavam duas camas, e uma taverna onde podíamos comer e beber. Tivemos, em geral, sorte com o tempo. Ótimo, viver ao ar livre, depois de tantos meses enfurnados na mina. Creio que até então eu não compreendera, realmente, como é agradável o espetáculo de um campo verdejante, e como é bela a árvore cheia de brotos, quando os galhos estão velados por uma tênue neblina verde. Kosti começou a ensinar-me alemão e creio que conhecia tão bem essa língua quanto o francês. À medida que avançávamos ele me dizia os nomes dos objetos que íamos vendo, fazendo-me também repetir simples sentenças em alemão. Isto ajudava a passar o tempo e, quando chegamos à Alemanha, pelo menos eu podia pedir o que queria.

Colônia ficava um pouco fora do caminho, mas Kosti insistiu em ir até lá, por causa das Onze Mil Virgens, disse ele; mas, ali chegando, caiu na farra. Não o vi durante três dias; quando apareceu no quartinho que havíamos alugado numa espécie de pensão de operários, veio muito mal-humorado. Metera-se numa briga, levara um tapa-olho e tinha um lábio cortado. Não parecia nenhum Adônis, garanto-lhe! Dormiu durante vinte e quatro horas; depois começamos a descer o vale do Reno, rumo a Darmstadt, onde, dizia ele, teríamos mais probabilidade de conseguir trabalho, por ser região mais fértil.

Nunca houve coisa que me desse maior prazer! O bom tempo perdurava; andamos por cidades e aldeias.

Quando dávamos com uma vista bonita, parávamos para apreciá-la. Pernoitávamos onde podíamos e certa vez dormimos no feno, num paiol. Comíamos em estalagens à beira da estrada; quando penetramos na região vinícola, abandonamos a cerveja pelo vinho. Quase sempre fazíamos camaradagem com as pessoas que encontrávamos nas tavernas. Kosti tinha uma rude jovialidade, que lhes inspirava confiança; jogava com elas skat, jogo de cartas alemão, e as depenava com tão ruidoso bom humor, contando as piadas grosseiras que aquela gente apreciava, que elas quase não sentiam o prejuízo de alguns pfennigs. Pratiquei assim o meu alemão. Eu comprara em Colônia uma gramaticazinha anglo-germânica, e ia indo muito bem. Mas à noite, depois de ter ingerido alguns litros de vinho, de um modo estranho e mórbido Kosti falava da fuga do Só para o Só, da Negra Noite da Alma, e da união, em êxtase final, das criaturas com o Bem-Amado. Mas de madrugada, quando sobre a relva orvalhada caminhávamos em meio à risonha natureza, ao ver que eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, ficava tão indignado que parecia querer bater-me.

“Cale a boca, seu idiota”, dizia ele. “Que pretende você com toda essa bobice? Vamos continuar com o nosso alemão.”

– A gente não pode discutir com um sujeito que tem um punho que é um martelo e que não faria cerimônia em usá-lo – continuou Larry. – Eu já o vira com raiva. Sabia que era capaz de me pôr a nocaute e de me largar numa valeta, esvaziando-me os bolsos, ainda por cima. Por mais que eu tentasse, não conseguia compreendê-lo. Quando o vinho lhe desatava a língua, ele falava do Inefável, abandonando a linguagem obscena de que comumente se servia, como os sujos macacões que usava na mina; falava bem, e até mesmo com eloquência. Eu achava impossível que não estivesse sendo sincero. Não sei por quê, mas ocorreu-me que havia escolhido aquele trabalho duro, bruto, de mineiro para castigar a carne. Achei que detestava aquele seu corpo vasto e rude, desejando torturá-lo, e que sua desonestidade no jogo, sua amargura e crueldade eram a revolta da vontade contra... – oh! não sei como me exprimir – um arraigado instinto de santidade, contra um sujeito de Deus, que o apavorava e obcecava ao mesmo tempo.

Não nos tínhamos apressado; a primavera estava quase finda e as árvores enfolhadas. As uvas, nas parreiras, começavam a desenvolver-se. Fazíamos o possível para seguir pelas estradas, cada vez mais poeirentas. Nos arredores de Darmstadt, Kosti disse que era melhor começarmos a procurar trabalho. Nosso dinheiro estava escasseando. Eu tinha no bolso uma meia dúzia de letras de crédito, mas tomara a resolução de não usá-las, se possível. Quando víamos uma fazenda prometedora, parávamos e perguntávamos se não precisavam de dois camaradas. Confesso que não devíamos inspirar muita confiança. Sujos, cobertos de suor e de poeira. Kosti parecia um bandido e não creio que eu estivesse com melhor aparência. Não houve quem nos quisesse. Numa delas, o fazendeiro disse que tomaria Kosti, mas que não precisava de mim; Kosti replicou que éramos companheiros e não nos separaríamos. Eu lhe disse que ficasse, mas não consegui convencê-lo. Fiquei admirado. Sabia que ele simpatizara comigo; por quê, não sei, pois eu não era do tipo que deveria atraí-lo; mas nunca pensei que me tivesse suficiente amizade para recusar um emprego por minha causa. Cheguei a sentir remorsos, pois, para ser franco, eu não gostava dele, achando-o mesmo um tanto repulsivo; mas quando tentei exprimir o prazer que sua recusa me causara, ele logo me deu o contra.

Finalmente nossa sorte mudou. Tínhamos acabado de atravessar uma vila, numa baixada, quando chegamos a uma fazenda que não tinha muito má aparência. Batemos à porta; uma mulher veio abrir. Oferecemos nossos serviços, como de costume. Dissemos que não queríamos salário, mas que estávamos dispostos a trabalhar por casa e comida; qual nossa surpresa quando, em vez de nos bater com a porta na cara, ela nos disse que esperássemos! Chamou por alguém dentro de casa e um homem apareceu. Ele nos encarou bem e perguntou de onde vínhamos, pedindo para examinar nossos documentos. Olhou-me de novo, quando viu que eu era americano. Não pareceu muito satisfeito com isso, mas mesmo assim nos convidou para entrar e tomar um copo de vinho. Fomos para a cozinha; sentamo-nos. A mulher trouxe uma garrafa de mesa e uns copos. O fazendeiro nos contou que um touro investira contra seu empregado, que este estava no hospital e só ficaria bom depois de terminada a colheita. Com tantos homens mortos, e outros empregando-se nas fábricas que pululavam ao longo do Reno, havia enorme falta de braços nas fazendas. Para nós não era novidade; estivéramos mesmo contando com isso. Pois bem, para encurtar a história, o homem nos aceitou. Havia muito espaço na casa, mas creio que ele não nos queria com a família; em todo caso disse que havia duas camas no paiol e que podíamos dormir lá.

O trabalho não era duro. Tínhamos de cuidar das vacas e dos porcos; as máquinas estavam em mau estado e tratamos de consertá-las; mesmo assim, tínhamos momentos de lazer. Eu gostava do cheiro adocicado dos campos, e à noite ia passear por ali, a sonhar. Era uma boa vida.

A família consistia no velho Becker, sua mulher, sua nora viúva e os filhos desta. Becker era um homem troncudo, de cabelos grisalhos, que devia estar beirando os cinquenta anos. Estivera na guerra e mancava devido a um ferimento recebido na perna. Doía-lhe muito e ele bebia para disfarçar a dor. Geralmente estava bem embalado quando ia para a cama. Kosti deu-se admiravelmente com ele; habituaram-se a ir até a taverna, depois do jantar, jogar skat e empanturrar-se de vinho. Frau Becker fora criada da casa. Tinham-na tirado de um orfanato e Becker casara-se com ela pouco depois da morte de sua mulher. Era bem mais moça do que ele, bonitona, robusta, rosto corado e cabelos louros, ar profundamente sensual. Kosti não levou tempo para perceber que ali havia futuro. Eu lhe disse que não fosse idiota; não valia a pena arriscarmos o nosso emprego. Ele apenas zombou de mim, dizendo que Becker não a satisfazia e que ela não queria outra coisa. Eu sabia que era inútil apelar para a sua noção de honra, mas aconselhei-o a ter cuidado; talvez Becker não percebesse suas intenções, mas ali estava a nora, e a esta nada escapava.

Ellie, assim se chamava ela, era uma jovem alta, grande, de vinte e poucos anos; cabelos e olhos negros, pálido rosto quadrado, expressão taciturna. Ainda estava de luto pelo marido, que morrera em Verdun. Era muito devota e todos os domingos de manhã lá ia ela à aldeia assistir à primeira missa: à tarde voltava para a bênção. Tinha três filhos, um dos quais nascera depois da morte do marido; à hora das refeições nunca falava, a não ser para repreendê-los. Trabalhava pouco na fazenda, mas passava a maior parte do tempo tomando conta das crianças; à noite sentava-se sozinha na sala, com um romance, deixando aberta a porta para poder ouvir, caso algum deles chorasse. As duas mulheres odiavam-se. Ellie desprezava Frau Becker porque era enjeitada e fora empregada doméstica, não se conformando com o fato de ser ela a dona da casa e estar em posição de dar ordens.

Ellie era filha de um fazendeiro abastado e trouxera bom dote. Não fora educada na escola da aldeia, e sim em Zwingenberg, a cidade mais próxima, onde havia um gymnasium para meninas. A pobre Frau Becker viera para a fazenda com catorze anos, e quando muito sabia ler e escrever. Era este outro ponto da discórdia entre as duas mulheres. Ellie não perdia oportunidade de exibir sua sabedoria; e Frau Becker, muito vermelha, perguntava de que adiantava aquilo para uma mulher de fazendeiro. Ellie olhava então a medalha de identificação do marido, que usava no pulso, presa por uma corrente de ferro, e com expressão amarga no rosto taciturno, dizia:

“Mulher de fazendeiro, não. Apenas viúva de fazendeiro. Apenas viúva de um herói que deu sua vida pela pátria.”

– O pobre Becker tinha um trabalhão para conservar a paz entre as duas.

– Mas que pensavam eles de você? – perguntei a Larry.

– Oh! achavam que eu desertara do Exército americano e não podia voltar, pois do contrário seria preso. Era assim que explicavam a minha recusa em acompanhar Becker e Kosti à taverna. Julgavam que eu não queria chamar atenção sobre minha pessoa, nem correr o risco de ter que responder às perguntas do sargento de polícia. Quando Ellie descobriu que eu estava querendo aprender alemão, foi buscar seus livros escolares e disse que estava pronta a ensinar-me. E assim, depois da ceia, íamos para a sala, deixando Frau Becker na cozinha. Eu lia em voz alta enquanto ela me corrigia a pronúncia, procurando fazer-me compreender o sentido de palavras sobre as quais eu não tinha a mínima ideia. Desconfiei que estava fazendo isto não tanto para me ajudar, mas para levar vantagem sobre Frau Becker.

Durante todo esse tempo Kosti estava dando em cima de Frau Becker, mas sem nenhum resultado. Ela era uma mulher alegre, folgazã, sempre pronta a pilheriar e rir com ele, e Kosti tinha jeito para tratar as mulheres. Creio que ela desconfiava das intenções do polonês e sentia-se lisonjeada, mas, quando ele começou a beliscá-la, disse-lhe que não lhe pusesse as mãos em cima e deu-lhe uma bofetada na cara. E garanto que foi uma boa bofetada!

Larry hesitou durante alguns instantes, sorrindo um tanto encabulado.

– Nunca fui do tipo de achar que as mulheres me perseguem, mas ocorreu-me que... pois bem, que Frau Becker estava caída por mim. Não fiquei nada satisfeito. Para começar, ela era muito mais velha do que eu; além do mais, o marido fora muito correto conosco. Era ela quem servia à mesa, e não pude deixar de notar que era mais generosa comigo do que com os outros; pareceu-me também que estava sempre procurando ocasião de ficar a sós comigo. Dirigia-me sorrisos que, creio eu, poderiam ser qualificados de provocantes. Costumava perguntar-me se eu não tinha namorada, dizendo que um rapaz novo como eu deveria sentir falta disso, num lugar daqueles. O senhor sabe como são essas coisas. Eu só tinha três camisas e assim mesmo bem surradas. Certa vez ela me disse que era o cúmulo eu usar aqueles trapos; que as trouxesse, pois ela as consertaria para mim. Ellie ouviu-a e, da próxima vez que nos vimos a sós, disse-me que se eu tivesse alguma coisa para consertar, era só lhe trazer. Respondi que não valia a pena. Um ou dois dias depois notei que minhas meias estavam cerzidas, minhas camisas remendadas e de volta ao banco do paiol onde guardávamos as nossas coisas; mas até hoje não sei a qual das duas devo gratidão. Naturalmente não levei Frau Becker a sério; era uma boa alma e achei que aquilo devia ser apenas instinto maternal da sua parte. Mas certo dia Kosti me disse:

“Escute aqui; não é a mim que ela está querendo; é a você. Não tenho a mínima probabilidade.”

“Não diga tolices”, repliquei. “Ela tem idade bastante para ser minha mãe.”

“E que tem isso? Não faça cerimônia, meu rapaz; eu não sou obstáculo. Talvez ela não seja lá muito moça, mas é bem bonitona.”

“Oh! cale a boca.”

“Por que é que você hesita? Não por minha causa, espero. Sou filósofo e sei que coisa que não falta no mar é peixe. Não a censuro. Você é moço. Também já tive o

– Não me agradou verificar que Kosti tinha tão absoluta certeza daquilo em que eu não queria acreditar. Não sabia bem como agir; lembrei-me então de vários incidentes que no momento não me tinham chamado atenção. Frases ditas por Ellie, às quais eu não dera importância, mas que agora adquiriam significação; não havia dúvida de que também Ellie sabia. Muitas vezes ela aparecia de supetão na cozinha, quando acontecia de Frau Becker e eu estarmos a sós. Fiquei com a impressão de que estava nos espionando.

Não gostei daquilo; pareceu-me que estava querendo apanhar-nos. Eu sabia que ela detestava Frau Becker e que ao menor pretexto armaria um barulho. Naturalmente ela nada poderia descobrir, mas era uma criatura maldosa e eu não sabia que mentiras não iria inventar para envenenar o espírito do velho Becker. Fiquei sem saber o que fazer, a não ser fingir-me de tão ingênuo que não percebia o manejo da mulher. Estava satisfeito na fazenda, gostava do trabalho e não queria partir antes de terminada a colheita.

Não pude deixar de sorrir. Imaginei Larry, de shorts e

camisa remendada, rosto e pescoço queimados pelo sol quente do vale do Reno, corpo delgado e flexível, olhos negros cravados nas órbitas... Não duvidei de que o seu físico tivesse feito palpitar de desejo aquela matrona loura e de seios opulentos.

– Pois bem, passou-se o verão. Trabalhávamos como loucos; cortamos e empilhamos o feno. Depois, quando as cerejas amadureceram, Kosti e eu trepamos em escadas para colhê-las; as mulheres recolhiam nas cestas que o velho Becker ia vender em Zwingenberg. Depois cortamos o centeio. E, naturalmente, ainda tínhamos que tratar dos animais. Estávamos de pé antes do amanhecer e só parávamos com o cair da noite. Julguei que Frau Becker houvesse desistido da conquista; eu fazia o possível, sem ofendê-la, para conservá-la a distância. À noite eu tinha sono demais para querer estudar alemão, de modo que logo depois da ceia fugia para o paiol e caía na cama. Em geral Kosti e Becker iam à taverna, mas eu estava ferrado no sono quando Kosti voltava. Fazia calor no paiol e eu dormia nu.

Certa noite acordei. No primeiro momento não atinei com o que era; eu estava ainda meio adormecido. Senti uma mão quente na minha boca e percebi que havia alguém na cama comigo. Afastei com força a mão, mas uma boca se colou à minha, dois braços me enlaçaram e senti os pesados seios de Frau Becker contra o meu corpo.

“Sei still”, murmurou ela. “Fique quieto.”

– Ela me apertou, beijou-me o rosto com lábios quentes e carnudos, suas mãos desceram pelo meu corpo e suas pernas se entrelaçaram com as minhas.

Larry fez uma pausa. Não pude deixar de rir.

– E o que fez você?

Ele me atirou um sorriso modesto. Chegou mesmo a corar.

– Que podia eu fazer? Eu ouvia a respiração pesada de Kosti na cama pegada à minha. A situação de José sempre me pareceu um tanto ridícula. Eu tinha apenas vinte e três anos. Não podia fazer um escândalo e expulsá-la dali. Não quis ofendê-la. Fiz o que se esperava de mim.

Depois ela escorregou da cama e saiu do paiol na ponta dos pés. Garanto-lhe que suspirei de alívio. Sabe, eu tivera medo. “Céus, que perigo!”, pensei. Provavelmente Becker chegara completamente embriagado, tendo caído numa espécie de torpor; mas eles dormiam na mesma cama e existia a possibilidade de o velho acordar e ver que a mulher não estava a seu lado. E ainda havia Ellie. Ela sempre dizia que não dormia bem. Se estivesse acordada, poderia ter ouvido Frau Becker descer a escada e sair de casa. Subitamente, lembrei-me de uma coisa. Quando Frau Becker estivera na cama comigo, eu sentira um frio de metal contra a minha pele. Não prestara atenção a isso; como você sabe, a gente não liga a nada em tais circunstâncias, e nunca me passara pela cabeça procurar saber que diabo de coisa era aquela. Mas agora se tinha feito luz no meu espírito. Eu estava sentado na beira da cama, refletindo e preocupando-me com as consequências, e tão grande foi o meu choque que me pus de pé. A peça de metal era a medalha de identificação do marido de Ellie, que ela usava em volta do pulso, e não fora Frau Becker que se deitara comigo. Fora Ellie.

Ri a bandeiras despregadas. Não pude conter-me.

– Pode ser engraçado para os outros – disse Larry. – Mas não foi nada engraçado para mim.

– Pois bem, agora que você examina o caso a sangue-frio, não lhe parece que há nele uma nota cômica?

Larry não pôde reprimir um sorriso.

– Talvez. Mas era uma situação embaraçosa. Quais seriam as consequências? Eu não gostava de Ellie. Achava-a mesmo muito pouco simpática.

– Mas como é que você pôde confundi-las?

– Estava escuro como breu. Ela não disse uma palavra, a não ser para me recomendar que ficasse de bico calado. Ambas eram mulheres altas e robustas. Eu andava desconfiado de que Frau Becker estava de olho em mim. Nem por sombras me ocorrera que Ellie me desse confiança, pois estava sempre pensando no marido. Acendi um cigarro e refleti sobre a situação; quanto mais refletia, menos ela me agradava. Pareceu-me que a melhor coisa a fazer era sumir.

Inúmeras vezes eu amaldiçoara Kosti por ter sono tão pesado.

Quando trabalhávamos na mina, eu tinha que sacudi-lo com toda a força para fazê-lo levantar-se a tempo para o serviço. Mas agora me dei por feliz! Acendi a lamparina, vesti-me, meti minhas coisas no saco – não era muito, de modo que não me levou mais que um minuto – e enfiei os braços nas correias. Atravessei o paiol, só de meias, não calçando os sapatos a não ser quando cheguei embaixo da escada. Soprei então a lamparina. Noite escura, sem lua, mas eu sabia como ganhar a estrada; dali tomei a direção da aldeia.

Caminhei a passos rápidos, pois queria atravessá-la enquanto todos estivessem dormindo. Distava apenas doze milhas de Zwingenberg, e lá cheguei justamente quando a cidade começava a despertar. Nunca me esquecerei daquela caminhada. Silêncio absoluto, a não ser pelo som dos meus passos na estrada, e de vez em quando o canto de um galo numa fazenda. E então, aquela luz acinzentada, quando já não é mais noite e ainda não está claro; os primeiros sintomas da madrugada, o nascer do sol, os pássaros começando a cantar; e aquela luxuriante paisagem verde, prados, bosques, e nos campos o centeio de um ouro-prateado, à fria luz do novo dia...

Tomei uma xícara de café com pão em Zwingenberg; fui depois ao correio e telegrafei para o American Express, pedindo que mandassem minhas roupas e meus livros para Bonn.

– Por que Bonn? – interrompi.

– Eu simpatizara com a cidade quando ali paramos, na nossa descida pelo Reno. Gostei do reflexo da luz sobre os telhados e o rio, das ruas antigas e estreitas, das vilas, e jardins, e avenidas de castanheiros, e dos edifícios rococós da universidade. Ocorreu-me, na ocasião, que não seria mau lugar para a gente ali passar uns tempos. Mas achei preferível tornar-me mais apresentável antes de surgir por lá; eu parecia um vagabundo e, se fosse procurar lugar numa pensão, não inspiraria muita confiança. Tomei, portanto, o trem para Frankfurt e ali comprei uma maleta e algumas roupas. Fiquei um ano em Bonn.

– E tirou algum proveito da sua experiência, na mina, digo, e na fazenda?

– Tirei – respondeu Larry inclinando a cabeça e sorrindo.

Mas não me disse qual fora, e naquela ocasião eu já o conhecia bastante para saber que, quando queria contar uma coisa, contava-a, mas, quando não estava disposto a isso aparava as perguntas com calmos gracejos que tornavam inútil a insistência. Preciso, no entanto, lembrar ao leitor que Larry me narrou tudo isto dez anos mais tarde. Até então, até estar de novo em contato com ele, eu não tinha a menor ideia do seu paradeiro ou do que andara fazendo. Era mesmo possível que tivesse morrido. A não ser por minha amizade com Elliott, que me punha a par da vida de Isabel, e me fazia, portanto, lembrar de Larry, provavelmente eu teria me esquecido da sua existência.


3

Isabel casou-se com Gray Maturin em princípios de junho do ano seguinte àquele em que desmanchou o seu noivado com Larry. Embora Elliott achasse detestável sair de Paris quando a estação estava no auge, tendo portanto que perder inúmeras festas elegantíssimas, seu instinto de família era muito forte para permitir-lhe que deixasse de cumprir aquilo que considerava um dever social. Os irmãos de Isabel não podiam abandonar seus postos, em lugares tão remotos, de modo que ele se viu obrigado a fazer a penosa viagem a Chicago, para levar a noiva ao altar. Lembrando-se de que os aristocratas franceses tinham ido para a guilhotina nos seus trajes mais esplendorosos, foi especialmente a Londres para comprar um novo fraque, um colete cinza, transpassado, e um chapéu de seda. Quando voltou para Paris, convidou-me para ir inspecionar essas elegâncias. Estava um tanto preocupado, pois o alfinete de pérola cinza que ele geralmente usava não iria fazer vista contra a gravata cinzento-clara, que achava apropriada para a festiva solenidade. Lembrei-lhe o seu alfinete de esmeralda e brilhante.

– Se eu fosse um convidado... está certo – disse ele.

– Mas, na posição que vou ocupar, sinto que a pérola é indicada.

Estava muito satisfeito com o casamento, tão de acordo com suas ideias convencionais, e se referia a ele com a untuosidade de uma duquesa-mãe que desse opinião sobre as vantagens de uma união entre um rebento dos La Rochefoucauld e uma filha dos Montmorency. Sem medir despesas e como sinal evidente de sua aprovação, ia levando como presente de casamento um belo retrato, por Nattier, de uma princesa real da França.

Parece que Henry Maturin comprara para o jovem par uma casa em Astor Street, para que eles ficassem perto de mrs. Bradley e não muito longe do seu palácio em Lake Shore Drive. Por uma feliz coincidência, em que suspeitei da cumplicidade de Elliott, Gregory Brabazon se achava em Chicago na ocasião da compra e a decoração da casa lhe foi confiada. Ao voltar para a Europa, tendo desistido por completo da estação em Paris e indo diretamente para Londres, Elliott trouxe várias fotografias. Brabazon se lançara a todo pano. Nas salas de visitas e de jantar ele se limitara exclusivamente ao estilo George ii, e com amplo êxito. Quanto à biblioteca, aposento reservado a Gray, ele se inspirara numa sala do Palácio Amalienburg, de Munique; e que, exceto pelo inconveniente de ali não haver lugar para livros, ficara perfeita. A não ser pelas camas gêmeas, Luís xv em visita a madame de Pompadour se teria sentido perfeitamente à vontade no quarto que Brabazon decorara para o jovem casal; mas o banheiro de Isabel o teria deixado embasbacado: todo de espelhos – paredes, teto e banheira –, e nas paredes peixes prateados, em profusão, brincavam no meio de douradas plantas aquáticas.

– É, naturalmente, uma casa pequena – disse Elliott. – Mas Henry Maturin me contou que a decoração lhe custou nada menos que cem mil dólares. Uma fortuna para muita gente.

A cerimônia foi feita com a maior pompa que a Igreja Episcopal permitia.

– Em nada comparável a um casamento em Notre-Dame – disse-me Elliott em tom benevolente. – Mas, para um casamento protestante, não deixou de ser correto.

A imprensa se mantivera à altura; com ar despreocupado Elliott me atirou os recortes. Mostrou-me também fotografias de Isabel, pesadona, mas bonita no seu vestido de noiva; e Gray, maciço, mas belo rapaz, não parecendo muito à vontade nos trajes próprios para a ocasião. Havia um grupo dos noivos com as damas de honra; outro com mrs. Bradley num suntuoso vestido e Elliott segurando o seu chapéu de seda com uma graça que só mesmo ele sabia ter. Perguntei-lhe como ia indo mrs. Bradley.

– Emagreceu muito, e não gostei nada da sua cor, mas vai indo bem. Tudo isso, naturalmente, foi um esforço para ela, mas agora poderá descansar tranquilamente.

Um ano mais tarde Isabel teve uma filha a quem, de acordo com a moda da época, deu o nome de Joan; dali a dois anos teve outra filha, que, também para acompanhar a moda, se chamou Priscilla.

Um dos sócios de Henry Maturin morreu e os outros, sob pressão, se retiraram da firma, de modo que ele ficou sendo o único dono de um negócio que sempre administrara despoticamente. Viu então realizada a maior ambição de sua vida, que era admitir Gray como sócio. Nunca a firma estivera tão florescente.

– Estão ganhando dinheiro a rodo, caro amigo – contou-me Elliott. – Imagine você, com vinte e cinco anos de idade Gray está ganhando cinquenta mil dólares por ano, e isso é apenas o começo. Os recursos da América são inesgotáveis. Não se trata de falsa prosperidade, é apenas o desenvolvimento natural de uma grande nação.

Seu peito se encheu de exagerado patriotismo.

– Henry Maturin não viverá eternamente; ele tem pressão muito alta, você sabe. Quando chegar aos quarenta anos, provavelmente Gray terá uma fortuna de vinte milhões de dólares. Principesco, caro amigo, principesco.

Elliott mantinha regular correspondência com a irmã; de vez em quando, à medida que os anos iam passando, me contava as notícias que mrs. Bradley lhe dava. Gray e Isabel eram muito felizes, as crianças uns amores. Viviam num estilo que com prazer Elliott reconhecia ser o apropriado; recebiam muito e saíam muito. Foi com visível satisfação que ele me contou que Isabel e Gray não tinham jantado sós num espaço de três meses. A corrente de divertimentos foi interrompida pela morte de mrs. Maturin, aquela senhora apagada e de boa família, com quem Henry Maturin se casara pelas suas ótimas relações, quando estava procurando vencer na cidade aonde seu pai chegara como matuto. Em respeito à sua memória, durante um ano o jovem par nunca recebeu, para jantar, mais que seis pessoas de uma vez.

– Sempre achei que oito era o número ideal – disse Elliott, resolvido a encarar o lado bom das coisas. – É suficientemente íntimo para permitir uma conversa geral, e bastante grande para dar impressão de uma reunião.

Gray era generosíssimo com a esposa. No nascimento da primeira filha deu-lhe um brilhante quadrado e no da segunda um casaco de vison. Andava muito ocupado para poder sair de Chicago, mas, quando podia sair de férias, iam para a importante mansão de Henry Maturin, em Marvin. Henry não podia negar coisa alguma ao filho adorado, e em certo Natal presenteou-o com uma plantação na Carolina do Sul, para que ali pudesse caçar patos, na estação propícia.

– Claro que nossos reis do comércio correspondem aos grandes patronos das artes da Renascença italiana, que fizeram fortuna no comércio – disse-me Elliott. – Os Medici, por exemplo. Houve dois reis franceses que não se julgaram diminuídos por casar com filhas dessa ilustre família, e vejo o dia em que as cabeças coroadas da Europa procurarão a mão das nossas princesas dos dólares. Que foi mesmo que Shelley disse? A grande idade recomeça agora, voltam os anos de ouro.

Durante tantos anos zelara Henry Maturin pelos interesses de mrs. Bradley e Elliott, que estes tinham imensa confiança no seu critério. Maturin nunca fora a favor de especulações e empregara o dinheiro deles em títulos seguros; mas, com a valorização, os dois irmãos viram suas fortunas, relativamente modestas, aumentadas de uma maneira que os deixou surpresos e encantados. Elliott contou-me que, sem que ele tivesse mexido uma palha, de 1918 a 1926 sua fortuna duplicara. Estava agora com sessenta e cinco anos, tinha cabelos grisalhos, rosto enrugado e olhos empapuçados, mas mesmo assim suportava com galhardia o peso dos anos; era magro e mantinha-se mais teso do que nunca; sempre fora moderado e cuidara do físico. Enquanto pudesse fazer seus ternos no melhor alfaiate de Londres, entregar-se aos cuidados do seu barbeiro particular, e de uma massagista que vinha todas as manhãs ajudá-lo a manter em perfeitas condições o corpo esbelto, Elliott não tinha a menor intenção de submeter-se aos estragos do tempo. Havia muito se esquecera que houvera época em que se rebaixara a ponto de negociar; e por meias palavras, pois não sendo idiota não ia dizer uma flagrante mentira, dava a entender que na mocidade fizera parte do corpo diplomático. Confesso que, se algum dia eu houvesse de pintar o retrato de um embaixador, teria sem hesitação escolhido Elliott para modelo. Mas as coisas estavam mudando. As grandes damas que o tinham auxiliado na sua carreira estavam ou mortas ou em idade avançada. As nobres inglesas, tendo perdido os maridos, viam-se obrigadas a entregar suas mansões às noras, retirando-se para vilas em Cheltenham ou modestas casas em Regent Park. Stafford House foi transformada em museu, Curzon House tornou-se o centro de uma organização, Devonshire House foi posta à venda. O iate onde Elliott costumava ficar quando ia a Cowes mudara de dono. As pessoas elegantes que atualmente ocupavam o centro do palco pouco se importavam com o homem idoso que Elliott era agora. Achavam-no cansativo e ridículo. Ainda compareciam de boa vontade aos seus complicados almoços, no Claridge, mas Elliott era bastante perspicaz para perceber que vinham mais por causa uns dos outros do que para vê-lo. Agora já ele não podia escolher à vontade entre os convites que antigamente lhe abarrotavam a escrivaninha e, mais frequentemente do que desejaria que se soubesse, sofria a humilhação de jantar sozinho na intimidade do seu apartamento. As senhoras da alta roda, na Inglaterra, quando devido a algum escândalo lhes veem fechadas as portas da sociedade, começam a interessar-se por arte e artistas, cercando-se de pintores, escritores, músicos. Elliott era por demais orgulhoso para sujeitar-se a tal humilhação.

– Os impostos de transmissão causa mortis e os aproveitadores da guerra estragaram a sociedade inglesa – disse-me ele. – Hoje ninguém mais faz questão de escolher suas relações. Londres ainda tem seus alfaiates, sapateiros e chapeleiros, e espero que durem enquanto eu durar; mas, fora disso, não vale mais nada. Meu caro amigo, imagine que a mesa dos St. Erth é agora servida por mulheres.

Elliott fez esses comentários quando nos afastávamos do Carlton House Terrace, após um almoço onde se dera um desagradável incidente. O nobre que nos convidara possuía uma boa coleção de quadros, e um americano chamado Paul Barton, que lá ia pela primeira vez, manifestou desejo de conhecê-la.

– O senhor tem um Ticiano, não tem?

– Tínhamos. Está agora na América. Um judeu qualquer nos ofereceu por ele um bom dinheiro e, como estávamos apertados na ocasião, o velho vendeu-o.

Notei que Elliott, todo eriçado, atirou um olhar venenoso ao jovial marquês, e adivinhei que fora ele quem comprara o quadro. Ficou furioso por se ver assim descrito, ele, um virginiano e descendente de um dos signatários da Declaração da Independência. Jamais sofrera igual afronta. E o pior era que detestava Paul Barton. O rapaz aparecera em Londres logo depois da guerra; tinha vinte e três anos, era louro, bonito e simpático, dançava admiravelmente e tinha ampla fortuna. Viera recomendado a Elliott e este, com sua bondade natural, o apresentara a vários amigos. Não satisfeito com isso, dera-lhe alguns valiosos conselhos sobre conduta. Baseando-se em sua própria experiência, deu-lhe a entender que, com pequenas gentilezas a senhoras idosas, e dando ouvidos a homens de destaque, por mais tediosos que fossem, não seria difícil a um estranho introduzir-se na sociedade.

Mas o mundo que aguardava Paul Barton era muito diferente daquele onde, uma geração antes, Elliott Templeton penetrara à custa de incrível perseverança. Era um mundo que só pensava em divertir-se. O gênio alegre de Paul Barton, seu físico agradável e maneiras insinuantes fizeram por ele em algumas semanas o que Elliott só conseguira com anos de persistência e força de vontade. Logo já ele não precisou do auxílio de Elliott e pouco fez para esconder esse fato. Tratava-o amavelmente, quando se encontravam, mas de uma maneira distante que ofendia profundamente o homem idoso. Elliott não escolhia seus convidados por simpatia, e sim visando ao sucesso da reunião; como Paul Barton era muito popular, continuou a convidá-lo a um ou outro dos seus almoços semanais, mas o afortunado rapazinho em geral estava comprometido e por duas vezes deixou Elliott na mão à última hora. Elliott fizera isto muitas vezes para não desconfiar que o outro recebera convite mais tentador.

– Você não é obrigado a acreditar, mas juro que agora, quando nos encontramos, é ele quem toma ares protetores para comigo – disse-me Elliott, fulo de raiva. – comigo. Ticiano. Ticiano – gaguejou ele. – Garanto que se visse um Ticiano não saberia reconhecê-lo.

Eu nunca vira Elliott tão encolerizado e calculei que talvez fosse por acreditar que Paul Barton perguntara sobre o quadro por maldade, tendo chegado a saber que fora comprado por Elliott, e pretendendo divertir-se à custa dele, quando contasse o caso e a resposta do marquês.

– Ele não passa de um esnobezinho indecente, e se há coisa que detesto no mundo é o esnobismo. Se não fosse por mim, não teria dado um passo. Talvez você não acredite, mas o pai dele fabricava móveis de escritório. Móveis de escritório! – Elliott conseguiu pôr um causticante desprezo nessas três palavras. – E quando digo que ele nem existe na América, que sua origem não podia ser mais humilde, ninguém parece dar a isso a mínima importância. Ouça o que lhe digo, meu caro; a sociedade inglesa exalou o seu último suspiro.

E nem Elliott achava a França em melhores condições. Ali, as nobres damas do seu tempo que ainda viviam tinham-se dedicado ao bridge (jogo que ele abominava), a obras de caridade e à educação dos netos. As imponentes mansões da aristocracia eram agora habitadas por industriais, argentinos, chilenos e senhoras americanas separadas dos maridos, que recebiam muito e com grande pompa; mas nas suas festas Elliott tinha a surpresa de encontrar políticos que falavam o francês com pronúncia vulgar, jornalistas que não sabiam comportar-se à mesa, e até mesmo atores. Rebentos de famílias reais não se envergonhavam de casar com filhas de negociantes. Inegavelmente Paris era uma cidade alegre, mas com que falsa alegria! Na sua insaciável sede de gozo, os moços não achavam nada mais divertido do que correr de um abafado cabaré a outro, tomando champanhe a cem francos a garrafa, e dançando, até cinco da madrugada, lado a lado com a ralé. A fumaça, o calor, o barulho davam dor de cabeça a Elliott. Não era esta a Paris que trinta anos antes ele aceitara como sua morada espiritual. Não era esta a Paris para onde os bons americanos iam quando morriam.


4

Mas Elliott tinha faro. Uma voz íntima sussurrou-lhe que a Riviera ia tornar-se novamente o ponto de reunião dos nobres e dos elegantes. Conhecia bem o litoral; várias vezes, ao voltar de Roma onde fora cumprir seus deveres na corte pontifícia, passara alguns dias em Monte Carlo, ou em Cannes, na vila de um ou outro dos seus amigos. Mas isso fora no inverno, e ultimamente os murmúrios indicavam que estava sendo procurada para lugar de veraneio. Os grandes hotéis conservavam-se abertos; os nomes dos veranistas apareceram nas colunas sociais do Herald de Paris e Elliott leu os conhecidos nomes com ar de aprovação.

– Estou cansado do mundo – disse ele. – Cheguei a uma época da vida em que meu desejo é apreciar os encantos da natureza.

Talvez a observação pareça obscura. Mas não o é. Elliott sempre considerara a natureza um empecilho à vida social, e não tinha muita paciência com as pessoas que se davam ao trabalho de ir ver um lago, ou uma montanha, quando tinham diante dos olhos uma cômoda da Regência ou um quadro de Watteau. Naquela ocasião ele podia dispor de uma grande quantia. Atiçado por Gray e exasperado por ver seus amigos fazerem, na Bolsa, fortunas da noite para o dia, Henry Maturin finalmente se deixara arrastar pela corrente, e, abandonando pouco a pouco seus métodos conservadores, não vira motivo para não se aproveitar também da situação. Escreveu a Elliott, dizendo que como sempre continuava avesso a jogatinas, mas que aquilo não era especulação e sim uma prova da confiança que tinha nos inesgotáveis recursos do país. Seu otimismo tinha por base o bom senso. Ele não via obstáculo ao progresso da América. Terminava dizendo que comprara para Louisa Bradley, depositando margem, um certo número de títulos seguros, e que tinha o prazer de participar a Elliott que ela estava com um lucro de vinte mil dólares. Finalmente, se Elliott quisesse ganhar dinheiro e lhe permitisse seguir o seu critério, tinha ele quase certeza de que não o decepcionaria. Inclinado a usar as mais surradas citações, Elliott disse que tinha forças para resistir a tudo, menos à tentação; como consequência disso, quando lhe traziam o Herald, ao café da manhã, em vez de olhar a coluna social, hábito de tantos anos, concentrava toda a sua atenção nas cotações da Bolsa. Tão bom resultado tiveram as transações de Henry Maturin em seu favor que Elliott se via agora com a bela quantia de cinquenta mil dólares, que nada fizera para ganhar.

Decidiu liquidar, e com o lucro comprar uma casa na Riviera. Como retiro do mundo, escolheu Antibes, que ficava em posição estratégica entre Cannes e Monte Carlo, sendo acessível a essas duas cidades; mas é impossível dizer-se se foi a mão da Providência ou o seu instinto seguro que determinou a escolha de um lugar que logo se tornaria o centro da moda. Morar numa vila com jardim era de uma vulgaridade suburbana que repugnava ao seu exigente paladar; assim sendo, Elliott comprou duas casas dando para o mar, na parte velha da cidade, demoliu-as e construiu uma só, ali instalando aquecimento central, banheiros e todas as comodidades sanitárias que o exemplo americano impusera a um recalcitrante continente. A grande moda naquela época era decapé e, portanto, ele mobiliou a casa com móveis em estilo provençal, onde foi antes, devidamente, feito o serviço de decapé; além disso, cedeu discretamente ao modernismo escolhendo tecidos da atualidade. Tinha ainda má vontade em aceitar pintores como Picasso e Braque – “horrores, caro amigo, horrores!” –, de quem entusiastas mal orientados faziam muita propaganda, mas finalmente se achara no direito de estender sua proteção aos impressionistas, e nas paredes de sua casa se viam quadros bem bonitos. Lembro-me de um Monet, de algumas pessoas remando num rio; um Pissarro, de um trecho do cais e uma ponte do Sena; de uma paisagem do Taiti, de Gauguin; e de um encantador Renoir, uma moça de perfil com longos cabelos louros soltos nas costas. Depois de pronta, a casa ficou alegre, fresca, original; e simples, também, com aquela simplicidade que a gente sabe que só pode ser adquirida à custa de muito dinheiro.

Começou então o período de maior esplendor da vida de Elliott. Ele trouxe de Paris o seu excelente cozinheiro, e logo foi devidamente reconhecido que ele tinha a melhor mesa da Riviera. Vestiu de branco o mordomo e o lacaio, com galões dourados nos ombros. Recebia com uma magnificência que jamais ultrapassou os limites do bom gosto. O litoral do Mediterrâneo estava repleto de nobres de todas as partes da Europa, alguns atraídos pelo clima; outros em exílio; outros porque um passado escandaloso ou casamento desigual tornava preferível a existência no estrangeiro. Havia Rumanoffs da Rússia, Habsburgos da Áustria, Bourbons da Espanha, das duas Sicílias e Parma; havia príncipes da Casa de Windsor e príncipes da Casa de Bragança; Altezas da Suécia e Altezas da Grécia; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Havia príncipes e princesas não de sangue real, duques e duquesas, marqueses e marquesas da Áustria, Itália, Espanha, Rússia e Bélgica; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. No inverno, o rei da Suécia e o rei da Dinamarca vieram passar uns tempos no litoral; de vez em quando Afonso da Espanha aparecia para uma rápida visita; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Nunca me cansei de admirar, quando com graça cortesã ele se curvava diante daqueles augustos personagens, da maneira com que conseguia manter a atitude independente de cidadão de um país onde dizem que todos os homens são iguais.

Depois de ter viajado durante alguns anos, eu comprara uma casa em Cap Ferrat e, portanto, via Elliott frequentemente. Tão alto subira eu no seu conceito que muitas vezes ele me convidava às suas mais pomposas reuniões.

– É um favor que me faz, caro amigo – dizia ele. – Garanto-lhe que, tanto quanto você, sei que os nobres estragam uma reunião. Mas as outras pessoas gostam de encontrá-los e acho que a gente tem obrigação de dar um pouco de atenção aos pobres coitados. Se bem que só Deus sabe que não são merecedores! São as pessoas mais ingratas deste mundo; usam e abusam da gente e, quando acham que não temos mais serventia, empurram-nos para um lado como um trapo; aceitam inúmeros favores, mas nenhum deles se daria ao trabalho de atravessar a rua para em troca nos fazer uma gentileza.

Elliott se esforçava por ficar de bem com as autoridades locais; o prefeito do distrito, assim como o bispo da diocese e o vigário-geral muitas vezes honravam a sua mesa. Antes de se ordenar, o bispo fora oficial de cavalaria e na guerra comandara um regimento. Homem atarracado, rubicundo, que fazia questão de usar a linguagem rude da caserna; seu austero e cadavérico vigário-geral estava sempre em palpos de aranha, tal o medo de que ele dissesse alguma coisa escabrosa. Ouvia com um sorriso súplice, quando seu superior contava alguma das suas histórias prediletas. Mas o bispo dirigia a diocese com grande competência, e sua eloquência no púlpito só podia ser comparada ao espírito dos seus ditos à mesa. Ele apreciava Elliott pela generosidade de suas contribuições para a Igreja, e gostava dele pela sua amabilidade e bons almoços que proporcionava; os dois tornaram-se grandes amigos. Elliott podia congratular-se por estar assim cuidando ao mesmo tempo deste mundo e do outro; e, se me é permitida uma observação, ia conseguindo um arranjo muito satisfatório entre Deus e Mamon.

Elliott sabia apreciar o que era seu, e estava aflito para mostrar a casa nova à irmã; sempre notara nela certa reserva, e queria que mrs. Bradley visse em que estilo vivia ele agora e que roda frequentava. Isso poria ponto final às suas hesitações; ela teria que concordar que ele vencera. Escreveu-lhe, portanto, convidando-a para vir com Gray e Isabel, não para a casa dele, pois não tinha acomodações, mas para se hospedarem, como seus convidados, no vizinho Hôtel du Capo. Mrs. Bradley replicou que seus dias de viagem estavam findos, pois sua saúde não era boa e ela se sentia melhor em casa; além do mais, Gray não poderia ausentar-se de Chicago, pois os negócios estavam florescendo e ele ganhando muito dinheiro, tendo que ficar ali à mão. Elliott era afeiçoado à irmã e a carta o alarmou. Escreveu a Isabel sobre isso. Ela respondeu por cabograma que, embora sua mãe não andasse nada boa, tendo que ficar de cama um dia por semana, nem por isso estava em perigo de vida, podendo mesmo, com cuidado, durar ainda muito tempo; mas Gray precisava de descanso, e, com o pai a cuidar dos negócios, não havia motivo para que ele não tirasse umas férias. Assim sendo, não neste verão, mas no próximo, ela e Gray lhe aceitariam o convite.

No dia 23 de outubro de 1929 deu-se o pânico na Bolsa de Nova York.


5

Estava eu em Londres, nessa época, e a princípio ninguém na Inglaterra compreendeu a gravidade da situação nem como seriam funestas as consequências. Quanto a mim, embora pesaroso pelo prejuízo de enorme quantia, perdi na realidade lucros realizados no papel; assim sendo, quando a coisa serenou vi que, em dinheiro, eu não estava muito mais pobre do que antes. Sabia que Elliott andara jogando pesadamente e temi que tivesse sofrido enorme perda, mas só o vi no Natal quando fomos ambos para a Riviera. Ele me contou então que Henry Maturin morrera e Gray estava arruinado.

Pouco entendo de negócios e é possível que minha relação dos acontecimentos, como me foram contados por Elliott, pareça confusa. Pelo que pude compreender, a catástrofe que se abatera sobre a firma fora causada em parte pela teimosia de Henry Maturin e em parte pela precipitação de Gray. A princípio Henry Maturin não quisera acreditar que a baixa fosse séria, convencido de que se tratava de uma conspiração por parte dos corretores de Nova York, para passarem a perna nos seus colegas provincianos; assim sendo, ficara firme e começara a desembolsar dinheiro para sustentar o mercado. Vociferava contra os corretores de Chicago, que se deixavam atemorizar por aqueles canalhas de Nova York. Sempre se vangloriara de que seus clientes modestos, viúvas com renda certa, oficiais aposentados etc., jamais tinham perdido por lhe seguir os conselhos; e agora, em vez de permitir que cada um arcasse com seus prejuízos, ele completava as margens com sua fortuna particular. Dizia que estava disposto a aceitar a ruína, que poderia fazer depois nova fortuna, mas que, se permitisse que os coitados que haviam confiado nele perdessem tudo o que tinham, nunca mais poderia andar de cabeça erguida. Pensava que estava sendo magnânimo, mas na realidade estava apenas sendo vaidoso. Sua imensa fortuna evaporou-se e certa noite ele teve um ataque de coração. Estava com mais de sessenta anos, e sempre trabalhara com afinco, jogara muito, comera demais e bebera em excesso; após algumas horas de agonia, morreu de trombose coronária. Gray ficou só para enfrentar a situação. Também ele especulara grandemente pelo seu lado, sem o conhecimento do pai, e estava em grandes dificuldades. Seus esforços para salvar-se falharam. Os bancos não lhe faziam empréstimos; homens mais velhos, na Bolsa, disseram-lhe que a única coisa a fazer era entregar os pontos. Não estou muito certo quanto ao resto da história. Não conseguindo saldar seus compromissos ele foi, creio eu, declarado falido; já hipotecara sua casa e sentiu alívio em entregá-la aos credores; a casa de seu pai, em Lake Shore Drive, e a de Marvin foram vendidas pelo que puderam alcançar; Isabel vendeu suas joias. Tudo que lhe restou foi a plantação na Carolina do Sul, que estava em nome de Isabel, mas para a qual não foi possível encontrar comprador. Gray ficou limpo.

– E quanto a você, Elliott? – perguntei.

– Oh! não me queixo – respondeu ele despreocupadamente. – Deus dá o frio conforme a coberta.

Não insisti, pois nada tinha com sua situação financeira, mas, fossem quais fossem os prejuízos, achei que ele devia ter sofrido como todos nós.

A princípio a depressão não atingiu em cheio a Riviera. Ouvi falar de duas ou três pessoas que tinham tido grandes prejuízos, muitas vilas ficaram fechadas durante o inverno e outras foram postas à venda. Os hotéis estavam vazios e a gerência do Cassino de Monte Cado queixou-se da pobreza do movimento. Mas foi somente dali a dois anos que se compreendeu a extensão do desastre. Um corretor de imóveis contou-me que, na faixa de litoral que ia de Toulon à fronteira italiana, havia quarenta e oito mil propriedades, grandes e pequenas, à venda. As ações do Cassino caíram repentinamente. Os grandes hotéis baixaram seus preços, numa vã tentativa de atrair. Os únicos estrangeiros que se viam eram aqueles que tinham sido sempre tão pobres que não podiam ficar mais pobres, e que não gastavam porque não tinham o que gastar. Os lojistas desesperavam-se. Mas Elliott não somente não despediu nenhum dos seus empregados, como também não lhes diminuiu o ordenado, como muitos haviam feito; continuou a oferecer, aos nobres e aos de sangue real, lautos jantares regados a bons vinhos. Comprou um vasto carro novo, importado da América e sobre o qual teve que pagar pesados direitos alfandegários. Contribuiu, generosamente, para as obras de caridade que o bispo organizara para distribuir comida grátis aos desempregados. Em resumo, vivia como se não houvesse crise e metade do mundo não estivesse a sofrer as consequências.

Descobri por acaso a razão disso. Elliott já não ia à Inglaterra, a não ser por quinze dias ao ano, para comprar suas roupas, mas conservava o hábito de transferir sua residência para o apartamento de Paris durante três meses, no outono, e em maio e junho, época em que seus amigos abandonavam a Riviera. Era aqui que gostava de passar o verão, em parte por causa dos banhos, mas principalmente, pelo menos assim o julgo eu, porque os dias quentes lhe permitiam satisfazer o gosto que tinha pelas vestimentas alegres, que sua dignidade até então não lhe permitira usar. Ele apareceria com calças de cores surpreendentes, vermelhas, azuis, verdes ou amarelas, usando camisas de tons contrastantes – lilás, violeta, castanho-escuro – ou mesmo axadrezadas; e, com o modesto sorriso da atriz a quem dizem que representou um novo papel divinamente, aceitaria os parabéns que seus trajes estavam a exigir.

Aconteceu que passei um dia em Paris, na primavera, antes de voltar para Cap Ferrat, e convidei Elliott para almoçar comigo. Encontramo-nos no bar do Ritz, não mais repleto de estudantes que vinham da América para se divertir, mas deserto como um teatro após a estreia de uma peça que fracassou. Tomamos um coquetel, hábito transatlântico com o qual Elliott finalmente se conformara, e encomendamos o almoço. Quando acabamos ele propôs um giro pelos antiquários; respondi que, embora não tivesse dinheiro para gastar, teria muito prazer em acompanhá-lo. Atravessamos a Place Vendôme e ele me perguntou se eu me importava de dar com ele um pulinho até Charvet; tinha encomendado umas roupas e desejava saber se estavam prontas. Pareceu-me que encomendara umas camisas e umas cuecas e nelas mandara bordar suas iniciais. As camisas ainda não haviam chegado, mas as cuecas estavam ali, e o caixeiro perguntou-lhe se gostaria de vê-las.

– Gostaria, sim – respondeu Elliott. Depois que o homem se afastou ele virou-se para mim e acrecentou: – Mandei fazê-las, sob encomenda, de acordo com um modelo que eu mesmo imaginei.

Vieram as cuecas e, a não ser pelo fato de serem de seda, pareceram-me idênticas às que eu costumava comprar em Macy; mas o que me chamou atenção foi uma coroa de conde sobre as iniciais E. T. Não fiz, porém, o mínimo comentário.

– Ótimas, ótimas – declarou Elliott. – Pois bem, quando as camisas estiverem prontas, faça o favor de me mandar tudo junto.

Saímos da loja e, enquanto caminhávamos, Elliott virou-se para mim, sorrindo:

– Você reparou na coroa? Para ser franco, tinha-me esquecido disso quando o convidei para vir comigo até Charvet. Não sei se já tive ocasião de lhe contar que Sua Santidade houve por bem ressuscitar em meu favor o nosso velho título de família.

– Seu o quê? – exclamei, o espanto fazendo-me esquecer a polidez.

Elliott ergueu as sobrancelhas em ar desaprovador.

– Você não sabia? Descendo, pelo lado materno, do conde de Lauria que veio para a Inglaterra na comitiva de Filipe ii, casando-se com uma dama de honra da rainha Maria.

– Nossa velha amiga Maria, a Sanguinária?

– Parece-me que é assim que a chamam os hereges – replicou Elliott secamente. – Creio que nunca lhe contei que passei o mês de setembro de 29 em Roma. Achei enfadonho ter que ir, pois Roma está vazia nessa ocasião; mas foi para mim uma sorte ter o sentimento do dever prevalecido sobre o meu desejo de divertir-me. Meus amigos do Vaticano avisaram-me que a crise era inevitável e me aconselharam vivamente a vender meus títulos americanos.

A Igreja Católica conta com a sabedoria de vinte séculos, e não hesitei por um momento sequer. Mandei a Henry Maturin um cabograma, dando-lhe instruções para vender tudo e comprar ouro, e um a Louisa, aconselhando-a a fazer o mesmo. Henry mandou-me outro, perguntando se eu enlouquecera e declarando que nada faria até receber confirmação. Foi o que fiz e de maneira peremptória, dizendo-lhe que seguisse minhas instruções e me avisasse assim que as tivesse cumprido. A pobre Louisa não me deu atenção e sofreu as consequências.

– Quer dizer que, quando houve o pânico, você já se tinha defendido direitinho?

– Expressão de gíria, caro amigo, para a qual não vejo necessidade, mas que define bem a situação. Não tive prejuízo algum; ao contrário, pode-se mesmo dizer que ganhei uma bolada. Tempos depois, por uma fração do preço primitivo, pude comprar novamente os meus títulos; e, já que devia isso ao que considero direta intervenção da Providência, achei mais do que justo que, em troca, fizesse também alguma coisa para a Providência.

– E de que maneira você se desempenhou disso?

– Pois bem, você não ignora que o Duce mandou sanear os Pântanos Pontinos, e cheguei a saber que Sua Santidade estava gravemente preocupado com a falta de lugares de oração para os colonos. E, portanto, para encurtar uma longa história, construí uma igrejinha românica, reprodução exata de uma que visitei na Provença, perfeita em todos os detalhes e que, embora seja eu quem o diga, é uma verdadeira joia. Foi consagrada a são Martinho, porque tive a sorte de encontrar um vitral antigo representando são Martinho no ato de rasgar sua capa em duas para dar a metade a um mendigo nu; e, como o simbolismo me pareceu tão adequado, comprei-o e coloquei-o sobre o altar-mor.

Não interrompi Elliott para lhe perguntar que relação via ele entre a célebre ação do santo e a desistência dele, Elliott, de parte do lucro que tivera por vender na hora certa e que, como a comissão de um agente, ele pagava a um poder superior. Mas, para uma pessoa prosaica como eu, muitas vezes o simbolismo é obscuro. Elliott continuou:

– Quando tive a honra de mostrar as fotografias ao Santo Padre, ele condescendeu em dizer-me que de relance podia ver que eu era um homem de gosto impecável, acrescentando ser para ele um prazer encontrar nessa era de perdição uma pessoa que combinava fervor religioso com raros dons artísticos. Uma experiência memorável, caro amigo, uma experiência memorável. Mas ninguém ficou mais admirado do que eu quando, pouco depois, vim a saber que ele houvera por bem conferir-me um título. Como cidadão americano acho mais modesto não usá-lo, a não ser, naturalmente, no Vaticano, e proibi meu criado Joseph de me chamar de monsieur le Comte. Espero que você respeite o meu segredo; não quero que a notícia se espalhe. Mas também não desejo que o Santo Padre julgue que não aprecio a honra que me conferiu, e é puramente em consideração a ele que mandei bordar a coroa na minha roupa de baixo. Não me importo de confessar-lhe, caro amigo, que sinto um modesto orgulho em esconder minha classe sob o simples título de cavalheiro norte-americano.

Separamo-nos, tendo Elliott me dito que viria à Riviera em fins de junho. Mas não veio. Acabara de providenciar a transferência de sua criadagem, de Paris para a Riviera, pretendendo ele viajar tranquilamente de carro, a fim de encontrar tudo em ordem quando chegasse, quando recebeu um cabograma de Isabel avisando que o estado de saúde de sua mãe se agravara. Além de ser afeiçoado à irmã, Elliott tinha, como já disse, um arraigado instinto de família. Tomou em Cherburgo o primeiro vapor, e de Nova York foi para Chicago. Escreveu-me contando que mrs. Bradley estava muito doente e que ele levara um choque ao ver como emagrecera. Talvez ela durasse algumas semanas, ou mesmo meses; em todo caso, cabia-lhe o triste dever de ficar ao lado dela até o fim. Disse que achara o intenso calor mais suportável do que imaginara, mas que a falta de convivência com pessoas com quem pudesse ter afinidade só não lhe pesava pelo fato de não estar no momento em disposição festiva. Ficara decepcionado com a maneira pela qual seus compatriotas haviam reagido contra a depressão; esperara deles maior serenidade na desgraça. Sabendo eu que não há nada mais fácil do que suportar com fortaleza de ânimo os desastres alheios, achei que, mais rico agora do que em qualquer outra época da vida, talvez Elliott não tivesse o direito de se mostrar tão severo. Terminava a carta mandando recados para vários amigos seus, recomendando que eu não esquecesse de explicar a todos a razão pela qual sua casa permanecia fechada no verão.

Dali a um mês e pouco recebi outra carta sua, comunicando-me a morte de mrs. Bradley. Escreveu com sinceridade e emoção. Eu não o teria julgado capaz de se exprimir com tanta dignidade, sentimento e simplicidade, se há muito não tivesse percebido que apesar de seu esnobismo e incrível afetação Elliott era um homem bom, amoroso e sincero. Na carta ele me contou que os negócios de mrs. Bradley não estavam muito em ordem. Seu filho mais velho, diplomata, encarregado de negócios em Tóquio na ausência do embaixador, não pudera, naturalmente, abandonar seu posto. O segundo filho, Templeton, que estivera morando nas Filipinas quando eu conhecera os Bradley, fora, com o tempo, devidamente chamado a Washington e ocupava um posto importante no Departamento de Estado. Viera a Chicago com a esposa, ao ser notificado do estado desesperador de sua mãe, mas vira-se obrigado a voltar para a capital logo depois do enterro. Nestas circunstâncias, Elliott julgava-se na obrigação de ficar na América até que as coisas endireitassem. Mrs. Bradley dividira igualmente a fortuna entre os três filhos, mas parece que seus prejuízos na crise de 29 haviam sido pesadíssimos. Felizmente tinham encontrado comprador para a fazenda de Marvin. Na carta, Elliott dizia “a propriedade rural da cara Louisa”.

“É sempre triste quando uma família tem que dispor de sua morada ancestral”, escreveu-me ele. “Mas ultimamente tenho visto tantas vezes meus amigos ingleses forçados a isso, que acho que Isabel e meus sobrinhos devem aceitar o inevitável com a mesma coragem e resignação que eles demonstraram. Noblesse oblige.”

Tinham também tido a sorte de vender a casa de Chicago. Desde muito havia um projeto de derrubar a fila de casas da qual fazia parte a de mrs. Bradley, para ali construírem um bloco de apartamentos, mas os interessados tinham sido detidos pela teimosia da velha senhora, que queria morrer na casa onde sempre vivera. Nem bem exalara ela o último suspiro, de novo apresentaram uma proposta, que desta vez foi imediatamente aceita. Mas, mesmo assim, Isabel não ficava em boa situação financeira.

Depois do pânico da Bolsa, Gray tentara arranjar colocação, mesmo como empregado no escritório de algum corretor que houvesse sobrevivido à catástrofe, mas os negócios estavam parados. Pediu aos antigos amigos que lhe dessem qualquer serviço, por mais humilde e mal remunerado que fosse, mas nada conseguiu. Os frenéticos esforços que fizera para impedir o desastre, o peso da ansiedade, a humilhação resultaram num esgotamento nervoso e ele começou a ter tremendas dores de cabeça, que durante vinte e quatro horas o deixavam inutilizado e completamente sem forças depois que passavam. Isabel achou que não havia melhor solução do que irem com as crianças para a plantação da Carolina do Sul, até Gray se restabelecer. Nos bons tempos o arroz ali tinha dado cem mil dólares por ano, mas agora não passava de um lugar abandonado e selvagem, que só servia para os esportistas que quisessem caçar patos, e para o qual não se achava comprador. Ali tinham eles vivido desde a crise e para lá pretendiam voltar até que a situação melhorasse e Gray pudesse arranjar emprego.

“Eu não podia consentir numa coisa dessas”, escreveu-me Elliott. “Imagine, caro amigo, eles iriam viver como animais. Isabel sem uma criada, sem governanta para as crianças e com apenas duas negras como pajens. Resolvi, portanto, oferecer-lhes o meu apartamento em Paris e sugeri que ali fiquem até que as coisas mudem neste fantástico país. Fornecerei os empregados; além do mais, a ajudante do meu chefe sabe cozinhar muito bem, de modo que pretendo deixá-la com Isabel e arranjar alguém para substituí-la. Pagarei eu as contas, para que Isabel possa gastar sua pequena renda em vestidos e nos menus plaisirs da família. Isto, naturalmente, significa que terei que passar muito mais tempo na Riviera, e espero, portanto, ter o prazer de vê-lo mais amiúde, caro amigo.

Londres e Paris sendo o que atualmente são, sinto-me realmente mais em casa na Riviera. É o único lugar onde ainda encontro gente que fale a minha língua. Não digo que não vá a Paris de vez em quando, mas não me importarei absolutamente de me hospedar no Ritz. É com satisfação que lhe participo que finalmente convenci Gray e Isabel a acederem aos meus desejos, e pretendo levá-los comigo assim que os necessários preparativos estiverem terminados. A mobília e os quadros (insignificantes, meu caro, e da mais duvidosa autenticidade!) serão vendidos daqui a quinze dias. Neste meio-tempo, como achei que lhes seria penoso continuar a viver na casa onde minha querida irmã faleceu, trouxe-os para ficarem comigo no Drake. Assim que os tiver instalado em Paris, voltarei para a Riviera. Não se esqueça de transmitir minhas lembranças ao seu real vizinho.”

Quem poderia negar que Elliott, aquele ultraesnobe, era também o mais bondoso, mais delicado e generoso dos homens?


Quatro

Quatro


1

Tendo instalado os Maturin no seu apartamento da Margem Esquerda, no fim do ano Elliott voltou para a Riviera. Construíra a casa para si próprio e nela não havia lugar para uma família de quatro pessoas, de modo que, mesmo que fosse esse o seu desejo, ele não os poderia ter ali recebido. Não creio, no entanto, que o fato lhe causasse desprazer. Sabia perfeitamente que, sozinho, teria mais cotação do que se estivesse sempre na companhia de sobrinho e sobrinha; além do mais, a tarefa de organizar suas distintíssimas reuniões (assunto que tanto o preocupava) ficaria dificultada se tivesse invariavelmente que contar com a presença de dois hóspedes.

– É preferível que eles se instalem em Paris e se habituem à vida civilizada – disse-me Elliott. – Além do mais, as duas meninas já estão em idade de ir para a escola. Encontrei, mais ou menos perto do apartamento, uma que me afirmaram ser muito seleta.

Assim sendo, só vi Isabel na primavera, na ocasião em que, devido a um trabalho que pedia a minha permanência em Paris durante algumas semanas, tomei quartos num hotel perto da Place Vendôme. Era um hotel que eu frequentava não somente por ser bem situado, mas porque tinha atmosfera. Casarão antigo, à volta de um pátio; funcionava como hospedaria havia bem uns duzentos anos. Os banheiros estavam longe de ser luxuosos, os encanamentos deixavam muito a desejar; os quartos, com suas camas esmaltadas de branco, colchas brancas fora de moda e enormes armoires à glace, tinham uma aparência pobre; mas os salões eram mobiliados com belas peças antigas. O sofá e as poltronas datavam do alegre reinado de Napoleão iii e, embora eu não possa dizer que fossem confortáveis, tinham um garrido encanto. Naquela sala eu vivia no passado dos romancistas franceses. Ao olhar para o relógio Império sob a sua redoma de vidro, eu imaginava uma bela mulher de cabelos cacheados e vestido de franja a observar o ponteiro dos minutos enquanto esperava pela visita de Rastignac, aquele aristocrático aventureiro cuja carreira, em romance após romance, Balzac acompanhou desde o seu humilde começo até o esplendor final. E o dr. Bianchon – médico tão real a Balzac que no seu leito de morte este exclamou: “Somente Bianchon poderá salvar-me” – talvez tivesse entrado naquela sala, para tomar o pulso e examinar a língua de uma duquesa-mãe, que viera da província consultar um advogado sobre um complicado processo e chamara um médico devido a uma indisposição passageira. É possível que, à escrivaninha, uma dama de crinolina e cabelos repartidos ao meio tivesse escrito uma carta apaixonada ao amante infiel, ou um velho e assanhado fidalgo de casaco verde e pescocinho talvez houvesse redigido irada epístola ao seu extravagante primogênito.

No dia seguinte ao de minha chegada, telefonei a Isabel perguntando se podia ir tomar uma xícara de chá em sua companhia, às cinco horas. Fazia dez anos que não a via. Quando o circunspecto mordomo me introduziu na sala, ela estava lendo um romance francês. Levantou-se, tomou-me ambas as mãos, recebendo-me com um sorriso caloroso e amável. Em toda a minha vida eu não a vira mais que uma dúzia de vezes, e apenas duas a sós, mas ela me fez, imediatamente, sentir como se fôssemos velhos amigos e não apenas conhecidos. Os dez anos decorridos haviam diminuído o abismo que separara a mocinha do homem maduro, e eu já não sentia a disparidade de idade entre nós. Com a lisonjeira delicadeza de uma dama da sociedade, tratou-me como se eu fosse seu contemporâneo, e dali a cinco minutos tagarelávamos com a naturalidade e franqueza de companheiros habituados a um convívio diário. Ela adquirira desembaraço, domínio sobre si e segurança.

Mas o que mais me chamou atenção foi a diferença no seu físico. Eu me lembrava de uma moça bonita, viva, com tendência para engordar; não sei se, compenetrando-se do perigo, ela fizera heroicos sacrifícios para diminuir de peso, ou se isso era uma consequência feliz, se bem que rara, da maternidade; mas agora era de uma esbeltez que satisfaria aos mais exigentes. A moda da época acentuava essa sua qualidade. Estava de preto; num relance notei que seu vestido de seda, nem muito simples, nem excessivamente complicado, fora confeccionado por uma das melhores costureiras de Paris – e ela o usava com o confiante desembaraço da mulher que está habituada a roupas caras. Dez anos antes, mesmo sob a orientação de Elliott, seus vestidos inclinavam-se para o lado vistoso e ela não parecera muito à vontade dentro deles. Mas hoje, Marie Louise de Florimond não poderia dizer que lhe faltava chie. Isabel era chie até a ponta das unhas esmaltadas de cor-de-rosa.

Suas feições tinham-se afinado; ocorreu-me que em mulher alguma eu jamais vira nariz tão bonito e tão reto. Nenhuma ruga na testa ou sob os olhos castanhos; embora sua pele tivesse perdido a resplendente frescura da adolescência, continuava tão delicada quanto antes. Provavelmente devia algum favor a loções, cremes e massagens, mas com isso adquirira uma transparência macia, suave, de singular atração. As faces magras estavam pintadas de leve e a boca discretamente acentuada. Conforme a moda do momento, Isabel usava cortados e ondulados os seus luzidios cabelos castanhos. Não lhe vi anéis nos dedos; lembrei-me então de que Elliott me contara que ela vendera suas joias. Embora não muito pequenas, as mãos eram benfeitas. Naquela época as mulheres usavam vestidos curtos durante o dia; notei que as pernas de Isabel, sob as meias cor de champanhe, eram bem torneadas, longas e finas. Perna é coisa que estraga muita mulher bonita; mas as de Isabel, antigamente o seu maior defeito, agora nada deixavam a desejar. Em resumo, de moça que atraíra pela exuberante saúde, animação e vivacidade, transformara-se em bela mulher. Pouco importava que devesse parte desse encanto à arte, disciplina e mortificações; o resultado era mais que satisfatório. É possível que a graça dos movimentos e a elegância do porte tivessem sido adquiridos intencionalmente, mas davam a impressão de absoluta espontaneidade. Provavelmente aqueles quatro meses em Paris tinham dado os últimos retoques na consciente obra de arte que levara anos a ser completada. Nem mesmo Elliott, nos seus momentos mais exigentes, encontraria nela motivo de crítica; e eu, pessoa bem mais fácil de contentar, achei-a encantadora.

Gray fora jogar golfe em Montefontaine, mas Isabel me disse que ele não tardaria.

– E você precisa ver minhas filhas. Foram ao jardim das Tulherias, mas não devem demorar. São uns amores.

Falamos de uma coisa e outra. Isabel gostava de Paris e estavam bem instalados no apartamento de Elliott. Antes de partir, este os apresentara aos amigos com quem achara que eles iriam simpatizar; tinham, portanto, um agradável círculo de relações. Elliott insistira para que recebessem com a frequência a que ele estava habituado.

– Sabe de uma coisa, acho engraçadíssimo estarmos vivendo como gente rica, quando na realidade estamos completamente arruinados – disse-me Isabel.

– Tanto assim?

Ela riu baixinho e lembrei-me agora do riso despreocupado, alegre, que tanto me agradara dez anos antes.

– Gray não tem um níquel e eu tenho quase que exatamente a mesma renda com que Larry contava na época em que queria que me casasse com ele, quando não concordei por achar que não poderíamos viver com tal quantia; e agora tenho duas filhas, ainda por cima! Não deixa de ser engraçado, não é verdade?

– Agrada-me verificar que você percebe o humorismo da situação.

– Que notícias me dá de Larry?

– Eu? Nenhuma. Nunca mais o vi, desde aquela época em que vocês estiveram aqui em Paris. Eu me dava ligeiramente com algumas pessoas que também o conheciam e perguntei que fim levara ele; mas isso há anos. Ninguém soube dizer-me. Ele sumira, simplesmente.

– Conhecemos, em Chicago, o gerente do banco onde Larry tem a sua conta, e ele nos disse que de vez em quando recebe um aviso de pagamento de algum lugar esquisito, China, Birmânia, Índia. Parece que ele tem corrido o mundo.

Não hesitei em fazer a pergunta que estava na ponta da minha língua. Afinal de contas, se a gente quer saber uma coisa, o melhor meio é perguntar.

– Você se arrependeu de não ter casado com Larry? Um sorriso insinuante apareceu nos lábios de Isabel. – Tenho sido muito feliz com Gray. É um ótimo marido. Sabe, até vir a crise, divertimo-nos imensamente. Temos os mesmos gostos, simpatizamos com as mesmas pessoas. Ele é muito bom. E é agradável ser adorada; Gray está hoje tão apaixonado por mim como quando nos casamos; considera-me a mulher mais maravilhosa deste mundo. Você não pode imaginar como é amável e delicado. E foi sempre de uma generosidade exagerada; nada era bom demais para mim. E em todos estes anos de casados, nunca me disse uma palavra áspera ou pouco amável.

Acharia ela que respondera à minha pergunta? Mudei de assunto.

– Fale-me de suas filhinhas. Nisto a campainha tocou.

– Aí estão elas. Veja você mesmo.

No momento seguinte as meninas entraram acompanhadas pela governanta; fui apresentado primeiro a Joan, a mais velha, depois a Priscilla. Cada uma me fez uma delicada reverenciazinha ao estender-me a mão. Uma tinha oito anos, a outra seis. Eram altas para a idade; Isabel, naturalmente, era alta, e lembrei-me de que Gray era imenso; mas as meninas só eram bonitas no sentido em que são bonitas todas as crianças. Pareciam frágeis. Tinham herdado os cabelos pretos do pai e os olhos castanhos da mãe. A presença de um estranho não as intimidou: em tom animado contaram a Isabel suas peripécias nos jardins. Lançaram um olhar cobiçoso às coisas gostosas que a cozinheira preparara para o chá e em que não ha víamos tocado; recebendo licença de tirar uma, viram-se no terrível dilema de não saber qual escolher. Era agradável notar com que carinho tratavam a mãe, e as três assim juntas formavam um grupo encantador. Depois de cada uma ter comido o seu bolinho, Isabel mandou-as embora e elas saíram sem uma palavra de protesto. Pareceu-me que estavam sendo educadas a obedecer.

Quando ficamos sós, eu disse as coisas que a gente costuma dizer a uma mãe a respeito de seus filhos, e Isabel aceitou os elogios com evidente, se bem que despreocupado, prazer. Pergunteilhe se Gray estava gostando de Paris.

– Bastante. Tio Elliott nos deixou um carro, de modo que ele pode jogar golfe quase todos os dias; além disso, entrou para sócio do Clube dos Viajantes, onde costuma jogar bridge. O oferecimento do tio Elliott, de nos sustentar neste apartamento, veio, naturalmente, como uma bênção dos céus. Os nervos de Gray estão em mísero estado e ele ainda tem aquelas terríveis enxaquecas; mesmo que arranjasse emprego, não estaria em condições de aceitá-lo e isso, naturalmente, o aborrece. Ele tem vontade de trabalhar, acha que deve trabalhar e sente-se humilhado por não o quererem. Sim, pois é de opinião que a missão do homem é lutar e que, não podendo cumpri-la, é preferível morrer de uma vez. Não se conforma com a sua inutilidade; só consegui trazê-lo para cá depois de convencê-lo de que a mudança e o descanso o fariam voltar ao seu normal. Mas tenho certeza de que só se sentirá feliz quando estiver de novo em plena atividade.

– Vejo que vocês sofreram bastante nestes últimos dois anos e meio.

– Pois bem, saiba que, quando veio a crise, eu simplesmente não pude acreditar nela. Parecia-me impossível que estivéssemos arruinados. Compreendia que outras pessoas estivessem na miséria, mas nós... não; era inconcebível. Continuei pensando que à última hora aconteceria alguma coisa que nos viesse salvar. E então, quando foi desferido o golpe final, achei que não valia mais a pena viver, que não me seria possível enfrentar o futuro; era por demais sombrio. Durante uma semana me senti profundamente infeliz. Céus, foi horrível ter que dispor de tudo, sabendo que estavam acabados os divertimentos, que iria ficar privada de todas as coisas de que gostava... Mas ao fim de quinze dias exclamei: “Oh! com os diabos, não vou pensar mais nisso”, e juro-lhe que não pensei mesmo. Não choro o que perdi. Diverti-me muito enquanto durou, mas agora que terminou está acabado.

– Não há dúvida de que a ruína é bem mais suportável num luxuoso apartamento, num bairro elegante, com um mordomo competente e uma excelente cozinheira – de graça, ainda por cima – e quando a gente pode cobrir a carcaça com um vestido de Chanel, não é verdade?

– Lanvin – corrigiu ela rindo baixinho. – Vejo que você não mudou muito, em dez anos. Não sei se vai acreditar-me, cínico como é, mas se não fosse por Gray e pelas crianças não garanto que eu tivesse aceito a oferta do tio Elliott. Com os meus dois mil e oitocentos dólares anuais poderíamos perfeitamente ter vivido na plantação; cultivaríamos arroz e centeio, criaríamos porcos. Afinal de contas, nasci e fui criada numa fazenda de Illinois.

– Por assim dizer – repliquei sorrindo, pois sabia que na realidade ela nascera numa luxuosa maternidade de Nova York.

Neste momento Gray entrou. É verdade que eu só me encontrara com ele duas ou três vezes, e isso doze anos antes, mas vira sua fotografia ao lado da noiva (Elliott conservava-a sobre o piano, em esplêndida moldura, ao lado das fotografias autografadas do rei da Suécia, da rainha da Espanha e do duque de Guise, mas lembrava-me muito bem dele). Fiquei agora estupefato. Estava calvo no alto da cabeça, e as entradas tinham aumentado consideravelmente; rosto rubro e intumescido, papada. Engordara demais naqueles anos de boa vida e muito álcool, e somente sua grande altura impedira que se tornasse vulgarmente obeso. Mas foram os olhos que mais me chamaram atenção. Eu me lembrava perfeitamente da sua expressão franca, confiante, quando Gray via o mundo à sua frente e não tinha uma única preocupação na vida; mas agora pareceu-me distinguir neles uma espécie de perplexa consternação e, mesmo que eu desconhecesse os fatos, creio que teria adivinhado que acontecera alguma coisa que destruíra a confiança que Gray tivera em si e na ordem natural dos acontecimentos. Senti nele uma espécie de modéstia, como se tivesse agido mal, embora involuntariamente, e disso se envergonhasse. Evidentemente seus nervos estavam em petição de miséria. Cumprimentou-me muito cordialmente, como se eu fosse um velho amigo; mas pareceu-me que a sua ruidosa amabilidade era mais uma atitude, pouco de acordo com seus sentimentos.

Trouxeram as bebidas e ele nos preparou um coquetel. Estivera no clube de golfe e ficara satisfeito com o seu jogo. Meteu-se a descrever, com exagerada loquacidade, as dificuldades que vencera num dos buracos. Isabel ouviu-o aparentemente com vivo interesse. Dali a pouco, após termos combinado um dia para eles irem jantar comigo, e um teatro depois, despedi-me e saí.


2

Adquiri o hábito de ir ver Isabel três ou quatro vezes por semana, à tarde, terminada a minha tarefa do dia. Em geral ela estava só nesta hora e gostava de uma prosinha. As pessoas a quem Elliott a apresentara eram muito mais velhas; percebi que poucas companheiras tinham sua idade. Meus amigos estavam geralmente ocupados até a hora do jantar e, a ir ao clube jogar bridge com alguns franceses rabugentos que não apreciavam a presença de um intruso, eu preferia a companhia de Isabel. Sua encantadora maneira de me tratar como se fôssemos da mesma idade tornava fácil a conversa; pilheriávamos, ríamos, caçoávamos um do outro, falando às vezes sobre nós, às vezes sobre amigos comuns, de outras sobre livros e quadros; assim o tempo passava agradavelmente. Um dos meus defeitos é nunca me acostumar com a fealdade das pessoas; por melhor gênio que tenha um amigo meu, nem com anos de intimidade consigo conformar-me com seus maus dentes ou nariz torto; por outro lado, jamais me canso de apreciar a beleza, e depois de vinte anos de convivência ainda me agrada ver uma sobrancelha benfeita ou o delicado contorno de um rosto. E, portanto, ao chegar à presença de Isabel, nunca deixei de experimentar uma leve sensação de prazer ante o oval perfeito do rosto, o acetinado da pele e o cálido brilho dos olhos castanhos.

Nisto aconteceu um fato inesperado.


3

Em todas as grandes cidades existem grupos fechados que não se comunicam entre si, pequenos mundos dentro de um mundo maior, a viver a sua vida, dependendo seus componentes da companhia uns dos outros, como habitantes de ilhas separadas entre si por canais inavegáveis. De acordo com a minha experiência, mais do que de qualquer outra cidade pode-se dizer isso de Paris. Ali, raramente a alta sociedade permite intrusos no seu meio; os políticos vivem no seu círculo corrupto; os burgueses, grandes e pequenos convivem uns com os outros; escritores se congregam com escritores (é interessante notar, no Journal de André Gide, como ele teve pouca intimidade com pessoas que não eram da sua profissão), pintores misturam-se com pintores e músicos com músicos. O mesmo acontece em Londres, se bem que de maneira menos acentuada; ali os pássaros da mesma plumagem já não se juntam tanto, e há uma dúzia de casas onde a gente pode encontrar ao mesmo tempo uma duquesa, uma atriz, um pintor, um membro do Parlamento, um advogado, uma costureira e um escritor.

As circunstâncias da minha vida levaram-me a viver transitoriamente em quase todos os mundos de Paris, até mesmo (por intermédio de Elliott) no círculo fechado do Boulevard St. Germain; mas aquele de que mais gosto, mais que da roda discreta que tem seu centro no que hoje se chama Avenue Foch, mais que do grupo cosmopolita, que dá sua preferência ao Larue e ao Café de Paris, mais que da ruidosa e sórdida alegria de Montmartre, é o trecho que tem por artéria principal o Boulevard du Montparnasse. Na minha mocidade passei um ano num apartamentozinho próximo ao Lion de Belfort, no quinto andar, de onde se avistava perfeitamente o cemitério. Para mim, Montparnasse ainda tem um pacato ar de cidade de interior, característico naquele tempo. Quando passo pela sombria e estreita Rue d’Odessa, é com dor no coração que me lembro do modesto restaurante onde nos reuníamos para jantar, pintores, ilustradores, escultores e eu, o único escritor, a não ser por Arnold Bennett, que aparecia de vez em quando, ali ficando até tarde a discutir animadamente, absurdamente, colericamente, sobre pintura e literatura. Ainda é para mim um prazer descer pelo boulevard e observar as pessoas que têm a mocidade que eu tinha naquele tempo, e inventar, para meu gozo particular, histórias a respeito delas. Quando não tenho o que fazer, tomo um táxi e vou sentar-me no velho Café de Dôme. Já não é o que era naquele tempo, ponto de reunião exclusivamente da boêmia; os pequenos comerciantes da vizinhança habituaram-se a frequentá-lo, e surgem estranhos do outro lado do Sena, na esperança de ver um mundo que deixou de existir. Naturalmente os estudantes ainda aparecem, e pintores, e escritores; mas são, na maioria, estrangeiros; quem está ali sentado ouve tanto russo, alemão e inglês como francês. Mas tenho a impressão de que dizem mais ou menos as mesmas coisas que dizíamos há quarenta anos, só que discutem Picasso em vez de Manet, e André Breton em vez de Guillaume Apollinaire. Meu coração voa para perto deles.

Certa tarde, mais ou menos quinze dias depois de me achar em Paris, estava eu sentado no Dôme; tendo encontrado cheio o terraço, vira-me obrigado a tomar uma mesa da primeira fila. Tempo bonito e quente. Os plátanos começavam a enfolhar-se e havia no ar aquela nota de ociosidade, despreocupação e alegria, própria da cidade de Paris. Sentei-me em paz comigo mesmo, mas não letargicamente; pelo contrário, quase que com júbilo. Subitamente um homem que passara por mim parou e, exibindo os dentes brancos num sorriso, exclamou: “Alô”. Fitei-o inexpressivamente. Alto e magro. Estava sem chapéu; notei-lhe a cabeleira escura, que estava clamando por uma tesoura. O lábio superior e o queixo se escondiam sob cerrada barba castanha. Testa e pescoço muito queimados do sol. Estava com uma camisa puída, sem gravata, paletó marrom surradíssimo e uma calça cinzenta em não muito melhores condições. Parecia um vagabundo e eu poderia jurar que nunca o tinha visto. Tomei-o por um daqueles sujeitos ordinários que decaíram completamente em Paris, e esperei que me contasse uma série de infelicidades, no intuito de me arrancar alguns francos que lhe garantissem cama e comida por uma noite. Ele estava de pé, diante da minha mesa, mãos enfiadas nos bolsos, dentes brancos à mostra, expressão divertida nos olhos escuros.

– Não se lembra de mim? – perguntou.

– É a primeira vez que o vejo na vida.

Eu estava disposto a lhe dar vinte francos, mas não tinha a menor intenção de permitir que continuasse com o blefe de que éramos conhecidos.

– Larry – disse ele.

– Deus do céu! Sente-se – exclamei. Ele deu uma risadinha abafada, adiantou-se e ocupou a cadeira vazia à minha mesa. – Tome alguma coisa – continuei, chamando o garçom. – Como é que você esperou que eu o reconhecesse com todos esses pelos no rosto?

Veio o garçom e Larry encomendou uma laranjada. Agora que podia vê-lo melhor, lembrei-me da singularidade dos olhos, que residia no fato de ser a íris tão negra quanto a pupila, dando-lhes ao mesmo tempo penetração e opacidade.

– Há quanto tempo está em Paris? – perguntei.

– Há um mês.

– Vai continuar aqui?

– Por algum tempo.

Enquanto eu fazia essas perguntas, meu pensamento trabalhava. Notei que a bainha da calça estava puída, roto o paletó nos cotovelos. Tinha a aparência pobre de qualquer vagabundo que eu tivesse encontrado num porto oriental. Naquela época era difícil a gente se esquecer da depressão, e fiquei a conjeturar se a crise de 29 não o teria arruinado. O pensamento desagradou-me e, não sendo amigo de rodeios, perguntei-lhe francamente:

– Você está mal de finanças?

– Não; absolutamente. Que ideia foi essa?

– Pois bem, você está com ar de quem precisa de uma boa refeição, e as roupas que está usando só servem para o lixo.

– Tanto assim? Não pensei nisso. Para falar a verdade, eu estava com ideia de fazer algumas compras, mas nunca chega a hora.

Pensei que fosse orgulho, ou timidez, e não vi motivo para concordar com essa tolice.

– Não seja idiota, Larry. Não sou nenhum milionário, mas também não sou pobre. Se você está em apuros, deixe que lhe empreste alguns milhares de francos, que nem por isso ficarei quebrado.

Ele soltou uma gargalhada.

– Muito agradecido; mas não estou em apuros. Nem chego mesmo a gastar o que tenho.

– Apesar da crise?

– Oh! a crise não me atingiu. Tudo o que eu tinha estava em títulos do governo. Não sei se baixaram de cotação, não indaguei a respeito, mas o fato é que o Tio Sam continua a pagar os juros, como sujeito correto que é. Para ser franco, estive gastando tão pouco nestes últimos anos, que devo mesmo ter uma boa reserva.

– De onde é que você está vindo, então?

– Da Índia.

– Oh! eu soube que você tinha andado por lá. Isabel contou-me. Parece que ela conhece o gerente do seu banco, em Chicago.

– Isabel? Quando foi que a viu pela última vez?

– Ontem.

– Ela não está em Paris, está?

– Claro que está. Moram no apartamento de Elliott Templeton.

– Ótimo. Teria imenso prazer em vê-la.

Embora eu o observasse atentamente, notei nos seus olhos apenas prazer, e uma surpresa natural, mas nenhum sentimento mais complexo.

– Gray também está aqui. Você sabe que eles se casaram?

– Sei. O tio Bob – o dr. Nelson, meu tutor – escreveu, contando-me. Ele morreu há alguns anos.

Ocorreu-me que, com a quebra daquilo que era aparentemente o único elo que o prendia a Chicago, provavelmente Larry não estava a par dos acontecimentos. Falei-lhe do nascimento das duas filhas de Isabel, da morte de Henry Maturin e de Louisa Bradley, da ruína completa de Gray e da generosidade de Elliott.

– Elliott também está aqui?

– Não.

Pela primeira vez em quarenta anos Elliott não passava a primavera em Paris. Embora não aparentasse essa idade, estava agora com setenta anos e, como acontece comumente com homens tão idosos, havia dias em que se sentia cansado e doente. Ia aos poucos abandonando os exercícios e agora quase que só se limitava aos passeios a pé. Preocupava-se muito com a saúde e seu médico vinha vê-lo duas vezes por semana, para espetar alternadamente numa das nádegas uma agulha com a injeção da moda. Em todas as refeições, tanto em casa como fora, Elliott tirava do bolso um estojinho de ouro e dele extraía um comprimido, engolindo-o com o ar compenetrado de quem está cumprindo um rito sagrado. Seu médico lhe recomendara uma cura em Montecatini, estação de águas no norte da Itália, e de lá ele pretendia ir a Veneza, a fim de procurar um modelo de pia batismal apropriado para a sua igreja românica. Agora já não lhe era tanto sacrifício não visitar Paris, pois de ano em ano achava a vida social ali menos satisfatória. Não gostava de gente velha, ofendendo-se quando o convidavam para encontrar somente pessoas da sua idade; e, quanto aos moços, achava-os enfadonhos. A igreja que ele construíra era agora o interesse máximo da sua vida; podia, assim, satisfazer o seu arraigado gosto de adquirir obras de arte, tendo a agradável certeza de que o fazia para a glória de Deus. Encontrara em Roma um altar antigo, de melite, e durante seis meses estivera remexendo Florença à procura de um tríptico da escola sienense, para colocá-lo sobre o altar.

Larry perguntou-me que tal Gray estava achando Paris.

– Creio que se sente um tanto desambientado. Tentei explicar a impressão que Gray me causara. Larry ouviu-me com olhos fixos no meu rosto, sem pestanejar, e, não sei por quê, a expressão contemplativa me fez pensar que ele escutava, não com os ouvidos, mas com algum mais sensível e mais íntimo órgão auditivo. Esquisito, e para mim não muito agradável.

– Mas você verá por si mesmo – concluí.

– Sim, eu teria muito prazer em vê-los. Com certeza encontrarei o endereço na lista telefônica.

– Mas, a não ser que você queira pregar-lhes um susto e tanto, e arrancar gritos histéricos às crianças, vá cortar o cabelo e tirar essa barba.

Ele riu.

– A ideia já me ocorreu. Não tenho nenhum interesse em chamar atenção.

– E, enquanto estiver com a mão na massa, compre um terno novo.

– Creio que estou mesmo um tanto esfarrapado. Quando saí da Índia, verifiquei que não tinha outras roupas a não ser estas que trago no corpo.

Olhou para o meu terno e perguntou quem era o meu alfaiate. Contei-lhe, mas acrescentei que o homem estava em Londres e que, portanto, não poderia ser de grande utilidade. Mudamos de assunto, falando de novo sobre Gray e Isabel.

– Tenho-os visto frequentemente – disse eu. – São muito felizes. Ainda não tive oportunidade de conversar a sós com Gray e, em todo caso, acho que não me falaria sobre Isabel, mas sei que gosta muito dela. Seu rosto, em repouso, é um tanto taciturno; os olhos têm uma expressão atormentada, mas quando descansam em Isabel adquirem uma suavidade e uma meiguice realmente comovedoras. É minha impressão que, durante toda aquela época de luta, ela se manteve como uma rocha ao lado do marido e ele não se esquece de quanto lhe deve. Você vai achar Isabel mudada. – Não disse a Larry que ela estava linda como jamais o fora, pois não sabia se ele tinha suficiente discernimento para ver como a moça bonita e sacudida soubera transformar-se em mulher adoravelmente graciosa, delicada e fina. Há homens que se escandalizam com o auxílio que a arte presta à beleza feminina... Acrescentei: – Ela é muito boa para Gray. Está fazendo o possível para que ele readquira confiança em si.

Mas estava ficando tarde; perguntei a Larry se não queria descer comigo o boulevard, para jantarmos juntos.

– Não, obrigado; creio que hoje não – respondeu ele. – Tenho que ir caminhando.

Levantou-se, cumprimentou-me amavelmente e passou para a calçada.


4

Estive com Gray e Isabel no dia seguinte e contei-lhes que vira Larry. Ficaram tão admirados quanto eu.

– Que vontade de vê-lo novamente! – exclamou Isabel. – Vamos telefonar-lhe agora mesmo.

Lembrei-me então de que não pensara em pedir a Larry o seu endereço. Isabel me passou uma descompostura em regra.

– Não sei se ele me teria contado – defendi-me, rindo. Com certeza o meu subconsciente teve interferência no caso. Você não se lembra, ele não gostava de dizer onde estava morando. Era uma das suas esquisitices; mas é bem capaz de aparecer aqui a qualquer momento.

– Não seria de admirar – disse Gray. – Mesmo nos velhos tempos ninguém podia contar com ele onde era esperado. Estava hoje aqui, amanhã ali. A gente o via numa sala e pensava em ir cumprimentá-lo dali a pouco, mas quando lá chegava ele já tinha desaparecido.

– Larry sempre foi uma criatura exasperante – disse Isabel. – Quanto a isto, não há dúvida. Provavelmente teremos que esperar até que ele se lembre de aparecer.

Ele não veio neste dia, nem no seguinte, nem no outro. Isabel acusou-me de ter inventado a história só para aborrecer. Garanti-lhe que não, procurando apresentar razões que explicassem a ausência de Larry. Mas não eram plausíveis. Pensei comigo mesmo que, refletindo melhor, talvez ele tivesse achado preferível não ver Gray e Isabel, tendo mesmo saído de Paris. Já naquela época eu sentia que ele não criava raízes em parte alguma, estando sempre pronto – por uma razão que lhe parecesse boa, ou por capricho a continuar o seu caminho de um momento para outro.

Finalmente ele apareceu. Chovia, e Gray não fora a Mortefontaine. Estávamos os três na sala, Isabel e eu tomando uma xícara de chá, Gray um uísque com perrier, quando o mordomo abriu a porta e Larry entrou. Isabel pulou da cadeira com uma exclamação e, atirando-se nos braços dele, beijou-o em ambas as faces. Gray, seu rosto rubro tornando-se ainda mais rubro, apertou-lhe calorosamente a mão.

– Viva, que prazer em vê-lo – disse, em voz trêmula de emoção. Isabel mordeu os lábios e percebi que se esforçava para não chorar.

– Tome qualquer coisa, meu velho – disse Gray em voz ainda pouco firme.

Fiquei comovido com o prazer que lhes causava a volta do amigo errante. E para Larry deve ter sido agradável verificar quanto lhe queriam bem. Sorriu, satisfeito. Percebi, no entanto, que estava absolutamente senhor de si. Notando a bandeja do chá, disse:

– Aceito uma xícara de chá.

– Oh! céus, você não há de querer chá! – exclamou Gray. – Vamos abrir uma garrafa de champanhe.

– Prefiro chá – sorriu Larry.

Sua serenidade teve nos outros o efeito que ele provavelmente desejava que tivesse. Acalmaram-se, mas ainda o olhavam com afeição. Não quero com isso dizer que ele tenha correspondido com frieza pouco simpática à espontânea exuberância dos outros; pelo contrário, não podia ter sido mais cordial e encantador; senti, no entanto, na sua atitude qualquer coisa que só posso qualificar como “remota” e fiquei a imaginar o que seria.

– Por que não veio logo nos ver, “sua” peste? – exclamou Isabel, fingindo indignação. – Passei estes últimos cinco dias dependurada na janela, e todas as vezes que a campainha tocava meu coração batia acelerado, dando-me um trabalhão para acalmá-lo novamente!

Larry riu baixinho.

– Mr. Maugham me disse que eu estava com aparência tão pouco respeitável que o seu criado não me deixaria entrar. Fui a Londres de avião, para comprar umas roupas.

– Isto não teria sido necessário – disse eu. – Você poderia ter comprado uma roupa feita aqui no Printemps ou na Belle Jardinière.

– Achei que, já que estava decidido, era melhor fazer a coisa em estilo – respondeu Larry. – Há dez anos que não compro trajes europeus. Procurei o seu alfaiate e disse-lhe que queria um terno em três dias. Ele respondeu que levaria quinze, de modo que concordamos com quatro. Faz uma hora que cheguei de Londres.

Ele usava um terno de casimira azul bem assentado no seu corpo esguio, camisa branca de colarinho mole, gravata azul e sapato marrom. Cortara curto o cabelo e tirara a barba. Estava não somente decente, mas bem tratado. Verdadeira transformação. Muito magro; maçãs ainda mais salientes, têmporas mais entradas, olhos maiores nas órbitas fundas; apesar disso, estava muito bem-disposto. Para falar a verdade, com seu rosto muito queimado, sem uma ruga, ele parecia extraordinariamente jovem. Era um ano mais moço do que Gray, tendo ambos pouco mais de trinta anos; mas, se Gray dava a impressão de ter dez anos mais, Larry parecia ter dez menos. Os movimentos de Gray, devido ao seu volume, eram deliberados e um tanto pesados; os de Larry, leves e naturais. Tinha um jeito de adolescente, alegre e donairoso, mas no íntimo possuía uma serenidade que singularmente me era perceptível, e que eu não me lembrava de ter notado no rapazinho que conhecera em Chicago. À medida que a conversa prosseguia, com muita naturalidade, como acontece entre velhos amigos que têm muitas recordações em comum, com notícias de Chicago fornecidas por Gray e Isabel – conversa trivial, entremeada de risos, uma coisa conduzindo a outra–, eu continuava com a impressão de que, embora fosse espontâneo o seu riso e ele ouvisse com evidente prazer o alegre tagarelar de Isabel, havia em Larry um singular desprendimento. Não que estivesse representando um papel, pois era natural demais para isso, e sua sinceridade era inegável; senti que havia qualquer coisa dentro dele, não sei se devo chamá-la de percepção, sensibilidade, ou força, que se conservava estranhamente isolada.

As crianças apareceram, foram apresentadas a Larry e fizeram suas delicadas reverenciazinhas. Ele lhes estendeu a mão, fitando-as com encantadora ternura nos olhos suaves, e elas a apertaram com ar grave. Com muita vivacidade Isabel contou a Larry que as filhas iam muito bem nos estudos, deu um bolinho a cada uma e mandou-as embora.

– Vou depois ler para vocês durante dez minutos, quando estiverem na cama.

Naquele momento ela não queria ver interrompido o prazer que lhe causava a presença de Larry. As meninas foram dar boa-noite ao pai. Achei comovente ver iluminar-se o rosto vermelho daquele homem pesadão, quando as abraçou e beijou. Ninguém podia deixar de notar com que orgulho as adorava; quando elas saíram, virou-se para Larry e disse:

– Podiam ser piores, não podiam?

Isabel lançou ao marido um olhar afetuoso.

– Se eu deixasse Gray fazer o que quer, elas estariam completamente estragadas. Este brutamontes me deixaria foie gras.

Gray fitou-a sorrindo e disse:

– Você é uma mentirosa e sabe disso. Tenho verdadeira paixão por você.

Nos olhos de Isabel brilhou um sorriso compreensivo. Ela sabia disso e o fato lhe causava prazer. Um casal feliz.

Isabel insistiu em que ficássemos para jantar. Achando que talvez eles preferissem ficar sós, inventei uma desculpa, mas Isabel não se conformou.

– Direi a Marie que ponha mais uma cenoura na sopa e assim dará bem para quatro. Temos frango; você e Gray poderão comer as pernas e Larry e eu ficaremos com as asas; e ela que faça o suflê de um tamanho que dê para todos nós.

Também Gray parecia querer que eu ficasse, de modo que me deixei persuadir a fazer o que eu desejava.

Enquanto esperávamos, Isabel contou detalhadamente a Larry aquilo que eu já lhe contara por alto. Embora narrasse a lamentável história da maneira mais alegre possível, o rosto de Gray tornou-se taciturnamente melancólico. Ela procurou animá-lo.

– Em todo caso, agora está tudo acabado. Caímos de pé e temos o futuro à nossa frente. Assim que as coisas melhorarem, Gray vai arranjar um ótimo emprego e ganhar milhões. Vieram os coquetéis, e dois conseguiram levantar o moral do pobre coitado. Notei que, embora tivesse tirado um, Larry mal tocou nele; e quando Gray, mau observador, lhe ofereceu outro, Larry recusou-o. Fomos lavar as mãos e sentamo-nos à mesa. Gray mandara abrir uma garrafa de champanhe, mas, quando o mordomo começou a servir Larry, este lhe disse que não queria.

– Oh! mas você precisa tomar um pouco! – exclamou Isabel. – É o melhor champanhe do tio Elliott, que ele reserva para os convidados especiais.

– Para ser franco, prefiro água. Depois de ter vivido tanto tempo no Oriente, é um prazer poder beber uma água que não seja perigosa.

– Mas é uma ocasião especial.

– Está certo; tomarei um pouco.

O jantar estava ótimo, mas, assim como eu, Isabel notou que Larry comeu muito pouco. Ocorreu-lhe então, creio, que estivera falando o tempo todo e que pouca oportunidade tivera ele de dizer alguma coisa; em vista disso, começou a indagar dos seus atos durante aqueles dez anos em que não se tinham visto. Ele respondeu com a sua amável franqueza, mas tão vagamente que não ficamos lá muito bem informados.

– Oh! você sabe, estive vagando por aí. Passei um ano na Alemanha e algum tempo na Espanha e Itália. E perambulei um pouco pelo Oriente.

– De onde está vindo agora?

– Da Índia.

– Quanto tempo ficou lá?

– Cinco anos.

– Divertiu-se? – perguntou Gray. – Matou algum tigre?

– Não – respondeu Larry sorrindo.

– Mas, francamente, o que esteve você fazendo na Índia durante cinco anos? – perguntou Isabel.

– Divertindo-me – respondeu ele com um sorriso de amável zombaria.

– Que tal a Mágica da Corda? – perguntou Gray. – Viu-a?

– Não, não vi.

– Que foi que você viu?

– Muita coisa.

Nesta altura fiz uma pergunta.

– É verdade que os iogues adquirem poderes que nos pareceriam sobrenaturais?

– Não sei. Só o que posso dizer é que, na Índia, geralmente se acredita nisso. Mas os mais sensatos não dão muito valor a poderes dessa natureza; acham que retardam o progresso espiritual. Lembro-me de que um deles me falou de um iogue que chegou à beira de um rio, e que não tinha dinheiro para pagar o barqueiro que devia levá-lo à outra margem, recusando-se este a transportá-lo de graça; e, portanto, o homem pisou a água e andou sobre a superfície, até chegar ao outro lado. O iogue que me contou o fato encolheu os ombros desdenhosamente e disse: “Tal milagre não vale mais que o níquel que teria custado a passagem”.

– Mas você acha que o iogue andou realmente sobre a água?

– O iogue que me contou acreditava nisso piamente. Era um prazer ouvir Larry falar, pois sua voz era adoravelmente melodiosa; leve, rica sem ser profunda, e com uma singular variedade de entonações. Terminado o jantar, fomos para a sala de visitas, onde nos foi servido o café. Eu não conhecia a Índia e estava ansioso por mais detalhes.

– Você chegou a conhecer escritores e pensadores? – perguntei.

– Noto que você faz uma distinção entre os dois – disse Isabel, para troçar comigo.

– Fiz questão disso – declarou Larry.

– Como é que você se comunicou com eles? Em inglês?

– Os mais interessantes, quando sabiam inglês, não falavam muito bem e entendiam menos ainda. Aprendi hindustani. E, quando fui para o sul, cheguei a entender bastante tamul para não me sentir perdido.

– Quantas línguas você conhece, Larry?

– Não sei. Mais ou menos uma meia dúzia.

– Conte-me mais alguma coisa sobre os iogues – pediu Isabel. – Chegou a conhecer algum intimamente?

– O mais intimamente que se possa conhecer uma pessoa que vive a maior parte do tempo no Infinito – respondeu ele sorrindo. – Passei dois anos no ashrama de um deles.

– Dois anos? Que é ashrama?

– Bom, suponho que é o que chamaríamos de eremitério. Há homens santos que vivem sós, num templo, na floresta ou nas encostas do Himalaia. Há outros que atraem discípulos. Uma pessoa caridosa, que queira adquirir mérito, constrói um quarto grande ou pequeno, para que ali viva um iogue cuja piedade o impressionou, e os discípulos vivem com ele, dormindo na varanda, ou na cozinha se existe uma, ou mesmo embaixo das árvores. Eu tinha uma choça, perto, onde apenas havia lugar para minha cama de lona, uma cadeira, uma mesa e uma estante.

– Onde foi isso? – perguntei.

– Em Travancore, bela região de morros verdejantes, vales poéticos e rios de águas mansas. Lá em cima, nas montanhas, há tigres, leopardos, elefantes e bisões, mas o ashrama ficava numa laguna cercada de arecas e coqueirais. Distava cinco ou seis quilômetros da cidade mais próxima, mas vinha gente de lá, e mesmo de mais longe, a pé ou de carro de boi, para ouvir o iogue falar quando a tal se sentia inclinado, ou apenas para se sentar a seus pés e compartilhar da paz e bem-aventurança que, tal a fragrância que a tuberosa espalha no ar, sua santa presença irradiava.

Gray moveu-se desajeitadamente na cadeira. Pareceu-me que a conversa estava tomando um rumo que não o deixava lá muito à vontade.

– Quer tomar um uísque? – perguntou-me.

– Não, obrigado.

– Bom, eu vou tomar um. E você, Isabel?

Ergueu da cadeira o corpo pesadão e foi até a mesa onde havia uísque Perrier e alguns copos.

– Havia lá outros homens brancos?

– Não; eu era o único.

– Como é que você pôde aguentar isso durante dois anos? – exclamou Isabel.

– Passaram voando. Tenho conhecido dias que me pareceriam mais longos.

– O que é que você fazia o tempo todo?

– Lia. Fazia longos passeios a pé. Saía de barco pela laguna.

Meditava. A meditação é tarefa árdua; depois de duas ou três horas, a pessoa fica exausta como se tivesse guiado um carro durante mil quilômetros, e só o que deseja é repousar.

Isabel franziu de leve as sobrancelhas. Estava perplexa e não garanto que não estivesse também um pouco amedrontada. Creio que começava a achar que o Larry que horas antes entrara na sala, embora aparentemente inalterado, franco e amigo como antigamente, não era o mesmo Larry ingênuo, alegre e de gênio fácil, quase seu escravo, mas encantador, que ela conhecera no passado. Perdera-o uma vez e, ao vê-lo novamente, tomando-o pelo mesmo de outros tempos, julgava que, por diferentes que fossem as circunstâncias, ele ainda lhe pertencia; mas estava agora ligeiramente consternada, como se tivesse querido capturar um raio de sol e ele lhe houvesse escapado pelos dedos no momento em que o agarrara. Eu a observara bastante naquela noite, tarefa, aliás, sempre agradável, e notara a expressão afetuosa do seu olhar quando pousara na cabeça benfeita de Larry, de orelhas pequenas rentes ao crânio, e vira essa expressão mudar ao fixar-se nas têmporas fundas e faces macilentas. Olhou de relance para as mãos longas, finas, que apesar de emaciadas eram fortes e viris. Depois seu olhar se demorou na boca expressiva, benfeita, carnuda sem ser sensual, e na fronte serena e nariz benfeito. Larry usava suas roupas, não com a elegância de figurino de Elliott, mas com a despreocupação de quem as tivesse usado todos os dias durante um ano. Vi que ele inspirava em Isabel um sentimento maternal que eu não lhe notara no trato com as filhas. Era ela uma mulher experiente; ele parecia ainda um rapazinho; creio ter percebido na atitude de Isabel um orgulho de mãe pelo filho crescido, pelo fato de estar ele falando inteligentemente e ser ouvido como se suas palavras tivessem sentido. Não creio que ela alcançasse o que ele dizia.

Mas eu ainda não acabara com as perguntas.

– Como era o seu iogue?

– Quer dizer, fisicamente? Pois bem, não era alto; nem magro nem gordo; pele de um pardo acinzentado, barba feita, cabelo branco cortado rente. Usava apenas uma tanga, e no entanto conseguia ter a aparência limpa e correta de qualquer rapaz de um anúncio de Brooks Brothers.

– E qual a maior atração que você viu nele?

Larry fitou-me durante um longo momento antes de responder. Os olhos profundos pareciam querer penetrar-me até o mais íntimo da alma.

– Santidade.

Fiquei um tanto desconcertado com a resposta. Naquela sala de mobília fina e belos desenhos nas paredes, a palavra caiu como uma gota-d’água que houvesse filtrado pelo teto, oriunda de uma banheira transbordante.

– Temos lido muito sobre os santos, são Francisco, são João da Cruz e outros, mas isto aconteceu há centenas de anos. Nunca pensei que fosse possível conhecer um que vivesse atualmente. Desde o primeiro momento em que o vi, tive certeza de que era um santo. Foi um maravilhoso acontecimento.

– E o que você ganhou com isso?

– Paz – respondeu ele despreocupadamente, com um leve sorriso. Depois, bruscamente, ergueu-se e disse: – Tenho que ir.

– Oh! ainda não, Larry – exclamou Isabel. – É muito cedo.

– Boa-noite – disse ele, ainda sorrindo, sem ligar ao protesto. Beijou-a na face e acrescentou: – Provavelmente nos veremos daqui a um ou dois dias.

– Onde é que você está morando? Eu lhe telefonarei.

– Oh! não se incomode. Você sabe como é difícil a gente conseguir uma ligação em Paris e, além do mais, o nosso telefone está sempre com defeito.

Ri-me intimamente ao ver com que habilidade Larry se esquivara. Era uma esquisitice sua, guardar segredo sobre o seu endereço. Propus jantarem todos comigo, não na noite seguinte, mas na outra, no Bois de Boulogne. Naquele verão ameno era muito agradável a gente comer ao ar livre, sob as árvores; Gray poderia levar-nos no cupê. Saí com Larry e de boa vontade teria andado um trecho do caminho em sua companhia, mas assim que ganhamos a rua ele me estendeu a mão, afastando-se rapidamente. Tomei um táxi.


C O N T I N U A

Nunca senti maior apreensão ao começar um romance. E se digo romance é por não saber de que outra maneira chamá-lo. Não tem grande enredo, não acaba com morte nem com casamento. A morte põe termo a todas as coisas e é, portanto, fim lógico para uma história; mas também o casamento é solução muito correta e os blasés fariam mal em escarnecer daquilo que comumente se diz que “acabou bem”. O instinto popular anda acertado ao afirmar que, com isto, tudo o que devia ser dito foi dito. Quando, depois de inúmeras vicissitudes, macho e fêmea finalmente se reúnem, sua função biológica foi cumprida e o interesse passa à geração vindoura. Mas estou deixando o meu leitor no escuro. Este livro consiste nas recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contato; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar fatos de que tenho conhecimento.
Há anos escrevi um romance intitulado Um gosto e seis vinténs. Nele, destaquei um famoso pintor, Paul Gauguin, e, valendo-me do privilégio do romancista, imaginei vários incidentes, no intuito de ilustrar o tipo que eu criara inspirado nos escassos fatos que conhecia da vida do artista francês. Na obra atual nada tentei de semelhante. Não inventei coisa alguma. Para poupar constrangimento a pessoas que ainda vivem, dei aos personagens desta história nomes fictícios e procurei, por outros meios, evitar que sejam reconhecidos. O homem sobre quem escrevo não é célebre; talvez nunca chegue a sê-lo. É possível que, ao atingir o fim da vida, não deixe, de sua passagem pela terra, vestígio maior que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas. Neste caso, se o meu livro for lido, sê-lo-á exclusivamente pelo interesse intrínseco que possa ter. Mas é possível que o gênero de vida que esse homem escolheu para si próprio e a singular força e doçura do seu caráter tenham uma influência sempre crescente sobre seus semelhantes, de modo que, mesmo muito tempo depois de sua morte, talvez se compreenda que nesta época viveu uma criatura extraordinária. Ficará, então, claro sobre quem escrevi neste livro, e aqueles que desejarem conhecer alguma coisa dos primeiros anos da existência desse homem talvez aqui encontrem algo que lhes satisfaça. Creio que o meu livro, dentro de suas possibilidades, que reconheço limitadas, será uma útil fonte de informações para os biógrafos do meu amigo.
Não é minha intenção fazer crer que as conversas foram registradas literalmente. Não tomei nota sobre o que foi dito nesta ou naquela ocasião, mas tenho boa memória quanto ao que me diz respeito e creio que, embora expressas em minhas próprias palavras, essas conversas representam fielmente o que foi dito. Há pouco declarei nada ter inventado; quero agora modificar essa asserção. Tomei a liberdade, que desde o tempo de Heródoto os historiadores têm tomado, de pôr nos lábios dos meus personagens palavras que eu, pessoalmente, não poderia ter ouvido. Agi pela mesma razão que os fez agir; para dar vida e verossimilhança a cenas que teriam sido incolores se apenas relatadas. Quero ser lido, e creio estar no meu direito quando faço o possível para tornar agradável a leitura do meu livro. O leitor inteligente facilmente perceberá em que ocasiões me vali deste artifício e tem toda a liberdade de rejeitá-lo.
Outro motivo que me fez iniciar esta obra com apreensão foi o fato de eu aqui lidar a maior parte do tempo com americanos. É difícil a gente compreender bem as criaturas e não creio que possamos conhecer ninguém a fundo, a não ser os nossos próprios compatriotas. Pois os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos com que brincaram quando crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que frequentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas coisas fizeram deles o que são, e essas coisas ninguém pode conhecê-las somente por ouvir dizer, e sim se as tiver sentido. Só pode conhecê-las quem é parte delas. E, por não se poder conhecer as pessoas de um país estrangeiro a não ser por observação, é difícil torná-las reais nas páginas de um livro. Mesmo um observador sutil e cuidadoso como Henry James, embora tivesse vivido quarenta anos na Inglaterra, jamais conseguiu criar um inglês que fosse cem por cento inglês. Quanto a mim, a não ser em alguns contos, nunca tentei manejar a não ser os meus próprios compatriotas; e se nas histórias curtas me aventurei à exceção, foi porque nelas o escritor pode tratar os tipos mais sumariamente. Dá ao leitor indicações gerais e deixa por conta dele os detalhes. Possivelmente perguntarão por que motivo, já que transformei Paul Gauguin em inglês, não pude fazer o mesmo com os personagens deste livro. A resposta é simples: não pude. Eles não teriam sido quem são. Não quero dizer que sejam americanos como os americanos veem a si mesmos; são americanos, sob o ponto de vista inglês. Não tentei reproduzir as singularidades do seu modo de falar. A barafunda que fazem os escritores ingleses quando se atiram à empreitada só pode ser comparada à confusão que fazem os escritores americanos quando tentam reproduzir o idioma inglês como é falado na Inglaterra. A gíria é a grande arapuca. Nos seus contos ingleses, Henry James sempre fez uso dela, mas nunca da mesma maneira que os ingleses; assim sendo, em vez de conseguir o desejado efeito coloquial, a maior parte das vezes dá ao leitor inglês um desagradável sobressalto.

 


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2
Aconteceu-me estar em Chicago em 1919, a caminho do Extremo Oriente, pretendendo, por motivos que nada têm com esta história, ali me demorar durante duas ou três semanas. Pouco tempo antes eu publicara um romance que obtivera sucesso; estando, portanto, em evidência, fui entrevistado assim que desembarquei.

No dia seguinte meu telefone tocou. Atendi.

– Quem fala aqui é Elliott Templeton.

– Elliott? Pensei que você estivesse em Paris.

– Não; vim visitar minha irmã. Queremos que você venha almoçar conosco.

– Com muito prazer.

Ele indicou a hora e o endereço.

Meu conhecimento com Elliott datava de quinze anos. Na ocasião em que me telefonou ele devia estar perto dos sessenta anos, homem alto e elegante, de traços agradáveis e espessos cabelos escuros e ondulados, com a nota grisalha apenas suficiente para acentuar a distinção de sua aparência. Ele comprava os acessórios de toalete em Charvet, mas seus ternos, chapéus e sapatos eram de Londres. Tinha em Paris um apartamento na Rive Gauche da elegante Rue St. Guillaume. As pessoas que não o apreciavam diziam que ele era negociante, acusação que o indignava. Elliott tinha gosto e entendia de arte, não se importando de confessar que, em anos idos, quando pela primeira vez se instalara em Paris, dera a ricos colecionadores o favor de sua opinião; e, quando devido às suas relações sociais ouvia falar de algum fidalgo arruinado, inglês ou francês, que estava disposto a vender um bom quadro, ficava satisfeito de poder pô-lo em contato com os diretores de museus americanos que, acontecia ele saber, estavam à procura de uma obra-prima de tal ou tal mestre. Havia na França e na Inglaterra muitas famílias antigas cujas circunstâncias as obrigavam a dispor de uma peça assinada, de Buhl, ou de uma escrivaninha feita pelo próprio Chippendale, se o negócio pudesse ser feito sem alarde, e que gostavam de conhecer um homem de grande cultura e finas maneiras que saberia tratar discretamente do assunto. Supunha-se, naturalmente, que Elliott lucrava com essas transações, mas a boa educação não deixava que se tecessem comentários a respeito. Pessoas pouco generosas afirmavam que em seu apartamento tudo estava à venda e que, depois de ter oferecido a milionários americanos um ótimo almoço, com vinhos velhos, uma ou duas de suas valiosas telas desapareceriam, ou uma cômoda de madeira entalhada seria substituída por uma outra, laqueada. Quando lhe perguntavam por que razão sumira determinada peça, ele muito logicamente explicava que não a achara bem à sua altura e resolvera, portanto, substituí-la por outra de superior qualidade. Acrescentava que era enfadonho estar sempre a ver as mesmas coisas.

– Nous autres américains, nós, americanos, gostamos e variar – dizia ele. – É, ao mesmo tempo, a nossa fraqueza e a nossa força.

Algumas das senhoras americanas residentes em Paris, que se gabavam de saber tudo a respeito de Elliott, diziam que sua família era muito pobre e que, se ele conseguia manter-se no padrão em que vivia, era por ter sido muito hábil. Não sei a quanto montava a sua fortuna, mas o duque de quem era inquilino certamente o fazia pagar muito pelo apartamento que, além do mais, era mobiliado com peças de valor. Havia, nas paredes, desenhos dos grandes mestres franceses, Watteau, Fragonard, Claude Lorraine e outros; tapetes Savonnerie e Aubusson exibiam sua beleza em soalhos de parquete; e na sala de visitas havia um conjunto Luís xv, em petit paint, de tal elegância que poderia ter pertencido, como afirmava ele, a madame Pompadour. Em todo caso, Elliott possuía bastante para viver no estilo que considerava correto para um cavalheiro, sem precisar para isso ganhar dinheiro, e o método que no passado usara para consegui-lo era assunto que, a não ser que se quisesse romper relações com ele, era conveniente evitar. Liberto assim de preocupações materiais, ele se dedicou à paixão máxima de sua vida – relações sociais. Suas transações comerciais com os fidalgos empobrecidos, tanto na França como na Inglaterra, consolidaram a posição que ele conseguira ao chegar à Europa, moço, com cartas de apresentação a pessoas importantes. Sua origem o favorecia aos olhos das titulares americanas a quem vinha recomendado, pois ele pertencia à antiga família da Virgínia, e do lado materno podia reclamar parentesco direto com um dos signatários da Declaração da Independência. Tinha boa aparência, era vivo, dançava bem, atirava regularmente e sobressaía no tênis. Era elemento que valia a pena ter-se em qualquer festa. Ninguém mais pródigo, em se tratando de flores e caixas de bombons. Embora recebesse pouco, quando o fazia era com originalidade que agradava; aquelas ricaças achavam divertido ser convidadas a restaurantes boêmios no Soho ou bistrôs no Quartier Latin. Ele estava sempre pronto a servir e não havia favor, por maçante que fosse, que se lhe pedisse que ele não fizesse com prazer. Esforçava-se bastante por ser agradável a senhoras maduras, e rapidamente se tornava o ami de la maison, o queridinho de muita mansão imponente. Era extrema a sua gentileza; nunca se ofendia por ser convidado à última hora, quando alguém deixava a dona da casa em apuros, e a gente podia colocá-lo ao lado de uma velhota enfadonha, tendo certeza de que seria espirituoso e amável como só ele sabia ser.

Dentro de dois anos, tanto em Londres – para onde ia durante a última parte da temporada, e no princípio do outono para fazer algumas visitas a casas de campo – como em Paris, onde se instalara definitivamente, Elliott conhecia todas as pessoas que era possível a um jovem americano conhecer. As senhoras que o tinham introduzido na sociedade surpreenderam-se ao verificar como se alargara o seu círculo de relações. Os sentimentos dessas senhoras eram confusos. Por um lado, ficaram satisfeitas com o sucesso do seu protégé, e por outro, um tanto despeitadas ao vê-lo em tais termos de intimidade com pessoas com quem elas continuavam a manter relações de absoluta cerimônia. Embora Elliott continuasse a ser obsequioso e serviçal, elas tinham a desagradável impressão de que ele as usara como escada para o seu avanço social.

Desconfiavam que ele fosse esnobe. Claro que o era. Incrivelmente esnobe. Um esnobe sem a menor vergonha. Ele engoliria qualquer afronta, ignoraria qualquer desfeita, toleraria qualquer descortesia para ser convidado a uma festa a que desejasse ir ou para conseguir aproximar-se de alguma rabugenta duquesa-mãe. Neste particular era incansável. Quando fixava o olhar na presa, perseguia-a com a tenacidade do botânico que, para conseguir uma orquídea rara, desafia enchentes, terremotos, febres e nativos hostis. A guerra de 1914 deu-lhe a sua oportunidade decisiva. Logo no início, entrou para o Corpo de Saúde e serviu, primeiro em Flandres, depois em Argonne; voltou ao fim de um ano com uma fita vermelha na lapela e conseguiu um posto na Cruz Vermelha de Paris. Nessa época, já estava em ótima situação financeira e contribuiu generosamente para obras de caridade patrocinadas por pessoas importantes. Com seu fino gosto e dom de organização, estava sempre pronto a trabalhar para qualquer festa de caridade que fosse amplamente anunciada. Ficou sócio de dois dos mais seletos clubes de Paris. Era ce cher Elliott para as maiores damas da França. Finalmente vencera.


3

Quando conheci Elliott, eu era um jovem autor como qualquer outro e ele não me deu a mínima atenção. Ótimo fisionomista, quando nos encontrávamos por acaso aqui ou acolá sempre me apertava cordialmente a mão, sem no entanto manifestar desejo de estreitar relações; e quando eu o via na Ópera, digamos, com uma pessoa da alta-roda, ele dava um jeitinho de não me ver. Mas aconteceu que, pouco depois, tive inesperado sucesso como dramaturgo e não tardei a perceber que Elliott me olhava com mais entusiasmo. Certo dia recebi dele um bilhete, convidando-me para almoçar no Claridge, onde se hospedava quando em Londres. Fui. Grupo pequeno e pouco elegante; pareceu-me que Elliott estava a experimentar-me. Mas dali por diante, já que o meu sucesso me valera muitos amigos novos, comecei a vê-lo mais assiduamente. Pouco depois, no outono, fui passar algumas semanas em Paris e encontrei-o na casa de um amigo comum. Perguntou-me onde eu estava hospedado e dali a dois ou três dias recebi novo convite para almoçar, dessa vez no apartamento; quando cheguei, fiquei surpreendido ao verificar que era reunião muito seleta. Ri intimamente. Percebi que, com o seu perfeito discernimento de coisas sociais, ele compreendera que na sociedade inglesa, como escritor, eu não era pessoa importante, mas que na França, onde um autor tem prestígio só pelo fato de ser autor, o caso mudava de figura. Nos anos seguintes nossas relações se estreitaram, sem no entanto tomar o cunho da amizade. Duvido que Elliott Templeton jamais tenha sido amigo de alguém. Não se interessava pelas pessoas a não ser pela sua posição social. Quando acontecia estar eu em Paris, ou ele em Londres, continuava a chamar-me às suas reuniões, sempre que precisava de um avulso, ou quando era obrigado a convidar americanos em viagem. Alguns destes eram, creio eu, velhos fregueses; outros, desconhecidos que o procuravam com cartas de apresentação. Eram a cruz de sua vida. Elliott achava que devia fazer alguma coisa por eles, não desejando, no entanto, pô-los em contato com seus amigos elegantes. A melhor maneira de se livrar deles era oferecer-lhes um jantar e levá-los depois ao teatro; mas mesmo isso às vezes se tornava difícil, pelo fato de Elliott ter compromissos para todas as noites, num espaço de três semanas, e também por achar que isso não iria satisfazê-los. Já que eu era escritor e, portanto, pessoa sem muita importância, ele não se incomodava de me fazer confidências a respeito.

– O pessoal na América tem tão pouca consideração quando se trata de cartas de apresentação! Não que eu não tenha muito prazer em receber os que me procuram, mas não vejo razão para impingi-los aos meus amigos.

Procurava reparar, mandando-lhes belas cestas de flores e enormes caixas de bombons, mas às vezes isso não bastava. Foi aí que, um tanto ingenuamente, em vista do que me contara, ele me convidou a uma festa que estava organizando.

“Eles desejam imensamente conhecê-lo”, escreveu-me Elliott, para me lisonjear. “A Sra. Fulana de Tal é muito culta e leu todas as suas obras.”

A Sra. Fulana de Tal me diria então que apreciara muitíssimo o meu livro Mr. Perrin e Mr. Trail, felicitando-me pela minha peça The Mollusc. A primeira destas obras foi escrita por Hugh Walpole e a segunda por Hubert Henry Davies.


4

Se dei ao leitor a impressão de que Elliott Templeton era um tipo desprezível, cometi uma injustiça.

Ele era, em primeiro lugar, aquilo que os franceses chamam de serviable, palavra para a qual, pelo que me consta, não existe equivalente na língua inglesa. O dicionário me ensina que serviceable, no sentido de prestadio, obsequioso e amável, é arcaico. Elliott era justamente isto. Generoso, também; embora no princípio de sua carreira provavelmente houvesse cumulado seus conhecidos de flores, doces e presentes movido pelo interesse, continuava a agir da mesma forma quando isso já não era necessário. Sentia prazer em dar. Hospitaleiro, também. Seu cozinheiro não tinha em Paris quem o superasse, e todos podiam estar certos de encontrar à mesa de Elliott as coisas raras de princípio de estação. Seus vinhos indicavam a excelência do seu critério. É verdade que os convidados eram escolhidos mais pela posição social do que pelo encanto pessoal que pudessem ter, mas ele se dava ao trabalho de convidar duas ou três pessoas somente por serem boa companhia, e desta forma suas reuniões eram quase sempre divertidas. Muitos se riam dele pelas costas, chamando-o de esnobe indecente, mas apesar disso aceitavam alegremente os seus convites. O francês de Elliott era correto e fluente, a pronúncia impecável. Esforçara-se ele grandemente para adotar a maneira de falar dos ingleses, e somente uma pessoa de ouvido muito fino perceberia de vez em quando uma entonação americana. Era um conversador agradável, contanto que a gente o mantivesse afastado do assunto de duques e duquesas; mas, mesmo a respeito deles, agora que sua posição era inexpugnável, ele se permitia, principalmente quando a sós com a gente, uma observação espirituosa. Tinha uma língua agradavelmente maliciosa e não havia escândalo sobre esses altos personagens que não lhe chegasse aos ouvidos. Por ele, vim a saber quem era o pai do último filho da princesa X e quem era a amante do marquês de Y. Creio que nem mesmo Marcel Proust conhecia melhor do que Elliott Templeton a vida íntima da aristocracia.

Quando eu estava em Paris, constantemente almoçávamos juntos, às vezes no seu apartamento, outras num restaurante. Gosto de vaguear pelas lojas de antiguidades, ocasionalmente para comprar alguma coisa, mas mais frequentemente só para espiar, e Elliott sempre sentia prazer em acompanhar-me. Era conhecedor e tinha verdadeiro amor aos objetos de arte.

Creio que não havia em Paris, no gênero, loja que ele não conhecesse, parecendo sempre íntimo do proprietário. Adorava pechinchar; quando saíamos, ele me dizia:

– Se quiser comprar alguma coisa, não faça você o negócio. Dê-me uma indicação e deixe o resto por minha conta.

Ficava encantado quando, pela metade do preço, conseguia para mim alguma coisa que me despertara o interesse. Era um gozo vê-lo pechinchar. Discutiria, adularia, perderia a calma, apelaria para os bons sentimentos do vendedor, ridicularizaria-o, apontaria os defeitos do objeto em questão, ameaçaria nunca mais pôr os pés naquela casa, suspiraria, encolheria os ombros, advertiria, ganharia colericamente a porta e finalmente, ao conseguir o desejado, sacudiria a cabeça tristemente, como se aceitasse a derrota com resignação. Depois me diria baixinho, em inglês:

– Leve-o. Pelo dobro do preço ainda seria barato.

Elliott era católico fervoroso. Algum tempo depois de estar vivendo em Paris, ficou conhecendo um padre célebre pelo seu sucesso em atrair ao rebanho hereges e infiéis. O padre gostava muito de jantar fora e era conhecido pela sua vivacidade. Reservava seu consolo espiritual para os ricos e aristocratas. Inevitável, portanto, que Elliott se sentisse atraído por um homem que, embora de origem humilde, era bem-vindo nos lares mais fechados; assim sendo, confessou a uma rica senhora americana, uma das recentes convertidas do padre, que, embora sua família sempre tivesse pertencido à seita episcopal, ele pessoalmente havia muito estava interessado na religião católica. Essa senhora um dia con vidou Elliott para jantar em sua casa, só os três, e o sacerdote brilhou como nunca. A dona da casa puxou a conversa para o catolicismo e o padre exprimiu-se com fervor, mas sem pedantismo, como homem vivido, embora sacerdote, dirigindo-se a outro homem vivido. Elliott ficou lisonjeado ao ver que o padre sabia tudo a seu respeito.

– A duquesa de Vendôme estava falando do senhor, no outro dia. Disse que o acha sumamente inteligente.

Elliott enrubesceu de prazer. Fora apresentado à Sua Alteza Real, mas nunca lhe ocorrera que ela o tivesse notado. O padre discursou sobre a fé, com sabedoria e benevolência; tinha ideias largas, moderno ponto de vista e era tolerante. Fez Elliott sentir que, mais do que qualquer outra coisa, a Igreja era um clube seleto a que um homem fino tinha obrigação de pertencer. Seis meses mais tarde Elliott abraçava a nova fé. Sua conversão, aliada à generosidade de que deu provas em contribuições para obras de caridade católicas, abriu-lhe várias portas que até então lhe tinham estado fechadas.

É possível que fossem confusas as razões que o fizeram abandonar a fé dos seus antepassados, mas não houve dúvida quanto à sua devoção, uma vez que se decidiu àquele passo. Assistia à missa todos os domingos, na igreja frequentada pelo pessoal mais fino, confessava-se regularmente e fazia periódicas visitas a Roma. Com tempo, essa piedade foi recompensada pela sua nomeação para camareiro da corte pontifícia, e a assiduidade com que cumpriu os deveres do ofício mereceu-lhe, creio, a honra de pertencer à Ordem do Santo Sepulcro. Em resumo, sua carreira como católico não foi menos brilhante que sua carreira como homme du monde.

Muitas vezes fiquei cogitando na causa do esnobismo que obcecava aquele homem tão inteligente, tão bom e tão culto. Ele não era nenhum adventício. Seu pai fora presidente de uma das universidades do Sul e seu avô um teólogo de certa importância. Elliott era inteligente demais para não perceber que muitas das pessoas que lhe aceitavam os convites o faziam para ter uma refeição grátis, e que algumas eram tolas e outras completamente sem valor. O fulgor dos títulos sonoros cegava-o aos defeitos daquela gente. Só o que me ocorre é que o fato de estar em termos de intimidade com aqueles cavalheiros de alta linhagem, e de ser o fiel servo de suas damas, lhe dava uma sensação de triunfo nunca diminuída; e creio que atrás de tudo isso havia um incurável romantismo que o fazia ver, no raquítico duquezinho francês, o cruzado que acompanhara S. Luís à Terra Santa; e no fanfarrão conde inglês que ia à caça de raposas, o antepassado que acompanhara Henrique viii à entrevista no Campo do Pano de Ouro. Em companhia de tais pessoas, tinha a impressão de estar vivendo num passado de galanteria e esplendor. Creio que, quando virava as páginas do Almanach de Gotha, seu coração batia tumultuoso, à medida que os nomes sucessivos lhe traziam recordações de antigas pelejas, cercos históricos e duelos célebres, intrigas diplomáticas e amores de reis. Em todo caso, assim era Elliott Templeton.


5

Eu estava me preparando para ir ao almoço a que Elliott me convidara quando da portaria telefonaram que ele me esperava embaixo. Admirei-me, mas desci assim que fiquei pronto.

– Achei mais seguro vir buscá-lo – disse ele ao apertar-me a mão. – Não sei se você conhece bem Chicago.

Tinha a mesma ideia que observei em outros americanos que durante muito tempo residiram fora do seu país, de achar que a América é um lugar difícil e mesmo perigoso, onde o europeu não pode, sem risco, locomover-se sozinho.

– Ainda é cedo; podemos andar parte do caminho – sugeriu ele. O ar estava levemente abafadiço, mas no céu não havia uma única nuvem; era agradável poder espichar as pernas.

– Achei preferível falar-lhe de minha irmã, antes que você lhe seja apresentado – disse-me Elliott enquanto caminhávamos. – Ela hospedou-se comigo uma ou duas vezes em Paris, mas não creio que você estivesse lá na ocasião. Não é uma reunião grande, você sabe. Apenas minha irmã, sua filha Isabel e Gregory Brabazon.

– O decorador? – perguntei.

– Ele mesmo. A casa de minha irmã é pavorosa e Isabel e eu queremos que ela a reforme. Por acaso cheguei a saber, que Gregory se achava em Chicago e fiz com que Louisa o convidasse para almoçar. Ele não é exatamente um cavalheiro, é claro, mas tem gosto. Foi quem decorou o Castelo Raney para Mary Olifant, e St. Clement Talbot para os St. Erth. A duquesa ficou encantada com ele. Você vai ver com seus próprios olhos a casa de Louisa. Não compreendo como pôde ali viver durante todos estes anos! Para ser franco, jamais compreenderei como é que ela pode mesmo viver em Chicago.

Vim a saber que mrs. Bradley era viúva, com três filhos, dois rapazes e uma menina; mas os rapazes eram muito mais velhos e já estavam casados. Um ocupava um posto oficial nas Filipinas e o outro, que a exemplo do pai seguira a carreira diplomática, morava em Buenos Aires. O marido de mrs. Bradley ocupara postos em várias partes do mundo e, depois de ter sido durante alguns anos primeiro-secretário em Roma, fora nomeado ministro para uma das repúblicas da costa ocidental da América do Sul, onde viera a falecer.

– Eu quis então que Louisa vendesse a casa de Chicago – continuou Elliott. – Mas ela não concordou, por razões sentimentais. Há muitos anos que pertence à família Bradley, que é uma das mais antigas de Illinois. Eles vieram da Virgínia em 1839, instalando-se mais ou menos a sessenta milhas do que é hoje Chicago. Ainda são deles, as terras. – Elliott hesitou ligeiramente e olhou-me para ver como eu iria receber suas palavras. – O Bradley que aqui se fixou era o que você com certeza chamaria de fazendeiro. Talvez você não saiba, mas em meados do século passado, quando o Oeste Central começou a ser desvendado, muitos habitantes da Virgínia, filhos mais novos de boas famílias, deixaram seus lares, sucumbindo à atração do desconhecido. O pai do meu cunhado, Chester Bradley, viu que aqui em Chicago havia futuro e entrou para um escritório de advocacia. Em todo caso, ganhou bastante para deixar o filho garantido.

Mais que as palavras de Elliott, sua maneira de falar indicava que talvez não fosse exatamente de bom-tom o falecido Chester Bradley ter abandonado a imponente mansão, e as vastas terras que herdara, para entrar num escritório de advocacia, mas que o fato de ter acumulado grande fortuna era, em parte, uma compensação. Também não ficou lá muito satisfeito quando, em outra ocasião, mrs. Bradley me mostrou alguns instantâneos do que ele chamava a sua “propriedade” no campo e vi uma modesta casa de madeira, com um bonito jardinzinho, mas com celeiro, curral e chiqueiro bem à vista, cercados por áridas planícies. Não pude deixar de refletir que mr. Bradley sabia o que estava fazendo, quando abandonara aquilo para ir ganhar a vida na cidade.

Dali a pouco fizemos sinal a um táxi. Este nos deixou diante de uma casa de pedra marrom, estreita e muito alta; da numa fileira de outras casas, numa rua que saía de Lake Shore Drive, e, mesmo naquela bela manhã de outono, sua aparência era tão insípida que a gente se admirava de que alguém pudesse ter sentimentalismos a seu respeito. A porta foi aberta por um negro alto e forte, de cabelos brancos, que nos fez entrar na sala de visitas. Mrs. Bradley ergueu-se ao ver-nos e Elliott me apresentou a ela. Devia ter sido bonita quando jovem, pois seus traços, embora graúdos, eram benfeitos, e seus olhos, bonitos. Mas o rosto pálido, quase que acintosamente desprovido de pintura, tinha linhas caídas, e evidentemente ela desistira de lutar contra a corpulência da idade madura. Pareceu-me que aceitara de má vontade a derrota, pois se sentava muito tesa na cadeira de espaldar reto, onde, devido à cruel armadura do colete, provavelmente se sentia melhor do que numa cadeira estofada. Usava um vestido azul, com pesados alamares, e a gola alta mantinha-se firme à custa de barbatanas. Bela cabeça; cabelos brancos ondulados a ferro, num penteado muito complicado. O outro convidado ainda não chegara e, enquanto esperávamos, falamos de uma coisa e outra.

– Elliott me contou que o senhor veio pelo Sul – disse mrs. Bradley. – Parou em Roma?

– Sim, passei lá uma semana.

– E como vai indo a boa rainha Margherita?

Um tanto surpreso com a pergunta, respondi que não sabia.

– Oh! não foi vê-la, então? É muito simpática. Foi tão amável conosco quando estivemos em Roma! Mr. Bradley era primeiro-secretário. Por que não foi visitá-la? O senhor não é como Elliott, tão vil que não pode ir ao Quirinal?

– Absolutamente – respondi sorrindo. – A questão é que não a conheço.

– Não conhece? – exclamou mrs. Bradley como se não acreditasse nos seus ouvidos. – Por que não?

– Para lhe falar com franqueza, geralmente os escritores não convivem com reis e rainhas.

– Mas ela é uma mulher tão simpática – disse mrs. Bradley em tom de censura, como se fosse muito malfeito da minha parte não conhecer a augusta personagem. – Tenho certeza que o senhor iria gostar dela.

Neste momento a porta abriu-se e o criado introduziu Gregory Brabazon.

Apesar do seu nome, Gregory Brabazon não era um sujeito romântico. Baixo, muito gordo, completamente calvo, a não ser por um círculo de ondulados cabelos negros na nuca e à volta das orelhas, rosto vermelho, nu, dando a impressão de que a qualquer momento iria cobrir-se de violento suor, vivos olhos cinzentos, lábios sensuais e maxilar pesado. Era inglês, e eu já o vira em festas boêmias, em Londres. Tinha uma voz barulhenta, mãos pequenas e gordas, extraordinariamente expressivas. Com gestos eficazes e uma torrente de palavras animadas ele conseguia excitar a imaginação do freguês hesitante, a ponto de tornar impossível a desistência da encomenda que ele parecia fazer favor em aceitar.

O criado entrou novamente, com uma bandeja de aperitivos.

– Não vamos esperar por Isabel – disse mrs. Bradley, servindo-se de um.

– Onde está ela? – perguntou Elliott.

– Foi jogar golfe com Larry. Preveniu que talvez chegasse atrasada.

Elliott virou-se para mim e explicou:

– Larry é Laurence Darrell. Parece que ele e Isabel estão noivos.

– Não pensei que você tomasse coquetéis, Elliott –comentei.

– Não tomo – disse ele lugubremente, bebericando o que tinha em mão. – Mas, nesta bárbara terra de proibição, que é que se pode fazer? – Suspirou e prosseguiu: – Estão começando a servi-los em algumas casas em Paris. As más relações corrompem as boas maneiras.

– Tolice! – exclamou mrs. Bradley.

Disse isso bastante afavelmente, mas com uma firmeza que indicava uma mulher de opinião e, pelo olhar divertido, mas sagaz, que atirou a Elliott, percebi que não tinha grandes ilusões a seu respeito. Que iria ela pensar de Gregory Brabazon? Eu notara o olhar profissional que o decorador lançara à sala, ao entrar, assim como o involuntário arquear das espessas sobrancelhas. Era realmente uma sala extraordinária. O papel das paredes, o cretone das cortinas e o estofamento da mobília tinham o mesmo desenho; nas paredes, em pesadas molduras douradas, dependuravam-se quadros a óleo, provavelmente trazidos de Roma pelos Bradley. Virgens da escola de Rafael, virgens da escola de Guido Reni, paisagens da escola de Zuccarelli, ruínas da escola de Pannini. Havia troféus da permanência deles em Pequim, mesas de ébano excessivamente entalhadas, enormes vasos cloisonné e também lembranças do Chile e do Peru, obesas figuras de granito e vasos de barro. Vi uma escrivaninha Chippendale e uma vitrina entalhada. Os abajures eram de seda branca e neles algum artista mal inspirado pintara pastores e pastoras em trajes de Watteau. Sala pavorosa e, no entanto, não sei dizer por quê, agradável. Tinha um ar familiar, caseiro; a gente sentia que a incrível mixórdia tinha significação. Todos aqueles incongruentes objetos combinavam uns com os outros porque faziam parte da vida de mrs. Bradley.

Tínhamos acabado nossos aperitivos quando a porta se abriu e entrou uma moça, seguida por um rapaz.

– Estamos atrasados? – perguntou ela. – Trouxe Larry comigo. Há alguma coisa para ele comer?

– Creio que sim – sorriu mrs. Bradley. – Toque a campainha e diga a Eugene que ponha mais um lugar à mesa.

– Já disse a ele. Foi ele quem nos abriu a porta.

– Esta é a minha filha Isabel – apresentou mrs. Bradley, virando-se para mim. – E aqui, Laurence Darrell.

Isabel apertou-me rapidamente a mão e virou-se impulsivamente para Gregory Brabazon.

– O senhor é que é mr. Brabazon? Estava louca por conhecê-lo. Fiquei encantada com o que o senhor fez para Clementine Dormer. Não acha esta sala horrível? Há anos procuro convencer mamãe a reformá-la e agora que o senhor está em Chicago não há melhor oportunidade. Diga-me sinceramente a sua opinião.

Eu sabia que isto seria a última coisa que Brabazon faria. Ele atirou um rápido olhar a mrs. Bradley, mas o rosto impassível nada lhe contou. Viu que Isabel era a pessoa que contava e soltou uma ruidosa gargalhada.

– Não duvido que seja muito confortável e essa história toda – disse ele. – Mas, se quer que eu fale com franqueza, pois bem, acho-a pavorosa.

Isabel era uma moça alta, de rosto oval, nariz reto, olhos bonitos e lábios carnudos, traço este que parecia característico da família. Era bonita, se bem que ligeiramente inclinada à obesidade, o que se podia atribuir à idade; achei que afinaria quando ficasse mais velha. Tinha mãos boas, fortes, embora um pouco gordas; as pernas, que a saia curta deixava bem à mostra, eram também um pouco grossas. Tinha boa pele e o corado natural provavelmente estava agora acentuado pelo exercício e pela viagem de volta, em carro aberto. Era animada e viva. Sua exuberância, sua risonha alegria, o gosto pela vida, a felicidade que havia nela causavam prazer à gente. Sua naturalidade era tão grande que fazia com que Elliott, malgrado a sua elegância, parecesse espalhafatoso. Era tal a sua frescura que a seu lado mrs. Bradley, de rosto enrugado e pálido, parecia velha e cansada.

Descemos para o almoço. Gregory Brabazon piscou os olhos quando viu a sala de jantar. Paredes cobertas por um papel vermelho-escuro, imitando tecido, onde se viam retratos muito pouco artísticos, de mulheres e homens de rosto sombrio e azedo, os antepassados próximos do falecido mr. Bradley. Lá estava ele, também, com um vasto bigode, muito teso, de fraque e colarinho engomado; mrs. Bradley, pintada por um artista francês do fim do século xix, estava dependurada sobre a lareira, num vestido comprido de cetim azul-claro, com um colar de pérolas à volta do pescoço e uma estrela de brilhantes nos cabelos. Com a mão cheia de anéis ela acariciava uma echarpe de renda, tão cuidadosamente pintada que se lhe poderia contar os pontos; com a outra segurava despreocupadamente um leque de penas de avestruz. A mobília, de carvalho preto, era pesada e opressiva,– Que acha o senhor? – perguntou Isabel a Gregory Brabazon, quando nos sentamos.

– Não duvido que tenha custado um dinheirão – respondeu ele.

– E custou mesmo – declarou mrs. Bradley. – Foi-nos dada, como presente de casamento, pelo pai de meu marido. Tem nos acompanhado pelo mundo inteiro. Lisboa, Pequim, Quito, Roma. A boa rainha Margherita admirava-a muito.

– Que faria o senhor com ela, se fosse sua? – perguntou Isabel a Brabazon.

Elliott antecipou-o na resposta.

– Queimava-a.

Começaram os três a discutir a reforma da sala. Elliott inclinava-se para o estilo Luís xv, mas Isabel preferia uma mesa de refeitório com cadeiras italianas. Brabazon achava que Chippendale estava mais de acordo com a personalidade de mrs. Bradley.– Sempre achei isto muito importante – disse ele. – A personalidade de uma pessoa. – E virando-se para Elliott: – O senhor, naturalmente, conhece a duquesa de Olifant?

– Mary? É uma de minhas maiores amigas.

– Ela queria que eu decorasse a sua sala de jantar e, assim que vi a duquesa, declarei: George ii.

– E como acertou! Notei a sala, da última vez que lá jantei. É de um gosto impecável.

E assim continuou a conversa. Mrs. Bradley ouvia, mas não se podia dizer qual a sua opinião. Eu pouco falei; quanto ao namorado de Isabel, Larry – no momento não me lembrei do sobrenome –, não disse nada. Estava sentado do outro lado da mesa, entre Brabazon e Elliott; de vez em quando eu o olhava de relance. Parecia muito moço. Era aproximadamente da altura de Elliott, devendo ter pouco menos de dois metros; magro e despreocupado. Simpático; nem bonito nem feio; um tanto tímido e em nada extraordinário. Despertou o meu interesse porque, embora não tivesse pronunciado meia dúzia de palavras desde que entrara, parecia perfeitamente à vontade e, estranhamente, dava a impressão de participar da conversa mesmo sem abrir a boca. Notei-lhe as mãos. Longas, mas não grandes demais para o seu tamanho, de belo formato e ao mesmo tempo fortes. Ocorreu-me que um artista teria prazer em pintá-las. Era miúdo, sem parecer frágil; pelo contrário, eu antes o diria vigoroso e resistente. Seu rosto, grave quando em repouso, estava bem queimado; a não ser por isso, quase não tinha cor; suas feições, embora regulares, não chamavam atenção. Maçãs do rosto salientes, têmporas entradas. Cabelos de um castanhoescuro levemente ondulados. Os olhos pareciam maiores do que realmente eram, por estarem plantados profundamente nas órbitas; pestanas grossas e longas. Olhos singulares, não do castanho rico que era o tom dos de Isabel, de sua mãe e de Elliott, mas tão escuros que a íris se confundia com a pupila, dando-lhes estranha penetração. Larry tinha uma graça natural, muito atraente, e achei compreensível Isabel estar caída por ele. De vez em quando o olhar dela pousava no rapaz por um momento e julguei nele distinguir não somente amor, mas afeição.


Os olhos de ambos se encontraram e havia nos de Larry uma ternura bela de se ver. Nada mais comovente que o espetáculo de um amor moço, e eu, homem de meiaidade naquele tempo, invejei-os, mas, ao mesmo tempo, não sei por quê, não pude deixar de ter pena deles. Tolice da minha parte, pois, ao que me parecia, não havia empecilho à sua felicidade; as circunstâncias eram favoráveis e não existia razão para que não se casassem e vivessem felizes dali por diante.

Isabel, Elliott e Gregory Brabazon continuavam falando da redecoração da casa, procurando forçar mrs. Bradley a, pelo menos, reconhecer que se devia fazer alguma coisa; mas esta apenas sorria amavelmente.

– Não procurem me afobar. Quero ter tempo para refletir. – E virando-se para o rapaz: – Que acha você de tudo isso, Larry?

Ele passeou um olhar sorridente pela mesa e disse:

– Creio que tanto faz de um jeito ou de outro.

– Oh! Larry, “sua” peste! – exclamou Isabel. – Depois de eu tanto lhe ter recomendado que nos apoiasse!

– Se a tia Louisa está satisfeita com o que tem, para que fazer modificações?

A observação era tão lógica e sensata que desatei a rir. Ele olhou-me e sorriu.

– E não sorria deste jeito só porque fez uma observação idiota – disse Isabel.

Mas ele apenas alargou o sorriso e notei então que seus dentes eram pequenos, brancos e regulares. Qualquer coisa no olhar que ele lançou a Isabel fez com que ela enrubescesse e ficasse de respiração suspensa. A não ser que eu me enganasse redondamente, ela estava loucamente apaixonada por ele; mas, não sei por quê, tive a impressão de que no seu amor havia também algo de maternal. Estranhável, em criatura tão moça. Com um sorriso doce nos lábios ela dedicou de novo sua atenção a Gregory Brabazon.

– Não dê confiança a Larry. É muito tolo e completamente ignorante. Não entende de coisa alguma, a não ser de aviação.

– Aviação? – perguntei.

– Ele foi aviador na guerra.

– Pensei que fosse muito moço para ter estado na guerra.

– E era. Moço demais. Ele comportou-se muito mal. Fugiu da escola e foi para o Canadá. Mentindo a torto e a direito, conseguiu convencê-los de que tinha dezoito anos e entrou para a aviação. Estava lutando na França na ocasião do armistício.

– Você está chateando os convidados de sua mãe, Isabel – disse Larry.

– Conheço-o desde menino; quando voltou, estava um amor de farda, com todas aquelas fitas bonitas na túnica, de modo que fiquei plantada à soleira de sua porta – em sentido figurado – até que, para ter um pouco de sossego, ele concordou em casar comigo! A concorrência era enorme.

– Francamente, Isabel – admoestou sua mãe. Larry inclinou-se para mim.

– Espero que não acredite em uma palavra do que ela diz. Isabel não é má pessoa, mas é mentirosa.

Terminou-se o almoço e logo depois Elliott e eu saímos. Eu lhe contara que ia ver os quadros no museu e ele disse que me levaria. Ir a museus acompanhado é coisa que não me agrada, mas eu não podia dizer que preferia ir sozinho e, portanto, aceitei-lhe o oferecimento. No caminho falamos de Isabel e Larry.

– É um prazer a gente ver duas criaturas tão jovens assim apaixonadas uma pela outra – disse eu.

– São moços demais para se casar.

– Por quê? É tão divertido ser moço, amar e casar.

– Não seja ridículo. Ela tem dezenove anos e Larry apenas vinte. Ele está desempregado. Tem uma rendazinha, só três mil dólares anuais, a julgar pelo que me contou Louisa, e Louisa não é nenhuma milionária. Precisa do que tem para viver.

– Bom, ele pode arranjar emprego.

– É justamente essa a questão. Ele não se esforça. Parece muito satisfeito de não fazer nada.

– Provavelmente passou uma temporada dura na guerra. Talvez queira descansar.

– Há um ano que está descansando. É mais do que suficiente.

– Pareceu-me um bom rapaz.

– Oh! nada tenho contra ele. É de muito boa família, e essa história toda. Seu pai era de Baltimore. Foi, em Yale, assistente de professor de línguas neolatinas, ou coisa que o valha. Sua mãe era de Filadélfia, da velha raça dos Quaker.

– Você fala deles no passado. Morreram?

– Sim; a mãe morreu de parto e o pai há mais ou menos doze anos. Larry foi educado por um velho colega do pai, um médico de Marvin. Foi assim que Louisa e Isabel o conheceram.

– Onde fica Marvin?

– É onde os Bradley têm a sua propriedade. Louisa costuma ali passar o verão. Ela ficou com pena do menino. O dr. Nelson é solteiro e não entendia patavina da educação de uma criança. Foi Louisa quem insistiu para que Larry fosse mandado para St. Paul, e sempre o convidou à sua casa para as férias de Natal. – Elliott encolheu os ombros em gesto bem gaulês e continuou: – Ela devia ter previsto o inevitável resultado.

Tínhamos chegado ao museu e concentramos nossa atenção nos quadros. Mais uma vez fiquei impressionado com o conhecimento e bom gosto de Elliott. Conduzia-me pelas salas como se eu fosse um grupo de turistas, e nenhum professor de arte teria sabido instruir melhor do que ele. Conformei-me, tomando a resolução de voltar sozinho quando pudesse andar a esmo e distrair-me à vontade; depois de algum tempo ele consultou o relógio.

– Vamos indo – disse-me. – Nunca passo mais de uma hora numa galeria de arte; é o máximo a que resiste o nosso poder de apreciação. Voltaremos um outro dia.

Agradeci-lhe calorosamente quando nos separamos. Segui o meu caminho, indubitavelmente mais esclarecido, mas de humor bem mais azedo.

Ao despedir-se de mim, mrs. Bradley me dissera que no dia seguinte Isabel receberia alguns amiguinhos para jantar, pois iriam todos a uma festa; se eu quisesse vir também, depois que eles partissem Elliott e eu poderíamos conversar à vontade.– É um favor que o senhor lhe faz – acrescentou ela. – Elliott viveu fora tanto tempo, que se sente um pouco desambientado aqui. Parece que não encontra ninguém com quem tenha afinidade.

Aceitei e, antes de nos despedirmos nos degraus do museu, Elliott me disse que isso lhe causara prazer.

– Sou uma alma perdida nesta vasta cidade – declarou. – Prometi a Louisa que passaria seis semanas com ela, pois não nos víamos desde 1912, mas estou contando os dias até a minha volta para Paris. É o único lugar do mundo onde um homem civilizado pode viver. Caro amigo, sabe como me olham nestas bandas? Consideram-me uma aberração. Selvagens!

Ri-me e deixei-o.


6

Na noite seguinte, tendo recusado o oferecimento de Elliott de vir buscar-me, cheguei sem risco à casa de mrs. Bradley. Eu fora detido por uma pessoa que viera ver-me e cheguei um pouco atrasado. Quando subi a escada, ouvi tanto barulho vindo da sala de visitas que julguei tratar-se de uma reunião importante; admirei-me ao verificar que éramos, eu inclusive, apenas doze pessoas. Mrs. Bradley estava muito imponente, de vestido de cetim verde e colar de aljôfares em volta do pescoço; e Elliott, no seu bem talhado dinner jacket, apresentava-se elegante como só ele sabia ser. Quando me apertou a mão, todos os perfumes da Arábia penetraram-me pelas narinas. Fui apresentado a um homem troncudo e alto, de rosto vermelho, que não parecia muito à vontade em traje de rigor. Era um tal dr. Nelson, mas naquele momento o nome não me disse nada. O resto do grupo compunha-se de amigos de Isabel, mas os nomes me escaparam assim que os ouvi. As mulheres eram moças e bonitas, os homens, moços e simpáticos. Nenhum deles me impressionou, a não ser talvez um rapaz – e isso por ser ele muito alto e maciço. Devia ter mais de dois metros de altura; ombros largos e fortes. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda branca, de saia comprida que lhe escondia as pernas gordas: o talho do vestido deixava adivinhar que tinha seios bem desenvolvidos; os braços talvez fossem um pouco rechonchudos, mas o pescoço era lindo. Estava animada e de olhos luzentes. Não havia dúvida: era uma rapariga muito bonita e desejável, mas, se não abrisse os olhos, acabaria adquirindo uma corpulência pouco atraente.

À mesa do jantar vi-me entre mrs. Bradley e uma mocinha desenxabida e tímida, que parecia ainda mais jovem do que as outras. Quando tomamos os nossos lugares, para facilitar a conversa mrs. Bradley explicou-me que os avós da minha vizinha moravam em Marvin, e que ela e Isabel haviam sido colegas de escola. Seu nome, o único que guardei, era Sophie. Durante o jantar houve muita brincadeira de um lado ao outro da mesa; todos falavam alto e riam à toa. Pareciam íntimos. Quando minha atenção não estava voltada para a dona da casa, procurei puxar prosa com a minha vizinha, embora sem grande resultado. Era mais quieta que os outros. Não se podia dizer que fosse bonita, mas tinha um rosto engraçado, de narizinho arrebitado, boca larga e olhos de um azul-esverdeado; seu cabelo, penteado com simplicidade, era de um castanho-pálido. Muito magra, com peito quase tão chato como o de um rapaz. Ria das brincadeiras que iam pela mesa, mas de maneira um pouco forçada, como se não achasse tanta graça como queria dar a entender. Pareceu-me que estava fazendo um esforço para se mostrar boa companheira. Não consegui descobrir se era um pouco tola ou apenas muito tímida e, depois de ter tentado inutilmente vários tópicos, por falta de coisa melhor pedi-lhe que me explicasse quem eram os outros convidados.

– Pois bem, o dr. Nelson o senhor conhece – disse-me, indicando o homem maduro que estava à minha frente, do outro lado de mrs. Bradley. – É tutor de Larry e nosso médico em Marvin. Muito inteligente; inventa bugigangas para aviões, de que ninguém quer saber; e, quando não está assim ocupado, bebe.

Ao dizer isso, havia nos seus olhos pálidos um brilho que me fez supor que eu me enganara a seu respeito. Continuou a dizer-me os nomes de toda aquela mocidade, quem eram seus pais e, no caso dos rapazes, que colégio haviam frequentado e em que negócio trabalhavam. Nada de muito esclarecedor.

“Ela é um amor”; ou então, “Ele joga muito bem golfe”.

– E quem é aquele grandalhão de sobrancelhas cerradas?

– Quem?... Oh! aquele é Gray Maturin. Seu pai tem uma casa enorme em Marvin, à beira do rio. É o nosso milionário. Temos muito orgulho dele; dá-nos importância. Maturin, Hobbes, Rayner e Smith. É um dos homens mais ricos de Chicago e Gray é seu único filho.

A lista de nomes fora recitada com tão agradável ironia que lancei a Sophie um olhar indagador. Ela notou-o e corou.

– Conte-me mais alguma coisa de mr. Maturin – pedi.

– Não há nada para contar. É rico. Muito respeitado. Deu a Marvin uma nova igreja, e um milhão de dólares à Universidade de Chicago.

– O filho é um rapagão bonito.

– É correto. Ninguém havia de pensar que seu avô foi um irlandês sem eira nem beira, e sua avó uma garçonete sueca num restaurante qualquer.

Gray Maturin era mais vistoso do que bonito. Tinha um ar rude, inacabado; nariz curto e chato, boca sensual e a pele corada dos irlandeses; grande quantidade de cabelos negros, bem lisos, olhos muito azuis sob as cerradas sobrancelhas. Embora de compleição tão robusta, era muito bem proporcionado e, nu, devia ser um belo tipo de homem. Parecia ter muita força. Sua virilidade era impressionante. Fazia com que Larry, que estava sentado ao seu lado e tinha somente oito ou dez centímetros menos que ele, parecesse insignificante.

– Gray é muito apreciado – disse a minha tímida vizinha. – Conheço várias moças que dariam a vida para agarrá-lo. Mas não têm a mínima probabilidade.

– Por que não?

– O senhor não sabe nada, sabe?

– Como poderia eu saber?

– Ele está cego de paixão por Isabel, e Isabel gosta de Larry.

– Por que é que ele não tenta suplantar o rival?

– Larry é o seu maior amigo.

– Creio que isto complica o caso.

– Sim, quando se têm os elevados princípios de Gray.

Não sei se ela disse isto seriamente, ou se havia na sua voz uma nota de zombaria. Na sua atitude nada havia de impertinente, confiado ou petulante, e, no entanto, tive impressão de que não lhe faltavam nem espírito nem perspicácia. Em que estaria pensando enquanto conversava comigo? Bom, isto eu nunca chegaria a saber. Não havia dúvida de que ela não era senhora de si e ocorreu-me que devia ser filha única, tendo levado vida isolada, em companhia de pessoas muito mais velhas. Havia nela uma modéstia, uma discrição que achei encantadoras; mas, se eu acertara ao imaginar que vivera sozinha, então achei que devia ter tranquilamente observado as pessoas com quem convivia, formando opinião categórica a respeito delas. Nós, de idade madura, raramente suspeitamos com que crueldade, e ao mesmo tempo com que clarividência, os muito moços nos julgam. Olhei de novo dentro daqueles olhos esverdeados.

– Que idade tem você? – perguntei.

– Dezessete.

– Lê muito? – indaguei ao acaso.

Mas, antes que ela me respondesse, mrs. Bradley atraiu minha atenção com uma observação qualquer; logo depois terminou o jantar. Os moços saíram imediatamente para onde tinham que ir; quanto a nós, os quatro restantes, subimos para a sala de visitas.

Fiquei admirado de ter sido convidado para aquela reunião, ao ver que após alguma conversa fiada eles encetaram um assunto que, imaginei, haviam de preferir discutir sozinhos. Fiquei sem saber se seria mais discreto levantar-me e sair ou se, como ouvinte desinteressado, eu lhes seria útil. O ponto discutido era a estranha má vontade de Larry em começar a trabalhar, e que agora vinha à baila devido a um emprego que mr. Maturin, pai do rapaz que eu conhecera ao jantar, lhe oferecera em seu escritório. Era uma bela oportunidade. Com habilidade e perseverança Larry poderia, com o tempo, vir a ganhar muito dinheiro. O jovem Gray Maturin desejava ardentemente que ele aceitasse.

Não me recordo de tudo o que foi dito, mas minha memória reteve o essencial. Quando Larry voltara da França, o dr. Nelson, seu tutor, sugerira que ele fosse para a escola; mas o rapaz recusara. Era natural que desejasse ficar na ociosidade durante algum tempo; passara uma temporada dura, na guerra, e duas vezes recebera ferimentos, embora sem gravidade. O dr. Nelson achava que ele ainda estava sofrendo as consequências do choque, e o descanso parecia indicado até ele ficar completamente restabelecido. Mas as semanas se converteram em meses; já fazia agora mais de um ano que ele despira a farda. Fiquei sabendo que sobressaíra na aviação, tendo ficado em evidência ao voltar para Chicago; assim sendo, vários chefes de firmas lhe tinham oferecido emprego. Larry agradecera, mas recusara. Não deu desculpa, a não ser que ainda não sabia o que queria fazer. Pouco depois ficava noivo de Isabel. Isto não causou surpresa a mrs. Bradley, pois os dois tinham sido inseparáveis durante anos e ela sabia da paixão da filha por Larry. Gostava do rapaz e achava que ele poderia fazer Isabel feliz.

– O caráter dela é mais forte que o dele. Isabel lhe dará exatamente aquilo que lhe falta.

Embora fossem tão moços, mrs. Bradley não se opunha a um casamento imediato, contanto que Larry começasse a trabalhar. Ele tinha um dinheirinho seu; mas, mesmo que tivesse dez vezes mais, ela não cederia nesse ponto. Pelo que pude perceber, ela e Elliott desejavam saber do dr. Nelson quais as intenções de Larry. Queriam que ele usasse sua influência para obrigá-lo a aceitar o emprego que mr. Maturin lhe oferecia.

– Vocês sabem que nunca tive muita autoridade sobre Larry – alegou o médico. – Mesmo quando criança ele sempre fez o que quis.

– Sei disso. Você lhe deu liberdade demais. É um milagre ele ter saído tão bom como é – disse mrs. Bradley.

O dr. Nelson, que estivera bebendo sem cessar, olhou-a com azedume. Seu rosto tornou-se ainda mais rubro.

– Eu era muito ocupado; tinha que cuidar dos meus interesses. Recebi-o porque ele não tinha para onde ir e seu pai era meu amigo. Não era fácil lidar com ele.

– Não sei como você pode dizer isso – replicou secamente mrs. Bradley. – Larry tem um gênio ótimo.

– Que é que a gente pode fazer com um menino que nunca discute, mas faz exatamente o que quer e, quando é repreendido, apenas diz que “sente muito” e deixa que a gente esbraveje à vontade? Se fosse meu filho, eu poderia ter-lhe batido. Mas eu não podia dar num menino que não tinha um único parente no mundo e cujo pai o deixara a meus cuidados por achar que eu seria bom para ele.

– Isto não vem ao caso – disse Elliott um tanto irritado. – A questão é esta: ele já vadiou bastante; agora lhe aparece um bom emprego, onde terá oportunidade de ganhar muito dinheiro; se quiser casar-se com Isabel, terá que aceitá-lo.

– Larry precisa ver que, no estado do mundo atual, um homem tem que trabalhar – interveio mrs. Bradley.

– Ele está agora em perfeitas condições físicas. Todos nós sabemos que, terminada a guerra entre os estados, muitos homens nunca mais trabalharam depois que voltaram para casa. Eram um fardo para a família e inúteis à comunidade.

Neste momento entrei na conversa.

– Mas que razão apresenta ele para recusar as várias ofertas que lhe têm sido feitas?

– Nenhuma; a não ser que não lhe agradam.

– Mas ele não quer fazer nada?

– É o que parece.

O dr. Nelson serviu-se de outro uísque. Tomou um longo trago e depois olhou para os seus dois amigos.

– Querem saber qual a minha impressão? Não digo que eu seja grande conhecedor da natureza humana, mas, em todo caso, depois de ter clinicado durante trinta anos, creio entender um pouco do assunto. A guerra teve um efeito qualquer sobre Larry. Ele não voltou o mesmo. Não que esteja somente mais velho; aconteceu alguma coisa que modificou a sua personalidade.

– Que espécie de coisa? – indaguei.

– Não sei dizer. Ele é muito reservado quanto às suas peripécias na guerra. – O dr. Nelson virou-se para mrs. Bradley e perguntou: – Falou alguma vez sobre isso com você, Louisa?

Ela sacudiu a cabeça.

– Não. Logo que chegou, tentamos ver se nos descrevia algumas das suas aventuras, mas ele apenas riu daquele seu jeito e disse que nada tinha para contar. Não falou sobre isso nem mesmo com Isabel. Ela tentou várias vezes, mas não lhe arrancou palavra.

A conversa continuou desta maneira pouco satisfatória e dali a pouco, consultando o seu relógio, o dr. Nelson declarou que tinha que ir embora. Fiz menção de sair com ele, mas Elliott insistiu para que eu ficasse. Depois que o importunado com seus negócios particulares, dizendo que receava que eu estivesse me chateando.

– Mas o senhor compreende que isto me preocupa enormemente – terminou ela.

– Mr. Maugham é muito discreto, Louisa; você não precisa ter medo de confiar nele. Não creio que Bob Nelson e Larry sejam muito íntimos, e há certas coisas que Louisa e eu achamos preferível não falar na presença dele.

– Elliott!

– Você já lhe contou tanta coisa que é melhor contar-lhe o resto. – E virando-se para mim: – Não sei se você notou Gray Maturin ao jantar?

– É tão grande que não pode passar despercebido – respondi.

– É um dos apaixonados de Isabel. Cumulou-a de atenções durante toda a ausência de Larry. Ela gosta dele e, se a guerra se tivesse prolongado, é bem provável que acabassem noivos. Gray pediu-a em casamento. Isabel não aceitou, nem recusou. Louisa desconfiou que ela não queria decidir-se antes da volta de Larry.

– Como é que ele não foi para a guerra? – perguntei.

– Ele forçou o coração jogando futebol. Nada de sério, mas não foi aceito. Em todo caso, depois que Larry voltou, não houve mais esperanças para ele. Isabel deu-lhe um fora definitivo.

Eu não sabia que comentário esperavam que eu fizesse e, portanto, preferi calar-me. Elliott continuou a falar. Com sua distinta aparência e pronúncia oxfordiana, ele mais parecia um alto funcionário do Ministério da Guerra.

– Claro que Larry é um ótimo rapaz, e foi muito correto da sua parte fazer tanto empenho em se alistar, mas sou profundo conhecedor do gênero humano... – Aqui Elliott teve um sorrizinho astuto e ousou a única referência que jamais lhe ouvi ao fato de ter feito fortuna negociando com objetos de arte. – Do contrário eu não teria hoje uma boa quantiazinha em ações do governo. E minha opinião é que Larry nunca chegará a ser alguém. Não tem dinheiro, por assim dizer, nem posição. Agora, com Gray Maturin o caso é outro. Ele tem um bom e antigo nome irlandês. Houve um bispo na família, um dramaturgo, vários militares que se distinguiram e alguns intelectuais.

– Como é que você chegou a saber de tudo isto? – perguntei.

– São coisas que a gente fica sabendo – respondeu ele em tom despreocupado. – Para ser exato, estive dando uma olhada no Dictionary of National Biography, um dia desses, no clube, e dei com o nome por acaso.

Achei que não era da minha conta repetir o que a minha vizinha, ao jantar, me contara do irlandês sem eira nem beira e da garçonete sueca que tinham sido avós de Gray. Elliott prosseguiu:

– Há anos que conhecemos Henry Maturin. É um homem muito direito e muito rico. Gray vai herdar o melhor escritório de corretagens de Chicago. Tem o mundo a seus pés. Quer casar-se com Isabel e não se pode negar que, para ela, seria um ótimo casamento. Sou francamente favorável a ele, e Louisa concorda comigo.

– Você esteve tanto tempo fora da América, Elliott, que se esqueceu de que neste país as moças não se casam só para satisfazer suas mães e tios – disse mrs. Bradley com um sorriso árido.

– Isto não é motivo de orgulho, Louisa – replicou Elliott bruscamente. – Graças a uma experiência de trinta anos, posso asseverar-lhe que o casamento que é considerado sob o ponto de vista de posição, fortuna e igualdade de meio leva vantagem sobre o casamento de amor. Na França, que afinal de contas é o único país civilizado do mundo, Isabel não hesitaria em casar-se com Gray; ao fim de um ou dois anos, se a tal se sentisse inclinada, tornar-se-ia amante de Larry; Gray instalaria uma atriz de fama num luxuoso apartamento, e todos ficariam satisfeitos.

Mrs. Bradley não era nenhuma tola. Fitou o irmão com ar de brejeira ironia e replicou:

– A questão, Elliott, é que, como as companhias teatrais de Nova York só ficam aqui durante certo tempo, Gray não poderia conservar as inquilinas do seu luxuoso apartamento a não ser por prazo limitado. Isto seria, certamente, um inconveniente para todos os interessados.

Elliott sorriu.

– Gray poderia comprar uma cadeira na Bolsa de Nova York. Afinal de contas, se uma pessoa tem que viver na América, não vejo razão para viver noutro lugar a não ser em Nova York.

Saí logo depois; mas antes, não sei por que cargas-d’água, Elliott me perguntou se eu queria almoçar com ele para ficar conhecendo os Maturin, pai e filho. – Henry é o melhor tipo do negociante americano

– disse ele. – Você precisa conhecê-lo. É quem há anos aplica o nosso dinheiro.

Eu não tinha muita vontade de aceitar, mas, faltando-me motivo para a recusa, respondi que iria com prazer.


7

Eu fora admitido, pela minha permanência em Chicago, como sócio temporário de um clube que contava com uma boa biblioteca; na manhã seguinte fui até lá dar uma espiada numa ou duas revistas universitárias, que quem não é assinante sempre tem dificuldade em obter. Era cedo e lá só havia mais uma pessoa, sentada numa vasta poltrona de couro e parecendo absorta na leitura. Foi com surpresa que reconheci Larry. Era a última pessoa que eu esperaria encontrar em tal lugar. Ergueu os olhos quando passei por ele, reconheceu-me e fez menção de se levantar.

– Não se incomode – disse eu. E depois, quase que automaticamente: – Que está lendo?

– Um livro – replicou ele, mas com um sorriso tão simpático que a secura da resposta não podia absolutamente melindrar.

Fechou o livro e, fitando-me com aqueles seus olhos singularmente opacos, segurou-o de modo a não me deixar ver o título.

– Divertiu-se ontem à noite? – perguntei.

– Muitíssimo. Cheguei em casa às cinco da manhã.

– É uma façanha estar aqui tão cedo.

– Venho muito aqui. Em geral a esta hora tenho a sala à minha disposição.

– Eu não o incomodarei.

– O senhor não me está incomodando – disse ele, sorrindo de novo; ocorreu-me então que o seu sorriso era de uma extraordinária doçura. Não animado, nem vivo; era um sorriso que parecia iluminar-lhe o rosto com alguma luz interior. Ele estava sentado numa alcova formada por prateleiras salientes. Apoiou a mão no braço da poltrona a seu lado e prosseguiu: – Não quer sentar-se um pouco?

– Está certo.

Larry entregou-me o livro que segurava.

– Era isto que eu estava lendo.

Vi que se tratava de Principles of Psychology, de William James. É, naturalmente, uma obra clássica, e importante na história da ciência de que se ocupa; de agradável leitura, além do mais, mas não era absolutamente o tipo de livro que eu esperaria ver nas mãos de pessoa tão jovem, um aviador, que estivera dançando até as cinco da manhã.

– Por que está lendo isto? – perguntei.

– Sou muito ignorante.

– É também muito moço – repliquei sorrindo.

Larry ficou calado durante tanto tempo que comecei a achar o silêncio constrangedor e estive a ponto de me levantar para ir à procura das revistas que tinham me levado ali. Mas dominava-me a impressão de que ele queria dizer alguma coisa. Tinha o olhar perdido no espaço, seu rosto era grave e atento e ele parecia meditar. Esperei. Estava curioso por saber do que se tratava. Quando ele falou, foi como se continuasse a conversa, não parecendo ter notado o prolongado silêncio.

– Quando voltei da França, queriam todos que eu fosse para o colégio. Impossível. Depois de tudo por que passei, compreendi que não poderia voltar para a escola. Além do mais, eu pouco aprendera na escola preparatória. Senti que não me convinha a vida de calouro. Eles não teriam gostado de mim. Eu não queria fingir aquilo que não sentia. E não achei que os professores pudessem ensinar-me as coisas que eu desejava conhecer.

– Naturalmente reconheço que isto não é de minha conta, mas não sei se você teve razão – disse eu. – Creio que compreendo o que quer dizer e acho que, depois de dois anos de guerra, teria realmente sido aborrecido voltar a ser pouco mais que um colegial, pois todo primeiro e segundanista não passa disto. Não posso acreditar que eles não teriam gostado de você. Não conheço bem as universidades daqui, mas duvido que os estudantes americanos sejam muito diferentes dos ingleses; talvez um pouco mais barulhentos e mais brincalhões, mas no fundo muito corretos e sensatos; e ouvi dizer que, se um colega não quer levar a vida deles, estão plenamente de acordo, se esse colega tiver um pouco de tato, em deixá-lo seguir seu caminho. Não estive em Cambridge, como meus irmãos. Tive essa oportunidade, mas desprezei-a; eu queria correr mundo. Até hoje me arrependo. Creio que isso me teria evitado muitos erros. A gente aprende mais depressa sob a orientação de professores experientes. Perdemos muito tempo enveredando por becos sem saída, quando não temos ninguém que nos conduza.

– Talvez o senhor tenha razão. Mas não me importo de errar. É possível que num desses becos sem saída eu encontre alguma coisa do que procuro.

– O que é que você procura?

Ele hesitou durante alguns segundos.

– Aí está. Ainda não sei ao certo.

Fiquei em silêncio, pois não parecia haver resposta para isso.

Eu, que desde muito cedo sempre soube o que quis, senti-me ligeiramente impacientado. Mas dominei-me, pois, devido ao que só posso chamar de intuição, senti que na alma daquele rapaz se travava uma luta obscura – não sei se de pensamentos mal esboçados ou emoções confusamente sentidas – que determinava uma inquietação que o impelia nem ele mesmo sabia para onde. Senti-me estranhamente condoído dele. Nunca o ouvira falar muito, e só agora notava como a sua voz era melodiosa. Muito convincente. Como se fosse um bálsamo. Ao considerar essa sua qualidade, o sorriso simpático e os expressivos olhos negros, achei perfeitamente compreensível que Isabel o amasse. Havia realmente nele qualquer coisa que atraía. Larry virou a cabeça e olhou-me sem constrangimento, mas com expressão ao mesmo tempo perscrutadora e divertida.

– Será que tenho razão ao imaginar que ontem, depois que saímos para a festa, ficaram falando de mim?

– Durante algum tempo.

– Achei que foi por isso que insistiram tanto para que o tio Bob fosse jantar. Ele detesta sair de casa.

– Ouvi dizer que você teve oferta de um bom emprego.

– Ótimo.

– Vai aceitá-lo?

– Acho que não.

– Por quê?

– Não tenho vontade.

Eu estava me metendo no que não era da minha conta, mas tive a impressão de que, justamente pelo fato de eu ser um desconhecido, e de um país estrangeiro, Larry não tinha má vontade em discutir o caso comigo.

– Bom, você sabe que, quando uma pessoa não consegue fazer nada, vira escritor – disse eu com uma risadinha.

– Não tenho talento.

– Mas, então, que pretende fazer?

Ele me atirou um dos seus sorrisos radiosos, fascinantes.

– Vadiar – respondeu. Não pude deixar de rir.

– Não me consta que Chicago seja o melhor lugar para isso – repliquei. – Em todo caso, deixo-o à sua leitura. Quero dar uma olhada na Yale Quarterly.

Levantei-me. Quando saí da biblioteca, Larry ainda estava absorto no livro de William James. Almocei sozinho no clube e, como a biblioteca era lugar sossegado, fui para lá fumar o meu charuto e distrair-me por uma ou duas horas, lendo e escrevendo cartas. Fiquei admirado por ver Larry ainda mergulhado na leitura. Pareceu-me que não se movera desde que eu o deixara. Quando saí, às quatro horas, ainda lá estava. Fiquei impressionado com o seu poder de concentração. Ele não me vira entrar ou sair. Tendo muito que fazer durante a tarde, não voltei ao Blackstone senão à hora de me vestir para ir a um jantar a que fora convidado. No caminho tive um acesso de curiosidade. Entrei de novo no clube e fui até a biblioteca. Havia ali, agora, muita gente, lendo jornais e outras coisas. Larry continuava na mesma cadeira, atento no mesmo livro. Esquisito!


8

No dia seguinte Elliott me convidou para almoçar no Palmer House, para encontrar-me com o velho Maturin e seu filho. Éramos somente quatro. Henry Maturin era um homem quase tão grande como seu filho, com um carnudo rosto vermelho e maxilar pesado; tinha o mesmo nariz chato, agressivo, mas seus olhos eram menores que os de Gray, não tão azuis, e extraordinariamente sagazes. Embora não pudesse ter mais de cinquenta anos, parecia ter dez anos mais; seus cabelos, que rapidamente se aproximavam da calvície, eram brancos como a neve. À primeira vista não era simpático. Dava a impressão de ter durante anos vivido bem demais, e pareceu-me um sujeito brutal, inteligente e competente e que, pelo menos em matéria de negócios, devia ser implacável.

A princípio ele pouco falou e ocorreu-me que estava tomando o meu pulso. Não pude deixar de perceber que não levava Elliott muito a sério. Gray, amável e delicado, ficou quase que em completo silêncio e a reunião teria sido um fracasso se, com seu incomparável tato social, Elliott não tivesse mantido uma conversa fácil e agradável. Achei que, em outros tempos, ele devia ter adquirido certa experiência lidando com negociantes do Oeste Central, que necessitavam de persuasão para pagar um preço exorbitante por alguma obra de arte. Dali a pouco mr. Maturin começou a sentir-se mais à vontade, tendo feito uma ou duas observações que indicavam que ele era mais vivo do que parecia e tinha mesmo um árido senso do humor. Durante algum tempo a conversa girou sobre títulos e ações. Eu teria ficado admirado por ver como Elliott entendia do assunto, se há muito já não tivesse percebido que, apesar de todas as suas bobices, ele não era nenhum tolo. Foi aí que mr. Maturin observou:

– Recebi hoje uma carta do amigo de Gray, Larry Darrell.

– Você não me contou nada, papai – disse Gray. Mr. Maturin voltou-se para mim.

– O senhor conhece Larry, não conhece? – Inclinei a cabeça e ele continuou: – Gray convenceu-me a convidá-lo para trabalhar conosco. São muito amigos. Gray tem dele uma opinião muito elevada.

– O que foi que ele disse, papai?

– Agradeceu-me. Declarou que sabia que não podia haver melhor oportunidade para um rapaz e que refletira seriamente sobre o assunto, chegando à conclusão de que iria decepcionar-me e que era preferível recusar.

– É uma grande tolice da parte dele – disse Elliott.

– De fato – concordou mr. Maturin.

– Sinto muito, papai – disse Gray. – Teria sido ótimo trabalharmos juntos.

– A gente pode conduzir um cavalo ao rio, mas não pode obrigá-lo a beber.

Ao dizer isto, mr. Maturin olhou para o filho e a expressão dos seus olhos suavizou-se. Vi que havia outra faceta no caráter daquele duro negociante; ele adorava aquele seu filhão desajeitado. Virou-se de novo para mim:

– Sabe de uma coisa, no domingo este rapaz deu a volta em dois abaixo do par. Ele me bateu sete e seis. Tive vontade de abrir-lhe a cabeça com o meu taco. E pensar que fui eu que lhe ensinei golfe!

O homem não cabia em si de orgulho. Comecei a gostar dele.

– Tive muita sorte, papai.

– Absolutamente. Acha então que é sorte sair da banca e colocar a bola a seis polegadas da bandeira? No mínimo trinta e oito jardas, aquela batida. Quero que no próximo ano ele tome parte no campeonato de amadores.

– Não vou ter tempo para isso.

– Sou eu o seu patrão, não sou?

– Se é!... O barulho que você faz quando chego um minuto atrasado no escritório!

Mr. Maturin deu uma risadinha e virou-se para mim.

– Ele está querendo me fazer de tirano. Não acredite. O meu negócio sou eu, pois meus sócios não prestam para nada, e tenho muito orgulho do meu negócio. Fiz este meu filho começar de baixo, e espero que ele vá subindo por merecimento, como qualquer outro empregado, de momento oportuno. Um escritório como o nosso é uma grande responsabilidade. Há trinta anos que cuido do emprego de capital de alguns dos meus clientes e eles têm confiança em mim. Para falar com franqueza, prefiro perder o meu dinheiro a vê-los perder o seu.

Gray deu uma risada.

– Um destes dias, quando uma velhota veio procurá-lo para empregar mil dólares num projeto fantástico que o seu pastor lhe recomendara, ele se recusou a aceitar a incumbência; e, quando a mulher insistiu, passou-lhe uma tal descompostura que ela foi embora chorando. Depois ele chamou o pastor e passou-lhe também um sabão.

– Falam muito mal da nossa classe, mas há corretores e corretores – disse mr. Maturin. – Não quero que meus clientes tenham prejuízo; quero que tenham lucro, mas, pela atitude de muitos, a gente pensaria que estão loucos para se ver livres do último centavo que possuem!


– Então, que tal é ele? – perguntou-me Elliott enquanto caminhávamos, depois que os Maturin nos deixaram para voltar ao escritório.

– Sempre tenho prazer em conhecer tipos novos. Achei enternecedora a mútua afeição entre pai e filho. Não creio que isto seja muito comum na Inglaterra.

– Ele adora aquele rapaz. É um sujeito esquisito. Saiba que é verdade o que disse a respeito dos seus clientes.

Toma conta das economias de centenas de velhas, militares aposentados e pastores. Na minha opinião isso dá mais trabalho do que lucro, mas Maturin se orgulha da confiança que depositam nele. Mas, quando se trata de um negócio de vulto e ele tem que lutar contra poderosos interesses, não há homem mais duro. Inexorável. Piedade é palavra que então desconhece. Quer o seu lucro, e não há obstáculo que o detenha. Se uma pessoa pisar nos seus calos, não somente ele a arruinará, mas ainda achará graça à situação.

Ao chegar em casa Elliott contou a mrs. Bradley que Larry recusara a oferta de Henry Maturin. Isabel fora almoçar com algumas amiguinhas e chegou quando ainda discutiam o assunto. Deram-lhe a notícia. Pelo que Elliott me repetiu da cena, cheguei à conclusão de que ele se exprimira com grande eloquência. Embora tivesse vivido na ociosidade naqueles últimos dez anos, não tendo o seu trabalho anterior, que lhe valera a fortuna, sido dos mais árduos, Elliott era de opinião que, para o bem da humanidade, o trabalho era essencial. Larry era um rapazinho como qualquer outro, sem nenhuma importância social, e não havia absolutamente razão para que não se conformasse com aquele louvável hábito do seu país. Era evidente, para um homem de visão como Elliott, que a América entrava numa época de prosperidade como jamais conhecera. Larry tinha a oportunidade de participar dessa prosperidade e, se fosse perseverante, quando chegasse aos quarenta anos, poderia ser muitas vezes milionário. Se aí então quisesse aposentar-se e viver como um cavalheiro, digamos em Paris, com um apartamento na Avenue du Bois e um castelo em Touraine, ele (Elliott) nada teria a dizer. Mas Louisa Bradley foi mais concisa e mais categórica. Disse:

– Se ele gosta de você, deve estar disposto a trabalhar para você.

Não sei que resposta Isabel deu a isso, mas teve o bom senso de reconhecer que os mais velhos estavam com a razão. Todos os rapazes de sua roda estavam estudando para uma profissão ou trabalhando em algum escritório. Larry não podia pretender passar a vida inteira dormindo sobre suas glórias de aviador. A guerra acabara, estavam todos fartos dela e aflitos por esquecê-la. A conversa teve como resultado a promessa de Isabel de discutir o assunto com Larry de uma vez por todas. Mrs. Bradley sugeriu que ela pedisse ao rapaz que a levasse de carro até Marvin. Pretendia encomendar cortinas novas para a sala de visitas e perdera as dimensões, querendo portanto que Isabel as tomasse novamente.

– Vocês podem almoçar na casa de Bob Nelson – concluiu.

– Tenho ideia melhor – disse Elliott. – Ponha no carro uma cesta de piquenique; eles poderão comer na varanda e conversar depois do almoço.

– Seria divertido – disse Isabel.

– Há poucas coisas no mundo tão agradáveis como um almoço de piquenique saboreado com todo conforto – declarou Elliott sentenciosamente. – A velha duquesa d’Uzès costumava dizer que, em tais circunstâncias, o macho mais recalcitrante se torna sugestionável. Que é que você pretende dar-lhes para o almoço?

– Ovos cozidos e sanduíches de galinha.

– Absurdo. Ninguém pode fazer um piquenique sem pâté de foie gras. Eles precisam levar, em primeiro lugar, camarões com caril; peito de galinha em gelatina, com uma salada de alfaces tenras, que eu mesmo prepararei; e depois do pâté, se você quiser, como concessão ao hábito nacional, uma torta de maçã.

– Eles levarão ovos cozidos e sanduíches de galinha, Elliott – declarou mrs. Bradley em tom decidido.

– Pois bem, tome nota do que digo: vai ser um fracasso e a culpa será sua.

– Larry come muito pouco, tio Elliott – interveio Isabel. – E creio que nem nota o que come.

– Espero que você não considere isto uma qualidade, minha pobre menina – replicou ele.

Mas aquilo que mrs. Bradley dissera que os dois levariam foi exatamente o que levaram. Ao contar-me o resultado da excursão, Elliott encolheu os ombros em gesto muito francês.

– Bem que as preveni de que seria um fracasso. Supliquei a Louisa que enfiasse na cesta uma garrafa de Montrachet, que eu lhe enviara pouco antes da guerra, mas ela não me deu ouvidos. Levaram uma garrafa térmica com café, e nada mais. Que se poderia então esperar?

Parece que Louisa Bradley e Elliott estavam sozinhos na sala quando ouviram o carro parar à porta e Isabel entrar em casa. Caíra a tarde e as cortinas estavam descidas. Elliott estava à vontade numa poltrona, lendo um romance, e mrs. Bradley trabalhava numa tapeçaria que ia servir de biombo para a lareira. Isabel subira diretamente para o quarto. Elliott fitara a irmã por cima dos óculos.

– Com certeza ela foi tirar o chapéu – disse mrs. Bradley. – Daqui a pouco vai descer.

Mas passaram-se vários minutos sem que Isabel viesse.

– Talvez ela esteja cansada; com certeza deitou-se por um pouco.

– Não acha que seria mais natural Larry ter entrado?

– Não seja irritante, Elliott.

– Bom, isso não é comigo, é com você.

Elliott voltou à sua leitura. Mrs. Bradley recomeçou a bordar.

Mas depois de se ter passado meia hora ela se levantou bruscamente.

– Acho melhor eu subir para ver se ela está bem. Se estiver descansando, não a incomodarei.

Saiu da sala, mas voltou logo em seguida.

– Ela esteve chorando. Larry vai para Paris; pretende ficar ausente dois anos. Isabel prometeu esperar por ele.

– Por que motivo deseja ele ir para Paris?

– Não adianta fazer-me perguntas, Elliott. Não sei. Isabel não me quis contar nada. Diz que compreende e que não quer ser um estorvo para ele. Eu disse: “Se Larry está disposto a deixá-la por dois anos, Isabel, então seu amor não pode ser muito forte”. E ela respondeu: “Paciência. O essencial é que eu o amo muito”. “Mesmo depois do que aconteceu hoje?”, perguntei. “O dia de hoje fez com que eu o amasse mais ainda. E ele também me ama, mamãe; tenho certeza disso.”

Elliott refletiu durante alguns instantes.

– E que vai acontecer depois desses dois anos?

– Já lhe disse que não sei, Elliott.

– Não acha o arranjo pouco satisfatório?

– Acho.

– Só resta um consolo: é que são ambos muito moços. Não lhes fará mal esperar dois anos, e nesse espaço de tempo muita coisa pode acontecer.

Concordaram em que seria preferível deixar Isabel em paz, pois iam jantar fora aquela noite.

– Não quero perturbá-la – disse mrs. Bradley. – Todo mundo ficaria fazendo conjeturas se ela aparecesse de olhos inchados.

Mas no dia seguinte, ao almoço, que foi tomado na intimidade, de novo mrs. Bradley tocou no assunto. Mas pouco arrancou de Isabel.

– Não há realmente quase mais nada para contar além do que lhe contei ontem à noite, mamãe – disse ela.

– Mas que é que Larry pretende fazer em Paris? Isabel sorriu, pois sabia quanto a resposta ia parecer absurda à sua mãe.

– Vadiar.

– Vadiar? Que quer você dizer com isso?

– Foi o que ele me disse.

– Francamente, você me faz perder a paciência. Se tivesse um pouco de energia, teria desmanchado o noivado ali na hora. Ele está brincando com você.

Isabel olhou para o anel que trazia na mão esquerda.

– Que hei de fazer? Eu o amo.

Neste momento Elliott entrou na conversa. Discutiu o assunto com o seu tato habitual. “Não como um tio, meu caro amigo, mas como um homem vivido que se dirigisse a uma donzela inexperiente.” Mas não obteve melhores resultados. A impressão que tive foi que, delicadamente mas com firmeza, Isabel lhe dissera que não se metesse no que não era da sua conta. Elliott me repetiu tudo isto no mesmo dia, um pouco mais tarde, quando estávamos ambos na saleta que eu tinha no Blackstone.

– Claro que Louisa tem razão – disse ele. – É muito pouco satisfatório, mas é o que acontece quando deixam que os moços resolvam um casamento que só tem por base uma afeição mútua. Eu disse a Louisa que não se preocupe; creio que as coisas se resolverão melhor do que ela espera. Com Larry no estrangeiro e o jovem Maturin sempre presente... Bom, se é que entendo alguma coisa da psicologia humana, não é difícil prever-se o resultado. Aos dezoito anos nossas emoções são violentas, mas pouco duradouras.

– Você hoje está filósofo, Elliott – comentei sorrindo.

– Não foi à toa que li o meu La Rochefoucauld. Você conhece Chicago; eles se encontrarão constantemente. Uma moça fica lisonjeada por ter alguém que lhe faça a corte o tempo todo e, quando ela sabe que não há uma de suas amigas que não ficaria radiante de poder casar-se com ele... Pois bem, diga-me lá: acha natural que resista à tentação de suplantar todas as outras? Explico-me melhor: é o mesmo que você ir a uma festa, sabendo que vai se aborrecer à grande e que lá só servirão limonada e biscoitos; mas você vai porque sabe que seus amigos dariam a vida por ir, e no entanto não foram convidados.

– Quando é que Larry pretende partir?

– Não sei. Creio que ainda não foi resolvido. – Elliott sacou do bolso uma cigarreira de ouro e platina e tirou de dentro um cigarro egípcio. Nada de Fátimas, para ele, ou Chesterfields ou Camels, ou Lucky Strikes. Fitou-me com um sorriso repleto de insinuações e continuou:

– Claro que eu não diria isso a Louisa, mas a você não me importo de confessar que no fundo compreendo o ponto de vista do rapazinho. Parece que ele tomou um gostinho de Paris durante a guerra, e não o censuro por se sentir atraído pela única cidade do mundo onde um homem civilizado pode viver. É moço e com certeza quer divertir-se um pouco, antes de se assentar na vida de casado. Muito natural e muito certo. Olharei por ele. Apresentá-lo-ei na boa sociedade; ele tem maneiras finas e, com uma ou duas indiretas que eu lhe der, ficará mais apresentável; garanto que posso mostrar-lhe um aspecto da vida na França que a bem poucos americanos é dado conhecer. Creia-me, caro amigo, é mais fácil ao tipo comum de americano entrar no reino dos céus do que no Boulevard St. Germain. Larry tem vinte anos e é simpático. Não será difícil arranjar-lhe uma ligação com uma mulher mais velha. Isto o formaria. Sempre achei que não há melhor educação para um rapaz do que se tornar amante de uma mulher de certa idade e, naturalmente, se ela for do tipo de mulher que tenho em vista, uma femme du monde, você compreende, isto imediatamente lhe daria uma posição em Paris.

– Você disse isso a mrs. Bradley? – perguntei sorrindo. Elliott deu uma risadinha.

– Meu caro amigo, se há uma coisa de que me orgulho neste mundo é do meu tato. Não lhe disse absolutamente nada. Ela não entenderia, a coitadinha. Está aí uma coisa que jamais compreendi em Louisa; embora tenha passado metade de sua vida na diplomacia, residindo em inúmeras capitais do mundo, ela se conservou irremediavelmente americana.


9

Aquela noite fui jantar em Lake Shore Drive, numa enorme casa de pedra que dava a impressão de que o arquiteto iniciara a construção de um castelo medieval e depois, mudando repentinamente de ideia, resolvera transformá-lo em chalé suíço. Era uma reunião grande e, quando entrei na vasta e suntuosa sala de visitas, cheia de estátuas, palmeiras, candelabros, quadros célebres e pesadíssima mobília, fiquei satisfeito por ver que pelo menos algumas das pessoas presentes eu conhecia. Henry Maturin apresentou-me à sua magra, pouco interessante e frágil esposa. Cumprimentei mrs. Bradley e sua filha. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda vermelha que dava realce aos seus cabelos escuros e olhos castanhos. Parecia muito animada e ninguém diria que acabara de ter um grande aborrecimento. Conversava alegremente com dois ou três rapazes, Gray entre eles, que a cercavam. Ao jantar sentou-se a outra mesa e não pude vê-la; mas mais tarde, quando nós, homens, depois de termos nos eternizado nos nossos cafés, licores e cigarros, voltamos para a sala de visitas e tive oportunidade de falar-lhe. Eu a conhecia muito pouco para tocar diretamente no assunto a que Elliott se referira, mas tinha alguma coisa para contar-lhe, que, achei, iria causar-lhe prazer.

– Vi o seu namorado no clube, há poucos dias – disse eu despreocupadamente.

– Ah! viu?...

Seu tom era tão despreocupado quanto o meu, mas percebi que ela ficara imediatamente alerta. Seus olhos adquiriram uma expressão vigilante e creio ter notado neles a sombra da apreensão.

– Ele estava lendo na biblioteca. Fiquei impressionadíssimo com o seu poder de concentração. Lia quando cheguei, pouco depois das dez, lia quando apareci depois do almoço, e ainda estava lendo quando lá voltei à hora do jantar. Não creio que tenha se levantado da cadeira durante a maior parte de um espaço de dez horas.

– O que ele estava lendo?

– Principles of Psychology de William James.

Isabel baixou os olhos para que eu não pudesse ver a impressão que isso lhe causara, mas pareceu-me que ela ficara ao mesmo tempo perplexa e aliviada. Neste momento o dono da casa veio chamar-me para o bridge; quando o jogo acabou, Isabel e sua mãe já tinham ido para casa.


10

Dois dias mais tarde fui despedir-me de mrs. Bradley e Elliott. Encontrei-os tomando chá. Logo depois Isabel apareceu. Falamos da minha próxima viagem, agradeci-lhes as gentilezas que me tinham dispensado durante minha permanência em Chicago, e depois de um prazo regular levantei-me para partir.

– Vou com o senhor até a drugstore – disse Isabel. – Lembrei-me agora que tenho uma compra a fazer.

As últimas palavras que mrs. Bradley me disse foram: “O senhor dará lembranças minhas à querida rainha Margherita, não é?”.

Eu desistira de procurar convencê-la de que não conhecia aquela augusta personagem, e mais que depressa respondi que lhe faria a vontade.

Quando ganhamos a rua, Isabel lançou-me de soslaio um olhar sorridente.

– O senhor acha que poderia tomar um ice-cream-soda? – perguntou-me.

– Só experimentando – respondi prudentemente. Isabel não falou até chegarmos à drugstore e eu, por nada ter a dizer, também fiquei em silêncio. Entramos e tomamos uma mesa, sentando-nos em cadeiras com encosto de ferro forjado e pés no mesmo estilo. Muito pouco confortáveis. Encomendei dois ice-cream-soda. Algumas pessoas faziam compras diante dos balcões; dois ou três casais, sentados a outras mesas, só pareciam atentos aos seus interesses; estávamos, pois, por assim dizer, sozinhos. Acendi um cigarro e esperei, observando Isabel que, com aparente satisfação, chupava o seu refresco por meio de uma longa palhinha. Pareceu-me nervosa.

– Eu queria falar com o senhor – disse-me bruscamente.

– Foi o que me pareceu – respondi sorrindo.

Ela me fitou, pensativa, durante um ou dois minutos.

– Por que motivo me disse aquilo de Larry a noite retrasada na casa dos Satterthwaites?

– Achei que lhe ia interessar. Ocorreu-me que talvez você não soubesse o que ele queria dizer com “vadiar”.

– Tio Elliott é um linguarudo. Quando me disse que ia ao Blackstone dar uma perobinha com o senhor, logo vi que ia contar-lhe tudo.

– Eu o conheço há muitos anos, sabe. Ele tem prazer em comentar a vida alheia.

– É verdade – disse ela, com um sorriso apenas esboçado. Fitou-me atentamente, com expressão séria no olhar. – Que é que acha de Larry?

– Só o vi três vezes. Parece-me muito bom rapaz.

– Só isso?

Havia uma nota de tristeza na voz dela.

– Não; não é. Fica difícil eu dar opinião; você vê, conheço-o há muito pouco tempo. Claro que é simpático. Há nele qualquer coisa de modesto, amável e suave, que é deveras atraente. E é muito senhor de si, considerando-se a sua mocidade. Não se parece com nenhum dos rapazes que fiquei conhecendo aqui.

Enquanto eu assim desajeitadamente procurava dar forma a uma impressão ainda confusa no meu pensamento, Isabel me fitava atentamente. Quando terminei, ela soltou um suspirozinho, como que aliviada, e lançou-me um sorriso encantador, meio maroto.

– O tio Elliott diz que muitas vezes tem ficado admirado do seu dom de observação, mr. Maugham. Diz que pouca coisa lhe escapa, mas que a sua maior qualidade como escritor é o seu bom senso.

– Conheço uma qualidade mais apreciável – repliquei secamente. – Talento, por exemplo.

– Sabe, não tenho ninguém com quem discutir o meu caso. Mamãe só enxerga as coisas sob o seu ponto de vista. Quer garantir o meu futuro.

– É mais que natural, não é?

– E o tio Elliott só vê o lado social. Minhas amigas, refiro-me às da minha geração, acham Larry muito pouco interessante. Isto dói terrivelmente.

– Claro.

– Não digo que elas não sejam gentis com ele. Ninguém pode deixar de ser gentil com Larry. Mas não o levam a sério. Fazem muita troça dele e ficam exasperadas por ver que ele não faz caso. Larry apenas ri. O senhor sabe em que pé estão as coisas atualmente?

– Só sei o que Elliott me contou.

– Posso contar-lhe exatamente o que se passou quando fomos a Marvin?

– Claro.

Consegui reconstruir o episódio que Isabel me descreveu, em parte pela lembrança que tenho do que ela me disse naquele dia, e em parte acudido pela imaginação. Mas foi longa a conversa entre ela e Larry e não duvido que tenham dito muito mais do que pretendo agora relatar. Creio que, como acontece com todo mundo nessas ocasiões, eles não somente disseram muita coisa que não vinha ao caso, mas repetiram várias vezes as mesmas frases.

Quando se levantou, naquele dia, ao ver a beleza da manhã Isabel telefonou a Larry, dizendo que sua mãe queria que ela fosse até Marvin, e pedindo-lhe que a levasse de carro. Tomara a precaução de acrescentar uma garrafa térmica, de martíni, à de café que sua mãe ordenara a Eugene que pusesse na cesta. O carro era novo e Larry tinha orgulho dele. Gostava de guiar depressa, e a velocidade os deixou muito animados. Chegando a Marvin, Isabel mediu as cortinas que deviam ser substituídas, enquanto Larry ia anotando os números. Depois prepararam o almoço na varanda. Esta era protegida contra todo e qualquer vento, e o sol do verão de S. Martinho aquecia agradavelmente. A casa, à beira de uma estrada poeirenta, nada tinha da elegância das velhas casas de madeira da Nova Inglaterra e, mesmo com boa vontade, o mais que se poderia dizer era que era grande e confortável; mas da varanda tinha-se uma vista agradável, do barracão vermelho com o seu telhado negro, uma moita de velhas árvores, e além, até onde alcançava a vista, campos pardacentos. Paisagem monótona, mas o sol e as tintas brilhantes do fim do ano davam-lhe uma beleza toda sua. Era intoxicante aquela amplidão. Por mais fria, nua e melancólica que se apresentasse no inverno, por mais seca, crestada e opressiva que fosse em outros dias, naquela ocasião era estranhamente excitante, pois a vastidão do panorama convidava a alma à aventura.

Eles saborearam o almoço como criaturas moças e sadias que eram, sentindo prazer na companhia um do outro. Isabel serviu o café e Larry acendeu o cachimbo.

– Agora, desabafe-se, meu bem – disse ele com um sorriso divertido nos olhos.

Isabel foi apanhada de surpresa.

– Desabafar-me sobre o quê? – perguntou com o ar mais inocente que lhe foi possível assumir.

Ele deu uma risadinha.

– Pensa que sou algum idiota, meu amor? Se sua mãe não conhecer perfeitamente as dimensões das janelas da sala, quero ser mico de cavalinho! Não foi por isso que você me pediu para trazê-la aqui.

Novamente senhora de si, Isabel lançou-lhe um sorriso encantador.

– Pode ser que eu tenha achado que seria agradável passarmos um dia juntos, só nós dois.

– Pode ser, mas não creio que tenha sido. Meu palpite é que o tio Elliott lhe contou que recusei o convite de Henry Maturin.

Ele falava alegre e despreocupadamente e Isabel achou conveniente adotar o mesmo tom.

– Gray deve ter ficado profundamente decepcionado. Achava que seria ótimo ter você com ele no escritório. Você tem que trabalhar um dia e, quanto mais for adiando, pior.

Larry tirou uma cachimbada e fitou-a, sorrindo ternamente, de modo que Isabel não soube dizer se ele estava falando sério ou não.

– Sabe, tenho a impressão de que quero fazer da minha vida alguma coisa mais do que vender títulos.

– Está certo, então. Entre para um escritório de advocacia ou vá estudar medicina.

– Não; não é também isto que eu quero.

– O que é que você quer, então?

– Vadiar – replicou ele calmamente.

– Oh! Larry, não se faça de engraçado. Isto é muito, muito sério.

A voz de Isabel tremia e seus olhos se encheram de lágrimas.

– Não chore, querida. Não desejo fazê-la sofrer.

Ele foi sentar-se ao lado de Isabel, passando o braço à volta dos ombros dela. Havia uma tão grande ternura na sua voz que Isabel não pôde conter as lágrimas. Mas enxugou-as e tentou chamar aos lábios um sorriso.

– É muito fácil dizer que não quer fazer-me sofrer. Você está me fazendo sofrer. Porque, sabe, eu gosto de você, Larry.

– Eu também gosto de você, Isabel.

Ela suspirou profundamente. Depois se desvencilhou dos braços dele, afastando-se ligeiramente.

– Sejamos sensatos. Um homem tem que trabalhar, Larry. É uma questão de amor-próprio. Vivemos num país novo e é dever de todo homem tomar parte nas atividades deste país. Ainda no outro dia, Henry Maturin estava dizendo que nos encontramos no início de uma era que fará com que as realizações passadas pareçam insignificantes. Disse que não vê limites para o nosso progresso, e está convencido de que lá para 1930 seremos o país maior e mais rico do mundo. Você não acha isto formidável?

– Formidável.

– Nunca os moços tiveram igual oportunidade. Pensei que você fosse sentir-se orgulhoso de participar do trabalho que temos à nossa frente. É uma maravilhosa aventura.

Ele riu ligeiramente.

– Creio que você tem razão. As Armour e Swift produzirão melhores conservas e em maior escala, as McCormick farão melhores foices e em maior quantidade, Henry Ford porá no mercado maior número de melhores carros. E todo mundo ficará mais rico e ainda mais rico. E por que não?

– Sim, como diz você, por que não? Mas acontece que o dinheiro não me interessa.

Isabel riu nervosamente.

– Meu bem, não diga tolices. Ninguém pode viver sem dinheiro.

– Tenho um pouquinho; é por isso que posso fazer o que quero.

– Vadiar?

– Sim – respondeu ele sorrindo.

– Você está dificultando tanto as coisas para mim, Larry – suspirou Isabel.

– Sinto muito. Eu não o faria, se dependesse da minha vontade.

– Depende da sua vontade.

Ele sacudiu a cabeça. Ficou quieto durante alguns instantes, imerso nos seus pensamentos. Quando finalmente quebrou o silêncio, foi para dizer algo que a sobressaltou.

– Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos quando mortos.

– O que quer você exatamente dizer com isto? – perguntou ela, perturbada.

– Justamente isto. – Ele sorriu, meio encabulado. – A gente tem muito tempo para pensar, quando está voando, sozinho. Fica-se com ideias esquisitas.

– Que espécie de ideias?

– Vagas – respondeu ele sorrindo. – Incoerentes. Confusas.

Isabel refletiu durante alguns instantes.

– Não acha que, se você começasse a trabalhar, elas se coordenariam e você ficaria sabendo em que terreno pisava?

– A ideia me ocorreu. Pensei em ir trabalhar numa carpintaria ou em alguma garagem.

– Oh! Larry, todo mundo pensaria que você está maluco.

– Teria isto importância?

– Para mim, sim.

De novo se fez silêncio entre eles. Foi Isabel quem o quebrou. Soltou um suspiro e disse:

– Você está tão diferente do que era quando foi para a França!

– Isto não é de estranhar. Muita coisa me aconteceu, você sabe.

– Como por exemplo?

– Oh, nada de extraordinário. Meu maior amigo na aviação morreu ao salvar-me a vida. Não foi fácil conformar-me com isso.

– Conte-me como foi, Larry.

Ele fitou-a com profunda angústia no olhar.

– Prefiro não falar nisso. Afinal de contas, foi um incidente corriqueiro.

Emotiva por natureza, Isabel sentiu de novo lágrimas nos olhos.

– Você é infeliz, meu bem?

– Não – respondeu ele sorrindo. – A única coisa que me torna infeliz é saber que estou tornando você infeliz.

– Ele segurou a mão de Isabel, e era tão amigo o aperto daquela mão firme e forte, havia nele tão afetuosa intimidade que Isabel teve que morder os lábios para não chorar.

– Creio que não terei paz de espírito enquanto não resolver certas coisas – continuou Larry gravemente. Hesitou e depois: – É difícil explicar. A gente experimenta e logo fica constrangida. Pensa: “Quem sou eu para quebrar minha cabeça sobre isso, aquilo e aquele outro? Mas talvez eu não passe de um pedante pretensioso. Não seria melhor seguir o caminho que os outros trilharam e deixar que os acontecimentos venham como têm que vir?”. Mas então a gente se lembra de um sujeito que uma hora antes estava cheio de vida e de alegria e agora está morto. Tudo tão cruel e sem significação! É difícil deixar de perguntar a si próprio que finalidade tem a vida, se ela tem algum sentido ou se não passa de um erro trágico por parte do destino cego.

Quando Larry falava com aquela sua voz maravilhosamente melodiosa, interrompendo-se como se fizesse um esforço para dizer coisas que preferia calar, e exprimindo-se, no entanto, com tão angustiosa sinceridade, era impossível ao ouvinte não se comover; assim sendo, durante algum tempo Isabel teve medo de falar.

– Acha que adiantaria se você se ausentasse durante algum tempo?

Isabel formulara a pergunta com o coração na mão. Larry levou muito tempo para responder.

– Creio que sim. A gente procura mostrar-se indiferente à opinião pública, mas não é assim tão fácil. Quando essa opinião é antagônica, excita em nós antagonismo e isto nos perturba.

– Então, por que não vai?

– Bom, por sua causa.

– Sejamos francos um com o outro, meu bem. No momento atual não há lugar na sua vida para mim.

– Quer dizer que você prefere desmanchar o nosso noivado?

Ela conseguiu chamar um sorriso aos lábios trêmulos.

– Não, tolinho; quer dizer que estou disposta a esperar.

– Talvez seja um ano. Talvez dois.

– Não faz mal. Talvez seja menos. Para onde você quer ir?

Ele fitou-a atentamente, como se desejasse ler-lhe o mais íntimo pensamento. Isabel sorriu despreocupadamente para esconder o seu profundo desgosto. Larry disse:

– Pois bem, pensei em começar indo para Paris. Não conheço ali ninguém. Não haveria ninguém para se meter com a minha vida. Fui diversas vezes a Paris quando em licença. Não sei por quê, mas tenho impressão de que ali tudo o que está confuso no meu espírito se aclararia. É um lugar engraçado; a gente tem impressão de que ali poderá analisar a fundo os próprios pensamentos. Creio que assim eu talvez chegue a saber que caminho tomar.

– E que acontecerá se não ficar sabendo? Ele deu uma risadinha.

– Então recuperarei o proverbial bom senso americano, darei a experiência por malsucedida e voltarei para Chicago, aceitando o emprego que conseguir arranjar.

A cena impressionara demasiadamente Isabel para que ela pudesse repetir-me sem ficar emocionada. Ao terminar, fitou-me com um arzinho que me penalizou.

– Acha que fiz bem?

– Acho que fez a única coisa possível e, mais ainda, acho que foi extraordinariamente boa, generosa e compreensiva.

– Gosto de Larry e quero que ele seja feliz. E, sabe, até certo ponto acho preferível que ele vá. Quero que se veja livre desta atmosfera hostil, não somente por sua causa, mas pela minha também. Não posso criticar as pessoas que afirmam que ele nunca dará coisa alguma; detesto-as por dizerem isso e, no entanto, bem no fundo, tenho um medo horrível de que estejam com a razão. Mas não diga que sou compreensiva. Não tenho a mínima ideia do que ele procura.

– Talvez você compreenda mais com o coração do que com a razão – repliquei sorrindo. – Por que não se casa imediatamente com ele e não o acompanha a Paris?

O olhar de Isabel teve o brilho de um sorriso.

– Nada que eu desejasse mais. Mas não posso. E, o senhor sabe, embora eu deteste reconhecer semelhante coisa, acho que ele estará melhor sem a minha companhia. Se o dr. Nelson acerta ao dizer que Larry está sofrendo as consequências do choque, então um ambiente novo e outros interesses o curarão e, ao recuperar o equilíbrio, ele voltará para Chicago e vai trabalhar como todo mundo. Não tenho a mínima vontade de me casar com um vadio.

Isabel fora educada de certa maneira e aceitava os princípios que lhe haviam sido incutidos. Não pensava em dinheiro, porque ignorava o que era não ter tudo de que necessitava, mas instintivamente compreendia a sua importância. Poder, influência, posição social. Era natural e óbvio que um homem procurasse ganhá-lo.

Era esta a sua missão na terra.

– Não me admiro que você não compreenda Larry, pois garanto que nem ele se compreende a si próprio – disse eu. – Se ele se mostra reservado quanto aos seus desígnios, talvez seja porque esses desígnios ainda lhe são obscuros. Previno-a: conheço-o muito pouco e isto é apenas um palpite, mas não acha possível que ele esteja procurando por alguma coisa, mas uma coisa que ele ignora qual seja, de cuja existência talvez nem mesmo certeza tenha? É possível que o que lhe aconteceu na guerra, seja o que for, tenha determinado uma inquietação que nunca o abandona. Não acha que ele talvez esteja à procura de um ideal que se oculta na névoa do desconhecido, como o astrônomo que busca a estrela que somente um cálculo matemático lhe diz que existe?

– Sinto que alguma coisa o está afligindo.

– Sua alma? É possível que ele esteja com um pouco de medo de si próprio. É possível que não acredite na autenticidade da visão que vagamente distingue no seu espírito.

– Às vezes ele me dá uma impressão esquisita; como se fosse um sonâmbulo que de repente acordasse num lugar estranho, não podendo imaginar onde está. Era tão normal antes da guerra! Um dos seus maiores atrativos era o seu amor à vida. Tão alegre e estouvado que era um prazer a gente estar na sua companhia; tão meigo e ridículo! Que é que pode ter acontecido para tê-lo mudado desta forma?

– Não sei. Às vezes uma coisinha de nada tem sobre a pessoa um efeito completamente fora de proporção com o acontecimento. Depende das circunstâncias, e do estado de espírito dessa pessoa no momento. Lembro-me de ter ido à missa num Dia de Todos os Santos, que os franceses chamavam Dia de Finados, na igreja de uma aldeia que, no seu primeiro avanço sobre a França, os alemães tinham estragado um pouco. Estava repleta de soldados e mulheres de preto. No cemitério ao lado, havia fileiras de cruzes de madeira e, à medida que o serviço solene, triste, prosseguia, e homens e mulheres choravam, experimentei a sensação de que talvez aqueles que descansavam sob as cruzes fossem mais felizes do que nós, os vivos. Contei a um amigo o que sentia e ele me perguntou o que queria eu dizer. Não me foi possível explicar e percebi que ele me considerava um grandíssimo idiota. E lembro-me de ter visto, depois de uma batalha, um monte de franceses mortos, empilhados uns sobre os outros. Pareciam fantoches de uma companhia falida, que haviam sido atirados desordenadamente num canto poeirento, por não prestarem para mais nada. Pensei, então, aquilo que Larry disse a você, no outro dia: “Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos”.

Não quero que o leitor pense que estou fazendo mistério do que acontecera a Larry na guerra, fosse o que fosse, que tão profundamente o afetara – mistério que revelarei no momento oportuno.

Não creio que ele jamais tenha contado a quem quer que seja. Anos mais tarde, no entanto, ele falou a uma mulher, Suzanne Rouvier, também minha conhecida, sobre o aviador que morrera ao salvar-lhe a vida. Ela repetiu-me o caso e só posso, portanto, relatá-lo de segunda mão.

Traduzi-o do francês em que ela me falou. Parece que Larry ficara muito amigo de outro rapaz de seu esquadrão. Suzanne só o conhecia pelo irônico apelido com que Larry se referia a ele.

– Era um sujeitinho pequeno de cabelos vermelhos, um irlandês – disse Larry. – Costumávamos chamá-lo de Patsy e ele tinha mais vivacidade do que qualquer outra pessoa que jamais conheci. Céus, era um azougue! Tinha uma cara engraçada e um sorriso engraçado, de modo que só de olhar para ele a gente tinha vontade de rir. Era um diabo temerário e fazia as maiores loucuras; estava sempre sendo chamado à ordem pelos superiores. Não sabia o que era medo e, depois de ter escapado da morte por um triz, seu rosto se alargaria num sorriso, como se aquilo fosse a maior pilhéria do mundo. Mas era um aviador nato e lá em cima, nas nuvens, sabia ser frio e cauteloso. Ensinou-me muita coisa. Era um pouco mais velho do que eu e tomou-me sob sua proteção; isto era realmente um pouco cômico, considerando-se que eu tinha bem uns quinze centímetros a mais de altura do que ele e, se por um acaso brigássemos, eu poderia pô-lo a nocaute em dois tempos. Foi o que aconteceu, certa vez, em Paris, quando ele estava bêbado e fiquei com medo de que se metesse em alguma embrulhada.

Larry fez uma pausa e continuou:

– Eu não me sentia muito à vontade quando me reuni ao esquadrão e tinha medo de não me sair bem, mas ele me obrigou a ter confiança em mim. Tinha ideias engraçadas sobre a guerra; não sentia ódio dos alemães; gostava de uma brigazinha e achava divertidíssimo combatê-los. Não podia considerar o fato de pôr abaixo um avião inimigo a não ser como grandíssima pilhéria. Era impudente e louco e irresponsável, mas ao mesmo tempo tão sincero que a gente não podia deixar de lhe querer bem. Daria a um companheiro o seu último níquel, com a mesma facilidade com que aceitaria o dele. Se um de nós se sentia isolado, ou com saudade de casa, ou com medo, como algumas vezes me aconteceu, ele logo o perceberia e, a carinha feia enrugando-se de riso, diria exatamente aquilo que podia fazer a gente sentir-se bem outra vez.

Larry tirou uma cachimbada e Suzanne esperou que ele continuasse.

– Costumávamos manobrar de jeito a ter nossas licenças juntos e quando íamos a Paris ele ficava endiabrado. Divertíamo-nos à grande. Íamos ter uns dias de licença em princípio de março, isto em 1918, e traçamos nossos planos de antemão. Não havia o que não pretendêssemos fazer! Na véspera da partida, recebemos ordem de voar sobre as linhas inimigas e apresentar o nosso relatório. Subitamente demos com alguns aviões alemães e, quando menos esperávamos, estávamos no meio de uma batalha. Um deles me perseguiu, mas peguei-o primeiro. Espiei para ver se ele ia cair e com o rabo do olho vi outro aparelho no meu encalço. Mergulhei para ver se escapava, mas o inimigo se aproximou como um relâmpago e pensei que eu estivesse liquidado; nisto vi Patsy cair sobre ele como se fosse um raio e despejar-lhe toda a munição que tinha. Os alemães deram-se por vencidos e fugiram, e nós voltamos às nossas linhas. Meu avião estava bem avariado e eu mal consegui aterrissar. Patsy chegara antes de mim. Quando desci do meu avião, vi que tinham acabado de tirá-lo do seu. Estava deitado no chão; esperavam que chegasse a ambulância. Ele sorriu ao ver-me. Disse:

“Derrubei aquele sujeito que estava atrás de você”. “Que foi que aconteceu, Patsy?”, perguntei.

“Oh! nada. Ele me pegou na asa.”

– Estava mortalmente pálido. De repente uma expressão estranha cobriu-lhe o rosto. Só neste momento percebeu que estava agonizante, e a ideia da morte jamais lhe passara pela cabeça. Antes que alguém pudesse impedi-lo, ele sentou-se e soltou uma risada.

“Ora, essa é boa!”

– Caiu morto. Tinha vinte e dois anos. Ia casar-se com uma moça na Irlanda quando acabasse a guerra.

No dia seguinte à minha conversa com Isabel, saí de Chicago para São Francisco, onde devia tomar o vapor que me levaria ao Extremo Oriente.


Dois

Dois


1

Só tornei a ver Elliott quando ele veio a Londres, em fins de junho do ano seguinte. Perguntei-lhe se, afinal de contas, Larry tinha ido mesmo para Paris. Respondeu-me que sim. Achei graça ao perceber como Elliott ficara exasperado com ele.

– No fundo eu compreendia o ponto de vista do rapazinho – disse-me. – Não o censurava por querer passar um ou dois anos em Paris, e estava disposto a lançá-lo na sociedade. Pedi-lhe que me avisasse assim que chegasse, mas só quando Louisa se referiu a isso numa carta foi que eu soube que ele estava em Paris. Escrevi-lhe aos cuidados do American Express, endereço que ela me dera, convidando-o para vir jantar e ser apresentado a algumas das pessoas que eu achava que ele devia conhecer. Queria primeiro experimentá-lo com o grupo franco-americano, Emily de Montadour, Gracie de Chãteau-Gaillard e outras, mas sabe você o que ele me respondeu? Que sentia não poder aceitar, uma vez que não trouxera traje de noite.

Elliott encarou-me para ver no meu rosto o espanto que certamente eu iria sentir. Ergueu um tanto desdenhosamente as sobrancelhas ao verificar que eu aceitava com calma a comunicação.

– Respondeu à minha carta numa folha de papel ordinário, que tinha em cima o nome de um café do Quartier Latin; quando lhe escrevi novamente, pedi-lhe que me dissesse onde estava hospedado. Achei que, em consideração a Isabel, precisava fazer alguma coisa por ele, e pensei que talvez fosse apenas uma questão de timidez – isto é, não achei crível que um rapaz no seu juízo perfeito viesse para Paris sem traje de noite; além do mais, há ali alfaiates passáveis. Convidei-o, portanto, para almoçar, avisando que seria um grupo pequeno e, imagine você, não somente ele ignorou o meu pedido sobre o endereço, mas disse que nunca almoçava! Isto fez com que eu lavasse definitivamente as mãos a seu respeito.

– O que será que anda fazendo?

– Não sei e, para ser franco, tanto se me dá. Acho que é um rapazinho indesejável, e que seria um grande erro da parte de Isabel casar-se com ele. Afinal de contas, se ele levasse vida normal, eu o teria visto no bar do Ritz, ou no Fouquet, ou em qualquer outro lugar.

Vou às vezes a estes lugares elegantes, mas vou também a outros, e aconteceu que passei vários dias em Paris, no princípio do outono daquele ano, a caminho de Marselha, onde pretendia tomar um dos vapores da Messagerie, para Cingapura. Jantei uma noite com alguns amigos em Montparnasse e depois do jantar fomos ao Dôme tomar um copo de cerveja. Dali a pouco meu olhar vadio deu com Larry sentado sozinho a uma mesa de mármore, no terraço repleto de gente. Observava desinteressadamente as pessoas que passeavam para lá e para cá a apreciar a frescura da noite depois de um dia opressivo. Deixei o meu grupo e fui até lá. Seu rosto iluminou-se quando me viu. Dirigiu-me um sorriso amável e convidou-me para sentar, mas respondi que não podia por estar com uns amigos.

– Quis apenas cumprimentá-lo – disse eu.

– O senhor está aqui? – perguntou-me.

– Apenas por alguns dias.

– Quer almoçar comigo amanhã?

– Pensei que você nunca almoçasse. Ele riu baixinho.

– O senhor esteve com Elliott! Em geral não almoço, pois não posso perder tempo; tomo só um copo de leite, com um brioche, mas gostaria que o senhor almoçasse comigo.

– Está certo.

Combinamos encontro no Dôme, no dia seguinte, para um aperitivo; iríamos depois almoçar em qualquer restaurante do boulevard. Voltei para a companhia dos meus amigos. Ficamos sentados, conversando. Quando procurei por Larry, dali a pouco, vi que ele havia saído.


2

No dia seguinte passei uma manhã muito agradável. Fui ao Luxemburgo e ali me demorei durante uma hora, vendo alguns quadros do meu gosto. Depois vaguei pelos jardins, tentando recapturar as memórias da mocidade. Nada mudara. Poderiam ter sido os mesmos estudantes, aqueles que passeavam aos pares pelas alamedas de pedregulho, a discutir os autores que lhes tinham despertado o interesse. Poderiam ter sido as mesmas crianças, a rodar os mesmos arcos, sob a vigilância das mesmas amas. Poderiam ter sido os mesmos velhos, que se aqueciam ao sol e liam o jornal da manhã. Poderiam ter sido as mesmas mulheres maduras, de luto, sentadas nos bancos a discutir o preço dos mantimentos e a insolência das empregadas. Depois fui ao Odeon, examinei os livros novos nas galerias e vi os rapazinhos que, como eu trinta anos antes, procuravam, sob o olhar petulante dos empregados de avental, ler o maior número possível de livros que eles não estavam em condições de comprar. Caminhei em seguida vagarosamente pelas ruas sujas e queridas, até chegar ao Boulevard du Montparnasse e finalmente ao Dôme. Larry estava à minha espera. Tomamos um aperitivo e procuramos depois um restaurante onde pudéssemos comer ao ar livre.

Talvez ele estivesse um pouco mais pálido, e isto fazia com que seus olhos muito escuros, nas órbitas fundas, atraíssem mais ainda atenção; mas continuava igualmente senhor de si, fato curioso em pessoa tão jovem, e tinha o mesmo sorriso franco. Quando encomendou o almoço, notei que falava francês corretamente e com boa pronúncia. Felicitei-o.

– Bom, eu já sabia um pouco de francês – explicou ele. – Tia Louisa tinha uma governanta francesa para Isabel e, quando estávamos em Marvin, ela nos obrigava a praticar o tempo todo.

Perguntei-lhe se estava gostando de Paris.

– Muito.

– Mora em Montparnasse?

– Moro – disse ele depois de um momento de hesitação, que interpretei como indicando má vontade de contar exatamente onde morava.

– Elliott ficou um pouco vexado por você lhe ter dado como endereço somente o American Express.

Larry sorriu, mas não respondeu.

– O que é que você faz o tempo todo?

– Vagabundeio.

– E lê?

– Leio, sim.

– Tem notícias de Isabel?

– De vez em quando. Nenhum de nós dois é muito dado a escrever cartas. Está se divertindo à grande em Chicago. No próximo ano elas vêm para cá, visitar

Elliott.

– Que bom para você!

– Creio que Isabel não conhece Paris. Vai ser divertido mostrar-lhe a cidade.

Larry estava curioso por conhecer detalhes de minha viagem pela China e ouviu com atenção o que lhe contei; mas, quando tentei fazê-lo falar sobre si próprio, fracassei. Mostrou-se tão pouco comunicativo que me vi forçado à conclusão de que me convidara somente pelo prazer da minha companhia. Fiquei contente, mas perplexo. Nem bem tínhamos acabado o café, ele pediu a conta, pagou-a e levantou-se.

– Bom, tenho que ir caminhando – disse.

Separamo-nos. Eu estava na mesma quanto às suas atividades. Não tornei a vê-lo.


3

Quando, mais cedo do que pretendiam, mrs. Bradley e Isabel vieram hospedar-se com Elliott, na primavera, eu não me achava em Paris; para completar, portanto, a narrativa do que sei que sucedeu, vejo-me de novo obrigado a recorrer à imaginação. Mãe e filha desembarcaram em Cherburgo e, com a costumeira gentileza, Elliott foi esperá-las. Passaram pela Alfândega. O trem partiu. Com ar um tanto benevolente, Elliott participou-lhes que tomara para elas uma ótima empregada particular; e quando mrs. Bradley replicou que achava a medida desnecessária, ele falou-lhe com rudeza.

– Não comece a implicar desde o momento da chegada, Louisa. Nenhuma senhora pode ficar bem-vestida sem o auxílio de uma criada particular, e resolvi tomar Antoinette não somente por sua causa e de Isabel, mas pela minha. Ficaria mortificado se vocês não se apresentassem impecavelmente vestidas.

Elliott lançou aos trajes das duas viajantes um olhar desdenhoso e continuou:

– Vocês, naturalmente, vão precisar de vestidos novos. Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que Chanel é a última palavra.

– Sempre tenho procurado Worth – declarou mrs. Bradley. Pela atenção que Elliott lhe deu, foi o mesmo que não ter falado.

– Conversei pessoalmente com Chanel e marquei hora para amanhã, às três. Depois temos que tratar dos chapéus. Quanto a isso, não há dúvida: Reboux.

– Não quero gastar muito, Elliott.

– Sei disso. Estou disposto a pagar por tudo. Quero que vocês me façam honra. Oh! enquanto me lembro, Louisa, arranjei várias reuniões para vocês e disse aos meus amigos franceses que Myron era embaixador, o que naturalmente ele chegaria a ser, se tivesse vivido um pouco mais; isso causa melhor efeito. Não creio que o assunto venha à baila, mas achei preferível preveni-la.

– Você é ridículo, Elliott.

– Não, não sou. Conheço a humanidade. Sei que a viúva de um embaixador tem mais prestígio que a viúva de um ministro.

Quando o trem ia entrando na Gare du Nord, Isabel, que estava à janela, exclamou:

– Lá está Larry.

Nem bem o trem parara, ela pulou para a plataforma e correu ao encontro do rapaz. Larry abraçou-a.

– Como é que ele soube que vocês vinham? – perguntou Elliott, secamente, à irmã.

– Isabel radiografou do navio.

Mrs. Bradley beijou Larry afetuosamente e Elliott estendeu-lhe molemente a mão. Eram dez horas da noite.nhã? – perguntou vivamente Isabel, de rosto corado e olhos cintilantes, com o braço enfiado no do rapaz.

– Eu teria nisso muito prazer, mas Larry me deu a entender que nunca almoça.

– Você almoça amanhã, não é verdade, Larry?

– Almoço – respondeu ele sorrindo.

– Espero então ter o prazer de vê-lo à uma hora. Elliott estendeu-lhe mais uma vez a mão, com evidente intenção de despedi-lo, mas Larry sorriu impudentemente.

– Vou ajudar com a bagagem e lhes arranjarei um táxi.

– Meu carro está esperando e meu criado tomará conta da bagagem – disse Elliott com dignidade.

– Ótimo. Então só nos resta partir. Se houver lugar para mim, irei até a porta de sua casa.

– Sim, venha, Larry – disse Isabel.

Desceram juntos a plataforma, seguidos por mrs. Bradley e Elliott. No rosto de Elliott havia uma expressão de gélida censura.

– Quelles manières – murmurou de si para si, pois em certas circunstâncias achava que podia exprimir seus sentimentos com mais energia em francês.

Não sendo madrugador, no dia seguinte às onze horas, quando acabou de se vestir, Elliott mandou um bilhete à irmã, por intermédio de seu criado Joseph e da criada dela, Antoinette, convidando-a a vir à biblioteca para conversarem um pouco. Quando mrs. Bradley apareceu, ele fechou cautelosamente a porta e, enfiando um cigarro numa imensa piteira de ágata, acendeu-o e sentou-se.

– Devo compreender que Isabel e Larry continuam noivos? – perguntou.

– Sim, pelo que me consta.

– Infelizmente não tenho muito boas notícias a dar-lhe sobre o rapaz. – Elliott contou-lhe como estivera disposto a apresentar Larry na sociedade e os planos que fizera para instalá-lo condignamente. – Eu estava mesmo de olho num rez-de-chaussée, que era exatamente o que lhe convinha. Pertence ao jovem marquês de Rethel, que queria sublocá-lo por ter sido nomeado embaixador em Madri.

Mas Larry recusara seus convites de uma maneira que indicava claramente que não queria auxílio.

– Para que vem uma pessoa a Paris, quando não pretende aproveitar-se das vantagens que esta cidade oferece, é coisa que está acima da minha compreensão. Não sei de que maneira ele passa o tempo; parece-me que não conhece ninguém. Sabe onde ele mora?

– O único endereço que nos deu foi o American Express.

– Tal um viajante de casa comercial, ou mestre-escola em férias! Não me admiraria se ele estivesse vivendo com alguma prostitutazinha num estúdio de Montmartre.

– Oh! Elliott!

– Que outra razão pode haver para o mistério em que envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe? envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe?

– Larry não é desse tipo. E, a noite passada, você não teve a impressão de que está tão apaixonado por Isabel como antes? Ele não poderia ser assim tão dissimulado.

Elliott encolheu os ombros, como a dizer que não há limites para a falsidade masculina.

– O que me conta de Gray Maturin? Ainda está na arena?

– Ele se casaria amanhã com Isabel se ela o aceitasse. Mrs. Bradley contou-lhe então o motivo que as trouxera à Europa mais cedo do que pretendiam. Não andava passando bem ultimamente, e os médicos lhe haviam dito que estava sofrendo de diabetes. Não era caso grave e, com dieta e doses módicas de insulina, não havia motivo para que não vivesse ainda por muitos anos; mas o fato de saber que sofria de uma moléstia incurável deixara-a ansiosa por ver a filha instalada na vida. As duas tinham discutido o assunto. Isabel era sensata; concordou que, se Larry não quisesse voltar para Chicago ao cabo dos dois anos combinados, e arranjar emprego, então a única coisa a fazer seria romper o noivado. Mas mrs. Bradley era de opinião que sua dignidade sofreria, se esperassem até o fim do prazo marcado, vindo depois buscá-lo como um fugitivo da justiça. Achava que Isabel se colocaria numa posição humilhante. No entanto era muito natural que quisessem passar o verão na Europa, aonde Isabel não vinha desde criança. Depois de uma visita a Paris, poderiam ir para uma estação de águas indicada para a moléstia de mrs. Bradley; em seguida, por algum tempo, para o Tirol austríaco; de lá iriam viajar calmamente pela Itália. Mrs. Bradley tinha intenção de convidar Larry a acompanhá-las, para que ele e Isabel pudessem verificar se a longa separação não lhes alterara os sentimentos. Depois de certo tempo ficaria claro se, tendo-se divertido à vontade, Larry estava ou não disposto a aceitar sua parte de responsabilidade na vida.

– Henry Maturin ofendeu-se por Larry ter recusado a colocação que ele lhe ofereceu, mas Gray conseguiu acalmá-lo e Larry pode começar a trabalhar assim que voltar para Chicago.

– Gray é um bom rapaz.

– Se é! – Mrs. Bradley suspirou e acrescentou: – Tenho certeza que faria Isabel feliz.

Elliott falou então das festas que organizara em honra delas. Ia dar um grande almoço no dia seguinte, e no fim da semana um grande jantar. Pretendia levá-las a uma recepção na casa dos Château-Gaillard e conseguira convites para um baile que os Rothschild iam dar.

– Você vai convidar Larry, não vai?

– Ele me disse que não tem traje a rigor – fungou

Elliott.

– Bom, convide-o assim mesmo. Afinal de contas ele é um bom rapaz e não há vantagem em boicotá-lo. Só serviria para aumentar a teima de Isabel.

– Claro que o convidarei, se é este o seu desejo.

À hora marcada, Larry compareceu ao almoço; e Elliott, que tinha maneiras impecáveis, procurou propositalmente ser amável com ele. Não foi difícil, pois Larry estava tão alegre e animado que somente um homem muito mais maldoso do que Elliott poderia deixar de ficar encantado. A conversa girou sobre Chicago e os amigos comuns que ali tinham, de modo que a Elliott bastava mostrar-se cortês e fingir interessar-se pela vida de pessoas que ele considerava sem a mínima importância social. Não lhe causava tédio escutar; pelo contrário, achava enternecedor ouvi-los comentar o noivado daquele jovem par, o casamento de outro jovem par e o divórcio de um terceiro jovem par. Quem jamais ouvira falar dessa gente? Agora: ele sabia que a linda marquesa de Clinchant tentara suicidar-se porque seu amante, o príncipe de Colombey, a abandonara para casar-se com a filha de um milionário sul-americano. Isto era fato que se comentasse. Observando Larry, viu-se obrigado a reconhecer que havia nele qualquer coisa de singularmente atraente; com seus olhos fundos, muito escuros, maçãs salientes, tez pálida e boca expressiva, ele lembrava a Elliott um retrato por Botticelli, e ocorreu-lhe que, se o rapazinho se vestisse à moda da época, ficaria extraordinariamente romântico. Lembrou-se do seu plano de lhe arranjar um “caso” com uma francesa distinta, e sorriu matreiramente ao refletir que no sábado esperava para jantar Marie Louise de Florimond, que combinava irrepreensíveis relações sociais com uma notória imoralidade. Já atingira os quarenta anos, mas aparentava dez anos menos; tinha a delicada beleza de uma de suas antepassadas que fora pintada por Nattier, quadro que, graças ao próprio Elliott, fazia agora parte de uma das grandes coleções americanas; e sua voracidade sexual era insaciável. Elliott resolveu colocar Larry a seu lado. Sabia que ela não perderia tempo em patentear-lhe os seus desejos. Já convidara um jovem attaché da embaixada britânica com quem, assim o julgava ele, provavelmente Isabel ia simpatizar. Isabel era muito bonita e, como o rapaz era inglês, e rico, pouco importava que ela não tivesse fortuna. Abrandado pelo excelente Montrachet, com que haviam iniciado o almoço, e pelo ótimo Bordeaux que veio em seguida, Elliott refletiu com calma e satisfação sobre as possibilidades que se apresentavam a seu espírito. Se as coisas se resolvessem como ele achava provável, a querida Louisa não mais teria motivo de inquietação. No íntimo ela sempre o criticara um pouco; coitadinha, era tão provinciana!... mas Elliott lhe queria bem. Seria um prazer arranjar tudo para ela, valendo-se da sua experiência da vida.

Para não perder tempo, Elliott decidira levar as senhoras para escolherem os vestidos logo depois do almoço, de seu forte ele insinuou a Larry que sua companhia era agora dispensável – mas ao mesmo tempo insistiu amavelmente para que o rapaz comparecesse às duas reuniões que estava organizando. Tanta diplomacia não teria sido necessária, pois Larry aceitou alegremente os dois convites.

Mas o plano de Elliott fracassou. Ele ficou aliviado quando Larry compareceu ao jantar num dinner-jacket muito apresentável, pois receara vê-lo surgir metido no mesmo terno de casimira azul que usara ao almoço; e depois do jantar, chamando Marie Louise de Florimond à parte, perguntou-lhe que tal achava o seu jovem amigo americano.

– Ele tem olhos bonitos e bons dentes.

– Só isto? Coloquei-o perto de você porque achei que era exatamente o seu bocado.

Madame de Florimond olhou-o desconfiada.

– Ele me disse que está noivo de sua sobrinha.

– Voyons, ma chère, o fato de um homem pertencer a outra mulher nunca foi obstáculo para você se apossar dele, se possível.

– É isto que você está querendo? Pois bem, não estou disposta a fazer o seu trabalhinho sujo por você, meu pobre Elliott.

Elliott deu uma risadinha.

– Presumo que isto significa que você entrou com o seu joguinho e viu que não adiantava.

– Gosto de você, Elliott, porque sua moral não é mais elevada que a de uma cafetina. Você não quer que o rapaz se case com sua sobrinha. Por quê? Ele é bem-educado e muito simpático. Mas é de fato inocente demais. Creio que nem de longe suspeitou das minhas intenções.

– Você devia ter sido mais explícita, cara amiga.

– Tenho suficiente experiência para saber quando estou perdendo meu tempo. A verdade é que ele só tem olhos para a sua Isabelzinha e, cá entre nós, a pequena tem vinte anos de vantagem sobre mim. E é um amor, ainda por cima.

– Você gosta do vestido dela? Eu mesmo o escolhi.

– É bonito e apropriado. Mas naturalmente ela não tem chie.

Elliott tomou aquilo como um insulto pessoal, e não ia deixar que madame de Florimond escapasse sem uma alfinetada. Sorriu alegremente e disse:

– Para ter o seu chie, cara amiga, uma pessoa precisa ter atingido a sua completa maturidade.

Madame de Florimond desferiu não um golpe de florete, e sim uma cacetada. Sua réplica fez ferver o sangue virginiano de Elliott.

– Mas garanto que no seu belo país de bandidos (votre heau pays d’apaches) ninguém notará a falta de coisa tão sutil e inimitável.

Mas, se madame de Florimond criticou, os outros amigos de Elliott mostraram-se encantados com Isabel e cia e vitalidade; gostaram da pitoresca aparência de Larry, de suas maneiras finas e espírito calmo, irônico. Ambos tinham a vantagem de falar correntemente o francês. Quanto a mrs. Bradley, depois de ter vivido vários anos em círculos diplomáticos, falava a língua com bastante correção, mas com um descarado sotaque americano. Elliott procurou distraí-las com incomparável prodigalidade.

Satisfeita com seus vestidos e chapéus novos, encantada com todos aqueles folguedos que Elliott lhe proporcionava, e feliz na companhia de Larry, Isabel achou que nunca se divertira tanto na vida.


4

Para Elliott, o café da manhã era refeição que só podia ser compartilhada com estranhos, e assim mesmo quando não havia outro remédio; em vista disso, contra a vontade de mrs. Bradley e com satisfação de Isabel, as duas tomavam aquela refeição no quarto. Mas às vezes, ao acordar, Isabel dizia à imponente Antoinette que levasse o seu café au lait para o quarto de mrs. Bradley, para poder conversar com a mãe. Na movimentada vida que levava, era esse o único momento em que podia ficar a sós com ela. Certa manhã, um mês depois de estarem em Paris, quando Isabel acabou de narrar os acontecimentos da noite anterior, que passara a visitar cabarés em companhia de Larry e de alguns amigos, mrs. Bradley aventurou a pergunta que desejava fazer desde o dia da chegada.

– Quando é que Larry pretende voltar para Chicago?

– Não sei. Ainda não falou nisso.

– Você não lhe perguntou?

– Não.

– Está com medo?

– Não; claro que não.

Deitada na chaise-longue, metida num roupão elegante com que Elliott fizera questão de presenteá-la, mrs. Bradley lustrava as unhas.

– Sobre que falam vocês durante todo tempo em que estão juntos?

– Não falamos o tempo todo. É agradável estarmos juntos. A senhora sabe, Larry sempre foi mais ou menos calado. Creio que, quando conversamos, sou eu que falo quase todo tempo.

– O que é que ele andou fazendo?

– Francamente não sei. Mas não creio que tenha sido grande coisa. Provavelmente esteve se divertindo.

– E onde está morando?

– Também não sei.

– Ele é muito reservado, não é?

Isabel acendeu um cigarro e, ao soltar fumaça pelo nariz, olhou friamente a mãe.

– O que é que você quer exatamente dizer com isto, mamãe?

– Seu tio Elliott acha que ele está vivendo com alguma mulher, num apartamento.

Isabel desatou a rir.

– Você não acredita nisto, acredita?

– Para ser franca, não. – Mrs. Bradley examinou as unhas com ar pensativo. – Você nunca lhe fala sobre Chicago?

– Sim, muitas vezes.

– Ele não deu nenhuma indicação de que pretende voltar?

– Não posso dizer que tenha dado.

– Em outubro vai fazer dois anos que ele se ausentou.

– Sei disso.

– Bom, isto é com você, meu bem; faça o que achar direito. Mas as coisas não se tornam mais fáceis pelo fato de serem adiadas. – Olhou de relance para a filha, mas os olhos de Isabel não encontraram os seus. mrs. Bradley sorriu afetuosamente. – Se você não quiser ficar atrasada para o almoço, é melhor ir tomar o seu banho.

– Vou almoçar com Larry, num restaurante do Quartier Latin.

– Divirtam-se.

Uma hora mais tarde, Larry veio buscá-la. Tomaram um táxi até Pont St. Michel e andaram pelo movimentado boulevard, até chegarem a um café cuja aparência lhes agradou. Sentaram-se no terraço e encomendaram dois Dubonnets. Depois tomaram outro táxi e foram a um restaurante. Isabel tinha bom apetite e apreciou as coisas gostosas que Larry encomendou para ela. Sentia prazer em observar as pessoas que quase roçavam neles, pois o restaurante estava repleto, e achava graça no visível prazer com que comiam; mas, acima de tudo, estava a satisfação de sentar-se a uma mesinha a sós com Larry. Agradava-lhe a expressão divertida do olhar dele, enquanto ela tagarelava alegremente. Que maravilha sentir-se tão à vontade com Larry! Mas, no subconsciente, sentia uma vaga inquietação, pois, embora ele também parecesse perfeitamente à vontade, Isabel percebia que era mais com o ambiente do que com ela. Ficara ligeiramente perturbada com o que a mãe lhe dissera e, embora parecesse conversar com despreocupação, observava todas as expressões de Larry. Ele não era o mesmo de quando saíra de Chicago, mas Isabel não podia dizer onde estava a diferença. Aparentemente era o mesmo Larry de quem ela se lembrava, igualmente moço, franco; mas sua expressão mudara. Não que estivesse mais sério, pois seu rosto, em repouso, sempre fora grave; tinha agora uma calma que Isabel nunca vira nele, como se tivesse resolvido alguma coisa consigo mesmo, sentindo uma tranquilidade que antes desconhecera.

Terminado o almoço, Larry propôs uma volta pelo

Luxemburgo. – Não; não quero ver quadros.

– Está certo. Vamos nos sentar nos jardins, então.

– Não; não é também isto que eu quero. Quero ver onde você mora.

– Não há nada para ver. Moro num quartinho sujo, num hotel.

– O tio Elliott diz que você tem um apartamento e está vivendo pecaminosamente com uma modelo.

– Pois bem, venha então verificar – propôs ele rindo.

– É a um pulo daqui. Podemos ir a pé.

Levou-a por ruas estreitas e tortuosas, escuras apesar da faixa de céu azul que aparecia entre as casas altas; pouco depois parou diante de um hotelzinho de fachada pretensiosa e disse:

– Chegamos.

Isabel entrou com ele num hall estreito. Viu, a um lado, uma escrivaninha a que estava sentado, lendo um jornal, um homem em mangas de camisa, com um colete de listas fininhas em branco e amarelo, e um avental sujo. Larry pediu sua chave e o homem deu-lha, tirando-a de uma prateleira logo atrás e lançando a Isabel um olhar indagador, que imediatamente se transformou num sorrisinho sabido. Estava claro que achava que ela não ia ao quarto de Larry para fins honestos.

Subiram dois lances de uma escada coberta por surrada passadeira vermelha, e Larry abriu sua porta. Isabel entrou num quartinho de duas janelas que davam para uma cinzenta casa de apartamentos, em cujo andar térreo funcionava uma papelaria. No quarto, uma cama de solteiro com criado-mudo ao lado, um pesado guarda-roupa de espelho grande, uma poltrona estofada mas de espaldar reto e, entre duas janelas, uma mesa onde se viam uma máquina de escrever, papéis e alguns livros. Na lareira estavam empilhadas algumas brochuras.

– Sente-se na poltrona. Não é muito confortável, mas é o melhor que lhe posso oferecer.

Larry puxou outra cadeira e sentou-se.

– É aqui que você vive? – perguntou Isabel.

Ele riu baixinho da expressão do rosto dela.

– É. Moro aqui desde que vim para Paris.

– Mas por quê?

– É cômodo. Fica perto da Bibliothèque Nationale e da Sorbonne. – Larry apontou para uma porta que ela não notara. – Tem banheiro. Tomo o café da manhã aqui e geralmente janto naquele restaurante onde almoçamos hoje.

– É horrivelmente sórdido.

– Oh! não; está muito bom. Não desejo mais que isso.

– Mas, que tipo de gente mora aqui?

– Oh! não sei. No sótão, alguns estudantes. Dois ou três solteirões, funcionários públicos; uma atriz do Odeon, aposentada; no único outro quarto com banheiro, a amante de um sujeito que vem visitá-la de quinze em quinze dias, às quintas-feiras; e mais alguns forasteiros. É um lugar muito quieto e familiar.

Isabel ficou um tanto desconcertada e, vendo que Larry disso se apercebera e estava achando graça, quase se melindrou.

– Que livro é aquele enorme ali na mesa? – perguntou ela.

– Aquele? Oh! é o meu dicionário grego.

– Seu o quê? – exclamou Isabel.

– Calma. Ele não tem garras.

– Você está estudando grego?

– Estou.

– Por quê?

– Porque me deu vontade.

Larry fitava-a com um sorriso nos olhos e Isabel correspondeu a esse sorriso.

– Você não acha que poderia contar-me o que andou fazendo durante todo esse tempo em que esteve em Paris?

– Tenho lido muito. Oito ou dez horas por dia. Tenho ido a conferências na Sorbonne. Creio que li tudo que há de importante na literatura francesa, e posso ler latim, prosa pelo menos, com a mesma facilidade com que leio francês. Claro que grego é mais difícil. Mas tenho um ótimo professor. Até você chegar eu ia três noites por semana à casa dele.

– E qual a finalidade de tudo isto?

– Adquirir cultura – respondeu ele sorrindo.

– Não me parece muito prático.

– Talvez não seja e, por outro lado, talvez seja. Mas é divertidíssimo. Você não pode imaginar como é emocionante ler a Odisseia no original. A gente tem a impressão de que bastaria ficar na ponta dos pés e estender as mãos para tocar as estrelas.

Larry levantou-se, como que impulsionado pela excitação que dele se apoderara, e pôs-se a andar de um lado ao outro do quartinho.

– Há um ou dois meses estive lendo Spinoza. Creio que não o entendo ainda muito bem, mas que delícia!... É como a gente descer do seu próprio avião num grande planalto, nas montanhas. Solidão e ar tão puro que intoxica como um vinho e faz a gente sentir-se como um rei.

– Quando é que você pretende voltar para Chicago?

– Chicago? Não sei. Não pensei nisso.

– Você disse que, se ao cabo de dois anos não alcançasse o que buscava, daria a experiência por mal-sucedida.

– Não me seria possível voltar agora. Estou no limiar. Vejo vastas planícies do espírito à minha frente, acenando-me, e estou ansioso por explorá-las.

– O que é que você espera encontrar ali?

– Respostas às minhas perguntas. – Larry relanceou para Isabel um olhar quase brincalhão, de modo que, se o não conhecesse tão bem, ela poderia pensar que ele estava troçando. – Quero ter certeza da existência ou da não existência de Deus. Quero conhecer a origem do mal. Quero saber se tenho uma alma imortal, ou se a morte põe fim a tudo.

Isabel ficou de respiração suspensa. Não se sentia à vontade quando Larry se exprimia dessa forma, e deu graças a Deus por ele ter falado tão despreocupadamente, no habitual tom de conversa, que lhe permitiu dominar o constrangimento.

– Mas, Larry, há milhares de anos a humanidade está fazendo essas perguntas – replicou ela sorrindo. – Se tivesse resposta, certamente há muito já teriam sido respondidas.

Larry deu uma risadinha.

– Não ria como se eu tivesse dito alguma tolice – replicou secamente Isabel.

– Pelo contrário, acho muito bem observado. Mas, por outro lado, a gente pode argumentar que o fato de os homens fazerem essas perguntas há milhares de anos prova que eles não podem deixar de perguntar, e continuarão perguntando. Além do mais, não é verdade que ninguém encontrou resposta. Existem mais respostas do que perguntas, e a muitas pessoas elas satisfizeram plenamente. O velho Ruysbroek, por exemplo.

– Quem é ele?

– Oh! apenas um sujeito que não conheci no colégio – respondeu Larry petulantemente.

Isabel não entendeu o que ele quis dizer, mas não insistiu.

– Acho isto muito infantil. São coisas que excitam a imaginação dos segundanistas, mas de que eles se esquecem por completo quando saem do colégio. Têm que ganhar a vida.

– Não os censuro. Mas, você vê, tenho a vantagem de possuir o suficiente para viver. Do contrário, eu teria que fazer como todo mundo e procurar ganhar dinheiro.

– Mas você não dá valor ao dinheiro?

– Nenhum – respondeu ele sorrindo.

– Quanto tempo acha que isso vai levar?

– Não posso saber. Cinco anos. Dez.

– E depois? Que pretende fazer com toda essa sabedoria?

– Se eu algum dia adquirir sabedoria, creio que serei então bastante sábio para saber o que fazer com ela.

Isabel apertou violentamente as mãos e inclinou-se para a frente.

– Você está tão errado, Larry. Você é americano. Seu lugar não é aqui, é na América.

– Voltarei quando estiver pronto.

– Mas você está perdendo tanta coisa! Como é que consegue ficar aqui nesta pasmaceira, quando estamos vivendo a mais maravilhosa aventura que o mundo jamais conheceu? A Europa está acabada. Somos a maior, a mais poderosa nação do mundo. Caminhamos aos saltos. Nada nos falta. É seu dever participar do progresso da sua pátria. Você já se esqueceu, você não sabe como é empolgante a vida na América hoje em dia. Tem certeza de que não está agindo assim por não ter coragem de enfrentar o trabalho que aguarda todo americano? Oh! Sei que de certo modo você está trabalhando, mas não será isto apenas uma maneira de fugir às suas responsabilidades? Será alguma coisa mais do que uma espécie de ociosidade laboriosa? Que fim levaria a América se todo mundo se esquivasse como você?

– Você é muito severa, meu bem – replicou ele sorrindo. – A resposta a isto é que nem todo mundo sente o que eu sinto. Felizmente para eles, talvez, a maioria dos homens está pronta a seguir o curso normal; você se esquece de que tenho tanta sede de saber como... Gray, por exemplo, tem de ganhar rios e rios de dinheiro. Serei, por acaso, traidor à minha pátria, só pelo fato de querer passar alguns anos a educar-me? É possível que, ao terminar, eu possa dar à humanidade alguma coisa que ela tenha prazer em receber. Não é certo, naturalmente; mas, se eu fracassar, estarei na mesma posição do homem que entra num negócio e não consegue ir adiante.

– E quanto a mim? Não tenho nenhum valor para você?

– Muitíssimo. Quero que você se case comigo.

– Quando? Daqui a dez anos?

– Não. Agora. O mais depressa possível.

– De que jeito? Mamãe não está em condições de me dar um níquel. Além do mais, mesmo que pudesse, ela não o faria. Acharia errado ajudá-lo a viver na ociosidade.

– Não quero nada de sua mãe – replicou Larry. – Tenho três mil dólares anuais. Isto é mais do que suficiente aqui em Paris. Poderíamos ter um apartamentozinho e uma bonne à tout faire. Seria tão divertido, querida!

– Mas, Larry, ninguém pode viver com três mil dólares anuais.

– Claro que pode. Inúmeras pessoas vivem com muito menos.

– Mas eu não quero viver assim. Não há razão para isso.

– Tenho vivido com a metade.

– Mas como!

Ela olhou para o sujo quartinho com um estremecimento de repulsa.

– Isto significa que tenho algumas economias. Poderíamos ir a Capri na lua de mel e à Grécia no outono. Tenho uma vontade louca de ir até lá. Não se lembra como falávamos em viajar juntos pelo mundo?

– Claro que desejo viajar. Mas não dessa forma. Não quero ir de segunda classe, nos vapores, nem me hospedar em hotéis de terceira categoria, sem banheiro, nem comer em restaurantes baratos.

– Em outubro passado viajei assim por toda a Itália. Diverti-me imensamente. Poderíamos percorrer o mundo inteiro com três mil dólares por ano.

– Mas eu quero ter filhos, Larry.

– Está certo. Eles irão conosco.

– Você é tão tolo! – disse ela rindo. – Sabe quanto custa ter um filho? Violet Tomlinson teve um, no ano passado, e fez tudo com a maior economia possível, mas mesmo assim gastou mil duzentos e cinquenta dólares. E quanto pensa você que ganha uma ama? – Isabel ia-se animando, à medida que as ideias lhe ocorriam. – Você é muito pouco prático. Não sabe o que me está pedindo. Sou moça, quero divertir-me. Quero fazer o que os outros fazem. Quero ir a festas, quero ir a bailes, quero jogar golfe e andar a cavalo. Quero vestir-me bem. Você é capaz de imaginar o que significa para uma mulher não se sentir tão bem-vestida como as outras do seu grupo? Compreende o que significa, Larry, ter que comprar os vestidos usados das amigas que se fartaram deles, e ficar agradecida quando, por piedade, alguém se lembra de lhe fazer presente de um novo? Eu não poderia nem mesmo ir a um cabeleireiro decente! Não quero andar de ônibus pelas ruas; quero ter o meu carro particular. E que pensa você que eu iria fazer o dia inteiro, enquanto você estivesse lendo na biblioteca? Andar pelas ruas namorando as vitrinas, ou sentar-me no jardim do Luxemburgo a vigiar meus filhos para que nada lhes acontecesse? Não poderíamos ter amigos...

– Oh! Isabel – interrompeu ele.

– Não do tipo a que estou habituada. Oh! sim, os amigos do tio Elliott de vez em quando nos convidariam em consideração a ele, mas não poderíamos aceitar porque eu não teria vestido, nem estaríamos em condição de lhes retribuir as gentilezas. Não quero ter relações com uma porção de gente malvestida e suja; eu não teria nada a dizer-lhes, nem eles a mim. Quero viver, Larry. – Subitamente ela percebeu a expressão dos olhos dele, afetuosos como sempre, quando pousados nela, mas levemente irônicos. – Você acha que sou uma tola, não é verdade? Acha que estou sendo fútil e maldosa.

– Não, não acho. É muito natural que diga o que está dizendo.

Larry estava de pé, de costas para a lareira. Isabel ergueu-se e aproximou-se; viram-se frente a frente.

– Larry, se você não possuísse um níquel, mas tivesse um emprego que lhe rendesse três mil dólares por ano, eu não hesitaria em me casar com você. Eu cozinharia, arrumaria as camas, pouco me importaria com vestidos, faria qualquer sacrifício e acharia tudo divertidíssimo, pois estaria certa de que seria apenas uma questão de tempo, até você acabar vencendo. Mas isso que você quer significa viver miseravelmente, sordidamente, a vida inteira, sem uma esperança pela frente. Eu seria uma escrava até o dia da minha morte. E para quê? Para que você pudesse passar anos procurando respostas a perguntas que você mesmo considera insolúveis. Está errado. Um homem tem que trabalhar. É para isso que está no mundo. É assim que ele contribui para o bem-estar da comunidade.

– Em resumo, é meu dever instalar-me em Chicago e entrar para o escritório de Henry Maturin. Você acha que, pelo fato de convencer meus amigos a adquirirem títulos em que Henry Maturin está interessado, eu contribuiria grandemente para o bem-estar da comunidade?

– É preciso que haja corretores no mundo, e é uma maneira muito decente e honrosa de ganhar a vida.

– Você pintou um quadro muito negro da vida em Paris com uma renda módica. Sabe, não é exatamente assim. Uma moça pode vestir-se muito bem sem procurar Chanel. Nem todas as pessoas interessantes vivem na vizinhança do Arc de Triomphe e da Avenue Foch. Para falar a verdade, são mesmo poucas, porque em geral as pessoas interessantes não têm grande fortuna. Conheço muita gente aqui, pintores, escritores e estudantes, franceses, americanos e de outras nacionalidades, que considero muito mais interessante do que as definhadas marquesas e as narigudas duquesas de Elliott. Você tem uma inteligência viva e bastante senso de humor. Garanto que acharia divertido vê-los trocar ideias à mesa, mesmo que o vinho fosse somente vin ordinaire e o jantar não fosse servido por um mordomo e dois lacaios.

– Não seja tolo, Larry. Claro que acharia divertido. Você sabe que não sou esnobe. Teria prazer em conhecer gente interessante.

– Sim, num vestido de Chanel. Pensa que eles não perceberiam que você considerava aquilo como uma espécie de aventura? Eles não se sentiriam à vontade, você tampouco; e você não tiraria nenhum proveito, a não ser o de poder depois contar a Emily de Montadour e Gracie de Château-Gaillard como achava divertido ficar conhecendo uma porção de boêmios excêntricos no Quartier Latin.

Isabel encolheu levemente os ombros.

– Talvez você tenha razão. Eles não são do tipo de gente com quem estou habituada a conviver. Não são do tipo de gente com quem eu possa ter afinidade.

– Como ficamos, então?

– Exatamente onde começamos. Moro em Chicago desde que me entendo por gente. Ali estão os meus amigos, todos os meus interesses. Ali me sinto em casa. É a minha terra, Larry, como é também a sua. Mamãe está doente e não se restabelecerá. Mesmo que eu quisesse, não poderia deixá-la.

– Isto significa que, a não ser que eu esteja disposto a voltar para Chicago, você não se casará comigo?

Isabel hesitou. Amava Larry. Queria casar-se com ele. Desejava-o com toda a força dos seus sentidos e sabia-se desejada por ele. Não achava possível que, chegado o momento decisivo, ele não fraquejasse. Teve medo, mas precisava arriscar.

– Sim, Larry, significa exatamente isso.

Ele riscou um fósforo na lareira, um daqueles antigos fósforos franceses, de enxofre, que nos enchem as narinas de um odor acre, e acendeu o cachimbo. Depois, passando por Isabel, foi postar-se a uma das janelas e ficou olhando para fora. Guardou silêncio pelo que pareceu um espaço de tempo interminável. Isabel continuou de pé, no mesmo lugar onde estivera de frente para ele, e olhou para o espelho da lareira, mas com olhos que nada viam. Seu coração batia loucamente e ela estava morta de apreensão. Finalmente Larry voltou-se.

– Eu gostaria de poder fazê-la compreender como a vida que lhe ofereço é mais cheia do que qualquer outra que você possa ter imaginado. Gostaria que você pudesse experiência. É ilimitada. E tão feliz! Só uma coisa se lhe compara: quando se está sozinho num avião, alto, bem alto, circundado apenas pelo infinito. Aquela amplidão é intoxicante. A gente experimenta tão intensa sensação de júbilo que não a trocaria por todas as riquezas e glórias deste mundo. Há poucos dias estive lendo Descartes. Que desembaraço, que graça, que lucidez. Céus!

Isabel interrompeu-o em tom de desespero:

– Mas, Larry, não vê que me está pedindo uma coisa para a qual não fui feita, pela qual não me interesso, e não me quero interessar? Quantas vezes terei que repetir que sou apenas uma moça medíocre, normal, que tenho vinte anos, que daqui a dez estarei velha, que quero divertir-me enquanto posso? Oh! Larry, gosto tanto, tanto, de você! Isso é uma fantasia; não o conduzirá a parte alguma. No seu próprio interesse, imploro-lhe que desista. Seja homem, Larry, e cumpra o seu dever de homem. Você está perdendo anos preciosos, de que outros estão tirando o máximo proveito. Larry, se você tem mesmo amor por mim, não me trocará por um sonho. Você já se divertiu bastante. Volte conosco para a América.

– Não posso, querida. Seria uma verdadeira morte para mim. Seria atraiçoar minha alma.

– Oh! Larry, por que fala dessa forma? É assim que se exprimem as mulheres histéricas, metidas a intelectuais. Que significa? Nada. Nada. Nada.

– Significa exatamente o que sinto – respondeu ele

– Como é que você pode brincar? Não vê que isto é muito sério? Chegamos à encruzilhada, e o que agora fizermos vai afetar toda a nossa vida.

– Sei disso. Creia-me, estou falando sério. Ela suspirou.

– Se você não quer ser razoável, então não há mais nada a dizer.

– Mas não acho que seja razoável. Acho que você só esteve dizendo disparates.

– Eu? – exclamou Isabel. Se não se sentisse tão infeliz, ela teria rido. – Meu pobre Larry, você está doido varrido.

Lentamente ela tirou do dedo o anel de noivado, colocou-o na palma da mão e ficou a contemplá-lo. Era um rubi quadrado, incrustado num fino aro de platina e Isabel sempre o apreciara.

– Se você gostasse de mim, não me faria sofrer tanto.

– Gosto de você. Infelizmente, às vezes a gente não pode fazer o que acha direito sem causar sofrimento a alguém.

Ela estendeu a mão onde estava o rubi e obrigou-se a sorrir.

– Aqui está, Larry.

– De nada me serve. Não quer guardá-lo como lembrança da nossa amizade? Você pode usá-lo no dedinho. Isto não altera a nossa amizade, não é mesmo?

– Sempre hei de gostar de você, Larry.

– Guarde-o, então, que me dará prazer.

Ela hesitou, depois enfiou o anel no dedo da mão direita.

– É grande demais.

– Você pode mandar diminuí-lo. Vamos até o bar do

Ritz, tomar um drinque.

– Está certo.

Isabel admirou-se de tudo ter se passado tão simplesmente. Ela não chorara. Nada parecia ter mudado; só que agora já não ia casar-se com Larry. Mal podia acreditar que estava tudo acabado. Ficou um tanto mortificada pelo fato de não ter havido uma violentíssima cena. Tinham resolvido o caso quase tão friamente como se estivessem a discutir a escolha de uma casa de aluguel. Ela se sentia como que lesada, mas ao mesmo tempo experimentou uma ligeira satisfação por terem se comportado de maneira tão civilizada. Daria muito para conhecer exatamente os sentimentos de Larry no momento. Mas isso era sempre difícil de saber; o rosto suave, os olhos escuros eram uma máscara que mesmo Isabel, que o conhecia há tantos anos, jamais poderia penetrar.

Ao entrar ela tirara o chapéu e o pusera sobre a cama; agora, em frente ao espelho, colocou-o de novo e, arranjando o cabelo, perguntou:

– Apenas por curiosidade: você queria desmanchar o nosso noivado?

– Não.

– Pensei que talvez fosse um alívio para você. – Como Larry não respondesse, ela virou-se com um sorriso alegre e acrescentou: – Estou pronta.

Ao sair, Larry trancou o quarto. Quando entregou a chave ao homem da portaria, este os envolveu num olhar de insolente cumplicidade. Isabel não pôde deixar de perceber que ideia o homem fazia da ida deles ao quarto.

– Não creio que aquele sujeito tenha muita fé na minha virgindade – disse ela.

Foram de táxi até o Ritz e ali tomaram um drinque. Falaram de coisas triviais, aparentemente sem constrangimento, como dois velhos amigos que se veem todos os dias. Embora Larry fosse calado por natureza, Isabel era tagarela, com amplo estoque de conversa-fiada, e estava decidida a não permitir que entre eles se fizesse um silêncio que seria depois difícil de quebrar. Não queria que Larry pensasse que lhe guardava ressentimento, e o orgulho obrigava-a a agir de forma a não deixá-lo suspeitar que estava magoada e infeliz. Dali a pouco sugeriu que Larry a levasse até em casa.

Quando chegaram à porta, Isabel disse alegremente:

– Não se esqueça que você vem almoçar conosco amanhã.

– Não há perigo!

Ela apresentou-lhe a face para ser beijada e passou pela porte-cochère.


5

Ao entrar na sala de visitas, Isabel viu que havia ali algumas pessoas para o chá. Lá estavam duas americanas que moravam em Paris, muito bem-vestidas, com colares de pérolas em volta do pescoço, braceletes de brilhantes nos pulsos e custosos anéis nos dedos. Embora o cabelo de uma fosse tinto de um negro carregado, e o da outra de um dourado artificial, ambas eram extraordinariamente semelhantes. Tinham as mesmas pestanas muito pintadas, os mesmos lábios rubros, as mesmas faces carregadas de carmim, a mesma delgada silhueta, mantida à custa de incríveis sacrifícios, as mesmas feições nítidas, agudas, o mesmo olhar faminto e inquieto; e ninguém podia deixar de perceber que sua vida era uma luta desesperada pela conservação de encantos que atingiam o ocaso. Falavam sobre futilidades, numa voz alta, metálica, sem uma pausa, como se temessem que, se ficassem por um momento silenciosas, a máquina enguiçasse, e o monumento artificial de que era símbolo se esfacelasse por completo. Lá estava um secretário da embaixada americana, suave, silencioso, pois não o deixavam dizer uma palavra, e homem muito fino; e também um trigueiro principezinho romeno, servil e todo cheio de mesuras, com vivos olhinhos pretos e escuro rosto barbeado, e que a cada momento pulava para oferecer uma xícara de chá, passar um prato de bolinhos ou acender um cigarro, e que cinicamente fazia às pessoas presentes os mais exagerados e vulgares elogios. Estava pagando pelos jantares que recebera das pessoas a quem assim adulava, e por todos os jantares a que esperava ser convidado.

Sentada a uma mesinha de chá e, para ser agradável a Elliott, vestida com maior luxo do que achava apropriado para a ocasião, mrs. Bradley cumpria os deveres de dona de casa com sua habitual, se bem que fria, gentileza. Que opinião tinha dos amigos de Elliott é coisa que deixo a cargo da imaginação. Só a conheci superficialmente, e era pessoa muito reservada. Nada tola; durante todos aqueles anos vividos em capitais estrangeiras, conhecera inúmeras pessoas, de vários tipos, e creio que as soubera julgar com bastante perspicácia, de acordo com o ponto de vista da cidadezinha da Virgínia onde nascera e fora criada. Parece-me que ela achava divertido observar os pontos ridículos dessas pessoas; e não creio que tenha dado maior importância aos seus dengues e mesuras do que aos sofrimentos e peripécias dos personagens de um romance que desde o princípio (pois do contrário não o teria lido) sabia que ia acabar bem. Paris, Roma, Pequim não tinham sobre o seu americanismo maior efeito do que o fervor católico de Elliott sobre sua firme, se bem que não exagerada, fé presbiteriana.

Com sua mocidade, aparência robusta e vitalidade, Isabel trouxe um sopro de ar fresco àquela atmosfera meretrícia. Irrompeu na sala como uma jovem deusa terrestre. O príncipe romeno levantou-se de um salto para lhe oferecer uma cadeira, e com ampla gesticulação desempenhou o seu papel. Com frases de estridente amabilidade, as duas americanas olharam-na da cabeça aos pés, notaram os detalhes do seu traje, e é possível que, no fundo do coração, tenham ficado consternadas com o confronto daquela exuberante mocidade. O diplomata americano sorriu intimamente, ao notar como a presença de Isabel fazia com que as outras duas parecessem artificiais e envelhecidas. Mas Isabel achou-as formidáveis: gostou dos ricos trajes e das valiosas pérolas, e sentiu uma pontinha de inveja da imponência e da pose que elas tinham. Gostaria de saber se jamais conseguiria atingir aquela suprema elegância. O principezinho romeno era, naturalmente, ridículo; mas não deixava de ser um amor e, mesmo que não fossem sinceras as coisas amáveis que dizia, sempre era um prazer ouvi-las. A conversa que a chegada de Isabel interrompera foi reatada, e falaram com tanta vivacidade, com tão grande convicção da importância do que diziam que quase se chegava a acreditar que havia sentido em tudo aquilo. Falaram das festas a que tinham ido e das festas a que pretendiam ir.

Comentaram o último escândalo. Reduziram os amigos à expressão mais simples. Citaram grandes nomes a torto e a direito. Pareciam íntimos de todo mundo. Não havia segredo que desconhecessem. Quase no mesmo fôlego, falaram da peça teatral da moda, da costureira da moda, do pintor da moda, da última amante do ministro da moda. Era de se pensar que não havia o que elas ignorassem. Isabel escutava deliciada. Tudo aquilo lhe parecia maravilhosamente civilizado. Aquilo, sim, era vida. Experimentou a emoção de quem sente que está compartilhando de coisas de interesse. Aquilo era real. O cenário, perfeito. A espaçosa sala com o seu tapete Savonnerie, os lindos desenhos nas paredes de lambris, as cadeiras de petit point, os valiosos móveis de madeira entalhada, as cômodas e mesas avulsas, peças todas dignas de um museu... A sala devia ter custado uma fortuna, mas valia a pena. A sóbria beleza mais do que nunca impressionou Isabel, pois ela ainda conservava vívida a lembrança do pobre quartinho de hotel, com sua cama de ferro, e aquela cadeira dura, tão pouco confortável, onde se sentara; aquele quarto em que Larry não via defeito algum... Nu, sombrio, horrível. Só a lembrança lhe causou um estremecimento.

As visitas saíram e Isabel ficou sozinha com sua mãe e Elliott.

– Senhoras encantadoras – disse Elliott, depois de ter acompanhado à porta os dois pobres farrapos pintados. – Conheci-as quando se instalaram em Paris. Nunca pensei que chegassem a ficar tão elegantes! É realmente extraordinário o poder de adaptação das nossas compatriotas.

Hoje ninguém diria que são americanas, e do Oeste Central, ainda por cima.

Com um arquear de sobrancelhas, mas sem dizer palavra, mrs. Bradley lançou a Elliott um olhar que com a sua perspicácia ele não pôde deixar de compreender.

– Ninguém poderia jamais dizer isto de você, minha pobre Louisa – continuou ele em tom ao mesmo tempo azedo e afetuoso. – Se bem que não lhe faltaram oportunidades!

Mrs. Bradley contraiu os lábios.

– Creio que sempre fui a sua grande decepção na vida, Elliott, mas, para ser franca, estou muito satisfeita comigo mesma assim como sou.

– Tous les goûts sont dans la nature – murmurou Elliott.

– Acho que é meu dever contar-lhes que não estou mais noiva de Larry – interveio Isabel.

– Ora, ora! – exclamou Elliott. – Isto vai transtornar o arranjo da minha mesa de almoço, amanhã. Como é que vou arranjar avulso em tão curto prazo?

– Oh! pode estar certo de que ele virá almoçar.

– Depois de vocês terem desmanchado o noivado? Mas não fica bem.

Isabel riu abafadamente. Continuou virada para Elliott, pois sabia que a mãe a fitava e não queria encontrar o olhar dela.

– Não brigamos. Discutimos o assunto hoje à tarde e chegamos à conclusão de que tínhamos cometido um erro. Ele não quer voltar para a América; quer continuar em Paris. Está falando em ir para a Grécia.

– Para quê, Santo Deus? Não há vida social em Atenas. Para ser franco, nunca dei mesmo grande valor à arte grega. Algumas daquelas coisas helênicas têm um encanto decadente, que não deixa de ser interessante. Mas Fídias, não, não!

– Olhe para mim, Isabel – disse mrs. Bradley.

Isabel virou-se e fitou-a com um leve sorriso. Mrs. Bradley observou-a com um olhar perscrutador, mas só o que disse foi “Humm”. Viu que a filha não chorara; parecia mesmo calma e senhora de si.

– A vantagem foi toda sua, Isabel – disse Elliott. – Eu estava disposto a fazer cara alegre, mas nunca achei que fosse um bom casamento. Larry não estava realmente à sua altura, e o procedimento dele aqui em Paris indica claramente que nunca chegará a ser alguém. Com sua beleza e relações você pode aspirar a coisa muito melhor. Na minha opinião, você agiu com raro discernimento.

Mrs. Bradley lançou à filha um olhar não de todo destituído de ansiedade.

– Você não fez isto por minha causa, Isabel? A moça sacudiu enfaticamente a cabeça.

– Não, meu bem. A responsabilidade é inteiramente minha.


6

Tendo regressado do Oriente, justamente nesta ocasião eu estava passando uns tempos em Londres. Quinze dias, talvez, após os acontecimentos que descrevi, Elliott chamou-me ao telefone. Não fiquei admirado ao reconhecer-lhe a voz, pois sabia que ele costumava vir gozar em Londres o fim da temporada. Contou-me que mrs. Bradley e Isabel tinham vindo com ele e que, se eu quisesse aparecer aquela tarde, às seis horas, para tomar um drinque, teriam muito prazer em receber-me. Estavam, naturalmente, hospedados no Claridge. Naquele tempo eu não morava muito longe dali, de modo que desci por Park Lane, a pé, e percorri as calmas e corretas ruas de Mayfair, até chegar ao hotel. Elliott estava no seu apartamento de costume. As paredes eram de lambris de tom havana, como o de uma caixa de charutos, e a mobília de uma sóbria suntuosidade. Encontrei-o só. Mrs. Bradley e Isabel tinham ido às compras, mas deviam voltar a qualquer minuto. Contou-me que Isabel já não estava noiva de Larry.

Com suas ideias românticas e excessivamente convencionais, a respeito do procedimento das pessoas em determinadas circunstâncias, Elliott ficara chocado com o comportamento dos dois jovens. Não somente Larry comparecera ao almoço no dia imediato ao rompimento, mas agira como se sua posição em nada estivesse alterada. Mostrou-se amável, atencioso e discretamente alegre como de costume. Tratou Isabel com a mesma afetuosa camaradagem; não parecia nervoso, perturbado, ou pesaroso. Tampouco Isabel se mostrara inconsolável. Parecendo tão feliz como antes, ria com a mesma despreocupação, pilheriava com igual vivacidade, como se não tivesse dado um passo decisivo, e certamente desagradável, na sua vida. Elliott não entendia mais nada. Por trechos de conversa que ouviu deles, veio a saber que não pretendiam cancelar nenhum dos compromissos que tinham assumido um com o outro. Na primeira oportunidade ele falou nisso a mrs. Bradley.

– Não fica bem – declarou. – Os dois não podem andar de lá para cá como se ainda fossem noivos. Francamente, Larry podia ter um pouco mais de respeito às convenções. Além do mais, isto prejudica Isabel. O jovem Fotheringham, aquele rapaz da embaixada inglesa, está visivelmente caído por ela. Tem dinheiro e boas relações; se soubesse que o terreno está livre, garanto que se candidataria. Acho que você deve falar a Isabel sobre isso.

– Meu caro, Isabel está com vinte anos, e tem – para dizer às pessoas, sem ofendê-las, que não se metam no que não é da sua conta – uma técnica contra a qual sempre achei dificílimo lutar.

– Pois então você educou-a pessimamente, Louisa. Além do mais, é da sua conta.

– Está aí um ponto em que ela, certamente, não concordaria com você.

– Você está esgotando a minha paciência, Louisa.

– Meu pobre Elliott, se você tivesse uma filha moça, ficaria sabendo que é relativamente mais fácil lidar com um tourinho do que com ela. Quanto a saber o que Isabel está sentindo... Bom, é preferível eu fingir ser a velha simples e inocente por quem ela me toma.

– Mas você discutiu o caso com ela?

– Experimentei. Isabel riu e disse que não havia realmente nada para contar.

– Está muito pesarosa?

– Não sei. Só o que posso dizer é que come bem e dorme como um anjinho.

– Pois bem, ouça o que lhe digo: se você deixar que continuem assim, um destes dias eles acabam fugindo e casando-se sem dizer nada a ninguém.

Mrs. Bradley condescendeu em sorrir.

– Deve ser para você um alívio saber que no momento atual estamos vivendo num país onde toda irregularidade sexual é facilitada, e onde o casamento encontra inúmeros obstáculos.

– E acertadamente. O casamento é uma instituição muito séria, sobre a qual se firmam a segurança da família e a estabilidade do Estado. Mas o casamento só pode conservar sua força se as relações extraconjugais forem não somente toleradas, mas permitidas. A prostituição, minha pobre Louisa...

– Basta, Elliott – interrompeu mrs. Bradley. – Não estou interessada em conhecer o seu ponto de vista sobre a importância social e moral da fornicação promíscua.

Foi aí que Elliott sugeriu o plano que iria interromper a convivência de Isabel com Larry, que tanto repugnava ao seu convencionalismo. A estação em Paris agonizava e a melhor gente estava providenciando sua ida para estações de águas, ou Deauville, antes de se retirar, para o resto do verão, para seus castelos ancestrais em Touraine, Anjou ou Bretanha. Em geral Elliott só ia para Londres em fins de junho, mas seu instinto de família era muito forte, e sincera a afeição que sentia por sua irmã e Isabel; estivera pronto a fazer o sacrifício de ficar em Paris, se elas assim o desejassem, quando ali já não havia pessoa que contasse socialmente; mas via-se agora na agradável posição de poder fazer o que era de vantagem para os outros e ao mesmo tempo conveniente para si próprio. Sugeriu a mrs. Bradley partirem imediatamente para Londres, onde a estação ainda estava no auge e onde novos interesses e novos amigos iriam distrair o pensamento de Isabel do seu malfadado romance. A julgar pelos jornais, um dos maiores especialistas em diabetes se encontrava em Londres, na ocasião, e a vantagem de consultá-lo justificaria amplamente a súbita partida, vencendo qualquer má vontade que Isabel pudesse ter em abandonar Paris. Mrs. Bradley aprovou a ideia. Isabel deixava-a perplexa. Impossível saber se a sua despreocupação era sincera ou se, magoada, zangada, ou infeliz, ela adotara aquela máscara ousada para esconder sua humilhação. Mrs. Bradley concordou com Elliott que faria bem a Isabel conhecer gente e lugares novos.

Elliott não perdeu tempo em telefonar, e, quando Isabel entrou em casa, depois de ter passado o dia em Versailles com Larry, ele pôde comunicar-lhe que conseguira marcar hora com o célebre especialista para dali a três dias, que reservara um apartamento no Claridge e que dois dias depois iam para Londres.

Mrs. Bradley observou Isabel, enquanto Elliott um tanto pedantemente lhe dava a notícia; mas a moça não se mostrou absolutamente perturbada.

– Oh! mamãe, estou tão contente de você poder consultar o especialista! – exclamou Isabel com a sua habitual impetuosidade. – Claro que não deve perder esta ocasião. E será ótimo, um passeio a Londres. Quanto tempo vamos ficar lá?

– Não adiantaria voltarmos para Paris – disse Elliott.

– Dentro de oito dias não haverá aqui uma alma. Quero que vocês fiquem comigo no Claridge até o fim da estação. Em julho há sempre bons bailes; além do mais, não nos devemos esquecer de Wimbledon. E, depois, Goodwood e Cowes. Tenho certeza de que os Ellingham terão prazer em nos convidar ao seu iate, para Cowes, e os Bantock sempre levam um grupo grande, para Goodwood.

Isabel parecia encantada e mrs. Bradley sentiu-se mais tranquila. A julgar pelas aparências, ela não estava dando a mínima importância a Larry.

Elliott acabara de me contar tudo isso, quando mãe e filha entraram. Fazia mais de ano e meio que eu não as via. Achei mrs. Bradley mais magra e de fisionomia ainda mais lívida; parecia cansada e não estava com boa aparência. Mas Isabel estava florescente. Com seu rosto corado, cabelos bronzeados, vivos olhos castanhos e pele transparente, dava tal impressão de mocidade, de tão intensa alegria de viver, que a gente quase tinha vontade de rir de puro gozo. Absurdamente, comparei-a a uma pera, dourada e saborosa, perfeitamente madura e tentando o apetite alheio. Irradiava calor, dando a impressão de que bastaria a gente estender as mãos para sentir o seu conforto. Pareceu-me mais alta, não sei se por estar usando salto mais alto ou se porque uma costureira habilidosa soubera escolher um modelo que lhe disfarçasse o excessivo arredondamento da mocidade; mantinha-se com a graça despreocupada da pessoa que desde a infância faz esportes ao ar livre. Em resumo, sexualmente era uma rapariga muitíssimo atraente. Se eu fosse sua mãe, trataria logo de casá-la.

Satisfeito com a oportunidade de poder retribuir a mrs. Bradley as gentilezas que ela me havia dispensado em Chicago, sugeri que os três fossem comigo ao teatro numa daquelas noites. Convidei-os também para um almoço.

– Trate de não deixar para muito tarde, meu caro – disse-me Elliott. – Participei aos amigos a minha chegada, e daqui a dois ou três dias provavelmente já estaremos comprometidos para toda a temporada.

Achei que com isso ele queria dizer que, nesse caso, não teria tempo a perder com gente da minha espécie, e não pude deixar de rir. Elliott lançou-me um olhar onde havia uma expressão altiva.

– Mas, naturalmente, você sempre nos encontrará aqui às seis horas, e teremos imenso prazer em vê-lo – disse-me amavelmente, mas com a visível intenção de me colocar, como escritor, na minha humilde posição.

Mas às vezes a vingança é doce...

– Você precisa procurar os St. Olpherd – disse-lhe eu. – Contaram-me que eles pretendem dispor do seu Constable of Salisbury Cathedral.

– No momento atual não tenho intenção de comprar quadros. – Sei disso, mas achei que talvez você pudesse servir de intermediário.

Os olhos de Elliott tiveram um brilho de aço.

– Meu caro amigo, a Inglaterra é uma grande nação, mas os ingleses nunca souberam e nunca saberão pintar. A escola inglesa não me interessa.


7

Naquelas quatro semanas pouco vi Elliott e sua família. Ele soube tratá-las. Levou-as para um fim de semana numa aristocrática mansão, em Sussex, e para outro fim de semana, ainda mais aristocrático, em Wiltshire. Foram à Ópera, ao camarote real, como convidadas de uma princesa de menos importância da Casa de Windsor. Almoçaram e jantaram com a nobreza. Isabel foi a vários bailes. Elliott deu, no Claridge, recepção a que compareceram convidados cujo nome fazia um vistão no jornal, no dia seguinte. Promoveu ceias no Ciro e na embaixada. Em resumo, fez tudo como devia ser feito, e Isabel precisaria ter sido muito mais blasé para não ficar ofuscada com a elegância e o esplendor exibidos para o seu deleite. Elliott podia gabar-se de estar fazendo tudo aquilo por um motivo puramente desinteressado, para que Isabel esquecesse o seu malogrado caso de amor; mas desconfiei que no fundo ele sentia grande satisfação em poder mostrar a mrs. Bradley como era íntimo dos ilustres e dos elegantes. Recebia admiravelmente e tinha imenso prazer em exibir essa sua qualidade.

Fui a uma ou duas de suas recepções, e de vez em quando passava pelo Claridge, às seis horas. Encontrava Isabel cercada por mocetões bonitos e bem-vestidos, da Household Brigade, ou por rapazes elegantes, mas menos bem-vestidos, do Ministério do Exterior. Numa dessas ocasiões ela me chamou de lado.

– Quero fazer-lhe uma pergunta – disse-me ela. – Lembra-se daquela noite em que fomos à drugstore tomar um ice-cream-soda?

– Lembro-me perfeitamente.

– O senhor foi muito camarada e me ajudou bastante. Quer ser camarada e ajudar-me de novo?

– Farei o possível.

– Quero falar com o senhor sobre certo assunto. Não podíamos almoçar juntos um destes dias?

– Quando quiser.

– Num lugar quieto.

– Que tal irmos de carro até Hampton Court e almoçar ali? Os jardins devem estar no auge da beleza e você poderia ver a cama da rainha Isabel.

O plano lhe agradou; ficou tudo combinado. Mas, quando chegou o dia, o tempo até então firme e quente mudou. Céu cinzento; caía uma chuvinha miúda. Telefonei a Isabel, perguntando-lhe se não preferia almoçar na cidade.

– Impossível nos sentarmos nos jardins, e os quadros estarão tão escuros que não distinguiremos coisa alguma – disse eu.

– Tenho me sentado em muitos jardins e estou farta dos grandes mestres. Vamos assim mesmo.

– Está certo.

Fui buscá-la de automóvel. Eu conhecia um hotelzinho onde a comida era passável; seguimos diretamente para lá. No caminho, com a sua habitual vivacidade Isabel falou das festas a que fora e das pessoas que ficara conhecendo. Estava se divertindo à grande, mas, pelos comentários que fez sobre seus novos conhecidos, vi que a pequena era perspicaz e sabia facilmente distinguir o ridículo. O mau tempo afugentara os visitantes e éramos os únicos na sala de jantar. A especialidade do hotel era a simples comida inglesa. Serviram-nos uma fatia de excelente perna de carneiro com ervilhas e batatinhas, e uma torta de maçã com creme Devonshire. Com um copo de cerveja, foi um ótimo almoço. Quando acabamos, sugeri irmos para a saleta do café, que estava vazia, e onde poderíamos nos sentar em confortáveis poltronas. Fazia frio ali, mas o fogo estava preparado e risquei um fósforo para acendê-lo. As chamas tornaram a fria salinha mais acolhedora.

– Pronto – disse eu. – Conte-me agora sobre que deseja conversar comIgo.

– A mesma coisa da última vez – disse ela com uma risadinha abafada. – Larry.

– Foi o que pensei.

– O senhor sabe que rompemos o nosso noivado.

– Elliott contou-me.

– Mamãe ficou aliviada e meu tio encantado.

Isabel hesitou por um instante e depois iniciou a descrição da cena com Larry, que já fiz o possível por narrar fielmente. Talvez o leitor se admire de Isabel ter escolhido, para confidente, uma pessoa que ela conhecia tão pouco. Não creio que eu a tivesse visto mais que uma dúzia de vezes e, a não ser naquela ocasião na drugstore, nunca a sós. Mas a mim isto não surpreendeu. Em primeiro lugar, fato que qualquer escritor confirmará, em geral as pessoas fazem a um escritor confidências que não fariam a outros. Desconheço a razão, a não ser que, pelo fato de terem lido um ou dois dos seus livros, se consideram em termos de intimidade com ele. Ou talvez elas se dramatizam a si próprias e, vendo-se como personagens de um romance, resolvam falar-lhe com a mesma franqueza com que, imaginam, lhe falam os tipos por ele criados. E penso que Isabel sentia que eu gostava dela e de Larry, que sua mocidade me comovia e que eu me condoía dos seus pesares. Ela não podia esperar encontrar um confidente de boa vontade em Elliott, pois este não tinha o menor desejo de se preocupar com pessoa que desprezara a melhor oportunidade que um rapaz jamais tivera de entrar na sociedade. Nem sua mãe poderia ajudá-la. Mrs. Bradley tinha princípios elevados e bom senso. Seu bom senso lhe dizia que, se uma pessoa deseja ir adiante neste mundo, tem que se conformar com as convenções do mundo e não fazer aquilo que todos consideram como sinal de desequilíbrio mental. Seus princípios elevados faziam com que achasse dever de um homem trabalhar num negócio onde, com energia e iniciativa, tivesse a oportunidade de ganhar dinheiro suficiente para sustentar mulher e filhos de acordo com a sua posição, dar aos filhos uma educação que lhes permitisse, mais tarde, ganhar honestamente a vida, e, ao morrer, deixar a viúva com recursos para se manter.

Isabel tinha boa memória e ainda se lembrava das várias fases da longa discussão com Larry. Ouvi em silêncio, até ela terminar. Interrompeu-se apenas uma vez, para me fazer uma pergunta:

– Quem foi Ruysdael?

– Ruysdael? Era um paisagista holandês. Por quê? Contou-me que Larry o mencionara. Dissera ele que pelo menos Ruysdael encontrara solução para o que desejara saber, e Isabel me repetiu a petulante réplica de Larry, quando ela lhe perguntara quem era aquele sujeito.

– O que quereria ele dizer? Tive uma inspiração.

– Você tem certeza de que ele não disse Ruysbroek? – perguntei.

– É bem possível. Quem era ele?

– Um místico flamengo que viveu no século xiv.

– Oh! – exclamou Isabel, decepcionada.

Para ela nada significava. Mas significava alguma coisa para mim. Era a primeira indicação que eu tinha do rumo que estavam tomando as reflexões de Larry; e, enquanto Isabel continuava a narrativa, embora eu a ouvisse atentamente, com outra parte do pensamento preocupei-me com as possibilidades que aquela referência de Larry sugeria. Não quis dar muita importância ao fato, pois era bem possível que ele houvesse citado o nome do Teólogo Místico apenas como argumento; mas podia também ter uma significação que escapara a Isabel. Ao dizer-lhe que Ruysbroek era apenas um sujeito que ele não conhecera no colégio, evidentemente Larry procurava despistá-la.

– Qual a sua opinião sobre tudo isso? – perguntou-me a moça ao terminar.

Esperei alguns instantes antes de responder.

– Lembra-se de Larry ter dito que ia apenas vadiar? Se o que ele lhe contou é verdade, então sua vagabundagem parece abranger um trabalho muito cansativo.

– Tenho certeza que é verdade. Mas não acha o senhor que, se ele se tivesse igualmente esforçado num trabalho produtivo, poderia estar com uma boa renda?

– Algumas pessoas têm um temperamento esquisito. Existem criminosos que trabalham como mouros a organizar planos que os levam à prisão e que, nem bem recuperam a liberdade, reincidem e acabam sendo novamente presos. Se eles empregassem a mesma perseverança, a mesma inteligência, a mesma paciência e os mesmos recursos em algum projeto honesto, poderiam ter uma ótima renda e ocupar posições de destaque. Mas a questão é que são feitos daquela massa. Gostam do crime.

– Pobre Larry – disse ela, rindo baixinho. – O senhor não me vai dizer que ele está aprendendo grego para assaltar um banco.

Também ri.

– Não vou, não; o que estou tentando dizer-lhe é que há homens que sentem tão intenso desejo de fazer uma determinada coisa que não podem absolutamente deixar de fazê-la. Estão dispostos a sacrificar tudo para satisfazer esse anseio.

– Até mesmo as pessoas que gostam deles?

– Oh! sim.

– Não acha que isso é puro egoísmo?

– Não sei dizer – respondi sorrindo.

– Que utilidade prática pode ter para Larry o estudo de línguas mortas?

– Algumas pessoas têm um desejo desinteressado de adquirir cultura. Não se pode dizer que seja um desejo ignóbil.

– Mas de que adianta a cultura, se a pessoa não pretende utilizá-la?

– Talvez ele pretenda. Talvez só o fato de saber seja uma satisfação, como ao artista basta a satisfação de produzir uma obra de arte. E talvez seja apenas um passo para coisa mais avançada.

– Se ele tem tanta sede de saber, por que não foi então para o colégio quando voltou da guerra? Era o que o dr. Nelson e mamãe queriam que ele fizesse.

– Falei com Larry sobre isso em Chicago. Um diploma de nada lhe adiantaria. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Você sabe, no estudo existe o lobo solitário, da mesma maneira que existe o lobo que se move com a alcateia. Acho que Larry é uma dessas pessoas que não podem tomar outro caminho a não ser o seu próprio.

– Lembro-me de que uma vez lhe perguntei se não sentia vontade de escrever. Ele me respondeu que não tinha sobre o quê escrever.

– É esta a razão mais inconcludente que conheço para uma pessoa não escrever – comentei sorrindo.

Isabel fez um gesto de impaciência. Não estava em estado de espírito de apreciar nem mesmo a mais leve pilhéria.

– Não posso compreender como ele chegou a ficar assim. Antes da guerra era como todo mundo. Talvez o senhor não acredite, mas ele joga muito bem tênis e é também perito no golfe. Costumava fazer tudo que o nosso grupo fazia. Era um rapaz perfeitamente normal e não havia razão para se supor que não viesse a ser um homem perfeitamente normal. Afinal de contas, o senhor é um romancista, deve ter uma explicação para isso.

– Quem sou eu para explicar as inúmeras complexidades da natureza humana?

– É por isso que eu queria falar hoje com o senhor – continuou Isabel, sem ligar ao que eu dissera.

– Você é infeliz?

– Infeliz, exatamente não. Quando Larry não está presente, tudo vai bem; quando estou perto dele é que me sinto tão fraca. Agora é apenas uma sensação dolorida, como a rigidez que sentimos após um longo passeio a cavalo, quando ficamos muito tempo sem montar; não é dor, não é insuportável, mas está ali. Isso passará, é lógico. Acho detestável pensar que Larry está estragando sua vida dessa forma.

– Talvez isto não aconteça. Ele está começando a viajar por uma estrada longa e árdua, mas é possível que no fim da jornada encontre o que procura.

– E o que ele procura?

– Ainda não lhe ocorreu? Parece-me, pelo que ele lhe disse, que não há dúvida a respeito: Deus.

– Deus! – exclamou Isabel. Mas foi uma exclamação de surpresa e incredulidade. Nosso emprego da mesma palavra, mas em sentido diverso, teve tão cômico efeito que não pudemos deixar de rir. Mas Isabel imediatamente ficou de novo séria, e notei em toda a sua atitude qualquer coisa que lembrava o medo.

– Mas, francamente, por que motivo chegou o senhor a essa conclusão?

– Estou apenas adivinhando. Mas você me pediu minha opinião como romancista. Infelizmente você não sabe qual foi o acontecimento, na guerra, que tão profundamente o afetou. Algum choque, suponho, com o qual ele absolutamente não contava. É possível que isto tenha feito Larry compreender como é transitória a vida, dando-lhe o angustioso desejo de saber que há uma compensação para os males e tristezas do mundo.

Percebi que Isabel não estava gostando do rumo que eu dera à conversa. Parecia intimidada e constrangida.

– Mas não será isto incrivelmente mórbido? A gente tem que aceitar o mundo como é. Se estamos aqui, é certamente para tirarmos o máximo proveito da vida.

– É provável que você tenha razão.

– Não tenho a pretensão de ser nada mais que uma moça perfeitamente normal, comum. Quero divertir-me.

– Parece-me que havia uma absoluta incompatibilidade de gênios entre vocês dois – disse eu. – Foi muito melhor terem descoberto isto antes do casamento.

– Quero casar-me, e ter filhos, e viver...

– Na condição de vida que uma misericordiosa Providência houve por bem lhe dar – interrompi sorrindo.

– Pois bem, não há mal nisso, há? É uma condição agradável e estou muito satisfeita com ela.

– Vocês são como dois amigos que desejam tirar férias juntos, mas um deles quer galgar as montanhas cobertas de neve da Groenlândia, ao passo que o outro quer ir pescar perto do banco de coral da Índia.

– Em todo caso, nas montanhas da Groenlândia talvez eu arranjasse um casaco de pele, mas duvido que haja peixes perto do banco de coral da Índia.

– É o que ainda se precisa ver.

– Por que diz isto? – perguntou-me Isabel, contraindo de leve as sobrancelhas. – O tempo todo o senhor parece estar guardando alguma coisa para si! Claro que sei que em tudo isto o papel bonito não é meu. Este papel cabe a Larry. É ele o idealista, o que teve um lindo sonho, e, mesmo que o sonho não se torne realidade, será sempre belo tê-lo sonhado. A mim me toca a parte dura, mercenária, prática. Bom senso nunca foi coisa muito simpática, não é verdade? Mas do que o senhor se esquece é que eu é que teria que sofrer. Larry avançaria majestosamente, com sua cauda gloriosa, e a mim só me restaria seguir atrás dele, procurando fazer o dinheiro render de um jeito ou de outro. Quero viver.

– Não me esqueci disso, em absoluto. Há anos, quando eu era moço, conheci um médico, nada mau, mas que não clinicava. Passou anos enfurnado na biblioteca do Museu Britânico e, com longos intervalos, surgia com um livro pseudocientífico, pseudofilosófico, que ninguém lia e que ele era obrigado a publicar por conta própria. Escreveu quatro ou cinco, antes de morrer; livros absolutamente sem valor. Tinha um filho que queria seguir a carreira militar, mas não havia dinheiro para mandá-lo para Sandhurst, de modo que o rapaz teve que se alistar e acabou morrendo na guerra. Tinha também uma filha. Era bem bonita e eu tinha uma quedinha por ela. Entrou para o teatro, mas, não tendo talento, andou de província em província representando papéis sem importância, em companhias de segunda classe, ganhando salário irrisório. Quanto à esposa do médico, depois de anos de luta e sórdida pobreza, adoeceu, e a filha teve que voltar para casa para tratar dela, vendo-se obrigada a fazer o trabalho penoso e ingrato para o qual a mãe já não tinha forças. Vidas perdidas, frustradas; e tudo sem proveito para ninguém. É uma verdadeira loteria, quando a pessoa resolve sair do caminho habitualmente trilhado. Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos.

– Mamãe e tio Elliott aprovam o que fiz. O senhor também aprova?

– Minha querida, que importância pode isto ter? Você mal me conhece.

– Considero-o um observador desinteressado – replicou ela com um sorriso simpático. – Gostaria de ter a sua aprovação. O senhor acha que fiz bem, não acha?

– Acho que sob o seu ponto de vista você fez bem – respondi, tendo quase certeza de que ela não perceberia a ligeira distinção que a minha resposta implicava.

– Então por que motivo não estou com a consciência tranquila?

– Não está?...

Ainda com um sorriso nos lábios, mas um sorriso um tanto encabulado, ela inclinou a cabeça e continuou:

– Sei que agi de acordo com a razão. Que qualquer pessoa sensata dirá que era a única coisa a fazer. Que, sob o ponto de vista prático, sob o ponto de vista da sabedoria humana, sob o ponto de vista do que é correto, sob o ponto de vista do bem e do mal, fiz o que devia fazer. E no entanto, no fundo do coração, sinto uma inquietude que me diz que se eu fosse melhor, mais desinteressada, mais desprendida e mais nobre, não teria hesitado em casar-me com Larry e levar sua vida. Se o meu amor fosse bastante forte, eu daria por bem empregado o sacrifício.

– Você pode argumentar de outra forma. Se o amor de Larry fosse bastante forte, ele não teria hesitado em fazer o que você pedia.

– Também pensei nisso. Mas não adianta. Creio que está mais na natureza da mulher sacrificar-se do que na do homem. – Ela riu baixinho. – Ruth e o trigo estrangeiro e aquela história toda.

– Por que você não arrisca?

Tínhamos até então conversado em tom despreocupado, como se estivéssemos a comentar casualmente a vida de pessoas que ambos conhecíamos, mas que não nos interessavam diretamente; mesmo quando me repetira sua conversa com Larry, Isabel falara com alegre vivacidade, pontilhando-a de observações espirituosas, como se não desejasse que eu levasse muito a sério o que dizia.

Mas agora ela empalideceu.

– Tenho medo.

Ficamos em silêncio durante alguns momentos. Um calafrio percorreu-me a espinha, como sempre acontece quando me vejo diante de uma emoção profunda e verdadeira.

– Você gosta muito dele? – perguntei afinal.

– Não sei. Ele me impacienta. Ele me exaspera. Estou sempre ansiando pela sua presença.

De novo se fez silêncio entre nós. Eu não sabia o que responder. A sala onde estávamos era pequena; pesadas cortinas de renda, nas janelas, impediam a claridade de fora. Nas paredes, empapeladas de amarelo, dependuravam-se velhas gravuras sobre caçadas. Com sua mobília de mogno, surradas cadeiras de couro e cheiro bolorento, lembrava estranhamente uma saleta de café de um romance de Dickens. Remexi o fogo e atirei-lhe mais carvão. Subitamente Isabel começou a falar.

– Sabe, achei que quando chegasse o momento de pôr as cartas na mesa Larry cederia. Eu sabia que ele era fraco.

– Fraco? – exclamei. – Aonde foi você buscar essa ideia? Um homem que durante um ano suportou a reprovação de amigos e conhecidos, por estar resolvido a seguir o seu caminho.

– Sempre consegui fazer dele o que quis. Era meu escravo. Ele nunca encabeçou o que fazíamos; apenas acompanhava o grupo.

Eu acendera um cigarro e observava o círculo azul da fumaça, que se foi alargando até se dissolver no ar.

– Mamãe e tio Elliott achavam que eu não devia con tinuar saindo com ele, como se nada tivesse acontecido; mas eu não levava aquilo muito a sério. Até o último dia pensei que ele acabaria cedendo. Não achei possível que, quando naquela sua cabeça dura penetrasse a ideia de que eu não estava brincando, ele não acabasse entregando os pontos. – Isabel hesitou e atirou-me um sorriso maroto, brincalhão. – O senhor ficará escandalizado se eu lhe contar uma coisa?

– Acho muito pouco provável.

– Quando resolvemos vir para Londres, telefonei a Larry e perguntei-lhe se não poderíamos passar juntos minha última noite em Paris. Quando contei isso aos meus, o tio Elliott declarou que não ficava nada bem, e mamãe que achava desnecessário. Quando mamãe diz que acha uma coisa desnecessária, significa que a desaprova em toda a linha. Tio Elliott me perguntou o que pretendíamos fazer; respondi que íamos jantar fora e dar depois um giro pelos cabarés. Ele virou-se para mamãe dizendo que ela devia proibir-me. Mamãe me perguntou: “Você me atenderia se eu a proibisse de ir?”. “Não, querida, nem por sombras.” E ela disse então: “Foi o que imaginei. Neste caso não vejo muita vantagem em proibir”.

– Sua mãe parece uma senhora extraordinariamente sensata.

– Não creio que muita coisa lhe escape. Quando Larry veio buscar-me, entrei no quarto dela para lhe dizer boa-noite. Eu me pintara um pouco; o senhor sabe, em Paris isto é preciso, senão a gente parece tão nua!... Quando mamãe notou o meu vestido, pelo olhar com que me examinou de cima a baixo tive a desagradável impressão de que desconfiava das minhas intenções. Mas não fez comentário algum. Beijou-me, apenas, dizendo que esperava que eu me divertisse.

– E quais eram as suas intenções?

Isabel olhou-me desconfiada, como se ainda não soubesse até que ponto levar a franqueza.

– Não creio que eu estivesse muito feia e era aquela a minha última oportunidade. Larry reservara uma mesa no Maxim. Comemos coisas gostosas, da minha preferência, e tomamos champanhe. Falamos os maiores absurdos, pelo menos eu falei, e fiz Larry rir. Uma das coisas que mais me agradam nele é o fato de eu poder sempre diverti-lo. Dançamos. Quando nos cansamos disso, fomos para o Château de Madrid. Ali encontramos alguns conhecidos, juntamo-nos ao seu grupo e tomamos mais champanhe. Depois fomos todos para o Acádia. Larry dança bem, e combinamos. O calor, a música, o vinho... eu estava um pouco tonta. Não tinha medo de nada. Dancei com a face contra a de Larry e vi que ele me desejava. Só Deus sabe como eu o desejava! Tive uma ideia... Provavelmente estivera no meu subconsciente o tempo todo. Resolvi fazer com que ele me acompanhasse até em casa; uma vez que o pegasse ali, pois bem, era inevitável que acontecesse o inevitável.

– Por Deus, você não poderia ter-se expressado com maior delicadeza.

– Meu quarto era bem afastado do de mamãe e do de tio Elliott, de modo que eu sabia que não havia perigo. Quando estivéssemos de novo na América, pensei, eu escreveria a Larry dizendo que ia ter um bebê. Ele seria obrigado a voltar, para casar-se comigo, e achei que, uma vez que o apanhasse na América, não seria difícil prendê-lo, principalmente com mamãe doente. “Que idiota fui em não me lembrar disso antes”, pensei com os meus botões. “Não há dúvida de que assim fica resolvido o caso.” Quando a música parou, continuei nos braços dele. Disse-lhe depois que estava ficando tarde e que, como eu tinha que tomar o trem ao meio-dia, era melhor irmos embora. Tomamos um táxi. Aconcheguei-me a ele; Larry enlaçou-me e beijou-me. Beijou-me e beijou-me e... oh! que paraíso! Quando o táxi parou à porta, pareceu-me que se passara apenas um minuto. Larry pagou o homem.

“Vou a pé para casa”, disse-me ele.

– O táxi afastou-se barulhentamente e eu pus os braços à volta do pescoço de Larry.

“Não quer entrar e tomar um último drinque?”, perguntei. “Sim, se você quiser.”

– Larry tocara a campainha e a porta estava aberta. Ele acendeu a luz e entramos. Olhei dentro dos seus olhos. Tão confiantes, tão sinceros, tão... ingênuos; evidentemente ele não tinha a menor ideia da armadilha que eu estava lhe preparando. Vi então que não me seria possível fazer papel tão indecente; era o mesmo que tirar um doce da boca de uma criança. Sabe o que eu disse? “Oh! bom, talvez seja melhor você não entrar. Mamãe não está hoje passando muito bem e não quero acordá-la, caso tenha adormecido. Boa noite.” Ergui o rosto para que ele me beijasse e empurrei-o para a rua. E assim acabou-se a história.

– Você está arrependida? – perguntei.

– Nem satisfeita nem arrependida. Não pude agir de outra forma. Não fui eu que fiz aquilo. Foi um impulso que se apossou de mim e agiu por mim. – Isabel sorriu. – Com certeza dirão que foi o meu lado bom.

– Com certeza.

– Então o meu lado bom tem que sofrer as consequências. Espero que no futuro ele seja mais prevenido.

Foi este, por assim dizer, o fim de nossa conversa. Talvez Isabel tenha sentido algum consolo em poder conversar com absoluta franqueza, mas foi esse o único auxílio que lhe pude prestar. Sentindo que não correspondera à expectativa, tentei pelo menos dizer-lhe uma coisinha que talvez a confortasse.

– Você sabe, quando amamos, e as coisas não correm a nosso contento, sentimo-nos profundamente infelizes e temos a impressão de que nunca nos consolaremos. Mas você ficará atônita ao ver o que o mar pode fazer.

– Que quer dizer com isso? – perguntou ela sorrindo.

– Bom, o amor não é bom marinheiro e definha-se numa viagem por mar. Quando o Atlântico se interpuser entre você e Larry, você vai ficar admirada ao verificar como é leve a dor que antes lhe parecia intolerável.

– Fala por experiência própria?

– Experiência de um tormentoso passado. Quando eu sofria as agonias de um amor não correspondido, metia-me imediatamente num navio.

A chuva não dava mostras de cessar; concordamos, portanto, em que Isabel não ia morrer por deixar de ver o nobre edifício de Hampton Court, ou mesmo o leito da rainha Isabel, e voltamos para Londres. Ainda a vi duas ou três vezes depois disso, mas sempre quando havia outras pessoas presentes; e então, tendo-me fartado de Londres por algum tempo, parti para o Tirol.


Três

Três


1

Nos dez anos seguintes perdi Isabel e Larry de vista. Continuei a ver Elliott e, por uma razão que mais tarde explicarei, mais frequentemente do que antes; por ele de vez em quando eu tinha notícias de Isabel. Mas a respeito de Larry ele nada soube contar-me.

– É bem possível que ainda esteja em Paris, mas duvido que nos venhamos a encontrar. Não frequentamos a mesma roda – acrescentou Elliott, com certa complacência. – É uma pena ele ter-se estragado dessa forma. É de uma ótima família. Garanto que teria dado alguma coisa, se tivesse seguido a minha orientação. Em todo caso foi uma sorte para Isabel.

Meu círculo de relações não era tão restrito quanto o de Elliott e eu conhecia, em Paris, muita gente que ele sem dúvida consideraria indesejável. Nas minhas breves mas não raras idas àquela capital perguntei a uma ou outra dessas pessoas se tinham visto Larry ou ouvido falar dele; algumas o conheciam ligeiramente, mas ninguém com suficiente intimidade para me dar informações a seu respeito. Fui ao restaurante onde ele costumava jantar, mas fazia tempo que ali não aparecia; julgavam que se ausentara de Paris. Nunca o vi em nenhum dos cafés do Boulevard du Montparnasse, geralmente frequentado pelas pessoas da vizinhança.

Sua intenção, depois que Isabel deixou Paris, era ir à Grécia, mas o projeto foi abandonado. Muitos anos mais tarde ele me contou o que fizera, mas vou relatar agora esses acontecimentos, pois, na medida do possível, acho mais conveniente colocá-los em ordem cronológica. Larry ficou em Paris durante o verão, trabalhando intensamente, até o outono já ir bem avançado.

– Achei então que precisava descansar dos livros – disse-me ele. – Durante dois anos eu estivera estudando de oito a dez horas por dia. Fui, portanto, trabalhar numa mina de carvão.

– Trabalhar onde? – exclamei. Ele riu do meu espanto.

– Achei que, durante alguns meses, o trabalho manual me faria bem. Pareceu-me que me daria oportunidade de coordenar as ideias e chegar a um entendimento comigo mesmo.

Fiquei em silêncio. Seria essa a única razão para aquele passo inesperado, ou teria relação com o rompimento do noivado com Isabel? A questão é que eu não sabia até que ponto Larry a amava. Muitas pessoas, quando apaixonadas, inventam razões para convencer a si próprias de que devem fazer o que desejam. Creio que é por isso que há tantos casamentos desastrosos. São como aquelas pessoas que entregam seus negócios a um homem reconhecidamente desonesto, só porque acontece tratar-se de um amigo; e, não querendo acreditar que um ladrão é primeiro ladrão, e depois amigo, pensam que por mais desonesto que ele seja com os outros, com elas o caso muda de figura. Larry tivera força suficiente para não sacrificar, por causa de Isabel, a vida que o atraía, mas talvez tivesse achado a dor de perdê-la mais amarga do que supusera. É bem possível que, como todos nós, ele tivesse querido comer o bolo e guardá-lo ao mesmo tempo.

– Pois bem, continue – disse eu.

– Arrumei meus livros e roupas em duas malas e mandei-as para o depósito do American Express. Depois enfiei um terno e algumas roupas de baixo numa maleta e parti. Meu professor de grego tinha uma irmã casada com o gerente de uma mina perto de Lens e deu-me uma carta de apresentação para ele. Conhece Lens?

– Não.

– Fica no norte da França, não muito distante da fronteira belga. Só passei ali uma noite, no hotel da estação; no dia seguinte tomei o trem de subúrbio que vai para o local da mina. Já esteve numa vila de mineiros?

– Sim, na Inglaterra.

– Bom, deve ser a mesma coisa. Havia a mina, a residência do gerente, e fileiras e fileiras de casas jeitosinhas, de dois andares; iguais, tão iguais, que chegavam a confranger o coração. Uma igreja mais ou menos nova, feia; vários bares. O tempo estava enfarruscado e frio quando lá cheguei; caía uma chuvinha miúda. Fui até o escritório do gerente e mandei-lhe a minha carta. Era ele um homem pequeno, gordo, de rosto rubro e ar de quem gosta de passar bem. Havia falta de braços, pois vários mineiros tinham morrido na guerra; ali trabalhavam muitos poloneses, de duzentos a trezentos, creio eu. Ele me fez duas ou três perguntas, não parecendo apreciar o fato de eu ser americano; tive a impressão de que achou isso meio suspeito. Mas na carta o cunhado me fazia boas referências e, em todo caso, ele ficou satisfeito de poder contar com mais alguém. Quis dar-me um lugar na superfície, mas eu lhe disse que preferia trabalhar no subsolo. Replicou que, não estando habituado, eu ia achar o serviço duro; como insisti, deu-me o lugar de ajudante de mineiro. Era realmente serviço de menino, mas não havia suficiente número deles para preencher as vagas. O gerente era um bom sujeito. Perguntou-me se eu já tinha providenciado acomodação e, ante minha resposta negativa, escreveu um endereço num papelzinho, dizendo que se eu fosse até lá a dona da casa me arranjaria um leito. Era viúva de um mineiro que morrera na guerra e seus dois filhos trabalhavam na mina.

“Peguei de novo a maleta e segui o meu caminho. Encontrei a casa. Uma mulher alta, emaciada, de cabelos grisalhos e grandes olhos negros veio abrir-me a porta. Tinha traços benfeitos e devia ter sido bonita. Mesmo agora não seria feia, no seu tipo esquálido, a não ser pelos dois dentes que lhe faltavam na frente. Disse-me que quarto ela não tinha, mas que havia duas camas no quarto que alugara a um polonês e que eu podia ficar com a que estava vaga. O aposento que ela me mostrou era no andar de baixo e devia ter sido sala de visitas. Eu teria preferido um quarto só para mim, mas resolvi deixar de exigências; a garoa transformara-se em chuva leve e persistente e eu já estava molhado; não me agradava a perspectiva de ir para diante e ficar encharcado até os ossos. Disse, portanto, que aceitava, e instalei-me. A cozinha, onde notei duas poltronas pouco firmes, servia também de sala. Havia, no pátio, um barracão onde guardavam o carvão, e que era também o banheiro. Os dois rapazes e o polonês tinham levado o seu almoço, mas a mulher me disse que eu poderia almoçar com ela ao meio-dia. Sentei-me depois na cozinha, com o meu cachimbo. Enquanto trabalhava, a mulher me contou sua história e a de sua família. Os outros chegaram assim que sua turma deixou de trabalhar. Primeiro o polonês, logo em seguida os dois rapazes. O polonês passou pela cozinha, cumprimentou-me com a cabeça, nada dizendo quando a dona da casa lhe participou que íamos compartilhar do mesmo quarto; tirou da chapa uma chaleira e foi lavar-se no barracão. Apesar da sujeira do rosto, os filhos da dona eram mocetões bonitos, e pareciam inclinados à camaradagem. Consideravam-me uma aberração pelo fato de eu ser americano. Um deles estava com dezenove anos e logo teria que fazer o serviço militar; o outro com dezoito.

“O polonês voltou e os rapazes foram lavar-se. Meu companheiro de quarto tinha um daqueles complicados nomes poloneses, mas chamavam-no de Kosti. Era um sujeito grande e pesado, quase dez centímetros mais alto do que eu. Pálido rosto carnudo, nariz curto e chato, boca larga. Seus olhos eram azuis e, por não ter conseguido tirar o carvão das pestanas e sobrancelhas, ele parecia estar pintado. As pestanas negras tornavam quase chocante o azul dos olhos. Sujeito feio, abrutalhado. Tendo trocado de roupa, os dois rapazes saíram. O polonês sentou-se na cozinha e pôs-se a ler o jornal, fumando o seu cachimbo. Eu tinha um livro no bolso; tirei-o e comecei também a ler. Notei que duas ou três vezes o polonês me olhou; dali a pouco largou o jornal.

“Que é que você está lendo?”, perguntou-me.

– Entreguei-lhe o livro para que ele mesmo verificasse. Era um exemplar da Princesse de Clèves que eu comprara na estação, em Paris, pela vantagem de poder carregá-lo no bolso. O polonês examinou o livro, fitou-me curiosamente e devolveu-mo. Notei-lhe o sorriso irônico.

“Acha graça nisso?”, perguntou.

“Acho interessantíssimo; absorvente, mesmo”, respondi.

“Li-o na escola, em Varsóvia. Achei-o cacetérrimo.” Ele falava bem o francês, quase sem sotaque estrangeiro. “Agora só leio os jornais e livros policiais.”

– Madame Duclerc, a dona da casa, estava sentada à mesa, cerzindo meias, mas de olho na sopa sobre o fogão. Contou a Kosti que eu fora mandado pelo gerente da mina e repetiu aquilo que me aprouvera contar-lhe. Ele ouviu, fumando, e olhou-me com aqueles seus brilhantes olhos azuis. Olhos duros e perspicazes. Fez-me algumas perguntas sobre a minha pessoa. Quando declarei que nunca trabalhara numa mina, de novo seus lábios se encresparam num sorriso irônico.

“Você não sabe em que se meteu. Quem pode trabalhar em outra coisa nunca devia procurar serviço numa mina. Mas isto não é da minha conta e com certeza você tem as suas razões. Onde morava em Paris?”

– Contei-lhe; Kosti disse, então:

“Houve época em que eu costumava ir todos os anos a Paris, mas ficava ali pelos Grands Boulevards. Conhece o Larue? Era um dos meus restaurantes prediletos.”

– Isto me surpreendeu, pois, como você sabe, não é barato.

– Longe disso.

– Creio que Kosti notou a minha surpresa, pois de novo teve um sorriso zombeteiro, mas não achou necessário entrar em explicações. Continuamos a conversar de uma coisa e outra e dali a pouco os dois rapazes chegaram. Terminada a ceia, Kosti me perguntou se eu queria acompanhá-lo ao bistrô para tomarmos uma cerveja. Fomos. Nada mais era que uma sala grande, com bar na extremidade e várias mesas de mármore, com cadeiras de madeira à volta. O piano automático, onde alguém colocara uma moeda, esganiçava uma música de dança. Além da nossa, só três mesas estavam ocupadas. Kosti perguntou-me se eu jogava belote. Respondi afirmativamente, pois aprendera a jogar com meus colegas; ele propôs então disputarmos a cerveja. Concordei. Veio o baralho. Perdi a primeira e a segunda rodadas. Kosti sugeriu então que jogássemos a dinheiro. Ele tinha boas cartas e eu estava de azar. As apostas eram insignificantes, mas mesmo assim perdi vários francos. Isto e a cerveja deixaram-no de bom humor, desatando-lhe a língua. Não levei tempo a perceber, tanto pelo seu modo de falar como por suas maneiras, que ele era um homem educado. Quando de novo se referiu a Paris, foi para perguntar-me se eu conhecia Fulana ou Sicrana, senhoras americanas que eu encontrara na casa de Elliott quando tia Louisa e Isabel ali estiveram hospedadas. Parecia conhecê-las melhor do que eu e fiquei a conjeturar como chegara ele à situação presente. Não era ainda muito tarde; tínhamos, no entanto, que nos retirar, pois precisávamos nos levantar de madrugada.

“Vamos tomar mais uma cerveja antes de sair”, propôs

Kosti.

– Sorveu-a aos bocadinhos, espiando-me com seus olhinhos vivos. Percebi então de que me fazia ele lembrar: de um porco mal-humorado.

“Por que motivo veio você trabalhar nesta mina infecta?”, perguntou-me.

“Pela experiência.”

“Tu es fou, mon petit.”

“E por que motivo está você trabalhando aqui?”

– Kosti encolheu os ombros desajeitados e maciços e respondeu:

“Entrei para a escola de cadetes, dos nobres, quando era criança. Meu pai era general do czar e eu fui oficial de cavalaria na última guerra. Mas eu não suportava Pilsudski. Tramamos matá-lo, mas alguém nos denunciou. Ele mandou fuzilar aqueles que foram capturados. Consegui atravessar a fronteira a tempo. Para mim só havia duas alternativas: a Legião Estrangeira ou uma mina de carvão. Escolhi dos males o menor.”

– Eu contara a Kosti qual ia ser o meu serviço na mina e ele não fizera comentário algum; mas agora, cravando o cotovelo na mesa, disse:

“Experimente abaixar minha mão.”

– Eu conhecia esta velha prova de força e coloquei minha palma aberta sobre a dele. Riu e disse: “Daqui a algumas semanas sua mão não estará assim macia”. Fiz toda a força possível, mas nada consegui contra aquela rocha; pouco a pouco ele foi empurrando minha mão até deitá-la sobre o mármore.

“Você é bem forte”, condescendeu ele em dizer. “Não são muitos que aguentam tanto tempo assim. Escute aqui: meu auxiliar não vale nada, é um francezinho esmirrado, sem um pingo de força. Venha comigo amanhã, que eu peço ao capataz que lhe dê o lugar dele.”

“Isto me agradaria”, respondi. “Acha que ele vai concordar?”

“Por um certo preço. Você pode dispor de cinquenta francos?”

– Kosti estendeu a mão e eu tirei uma nota da carteira. Fomos para casa e caímos na cama. Eu estava cansado e dormi como uma pedra.

– Achou o trabalho muito pesado? – perguntei a Larry.

– De quebrar os costados, a princípio – respondeu ele sorrindo. – Kosti ajeitou a coisa com o capataz e fui designado seu ajudante. Naquela ocasião ele estava trabalhando num espaço do tamanho de um banheiro de hotel; para chegar lá a gente tinha que atravessar um túnel tão baixo que era necessário andar de gatinhas.

Fazia ali um calor dos infernos e trabalhávamos só de calça. O vasto tronco branco e gordo de Kosti tinha qualquer coisa de intensamente repulsivo; parecia uma lesma enorme. O ruído do cortador pneumático, naquele espaço acanhado, era ensurdecedor. Meu trabalho era recolher os blocos de carvão que ele cortava, enfiá-los numa cesta e arrastá-la por todo o túnel até a boca, de onde seriam recolhidos para um vagonete quando, de intervalo em intervalo, por ali passasse o trem rumo aos elevadores. É a única mina de carvão que conheço, de modo que não sei se é esse o costume. Pareceu-me um tanto primitivo e dava um trabalhão dos infernos. Na metade do tempo parávamos para descansar, comíamos o nosso almoço e fumávamos. Eu me dava por feliz quando acabava o dia, e, céus, que coisa boa, um banho! Pensei que nunca conseguisse fazer com que meus pés ficassem limpos. Claro que minhas mãos ficaram cheias de bolhas, e doíam como o diabo; mas acabaram sarando. Habituei-me ao trabalho.

– Quanto tempo você aguentou?

– Só fiquei nesse serviço durante algumas semanas. Os vagonetes que levavam o carvão para os elevadores eram puxados por um trator, e o condutor era péssimo mecânico. Quando o motor enguiçava, o homem ficava sem saber o que fazer. Pois bem, acontece que sou um bom mecânico; examinei a máquina e em meia hora consegui pô-la a funcionar. O capataz contou ao gerente e este mandou me chamar, perguntando-me se eu entendia mesmo do assunto; o resultado foi ele dar-me o lugar do mecânico. Era monótono, naturalmente, mas fácil; e, como não tiveram mais aborrecimentos com a máquina, ficaram satisfeitos comigo.

Kosti ficou furioso com a mudança. Eu lhe convinha e ele estava habituado à minha companhia. Cheguei a conhecê-lo muito bem, trabalhando a seu lado o dia todo, indo com ele ao bistrô depois da ceia e dormindo no mesmo quarto. Era um sujeito engraçado. Tipo que você teria achado interessante. Não se misturava com os outros poloneses, e não frequentávamos os cafés que eles frequentavam. Kosti não podia esquecer que fora oficial de cavalaria e tratava-os como se fossem lixo. Eles, naturalmente, ficavam ofendidos com isso, mas o que podiam fazer? O sujeito era um touro; se houvesse uma briga, com ou sem faca, daria conta de meia dúzia deles. Mesmo assim, fiquei conhecendo alguns dos outros; e eles me contaram que Kosti fora de fato oficial de cavalaria de um dos mais elegantes regimentos, mas que mentia ao dizer que deixara a Polônia por razões políticas. Fora expulso do Clube dos Oficiais de Varsóvia e da cavalaria por ter sido apanhado trapaceando no jogo. Preveniram-me que não jogasse com ele, afirmando que era por esse motivo que Kosti os evitava – porque eles sabiam com quem estavam lidando.

Eu andara perdendo sistematicamente, não muito, apenas alguns francos cada noite; além do mais, quando ganhava, Kosti sempre insistia em pagar pelas bebidas, de modo que o prejuízo era insignificante. Pensei que estivesse numa maré de azar, ou que não jogasse tão bem quanto ele. Mas depois disso fiquei de olho atento e tive certeza de que ele roubava, mas juro que por mais que eu fizesse não conseguia descobrir o truque. Céus, que habilidade! Mas não achei possível ele ter as melhores cartas o tempo todo e continuei a observá-lo com olhar de lince. Kosti era esperto como ninguém e creio que percebeu que me haviam prevenido. Certa noite, depois de termos jogado durante algum tempo, fitou-me com um sorriso um tanto cruel, sarcástico, sua única maneira de sorrir, e disse:

“Quer ver uma mágica?”

– Pegou o baralho e me mandou dizer uma carta. Baralhou-as e pediu-me que escolhesse uma; ao aceder, verifiquei que era a carta que eu nomeara. Fez mais uma ou duas mágicas e depois me perguntou se eu jogava pôquer. Respondi que sim e ele deu as cartas. Quando olhei a minha mão, verifiquei que tinha uma quadra de ases e um rei ao lado.

‘’Você estaria disposto a apostar muito nesta mão, não estaria?”, perguntou-me.

“Todas as minhas fichas”, respondi.

“Pois seria tolice.” Ele mostrou a mão que dera para si próprio. Um straight flush. Como o conseguira, não sei. Riu do meu espanto. “Se eu não fosse um homem honesto, há muito já o teria depenado.”

“Não se pode dizer que você se saiu assim tão mal”, repliquei sorrindo.

“Isto é café pequeno. Não daria para pagar um jantar no Larue.”

– Continuamos a jogar quase todas as noites. Cheguei à conclusão de que ele roubava, não tanto pelo dinheiro, mas pela satisfação de roubar. Sentia um estranho prazer em me fazer de tolo, achando divertidíssimo saber que eu desconfiava de sua malandragem, sem no entanto poder atinar com ela.

Mas este era apenas um lado seu, e o outro é que o tornava interessante. Eu não podia conciliar os dois. Embora se gabasse de só ler jornais e histórias de detetive, Kosti era um homem culto. Tinha boa prosa, era sarcástico, áspero, cínico, mas que prazer ouvi-lo! Fervoroso católico; tinha um crucifixo na parede, em cima da cama, e ia à missa todos os domingos. Nos sábados à noite costumava embriagar-se. O bistrô que frequentávamos ficava repleto nesse dia; ar carregado de fumaça. Lá iam pacatos mineiros de meia-idade, com suas famílias, grupos de moços que faziam um barulho dos diabos, e homens de rosto coberto de transpiração, que se punham à volta de uma mesa, jogando belote com ruidosas exclamações, enquanto suas mulheres, sentadas um pouco atrás, sapeavam o jogo. A multidão e o barulho tinham um estranho efeito sobre Kosti; ele ficava sério e começava a falar daquilo que menos se esperava – misticismo. Naquela ocasião eu não entendia do assunto, a não ser por um ensaio de Maeterlinck, sobre Ruysbroek, que eu lera em Paris. Mas Kosti falava de Plotino e Dionísio, o Areopagita, de Jacob Boehme, o sapateiro, de Meister Eckhart. Fantástico, ouvir aquele sujeito desajeitado e grandalhão, que fora expulso do seu meio, aquele homem vencido, sarcástico e amargurado, falar da derradeira realidade das coisas e da bem-aventurança da união com Deus. Aquilo me era desconhecido e me deixava confuso e excitado. Eu me sentia como uma pessoa que, fechada num quarto escuro, sabe que lhe bastará afastá-la para ter diante dos olhos a beleza pura da madrugada sobre os campos. Mas, quando estava sóbrio e eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, Kosti ficava furioso.

Seus olhos adquiriam uma expressão despeitada. “Como é que posso explicar o que é, se eu não sabia o que estava dizendo?”, rosnava ele.

– Mas eu via que estava mentindo. Ele sabia perfeitamente sobre o que estivera falando. Sabia muita coisa. Claro que estivera bêbado; mas o olhar, a expressão arrebatada do seu rosto feio não tinham por causa única a bebida. Havia alguma coisa mais. Quando me falou nisso pela primeira vez, disse-me algo de que não me esqueci e que me deixou horrorizado: que o mundo não é coisa criada, pois do nada nada pode provir, e sim uma manifestação da natureza eterna; bom, até aí, vá lá; mas depois ele acrescentou que, tanto quanto o bem, o mal é uma direta manifestação da divindade. Estranhas palavras para serem ditas naquele café barulhento e sórdido, ao som de músicas populares que um piano automático tocava.


2

Para descanso do leitor, começo aqui nova seção; faço-o, porém, apenas para conveniência dele, pois a conversa foi ininterrupta. Aproveito a oportunidade para dizer que Larry falava sem pressa, muitas vezes escolhendo com cuidado os vocábulos e, embora eu não queira dar a entender que estive a repeti-los com exatidão, tentei reproduzir, não somente a essência, mas também a forma da narrativa. Sua voz, de timbre rico, possuía uma qualidade musical que agradava ao ouvido; e, enquanto falava, sem gesticulação de espécie alguma, fumando o seu cachimbo e parando de vez em quando para acendê-lo, fitava a gente com expressão simpática, às vezes quase patética, nos olhos negros.

– Depois veio a primavera – continuou Larry. – Chegou tarde àquela região lúgubre e plana, onde ainda chovia e fazia frio. Mas às vezes, com um dia bonito, era sacrifício a gente entranhar-se pela terra, num elevador gigante, repleto de mineiros metidos em sujos macacões. Era primavera, sim, mas chegava timidamente àquela paisagem sombria, como que incerta da recepção que lhe fariam. Lembrava uma flor, narciso ou lírio, que desabrochasse no vaso de uma janela de cortiço, deixando a gente a imaginar por que razão estaria ali. Certo domingo de manhã, lia eu na cama – sempre nos levantávamos tarde aos domingos – quando Kosti me disse sem mais aquela:

“Vou-me embora daqui. Quer ir comigo?”.

– Eu sabia que muitos poloneses voltavam à pátria, no verão, para ajudar na colheita, mas ainda era cedo para isso; além do mais, Kosti não podia voltar para a Polônia.

“Para onde vai você?”, perguntei.

“A pé, pela estrada afora. Através da Bélgica, pela Alemanha, e Reno abaixo. Poderíamos trabalhar em alguma fazenda durante o verão.”

– Não levei dois minutos a resolver. “Parece ótimo”, respondi.

– No dia seguinte avisamos o capataz que íamos sair. Encontrei um sujeito que concordou em ficar com a minha maleta, a troco de um saco de viagem. As roupas que eu não quis ou não pude levar dei-as ao filho mais novo de madame Duclerc, que era mais ou menos do meu tamanho. Kosti deixou sua mala e levou algumas roupas num saco de viagem; no dia seguinte, assim que a velha nos deu o café, partimos.

Não tínhamos pressa e sabíamos que nas fazendas não nos aceitariam a não ser quando o feno estivesse pronto para ser cortado. Vagueamos, portanto, pela França e Bélgica, passando por Namur e Liège, entrando na Alemanha por Aachen. Não caminhávamos mais que dez ou doze milhas por dia; quando o aspecto de uma aldeia nos agradava, parávamos ali. Sempre havia uma hospedaria onde nos arranjavam duas camas, e uma taverna onde podíamos comer e beber. Tivemos, em geral, sorte com o tempo. Ótimo, viver ao ar livre, depois de tantos meses enfurnados na mina. Creio que até então eu não compreendera, realmente, como é agradável o espetáculo de um campo verdejante, e como é bela a árvore cheia de brotos, quando os galhos estão velados por uma tênue neblina verde. Kosti começou a ensinar-me alemão e creio que conhecia tão bem essa língua quanto o francês. À medida que avançávamos ele me dizia os nomes dos objetos que íamos vendo, fazendo-me também repetir simples sentenças em alemão. Isto ajudava a passar o tempo e, quando chegamos à Alemanha, pelo menos eu podia pedir o que queria.

Colônia ficava um pouco fora do caminho, mas Kosti insistiu em ir até lá, por causa das Onze Mil Virgens, disse ele; mas, ali chegando, caiu na farra. Não o vi durante três dias; quando apareceu no quartinho que havíamos alugado numa espécie de pensão de operários, veio muito mal-humorado. Metera-se numa briga, levara um tapa-olho e tinha um lábio cortado. Não parecia nenhum Adônis, garanto-lhe! Dormiu durante vinte e quatro horas; depois começamos a descer o vale do Reno, rumo a Darmstadt, onde, dizia ele, teríamos mais probabilidade de conseguir trabalho, por ser região mais fértil.

Nunca houve coisa que me desse maior prazer! O bom tempo perdurava; andamos por cidades e aldeias.

Quando dávamos com uma vista bonita, parávamos para apreciá-la. Pernoitávamos onde podíamos e certa vez dormimos no feno, num paiol. Comíamos em estalagens à beira da estrada; quando penetramos na região vinícola, abandonamos a cerveja pelo vinho. Quase sempre fazíamos camaradagem com as pessoas que encontrávamos nas tavernas. Kosti tinha uma rude jovialidade, que lhes inspirava confiança; jogava com elas skat, jogo de cartas alemão, e as depenava com tão ruidoso bom humor, contando as piadas grosseiras que aquela gente apreciava, que elas quase não sentiam o prejuízo de alguns pfennigs. Pratiquei assim o meu alemão. Eu comprara em Colônia uma gramaticazinha anglo-germânica, e ia indo muito bem. Mas à noite, depois de ter ingerido alguns litros de vinho, de um modo estranho e mórbido Kosti falava da fuga do Só para o Só, da Negra Noite da Alma, e da união, em êxtase final, das criaturas com o Bem-Amado. Mas de madrugada, quando sobre a relva orvalhada caminhávamos em meio à risonha natureza, ao ver que eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, ficava tão indignado que parecia querer bater-me.

“Cale a boca, seu idiota”, dizia ele. “Que pretende você com toda essa bobice? Vamos continuar com o nosso alemão.”

– A gente não pode discutir com um sujeito que tem um punho que é um martelo e que não faria cerimônia em usá-lo – continuou Larry. – Eu já o vira com raiva. Sabia que era capaz de me pôr a nocaute e de me largar numa valeta, esvaziando-me os bolsos, ainda por cima. Por mais que eu tentasse, não conseguia compreendê-lo. Quando o vinho lhe desatava a língua, ele falava do Inefável, abandonando a linguagem obscena de que comumente se servia, como os sujos macacões que usava na mina; falava bem, e até mesmo com eloquência. Eu achava impossível que não estivesse sendo sincero. Não sei por quê, mas ocorreu-me que havia escolhido aquele trabalho duro, bruto, de mineiro para castigar a carne. Achei que detestava aquele seu corpo vasto e rude, desejando torturá-lo, e que sua desonestidade no jogo, sua amargura e crueldade eram a revolta da vontade contra... – oh! não sei como me exprimir – um arraigado instinto de santidade, contra um sujeito de Deus, que o apavorava e obcecava ao mesmo tempo.

Não nos tínhamos apressado; a primavera estava quase finda e as árvores enfolhadas. As uvas, nas parreiras, começavam a desenvolver-se. Fazíamos o possível para seguir pelas estradas, cada vez mais poeirentas. Nos arredores de Darmstadt, Kosti disse que era melhor começarmos a procurar trabalho. Nosso dinheiro estava escasseando. Eu tinha no bolso uma meia dúzia de letras de crédito, mas tomara a resolução de não usá-las, se possível. Quando víamos uma fazenda prometedora, parávamos e perguntávamos se não precisavam de dois camaradas. Confesso que não devíamos inspirar muita confiança. Sujos, cobertos de suor e de poeira. Kosti parecia um bandido e não creio que eu estivesse com melhor aparência. Não houve quem nos quisesse. Numa delas, o fazendeiro disse que tomaria Kosti, mas que não precisava de mim; Kosti replicou que éramos companheiros e não nos separaríamos. Eu lhe disse que ficasse, mas não consegui convencê-lo. Fiquei admirado. Sabia que ele simpatizara comigo; por quê, não sei, pois eu não era do tipo que deveria atraí-lo; mas nunca pensei que me tivesse suficiente amizade para recusar um emprego por minha causa. Cheguei a sentir remorsos, pois, para ser franco, eu não gostava dele, achando-o mesmo um tanto repulsivo; mas quando tentei exprimir o prazer que sua recusa me causara, ele logo me deu o contra.

Finalmente nossa sorte mudou. Tínhamos acabado de atravessar uma vila, numa baixada, quando chegamos a uma fazenda que não tinha muito má aparência. Batemos à porta; uma mulher veio abrir. Oferecemos nossos serviços, como de costume. Dissemos que não queríamos salário, mas que estávamos dispostos a trabalhar por casa e comida; qual nossa surpresa quando, em vez de nos bater com a porta na cara, ela nos disse que esperássemos! Chamou por alguém dentro de casa e um homem apareceu. Ele nos encarou bem e perguntou de onde vínhamos, pedindo para examinar nossos documentos. Olhou-me de novo, quando viu que eu era americano. Não pareceu muito satisfeito com isso, mas mesmo assim nos convidou para entrar e tomar um copo de vinho. Fomos para a cozinha; sentamo-nos. A mulher trouxe uma garrafa de mesa e uns copos. O fazendeiro nos contou que um touro investira contra seu empregado, que este estava no hospital e só ficaria bom depois de terminada a colheita. Com tantos homens mortos, e outros empregando-se nas fábricas que pululavam ao longo do Reno, havia enorme falta de braços nas fazendas. Para nós não era novidade; estivéramos mesmo contando com isso. Pois bem, para encurtar a história, o homem nos aceitou. Havia muito espaço na casa, mas creio que ele não nos queria com a família; em todo caso disse que havia duas camas no paiol e que podíamos dormir lá.

O trabalho não era duro. Tínhamos de cuidar das vacas e dos porcos; as máquinas estavam em mau estado e tratamos de consertá-las; mesmo assim, tínhamos momentos de lazer. Eu gostava do cheiro adocicado dos campos, e à noite ia passear por ali, a sonhar. Era uma boa vida.

A família consistia no velho Becker, sua mulher, sua nora viúva e os filhos desta. Becker era um homem troncudo, de cabelos grisalhos, que devia estar beirando os cinquenta anos. Estivera na guerra e mancava devido a um ferimento recebido na perna. Doía-lhe muito e ele bebia para disfarçar a dor. Geralmente estava bem embalado quando ia para a cama. Kosti deu-se admiravelmente com ele; habituaram-se a ir até a taverna, depois do jantar, jogar skat e empanturrar-se de vinho. Frau Becker fora criada da casa. Tinham-na tirado de um orfanato e Becker casara-se com ela pouco depois da morte de sua mulher. Era bem mais moça do que ele, bonitona, robusta, rosto corado e cabelos louros, ar profundamente sensual. Kosti não levou tempo para perceber que ali havia futuro. Eu lhe disse que não fosse idiota; não valia a pena arriscarmos o nosso emprego. Ele apenas zombou de mim, dizendo que Becker não a satisfazia e que ela não queria outra coisa. Eu sabia que era inútil apelar para a sua noção de honra, mas aconselhei-o a ter cuidado; talvez Becker não percebesse suas intenções, mas ali estava a nora, e a esta nada escapava.

Ellie, assim se chamava ela, era uma jovem alta, grande, de vinte e poucos anos; cabelos e olhos negros, pálido rosto quadrado, expressão taciturna. Ainda estava de luto pelo marido, que morrera em Verdun. Era muito devota e todos os domingos de manhã lá ia ela à aldeia assistir à primeira missa: à tarde voltava para a bênção. Tinha três filhos, um dos quais nascera depois da morte do marido; à hora das refeições nunca falava, a não ser para repreendê-los. Trabalhava pouco na fazenda, mas passava a maior parte do tempo tomando conta das crianças; à noite sentava-se sozinha na sala, com um romance, deixando aberta a porta para poder ouvir, caso algum deles chorasse. As duas mulheres odiavam-se. Ellie desprezava Frau Becker porque era enjeitada e fora empregada doméstica, não se conformando com o fato de ser ela a dona da casa e estar em posição de dar ordens.

Ellie era filha de um fazendeiro abastado e trouxera bom dote. Não fora educada na escola da aldeia, e sim em Zwingenberg, a cidade mais próxima, onde havia um gymnasium para meninas. A pobre Frau Becker viera para a fazenda com catorze anos, e quando muito sabia ler e escrever. Era este outro ponto da discórdia entre as duas mulheres. Ellie não perdia oportunidade de exibir sua sabedoria; e Frau Becker, muito vermelha, perguntava de que adiantava aquilo para uma mulher de fazendeiro. Ellie olhava então a medalha de identificação do marido, que usava no pulso, presa por uma corrente de ferro, e com expressão amarga no rosto taciturno, dizia:

“Mulher de fazendeiro, não. Apenas viúva de fazendeiro. Apenas viúva de um herói que deu sua vida pela pátria.”

– O pobre Becker tinha um trabalhão para conservar a paz entre as duas.

– Mas que pensavam eles de você? – perguntei a Larry.

– Oh! achavam que eu desertara do Exército americano e não podia voltar, pois do contrário seria preso. Era assim que explicavam a minha recusa em acompanhar Becker e Kosti à taverna. Julgavam que eu não queria chamar atenção sobre minha pessoa, nem correr o risco de ter que responder às perguntas do sargento de polícia. Quando Ellie descobriu que eu estava querendo aprender alemão, foi buscar seus livros escolares e disse que estava pronta a ensinar-me. E assim, depois da ceia, íamos para a sala, deixando Frau Becker na cozinha. Eu lia em voz alta enquanto ela me corrigia a pronúncia, procurando fazer-me compreender o sentido de palavras sobre as quais eu não tinha a mínima ideia. Desconfiei que estava fazendo isto não tanto para me ajudar, mas para levar vantagem sobre Frau Becker.

Durante todo esse tempo Kosti estava dando em cima de Frau Becker, mas sem nenhum resultado. Ela era uma mulher alegre, folgazã, sempre pronta a pilheriar e rir com ele, e Kosti tinha jeito para tratar as mulheres. Creio que ela desconfiava das intenções do polonês e sentia-se lisonjeada, mas, quando ele começou a beliscá-la, disse-lhe que não lhe pusesse as mãos em cima e deu-lhe uma bofetada na cara. E garanto que foi uma boa bofetada!

Larry hesitou durante alguns instantes, sorrindo um tanto encabulado.

– Nunca fui do tipo de achar que as mulheres me perseguem, mas ocorreu-me que... pois bem, que Frau Becker estava caída por mim. Não fiquei nada satisfeito. Para começar, ela era muito mais velha do que eu; além do mais, o marido fora muito correto conosco. Era ela quem servia à mesa, e não pude deixar de notar que era mais generosa comigo do que com os outros; pareceu-me também que estava sempre procurando ocasião de ficar a sós comigo. Dirigia-me sorrisos que, creio eu, poderiam ser qualificados de provocantes. Costumava perguntar-me se eu não tinha namorada, dizendo que um rapaz novo como eu deveria sentir falta disso, num lugar daqueles. O senhor sabe como são essas coisas. Eu só tinha três camisas e assim mesmo bem surradas. Certa vez ela me disse que era o cúmulo eu usar aqueles trapos; que as trouxesse, pois ela as consertaria para mim. Ellie ouviu-a e, da próxima vez que nos vimos a sós, disse-me que se eu tivesse alguma coisa para consertar, era só lhe trazer. Respondi que não valia a pena. Um ou dois dias depois notei que minhas meias estavam cerzidas, minhas camisas remendadas e de volta ao banco do paiol onde guardávamos as nossas coisas; mas até hoje não sei a qual das duas devo gratidão. Naturalmente não levei Frau Becker a sério; era uma boa alma e achei que aquilo devia ser apenas instinto maternal da sua parte. Mas certo dia Kosti me disse:

“Escute aqui; não é a mim que ela está querendo; é a você. Não tenho a mínima probabilidade.”

“Não diga tolices”, repliquei. “Ela tem idade bastante para ser minha mãe.”

“E que tem isso? Não faça cerimônia, meu rapaz; eu não sou obstáculo. Talvez ela não seja lá muito moça, mas é bem bonitona.”

“Oh! cale a boca.”

“Por que é que você hesita? Não por minha causa, espero. Sou filósofo e sei que coisa que não falta no mar é peixe. Não a censuro. Você é moço. Também já tive o

– Não me agradou verificar que Kosti tinha tão absoluta certeza daquilo em que eu não queria acreditar. Não sabia bem como agir; lembrei-me então de vários incidentes que no momento não me tinham chamado atenção. Frases ditas por Ellie, às quais eu não dera importância, mas que agora adquiriam significação; não havia dúvida de que também Ellie sabia. Muitas vezes ela aparecia de supetão na cozinha, quando acontecia de Frau Becker e eu estarmos a sós. Fiquei com a impressão de que estava nos espionando.

Não gostei daquilo; pareceu-me que estava querendo apanhar-nos. Eu sabia que ela detestava Frau Becker e que ao menor pretexto armaria um barulho. Naturalmente ela nada poderia descobrir, mas era uma criatura maldosa e eu não sabia que mentiras não iria inventar para envenenar o espírito do velho Becker. Fiquei sem saber o que fazer, a não ser fingir-me de tão ingênuo que não percebia o manejo da mulher. Estava satisfeito na fazenda, gostava do trabalho e não queria partir antes de terminada a colheita.

Não pude deixar de sorrir. Imaginei Larry, de shorts e

camisa remendada, rosto e pescoço queimados pelo sol quente do vale do Reno, corpo delgado e flexível, olhos negros cravados nas órbitas... Não duvidei de que o seu físico tivesse feito palpitar de desejo aquela matrona loura e de seios opulentos.

– Pois bem, passou-se o verão. Trabalhávamos como loucos; cortamos e empilhamos o feno. Depois, quando as cerejas amadureceram, Kosti e eu trepamos em escadas para colhê-las; as mulheres recolhiam nas cestas que o velho Becker ia vender em Zwingenberg. Depois cortamos o centeio. E, naturalmente, ainda tínhamos que tratar dos animais. Estávamos de pé antes do amanhecer e só parávamos com o cair da noite. Julguei que Frau Becker houvesse desistido da conquista; eu fazia o possível, sem ofendê-la, para conservá-la a distância. À noite eu tinha sono demais para querer estudar alemão, de modo que logo depois da ceia fugia para o paiol e caía na cama. Em geral Kosti e Becker iam à taverna, mas eu estava ferrado no sono quando Kosti voltava. Fazia calor no paiol e eu dormia nu.

Certa noite acordei. No primeiro momento não atinei com o que era; eu estava ainda meio adormecido. Senti uma mão quente na minha boca e percebi que havia alguém na cama comigo. Afastei com força a mão, mas uma boca se colou à minha, dois braços me enlaçaram e senti os pesados seios de Frau Becker contra o meu corpo.

“Sei still”, murmurou ela. “Fique quieto.”

– Ela me apertou, beijou-me o rosto com lábios quentes e carnudos, suas mãos desceram pelo meu corpo e suas pernas se entrelaçaram com as minhas.

Larry fez uma pausa. Não pude deixar de rir.

– E o que fez você?

Ele me atirou um sorriso modesto. Chegou mesmo a corar.

– Que podia eu fazer? Eu ouvia a respiração pesada de Kosti na cama pegada à minha. A situação de José sempre me pareceu um tanto ridícula. Eu tinha apenas vinte e três anos. Não podia fazer um escândalo e expulsá-la dali. Não quis ofendê-la. Fiz o que se esperava de mim.

Depois ela escorregou da cama e saiu do paiol na ponta dos pés. Garanto-lhe que suspirei de alívio. Sabe, eu tivera medo. “Céus, que perigo!”, pensei. Provavelmente Becker chegara completamente embriagado, tendo caído numa espécie de torpor; mas eles dormiam na mesma cama e existia a possibilidade de o velho acordar e ver que a mulher não estava a seu lado. E ainda havia Ellie. Ela sempre dizia que não dormia bem. Se estivesse acordada, poderia ter ouvido Frau Becker descer a escada e sair de casa. Subitamente, lembrei-me de uma coisa. Quando Frau Becker estivera na cama comigo, eu sentira um frio de metal contra a minha pele. Não prestara atenção a isso; como você sabe, a gente não liga a nada em tais circunstâncias, e nunca me passara pela cabeça procurar saber que diabo de coisa era aquela. Mas agora se tinha feito luz no meu espírito. Eu estava sentado na beira da cama, refletindo e preocupando-me com as consequências, e tão grande foi o meu choque que me pus de pé. A peça de metal era a medalha de identificação do marido de Ellie, que ela usava em volta do pulso, e não fora Frau Becker que se deitara comigo. Fora Ellie.

Ri a bandeiras despregadas. Não pude conter-me.

– Pode ser engraçado para os outros – disse Larry. – Mas não foi nada engraçado para mim.

– Pois bem, agora que você examina o caso a sangue-frio, não lhe parece que há nele uma nota cômica?

Larry não pôde reprimir um sorriso.

– Talvez. Mas era uma situação embaraçosa. Quais seriam as consequências? Eu não gostava de Ellie. Achava-a mesmo muito pouco simpática.

– Mas como é que você pôde confundi-las?

– Estava escuro como breu. Ela não disse uma palavra, a não ser para me recomendar que ficasse de bico calado. Ambas eram mulheres altas e robustas. Eu andava desconfiado de que Frau Becker estava de olho em mim. Nem por sombras me ocorrera que Ellie me desse confiança, pois estava sempre pensando no marido. Acendi um cigarro e refleti sobre a situação; quanto mais refletia, menos ela me agradava. Pareceu-me que a melhor coisa a fazer era sumir.

Inúmeras vezes eu amaldiçoara Kosti por ter sono tão pesado.

Quando trabalhávamos na mina, eu tinha que sacudi-lo com toda a força para fazê-lo levantar-se a tempo para o serviço. Mas agora me dei por feliz! Acendi a lamparina, vesti-me, meti minhas coisas no saco – não era muito, de modo que não me levou mais que um minuto – e enfiei os braços nas correias. Atravessei o paiol, só de meias, não calçando os sapatos a não ser quando cheguei embaixo da escada. Soprei então a lamparina. Noite escura, sem lua, mas eu sabia como ganhar a estrada; dali tomei a direção da aldeia.

Caminhei a passos rápidos, pois queria atravessá-la enquanto todos estivessem dormindo. Distava apenas doze milhas de Zwingenberg, e lá cheguei justamente quando a cidade começava a despertar. Nunca me esquecerei daquela caminhada. Silêncio absoluto, a não ser pelo som dos meus passos na estrada, e de vez em quando o canto de um galo numa fazenda. E então, aquela luz acinzentada, quando já não é mais noite e ainda não está claro; os primeiros sintomas da madrugada, o nascer do sol, os pássaros começando a cantar; e aquela luxuriante paisagem verde, prados, bosques, e nos campos o centeio de um ouro-prateado, à fria luz do novo dia...

Tomei uma xícara de café com pão em Zwingenberg; fui depois ao correio e telegrafei para o American Express, pedindo que mandassem minhas roupas e meus livros para Bonn.

– Por que Bonn? – interrompi.

– Eu simpatizara com a cidade quando ali paramos, na nossa descida pelo Reno. Gostei do reflexo da luz sobre os telhados e o rio, das ruas antigas e estreitas, das vilas, e jardins, e avenidas de castanheiros, e dos edifícios rococós da universidade. Ocorreu-me, na ocasião, que não seria mau lugar para a gente ali passar uns tempos. Mas achei preferível tornar-me mais apresentável antes de surgir por lá; eu parecia um vagabundo e, se fosse procurar lugar numa pensão, não inspiraria muita confiança. Tomei, portanto, o trem para Frankfurt e ali comprei uma maleta e algumas roupas. Fiquei um ano em Bonn.

– E tirou algum proveito da sua experiência, na mina, digo, e na fazenda?

– Tirei – respondeu Larry inclinando a cabeça e sorrindo.

Mas não me disse qual fora, e naquela ocasião eu já o conhecia bastante para saber que, quando queria contar uma coisa, contava-a, mas, quando não estava disposto a isso aparava as perguntas com calmos gracejos que tornavam inútil a insistência. Preciso, no entanto, lembrar ao leitor que Larry me narrou tudo isto dez anos mais tarde. Até então, até estar de novo em contato com ele, eu não tinha a menor ideia do seu paradeiro ou do que andara fazendo. Era mesmo possível que tivesse morrido. A não ser por minha amizade com Elliott, que me punha a par da vida de Isabel, e me fazia, portanto, lembrar de Larry, provavelmente eu teria me esquecido da sua existência.


3

Isabel casou-se com Gray Maturin em princípios de junho do ano seguinte àquele em que desmanchou o seu noivado com Larry. Embora Elliott achasse detestável sair de Paris quando a estação estava no auge, tendo portanto que perder inúmeras festas elegantíssimas, seu instinto de família era muito forte para permitir-lhe que deixasse de cumprir aquilo que considerava um dever social. Os irmãos de Isabel não podiam abandonar seus postos, em lugares tão remotos, de modo que ele se viu obrigado a fazer a penosa viagem a Chicago, para levar a noiva ao altar. Lembrando-se de que os aristocratas franceses tinham ido para a guilhotina nos seus trajes mais esplendorosos, foi especialmente a Londres para comprar um novo fraque, um colete cinza, transpassado, e um chapéu de seda. Quando voltou para Paris, convidou-me para ir inspecionar essas elegâncias. Estava um tanto preocupado, pois o alfinete de pérola cinza que ele geralmente usava não iria fazer vista contra a gravata cinzento-clara, que achava apropriada para a festiva solenidade. Lembrei-lhe o seu alfinete de esmeralda e brilhante.

– Se eu fosse um convidado... está certo – disse ele.

– Mas, na posição que vou ocupar, sinto que a pérola é indicada.

Estava muito satisfeito com o casamento, tão de acordo com suas ideias convencionais, e se referia a ele com a untuosidade de uma duquesa-mãe que desse opinião sobre as vantagens de uma união entre um rebento dos La Rochefoucauld e uma filha dos Montmorency. Sem medir despesas e como sinal evidente de sua aprovação, ia levando como presente de casamento um belo retrato, por Nattier, de uma princesa real da França.

Parece que Henry Maturin comprara para o jovem par uma casa em Astor Street, para que eles ficassem perto de mrs. Bradley e não muito longe do seu palácio em Lake Shore Drive. Por uma feliz coincidência, em que suspeitei da cumplicidade de Elliott, Gregory Brabazon se achava em Chicago na ocasião da compra e a decoração da casa lhe foi confiada. Ao voltar para a Europa, tendo desistido por completo da estação em Paris e indo diretamente para Londres, Elliott trouxe várias fotografias. Brabazon se lançara a todo pano. Nas salas de visitas e de jantar ele se limitara exclusivamente ao estilo George ii, e com amplo êxito. Quanto à biblioteca, aposento reservado a Gray, ele se inspirara numa sala do Palácio Amalienburg, de Munique; e que, exceto pelo inconveniente de ali não haver lugar para livros, ficara perfeita. A não ser pelas camas gêmeas, Luís xv em visita a madame de Pompadour se teria sentido perfeitamente à vontade no quarto que Brabazon decorara para o jovem casal; mas o banheiro de Isabel o teria deixado embasbacado: todo de espelhos – paredes, teto e banheira –, e nas paredes peixes prateados, em profusão, brincavam no meio de douradas plantas aquáticas.

– É, naturalmente, uma casa pequena – disse Elliott. – Mas Henry Maturin me contou que a decoração lhe custou nada menos que cem mil dólares. Uma fortuna para muita gente.

A cerimônia foi feita com a maior pompa que a Igreja Episcopal permitia.

– Em nada comparável a um casamento em Notre-Dame – disse-me Elliott em tom benevolente. – Mas, para um casamento protestante, não deixou de ser correto.

A imprensa se mantivera à altura; com ar despreocupado Elliott me atirou os recortes. Mostrou-me também fotografias de Isabel, pesadona, mas bonita no seu vestido de noiva; e Gray, maciço, mas belo rapaz, não parecendo muito à vontade nos trajes próprios para a ocasião. Havia um grupo dos noivos com as damas de honra; outro com mrs. Bradley num suntuoso vestido e Elliott segurando o seu chapéu de seda com uma graça que só mesmo ele sabia ter. Perguntei-lhe como ia indo mrs. Bradley.

– Emagreceu muito, e não gostei nada da sua cor, mas vai indo bem. Tudo isso, naturalmente, foi um esforço para ela, mas agora poderá descansar tranquilamente.

Um ano mais tarde Isabel teve uma filha a quem, de acordo com a moda da época, deu o nome de Joan; dali a dois anos teve outra filha, que, também para acompanhar a moda, se chamou Priscilla.

Um dos sócios de Henry Maturin morreu e os outros, sob pressão, se retiraram da firma, de modo que ele ficou sendo o único dono de um negócio que sempre administrara despoticamente. Viu então realizada a maior ambição de sua vida, que era admitir Gray como sócio. Nunca a firma estivera tão florescente.

– Estão ganhando dinheiro a rodo, caro amigo – contou-me Elliott. – Imagine você, com vinte e cinco anos de idade Gray está ganhando cinquenta mil dólares por ano, e isso é apenas o começo. Os recursos da América são inesgotáveis. Não se trata de falsa prosperidade, é apenas o desenvolvimento natural de uma grande nação.

Seu peito se encheu de exagerado patriotismo.

– Henry Maturin não viverá eternamente; ele tem pressão muito alta, você sabe. Quando chegar aos quarenta anos, provavelmente Gray terá uma fortuna de vinte milhões de dólares. Principesco, caro amigo, principesco.

Elliott mantinha regular correspondência com a irmã; de vez em quando, à medida que os anos iam passando, me contava as notícias que mrs. Bradley lhe dava. Gray e Isabel eram muito felizes, as crianças uns amores. Viviam num estilo que com prazer Elliott reconhecia ser o apropriado; recebiam muito e saíam muito. Foi com visível satisfação que ele me contou que Isabel e Gray não tinham jantado sós num espaço de três meses. A corrente de divertimentos foi interrompida pela morte de mrs. Maturin, aquela senhora apagada e de boa família, com quem Henry Maturin se casara pelas suas ótimas relações, quando estava procurando vencer na cidade aonde seu pai chegara como matuto. Em respeito à sua memória, durante um ano o jovem par nunca recebeu, para jantar, mais que seis pessoas de uma vez.

– Sempre achei que oito era o número ideal – disse Elliott, resolvido a encarar o lado bom das coisas. – É suficientemente íntimo para permitir uma conversa geral, e bastante grande para dar impressão de uma reunião.

Gray era generosíssimo com a esposa. No nascimento da primeira filha deu-lhe um brilhante quadrado e no da segunda um casaco de vison. Andava muito ocupado para poder sair de Chicago, mas, quando podia sair de férias, iam para a importante mansão de Henry Maturin, em Marvin. Henry não podia negar coisa alguma ao filho adorado, e em certo Natal presenteou-o com uma plantação na Carolina do Sul, para que ali pudesse caçar patos, na estação propícia.

– Claro que nossos reis do comércio correspondem aos grandes patronos das artes da Renascença italiana, que fizeram fortuna no comércio – disse-me Elliott. – Os Medici, por exemplo. Houve dois reis franceses que não se julgaram diminuídos por casar com filhas dessa ilustre família, e vejo o dia em que as cabeças coroadas da Europa procurarão a mão das nossas princesas dos dólares. Que foi mesmo que Shelley disse? A grande idade recomeça agora, voltam os anos de ouro.

Durante tantos anos zelara Henry Maturin pelos interesses de mrs. Bradley e Elliott, que estes tinham imensa confiança no seu critério. Maturin nunca fora a favor de especulações e empregara o dinheiro deles em títulos seguros; mas, com a valorização, os dois irmãos viram suas fortunas, relativamente modestas, aumentadas de uma maneira que os deixou surpresos e encantados. Elliott contou-me que, sem que ele tivesse mexido uma palha, de 1918 a 1926 sua fortuna duplicara. Estava agora com sessenta e cinco anos, tinha cabelos grisalhos, rosto enrugado e olhos empapuçados, mas mesmo assim suportava com galhardia o peso dos anos; era magro e mantinha-se mais teso do que nunca; sempre fora moderado e cuidara do físico. Enquanto pudesse fazer seus ternos no melhor alfaiate de Londres, entregar-se aos cuidados do seu barbeiro particular, e de uma massagista que vinha todas as manhãs ajudá-lo a manter em perfeitas condições o corpo esbelto, Elliott não tinha a menor intenção de submeter-se aos estragos do tempo. Havia muito se esquecera que houvera época em que se rebaixara a ponto de negociar; e por meias palavras, pois não sendo idiota não ia dizer uma flagrante mentira, dava a entender que na mocidade fizera parte do corpo diplomático. Confesso que, se algum dia eu houvesse de pintar o retrato de um embaixador, teria sem hesitação escolhido Elliott para modelo. Mas as coisas estavam mudando. As grandes damas que o tinham auxiliado na sua carreira estavam ou mortas ou em idade avançada. As nobres inglesas, tendo perdido os maridos, viam-se obrigadas a entregar suas mansões às noras, retirando-se para vilas em Cheltenham ou modestas casas em Regent Park. Stafford House foi transformada em museu, Curzon House tornou-se o centro de uma organização, Devonshire House foi posta à venda. O iate onde Elliott costumava ficar quando ia a Cowes mudara de dono. As pessoas elegantes que atualmente ocupavam o centro do palco pouco se importavam com o homem idoso que Elliott era agora. Achavam-no cansativo e ridículo. Ainda compareciam de boa vontade aos seus complicados almoços, no Claridge, mas Elliott era bastante perspicaz para perceber que vinham mais por causa uns dos outros do que para vê-lo. Agora já ele não podia escolher à vontade entre os convites que antigamente lhe abarrotavam a escrivaninha e, mais frequentemente do que desejaria que se soubesse, sofria a humilhação de jantar sozinho na intimidade do seu apartamento. As senhoras da alta roda, na Inglaterra, quando devido a algum escândalo lhes veem fechadas as portas da sociedade, começam a interessar-se por arte e artistas, cercando-se de pintores, escritores, músicos. Elliott era por demais orgulhoso para sujeitar-se a tal humilhação.

– Os impostos de transmissão causa mortis e os aproveitadores da guerra estragaram a sociedade inglesa – disse-me ele. – Hoje ninguém mais faz questão de escolher suas relações. Londres ainda tem seus alfaiates, sapateiros e chapeleiros, e espero que durem enquanto eu durar; mas, fora disso, não vale mais nada. Meu caro amigo, imagine que a mesa dos St. Erth é agora servida por mulheres.

Elliott fez esses comentários quando nos afastávamos do Carlton House Terrace, após um almoço onde se dera um desagradável incidente. O nobre que nos convidara possuía uma boa coleção de quadros, e um americano chamado Paul Barton, que lá ia pela primeira vez, manifestou desejo de conhecê-la.

– O senhor tem um Ticiano, não tem?

– Tínhamos. Está agora na América. Um judeu qualquer nos ofereceu por ele um bom dinheiro e, como estávamos apertados na ocasião, o velho vendeu-o.

Notei que Elliott, todo eriçado, atirou um olhar venenoso ao jovial marquês, e adivinhei que fora ele quem comprara o quadro. Ficou furioso por se ver assim descrito, ele, um virginiano e descendente de um dos signatários da Declaração da Independência. Jamais sofrera igual afronta. E o pior era que detestava Paul Barton. O rapaz aparecera em Londres logo depois da guerra; tinha vinte e três anos, era louro, bonito e simpático, dançava admiravelmente e tinha ampla fortuna. Viera recomendado a Elliott e este, com sua bondade natural, o apresentara a vários amigos. Não satisfeito com isso, dera-lhe alguns valiosos conselhos sobre conduta. Baseando-se em sua própria experiência, deu-lhe a entender que, com pequenas gentilezas a senhoras idosas, e dando ouvidos a homens de destaque, por mais tediosos que fossem, não seria difícil a um estranho introduzir-se na sociedade.

Mas o mundo que aguardava Paul Barton era muito diferente daquele onde, uma geração antes, Elliott Templeton penetrara à custa de incrível perseverança. Era um mundo que só pensava em divertir-se. O gênio alegre de Paul Barton, seu físico agradável e maneiras insinuantes fizeram por ele em algumas semanas o que Elliott só conseguira com anos de persistência e força de vontade. Logo já ele não precisou do auxílio de Elliott e pouco fez para esconder esse fato. Tratava-o amavelmente, quando se encontravam, mas de uma maneira distante que ofendia profundamente o homem idoso. Elliott não escolhia seus convidados por simpatia, e sim visando ao sucesso da reunião; como Paul Barton era muito popular, continuou a convidá-lo a um ou outro dos seus almoços semanais, mas o afortunado rapazinho em geral estava comprometido e por duas vezes deixou Elliott na mão à última hora. Elliott fizera isto muitas vezes para não desconfiar que o outro recebera convite mais tentador.

– Você não é obrigado a acreditar, mas juro que agora, quando nos encontramos, é ele quem toma ares protetores para comigo – disse-me Elliott, fulo de raiva. – comigo. Ticiano. Ticiano – gaguejou ele. – Garanto que se visse um Ticiano não saberia reconhecê-lo.

Eu nunca vira Elliott tão encolerizado e calculei que talvez fosse por acreditar que Paul Barton perguntara sobre o quadro por maldade, tendo chegado a saber que fora comprado por Elliott, e pretendendo divertir-se à custa dele, quando contasse o caso e a resposta do marquês.

– Ele não passa de um esnobezinho indecente, e se há coisa que detesto no mundo é o esnobismo. Se não fosse por mim, não teria dado um passo. Talvez você não acredite, mas o pai dele fabricava móveis de escritório. Móveis de escritório! – Elliott conseguiu pôr um causticante desprezo nessas três palavras. – E quando digo que ele nem existe na América, que sua origem não podia ser mais humilde, ninguém parece dar a isso a mínima importância. Ouça o que lhe digo, meu caro; a sociedade inglesa exalou o seu último suspiro.

E nem Elliott achava a França em melhores condições. Ali, as nobres damas do seu tempo que ainda viviam tinham-se dedicado ao bridge (jogo que ele abominava), a obras de caridade e à educação dos netos. As imponentes mansões da aristocracia eram agora habitadas por industriais, argentinos, chilenos e senhoras americanas separadas dos maridos, que recebiam muito e com grande pompa; mas nas suas festas Elliott tinha a surpresa de encontrar políticos que falavam o francês com pronúncia vulgar, jornalistas que não sabiam comportar-se à mesa, e até mesmo atores. Rebentos de famílias reais não se envergonhavam de casar com filhas de negociantes. Inegavelmente Paris era uma cidade alegre, mas com que falsa alegria! Na sua insaciável sede de gozo, os moços não achavam nada mais divertido do que correr de um abafado cabaré a outro, tomando champanhe a cem francos a garrafa, e dançando, até cinco da madrugada, lado a lado com a ralé. A fumaça, o calor, o barulho davam dor de cabeça a Elliott. Não era esta a Paris que trinta anos antes ele aceitara como sua morada espiritual. Não era esta a Paris para onde os bons americanos iam quando morriam.


4

Mas Elliott tinha faro. Uma voz íntima sussurrou-lhe que a Riviera ia tornar-se novamente o ponto de reunião dos nobres e dos elegantes. Conhecia bem o litoral; várias vezes, ao voltar de Roma onde fora cumprir seus deveres na corte pontifícia, passara alguns dias em Monte Carlo, ou em Cannes, na vila de um ou outro dos seus amigos. Mas isso fora no inverno, e ultimamente os murmúrios indicavam que estava sendo procurada para lugar de veraneio. Os grandes hotéis conservavam-se abertos; os nomes dos veranistas apareceram nas colunas sociais do Herald de Paris e Elliott leu os conhecidos nomes com ar de aprovação.

– Estou cansado do mundo – disse ele. – Cheguei a uma época da vida em que meu desejo é apreciar os encantos da natureza.

Talvez a observação pareça obscura. Mas não o é. Elliott sempre considerara a natureza um empecilho à vida social, e não tinha muita paciência com as pessoas que se davam ao trabalho de ir ver um lago, ou uma montanha, quando tinham diante dos olhos uma cômoda da Regência ou um quadro de Watteau. Naquela ocasião ele podia dispor de uma grande quantia. Atiçado por Gray e exasperado por ver seus amigos fazerem, na Bolsa, fortunas da noite para o dia, Henry Maturin finalmente se deixara arrastar pela corrente, e, abandonando pouco a pouco seus métodos conservadores, não vira motivo para não se aproveitar também da situação. Escreveu a Elliott, dizendo que como sempre continuava avesso a jogatinas, mas que aquilo não era especulação e sim uma prova da confiança que tinha nos inesgotáveis recursos do país. Seu otimismo tinha por base o bom senso. Ele não via obstáculo ao progresso da América. Terminava dizendo que comprara para Louisa Bradley, depositando margem, um certo número de títulos seguros, e que tinha o prazer de participar a Elliott que ela estava com um lucro de vinte mil dólares. Finalmente, se Elliott quisesse ganhar dinheiro e lhe permitisse seguir o seu critério, tinha ele quase certeza de que não o decepcionaria. Inclinado a usar as mais surradas citações, Elliott disse que tinha forças para resistir a tudo, menos à tentação; como consequência disso, quando lhe traziam o Herald, ao café da manhã, em vez de olhar a coluna social, hábito de tantos anos, concentrava toda a sua atenção nas cotações da Bolsa. Tão bom resultado tiveram as transações de Henry Maturin em seu favor que Elliott se via agora com a bela quantia de cinquenta mil dólares, que nada fizera para ganhar.

Decidiu liquidar, e com o lucro comprar uma casa na Riviera. Como retiro do mundo, escolheu Antibes, que ficava em posição estratégica entre Cannes e Monte Carlo, sendo acessível a essas duas cidades; mas é impossível dizer-se se foi a mão da Providência ou o seu instinto seguro que determinou a escolha de um lugar que logo se tornaria o centro da moda. Morar numa vila com jardim era de uma vulgaridade suburbana que repugnava ao seu exigente paladar; assim sendo, Elliott comprou duas casas dando para o mar, na parte velha da cidade, demoliu-as e construiu uma só, ali instalando aquecimento central, banheiros e todas as comodidades sanitárias que o exemplo americano impusera a um recalcitrante continente. A grande moda naquela época era decapé e, portanto, ele mobiliou a casa com móveis em estilo provençal, onde foi antes, devidamente, feito o serviço de decapé; além disso, cedeu discretamente ao modernismo escolhendo tecidos da atualidade. Tinha ainda má vontade em aceitar pintores como Picasso e Braque – “horrores, caro amigo, horrores!” –, de quem entusiastas mal orientados faziam muita propaganda, mas finalmente se achara no direito de estender sua proteção aos impressionistas, e nas paredes de sua casa se viam quadros bem bonitos. Lembro-me de um Monet, de algumas pessoas remando num rio; um Pissarro, de um trecho do cais e uma ponte do Sena; de uma paisagem do Taiti, de Gauguin; e de um encantador Renoir, uma moça de perfil com longos cabelos louros soltos nas costas. Depois de pronta, a casa ficou alegre, fresca, original; e simples, também, com aquela simplicidade que a gente sabe que só pode ser adquirida à custa de muito dinheiro.

Começou então o período de maior esplendor da vida de Elliott. Ele trouxe de Paris o seu excelente cozinheiro, e logo foi devidamente reconhecido que ele tinha a melhor mesa da Riviera. Vestiu de branco o mordomo e o lacaio, com galões dourados nos ombros. Recebia com uma magnificência que jamais ultrapassou os limites do bom gosto. O litoral do Mediterrâneo estava repleto de nobres de todas as partes da Europa, alguns atraídos pelo clima; outros em exílio; outros porque um passado escandaloso ou casamento desigual tornava preferível a existência no estrangeiro. Havia Rumanoffs da Rússia, Habsburgos da Áustria, Bourbons da Espanha, das duas Sicílias e Parma; havia príncipes da Casa de Windsor e príncipes da Casa de Bragança; Altezas da Suécia e Altezas da Grécia; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Havia príncipes e princesas não de sangue real, duques e duquesas, marqueses e marquesas da Áustria, Itália, Espanha, Rússia e Bélgica; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. No inverno, o rei da Suécia e o rei da Dinamarca vieram passar uns tempos no litoral; de vez em quando Afonso da Espanha aparecia para uma rápida visita; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Nunca me cansei de admirar, quando com graça cortesã ele se curvava diante daqueles augustos personagens, da maneira com que conseguia manter a atitude independente de cidadão de um país onde dizem que todos os homens são iguais.

Depois de ter viajado durante alguns anos, eu comprara uma casa em Cap Ferrat e, portanto, via Elliott frequentemente. Tão alto subira eu no seu conceito que muitas vezes ele me convidava às suas mais pomposas reuniões.

– É um favor que me faz, caro amigo – dizia ele. – Garanto-lhe que, tanto quanto você, sei que os nobres estragam uma reunião. Mas as outras pessoas gostam de encontrá-los e acho que a gente tem obrigação de dar um pouco de atenção aos pobres coitados. Se bem que só Deus sabe que não são merecedores! São as pessoas mais ingratas deste mundo; usam e abusam da gente e, quando acham que não temos mais serventia, empurram-nos para um lado como um trapo; aceitam inúmeros favores, mas nenhum deles se daria ao trabalho de atravessar a rua para em troca nos fazer uma gentileza.

Elliott se esforçava por ficar de bem com as autoridades locais; o prefeito do distrito, assim como o bispo da diocese e o vigário-geral muitas vezes honravam a sua mesa. Antes de se ordenar, o bispo fora oficial de cavalaria e na guerra comandara um regimento. Homem atarracado, rubicundo, que fazia questão de usar a linguagem rude da caserna; seu austero e cadavérico vigário-geral estava sempre em palpos de aranha, tal o medo de que ele dissesse alguma coisa escabrosa. Ouvia com um sorriso súplice, quando seu superior contava alguma das suas histórias prediletas. Mas o bispo dirigia a diocese com grande competência, e sua eloquência no púlpito só podia ser comparada ao espírito dos seus ditos à mesa. Ele apreciava Elliott pela generosidade de suas contribuições para a Igreja, e gostava dele pela sua amabilidade e bons almoços que proporcionava; os dois tornaram-se grandes amigos. Elliott podia congratular-se por estar assim cuidando ao mesmo tempo deste mundo e do outro; e, se me é permitida uma observação, ia conseguindo um arranjo muito satisfatório entre Deus e Mamon.

Elliott sabia apreciar o que era seu, e estava aflito para mostrar a casa nova à irmã; sempre notara nela certa reserva, e queria que mrs. Bradley visse em que estilo vivia ele agora e que roda frequentava. Isso poria ponto final às suas hesitações; ela teria que concordar que ele vencera. Escreveu-lhe, portanto, convidando-a para vir com Gray e Isabel, não para a casa dele, pois não tinha acomodações, mas para se hospedarem, como seus convidados, no vizinho Hôtel du Capo. Mrs. Bradley replicou que seus dias de viagem estavam findos, pois sua saúde não era boa e ela se sentia melhor em casa; além do mais, Gray não poderia ausentar-se de Chicago, pois os negócios estavam florescendo e ele ganhando muito dinheiro, tendo que ficar ali à mão. Elliott era afeiçoado à irmã e a carta o alarmou. Escreveu a Isabel sobre isso. Ela respondeu por cabograma que, embora sua mãe não andasse nada boa, tendo que ficar de cama um dia por semana, nem por isso estava em perigo de vida, podendo mesmo, com cuidado, durar ainda muito tempo; mas Gray precisava de descanso, e, com o pai a cuidar dos negócios, não havia motivo para que ele não tirasse umas férias. Assim sendo, não neste verão, mas no próximo, ela e Gray lhe aceitariam o convite.

No dia 23 de outubro de 1929 deu-se o pânico na Bolsa de Nova York.


5

Estava eu em Londres, nessa época, e a princípio ninguém na Inglaterra compreendeu a gravidade da situação nem como seriam funestas as consequências. Quanto a mim, embora pesaroso pelo prejuízo de enorme quantia, perdi na realidade lucros realizados no papel; assim sendo, quando a coisa serenou vi que, em dinheiro, eu não estava muito mais pobre do que antes. Sabia que Elliott andara jogando pesadamente e temi que tivesse sofrido enorme perda, mas só o vi no Natal quando fomos ambos para a Riviera. Ele me contou então que Henry Maturin morrera e Gray estava arruinado.

Pouco entendo de negócios e é possível que minha relação dos acontecimentos, como me foram contados por Elliott, pareça confusa. Pelo que pude compreender, a catástrofe que se abatera sobre a firma fora causada em parte pela teimosia de Henry Maturin e em parte pela precipitação de Gray. A princípio Henry Maturin não quisera acreditar que a baixa fosse séria, convencido de que se tratava de uma conspiração por parte dos corretores de Nova York, para passarem a perna nos seus colegas provincianos; assim sendo, ficara firme e começara a desembolsar dinheiro para sustentar o mercado. Vociferava contra os corretores de Chicago, que se deixavam atemorizar por aqueles canalhas de Nova York. Sempre se vangloriara de que seus clientes modestos, viúvas com renda certa, oficiais aposentados etc., jamais tinham perdido por lhe seguir os conselhos; e agora, em vez de permitir que cada um arcasse com seus prejuízos, ele completava as margens com sua fortuna particular. Dizia que estava disposto a aceitar a ruína, que poderia fazer depois nova fortuna, mas que, se permitisse que os coitados que haviam confiado nele perdessem tudo o que tinham, nunca mais poderia andar de cabeça erguida. Pensava que estava sendo magnânimo, mas na realidade estava apenas sendo vaidoso. Sua imensa fortuna evaporou-se e certa noite ele teve um ataque de coração. Estava com mais de sessenta anos, e sempre trabalhara com afinco, jogara muito, comera demais e bebera em excesso; após algumas horas de agonia, morreu de trombose coronária. Gray ficou só para enfrentar a situação. Também ele especulara grandemente pelo seu lado, sem o conhecimento do pai, e estava em grandes dificuldades. Seus esforços para salvar-se falharam. Os bancos não lhe faziam empréstimos; homens mais velhos, na Bolsa, disseram-lhe que a única coisa a fazer era entregar os pontos. Não estou muito certo quanto ao resto da história. Não conseguindo saldar seus compromissos ele foi, creio eu, declarado falido; já hipotecara sua casa e sentiu alívio em entregá-la aos credores; a casa de seu pai, em Lake Shore Drive, e a de Marvin foram vendidas pelo que puderam alcançar; Isabel vendeu suas joias. Tudo que lhe restou foi a plantação na Carolina do Sul, que estava em nome de Isabel, mas para a qual não foi possível encontrar comprador. Gray ficou limpo.

– E quanto a você, Elliott? – perguntei.

– Oh! não me queixo – respondeu ele despreocupadamente. – Deus dá o frio conforme a coberta.

Não insisti, pois nada tinha com sua situação financeira, mas, fossem quais fossem os prejuízos, achei que ele devia ter sofrido como todos nós.

A princípio a depressão não atingiu em cheio a Riviera. Ouvi falar de duas ou três pessoas que tinham tido grandes prejuízos, muitas vilas ficaram fechadas durante o inverno e outras foram postas à venda. Os hotéis estavam vazios e a gerência do Cassino de Monte Cado queixou-se da pobreza do movimento. Mas foi somente dali a dois anos que se compreendeu a extensão do desastre. Um corretor de imóveis contou-me que, na faixa de litoral que ia de Toulon à fronteira italiana, havia quarenta e oito mil propriedades, grandes e pequenas, à venda. As ações do Cassino caíram repentinamente. Os grandes hotéis baixaram seus preços, numa vã tentativa de atrair. Os únicos estrangeiros que se viam eram aqueles que tinham sido sempre tão pobres que não podiam ficar mais pobres, e que não gastavam porque não tinham o que gastar. Os lojistas desesperavam-se. Mas Elliott não somente não despediu nenhum dos seus empregados, como também não lhes diminuiu o ordenado, como muitos haviam feito; continuou a oferecer, aos nobres e aos de sangue real, lautos jantares regados a bons vinhos. Comprou um vasto carro novo, importado da América e sobre o qual teve que pagar pesados direitos alfandegários. Contribuiu, generosamente, para as obras de caridade que o bispo organizara para distribuir comida grátis aos desempregados. Em resumo, vivia como se não houvesse crise e metade do mundo não estivesse a sofrer as consequências.

Descobri por acaso a razão disso. Elliott já não ia à Inglaterra, a não ser por quinze dias ao ano, para comprar suas roupas, mas conservava o hábito de transferir sua residência para o apartamento de Paris durante três meses, no outono, e em maio e junho, época em que seus amigos abandonavam a Riviera. Era aqui que gostava de passar o verão, em parte por causa dos banhos, mas principalmente, pelo menos assim o julgo eu, porque os dias quentes lhe permitiam satisfazer o gosto que tinha pelas vestimentas alegres, que sua dignidade até então não lhe permitira usar. Ele apareceria com calças de cores surpreendentes, vermelhas, azuis, verdes ou amarelas, usando camisas de tons contrastantes – lilás, violeta, castanho-escuro – ou mesmo axadrezadas; e, com o modesto sorriso da atriz a quem dizem que representou um novo papel divinamente, aceitaria os parabéns que seus trajes estavam a exigir.

Aconteceu que passei um dia em Paris, na primavera, antes de voltar para Cap Ferrat, e convidei Elliott para almoçar comigo. Encontramo-nos no bar do Ritz, não mais repleto de estudantes que vinham da América para se divertir, mas deserto como um teatro após a estreia de uma peça que fracassou. Tomamos um coquetel, hábito transatlântico com o qual Elliott finalmente se conformara, e encomendamos o almoço. Quando acabamos ele propôs um giro pelos antiquários; respondi que, embora não tivesse dinheiro para gastar, teria muito prazer em acompanhá-lo. Atravessamos a Place Vendôme e ele me perguntou se eu me importava de dar com ele um pulinho até Charvet; tinha encomendado umas roupas e desejava saber se estavam prontas. Pareceu-me que encomendara umas camisas e umas cuecas e nelas mandara bordar suas iniciais. As camisas ainda não haviam chegado, mas as cuecas estavam ali, e o caixeiro perguntou-lhe se gostaria de vê-las.

– Gostaria, sim – respondeu Elliott. Depois que o homem se afastou ele virou-se para mim e acrecentou: – Mandei fazê-las, sob encomenda, de acordo com um modelo que eu mesmo imaginei.

Vieram as cuecas e, a não ser pelo fato de serem de seda, pareceram-me idênticas às que eu costumava comprar em Macy; mas o que me chamou atenção foi uma coroa de conde sobre as iniciais E. T. Não fiz, porém, o mínimo comentário.

– Ótimas, ótimas – declarou Elliott. – Pois bem, quando as camisas estiverem prontas, faça o favor de me mandar tudo junto.

Saímos da loja e, enquanto caminhávamos, Elliott virou-se para mim, sorrindo:

– Você reparou na coroa? Para ser franco, tinha-me esquecido disso quando o convidei para vir comigo até Charvet. Não sei se já tive ocasião de lhe contar que Sua Santidade houve por bem ressuscitar em meu favor o nosso velho título de família.

– Seu o quê? – exclamei, o espanto fazendo-me esquecer a polidez.

Elliott ergueu as sobrancelhas em ar desaprovador.

– Você não sabia? Descendo, pelo lado materno, do conde de Lauria que veio para a Inglaterra na comitiva de Filipe ii, casando-se com uma dama de honra da rainha Maria.

– Nossa velha amiga Maria, a Sanguinária?

– Parece-me que é assim que a chamam os hereges – replicou Elliott secamente. – Creio que nunca lhe contei que passei o mês de setembro de 29 em Roma. Achei enfadonho ter que ir, pois Roma está vazia nessa ocasião; mas foi para mim uma sorte ter o sentimento do dever prevalecido sobre o meu desejo de divertir-me. Meus amigos do Vaticano avisaram-me que a crise era inevitável e me aconselharam vivamente a vender meus títulos americanos.

A Igreja Católica conta com a sabedoria de vinte séculos, e não hesitei por um momento sequer. Mandei a Henry Maturin um cabograma, dando-lhe instruções para vender tudo e comprar ouro, e um a Louisa, aconselhando-a a fazer o mesmo. Henry mandou-me outro, perguntando se eu enlouquecera e declarando que nada faria até receber confirmação. Foi o que fiz e de maneira peremptória, dizendo-lhe que seguisse minhas instruções e me avisasse assim que as tivesse cumprido. A pobre Louisa não me deu atenção e sofreu as consequências.

– Quer dizer que, quando houve o pânico, você já se tinha defendido direitinho?

– Expressão de gíria, caro amigo, para a qual não vejo necessidade, mas que define bem a situação. Não tive prejuízo algum; ao contrário, pode-se mesmo dizer que ganhei uma bolada. Tempos depois, por uma fração do preço primitivo, pude comprar novamente os meus títulos; e, já que devia isso ao que considero direta intervenção da Providência, achei mais do que justo que, em troca, fizesse também alguma coisa para a Providência.

– E de que maneira você se desempenhou disso?

– Pois bem, você não ignora que o Duce mandou sanear os Pântanos Pontinos, e cheguei a saber que Sua Santidade estava gravemente preocupado com a falta de lugares de oração para os colonos. E, portanto, para encurtar uma longa história, construí uma igrejinha românica, reprodução exata de uma que visitei na Provença, perfeita em todos os detalhes e que, embora seja eu quem o diga, é uma verdadeira joia. Foi consagrada a são Martinho, porque tive a sorte de encontrar um vitral antigo representando são Martinho no ato de rasgar sua capa em duas para dar a metade a um mendigo nu; e, como o simbolismo me pareceu tão adequado, comprei-o e coloquei-o sobre o altar-mor.

Não interrompi Elliott para lhe perguntar que relação via ele entre a célebre ação do santo e a desistência dele, Elliott, de parte do lucro que tivera por vender na hora certa e que, como a comissão de um agente, ele pagava a um poder superior. Mas, para uma pessoa prosaica como eu, muitas vezes o simbolismo é obscuro. Elliott continuou:

– Quando tive a honra de mostrar as fotografias ao Santo Padre, ele condescendeu em dizer-me que de relance podia ver que eu era um homem de gosto impecável, acrescentando ser para ele um prazer encontrar nessa era de perdição uma pessoa que combinava fervor religioso com raros dons artísticos. Uma experiência memorável, caro amigo, uma experiência memorável. Mas ninguém ficou mais admirado do que eu quando, pouco depois, vim a saber que ele houvera por bem conferir-me um título. Como cidadão americano acho mais modesto não usá-lo, a não ser, naturalmente, no Vaticano, e proibi meu criado Joseph de me chamar de monsieur le Comte. Espero que você respeite o meu segredo; não quero que a notícia se espalhe. Mas também não desejo que o Santo Padre julgue que não aprecio a honra que me conferiu, e é puramente em consideração a ele que mandei bordar a coroa na minha roupa de baixo. Não me importo de confessar-lhe, caro amigo, que sinto um modesto orgulho em esconder minha classe sob o simples título de cavalheiro norte-americano.

Separamo-nos, tendo Elliott me dito que viria à Riviera em fins de junho. Mas não veio. Acabara de providenciar a transferência de sua criadagem, de Paris para a Riviera, pretendendo ele viajar tranquilamente de carro, a fim de encontrar tudo em ordem quando chegasse, quando recebeu um cabograma de Isabel avisando que o estado de saúde de sua mãe se agravara. Além de ser afeiçoado à irmã, Elliott tinha, como já disse, um arraigado instinto de família. Tomou em Cherburgo o primeiro vapor, e de Nova York foi para Chicago. Escreveu-me contando que mrs. Bradley estava muito doente e que ele levara um choque ao ver como emagrecera. Talvez ela durasse algumas semanas, ou mesmo meses; em todo caso, cabia-lhe o triste dever de ficar ao lado dela até o fim. Disse que achara o intenso calor mais suportável do que imaginara, mas que a falta de convivência com pessoas com quem pudesse ter afinidade só não lhe pesava pelo fato de não estar no momento em disposição festiva. Ficara decepcionado com a maneira pela qual seus compatriotas haviam reagido contra a depressão; esperara deles maior serenidade na desgraça. Sabendo eu que não há nada mais fácil do que suportar com fortaleza de ânimo os desastres alheios, achei que, mais rico agora do que em qualquer outra época da vida, talvez Elliott não tivesse o direito de se mostrar tão severo. Terminava a carta mandando recados para vários amigos seus, recomendando que eu não esquecesse de explicar a todos a razão pela qual sua casa permanecia fechada no verão.

Dali a um mês e pouco recebi outra carta sua, comunicando-me a morte de mrs. Bradley. Escreveu com sinceridade e emoção. Eu não o teria julgado capaz de se exprimir com tanta dignidade, sentimento e simplicidade, se há muito não tivesse percebido que apesar de seu esnobismo e incrível afetação Elliott era um homem bom, amoroso e sincero. Na carta ele me contou que os negócios de mrs. Bradley não estavam muito em ordem. Seu filho mais velho, diplomata, encarregado de negócios em Tóquio na ausência do embaixador, não pudera, naturalmente, abandonar seu posto. O segundo filho, Templeton, que estivera morando nas Filipinas quando eu conhecera os Bradley, fora, com o tempo, devidamente chamado a Washington e ocupava um posto importante no Departamento de Estado. Viera a Chicago com a esposa, ao ser notificado do estado desesperador de sua mãe, mas vira-se obrigado a voltar para a capital logo depois do enterro. Nestas circunstâncias, Elliott julgava-se na obrigação de ficar na América até que as coisas endireitassem. Mrs. Bradley dividira igualmente a fortuna entre os três filhos, mas parece que seus prejuízos na crise de 29 haviam sido pesadíssimos. Felizmente tinham encontrado comprador para a fazenda de Marvin. Na carta, Elliott dizia “a propriedade rural da cara Louisa”.

“É sempre triste quando uma família tem que dispor de sua morada ancestral”, escreveu-me ele. “Mas ultimamente tenho visto tantas vezes meus amigos ingleses forçados a isso, que acho que Isabel e meus sobrinhos devem aceitar o inevitável com a mesma coragem e resignação que eles demonstraram. Noblesse oblige.”

Tinham também tido a sorte de vender a casa de Chicago. Desde muito havia um projeto de derrubar a fila de casas da qual fazia parte a de mrs. Bradley, para ali construírem um bloco de apartamentos, mas os interessados tinham sido detidos pela teimosia da velha senhora, que queria morrer na casa onde sempre vivera. Nem bem exalara ela o último suspiro, de novo apresentaram uma proposta, que desta vez foi imediatamente aceita. Mas, mesmo assim, Isabel não ficava em boa situação financeira.

Depois do pânico da Bolsa, Gray tentara arranjar colocação, mesmo como empregado no escritório de algum corretor que houvesse sobrevivido à catástrofe, mas os negócios estavam parados. Pediu aos antigos amigos que lhe dessem qualquer serviço, por mais humilde e mal remunerado que fosse, mas nada conseguiu. Os frenéticos esforços que fizera para impedir o desastre, o peso da ansiedade, a humilhação resultaram num esgotamento nervoso e ele começou a ter tremendas dores de cabeça, que durante vinte e quatro horas o deixavam inutilizado e completamente sem forças depois que passavam. Isabel achou que não havia melhor solução do que irem com as crianças para a plantação da Carolina do Sul, até Gray se restabelecer. Nos bons tempos o arroz ali tinha dado cem mil dólares por ano, mas agora não passava de um lugar abandonado e selvagem, que só servia para os esportistas que quisessem caçar patos, e para o qual não se achava comprador. Ali tinham eles vivido desde a crise e para lá pretendiam voltar até que a situação melhorasse e Gray pudesse arranjar emprego.

“Eu não podia consentir numa coisa dessas”, escreveu-me Elliott. “Imagine, caro amigo, eles iriam viver como animais. Isabel sem uma criada, sem governanta para as crianças e com apenas duas negras como pajens. Resolvi, portanto, oferecer-lhes o meu apartamento em Paris e sugeri que ali fiquem até que as coisas mudem neste fantástico país. Fornecerei os empregados; além do mais, a ajudante do meu chefe sabe cozinhar muito bem, de modo que pretendo deixá-la com Isabel e arranjar alguém para substituí-la. Pagarei eu as contas, para que Isabel possa gastar sua pequena renda em vestidos e nos menus plaisirs da família. Isto, naturalmente, significa que terei que passar muito mais tempo na Riviera, e espero, portanto, ter o prazer de vê-lo mais amiúde, caro amigo.

Londres e Paris sendo o que atualmente são, sinto-me realmente mais em casa na Riviera. É o único lugar onde ainda encontro gente que fale a minha língua. Não digo que não vá a Paris de vez em quando, mas não me importarei absolutamente de me hospedar no Ritz. É com satisfação que lhe participo que finalmente convenci Gray e Isabel a acederem aos meus desejos, e pretendo levá-los comigo assim que os necessários preparativos estiverem terminados. A mobília e os quadros (insignificantes, meu caro, e da mais duvidosa autenticidade!) serão vendidos daqui a quinze dias. Neste meio-tempo, como achei que lhes seria penoso continuar a viver na casa onde minha querida irmã faleceu, trouxe-os para ficarem comigo no Drake. Assim que os tiver instalado em Paris, voltarei para a Riviera. Não se esqueça de transmitir minhas lembranças ao seu real vizinho.”

Quem poderia negar que Elliott, aquele ultraesnobe, era também o mais bondoso, mais delicado e generoso dos homens?


Quatro

Quatro


1

Tendo instalado os Maturin no seu apartamento da Margem Esquerda, no fim do ano Elliott voltou para a Riviera. Construíra a casa para si próprio e nela não havia lugar para uma família de quatro pessoas, de modo que, mesmo que fosse esse o seu desejo, ele não os poderia ter ali recebido. Não creio, no entanto, que o fato lhe causasse desprazer. Sabia perfeitamente que, sozinho, teria mais cotação do que se estivesse sempre na companhia de sobrinho e sobrinha; além do mais, a tarefa de organizar suas distintíssimas reuniões (assunto que tanto o preocupava) ficaria dificultada se tivesse invariavelmente que contar com a presença de dois hóspedes.

– É preferível que eles se instalem em Paris e se habituem à vida civilizada – disse-me Elliott. – Além do mais, as duas meninas já estão em idade de ir para a escola. Encontrei, mais ou menos perto do apartamento, uma que me afirmaram ser muito seleta.

Assim sendo, só vi Isabel na primavera, na ocasião em que, devido a um trabalho que pedia a minha permanência em Paris durante algumas semanas, tomei quartos num hotel perto da Place Vendôme. Era um hotel que eu frequentava não somente por ser bem situado, mas porque tinha atmosfera. Casarão antigo, à volta de um pátio; funcionava como hospedaria havia bem uns duzentos anos. Os banheiros estavam longe de ser luxuosos, os encanamentos deixavam muito a desejar; os quartos, com suas camas esmaltadas de branco, colchas brancas fora de moda e enormes armoires à glace, tinham uma aparência pobre; mas os salões eram mobiliados com belas peças antigas. O sofá e as poltronas datavam do alegre reinado de Napoleão iii e, embora eu não possa dizer que fossem confortáveis, tinham um garrido encanto. Naquela sala eu vivia no passado dos romancistas franceses. Ao olhar para o relógio Império sob a sua redoma de vidro, eu imaginava uma bela mulher de cabelos cacheados e vestido de franja a observar o ponteiro dos minutos enquanto esperava pela visita de Rastignac, aquele aristocrático aventureiro cuja carreira, em romance após romance, Balzac acompanhou desde o seu humilde começo até o esplendor final. E o dr. Bianchon – médico tão real a Balzac que no seu leito de morte este exclamou: “Somente Bianchon poderá salvar-me” – talvez tivesse entrado naquela sala, para tomar o pulso e examinar a língua de uma duquesa-mãe, que viera da província consultar um advogado sobre um complicado processo e chamara um médico devido a uma indisposição passageira. É possível que, à escrivaninha, uma dama de crinolina e cabelos repartidos ao meio tivesse escrito uma carta apaixonada ao amante infiel, ou um velho e assanhado fidalgo de casaco verde e pescocinho talvez houvesse redigido irada epístola ao seu extravagante primogênito.

No dia seguinte ao de minha chegada, telefonei a Isabel perguntando se podia ir tomar uma xícara de chá em sua companhia, às cinco horas. Fazia dez anos que não a via. Quando o circunspecto mordomo me introduziu na sala, ela estava lendo um romance francês. Levantou-se, tomou-me ambas as mãos, recebendo-me com um sorriso caloroso e amável. Em toda a minha vida eu não a vira mais que uma dúzia de vezes, e apenas duas a sós, mas ela me fez, imediatamente, sentir como se fôssemos velhos amigos e não apenas conhecidos. Os dez anos decorridos haviam diminuído o abismo que separara a mocinha do homem maduro, e eu já não sentia a disparidade de idade entre nós. Com a lisonjeira delicadeza de uma dama da sociedade, tratou-me como se eu fosse seu contemporâneo, e dali a cinco minutos tagarelávamos com a naturalidade e franqueza de companheiros habituados a um convívio diário. Ela adquirira desembaraço, domínio sobre si e segurança.

Mas o que mais me chamou atenção foi a diferença no seu físico. Eu me lembrava de uma moça bonita, viva, com tendência para engordar; não sei se, compenetrando-se do perigo, ela fizera heroicos sacrifícios para diminuir de peso, ou se isso era uma consequência feliz, se bem que rara, da maternidade; mas agora era de uma esbeltez que satisfaria aos mais exigentes. A moda da época acentuava essa sua qualidade. Estava de preto; num relance notei que seu vestido de seda, nem muito simples, nem excessivamente complicado, fora confeccionado por uma das melhores costureiras de Paris – e ela o usava com o confiante desembaraço da mulher que está habituada a roupas caras. Dez anos antes, mesmo sob a orientação de Elliott, seus vestidos inclinavam-se para o lado vistoso e ela não parecera muito à vontade dentro deles. Mas hoje, Marie Louise de Florimond não poderia dizer que lhe faltava chie. Isabel era chie até a ponta das unhas esmaltadas de cor-de-rosa.

Suas feições tinham-se afinado; ocorreu-me que em mulher alguma eu jamais vira nariz tão bonito e tão reto. Nenhuma ruga na testa ou sob os olhos castanhos; embora sua pele tivesse perdido a resplendente frescura da adolescência, continuava tão delicada quanto antes. Provavelmente devia algum favor a loções, cremes e massagens, mas com isso adquirira uma transparência macia, suave, de singular atração. As faces magras estavam pintadas de leve e a boca discretamente acentuada. Conforme a moda do momento, Isabel usava cortados e ondulados os seus luzidios cabelos castanhos. Não lhe vi anéis nos dedos; lembrei-me então de que Elliott me contara que ela vendera suas joias. Embora não muito pequenas, as mãos eram benfeitas. Naquela época as mulheres usavam vestidos curtos durante o dia; notei que as pernas de Isabel, sob as meias cor de champanhe, eram bem torneadas, longas e finas. Perna é coisa que estraga muita mulher bonita; mas as de Isabel, antigamente o seu maior defeito, agora nada deixavam a desejar. Em resumo, de moça que atraíra pela exuberante saúde, animação e vivacidade, transformara-se em bela mulher. Pouco importava que devesse parte desse encanto à arte, disciplina e mortificações; o resultado era mais que satisfatório. É possível que a graça dos movimentos e a elegância do porte tivessem sido adquiridos intencionalmente, mas davam a impressão de absoluta espontaneidade. Provavelmente aqueles quatro meses em Paris tinham dado os últimos retoques na consciente obra de arte que levara anos a ser completada. Nem mesmo Elliott, nos seus momentos mais exigentes, encontraria nela motivo de crítica; e eu, pessoa bem mais fácil de contentar, achei-a encantadora.

Gray fora jogar golfe em Montefontaine, mas Isabel me disse que ele não tardaria.

– E você precisa ver minhas filhas. Foram ao jardim das Tulherias, mas não devem demorar. São uns amores.

Falamos de uma coisa e outra. Isabel gostava de Paris e estavam bem instalados no apartamento de Elliott. Antes de partir, este os apresentara aos amigos com quem achara que eles iriam simpatizar; tinham, portanto, um agradável círculo de relações. Elliott insistira para que recebessem com a frequência a que ele estava habituado.

– Sabe de uma coisa, acho engraçadíssimo estarmos vivendo como gente rica, quando na realidade estamos completamente arruinados – disse-me Isabel.

– Tanto assim?

Ela riu baixinho e lembrei-me agora do riso despreocupado, alegre, que tanto me agradara dez anos antes.

– Gray não tem um níquel e eu tenho quase que exatamente a mesma renda com que Larry contava na época em que queria que me casasse com ele, quando não concordei por achar que não poderíamos viver com tal quantia; e agora tenho duas filhas, ainda por cima! Não deixa de ser engraçado, não é verdade?

– Agrada-me verificar que você percebe o humorismo da situação.

– Que notícias me dá de Larry?

– Eu? Nenhuma. Nunca mais o vi, desde aquela época em que vocês estiveram aqui em Paris. Eu me dava ligeiramente com algumas pessoas que também o conheciam e perguntei que fim levara ele; mas isso há anos. Ninguém soube dizer-me. Ele sumira, simplesmente.

– Conhecemos, em Chicago, o gerente do banco onde Larry tem a sua conta, e ele nos disse que de vez em quando recebe um aviso de pagamento de algum lugar esquisito, China, Birmânia, Índia. Parece que ele tem corrido o mundo.

Não hesitei em fazer a pergunta que estava na ponta da minha língua. Afinal de contas, se a gente quer saber uma coisa, o melhor meio é perguntar.

– Você se arrependeu de não ter casado com Larry? Um sorriso insinuante apareceu nos lábios de Isabel. – Tenho sido muito feliz com Gray. É um ótimo marido. Sabe, até vir a crise, divertimo-nos imensamente. Temos os mesmos gostos, simpatizamos com as mesmas pessoas. Ele é muito bom. E é agradável ser adorada; Gray está hoje tão apaixonado por mim como quando nos casamos; considera-me a mulher mais maravilhosa deste mundo. Você não pode imaginar como é amável e delicado. E foi sempre de uma generosidade exagerada; nada era bom demais para mim. E em todos estes anos de casados, nunca me disse uma palavra áspera ou pouco amável.

Acharia ela que respondera à minha pergunta? Mudei de assunto.

– Fale-me de suas filhinhas. Nisto a campainha tocou.

– Aí estão elas. Veja você mesmo.

No momento seguinte as meninas entraram acompanhadas pela governanta; fui apresentado primeiro a Joan, a mais velha, depois a Priscilla. Cada uma me fez uma delicada reverenciazinha ao estender-me a mão. Uma tinha oito anos, a outra seis. Eram altas para a idade; Isabel, naturalmente, era alta, e lembrei-me de que Gray era imenso; mas as meninas só eram bonitas no sentido em que são bonitas todas as crianças. Pareciam frágeis. Tinham herdado os cabelos pretos do pai e os olhos castanhos da mãe. A presença de um estranho não as intimidou: em tom animado contaram a Isabel suas peripécias nos jardins. Lançaram um olhar cobiçoso às coisas gostosas que a cozinheira preparara para o chá e em que não ha víamos tocado; recebendo licença de tirar uma, viram-se no terrível dilema de não saber qual escolher. Era agradável notar com que carinho tratavam a mãe, e as três assim juntas formavam um grupo encantador. Depois de cada uma ter comido o seu bolinho, Isabel mandou-as embora e elas saíram sem uma palavra de protesto. Pareceu-me que estavam sendo educadas a obedecer.

Quando ficamos sós, eu disse as coisas que a gente costuma dizer a uma mãe a respeito de seus filhos, e Isabel aceitou os elogios com evidente, se bem que despreocupado, prazer. Pergunteilhe se Gray estava gostando de Paris.

– Bastante. Tio Elliott nos deixou um carro, de modo que ele pode jogar golfe quase todos os dias; além disso, entrou para sócio do Clube dos Viajantes, onde costuma jogar bridge. O oferecimento do tio Elliott, de nos sustentar neste apartamento, veio, naturalmente, como uma bênção dos céus. Os nervos de Gray estão em mísero estado e ele ainda tem aquelas terríveis enxaquecas; mesmo que arranjasse emprego, não estaria em condições de aceitá-lo e isso, naturalmente, o aborrece. Ele tem vontade de trabalhar, acha que deve trabalhar e sente-se humilhado por não o quererem. Sim, pois é de opinião que a missão do homem é lutar e que, não podendo cumpri-la, é preferível morrer de uma vez. Não se conforma com a sua inutilidade; só consegui trazê-lo para cá depois de convencê-lo de que a mudança e o descanso o fariam voltar ao seu normal. Mas tenho certeza de que só se sentirá feliz quando estiver de novo em plena atividade.

– Vejo que vocês sofreram bastante nestes últimos dois anos e meio.

– Pois bem, saiba que, quando veio a crise, eu simplesmente não pude acreditar nela. Parecia-me impossível que estivéssemos arruinados. Compreendia que outras pessoas estivessem na miséria, mas nós... não; era inconcebível. Continuei pensando que à última hora aconteceria alguma coisa que nos viesse salvar. E então, quando foi desferido o golpe final, achei que não valia mais a pena viver, que não me seria possível enfrentar o futuro; era por demais sombrio. Durante uma semana me senti profundamente infeliz. Céus, foi horrível ter que dispor de tudo, sabendo que estavam acabados os divertimentos, que iria ficar privada de todas as coisas de que gostava... Mas ao fim de quinze dias exclamei: “Oh! com os diabos, não vou pensar mais nisso”, e juro-lhe que não pensei mesmo. Não choro o que perdi. Diverti-me muito enquanto durou, mas agora que terminou está acabado.

– Não há dúvida de que a ruína é bem mais suportável num luxuoso apartamento, num bairro elegante, com um mordomo competente e uma excelente cozinheira – de graça, ainda por cima – e quando a gente pode cobrir a carcaça com um vestido de Chanel, não é verdade?

– Lanvin – corrigiu ela rindo baixinho. – Vejo que você não mudou muito, em dez anos. Não sei se vai acreditar-me, cínico como é, mas se não fosse por Gray e pelas crianças não garanto que eu tivesse aceito a oferta do tio Elliott. Com os meus dois mil e oitocentos dólares anuais poderíamos perfeitamente ter vivido na plantação; cultivaríamos arroz e centeio, criaríamos porcos. Afinal de contas, nasci e fui criada numa fazenda de Illinois.

– Por assim dizer – repliquei sorrindo, pois sabia que na realidade ela nascera numa luxuosa maternidade de Nova York.

Neste momento Gray entrou. É verdade que eu só me encontrara com ele duas ou três vezes, e isso doze anos antes, mas vira sua fotografia ao lado da noiva (Elliott conservava-a sobre o piano, em esplêndida moldura, ao lado das fotografias autografadas do rei da Suécia, da rainha da Espanha e do duque de Guise, mas lembrava-me muito bem dele). Fiquei agora estupefato. Estava calvo no alto da cabeça, e as entradas tinham aumentado consideravelmente; rosto rubro e intumescido, papada. Engordara demais naqueles anos de boa vida e muito álcool, e somente sua grande altura impedira que se tornasse vulgarmente obeso. Mas foram os olhos que mais me chamaram atenção. Eu me lembrava perfeitamente da sua expressão franca, confiante, quando Gray via o mundo à sua frente e não tinha uma única preocupação na vida; mas agora pareceu-me distinguir neles uma espécie de perplexa consternação e, mesmo que eu desconhecesse os fatos, creio que teria adivinhado que acontecera alguma coisa que destruíra a confiança que Gray tivera em si e na ordem natural dos acontecimentos. Senti nele uma espécie de modéstia, como se tivesse agido mal, embora involuntariamente, e disso se envergonhasse. Evidentemente seus nervos estavam em petição de miséria. Cumprimentou-me muito cordialmente, como se eu fosse um velho amigo; mas pareceu-me que a sua ruidosa amabilidade era mais uma atitude, pouco de acordo com seus sentimentos.

Trouxeram as bebidas e ele nos preparou um coquetel. Estivera no clube de golfe e ficara satisfeito com o seu jogo. Meteu-se a descrever, com exagerada loquacidade, as dificuldades que vencera num dos buracos. Isabel ouviu-o aparentemente com vivo interesse. Dali a pouco, após termos combinado um dia para eles irem jantar comigo, e um teatro depois, despedi-me e saí.


2

Adquiri o hábito de ir ver Isabel três ou quatro vezes por semana, à tarde, terminada a minha tarefa do dia. Em geral ela estava só nesta hora e gostava de uma prosinha. As pessoas a quem Elliott a apresentara eram muito mais velhas; percebi que poucas companheiras tinham sua idade. Meus amigos estavam geralmente ocupados até a hora do jantar e, a ir ao clube jogar bridge com alguns franceses rabugentos que não apreciavam a presença de um intruso, eu preferia a companhia de Isabel. Sua encantadora maneira de me tratar como se fôssemos da mesma idade tornava fácil a conversa; pilheriávamos, ríamos, caçoávamos um do outro, falando às vezes sobre nós, às vezes sobre amigos comuns, de outras sobre livros e quadros; assim o tempo passava agradavelmente. Um dos meus defeitos é nunca me acostumar com a fealdade das pessoas; por melhor gênio que tenha um amigo meu, nem com anos de intimidade consigo conformar-me com seus maus dentes ou nariz torto; por outro lado, jamais me canso de apreciar a beleza, e depois de vinte anos de convivência ainda me agrada ver uma sobrancelha benfeita ou o delicado contorno de um rosto. E, portanto, ao chegar à presença de Isabel, nunca deixei de experimentar uma leve sensação de prazer ante o oval perfeito do rosto, o acetinado da pele e o cálido brilho dos olhos castanhos.

Nisto aconteceu um fato inesperado.


3

Em todas as grandes cidades existem grupos fechados que não se comunicam entre si, pequenos mundos dentro de um mundo maior, a viver a sua vida, dependendo seus componentes da companhia uns dos outros, como habitantes de ilhas separadas entre si por canais inavegáveis. De acordo com a minha experiência, mais do que de qualquer outra cidade pode-se dizer isso de Paris. Ali, raramente a alta sociedade permite intrusos no seu meio; os políticos vivem no seu círculo corrupto; os burgueses, grandes e pequenos convivem uns com os outros; escritores se congregam com escritores (é interessante notar, no Journal de André Gide, como ele teve pouca intimidade com pessoas que não eram da sua profissão), pintores misturam-se com pintores e músicos com músicos. O mesmo acontece em Londres, se bem que de maneira menos acentuada; ali os pássaros da mesma plumagem já não se juntam tanto, e há uma dúzia de casas onde a gente pode encontrar ao mesmo tempo uma duquesa, uma atriz, um pintor, um membro do Parlamento, um advogado, uma costureira e um escritor.

As circunstâncias da minha vida levaram-me a viver transitoriamente em quase todos os mundos de Paris, até mesmo (por intermédio de Elliott) no círculo fechado do Boulevard St. Germain; mas aquele de que mais gosto, mais que da roda discreta que tem seu centro no que hoje se chama Avenue Foch, mais que do grupo cosmopolita, que dá sua preferência ao Larue e ao Café de Paris, mais que da ruidosa e sórdida alegria de Montmartre, é o trecho que tem por artéria principal o Boulevard du Montparnasse. Na minha mocidade passei um ano num apartamentozinho próximo ao Lion de Belfort, no quinto andar, de onde se avistava perfeitamente o cemitério. Para mim, Montparnasse ainda tem um pacato ar de cidade de interior, característico naquele tempo. Quando passo pela sombria e estreita Rue d’Odessa, é com dor no coração que me lembro do modesto restaurante onde nos reuníamos para jantar, pintores, ilustradores, escultores e eu, o único escritor, a não ser por Arnold Bennett, que aparecia de vez em quando, ali ficando até tarde a discutir animadamente, absurdamente, colericamente, sobre pintura e literatura. Ainda é para mim um prazer descer pelo boulevard e observar as pessoas que têm a mocidade que eu tinha naquele tempo, e inventar, para meu gozo particular, histórias a respeito delas. Quando não tenho o que fazer, tomo um táxi e vou sentar-me no velho Café de Dôme. Já não é o que era naquele tempo, ponto de reunião exclusivamente da boêmia; os pequenos comerciantes da vizinhança habituaram-se a frequentá-lo, e surgem estranhos do outro lado do Sena, na esperança de ver um mundo que deixou de existir. Naturalmente os estudantes ainda aparecem, e pintores, e escritores; mas são, na maioria, estrangeiros; quem está ali sentado ouve tanto russo, alemão e inglês como francês. Mas tenho a impressão de que dizem mais ou menos as mesmas coisas que dizíamos há quarenta anos, só que discutem Picasso em vez de Manet, e André Breton em vez de Guillaume Apollinaire. Meu coração voa para perto deles.

Certa tarde, mais ou menos quinze dias depois de me achar em Paris, estava eu sentado no Dôme; tendo encontrado cheio o terraço, vira-me obrigado a tomar uma mesa da primeira fila. Tempo bonito e quente. Os plátanos começavam a enfolhar-se e havia no ar aquela nota de ociosidade, despreocupação e alegria, própria da cidade de Paris. Sentei-me em paz comigo mesmo, mas não letargicamente; pelo contrário, quase que com júbilo. Subitamente um homem que passara por mim parou e, exibindo os dentes brancos num sorriso, exclamou: “Alô”. Fitei-o inexpressivamente. Alto e magro. Estava sem chapéu; notei-lhe a cabeleira escura, que estava clamando por uma tesoura. O lábio superior e o queixo se escondiam sob cerrada barba castanha. Testa e pescoço muito queimados do sol. Estava com uma camisa puída, sem gravata, paletó marrom surradíssimo e uma calça cinzenta em não muito melhores condições. Parecia um vagabundo e eu poderia jurar que nunca o tinha visto. Tomei-o por um daqueles sujeitos ordinários que decaíram completamente em Paris, e esperei que me contasse uma série de infelicidades, no intuito de me arrancar alguns francos que lhe garantissem cama e comida por uma noite. Ele estava de pé, diante da minha mesa, mãos enfiadas nos bolsos, dentes brancos à mostra, expressão divertida nos olhos escuros.

– Não se lembra de mim? – perguntou.

– É a primeira vez que o vejo na vida.

Eu estava disposto a lhe dar vinte francos, mas não tinha a menor intenção de permitir que continuasse com o blefe de que éramos conhecidos.

– Larry – disse ele.

– Deus do céu! Sente-se – exclamei. Ele deu uma risadinha abafada, adiantou-se e ocupou a cadeira vazia à minha mesa. – Tome alguma coisa – continuei, chamando o garçom. – Como é que você esperou que eu o reconhecesse com todos esses pelos no rosto?

Veio o garçom e Larry encomendou uma laranjada. Agora que podia vê-lo melhor, lembrei-me da singularidade dos olhos, que residia no fato de ser a íris tão negra quanto a pupila, dando-lhes ao mesmo tempo penetração e opacidade.

– Há quanto tempo está em Paris? – perguntei.

– Há um mês.

– Vai continuar aqui?

– Por algum tempo.

Enquanto eu fazia essas perguntas, meu pensamento trabalhava. Notei que a bainha da calça estava puída, roto o paletó nos cotovelos. Tinha a aparência pobre de qualquer vagabundo que eu tivesse encontrado num porto oriental. Naquela época era difícil a gente se esquecer da depressão, e fiquei a conjeturar se a crise de 29 não o teria arruinado. O pensamento desagradou-me e, não sendo amigo de rodeios, perguntei-lhe francamente:

– Você está mal de finanças?

– Não; absolutamente. Que ideia foi essa?

– Pois bem, você está com ar de quem precisa de uma boa refeição, e as roupas que está usando só servem para o lixo.

– Tanto assim? Não pensei nisso. Para falar a verdade, eu estava com ideia de fazer algumas compras, mas nunca chega a hora.

Pensei que fosse orgulho, ou timidez, e não vi motivo para concordar com essa tolice.

– Não seja idiota, Larry. Não sou nenhum milionário, mas também não sou pobre. Se você está em apuros, deixe que lhe empreste alguns milhares de francos, que nem por isso ficarei quebrado.

Ele soltou uma gargalhada.

– Muito agradecido; mas não estou em apuros. Nem chego mesmo a gastar o que tenho.

– Apesar da crise?

– Oh! a crise não me atingiu. Tudo o que eu tinha estava em títulos do governo. Não sei se baixaram de cotação, não indaguei a respeito, mas o fato é que o Tio Sam continua a pagar os juros, como sujeito correto que é. Para ser franco, estive gastando tão pouco nestes últimos anos, que devo mesmo ter uma boa reserva.

– De onde é que você está vindo, então?

– Da Índia.

– Oh! eu soube que você tinha andado por lá. Isabel contou-me. Parece que ela conhece o gerente do seu banco, em Chicago.

– Isabel? Quando foi que a viu pela última vez?

– Ontem.

– Ela não está em Paris, está?

– Claro que está. Moram no apartamento de Elliott Templeton.

– Ótimo. Teria imenso prazer em vê-la.

Embora eu o observasse atentamente, notei nos seus olhos apenas prazer, e uma surpresa natural, mas nenhum sentimento mais complexo.

– Gray também está aqui. Você sabe que eles se casaram?

– Sei. O tio Bob – o dr. Nelson, meu tutor – escreveu, contando-me. Ele morreu há alguns anos.

Ocorreu-me que, com a quebra daquilo que era aparentemente o único elo que o prendia a Chicago, provavelmente Larry não estava a par dos acontecimentos. Falei-lhe do nascimento das duas filhas de Isabel, da morte de Henry Maturin e de Louisa Bradley, da ruína completa de Gray e da generosidade de Elliott.

– Elliott também está aqui?

– Não.

Pela primeira vez em quarenta anos Elliott não passava a primavera em Paris. Embora não aparentasse essa idade, estava agora com setenta anos e, como acontece comumente com homens tão idosos, havia dias em que se sentia cansado e doente. Ia aos poucos abandonando os exercícios e agora quase que só se limitava aos passeios a pé. Preocupava-se muito com a saúde e seu médico vinha vê-lo duas vezes por semana, para espetar alternadamente numa das nádegas uma agulha com a injeção da moda. Em todas as refeições, tanto em casa como fora, Elliott tirava do bolso um estojinho de ouro e dele extraía um comprimido, engolindo-o com o ar compenetrado de quem está cumprindo um rito sagrado. Seu médico lhe recomendara uma cura em Montecatini, estação de águas no norte da Itália, e de lá ele pretendia ir a Veneza, a fim de procurar um modelo de pia batismal apropriado para a sua igreja românica. Agora já não lhe era tanto sacrifício não visitar Paris, pois de ano em ano achava a vida social ali menos satisfatória. Não gostava de gente velha, ofendendo-se quando o convidavam para encontrar somente pessoas da sua idade; e, quanto aos moços, achava-os enfadonhos. A igreja que ele construíra era agora o interesse máximo da sua vida; podia, assim, satisfazer o seu arraigado gosto de adquirir obras de arte, tendo a agradável certeza de que o fazia para a glória de Deus. Encontrara em Roma um altar antigo, de melite, e durante seis meses estivera remexendo Florença à procura de um tríptico da escola sienense, para colocá-lo sobre o altar.

Larry perguntou-me que tal Gray estava achando Paris.

– Creio que se sente um tanto desambientado. Tentei explicar a impressão que Gray me causara. Larry ouviu-me com olhos fixos no meu rosto, sem pestanejar, e, não sei por quê, a expressão contemplativa me fez pensar que ele escutava, não com os ouvidos, mas com algum mais sensível e mais íntimo órgão auditivo. Esquisito, e para mim não muito agradável.

– Mas você verá por si mesmo – concluí.

– Sim, eu teria muito prazer em vê-los. Com certeza encontrarei o endereço na lista telefônica.

– Mas, a não ser que você queira pregar-lhes um susto e tanto, e arrancar gritos histéricos às crianças, vá cortar o cabelo e tirar essa barba.

Ele riu.

– A ideia já me ocorreu. Não tenho nenhum interesse em chamar atenção.

– E, enquanto estiver com a mão na massa, compre um terno novo.

– Creio que estou mesmo um tanto esfarrapado. Quando saí da Índia, verifiquei que não tinha outras roupas a não ser estas que trago no corpo.

Olhou para o meu terno e perguntou quem era o meu alfaiate. Contei-lhe, mas acrescentei que o homem estava em Londres e que, portanto, não poderia ser de grande utilidade. Mudamos de assunto, falando de novo sobre Gray e Isabel.

– Tenho-os visto frequentemente – disse eu. – São muito felizes. Ainda não tive oportunidade de conversar a sós com Gray e, em todo caso, acho que não me falaria sobre Isabel, mas sei que gosta muito dela. Seu rosto, em repouso, é um tanto taciturno; os olhos têm uma expressão atormentada, mas quando descansam em Isabel adquirem uma suavidade e uma meiguice realmente comovedoras. É minha impressão que, durante toda aquela época de luta, ela se manteve como uma rocha ao lado do marido e ele não se esquece de quanto lhe deve. Você vai achar Isabel mudada. – Não disse a Larry que ela estava linda como jamais o fora, pois não sabia se ele tinha suficiente discernimento para ver como a moça bonita e sacudida soubera transformar-se em mulher adoravelmente graciosa, delicada e fina. Há homens que se escandalizam com o auxílio que a arte presta à beleza feminina... Acrescentei: – Ela é muito boa para Gray. Está fazendo o possível para que ele readquira confiança em si.

Mas estava ficando tarde; perguntei a Larry se não queria descer comigo o boulevard, para jantarmos juntos.

– Não, obrigado; creio que hoje não – respondeu ele. – Tenho que ir caminhando.

Levantou-se, cumprimentou-me amavelmente e passou para a calçada.


4

Estive com Gray e Isabel no dia seguinte e contei-lhes que vira Larry. Ficaram tão admirados quanto eu.

– Que vontade de vê-lo novamente! – exclamou Isabel. – Vamos telefonar-lhe agora mesmo.

Lembrei-me então de que não pensara em pedir a Larry o seu endereço. Isabel me passou uma descompostura em regra.

– Não sei se ele me teria contado – defendi-me, rindo. Com certeza o meu subconsciente teve interferência no caso. Você não se lembra, ele não gostava de dizer onde estava morando. Era uma das suas esquisitices; mas é bem capaz de aparecer aqui a qualquer momento.

– Não seria de admirar – disse Gray. – Mesmo nos velhos tempos ninguém podia contar com ele onde era esperado. Estava hoje aqui, amanhã ali. A gente o via numa sala e pensava em ir cumprimentá-lo dali a pouco, mas quando lá chegava ele já tinha desaparecido.

– Larry sempre foi uma criatura exasperante – disse Isabel. – Quanto a isto, não há dúvida. Provavelmente teremos que esperar até que ele se lembre de aparecer.

Ele não veio neste dia, nem no seguinte, nem no outro. Isabel acusou-me de ter inventado a história só para aborrecer. Garanti-lhe que não, procurando apresentar razões que explicassem a ausência de Larry. Mas não eram plausíveis. Pensei comigo mesmo que, refletindo melhor, talvez ele tivesse achado preferível não ver Gray e Isabel, tendo mesmo saído de Paris. Já naquela época eu sentia que ele não criava raízes em parte alguma, estando sempre pronto – por uma razão que lhe parecesse boa, ou por capricho a continuar o seu caminho de um momento para outro.

Finalmente ele apareceu. Chovia, e Gray não fora a Mortefontaine. Estávamos os três na sala, Isabel e eu tomando uma xícara de chá, Gray um uísque com perrier, quando o mordomo abriu a porta e Larry entrou. Isabel pulou da cadeira com uma exclamação e, atirando-se nos braços dele, beijou-o em ambas as faces. Gray, seu rosto rubro tornando-se ainda mais rubro, apertou-lhe calorosamente a mão.

– Viva, que prazer em vê-lo – disse, em voz trêmula de emoção. Isabel mordeu os lábios e percebi que se esforçava para não chorar.

– Tome qualquer coisa, meu velho – disse Gray em voz ainda pouco firme.

Fiquei comovido com o prazer que lhes causava a volta do amigo errante. E para Larry deve ter sido agradável verificar quanto lhe queriam bem. Sorriu, satisfeito. Percebi, no entanto, que estava absolutamente senhor de si. Notando a bandeja do chá, disse:

– Aceito uma xícara de chá.

– Oh! céus, você não há de querer chá! – exclamou Gray. – Vamos abrir uma garrafa de champanhe.

– Prefiro chá – sorriu Larry.

Sua serenidade teve nos outros o efeito que ele provavelmente desejava que tivesse. Acalmaram-se, mas ainda o olhavam com afeição. Não quero com isso dizer que ele tenha correspondido com frieza pouco simpática à espontânea exuberância dos outros; pelo contrário, não podia ter sido mais cordial e encantador; senti, no entanto, na sua atitude qualquer coisa que só posso qualificar como “remota” e fiquei a imaginar o que seria.

– Por que não veio logo nos ver, “sua” peste? – exclamou Isabel, fingindo indignação. – Passei estes últimos cinco dias dependurada na janela, e todas as vezes que a campainha tocava meu coração batia acelerado, dando-me um trabalhão para acalmá-lo novamente!

Larry riu baixinho.

– Mr. Maugham me disse que eu estava com aparência tão pouco respeitável que o seu criado não me deixaria entrar. Fui a Londres de avião, para comprar umas roupas.

– Isto não teria sido necessário – disse eu. – Você poderia ter comprado uma roupa feita aqui no Printemps ou na Belle Jardinière.

– Achei que, já que estava decidido, era melhor fazer a coisa em estilo – respondeu Larry. – Há dez anos que não compro trajes europeus. Procurei o seu alfaiate e disse-lhe que queria um terno em três dias. Ele respondeu que levaria quinze, de modo que concordamos com quatro. Faz uma hora que cheguei de Londres.

Ele usava um terno de casimira azul bem assentado no seu corpo esguio, camisa branca de colarinho mole, gravata azul e sapato marrom. Cortara curto o cabelo e tirara a barba. Estava não somente decente, mas bem tratado. Verdadeira transformação. Muito magro; maçãs ainda mais salientes, têmporas mais entradas, olhos maiores nas órbitas fundas; apesar disso, estava muito bem-disposto. Para falar a verdade, com seu rosto muito queimado, sem uma ruga, ele parecia extraordinariamente jovem. Era um ano mais moço do que Gray, tendo ambos pouco mais de trinta anos; mas, se Gray dava a impressão de ter dez anos mais, Larry parecia ter dez menos. Os movimentos de Gray, devido ao seu volume, eram deliberados e um tanto pesados; os de Larry, leves e naturais. Tinha um jeito de adolescente, alegre e donairoso, mas no íntimo possuía uma serenidade que singularmente me era perceptível, e que eu não me lembrava de ter notado no rapazinho que conhecera em Chicago. À medida que a conversa prosseguia, com muita naturalidade, como acontece entre velhos amigos que têm muitas recordações em comum, com notícias de Chicago fornecidas por Gray e Isabel – conversa trivial, entremeada de risos, uma coisa conduzindo a outra–, eu continuava com a impressão de que, embora fosse espontâneo o seu riso e ele ouvisse com evidente prazer o alegre tagarelar de Isabel, havia em Larry um singular desprendimento. Não que estivesse representando um papel, pois era natural demais para isso, e sua sinceridade era inegável; senti que havia qualquer coisa dentro dele, não sei se devo chamá-la de percepção, sensibilidade, ou força, que se conservava estranhamente isolada.

As crianças apareceram, foram apresentadas a Larry e fizeram suas delicadas reverenciazinhas. Ele lhes estendeu a mão, fitando-as com encantadora ternura nos olhos suaves, e elas a apertaram com ar grave. Com muita vivacidade Isabel contou a Larry que as filhas iam muito bem nos estudos, deu um bolinho a cada uma e mandou-as embora.

– Vou depois ler para vocês durante dez minutos, quando estiverem na cama.

Naquele momento ela não queria ver interrompido o prazer que lhe causava a presença de Larry. As meninas foram dar boa-noite ao pai. Achei comovente ver iluminar-se o rosto vermelho daquele homem pesadão, quando as abraçou e beijou. Ninguém podia deixar de notar com que orgulho as adorava; quando elas saíram, virou-se para Larry e disse:

– Podiam ser piores, não podiam?

Isabel lançou ao marido um olhar afetuoso.

– Se eu deixasse Gray fazer o que quer, elas estariam completamente estragadas. Este brutamontes me deixaria foie gras.

Gray fitou-a sorrindo e disse:

– Você é uma mentirosa e sabe disso. Tenho verdadeira paixão por você.

Nos olhos de Isabel brilhou um sorriso compreensivo. Ela sabia disso e o fato lhe causava prazer. Um casal feliz.

Isabel insistiu em que ficássemos para jantar. Achando que talvez eles preferissem ficar sós, inventei uma desculpa, mas Isabel não se conformou.

– Direi a Marie que ponha mais uma cenoura na sopa e assim dará bem para quatro. Temos frango; você e Gray poderão comer as pernas e Larry e eu ficaremos com as asas; e ela que faça o suflê de um tamanho que dê para todos nós.

Também Gray parecia querer que eu ficasse, de modo que me deixei persuadir a fazer o que eu desejava.

Enquanto esperávamos, Isabel contou detalhadamente a Larry aquilo que eu já lhe contara por alto. Embora narrasse a lamentável história da maneira mais alegre possível, o rosto de Gray tornou-se taciturnamente melancólico. Ela procurou animá-lo.

– Em todo caso, agora está tudo acabado. Caímos de pé e temos o futuro à nossa frente. Assim que as coisas melhorarem, Gray vai arranjar um ótimo emprego e ganhar milhões. Vieram os coquetéis, e dois conseguiram levantar o moral do pobre coitado. Notei que, embora tivesse tirado um, Larry mal tocou nele; e quando Gray, mau observador, lhe ofereceu outro, Larry recusou-o. Fomos lavar as mãos e sentamo-nos à mesa. Gray mandara abrir uma garrafa de champanhe, mas, quando o mordomo começou a servir Larry, este lhe disse que não queria.

– Oh! mas você precisa tomar um pouco! – exclamou Isabel. – É o melhor champanhe do tio Elliott, que ele reserva para os convidados especiais.

– Para ser franco, prefiro água. Depois de ter vivido tanto tempo no Oriente, é um prazer poder beber uma água que não seja perigosa.

– Mas é uma ocasião especial.

– Está certo; tomarei um pouco.

O jantar estava ótimo, mas, assim como eu, Isabel notou que Larry comeu muito pouco. Ocorreu-lhe então, creio, que estivera falando o tempo todo e que pouca oportunidade tivera ele de dizer alguma coisa; em vista disso, começou a indagar dos seus atos durante aqueles dez anos em que não se tinham visto. Ele respondeu com a sua amável franqueza, mas tão vagamente que não ficamos lá muito bem informados.

– Oh! você sabe, estive vagando por aí. Passei um ano na Alemanha e algum tempo na Espanha e Itália. E perambulei um pouco pelo Oriente.

– De onde está vindo agora?

– Da Índia.

– Quanto tempo ficou lá?

– Cinco anos.

– Divertiu-se? – perguntou Gray. – Matou algum tigre?

– Não – respondeu Larry sorrindo.

– Mas, francamente, o que esteve você fazendo na Índia durante cinco anos? – perguntou Isabel.

– Divertindo-me – respondeu ele com um sorriso de amável zombaria.

– Que tal a Mágica da Corda? – perguntou Gray. – Viu-a?

– Não, não vi.

– Que foi que você viu?

– Muita coisa.

Nesta altura fiz uma pergunta.

– É verdade que os iogues adquirem poderes que nos pareceriam sobrenaturais?

– Não sei. Só o que posso dizer é que, na Índia, geralmente se acredita nisso. Mas os mais sensatos não dão muito valor a poderes dessa natureza; acham que retardam o progresso espiritual. Lembro-me de que um deles me falou de um iogue que chegou à beira de um rio, e que não tinha dinheiro para pagar o barqueiro que devia levá-lo à outra margem, recusando-se este a transportá-lo de graça; e, portanto, o homem pisou a água e andou sobre a superfície, até chegar ao outro lado. O iogue que me contou o fato encolheu os ombros desdenhosamente e disse: “Tal milagre não vale mais que o níquel que teria custado a passagem”.

– Mas você acha que o iogue andou realmente sobre a água?

– O iogue que me contou acreditava nisso piamente. Era um prazer ouvir Larry falar, pois sua voz era adoravelmente melodiosa; leve, rica sem ser profunda, e com uma singular variedade de entonações. Terminado o jantar, fomos para a sala de visitas, onde nos foi servido o café. Eu não conhecia a Índia e estava ansioso por mais detalhes.

– Você chegou a conhecer escritores e pensadores? – perguntei.

– Noto que você faz uma distinção entre os dois – disse Isabel, para troçar comigo.

– Fiz questão disso – declarou Larry.

– Como é que você se comunicou com eles? Em inglês?

– Os mais interessantes, quando sabiam inglês, não falavam muito bem e entendiam menos ainda. Aprendi hindustani. E, quando fui para o sul, cheguei a entender bastante tamul para não me sentir perdido.

– Quantas línguas você conhece, Larry?

– Não sei. Mais ou menos uma meia dúzia.

– Conte-me mais alguma coisa sobre os iogues – pediu Isabel. – Chegou a conhecer algum intimamente?

– O mais intimamente que se possa conhecer uma pessoa que vive a maior parte do tempo no Infinito – respondeu ele sorrindo. – Passei dois anos no ashrama de um deles.

– Dois anos? Que é ashrama?

– Bom, suponho que é o que chamaríamos de eremitério. Há homens santos que vivem sós, num templo, na floresta ou nas encostas do Himalaia. Há outros que atraem discípulos. Uma pessoa caridosa, que queira adquirir mérito, constrói um quarto grande ou pequeno, para que ali viva um iogue cuja piedade o impressionou, e os discípulos vivem com ele, dormindo na varanda, ou na cozinha se existe uma, ou mesmo embaixo das árvores. Eu tinha uma choça, perto, onde apenas havia lugar para minha cama de lona, uma cadeira, uma mesa e uma estante.

– Onde foi isso? – perguntei.

– Em Travancore, bela região de morros verdejantes, vales poéticos e rios de águas mansas. Lá em cima, nas montanhas, há tigres, leopardos, elefantes e bisões, mas o ashrama ficava numa laguna cercada de arecas e coqueirais. Distava cinco ou seis quilômetros da cidade mais próxima, mas vinha gente de lá, e mesmo de mais longe, a pé ou de carro de boi, para ouvir o iogue falar quando a tal se sentia inclinado, ou apenas para se sentar a seus pés e compartilhar da paz e bem-aventurança que, tal a fragrância que a tuberosa espalha no ar, sua santa presença irradiava.

Gray moveu-se desajeitadamente na cadeira. Pareceu-me que a conversa estava tomando um rumo que não o deixava lá muito à vontade.

– Quer tomar um uísque? – perguntou-me.

– Não, obrigado.

– Bom, eu vou tomar um. E você, Isabel?

Ergueu da cadeira o corpo pesadão e foi até a mesa onde havia uísque Perrier e alguns copos.

– Havia lá outros homens brancos?

– Não; eu era o único.

– Como é que você pôde aguentar isso durante dois anos? – exclamou Isabel.

– Passaram voando. Tenho conhecido dias que me pareceriam mais longos.

– O que é que você fazia o tempo todo?

– Lia. Fazia longos passeios a pé. Saía de barco pela laguna.

Meditava. A meditação é tarefa árdua; depois de duas ou três horas, a pessoa fica exausta como se tivesse guiado um carro durante mil quilômetros, e só o que deseja é repousar.

Isabel franziu de leve as sobrancelhas. Estava perplexa e não garanto que não estivesse também um pouco amedrontada. Creio que começava a achar que o Larry que horas antes entrara na sala, embora aparentemente inalterado, franco e amigo como antigamente, não era o mesmo Larry ingênuo, alegre e de gênio fácil, quase seu escravo, mas encantador, que ela conhecera no passado. Perdera-o uma vez e, ao vê-lo novamente, tomando-o pelo mesmo de outros tempos, julgava que, por diferentes que fossem as circunstâncias, ele ainda lhe pertencia; mas estava agora ligeiramente consternada, como se tivesse querido capturar um raio de sol e ele lhe houvesse escapado pelos dedos no momento em que o agarrara. Eu a observara bastante naquela noite, tarefa, aliás, sempre agradável, e notara a expressão afetuosa do seu olhar quando pousara na cabeça benfeita de Larry, de orelhas pequenas rentes ao crânio, e vira essa expressão mudar ao fixar-se nas têmporas fundas e faces macilentas. Olhou de relance para as mãos longas, finas, que apesar de emaciadas eram fortes e viris. Depois seu olhar se demorou na boca expressiva, benfeita, carnuda sem ser sensual, e na fronte serena e nariz benfeito. Larry usava suas roupas, não com a elegância de figurino de Elliott, mas com a despreocupação de quem as tivesse usado todos os dias durante um ano. Vi que ele inspirava em Isabel um sentimento maternal que eu não lhe notara no trato com as filhas. Era ela uma mulher experiente; ele parecia ainda um rapazinho; creio ter percebido na atitude de Isabel um orgulho de mãe pelo filho crescido, pelo fato de estar ele falando inteligentemente e ser ouvido como se suas palavras tivessem sentido. Não creio que ela alcançasse o que ele dizia.

Mas eu ainda não acabara com as perguntas.

– Como era o seu iogue?

– Quer dizer, fisicamente? Pois bem, não era alto; nem magro nem gordo; pele de um pardo acinzentado, barba feita, cabelo branco cortado rente. Usava apenas uma tanga, e no entanto conseguia ter a aparência limpa e correta de qualquer rapaz de um anúncio de Brooks Brothers.

– E qual a maior atração que você viu nele?

Larry fitou-me durante um longo momento antes de responder. Os olhos profundos pareciam querer penetrar-me até o mais íntimo da alma.

– Santidade.

Fiquei um tanto desconcertado com a resposta. Naquela sala de mobília fina e belos desenhos nas paredes, a palavra caiu como uma gota-d’água que houvesse filtrado pelo teto, oriunda de uma banheira transbordante.

– Temos lido muito sobre os santos, são Francisco, são João da Cruz e outros, mas isto aconteceu há centenas de anos. Nunca pensei que fosse possível conhecer um que vivesse atualmente. Desde o primeiro momento em que o vi, tive certeza de que era um santo. Foi um maravilhoso acontecimento.

– E o que você ganhou com isso?

– Paz – respondeu ele despreocupadamente, com um leve sorriso. Depois, bruscamente, ergueu-se e disse: – Tenho que ir.

– Oh! ainda não, Larry – exclamou Isabel. – É muito cedo.

– Boa-noite – disse ele, ainda sorrindo, sem ligar ao protesto. Beijou-a na face e acrescentou: – Provavelmente nos veremos daqui a um ou dois dias.

– Onde é que você está morando? Eu lhe telefonarei.

– Oh! não se incomode. Você sabe como é difícil a gente conseguir uma ligação em Paris e, além do mais, o nosso telefone está sempre com defeito.

Ri-me intimamente ao ver com que habilidade Larry se esquivara. Era uma esquisitice sua, guardar segredo sobre o seu endereço. Propus jantarem todos comigo, não na noite seguinte, mas na outra, no Bois de Boulogne. Naquele verão ameno era muito agradável a gente comer ao ar livre, sob as árvores; Gray poderia levar-nos no cupê. Saí com Larry e de boa vontade teria andado um trecho do caminho em sua companhia, mas assim que ganhamos a rua ele me estendeu a mão, afastando-se rapidamente. Tomei um táxi.


C O N T I N U A

Nunca senti maior apreensão ao começar um romance. E se digo romance é por não saber de que outra maneira chamá-lo. Não tem grande enredo, não acaba com morte nem com casamento. A morte põe termo a todas as coisas e é, portanto, fim lógico para uma história; mas também o casamento é solução muito correta e os blasés fariam mal em escarnecer daquilo que comumente se diz que “acabou bem”. O instinto popular anda acertado ao afirmar que, com isto, tudo o que devia ser dito foi dito. Quando, depois de inúmeras vicissitudes, macho e fêmea finalmente se reúnem, sua função biológica foi cumprida e o interesse passa à geração vindoura. Mas estou deixando o meu leitor no escuro. Este livro consiste nas recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contato; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar fatos de que tenho conhecimento.
Há anos escrevi um romance intitulado Um gosto e seis vinténs. Nele, destaquei um famoso pintor, Paul Gauguin, e, valendo-me do privilégio do romancista, imaginei vários incidentes, no intuito de ilustrar o tipo que eu criara inspirado nos escassos fatos que conhecia da vida do artista francês. Na obra atual nada tentei de semelhante. Não inventei coisa alguma. Para poupar constrangimento a pessoas que ainda vivem, dei aos personagens desta história nomes fictícios e procurei, por outros meios, evitar que sejam reconhecidos. O homem sobre quem escrevo não é célebre; talvez nunca chegue a sê-lo. É possível que, ao atingir o fim da vida, não deixe, de sua passagem pela terra, vestígio maior que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas. Neste caso, se o meu livro for lido, sê-lo-á exclusivamente pelo interesse intrínseco que possa ter. Mas é possível que o gênero de vida que esse homem escolheu para si próprio e a singular força e doçura do seu caráter tenham uma influência sempre crescente sobre seus semelhantes, de modo que, mesmo muito tempo depois de sua morte, talvez se compreenda que nesta época viveu uma criatura extraordinária. Ficará, então, claro sobre quem escrevi neste livro, e aqueles que desejarem conhecer alguma coisa dos primeiros anos da existência desse homem talvez aqui encontrem algo que lhes satisfaça. Creio que o meu livro, dentro de suas possibilidades, que reconheço limitadas, será uma útil fonte de informações para os biógrafos do meu amigo.
Não é minha intenção fazer crer que as conversas foram registradas literalmente. Não tomei nota sobre o que foi dito nesta ou naquela ocasião, mas tenho boa memória quanto ao que me diz respeito e creio que, embora expressas em minhas próprias palavras, essas conversas representam fielmente o que foi dito. Há pouco declarei nada ter inventado; quero agora modificar essa asserção. Tomei a liberdade, que desde o tempo de Heródoto os historiadores têm tomado, de pôr nos lábios dos meus personagens palavras que eu, pessoalmente, não poderia ter ouvido. Agi pela mesma razão que os fez agir; para dar vida e verossimilhança a cenas que teriam sido incolores se apenas relatadas. Quero ser lido, e creio estar no meu direito quando faço o possível para tornar agradável a leitura do meu livro. O leitor inteligente facilmente perceberá em que ocasiões me vali deste artifício e tem toda a liberdade de rejeitá-lo.
Outro motivo que me fez iniciar esta obra com apreensão foi o fato de eu aqui lidar a maior parte do tempo com americanos. É difícil a gente compreender bem as criaturas e não creio que possamos conhecer ninguém a fundo, a não ser os nossos próprios compatriotas. Pois os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos com que brincaram quando crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que frequentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas coisas fizeram deles o que são, e essas coisas ninguém pode conhecê-las somente por ouvir dizer, e sim se as tiver sentido. Só pode conhecê-las quem é parte delas. E, por não se poder conhecer as pessoas de um país estrangeiro a não ser por observação, é difícil torná-las reais nas páginas de um livro. Mesmo um observador sutil e cuidadoso como Henry James, embora tivesse vivido quarenta anos na Inglaterra, jamais conseguiu criar um inglês que fosse cem por cento inglês. Quanto a mim, a não ser em alguns contos, nunca tentei manejar a não ser os meus próprios compatriotas; e se nas histórias curtas me aventurei à exceção, foi porque nelas o escritor pode tratar os tipos mais sumariamente. Dá ao leitor indicações gerais e deixa por conta dele os detalhes. Possivelmente perguntarão por que motivo, já que transformei Paul Gauguin em inglês, não pude fazer o mesmo com os personagens deste livro. A resposta é simples: não pude. Eles não teriam sido quem são. Não quero dizer que sejam americanos como os americanos veem a si mesmos; são americanos, sob o ponto de vista inglês. Não tentei reproduzir as singularidades do seu modo de falar. A barafunda que fazem os escritores ingleses quando se atiram à empreitada só pode ser comparada à confusão que fazem os escritores americanos quando tentam reproduzir o idioma inglês como é falado na Inglaterra. A gíria é a grande arapuca. Nos seus contos ingleses, Henry James sempre fez uso dela, mas nunca da mesma maneira que os ingleses; assim sendo, em vez de conseguir o desejado efeito coloquial, a maior parte das vezes dá ao leitor inglês um desagradável sobressalto.

 


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2
Aconteceu-me estar em Chicago em 1919, a caminho do Extremo Oriente, pretendendo, por motivos que nada têm com esta história, ali me demorar durante duas ou três semanas. Pouco tempo antes eu publicara um romance que obtivera sucesso; estando, portanto, em evidência, fui entrevistado assim que desembarquei.

No dia seguinte meu telefone tocou. Atendi.

– Quem fala aqui é Elliott Templeton.

– Elliott? Pensei que você estivesse em Paris.

– Não; vim visitar minha irmã. Queremos que você venha almoçar conosco.

– Com muito prazer.

Ele indicou a hora e o endereço.

Meu conhecimento com Elliott datava de quinze anos. Na ocasião em que me telefonou ele devia estar perto dos sessenta anos, homem alto e elegante, de traços agradáveis e espessos cabelos escuros e ondulados, com a nota grisalha apenas suficiente para acentuar a distinção de sua aparência. Ele comprava os acessórios de toalete em Charvet, mas seus ternos, chapéus e sapatos eram de Londres. Tinha em Paris um apartamento na Rive Gauche da elegante Rue St. Guillaume. As pessoas que não o apreciavam diziam que ele era negociante, acusação que o indignava. Elliott tinha gosto e entendia de arte, não se importando de confessar que, em anos idos, quando pela primeira vez se instalara em Paris, dera a ricos colecionadores o favor de sua opinião; e, quando devido às suas relações sociais ouvia falar de algum fidalgo arruinado, inglês ou francês, que estava disposto a vender um bom quadro, ficava satisfeito de poder pô-lo em contato com os diretores de museus americanos que, acontecia ele saber, estavam à procura de uma obra-prima de tal ou tal mestre. Havia na França e na Inglaterra muitas famílias antigas cujas circunstâncias as obrigavam a dispor de uma peça assinada, de Buhl, ou de uma escrivaninha feita pelo próprio Chippendale, se o negócio pudesse ser feito sem alarde, e que gostavam de conhecer um homem de grande cultura e finas maneiras que saberia tratar discretamente do assunto. Supunha-se, naturalmente, que Elliott lucrava com essas transações, mas a boa educação não deixava que se tecessem comentários a respeito. Pessoas pouco generosas afirmavam que em seu apartamento tudo estava à venda e que, depois de ter oferecido a milionários americanos um ótimo almoço, com vinhos velhos, uma ou duas de suas valiosas telas desapareceriam, ou uma cômoda de madeira entalhada seria substituída por uma outra, laqueada. Quando lhe perguntavam por que razão sumira determinada peça, ele muito logicamente explicava que não a achara bem à sua altura e resolvera, portanto, substituí-la por outra de superior qualidade. Acrescentava que era enfadonho estar sempre a ver as mesmas coisas.

– Nous autres américains, nós, americanos, gostamos e variar – dizia ele. – É, ao mesmo tempo, a nossa fraqueza e a nossa força.

Algumas das senhoras americanas residentes em Paris, que se gabavam de saber tudo a respeito de Elliott, diziam que sua família era muito pobre e que, se ele conseguia manter-se no padrão em que vivia, era por ter sido muito hábil. Não sei a quanto montava a sua fortuna, mas o duque de quem era inquilino certamente o fazia pagar muito pelo apartamento que, além do mais, era mobiliado com peças de valor. Havia, nas paredes, desenhos dos grandes mestres franceses, Watteau, Fragonard, Claude Lorraine e outros; tapetes Savonnerie e Aubusson exibiam sua beleza em soalhos de parquete; e na sala de visitas havia um conjunto Luís xv, em petit paint, de tal elegância que poderia ter pertencido, como afirmava ele, a madame Pompadour. Em todo caso, Elliott possuía bastante para viver no estilo que considerava correto para um cavalheiro, sem precisar para isso ganhar dinheiro, e o método que no passado usara para consegui-lo era assunto que, a não ser que se quisesse romper relações com ele, era conveniente evitar. Liberto assim de preocupações materiais, ele se dedicou à paixão máxima de sua vida – relações sociais. Suas transações comerciais com os fidalgos empobrecidos, tanto na França como na Inglaterra, consolidaram a posição que ele conseguira ao chegar à Europa, moço, com cartas de apresentação a pessoas importantes. Sua origem o favorecia aos olhos das titulares americanas a quem vinha recomendado, pois ele pertencia à antiga família da Virgínia, e do lado materno podia reclamar parentesco direto com um dos signatários da Declaração da Independência. Tinha boa aparência, era vivo, dançava bem, atirava regularmente e sobressaía no tênis. Era elemento que valia a pena ter-se em qualquer festa. Ninguém mais pródigo, em se tratando de flores e caixas de bombons. Embora recebesse pouco, quando o fazia era com originalidade que agradava; aquelas ricaças achavam divertido ser convidadas a restaurantes boêmios no Soho ou bistrôs no Quartier Latin. Ele estava sempre pronto a servir e não havia favor, por maçante que fosse, que se lhe pedisse que ele não fizesse com prazer. Esforçava-se bastante por ser agradável a senhoras maduras, e rapidamente se tornava o ami de la maison, o queridinho de muita mansão imponente. Era extrema a sua gentileza; nunca se ofendia por ser convidado à última hora, quando alguém deixava a dona da casa em apuros, e a gente podia colocá-lo ao lado de uma velhota enfadonha, tendo certeza de que seria espirituoso e amável como só ele sabia ser.

Dentro de dois anos, tanto em Londres – para onde ia durante a última parte da temporada, e no princípio do outono para fazer algumas visitas a casas de campo – como em Paris, onde se instalara definitivamente, Elliott conhecia todas as pessoas que era possível a um jovem americano conhecer. As senhoras que o tinham introduzido na sociedade surpreenderam-se ao verificar como se alargara o seu círculo de relações. Os sentimentos dessas senhoras eram confusos. Por um lado, ficaram satisfeitas com o sucesso do seu protégé, e por outro, um tanto despeitadas ao vê-lo em tais termos de intimidade com pessoas com quem elas continuavam a manter relações de absoluta cerimônia. Embora Elliott continuasse a ser obsequioso e serviçal, elas tinham a desagradável impressão de que ele as usara como escada para o seu avanço social.

Desconfiavam que ele fosse esnobe. Claro que o era. Incrivelmente esnobe. Um esnobe sem a menor vergonha. Ele engoliria qualquer afronta, ignoraria qualquer desfeita, toleraria qualquer descortesia para ser convidado a uma festa a que desejasse ir ou para conseguir aproximar-se de alguma rabugenta duquesa-mãe. Neste particular era incansável. Quando fixava o olhar na presa, perseguia-a com a tenacidade do botânico que, para conseguir uma orquídea rara, desafia enchentes, terremotos, febres e nativos hostis. A guerra de 1914 deu-lhe a sua oportunidade decisiva. Logo no início, entrou para o Corpo de Saúde e serviu, primeiro em Flandres, depois em Argonne; voltou ao fim de um ano com uma fita vermelha na lapela e conseguiu um posto na Cruz Vermelha de Paris. Nessa época, já estava em ótima situação financeira e contribuiu generosamente para obras de caridade patrocinadas por pessoas importantes. Com seu fino gosto e dom de organização, estava sempre pronto a trabalhar para qualquer festa de caridade que fosse amplamente anunciada. Ficou sócio de dois dos mais seletos clubes de Paris. Era ce cher Elliott para as maiores damas da França. Finalmente vencera.


3

Quando conheci Elliott, eu era um jovem autor como qualquer outro e ele não me deu a mínima atenção. Ótimo fisionomista, quando nos encontrávamos por acaso aqui ou acolá sempre me apertava cordialmente a mão, sem no entanto manifestar desejo de estreitar relações; e quando eu o via na Ópera, digamos, com uma pessoa da alta-roda, ele dava um jeitinho de não me ver. Mas aconteceu que, pouco depois, tive inesperado sucesso como dramaturgo e não tardei a perceber que Elliott me olhava com mais entusiasmo. Certo dia recebi dele um bilhete, convidando-me para almoçar no Claridge, onde se hospedava quando em Londres. Fui. Grupo pequeno e pouco elegante; pareceu-me que Elliott estava a experimentar-me. Mas dali por diante, já que o meu sucesso me valera muitos amigos novos, comecei a vê-lo mais assiduamente. Pouco depois, no outono, fui passar algumas semanas em Paris e encontrei-o na casa de um amigo comum. Perguntou-me onde eu estava hospedado e dali a dois ou três dias recebi novo convite para almoçar, dessa vez no apartamento; quando cheguei, fiquei surpreendido ao verificar que era reunião muito seleta. Ri intimamente. Percebi que, com o seu perfeito discernimento de coisas sociais, ele compreendera que na sociedade inglesa, como escritor, eu não era pessoa importante, mas que na França, onde um autor tem prestígio só pelo fato de ser autor, o caso mudava de figura. Nos anos seguintes nossas relações se estreitaram, sem no entanto tomar o cunho da amizade. Duvido que Elliott Templeton jamais tenha sido amigo de alguém. Não se interessava pelas pessoas a não ser pela sua posição social. Quando acontecia estar eu em Paris, ou ele em Londres, continuava a chamar-me às suas reuniões, sempre que precisava de um avulso, ou quando era obrigado a convidar americanos em viagem. Alguns destes eram, creio eu, velhos fregueses; outros, desconhecidos que o procuravam com cartas de apresentação. Eram a cruz de sua vida. Elliott achava que devia fazer alguma coisa por eles, não desejando, no entanto, pô-los em contato com seus amigos elegantes. A melhor maneira de se livrar deles era oferecer-lhes um jantar e levá-los depois ao teatro; mas mesmo isso às vezes se tornava difícil, pelo fato de Elliott ter compromissos para todas as noites, num espaço de três semanas, e também por achar que isso não iria satisfazê-los. Já que eu era escritor e, portanto, pessoa sem muita importância, ele não se incomodava de me fazer confidências a respeito.

– O pessoal na América tem tão pouca consideração quando se trata de cartas de apresentação! Não que eu não tenha muito prazer em receber os que me procuram, mas não vejo razão para impingi-los aos meus amigos.

Procurava reparar, mandando-lhes belas cestas de flores e enormes caixas de bombons, mas às vezes isso não bastava. Foi aí que, um tanto ingenuamente, em vista do que me contara, ele me convidou a uma festa que estava organizando.

“Eles desejam imensamente conhecê-lo”, escreveu-me Elliott, para me lisonjear. “A Sra. Fulana de Tal é muito culta e leu todas as suas obras.”

A Sra. Fulana de Tal me diria então que apreciara muitíssimo o meu livro Mr. Perrin e Mr. Trail, felicitando-me pela minha peça The Mollusc. A primeira destas obras foi escrita por Hugh Walpole e a segunda por Hubert Henry Davies.


4

Se dei ao leitor a impressão de que Elliott Templeton era um tipo desprezível, cometi uma injustiça.

Ele era, em primeiro lugar, aquilo que os franceses chamam de serviable, palavra para a qual, pelo que me consta, não existe equivalente na língua inglesa. O dicionário me ensina que serviceable, no sentido de prestadio, obsequioso e amável, é arcaico. Elliott era justamente isto. Generoso, também; embora no princípio de sua carreira provavelmente houvesse cumulado seus conhecidos de flores, doces e presentes movido pelo interesse, continuava a agir da mesma forma quando isso já não era necessário. Sentia prazer em dar. Hospitaleiro, também. Seu cozinheiro não tinha em Paris quem o superasse, e todos podiam estar certos de encontrar à mesa de Elliott as coisas raras de princípio de estação. Seus vinhos indicavam a excelência do seu critério. É verdade que os convidados eram escolhidos mais pela posição social do que pelo encanto pessoal que pudessem ter, mas ele se dava ao trabalho de convidar duas ou três pessoas somente por serem boa companhia, e desta forma suas reuniões eram quase sempre divertidas. Muitos se riam dele pelas costas, chamando-o de esnobe indecente, mas apesar disso aceitavam alegremente os seus convites. O francês de Elliott era correto e fluente, a pronúncia impecável. Esforçara-se ele grandemente para adotar a maneira de falar dos ingleses, e somente uma pessoa de ouvido muito fino perceberia de vez em quando uma entonação americana. Era um conversador agradável, contanto que a gente o mantivesse afastado do assunto de duques e duquesas; mas, mesmo a respeito deles, agora que sua posição era inexpugnável, ele se permitia, principalmente quando a sós com a gente, uma observação espirituosa. Tinha uma língua agradavelmente maliciosa e não havia escândalo sobre esses altos personagens que não lhe chegasse aos ouvidos. Por ele, vim a saber quem era o pai do último filho da princesa X e quem era a amante do marquês de Y. Creio que nem mesmo Marcel Proust conhecia melhor do que Elliott Templeton a vida íntima da aristocracia.

Quando eu estava em Paris, constantemente almoçávamos juntos, às vezes no seu apartamento, outras num restaurante. Gosto de vaguear pelas lojas de antiguidades, ocasionalmente para comprar alguma coisa, mas mais frequentemente só para espiar, e Elliott sempre sentia prazer em acompanhar-me. Era conhecedor e tinha verdadeiro amor aos objetos de arte.

Creio que não havia em Paris, no gênero, loja que ele não conhecesse, parecendo sempre íntimo do proprietário. Adorava pechinchar; quando saíamos, ele me dizia:

– Se quiser comprar alguma coisa, não faça você o negócio. Dê-me uma indicação e deixe o resto por minha conta.

Ficava encantado quando, pela metade do preço, conseguia para mim alguma coisa que me despertara o interesse. Era um gozo vê-lo pechinchar. Discutiria, adularia, perderia a calma, apelaria para os bons sentimentos do vendedor, ridicularizaria-o, apontaria os defeitos do objeto em questão, ameaçaria nunca mais pôr os pés naquela casa, suspiraria, encolheria os ombros, advertiria, ganharia colericamente a porta e finalmente, ao conseguir o desejado, sacudiria a cabeça tristemente, como se aceitasse a derrota com resignação. Depois me diria baixinho, em inglês:

– Leve-o. Pelo dobro do preço ainda seria barato.

Elliott era católico fervoroso. Algum tempo depois de estar vivendo em Paris, ficou conhecendo um padre célebre pelo seu sucesso em atrair ao rebanho hereges e infiéis. O padre gostava muito de jantar fora e era conhecido pela sua vivacidade. Reservava seu consolo espiritual para os ricos e aristocratas. Inevitável, portanto, que Elliott se sentisse atraído por um homem que, embora de origem humilde, era bem-vindo nos lares mais fechados; assim sendo, confessou a uma rica senhora americana, uma das recentes convertidas do padre, que, embora sua família sempre tivesse pertencido à seita episcopal, ele pessoalmente havia muito estava interessado na religião católica. Essa senhora um dia con vidou Elliott para jantar em sua casa, só os três, e o sacerdote brilhou como nunca. A dona da casa puxou a conversa para o catolicismo e o padre exprimiu-se com fervor, mas sem pedantismo, como homem vivido, embora sacerdote, dirigindo-se a outro homem vivido. Elliott ficou lisonjeado ao ver que o padre sabia tudo a seu respeito.

– A duquesa de Vendôme estava falando do senhor, no outro dia. Disse que o acha sumamente inteligente.

Elliott enrubesceu de prazer. Fora apresentado à Sua Alteza Real, mas nunca lhe ocorrera que ela o tivesse notado. O padre discursou sobre a fé, com sabedoria e benevolência; tinha ideias largas, moderno ponto de vista e era tolerante. Fez Elliott sentir que, mais do que qualquer outra coisa, a Igreja era um clube seleto a que um homem fino tinha obrigação de pertencer. Seis meses mais tarde Elliott abraçava a nova fé. Sua conversão, aliada à generosidade de que deu provas em contribuições para obras de caridade católicas, abriu-lhe várias portas que até então lhe tinham estado fechadas.

É possível que fossem confusas as razões que o fizeram abandonar a fé dos seus antepassados, mas não houve dúvida quanto à sua devoção, uma vez que se decidiu àquele passo. Assistia à missa todos os domingos, na igreja frequentada pelo pessoal mais fino, confessava-se regularmente e fazia periódicas visitas a Roma. Com tempo, essa piedade foi recompensada pela sua nomeação para camareiro da corte pontifícia, e a assiduidade com que cumpriu os deveres do ofício mereceu-lhe, creio, a honra de pertencer à Ordem do Santo Sepulcro. Em resumo, sua carreira como católico não foi menos brilhante que sua carreira como homme du monde.

Muitas vezes fiquei cogitando na causa do esnobismo que obcecava aquele homem tão inteligente, tão bom e tão culto. Ele não era nenhum adventício. Seu pai fora presidente de uma das universidades do Sul e seu avô um teólogo de certa importância. Elliott era inteligente demais para não perceber que muitas das pessoas que lhe aceitavam os convites o faziam para ter uma refeição grátis, e que algumas eram tolas e outras completamente sem valor. O fulgor dos títulos sonoros cegava-o aos defeitos daquela gente. Só o que me ocorre é que o fato de estar em termos de intimidade com aqueles cavalheiros de alta linhagem, e de ser o fiel servo de suas damas, lhe dava uma sensação de triunfo nunca diminuída; e creio que atrás de tudo isso havia um incurável romantismo que o fazia ver, no raquítico duquezinho francês, o cruzado que acompanhara S. Luís à Terra Santa; e no fanfarrão conde inglês que ia à caça de raposas, o antepassado que acompanhara Henrique viii à entrevista no Campo do Pano de Ouro. Em companhia de tais pessoas, tinha a impressão de estar vivendo num passado de galanteria e esplendor. Creio que, quando virava as páginas do Almanach de Gotha, seu coração batia tumultuoso, à medida que os nomes sucessivos lhe traziam recordações de antigas pelejas, cercos históricos e duelos célebres, intrigas diplomáticas e amores de reis. Em todo caso, assim era Elliott Templeton.


5

Eu estava me preparando para ir ao almoço a que Elliott me convidara quando da portaria telefonaram que ele me esperava embaixo. Admirei-me, mas desci assim que fiquei pronto.

– Achei mais seguro vir buscá-lo – disse ele ao apertar-me a mão. – Não sei se você conhece bem Chicago.

Tinha a mesma ideia que observei em outros americanos que durante muito tempo residiram fora do seu país, de achar que a América é um lugar difícil e mesmo perigoso, onde o europeu não pode, sem risco, locomover-se sozinho.

– Ainda é cedo; podemos andar parte do caminho – sugeriu ele. O ar estava levemente abafadiço, mas no céu não havia uma única nuvem; era agradável poder espichar as pernas.

– Achei preferível falar-lhe de minha irmã, antes que você lhe seja apresentado – disse-me Elliott enquanto caminhávamos. – Ela hospedou-se comigo uma ou duas vezes em Paris, mas não creio que você estivesse lá na ocasião. Não é uma reunião grande, você sabe. Apenas minha irmã, sua filha Isabel e Gregory Brabazon.

– O decorador? – perguntei.

– Ele mesmo. A casa de minha irmã é pavorosa e Isabel e eu queremos que ela a reforme. Por acaso cheguei a saber, que Gregory se achava em Chicago e fiz com que Louisa o convidasse para almoçar. Ele não é exatamente um cavalheiro, é claro, mas tem gosto. Foi quem decorou o Castelo Raney para Mary Olifant, e St. Clement Talbot para os St. Erth. A duquesa ficou encantada com ele. Você vai ver com seus próprios olhos a casa de Louisa. Não compreendo como pôde ali viver durante todos estes anos! Para ser franco, jamais compreenderei como é que ela pode mesmo viver em Chicago.

Vim a saber que mrs. Bradley era viúva, com três filhos, dois rapazes e uma menina; mas os rapazes eram muito mais velhos e já estavam casados. Um ocupava um posto oficial nas Filipinas e o outro, que a exemplo do pai seguira a carreira diplomática, morava em Buenos Aires. O marido de mrs. Bradley ocupara postos em várias partes do mundo e, depois de ter sido durante alguns anos primeiro-secretário em Roma, fora nomeado ministro para uma das repúblicas da costa ocidental da América do Sul, onde viera a falecer.

– Eu quis então que Louisa vendesse a casa de Chicago – continuou Elliott. – Mas ela não concordou, por razões sentimentais. Há muitos anos que pertence à família Bradley, que é uma das mais antigas de Illinois. Eles vieram da Virgínia em 1839, instalando-se mais ou menos a sessenta milhas do que é hoje Chicago. Ainda são deles, as terras. – Elliott hesitou ligeiramente e olhou-me para ver como eu iria receber suas palavras. – O Bradley que aqui se fixou era o que você com certeza chamaria de fazendeiro. Talvez você não saiba, mas em meados do século passado, quando o Oeste Central começou a ser desvendado, muitos habitantes da Virgínia, filhos mais novos de boas famílias, deixaram seus lares, sucumbindo à atração do desconhecido. O pai do meu cunhado, Chester Bradley, viu que aqui em Chicago havia futuro e entrou para um escritório de advocacia. Em todo caso, ganhou bastante para deixar o filho garantido.

Mais que as palavras de Elliott, sua maneira de falar indicava que talvez não fosse exatamente de bom-tom o falecido Chester Bradley ter abandonado a imponente mansão, e as vastas terras que herdara, para entrar num escritório de advocacia, mas que o fato de ter acumulado grande fortuna era, em parte, uma compensação. Também não ficou lá muito satisfeito quando, em outra ocasião, mrs. Bradley me mostrou alguns instantâneos do que ele chamava a sua “propriedade” no campo e vi uma modesta casa de madeira, com um bonito jardinzinho, mas com celeiro, curral e chiqueiro bem à vista, cercados por áridas planícies. Não pude deixar de refletir que mr. Bradley sabia o que estava fazendo, quando abandonara aquilo para ir ganhar a vida na cidade.

Dali a pouco fizemos sinal a um táxi. Este nos deixou diante de uma casa de pedra marrom, estreita e muito alta; da numa fileira de outras casas, numa rua que saía de Lake Shore Drive, e, mesmo naquela bela manhã de outono, sua aparência era tão insípida que a gente se admirava de que alguém pudesse ter sentimentalismos a seu respeito. A porta foi aberta por um negro alto e forte, de cabelos brancos, que nos fez entrar na sala de visitas. Mrs. Bradley ergueu-se ao ver-nos e Elliott me apresentou a ela. Devia ter sido bonita quando jovem, pois seus traços, embora graúdos, eram benfeitos, e seus olhos, bonitos. Mas o rosto pálido, quase que acintosamente desprovido de pintura, tinha linhas caídas, e evidentemente ela desistira de lutar contra a corpulência da idade madura. Pareceu-me que aceitara de má vontade a derrota, pois se sentava muito tesa na cadeira de espaldar reto, onde, devido à cruel armadura do colete, provavelmente se sentia melhor do que numa cadeira estofada. Usava um vestido azul, com pesados alamares, e a gola alta mantinha-se firme à custa de barbatanas. Bela cabeça; cabelos brancos ondulados a ferro, num penteado muito complicado. O outro convidado ainda não chegara e, enquanto esperávamos, falamos de uma coisa e outra.

– Elliott me contou que o senhor veio pelo Sul – disse mrs. Bradley. – Parou em Roma?

– Sim, passei lá uma semana.

– E como vai indo a boa rainha Margherita?

Um tanto surpreso com a pergunta, respondi que não sabia.

– Oh! não foi vê-la, então? É muito simpática. Foi tão amável conosco quando estivemos em Roma! Mr. Bradley era primeiro-secretário. Por que não foi visitá-la? O senhor não é como Elliott, tão vil que não pode ir ao Quirinal?

– Absolutamente – respondi sorrindo. – A questão é que não a conheço.

– Não conhece? – exclamou mrs. Bradley como se não acreditasse nos seus ouvidos. – Por que não?

– Para lhe falar com franqueza, geralmente os escritores não convivem com reis e rainhas.

– Mas ela é uma mulher tão simpática – disse mrs. Bradley em tom de censura, como se fosse muito malfeito da minha parte não conhecer a augusta personagem. – Tenho certeza que o senhor iria gostar dela.

Neste momento a porta abriu-se e o criado introduziu Gregory Brabazon.

Apesar do seu nome, Gregory Brabazon não era um sujeito romântico. Baixo, muito gordo, completamente calvo, a não ser por um círculo de ondulados cabelos negros na nuca e à volta das orelhas, rosto vermelho, nu, dando a impressão de que a qualquer momento iria cobrir-se de violento suor, vivos olhos cinzentos, lábios sensuais e maxilar pesado. Era inglês, e eu já o vira em festas boêmias, em Londres. Tinha uma voz barulhenta, mãos pequenas e gordas, extraordinariamente expressivas. Com gestos eficazes e uma torrente de palavras animadas ele conseguia excitar a imaginação do freguês hesitante, a ponto de tornar impossível a desistência da encomenda que ele parecia fazer favor em aceitar.

O criado entrou novamente, com uma bandeja de aperitivos.

– Não vamos esperar por Isabel – disse mrs. Bradley, servindo-se de um.

– Onde está ela? – perguntou Elliott.

– Foi jogar golfe com Larry. Preveniu que talvez chegasse atrasada.

Elliott virou-se para mim e explicou:

– Larry é Laurence Darrell. Parece que ele e Isabel estão noivos.

– Não pensei que você tomasse coquetéis, Elliott –comentei.

– Não tomo – disse ele lugubremente, bebericando o que tinha em mão. – Mas, nesta bárbara terra de proibição, que é que se pode fazer? – Suspirou e prosseguiu: – Estão começando a servi-los em algumas casas em Paris. As más relações corrompem as boas maneiras.

– Tolice! – exclamou mrs. Bradley.

Disse isso bastante afavelmente, mas com uma firmeza que indicava uma mulher de opinião e, pelo olhar divertido, mas sagaz, que atirou a Elliott, percebi que não tinha grandes ilusões a seu respeito. Que iria ela pensar de Gregory Brabazon? Eu notara o olhar profissional que o decorador lançara à sala, ao entrar, assim como o involuntário arquear das espessas sobrancelhas. Era realmente uma sala extraordinária. O papel das paredes, o cretone das cortinas e o estofamento da mobília tinham o mesmo desenho; nas paredes, em pesadas molduras douradas, dependuravam-se quadros a óleo, provavelmente trazidos de Roma pelos Bradley. Virgens da escola de Rafael, virgens da escola de Guido Reni, paisagens da escola de Zuccarelli, ruínas da escola de Pannini. Havia troféus da permanência deles em Pequim, mesas de ébano excessivamente entalhadas, enormes vasos cloisonné e também lembranças do Chile e do Peru, obesas figuras de granito e vasos de barro. Vi uma escrivaninha Chippendale e uma vitrina entalhada. Os abajures eram de seda branca e neles algum artista mal inspirado pintara pastores e pastoras em trajes de Watteau. Sala pavorosa e, no entanto, não sei dizer por quê, agradável. Tinha um ar familiar, caseiro; a gente sentia que a incrível mixórdia tinha significação. Todos aqueles incongruentes objetos combinavam uns com os outros porque faziam parte da vida de mrs. Bradley.

Tínhamos acabado nossos aperitivos quando a porta se abriu e entrou uma moça, seguida por um rapaz.

– Estamos atrasados? – perguntou ela. – Trouxe Larry comigo. Há alguma coisa para ele comer?

– Creio que sim – sorriu mrs. Bradley. – Toque a campainha e diga a Eugene que ponha mais um lugar à mesa.

– Já disse a ele. Foi ele quem nos abriu a porta.

– Esta é a minha filha Isabel – apresentou mrs. Bradley, virando-se para mim. – E aqui, Laurence Darrell.

Isabel apertou-me rapidamente a mão e virou-se impulsivamente para Gregory Brabazon.

– O senhor é que é mr. Brabazon? Estava louca por conhecê-lo. Fiquei encantada com o que o senhor fez para Clementine Dormer. Não acha esta sala horrível? Há anos procuro convencer mamãe a reformá-la e agora que o senhor está em Chicago não há melhor oportunidade. Diga-me sinceramente a sua opinião.

Eu sabia que isto seria a última coisa que Brabazon faria. Ele atirou um rápido olhar a mrs. Bradley, mas o rosto impassível nada lhe contou. Viu que Isabel era a pessoa que contava e soltou uma ruidosa gargalhada.

– Não duvido que seja muito confortável e essa história toda – disse ele. – Mas, se quer que eu fale com franqueza, pois bem, acho-a pavorosa.

Isabel era uma moça alta, de rosto oval, nariz reto, olhos bonitos e lábios carnudos, traço este que parecia característico da família. Era bonita, se bem que ligeiramente inclinada à obesidade, o que se podia atribuir à idade; achei que afinaria quando ficasse mais velha. Tinha mãos boas, fortes, embora um pouco gordas; as pernas, que a saia curta deixava bem à mostra, eram também um pouco grossas. Tinha boa pele e o corado natural provavelmente estava agora acentuado pelo exercício e pela viagem de volta, em carro aberto. Era animada e viva. Sua exuberância, sua risonha alegria, o gosto pela vida, a felicidade que havia nela causavam prazer à gente. Sua naturalidade era tão grande que fazia com que Elliott, malgrado a sua elegância, parecesse espalhafatoso. Era tal a sua frescura que a seu lado mrs. Bradley, de rosto enrugado e pálido, parecia velha e cansada.

Descemos para o almoço. Gregory Brabazon piscou os olhos quando viu a sala de jantar. Paredes cobertas por um papel vermelho-escuro, imitando tecido, onde se viam retratos muito pouco artísticos, de mulheres e homens de rosto sombrio e azedo, os antepassados próximos do falecido mr. Bradley. Lá estava ele, também, com um vasto bigode, muito teso, de fraque e colarinho engomado; mrs. Bradley, pintada por um artista francês do fim do século xix, estava dependurada sobre a lareira, num vestido comprido de cetim azul-claro, com um colar de pérolas à volta do pescoço e uma estrela de brilhantes nos cabelos. Com a mão cheia de anéis ela acariciava uma echarpe de renda, tão cuidadosamente pintada que se lhe poderia contar os pontos; com a outra segurava despreocupadamente um leque de penas de avestruz. A mobília, de carvalho preto, era pesada e opressiva,– Que acha o senhor? – perguntou Isabel a Gregory Brabazon, quando nos sentamos.

– Não duvido que tenha custado um dinheirão – respondeu ele.

– E custou mesmo – declarou mrs. Bradley. – Foi-nos dada, como presente de casamento, pelo pai de meu marido. Tem nos acompanhado pelo mundo inteiro. Lisboa, Pequim, Quito, Roma. A boa rainha Margherita admirava-a muito.

– Que faria o senhor com ela, se fosse sua? – perguntou Isabel a Brabazon.

Elliott antecipou-o na resposta.

– Queimava-a.

Começaram os três a discutir a reforma da sala. Elliott inclinava-se para o estilo Luís xv, mas Isabel preferia uma mesa de refeitório com cadeiras italianas. Brabazon achava que Chippendale estava mais de acordo com a personalidade de mrs. Bradley.– Sempre achei isto muito importante – disse ele. – A personalidade de uma pessoa. – E virando-se para Elliott: – O senhor, naturalmente, conhece a duquesa de Olifant?

– Mary? É uma de minhas maiores amigas.

– Ela queria que eu decorasse a sua sala de jantar e, assim que vi a duquesa, declarei: George ii.

– E como acertou! Notei a sala, da última vez que lá jantei. É de um gosto impecável.

E assim continuou a conversa. Mrs. Bradley ouvia, mas não se podia dizer qual a sua opinião. Eu pouco falei; quanto ao namorado de Isabel, Larry – no momento não me lembrei do sobrenome –, não disse nada. Estava sentado do outro lado da mesa, entre Brabazon e Elliott; de vez em quando eu o olhava de relance. Parecia muito moço. Era aproximadamente da altura de Elliott, devendo ter pouco menos de dois metros; magro e despreocupado. Simpático; nem bonito nem feio; um tanto tímido e em nada extraordinário. Despertou o meu interesse porque, embora não tivesse pronunciado meia dúzia de palavras desde que entrara, parecia perfeitamente à vontade e, estranhamente, dava a impressão de participar da conversa mesmo sem abrir a boca. Notei-lhe as mãos. Longas, mas não grandes demais para o seu tamanho, de belo formato e ao mesmo tempo fortes. Ocorreu-me que um artista teria prazer em pintá-las. Era miúdo, sem parecer frágil; pelo contrário, eu antes o diria vigoroso e resistente. Seu rosto, grave quando em repouso, estava bem queimado; a não ser por isso, quase não tinha cor; suas feições, embora regulares, não chamavam atenção. Maçãs do rosto salientes, têmporas entradas. Cabelos de um castanhoescuro levemente ondulados. Os olhos pareciam maiores do que realmente eram, por estarem plantados profundamente nas órbitas; pestanas grossas e longas. Olhos singulares, não do castanho rico que era o tom dos de Isabel, de sua mãe e de Elliott, mas tão escuros que a íris se confundia com a pupila, dando-lhes estranha penetração. Larry tinha uma graça natural, muito atraente, e achei compreensível Isabel estar caída por ele. De vez em quando o olhar dela pousava no rapaz por um momento e julguei nele distinguir não somente amor, mas afeição.


Os olhos de ambos se encontraram e havia nos de Larry uma ternura bela de se ver. Nada mais comovente que o espetáculo de um amor moço, e eu, homem de meiaidade naquele tempo, invejei-os, mas, ao mesmo tempo, não sei por quê, não pude deixar de ter pena deles. Tolice da minha parte, pois, ao que me parecia, não havia empecilho à sua felicidade; as circunstâncias eram favoráveis e não existia razão para que não se casassem e vivessem felizes dali por diante.

Isabel, Elliott e Gregory Brabazon continuavam falando da redecoração da casa, procurando forçar mrs. Bradley a, pelo menos, reconhecer que se devia fazer alguma coisa; mas esta apenas sorria amavelmente.

– Não procurem me afobar. Quero ter tempo para refletir. – E virando-se para o rapaz: – Que acha você de tudo isso, Larry?

Ele passeou um olhar sorridente pela mesa e disse:

– Creio que tanto faz de um jeito ou de outro.

– Oh! Larry, “sua” peste! – exclamou Isabel. – Depois de eu tanto lhe ter recomendado que nos apoiasse!

– Se a tia Louisa está satisfeita com o que tem, para que fazer modificações?

A observação era tão lógica e sensata que desatei a rir. Ele olhou-me e sorriu.

– E não sorria deste jeito só porque fez uma observação idiota – disse Isabel.

Mas ele apenas alargou o sorriso e notei então que seus dentes eram pequenos, brancos e regulares. Qualquer coisa no olhar que ele lançou a Isabel fez com que ela enrubescesse e ficasse de respiração suspensa. A não ser que eu me enganasse redondamente, ela estava loucamente apaixonada por ele; mas, não sei por quê, tive a impressão de que no seu amor havia também algo de maternal. Estranhável, em criatura tão moça. Com um sorriso doce nos lábios ela dedicou de novo sua atenção a Gregory Brabazon.

– Não dê confiança a Larry. É muito tolo e completamente ignorante. Não entende de coisa alguma, a não ser de aviação.

– Aviação? – perguntei.

– Ele foi aviador na guerra.

– Pensei que fosse muito moço para ter estado na guerra.

– E era. Moço demais. Ele comportou-se muito mal. Fugiu da escola e foi para o Canadá. Mentindo a torto e a direito, conseguiu convencê-los de que tinha dezoito anos e entrou para a aviação. Estava lutando na França na ocasião do armistício.

– Você está chateando os convidados de sua mãe, Isabel – disse Larry.

– Conheço-o desde menino; quando voltou, estava um amor de farda, com todas aquelas fitas bonitas na túnica, de modo que fiquei plantada à soleira de sua porta – em sentido figurado – até que, para ter um pouco de sossego, ele concordou em casar comigo! A concorrência era enorme.

– Francamente, Isabel – admoestou sua mãe. Larry inclinou-se para mim.

– Espero que não acredite em uma palavra do que ela diz. Isabel não é má pessoa, mas é mentirosa.

Terminou-se o almoço e logo depois Elliott e eu saímos. Eu lhe contara que ia ver os quadros no museu e ele disse que me levaria. Ir a museus acompanhado é coisa que não me agrada, mas eu não podia dizer que preferia ir sozinho e, portanto, aceitei-lhe o oferecimento. No caminho falamos de Isabel e Larry.

– É um prazer a gente ver duas criaturas tão jovens assim apaixonadas uma pela outra – disse eu.

– São moços demais para se casar.

– Por quê? É tão divertido ser moço, amar e casar.

– Não seja ridículo. Ela tem dezenove anos e Larry apenas vinte. Ele está desempregado. Tem uma rendazinha, só três mil dólares anuais, a julgar pelo que me contou Louisa, e Louisa não é nenhuma milionária. Precisa do que tem para viver.

– Bom, ele pode arranjar emprego.

– É justamente essa a questão. Ele não se esforça. Parece muito satisfeito de não fazer nada.

– Provavelmente passou uma temporada dura na guerra. Talvez queira descansar.

– Há um ano que está descansando. É mais do que suficiente.

– Pareceu-me um bom rapaz.

– Oh! nada tenho contra ele. É de muito boa família, e essa história toda. Seu pai era de Baltimore. Foi, em Yale, assistente de professor de línguas neolatinas, ou coisa que o valha. Sua mãe era de Filadélfia, da velha raça dos Quaker.

– Você fala deles no passado. Morreram?

– Sim; a mãe morreu de parto e o pai há mais ou menos doze anos. Larry foi educado por um velho colega do pai, um médico de Marvin. Foi assim que Louisa e Isabel o conheceram.

– Onde fica Marvin?

– É onde os Bradley têm a sua propriedade. Louisa costuma ali passar o verão. Ela ficou com pena do menino. O dr. Nelson é solteiro e não entendia patavina da educação de uma criança. Foi Louisa quem insistiu para que Larry fosse mandado para St. Paul, e sempre o convidou à sua casa para as férias de Natal. – Elliott encolheu os ombros em gesto bem gaulês e continuou: – Ela devia ter previsto o inevitável resultado.

Tínhamos chegado ao museu e concentramos nossa atenção nos quadros. Mais uma vez fiquei impressionado com o conhecimento e bom gosto de Elliott. Conduzia-me pelas salas como se eu fosse um grupo de turistas, e nenhum professor de arte teria sabido instruir melhor do que ele. Conformei-me, tomando a resolução de voltar sozinho quando pudesse andar a esmo e distrair-me à vontade; depois de algum tempo ele consultou o relógio.

– Vamos indo – disse-me. – Nunca passo mais de uma hora numa galeria de arte; é o máximo a que resiste o nosso poder de apreciação. Voltaremos um outro dia.

Agradeci-lhe calorosamente quando nos separamos. Segui o meu caminho, indubitavelmente mais esclarecido, mas de humor bem mais azedo.

Ao despedir-se de mim, mrs. Bradley me dissera que no dia seguinte Isabel receberia alguns amiguinhos para jantar, pois iriam todos a uma festa; se eu quisesse vir também, depois que eles partissem Elliott e eu poderíamos conversar à vontade.– É um favor que o senhor lhe faz – acrescentou ela. – Elliott viveu fora tanto tempo, que se sente um pouco desambientado aqui. Parece que não encontra ninguém com quem tenha afinidade.

Aceitei e, antes de nos despedirmos nos degraus do museu, Elliott me disse que isso lhe causara prazer.

– Sou uma alma perdida nesta vasta cidade – declarou. – Prometi a Louisa que passaria seis semanas com ela, pois não nos víamos desde 1912, mas estou contando os dias até a minha volta para Paris. É o único lugar do mundo onde um homem civilizado pode viver. Caro amigo, sabe como me olham nestas bandas? Consideram-me uma aberração. Selvagens!

Ri-me e deixei-o.


6

Na noite seguinte, tendo recusado o oferecimento de Elliott de vir buscar-me, cheguei sem risco à casa de mrs. Bradley. Eu fora detido por uma pessoa que viera ver-me e cheguei um pouco atrasado. Quando subi a escada, ouvi tanto barulho vindo da sala de visitas que julguei tratar-se de uma reunião importante; admirei-me ao verificar que éramos, eu inclusive, apenas doze pessoas. Mrs. Bradley estava muito imponente, de vestido de cetim verde e colar de aljôfares em volta do pescoço; e Elliott, no seu bem talhado dinner jacket, apresentava-se elegante como só ele sabia ser. Quando me apertou a mão, todos os perfumes da Arábia penetraram-me pelas narinas. Fui apresentado a um homem troncudo e alto, de rosto vermelho, que não parecia muito à vontade em traje de rigor. Era um tal dr. Nelson, mas naquele momento o nome não me disse nada. O resto do grupo compunha-se de amigos de Isabel, mas os nomes me escaparam assim que os ouvi. As mulheres eram moças e bonitas, os homens, moços e simpáticos. Nenhum deles me impressionou, a não ser talvez um rapaz – e isso por ser ele muito alto e maciço. Devia ter mais de dois metros de altura; ombros largos e fortes. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda branca, de saia comprida que lhe escondia as pernas gordas: o talho do vestido deixava adivinhar que tinha seios bem desenvolvidos; os braços talvez fossem um pouco rechonchudos, mas o pescoço era lindo. Estava animada e de olhos luzentes. Não havia dúvida: era uma rapariga muito bonita e desejável, mas, se não abrisse os olhos, acabaria adquirindo uma corpulência pouco atraente.

À mesa do jantar vi-me entre mrs. Bradley e uma mocinha desenxabida e tímida, que parecia ainda mais jovem do que as outras. Quando tomamos os nossos lugares, para facilitar a conversa mrs. Bradley explicou-me que os avós da minha vizinha moravam em Marvin, e que ela e Isabel haviam sido colegas de escola. Seu nome, o único que guardei, era Sophie. Durante o jantar houve muita brincadeira de um lado ao outro da mesa; todos falavam alto e riam à toa. Pareciam íntimos. Quando minha atenção não estava voltada para a dona da casa, procurei puxar prosa com a minha vizinha, embora sem grande resultado. Era mais quieta que os outros. Não se podia dizer que fosse bonita, mas tinha um rosto engraçado, de narizinho arrebitado, boca larga e olhos de um azul-esverdeado; seu cabelo, penteado com simplicidade, era de um castanho-pálido. Muito magra, com peito quase tão chato como o de um rapaz. Ria das brincadeiras que iam pela mesa, mas de maneira um pouco forçada, como se não achasse tanta graça como queria dar a entender. Pareceu-me que estava fazendo um esforço para se mostrar boa companheira. Não consegui descobrir se era um pouco tola ou apenas muito tímida e, depois de ter tentado inutilmente vários tópicos, por falta de coisa melhor pedi-lhe que me explicasse quem eram os outros convidados.

– Pois bem, o dr. Nelson o senhor conhece – disse-me, indicando o homem maduro que estava à minha frente, do outro lado de mrs. Bradley. – É tutor de Larry e nosso médico em Marvin. Muito inteligente; inventa bugigangas para aviões, de que ninguém quer saber; e, quando não está assim ocupado, bebe.

Ao dizer isso, havia nos seus olhos pálidos um brilho que me fez supor que eu me enganara a seu respeito. Continuou a dizer-me os nomes de toda aquela mocidade, quem eram seus pais e, no caso dos rapazes, que colégio haviam frequentado e em que negócio trabalhavam. Nada de muito esclarecedor.

“Ela é um amor”; ou então, “Ele joga muito bem golfe”.

– E quem é aquele grandalhão de sobrancelhas cerradas?

– Quem?... Oh! aquele é Gray Maturin. Seu pai tem uma casa enorme em Marvin, à beira do rio. É o nosso milionário. Temos muito orgulho dele; dá-nos importância. Maturin, Hobbes, Rayner e Smith. É um dos homens mais ricos de Chicago e Gray é seu único filho.

A lista de nomes fora recitada com tão agradável ironia que lancei a Sophie um olhar indagador. Ela notou-o e corou.

– Conte-me mais alguma coisa de mr. Maturin – pedi.

– Não há nada para contar. É rico. Muito respeitado. Deu a Marvin uma nova igreja, e um milhão de dólares à Universidade de Chicago.

– O filho é um rapagão bonito.

– É correto. Ninguém havia de pensar que seu avô foi um irlandês sem eira nem beira, e sua avó uma garçonete sueca num restaurante qualquer.

Gray Maturin era mais vistoso do que bonito. Tinha um ar rude, inacabado; nariz curto e chato, boca sensual e a pele corada dos irlandeses; grande quantidade de cabelos negros, bem lisos, olhos muito azuis sob as cerradas sobrancelhas. Embora de compleição tão robusta, era muito bem proporcionado e, nu, devia ser um belo tipo de homem. Parecia ter muita força. Sua virilidade era impressionante. Fazia com que Larry, que estava sentado ao seu lado e tinha somente oito ou dez centímetros menos que ele, parecesse insignificante.

– Gray é muito apreciado – disse a minha tímida vizinha. – Conheço várias moças que dariam a vida para agarrá-lo. Mas não têm a mínima probabilidade.

– Por que não?

– O senhor não sabe nada, sabe?

– Como poderia eu saber?

– Ele está cego de paixão por Isabel, e Isabel gosta de Larry.

– Por que é que ele não tenta suplantar o rival?

– Larry é o seu maior amigo.

– Creio que isto complica o caso.

– Sim, quando se têm os elevados princípios de Gray.

Não sei se ela disse isto seriamente, ou se havia na sua voz uma nota de zombaria. Na sua atitude nada havia de impertinente, confiado ou petulante, e, no entanto, tive impressão de que não lhe faltavam nem espírito nem perspicácia. Em que estaria pensando enquanto conversava comigo? Bom, isto eu nunca chegaria a saber. Não havia dúvida de que ela não era senhora de si e ocorreu-me que devia ser filha única, tendo levado vida isolada, em companhia de pessoas muito mais velhas. Havia nela uma modéstia, uma discrição que achei encantadoras; mas, se eu acertara ao imaginar que vivera sozinha, então achei que devia ter tranquilamente observado as pessoas com quem convivia, formando opinião categórica a respeito delas. Nós, de idade madura, raramente suspeitamos com que crueldade, e ao mesmo tempo com que clarividência, os muito moços nos julgam. Olhei de novo dentro daqueles olhos esverdeados.

– Que idade tem você? – perguntei.

– Dezessete.

– Lê muito? – indaguei ao acaso.

Mas, antes que ela me respondesse, mrs. Bradley atraiu minha atenção com uma observação qualquer; logo depois terminou o jantar. Os moços saíram imediatamente para onde tinham que ir; quanto a nós, os quatro restantes, subimos para a sala de visitas.

Fiquei admirado de ter sido convidado para aquela reunião, ao ver que após alguma conversa fiada eles encetaram um assunto que, imaginei, haviam de preferir discutir sozinhos. Fiquei sem saber se seria mais discreto levantar-me e sair ou se, como ouvinte desinteressado, eu lhes seria útil. O ponto discutido era a estranha má vontade de Larry em começar a trabalhar, e que agora vinha à baila devido a um emprego que mr. Maturin, pai do rapaz que eu conhecera ao jantar, lhe oferecera em seu escritório. Era uma bela oportunidade. Com habilidade e perseverança Larry poderia, com o tempo, vir a ganhar muito dinheiro. O jovem Gray Maturin desejava ardentemente que ele aceitasse.

Não me recordo de tudo o que foi dito, mas minha memória reteve o essencial. Quando Larry voltara da França, o dr. Nelson, seu tutor, sugerira que ele fosse para a escola; mas o rapaz recusara. Era natural que desejasse ficar na ociosidade durante algum tempo; passara uma temporada dura, na guerra, e duas vezes recebera ferimentos, embora sem gravidade. O dr. Nelson achava que ele ainda estava sofrendo as consequências do choque, e o descanso parecia indicado até ele ficar completamente restabelecido. Mas as semanas se converteram em meses; já fazia agora mais de um ano que ele despira a farda. Fiquei sabendo que sobressaíra na aviação, tendo ficado em evidência ao voltar para Chicago; assim sendo, vários chefes de firmas lhe tinham oferecido emprego. Larry agradecera, mas recusara. Não deu desculpa, a não ser que ainda não sabia o que queria fazer. Pouco depois ficava noivo de Isabel. Isto não causou surpresa a mrs. Bradley, pois os dois tinham sido inseparáveis durante anos e ela sabia da paixão da filha por Larry. Gostava do rapaz e achava que ele poderia fazer Isabel feliz.

– O caráter dela é mais forte que o dele. Isabel lhe dará exatamente aquilo que lhe falta.

Embora fossem tão moços, mrs. Bradley não se opunha a um casamento imediato, contanto que Larry começasse a trabalhar. Ele tinha um dinheirinho seu; mas, mesmo que tivesse dez vezes mais, ela não cederia nesse ponto. Pelo que pude perceber, ela e Elliott desejavam saber do dr. Nelson quais as intenções de Larry. Queriam que ele usasse sua influência para obrigá-lo a aceitar o emprego que mr. Maturin lhe oferecia.

– Vocês sabem que nunca tive muita autoridade sobre Larry – alegou o médico. – Mesmo quando criança ele sempre fez o que quis.

– Sei disso. Você lhe deu liberdade demais. É um milagre ele ter saído tão bom como é – disse mrs. Bradley.

O dr. Nelson, que estivera bebendo sem cessar, olhou-a com azedume. Seu rosto tornou-se ainda mais rubro.

– Eu era muito ocupado; tinha que cuidar dos meus interesses. Recebi-o porque ele não tinha para onde ir e seu pai era meu amigo. Não era fácil lidar com ele.

– Não sei como você pode dizer isso – replicou secamente mrs. Bradley. – Larry tem um gênio ótimo.

– Que é que a gente pode fazer com um menino que nunca discute, mas faz exatamente o que quer e, quando é repreendido, apenas diz que “sente muito” e deixa que a gente esbraveje à vontade? Se fosse meu filho, eu poderia ter-lhe batido. Mas eu não podia dar num menino que não tinha um único parente no mundo e cujo pai o deixara a meus cuidados por achar que eu seria bom para ele.

– Isto não vem ao caso – disse Elliott um tanto irritado. – A questão é esta: ele já vadiou bastante; agora lhe aparece um bom emprego, onde terá oportunidade de ganhar muito dinheiro; se quiser casar-se com Isabel, terá que aceitá-lo.

– Larry precisa ver que, no estado do mundo atual, um homem tem que trabalhar – interveio mrs. Bradley.

– Ele está agora em perfeitas condições físicas. Todos nós sabemos que, terminada a guerra entre os estados, muitos homens nunca mais trabalharam depois que voltaram para casa. Eram um fardo para a família e inúteis à comunidade.

Neste momento entrei na conversa.

– Mas que razão apresenta ele para recusar as várias ofertas que lhe têm sido feitas?

– Nenhuma; a não ser que não lhe agradam.

– Mas ele não quer fazer nada?

– É o que parece.

O dr. Nelson serviu-se de outro uísque. Tomou um longo trago e depois olhou para os seus dois amigos.

– Querem saber qual a minha impressão? Não digo que eu seja grande conhecedor da natureza humana, mas, em todo caso, depois de ter clinicado durante trinta anos, creio entender um pouco do assunto. A guerra teve um efeito qualquer sobre Larry. Ele não voltou o mesmo. Não que esteja somente mais velho; aconteceu alguma coisa que modificou a sua personalidade.

– Que espécie de coisa? – indaguei.

– Não sei dizer. Ele é muito reservado quanto às suas peripécias na guerra. – O dr. Nelson virou-se para mrs. Bradley e perguntou: – Falou alguma vez sobre isso com você, Louisa?

Ela sacudiu a cabeça.

– Não. Logo que chegou, tentamos ver se nos descrevia algumas das suas aventuras, mas ele apenas riu daquele seu jeito e disse que nada tinha para contar. Não falou sobre isso nem mesmo com Isabel. Ela tentou várias vezes, mas não lhe arrancou palavra.

A conversa continuou desta maneira pouco satisfatória e dali a pouco, consultando o seu relógio, o dr. Nelson declarou que tinha que ir embora. Fiz menção de sair com ele, mas Elliott insistiu para que eu ficasse. Depois que o importunado com seus negócios particulares, dizendo que receava que eu estivesse me chateando.

– Mas o senhor compreende que isto me preocupa enormemente – terminou ela.

– Mr. Maugham é muito discreto, Louisa; você não precisa ter medo de confiar nele. Não creio que Bob Nelson e Larry sejam muito íntimos, e há certas coisas que Louisa e eu achamos preferível não falar na presença dele.

– Elliott!

– Você já lhe contou tanta coisa que é melhor contar-lhe o resto. – E virando-se para mim: – Não sei se você notou Gray Maturin ao jantar?

– É tão grande que não pode passar despercebido – respondi.

– É um dos apaixonados de Isabel. Cumulou-a de atenções durante toda a ausência de Larry. Ela gosta dele e, se a guerra se tivesse prolongado, é bem provável que acabassem noivos. Gray pediu-a em casamento. Isabel não aceitou, nem recusou. Louisa desconfiou que ela não queria decidir-se antes da volta de Larry.

– Como é que ele não foi para a guerra? – perguntei.

– Ele forçou o coração jogando futebol. Nada de sério, mas não foi aceito. Em todo caso, depois que Larry voltou, não houve mais esperanças para ele. Isabel deu-lhe um fora definitivo.

Eu não sabia que comentário esperavam que eu fizesse e, portanto, preferi calar-me. Elliott continuou a falar. Com sua distinta aparência e pronúncia oxfordiana, ele mais parecia um alto funcionário do Ministério da Guerra.

– Claro que Larry é um ótimo rapaz, e foi muito correto da sua parte fazer tanto empenho em se alistar, mas sou profundo conhecedor do gênero humano... – Aqui Elliott teve um sorrizinho astuto e ousou a única referência que jamais lhe ouvi ao fato de ter feito fortuna negociando com objetos de arte. – Do contrário eu não teria hoje uma boa quantiazinha em ações do governo. E minha opinião é que Larry nunca chegará a ser alguém. Não tem dinheiro, por assim dizer, nem posição. Agora, com Gray Maturin o caso é outro. Ele tem um bom e antigo nome irlandês. Houve um bispo na família, um dramaturgo, vários militares que se distinguiram e alguns intelectuais.

– Como é que você chegou a saber de tudo isto? – perguntei.

– São coisas que a gente fica sabendo – respondeu ele em tom despreocupado. – Para ser exato, estive dando uma olhada no Dictionary of National Biography, um dia desses, no clube, e dei com o nome por acaso.

Achei que não era da minha conta repetir o que a minha vizinha, ao jantar, me contara do irlandês sem eira nem beira e da garçonete sueca que tinham sido avós de Gray. Elliott prosseguiu:

– Há anos que conhecemos Henry Maturin. É um homem muito direito e muito rico. Gray vai herdar o melhor escritório de corretagens de Chicago. Tem o mundo a seus pés. Quer casar-se com Isabel e não se pode negar que, para ela, seria um ótimo casamento. Sou francamente favorável a ele, e Louisa concorda comigo.

– Você esteve tanto tempo fora da América, Elliott, que se esqueceu de que neste país as moças não se casam só para satisfazer suas mães e tios – disse mrs. Bradley com um sorriso árido.

– Isto não é motivo de orgulho, Louisa – replicou Elliott bruscamente. – Graças a uma experiência de trinta anos, posso asseverar-lhe que o casamento que é considerado sob o ponto de vista de posição, fortuna e igualdade de meio leva vantagem sobre o casamento de amor. Na França, que afinal de contas é o único país civilizado do mundo, Isabel não hesitaria em casar-se com Gray; ao fim de um ou dois anos, se a tal se sentisse inclinada, tornar-se-ia amante de Larry; Gray instalaria uma atriz de fama num luxuoso apartamento, e todos ficariam satisfeitos.

Mrs. Bradley não era nenhuma tola. Fitou o irmão com ar de brejeira ironia e replicou:

– A questão, Elliott, é que, como as companhias teatrais de Nova York só ficam aqui durante certo tempo, Gray não poderia conservar as inquilinas do seu luxuoso apartamento a não ser por prazo limitado. Isto seria, certamente, um inconveniente para todos os interessados.

Elliott sorriu.

– Gray poderia comprar uma cadeira na Bolsa de Nova York. Afinal de contas, se uma pessoa tem que viver na América, não vejo razão para viver noutro lugar a não ser em Nova York.

Saí logo depois; mas antes, não sei por que cargas-d’água, Elliott me perguntou se eu queria almoçar com ele para ficar conhecendo os Maturin, pai e filho. – Henry é o melhor tipo do negociante americano

– disse ele. – Você precisa conhecê-lo. É quem há anos aplica o nosso dinheiro.

Eu não tinha muita vontade de aceitar, mas, faltando-me motivo para a recusa, respondi que iria com prazer.


7

Eu fora admitido, pela minha permanência em Chicago, como sócio temporário de um clube que contava com uma boa biblioteca; na manhã seguinte fui até lá dar uma espiada numa ou duas revistas universitárias, que quem não é assinante sempre tem dificuldade em obter. Era cedo e lá só havia mais uma pessoa, sentada numa vasta poltrona de couro e parecendo absorta na leitura. Foi com surpresa que reconheci Larry. Era a última pessoa que eu esperaria encontrar em tal lugar. Ergueu os olhos quando passei por ele, reconheceu-me e fez menção de se levantar.

– Não se incomode – disse eu. E depois, quase que automaticamente: – Que está lendo?

– Um livro – replicou ele, mas com um sorriso tão simpático que a secura da resposta não podia absolutamente melindrar.

Fechou o livro e, fitando-me com aqueles seus olhos singularmente opacos, segurou-o de modo a não me deixar ver o título.

– Divertiu-se ontem à noite? – perguntei.

– Muitíssimo. Cheguei em casa às cinco da manhã.

– É uma façanha estar aqui tão cedo.

– Venho muito aqui. Em geral a esta hora tenho a sala à minha disposição.

– Eu não o incomodarei.

– O senhor não me está incomodando – disse ele, sorrindo de novo; ocorreu-me então que o seu sorriso era de uma extraordinária doçura. Não animado, nem vivo; era um sorriso que parecia iluminar-lhe o rosto com alguma luz interior. Ele estava sentado numa alcova formada por prateleiras salientes. Apoiou a mão no braço da poltrona a seu lado e prosseguiu: – Não quer sentar-se um pouco?

– Está certo.

Larry entregou-me o livro que segurava.

– Era isto que eu estava lendo.

Vi que se tratava de Principles of Psychology, de William James. É, naturalmente, uma obra clássica, e importante na história da ciência de que se ocupa; de agradável leitura, além do mais, mas não era absolutamente o tipo de livro que eu esperaria ver nas mãos de pessoa tão jovem, um aviador, que estivera dançando até as cinco da manhã.

– Por que está lendo isto? – perguntei.

– Sou muito ignorante.

– É também muito moço – repliquei sorrindo.

Larry ficou calado durante tanto tempo que comecei a achar o silêncio constrangedor e estive a ponto de me levantar para ir à procura das revistas que tinham me levado ali. Mas dominava-me a impressão de que ele queria dizer alguma coisa. Tinha o olhar perdido no espaço, seu rosto era grave e atento e ele parecia meditar. Esperei. Estava curioso por saber do que se tratava. Quando ele falou, foi como se continuasse a conversa, não parecendo ter notado o prolongado silêncio.

– Quando voltei da França, queriam todos que eu fosse para o colégio. Impossível. Depois de tudo por que passei, compreendi que não poderia voltar para a escola. Além do mais, eu pouco aprendera na escola preparatória. Senti que não me convinha a vida de calouro. Eles não teriam gostado de mim. Eu não queria fingir aquilo que não sentia. E não achei que os professores pudessem ensinar-me as coisas que eu desejava conhecer.

– Naturalmente reconheço que isto não é de minha conta, mas não sei se você teve razão – disse eu. – Creio que compreendo o que quer dizer e acho que, depois de dois anos de guerra, teria realmente sido aborrecido voltar a ser pouco mais que um colegial, pois todo primeiro e segundanista não passa disto. Não posso acreditar que eles não teriam gostado de você. Não conheço bem as universidades daqui, mas duvido que os estudantes americanos sejam muito diferentes dos ingleses; talvez um pouco mais barulhentos e mais brincalhões, mas no fundo muito corretos e sensatos; e ouvi dizer que, se um colega não quer levar a vida deles, estão plenamente de acordo, se esse colega tiver um pouco de tato, em deixá-lo seguir seu caminho. Não estive em Cambridge, como meus irmãos. Tive essa oportunidade, mas desprezei-a; eu queria correr mundo. Até hoje me arrependo. Creio que isso me teria evitado muitos erros. A gente aprende mais depressa sob a orientação de professores experientes. Perdemos muito tempo enveredando por becos sem saída, quando não temos ninguém que nos conduza.

– Talvez o senhor tenha razão. Mas não me importo de errar. É possível que num desses becos sem saída eu encontre alguma coisa do que procuro.

– O que é que você procura?

Ele hesitou durante alguns segundos.

– Aí está. Ainda não sei ao certo.

Fiquei em silêncio, pois não parecia haver resposta para isso.

Eu, que desde muito cedo sempre soube o que quis, senti-me ligeiramente impacientado. Mas dominei-me, pois, devido ao que só posso chamar de intuição, senti que na alma daquele rapaz se travava uma luta obscura – não sei se de pensamentos mal esboçados ou emoções confusamente sentidas – que determinava uma inquietação que o impelia nem ele mesmo sabia para onde. Senti-me estranhamente condoído dele. Nunca o ouvira falar muito, e só agora notava como a sua voz era melodiosa. Muito convincente. Como se fosse um bálsamo. Ao considerar essa sua qualidade, o sorriso simpático e os expressivos olhos negros, achei perfeitamente compreensível que Isabel o amasse. Havia realmente nele qualquer coisa que atraía. Larry virou a cabeça e olhou-me sem constrangimento, mas com expressão ao mesmo tempo perscrutadora e divertida.

– Será que tenho razão ao imaginar que ontem, depois que saímos para a festa, ficaram falando de mim?

– Durante algum tempo.

– Achei que foi por isso que insistiram tanto para que o tio Bob fosse jantar. Ele detesta sair de casa.

– Ouvi dizer que você teve oferta de um bom emprego.

– Ótimo.

– Vai aceitá-lo?

– Acho que não.

– Por quê?

– Não tenho vontade.

Eu estava me metendo no que não era da minha conta, mas tive a impressão de que, justamente pelo fato de eu ser um desconhecido, e de um país estrangeiro, Larry não tinha má vontade em discutir o caso comigo.

– Bom, você sabe que, quando uma pessoa não consegue fazer nada, vira escritor – disse eu com uma risadinha.

– Não tenho talento.

– Mas, então, que pretende fazer?

Ele me atirou um dos seus sorrisos radiosos, fascinantes.

– Vadiar – respondeu. Não pude deixar de rir.

– Não me consta que Chicago seja o melhor lugar para isso – repliquei. – Em todo caso, deixo-o à sua leitura. Quero dar uma olhada na Yale Quarterly.

Levantei-me. Quando saí da biblioteca, Larry ainda estava absorto no livro de William James. Almocei sozinho no clube e, como a biblioteca era lugar sossegado, fui para lá fumar o meu charuto e distrair-me por uma ou duas horas, lendo e escrevendo cartas. Fiquei admirado por ver Larry ainda mergulhado na leitura. Pareceu-me que não se movera desde que eu o deixara. Quando saí, às quatro horas, ainda lá estava. Fiquei impressionado com o seu poder de concentração. Ele não me vira entrar ou sair. Tendo muito que fazer durante a tarde, não voltei ao Blackstone senão à hora de me vestir para ir a um jantar a que fora convidado. No caminho tive um acesso de curiosidade. Entrei de novo no clube e fui até a biblioteca. Havia ali, agora, muita gente, lendo jornais e outras coisas. Larry continuava na mesma cadeira, atento no mesmo livro. Esquisito!


8

No dia seguinte Elliott me convidou para almoçar no Palmer House, para encontrar-me com o velho Maturin e seu filho. Éramos somente quatro. Henry Maturin era um homem quase tão grande como seu filho, com um carnudo rosto vermelho e maxilar pesado; tinha o mesmo nariz chato, agressivo, mas seus olhos eram menores que os de Gray, não tão azuis, e extraordinariamente sagazes. Embora não pudesse ter mais de cinquenta anos, parecia ter dez anos mais; seus cabelos, que rapidamente se aproximavam da calvície, eram brancos como a neve. À primeira vista não era simpático. Dava a impressão de ter durante anos vivido bem demais, e pareceu-me um sujeito brutal, inteligente e competente e que, pelo menos em matéria de negócios, devia ser implacável.

A princípio ele pouco falou e ocorreu-me que estava tomando o meu pulso. Não pude deixar de perceber que não levava Elliott muito a sério. Gray, amável e delicado, ficou quase que em completo silêncio e a reunião teria sido um fracasso se, com seu incomparável tato social, Elliott não tivesse mantido uma conversa fácil e agradável. Achei que, em outros tempos, ele devia ter adquirido certa experiência lidando com negociantes do Oeste Central, que necessitavam de persuasão para pagar um preço exorbitante por alguma obra de arte. Dali a pouco mr. Maturin começou a sentir-se mais à vontade, tendo feito uma ou duas observações que indicavam que ele era mais vivo do que parecia e tinha mesmo um árido senso do humor. Durante algum tempo a conversa girou sobre títulos e ações. Eu teria ficado admirado por ver como Elliott entendia do assunto, se há muito já não tivesse percebido que, apesar de todas as suas bobices, ele não era nenhum tolo. Foi aí que mr. Maturin observou:

– Recebi hoje uma carta do amigo de Gray, Larry Darrell.

– Você não me contou nada, papai – disse Gray. Mr. Maturin voltou-se para mim.

– O senhor conhece Larry, não conhece? – Inclinei a cabeça e ele continuou: – Gray convenceu-me a convidá-lo para trabalhar conosco. São muito amigos. Gray tem dele uma opinião muito elevada.

– O que foi que ele disse, papai?

– Agradeceu-me. Declarou que sabia que não podia haver melhor oportunidade para um rapaz e que refletira seriamente sobre o assunto, chegando à conclusão de que iria decepcionar-me e que era preferível recusar.

– É uma grande tolice da parte dele – disse Elliott.

– De fato – concordou mr. Maturin.

– Sinto muito, papai – disse Gray. – Teria sido ótimo trabalharmos juntos.

– A gente pode conduzir um cavalo ao rio, mas não pode obrigá-lo a beber.

Ao dizer isto, mr. Maturin olhou para o filho e a expressão dos seus olhos suavizou-se. Vi que havia outra faceta no caráter daquele duro negociante; ele adorava aquele seu filhão desajeitado. Virou-se de novo para mim:

– Sabe de uma coisa, no domingo este rapaz deu a volta em dois abaixo do par. Ele me bateu sete e seis. Tive vontade de abrir-lhe a cabeça com o meu taco. E pensar que fui eu que lhe ensinei golfe!

O homem não cabia em si de orgulho. Comecei a gostar dele.

– Tive muita sorte, papai.

– Absolutamente. Acha então que é sorte sair da banca e colocar a bola a seis polegadas da bandeira? No mínimo trinta e oito jardas, aquela batida. Quero que no próximo ano ele tome parte no campeonato de amadores.

– Não vou ter tempo para isso.

– Sou eu o seu patrão, não sou?

– Se é!... O barulho que você faz quando chego um minuto atrasado no escritório!

Mr. Maturin deu uma risadinha e virou-se para mim.

– Ele está querendo me fazer de tirano. Não acredite. O meu negócio sou eu, pois meus sócios não prestam para nada, e tenho muito orgulho do meu negócio. Fiz este meu filho começar de baixo, e espero que ele vá subindo por merecimento, como qualquer outro empregado, de momento oportuno. Um escritório como o nosso é uma grande responsabilidade. Há trinta anos que cuido do emprego de capital de alguns dos meus clientes e eles têm confiança em mim. Para falar com franqueza, prefiro perder o meu dinheiro a vê-los perder o seu.

Gray deu uma risada.

– Um destes dias, quando uma velhota veio procurá-lo para empregar mil dólares num projeto fantástico que o seu pastor lhe recomendara, ele se recusou a aceitar a incumbência; e, quando a mulher insistiu, passou-lhe uma tal descompostura que ela foi embora chorando. Depois ele chamou o pastor e passou-lhe também um sabão.

– Falam muito mal da nossa classe, mas há corretores e corretores – disse mr. Maturin. – Não quero que meus clientes tenham prejuízo; quero que tenham lucro, mas, pela atitude de muitos, a gente pensaria que estão loucos para se ver livres do último centavo que possuem!


– Então, que tal é ele? – perguntou-me Elliott enquanto caminhávamos, depois que os Maturin nos deixaram para voltar ao escritório.

– Sempre tenho prazer em conhecer tipos novos. Achei enternecedora a mútua afeição entre pai e filho. Não creio que isto seja muito comum na Inglaterra.

– Ele adora aquele rapaz. É um sujeito esquisito. Saiba que é verdade o que disse a respeito dos seus clientes.

Toma conta das economias de centenas de velhas, militares aposentados e pastores. Na minha opinião isso dá mais trabalho do que lucro, mas Maturin se orgulha da confiança que depositam nele. Mas, quando se trata de um negócio de vulto e ele tem que lutar contra poderosos interesses, não há homem mais duro. Inexorável. Piedade é palavra que então desconhece. Quer o seu lucro, e não há obstáculo que o detenha. Se uma pessoa pisar nos seus calos, não somente ele a arruinará, mas ainda achará graça à situação.

Ao chegar em casa Elliott contou a mrs. Bradley que Larry recusara a oferta de Henry Maturin. Isabel fora almoçar com algumas amiguinhas e chegou quando ainda discutiam o assunto. Deram-lhe a notícia. Pelo que Elliott me repetiu da cena, cheguei à conclusão de que ele se exprimira com grande eloquência. Embora tivesse vivido na ociosidade naqueles últimos dez anos, não tendo o seu trabalho anterior, que lhe valera a fortuna, sido dos mais árduos, Elliott era de opinião que, para o bem da humanidade, o trabalho era essencial. Larry era um rapazinho como qualquer outro, sem nenhuma importância social, e não havia absolutamente razão para que não se conformasse com aquele louvável hábito do seu país. Era evidente, para um homem de visão como Elliott, que a América entrava numa época de prosperidade como jamais conhecera. Larry tinha a oportunidade de participar dessa prosperidade e, se fosse perseverante, quando chegasse aos quarenta anos, poderia ser muitas vezes milionário. Se aí então quisesse aposentar-se e viver como um cavalheiro, digamos em Paris, com um apartamento na Avenue du Bois e um castelo em Touraine, ele (Elliott) nada teria a dizer. Mas Louisa Bradley foi mais concisa e mais categórica. Disse:

– Se ele gosta de você, deve estar disposto a trabalhar para você.

Não sei que resposta Isabel deu a isso, mas teve o bom senso de reconhecer que os mais velhos estavam com a razão. Todos os rapazes de sua roda estavam estudando para uma profissão ou trabalhando em algum escritório. Larry não podia pretender passar a vida inteira dormindo sobre suas glórias de aviador. A guerra acabara, estavam todos fartos dela e aflitos por esquecê-la. A conversa teve como resultado a promessa de Isabel de discutir o assunto com Larry de uma vez por todas. Mrs. Bradley sugeriu que ela pedisse ao rapaz que a levasse de carro até Marvin. Pretendia encomendar cortinas novas para a sala de visitas e perdera as dimensões, querendo portanto que Isabel as tomasse novamente.

– Vocês podem almoçar na casa de Bob Nelson – concluiu.

– Tenho ideia melhor – disse Elliott. – Ponha no carro uma cesta de piquenique; eles poderão comer na varanda e conversar depois do almoço.

– Seria divertido – disse Isabel.

– Há poucas coisas no mundo tão agradáveis como um almoço de piquenique saboreado com todo conforto – declarou Elliott sentenciosamente. – A velha duquesa d’Uzès costumava dizer que, em tais circunstâncias, o macho mais recalcitrante se torna sugestionável. Que é que você pretende dar-lhes para o almoço?

– Ovos cozidos e sanduíches de galinha.

– Absurdo. Ninguém pode fazer um piquenique sem pâté de foie gras. Eles precisam levar, em primeiro lugar, camarões com caril; peito de galinha em gelatina, com uma salada de alfaces tenras, que eu mesmo prepararei; e depois do pâté, se você quiser, como concessão ao hábito nacional, uma torta de maçã.

– Eles levarão ovos cozidos e sanduíches de galinha, Elliott – declarou mrs. Bradley em tom decidido.

– Pois bem, tome nota do que digo: vai ser um fracasso e a culpa será sua.

– Larry come muito pouco, tio Elliott – interveio Isabel. – E creio que nem nota o que come.

– Espero que você não considere isto uma qualidade, minha pobre menina – replicou ele.

Mas aquilo que mrs. Bradley dissera que os dois levariam foi exatamente o que levaram. Ao contar-me o resultado da excursão, Elliott encolheu os ombros em gesto muito francês.

– Bem que as preveni de que seria um fracasso. Supliquei a Louisa que enfiasse na cesta uma garrafa de Montrachet, que eu lhe enviara pouco antes da guerra, mas ela não me deu ouvidos. Levaram uma garrafa térmica com café, e nada mais. Que se poderia então esperar?

Parece que Louisa Bradley e Elliott estavam sozinhos na sala quando ouviram o carro parar à porta e Isabel entrar em casa. Caíra a tarde e as cortinas estavam descidas. Elliott estava à vontade numa poltrona, lendo um romance, e mrs. Bradley trabalhava numa tapeçaria que ia servir de biombo para a lareira. Isabel subira diretamente para o quarto. Elliott fitara a irmã por cima dos óculos.

– Com certeza ela foi tirar o chapéu – disse mrs. Bradley. – Daqui a pouco vai descer.

Mas passaram-se vários minutos sem que Isabel viesse.

– Talvez ela esteja cansada; com certeza deitou-se por um pouco.

– Não acha que seria mais natural Larry ter entrado?

– Não seja irritante, Elliott.

– Bom, isso não é comigo, é com você.

Elliott voltou à sua leitura. Mrs. Bradley recomeçou a bordar.

Mas depois de se ter passado meia hora ela se levantou bruscamente.

– Acho melhor eu subir para ver se ela está bem. Se estiver descansando, não a incomodarei.

Saiu da sala, mas voltou logo em seguida.

– Ela esteve chorando. Larry vai para Paris; pretende ficar ausente dois anos. Isabel prometeu esperar por ele.

– Por que motivo deseja ele ir para Paris?

– Não adianta fazer-me perguntas, Elliott. Não sei. Isabel não me quis contar nada. Diz que compreende e que não quer ser um estorvo para ele. Eu disse: “Se Larry está disposto a deixá-la por dois anos, Isabel, então seu amor não pode ser muito forte”. E ela respondeu: “Paciência. O essencial é que eu o amo muito”. “Mesmo depois do que aconteceu hoje?”, perguntei. “O dia de hoje fez com que eu o amasse mais ainda. E ele também me ama, mamãe; tenho certeza disso.”

Elliott refletiu durante alguns instantes.

– E que vai acontecer depois desses dois anos?

– Já lhe disse que não sei, Elliott.

– Não acha o arranjo pouco satisfatório?

– Acho.

– Só resta um consolo: é que são ambos muito moços. Não lhes fará mal esperar dois anos, e nesse espaço de tempo muita coisa pode acontecer.

Concordaram em que seria preferível deixar Isabel em paz, pois iam jantar fora aquela noite.

– Não quero perturbá-la – disse mrs. Bradley. – Todo mundo ficaria fazendo conjeturas se ela aparecesse de olhos inchados.

Mas no dia seguinte, ao almoço, que foi tomado na intimidade, de novo mrs. Bradley tocou no assunto. Mas pouco arrancou de Isabel.

– Não há realmente quase mais nada para contar além do que lhe contei ontem à noite, mamãe – disse ela.

– Mas que é que Larry pretende fazer em Paris? Isabel sorriu, pois sabia quanto a resposta ia parecer absurda à sua mãe.

– Vadiar.

– Vadiar? Que quer você dizer com isso?

– Foi o que ele me disse.

– Francamente, você me faz perder a paciência. Se tivesse um pouco de energia, teria desmanchado o noivado ali na hora. Ele está brincando com você.

Isabel olhou para o anel que trazia na mão esquerda.

– Que hei de fazer? Eu o amo.

Neste momento Elliott entrou na conversa. Discutiu o assunto com o seu tato habitual. “Não como um tio, meu caro amigo, mas como um homem vivido que se dirigisse a uma donzela inexperiente.” Mas não obteve melhores resultados. A impressão que tive foi que, delicadamente mas com firmeza, Isabel lhe dissera que não se metesse no que não era da sua conta. Elliott me repetiu tudo isto no mesmo dia, um pouco mais tarde, quando estávamos ambos na saleta que eu tinha no Blackstone.

– Claro que Louisa tem razão – disse ele. – É muito pouco satisfatório, mas é o que acontece quando deixam que os moços resolvam um casamento que só tem por base uma afeição mútua. Eu disse a Louisa que não se preocupe; creio que as coisas se resolverão melhor do que ela espera. Com Larry no estrangeiro e o jovem Maturin sempre presente... Bom, se é que entendo alguma coisa da psicologia humana, não é difícil prever-se o resultado. Aos dezoito anos nossas emoções são violentas, mas pouco duradouras.

– Você hoje está filósofo, Elliott – comentei sorrindo.

– Não foi à toa que li o meu La Rochefoucauld. Você conhece Chicago; eles se encontrarão constantemente. Uma moça fica lisonjeada por ter alguém que lhe faça a corte o tempo todo e, quando ela sabe que não há uma de suas amigas que não ficaria radiante de poder casar-se com ele... Pois bem, diga-me lá: acha natural que resista à tentação de suplantar todas as outras? Explico-me melhor: é o mesmo que você ir a uma festa, sabendo que vai se aborrecer à grande e que lá só servirão limonada e biscoitos; mas você vai porque sabe que seus amigos dariam a vida por ir, e no entanto não foram convidados.

– Quando é que Larry pretende partir?

– Não sei. Creio que ainda não foi resolvido. – Elliott sacou do bolso uma cigarreira de ouro e platina e tirou de dentro um cigarro egípcio. Nada de Fátimas, para ele, ou Chesterfields ou Camels, ou Lucky Strikes. Fitou-me com um sorriso repleto de insinuações e continuou:

– Claro que eu não diria isso a Louisa, mas a você não me importo de confessar que no fundo compreendo o ponto de vista do rapazinho. Parece que ele tomou um gostinho de Paris durante a guerra, e não o censuro por se sentir atraído pela única cidade do mundo onde um homem civilizado pode viver. É moço e com certeza quer divertir-se um pouco, antes de se assentar na vida de casado. Muito natural e muito certo. Olharei por ele. Apresentá-lo-ei na boa sociedade; ele tem maneiras finas e, com uma ou duas indiretas que eu lhe der, ficará mais apresentável; garanto que posso mostrar-lhe um aspecto da vida na França que a bem poucos americanos é dado conhecer. Creia-me, caro amigo, é mais fácil ao tipo comum de americano entrar no reino dos céus do que no Boulevard St. Germain. Larry tem vinte anos e é simpático. Não será difícil arranjar-lhe uma ligação com uma mulher mais velha. Isto o formaria. Sempre achei que não há melhor educação para um rapaz do que se tornar amante de uma mulher de certa idade e, naturalmente, se ela for do tipo de mulher que tenho em vista, uma femme du monde, você compreende, isto imediatamente lhe daria uma posição em Paris.

– Você disse isso a mrs. Bradley? – perguntei sorrindo. Elliott deu uma risadinha.

– Meu caro amigo, se há uma coisa de que me orgulho neste mundo é do meu tato. Não lhe disse absolutamente nada. Ela não entenderia, a coitadinha. Está aí uma coisa que jamais compreendi em Louisa; embora tenha passado metade de sua vida na diplomacia, residindo em inúmeras capitais do mundo, ela se conservou irremediavelmente americana.


9

Aquela noite fui jantar em Lake Shore Drive, numa enorme casa de pedra que dava a impressão de que o arquiteto iniciara a construção de um castelo medieval e depois, mudando repentinamente de ideia, resolvera transformá-lo em chalé suíço. Era uma reunião grande e, quando entrei na vasta e suntuosa sala de visitas, cheia de estátuas, palmeiras, candelabros, quadros célebres e pesadíssima mobília, fiquei satisfeito por ver que pelo menos algumas das pessoas presentes eu conhecia. Henry Maturin apresentou-me à sua magra, pouco interessante e frágil esposa. Cumprimentei mrs. Bradley e sua filha. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda vermelha que dava realce aos seus cabelos escuros e olhos castanhos. Parecia muito animada e ninguém diria que acabara de ter um grande aborrecimento. Conversava alegremente com dois ou três rapazes, Gray entre eles, que a cercavam. Ao jantar sentou-se a outra mesa e não pude vê-la; mas mais tarde, quando nós, homens, depois de termos nos eternizado nos nossos cafés, licores e cigarros, voltamos para a sala de visitas e tive oportunidade de falar-lhe. Eu a conhecia muito pouco para tocar diretamente no assunto a que Elliott se referira, mas tinha alguma coisa para contar-lhe, que, achei, iria causar-lhe prazer.

– Vi o seu namorado no clube, há poucos dias – disse eu despreocupadamente.

– Ah! viu?...

Seu tom era tão despreocupado quanto o meu, mas percebi que ela ficara imediatamente alerta. Seus olhos adquiriram uma expressão vigilante e creio ter notado neles a sombra da apreensão.

– Ele estava lendo na biblioteca. Fiquei impressionadíssimo com o seu poder de concentração. Lia quando cheguei, pouco depois das dez, lia quando apareci depois do almoço, e ainda estava lendo quando lá voltei à hora do jantar. Não creio que tenha se levantado da cadeira durante a maior parte de um espaço de dez horas.

– O que ele estava lendo?

– Principles of Psychology de William James.

Isabel baixou os olhos para que eu não pudesse ver a impressão que isso lhe causara, mas pareceu-me que ela ficara ao mesmo tempo perplexa e aliviada. Neste momento o dono da casa veio chamar-me para o bridge; quando o jogo acabou, Isabel e sua mãe já tinham ido para casa.


10

Dois dias mais tarde fui despedir-me de mrs. Bradley e Elliott. Encontrei-os tomando chá. Logo depois Isabel apareceu. Falamos da minha próxima viagem, agradeci-lhes as gentilezas que me tinham dispensado durante minha permanência em Chicago, e depois de um prazo regular levantei-me para partir.

– Vou com o senhor até a drugstore – disse Isabel. – Lembrei-me agora que tenho uma compra a fazer.

As últimas palavras que mrs. Bradley me disse foram: “O senhor dará lembranças minhas à querida rainha Margherita, não é?”.

Eu desistira de procurar convencê-la de que não conhecia aquela augusta personagem, e mais que depressa respondi que lhe faria a vontade.

Quando ganhamos a rua, Isabel lançou-me de soslaio um olhar sorridente.

– O senhor acha que poderia tomar um ice-cream-soda? – perguntou-me.

– Só experimentando – respondi prudentemente. Isabel não falou até chegarmos à drugstore e eu, por nada ter a dizer, também fiquei em silêncio. Entramos e tomamos uma mesa, sentando-nos em cadeiras com encosto de ferro forjado e pés no mesmo estilo. Muito pouco confortáveis. Encomendei dois ice-cream-soda. Algumas pessoas faziam compras diante dos balcões; dois ou três casais, sentados a outras mesas, só pareciam atentos aos seus interesses; estávamos, pois, por assim dizer, sozinhos. Acendi um cigarro e esperei, observando Isabel que, com aparente satisfação, chupava o seu refresco por meio de uma longa palhinha. Pareceu-me nervosa.

– Eu queria falar com o senhor – disse-me bruscamente.

– Foi o que me pareceu – respondi sorrindo.

Ela me fitou, pensativa, durante um ou dois minutos.

– Por que motivo me disse aquilo de Larry a noite retrasada na casa dos Satterthwaites?

– Achei que lhe ia interessar. Ocorreu-me que talvez você não soubesse o que ele queria dizer com “vadiar”.

– Tio Elliott é um linguarudo. Quando me disse que ia ao Blackstone dar uma perobinha com o senhor, logo vi que ia contar-lhe tudo.

– Eu o conheço há muitos anos, sabe. Ele tem prazer em comentar a vida alheia.

– É verdade – disse ela, com um sorriso apenas esboçado. Fitou-me atentamente, com expressão séria no olhar. – Que é que acha de Larry?

– Só o vi três vezes. Parece-me muito bom rapaz.

– Só isso?

Havia uma nota de tristeza na voz dela.

– Não; não é. Fica difícil eu dar opinião; você vê, conheço-o há muito pouco tempo. Claro que é simpático. Há nele qualquer coisa de modesto, amável e suave, que é deveras atraente. E é muito senhor de si, considerando-se a sua mocidade. Não se parece com nenhum dos rapazes que fiquei conhecendo aqui.

Enquanto eu assim desajeitadamente procurava dar forma a uma impressão ainda confusa no meu pensamento, Isabel me fitava atentamente. Quando terminei, ela soltou um suspirozinho, como que aliviada, e lançou-me um sorriso encantador, meio maroto.

– O tio Elliott diz que muitas vezes tem ficado admirado do seu dom de observação, mr. Maugham. Diz que pouca coisa lhe escapa, mas que a sua maior qualidade como escritor é o seu bom senso.

– Conheço uma qualidade mais apreciável – repliquei secamente. – Talento, por exemplo.

– Sabe, não tenho ninguém com quem discutir o meu caso. Mamãe só enxerga as coisas sob o seu ponto de vista. Quer garantir o meu futuro.

– É mais que natural, não é?

– E o tio Elliott só vê o lado social. Minhas amigas, refiro-me às da minha geração, acham Larry muito pouco interessante. Isto dói terrivelmente.

– Claro.

– Não digo que elas não sejam gentis com ele. Ninguém pode deixar de ser gentil com Larry. Mas não o levam a sério. Fazem muita troça dele e ficam exasperadas por ver que ele não faz caso. Larry apenas ri. O senhor sabe em que pé estão as coisas atualmente?

– Só sei o que Elliott me contou.

– Posso contar-lhe exatamente o que se passou quando fomos a Marvin?

– Claro.

Consegui reconstruir o episódio que Isabel me descreveu, em parte pela lembrança que tenho do que ela me disse naquele dia, e em parte acudido pela imaginação. Mas foi longa a conversa entre ela e Larry e não duvido que tenham dito muito mais do que pretendo agora relatar. Creio que, como acontece com todo mundo nessas ocasiões, eles não somente disseram muita coisa que não vinha ao caso, mas repetiram várias vezes as mesmas frases.

Quando se levantou, naquele dia, ao ver a beleza da manhã Isabel telefonou a Larry, dizendo que sua mãe queria que ela fosse até Marvin, e pedindo-lhe que a levasse de carro. Tomara a precaução de acrescentar uma garrafa térmica, de martíni, à de café que sua mãe ordenara a Eugene que pusesse na cesta. O carro era novo e Larry tinha orgulho dele. Gostava de guiar depressa, e a velocidade os deixou muito animados. Chegando a Marvin, Isabel mediu as cortinas que deviam ser substituídas, enquanto Larry ia anotando os números. Depois prepararam o almoço na varanda. Esta era protegida contra todo e qualquer vento, e o sol do verão de S. Martinho aquecia agradavelmente. A casa, à beira de uma estrada poeirenta, nada tinha da elegância das velhas casas de madeira da Nova Inglaterra e, mesmo com boa vontade, o mais que se poderia dizer era que era grande e confortável; mas da varanda tinha-se uma vista agradável, do barracão vermelho com o seu telhado negro, uma moita de velhas árvores, e além, até onde alcançava a vista, campos pardacentos. Paisagem monótona, mas o sol e as tintas brilhantes do fim do ano davam-lhe uma beleza toda sua. Era intoxicante aquela amplidão. Por mais fria, nua e melancólica que se apresentasse no inverno, por mais seca, crestada e opressiva que fosse em outros dias, naquela ocasião era estranhamente excitante, pois a vastidão do panorama convidava a alma à aventura.

Eles saborearam o almoço como criaturas moças e sadias que eram, sentindo prazer na companhia um do outro. Isabel serviu o café e Larry acendeu o cachimbo.

– Agora, desabafe-se, meu bem – disse ele com um sorriso divertido nos olhos.

Isabel foi apanhada de surpresa.

– Desabafar-me sobre o quê? – perguntou com o ar mais inocente que lhe foi possível assumir.

Ele deu uma risadinha.

– Pensa que sou algum idiota, meu amor? Se sua mãe não conhecer perfeitamente as dimensões das janelas da sala, quero ser mico de cavalinho! Não foi por isso que você me pediu para trazê-la aqui.

Novamente senhora de si, Isabel lançou-lhe um sorriso encantador.

– Pode ser que eu tenha achado que seria agradável passarmos um dia juntos, só nós dois.

– Pode ser, mas não creio que tenha sido. Meu palpite é que o tio Elliott lhe contou que recusei o convite de Henry Maturin.

Ele falava alegre e despreocupadamente e Isabel achou conveniente adotar o mesmo tom.

– Gray deve ter ficado profundamente decepcionado. Achava que seria ótimo ter você com ele no escritório. Você tem que trabalhar um dia e, quanto mais for adiando, pior.

Larry tirou uma cachimbada e fitou-a, sorrindo ternamente, de modo que Isabel não soube dizer se ele estava falando sério ou não.

– Sabe, tenho a impressão de que quero fazer da minha vida alguma coisa mais do que vender títulos.

– Está certo, então. Entre para um escritório de advocacia ou vá estudar medicina.

– Não; não é também isto que eu quero.

– O que é que você quer, então?

– Vadiar – replicou ele calmamente.

– Oh! Larry, não se faça de engraçado. Isto é muito, muito sério.

A voz de Isabel tremia e seus olhos se encheram de lágrimas.

– Não chore, querida. Não desejo fazê-la sofrer.

Ele foi sentar-se ao lado de Isabel, passando o braço à volta dos ombros dela. Havia uma tão grande ternura na sua voz que Isabel não pôde conter as lágrimas. Mas enxugou-as e tentou chamar aos lábios um sorriso.

– É muito fácil dizer que não quer fazer-me sofrer. Você está me fazendo sofrer. Porque, sabe, eu gosto de você, Larry.

– Eu também gosto de você, Isabel.

Ela suspirou profundamente. Depois se desvencilhou dos braços dele, afastando-se ligeiramente.

– Sejamos sensatos. Um homem tem que trabalhar, Larry. É uma questão de amor-próprio. Vivemos num país novo e é dever de todo homem tomar parte nas atividades deste país. Ainda no outro dia, Henry Maturin estava dizendo que nos encontramos no início de uma era que fará com que as realizações passadas pareçam insignificantes. Disse que não vê limites para o nosso progresso, e está convencido de que lá para 1930 seremos o país maior e mais rico do mundo. Você não acha isto formidável?

– Formidável.

– Nunca os moços tiveram igual oportunidade. Pensei que você fosse sentir-se orgulhoso de participar do trabalho que temos à nossa frente. É uma maravilhosa aventura.

Ele riu ligeiramente.

– Creio que você tem razão. As Armour e Swift produzirão melhores conservas e em maior escala, as McCormick farão melhores foices e em maior quantidade, Henry Ford porá no mercado maior número de melhores carros. E todo mundo ficará mais rico e ainda mais rico. E por que não?

– Sim, como diz você, por que não? Mas acontece que o dinheiro não me interessa.

Isabel riu nervosamente.

– Meu bem, não diga tolices. Ninguém pode viver sem dinheiro.

– Tenho um pouquinho; é por isso que posso fazer o que quero.

– Vadiar?

– Sim – respondeu ele sorrindo.

– Você está dificultando tanto as coisas para mim, Larry – suspirou Isabel.

– Sinto muito. Eu não o faria, se dependesse da minha vontade.

– Depende da sua vontade.

Ele sacudiu a cabeça. Ficou quieto durante alguns instantes, imerso nos seus pensamentos. Quando finalmente quebrou o silêncio, foi para dizer algo que a sobressaltou.

– Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos quando mortos.

– O que quer você exatamente dizer com isto? – perguntou ela, perturbada.

– Justamente isto. – Ele sorriu, meio encabulado. – A gente tem muito tempo para pensar, quando está voando, sozinho. Fica-se com ideias esquisitas.

– Que espécie de ideias?

– Vagas – respondeu ele sorrindo. – Incoerentes. Confusas.

Isabel refletiu durante alguns instantes.

– Não acha que, se você começasse a trabalhar, elas se coordenariam e você ficaria sabendo em que terreno pisava?

– A ideia me ocorreu. Pensei em ir trabalhar numa carpintaria ou em alguma garagem.

– Oh! Larry, todo mundo pensaria que você está maluco.

– Teria isto importância?

– Para mim, sim.

De novo se fez silêncio entre eles. Foi Isabel quem o quebrou. Soltou um suspiro e disse:

– Você está tão diferente do que era quando foi para a França!

– Isto não é de estranhar. Muita coisa me aconteceu, você sabe.

– Como por exemplo?

– Oh, nada de extraordinário. Meu maior amigo na aviação morreu ao salvar-me a vida. Não foi fácil conformar-me com isso.

– Conte-me como foi, Larry.

Ele fitou-a com profunda angústia no olhar.

– Prefiro não falar nisso. Afinal de contas, foi um incidente corriqueiro.

Emotiva por natureza, Isabel sentiu de novo lágrimas nos olhos.

– Você é infeliz, meu bem?

– Não – respondeu ele sorrindo. – A única coisa que me torna infeliz é saber que estou tornando você infeliz.

– Ele segurou a mão de Isabel, e era tão amigo o aperto daquela mão firme e forte, havia nele tão afetuosa intimidade que Isabel teve que morder os lábios para não chorar.

– Creio que não terei paz de espírito enquanto não resolver certas coisas – continuou Larry gravemente. Hesitou e depois: – É difícil explicar. A gente experimenta e logo fica constrangida. Pensa: “Quem sou eu para quebrar minha cabeça sobre isso, aquilo e aquele outro? Mas talvez eu não passe de um pedante pretensioso. Não seria melhor seguir o caminho que os outros trilharam e deixar que os acontecimentos venham como têm que vir?”. Mas então a gente se lembra de um sujeito que uma hora antes estava cheio de vida e de alegria e agora está morto. Tudo tão cruel e sem significação! É difícil deixar de perguntar a si próprio que finalidade tem a vida, se ela tem algum sentido ou se não passa de um erro trágico por parte do destino cego.

Quando Larry falava com aquela sua voz maravilhosamente melodiosa, interrompendo-se como se fizesse um esforço para dizer coisas que preferia calar, e exprimindo-se, no entanto, com tão angustiosa sinceridade, era impossível ao ouvinte não se comover; assim sendo, durante algum tempo Isabel teve medo de falar.

– Acha que adiantaria se você se ausentasse durante algum tempo?

Isabel formulara a pergunta com o coração na mão. Larry levou muito tempo para responder.

– Creio que sim. A gente procura mostrar-se indiferente à opinião pública, mas não é assim tão fácil. Quando essa opinião é antagônica, excita em nós antagonismo e isto nos perturba.

– Então, por que não vai?

– Bom, por sua causa.

– Sejamos francos um com o outro, meu bem. No momento atual não há lugar na sua vida para mim.

– Quer dizer que você prefere desmanchar o nosso noivado?

Ela conseguiu chamar um sorriso aos lábios trêmulos.

– Não, tolinho; quer dizer que estou disposta a esperar.

– Talvez seja um ano. Talvez dois.

– Não faz mal. Talvez seja menos. Para onde você quer ir?

Ele fitou-a atentamente, como se desejasse ler-lhe o mais íntimo pensamento. Isabel sorriu despreocupadamente para esconder o seu profundo desgosto. Larry disse:

– Pois bem, pensei em começar indo para Paris. Não conheço ali ninguém. Não haveria ninguém para se meter com a minha vida. Fui diversas vezes a Paris quando em licença. Não sei por quê, mas tenho impressão de que ali tudo o que está confuso no meu espírito se aclararia. É um lugar engraçado; a gente tem impressão de que ali poderá analisar a fundo os próprios pensamentos. Creio que assim eu talvez chegue a saber que caminho tomar.

– E que acontecerá se não ficar sabendo? Ele deu uma risadinha.

– Então recuperarei o proverbial bom senso americano, darei a experiência por malsucedida e voltarei para Chicago, aceitando o emprego que conseguir arranjar.

A cena impressionara demasiadamente Isabel para que ela pudesse repetir-me sem ficar emocionada. Ao terminar, fitou-me com um arzinho que me penalizou.

– Acha que fiz bem?

– Acho que fez a única coisa possível e, mais ainda, acho que foi extraordinariamente boa, generosa e compreensiva.

– Gosto de Larry e quero que ele seja feliz. E, sabe, até certo ponto acho preferível que ele vá. Quero que se veja livre desta atmosfera hostil, não somente por sua causa, mas pela minha também. Não posso criticar as pessoas que afirmam que ele nunca dará coisa alguma; detesto-as por dizerem isso e, no entanto, bem no fundo, tenho um medo horrível de que estejam com a razão. Mas não diga que sou compreensiva. Não tenho a mínima ideia do que ele procura.

– Talvez você compreenda mais com o coração do que com a razão – repliquei sorrindo. – Por que não se casa imediatamente com ele e não o acompanha a Paris?

O olhar de Isabel teve o brilho de um sorriso.

– Nada que eu desejasse mais. Mas não posso. E, o senhor sabe, embora eu deteste reconhecer semelhante coisa, acho que ele estará melhor sem a minha companhia. Se o dr. Nelson acerta ao dizer que Larry está sofrendo as consequências do choque, então um ambiente novo e outros interesses o curarão e, ao recuperar o equilíbrio, ele voltará para Chicago e vai trabalhar como todo mundo. Não tenho a mínima vontade de me casar com um vadio.

Isabel fora educada de certa maneira e aceitava os princípios que lhe haviam sido incutidos. Não pensava em dinheiro, porque ignorava o que era não ter tudo de que necessitava, mas instintivamente compreendia a sua importância. Poder, influência, posição social. Era natural e óbvio que um homem procurasse ganhá-lo.

Era esta a sua missão na terra.

– Não me admiro que você não compreenda Larry, pois garanto que nem ele se compreende a si próprio – disse eu. – Se ele se mostra reservado quanto aos seus desígnios, talvez seja porque esses desígnios ainda lhe são obscuros. Previno-a: conheço-o muito pouco e isto é apenas um palpite, mas não acha possível que ele esteja procurando por alguma coisa, mas uma coisa que ele ignora qual seja, de cuja existência talvez nem mesmo certeza tenha? É possível que o que lhe aconteceu na guerra, seja o que for, tenha determinado uma inquietação que nunca o abandona. Não acha que ele talvez esteja à procura de um ideal que se oculta na névoa do desconhecido, como o astrônomo que busca a estrela que somente um cálculo matemático lhe diz que existe?

– Sinto que alguma coisa o está afligindo.

– Sua alma? É possível que ele esteja com um pouco de medo de si próprio. É possível que não acredite na autenticidade da visão que vagamente distingue no seu espírito.

– Às vezes ele me dá uma impressão esquisita; como se fosse um sonâmbulo que de repente acordasse num lugar estranho, não podendo imaginar onde está. Era tão normal antes da guerra! Um dos seus maiores atrativos era o seu amor à vida. Tão alegre e estouvado que era um prazer a gente estar na sua companhia; tão meigo e ridículo! Que é que pode ter acontecido para tê-lo mudado desta forma?

– Não sei. Às vezes uma coisinha de nada tem sobre a pessoa um efeito completamente fora de proporção com o acontecimento. Depende das circunstâncias, e do estado de espírito dessa pessoa no momento. Lembro-me de ter ido à missa num Dia de Todos os Santos, que os franceses chamavam Dia de Finados, na igreja de uma aldeia que, no seu primeiro avanço sobre a França, os alemães tinham estragado um pouco. Estava repleta de soldados e mulheres de preto. No cemitério ao lado, havia fileiras de cruzes de madeira e, à medida que o serviço solene, triste, prosseguia, e homens e mulheres choravam, experimentei a sensação de que talvez aqueles que descansavam sob as cruzes fossem mais felizes do que nós, os vivos. Contei a um amigo o que sentia e ele me perguntou o que queria eu dizer. Não me foi possível explicar e percebi que ele me considerava um grandíssimo idiota. E lembro-me de ter visto, depois de uma batalha, um monte de franceses mortos, empilhados uns sobre os outros. Pareciam fantoches de uma companhia falida, que haviam sido atirados desordenadamente num canto poeirento, por não prestarem para mais nada. Pensei, então, aquilo que Larry disse a você, no outro dia: “Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos”.

Não quero que o leitor pense que estou fazendo mistério do que acontecera a Larry na guerra, fosse o que fosse, que tão profundamente o afetara – mistério que revelarei no momento oportuno.

Não creio que ele jamais tenha contado a quem quer que seja. Anos mais tarde, no entanto, ele falou a uma mulher, Suzanne Rouvier, também minha conhecida, sobre o aviador que morrera ao salvar-lhe a vida. Ela repetiu-me o caso e só posso, portanto, relatá-lo de segunda mão.

Traduzi-o do francês em que ela me falou. Parece que Larry ficara muito amigo de outro rapaz de seu esquadrão. Suzanne só o conhecia pelo irônico apelido com que Larry se referia a ele.

– Era um sujeitinho pequeno de cabelos vermelhos, um irlandês – disse Larry. – Costumávamos chamá-lo de Patsy e ele tinha mais vivacidade do que qualquer outra pessoa que jamais conheci. Céus, era um azougue! Tinha uma cara engraçada e um sorriso engraçado, de modo que só de olhar para ele a gente tinha vontade de rir. Era um diabo temerário e fazia as maiores loucuras; estava sempre sendo chamado à ordem pelos superiores. Não sabia o que era medo e, depois de ter escapado da morte por um triz, seu rosto se alargaria num sorriso, como se aquilo fosse a maior pilhéria do mundo. Mas era um aviador nato e lá em cima, nas nuvens, sabia ser frio e cauteloso. Ensinou-me muita coisa. Era um pouco mais velho do que eu e tomou-me sob sua proteção; isto era realmente um pouco cômico, considerando-se que eu tinha bem uns quinze centímetros a mais de altura do que ele e, se por um acaso brigássemos, eu poderia pô-lo a nocaute em dois tempos. Foi o que aconteceu, certa vez, em Paris, quando ele estava bêbado e fiquei com medo de que se metesse em alguma embrulhada.

Larry fez uma pausa e continuou:

– Eu não me sentia muito à vontade quando me reuni ao esquadrão e tinha medo de não me sair bem, mas ele me obrigou a ter confiança em mim. Tinha ideias engraçadas sobre a guerra; não sentia ódio dos alemães; gostava de uma brigazinha e achava divertidíssimo combatê-los. Não podia considerar o fato de pôr abaixo um avião inimigo a não ser como grandíssima pilhéria. Era impudente e louco e irresponsável, mas ao mesmo tempo tão sincero que a gente não podia deixar de lhe querer bem. Daria a um companheiro o seu último níquel, com a mesma facilidade com que aceitaria o dele. Se um de nós se sentia isolado, ou com saudade de casa, ou com medo, como algumas vezes me aconteceu, ele logo o perceberia e, a carinha feia enrugando-se de riso, diria exatamente aquilo que podia fazer a gente sentir-se bem outra vez.

Larry tirou uma cachimbada e Suzanne esperou que ele continuasse.

– Costumávamos manobrar de jeito a ter nossas licenças juntos e quando íamos a Paris ele ficava endiabrado. Divertíamo-nos à grande. Íamos ter uns dias de licença em princípio de março, isto em 1918, e traçamos nossos planos de antemão. Não havia o que não pretendêssemos fazer! Na véspera da partida, recebemos ordem de voar sobre as linhas inimigas e apresentar o nosso relatório. Subitamente demos com alguns aviões alemães e, quando menos esperávamos, estávamos no meio de uma batalha. Um deles me perseguiu, mas peguei-o primeiro. Espiei para ver se ele ia cair e com o rabo do olho vi outro aparelho no meu encalço. Mergulhei para ver se escapava, mas o inimigo se aproximou como um relâmpago e pensei que eu estivesse liquidado; nisto vi Patsy cair sobre ele como se fosse um raio e despejar-lhe toda a munição que tinha. Os alemães deram-se por vencidos e fugiram, e nós voltamos às nossas linhas. Meu avião estava bem avariado e eu mal consegui aterrissar. Patsy chegara antes de mim. Quando desci do meu avião, vi que tinham acabado de tirá-lo do seu. Estava deitado no chão; esperavam que chegasse a ambulância. Ele sorriu ao ver-me. Disse:

“Derrubei aquele sujeito que estava atrás de você”. “Que foi que aconteceu, Patsy?”, perguntei.

“Oh! nada. Ele me pegou na asa.”

– Estava mortalmente pálido. De repente uma expressão estranha cobriu-lhe o rosto. Só neste momento percebeu que estava agonizante, e a ideia da morte jamais lhe passara pela cabeça. Antes que alguém pudesse impedi-lo, ele sentou-se e soltou uma risada.

“Ora, essa é boa!”

– Caiu morto. Tinha vinte e dois anos. Ia casar-se com uma moça na Irlanda quando acabasse a guerra.

No dia seguinte à minha conversa com Isabel, saí de Chicago para São Francisco, onde devia tomar o vapor que me levaria ao Extremo Oriente.


Dois

Dois


1

Só tornei a ver Elliott quando ele veio a Londres, em fins de junho do ano seguinte. Perguntei-lhe se, afinal de contas, Larry tinha ido mesmo para Paris. Respondeu-me que sim. Achei graça ao perceber como Elliott ficara exasperado com ele.

– No fundo eu compreendia o ponto de vista do rapazinho – disse-me. – Não o censurava por querer passar um ou dois anos em Paris, e estava disposto a lançá-lo na sociedade. Pedi-lhe que me avisasse assim que chegasse, mas só quando Louisa se referiu a isso numa carta foi que eu soube que ele estava em Paris. Escrevi-lhe aos cuidados do American Express, endereço que ela me dera, convidando-o para vir jantar e ser apresentado a algumas das pessoas que eu achava que ele devia conhecer. Queria primeiro experimentá-lo com o grupo franco-americano, Emily de Montadour, Gracie de Chãteau-Gaillard e outras, mas sabe você o que ele me respondeu? Que sentia não poder aceitar, uma vez que não trouxera traje de noite.

Elliott encarou-me para ver no meu rosto o espanto que certamente eu iria sentir. Ergueu um tanto desdenhosamente as sobrancelhas ao verificar que eu aceitava com calma a comunicação.

– Respondeu à minha carta numa folha de papel ordinário, que tinha em cima o nome de um café do Quartier Latin; quando lhe escrevi novamente, pedi-lhe que me dissesse onde estava hospedado. Achei que, em consideração a Isabel, precisava fazer alguma coisa por ele, e pensei que talvez fosse apenas uma questão de timidez – isto é, não achei crível que um rapaz no seu juízo perfeito viesse para Paris sem traje de noite; além do mais, há ali alfaiates passáveis. Convidei-o, portanto, para almoçar, avisando que seria um grupo pequeno e, imagine você, não somente ele ignorou o meu pedido sobre o endereço, mas disse que nunca almoçava! Isto fez com que eu lavasse definitivamente as mãos a seu respeito.

– O que será que anda fazendo?

– Não sei e, para ser franco, tanto se me dá. Acho que é um rapazinho indesejável, e que seria um grande erro da parte de Isabel casar-se com ele. Afinal de contas, se ele levasse vida normal, eu o teria visto no bar do Ritz, ou no Fouquet, ou em qualquer outro lugar.

Vou às vezes a estes lugares elegantes, mas vou também a outros, e aconteceu que passei vários dias em Paris, no princípio do outono daquele ano, a caminho de Marselha, onde pretendia tomar um dos vapores da Messagerie, para Cingapura. Jantei uma noite com alguns amigos em Montparnasse e depois do jantar fomos ao Dôme tomar um copo de cerveja. Dali a pouco meu olhar vadio deu com Larry sentado sozinho a uma mesa de mármore, no terraço repleto de gente. Observava desinteressadamente as pessoas que passeavam para lá e para cá a apreciar a frescura da noite depois de um dia opressivo. Deixei o meu grupo e fui até lá. Seu rosto iluminou-se quando me viu. Dirigiu-me um sorriso amável e convidou-me para sentar, mas respondi que não podia por estar com uns amigos.

– Quis apenas cumprimentá-lo – disse eu.

– O senhor está aqui? – perguntou-me.

– Apenas por alguns dias.

– Quer almoçar comigo amanhã?

– Pensei que você nunca almoçasse. Ele riu baixinho.

– O senhor esteve com Elliott! Em geral não almoço, pois não posso perder tempo; tomo só um copo de leite, com um brioche, mas gostaria que o senhor almoçasse comigo.

– Está certo.

Combinamos encontro no Dôme, no dia seguinte, para um aperitivo; iríamos depois almoçar em qualquer restaurante do boulevard. Voltei para a companhia dos meus amigos. Ficamos sentados, conversando. Quando procurei por Larry, dali a pouco, vi que ele havia saído.


2

No dia seguinte passei uma manhã muito agradável. Fui ao Luxemburgo e ali me demorei durante uma hora, vendo alguns quadros do meu gosto. Depois vaguei pelos jardins, tentando recapturar as memórias da mocidade. Nada mudara. Poderiam ter sido os mesmos estudantes, aqueles que passeavam aos pares pelas alamedas de pedregulho, a discutir os autores que lhes tinham despertado o interesse. Poderiam ter sido as mesmas crianças, a rodar os mesmos arcos, sob a vigilância das mesmas amas. Poderiam ter sido os mesmos velhos, que se aqueciam ao sol e liam o jornal da manhã. Poderiam ter sido as mesmas mulheres maduras, de luto, sentadas nos bancos a discutir o preço dos mantimentos e a insolência das empregadas. Depois fui ao Odeon, examinei os livros novos nas galerias e vi os rapazinhos que, como eu trinta anos antes, procuravam, sob o olhar petulante dos empregados de avental, ler o maior número possível de livros que eles não estavam em condições de comprar. Caminhei em seguida vagarosamente pelas ruas sujas e queridas, até chegar ao Boulevard du Montparnasse e finalmente ao Dôme. Larry estava à minha espera. Tomamos um aperitivo e procuramos depois um restaurante onde pudéssemos comer ao ar livre.

Talvez ele estivesse um pouco mais pálido, e isto fazia com que seus olhos muito escuros, nas órbitas fundas, atraíssem mais ainda atenção; mas continuava igualmente senhor de si, fato curioso em pessoa tão jovem, e tinha o mesmo sorriso franco. Quando encomendou o almoço, notei que falava francês corretamente e com boa pronúncia. Felicitei-o.

– Bom, eu já sabia um pouco de francês – explicou ele. – Tia Louisa tinha uma governanta francesa para Isabel e, quando estávamos em Marvin, ela nos obrigava a praticar o tempo todo.

Perguntei-lhe se estava gostando de Paris.

– Muito.

– Mora em Montparnasse?

– Moro – disse ele depois de um momento de hesitação, que interpretei como indicando má vontade de contar exatamente onde morava.

– Elliott ficou um pouco vexado por você lhe ter dado como endereço somente o American Express.

Larry sorriu, mas não respondeu.

– O que é que você faz o tempo todo?

– Vagabundeio.

– E lê?

– Leio, sim.

– Tem notícias de Isabel?

– De vez em quando. Nenhum de nós dois é muito dado a escrever cartas. Está se divertindo à grande em Chicago. No próximo ano elas vêm para cá, visitar

Elliott.

– Que bom para você!

– Creio que Isabel não conhece Paris. Vai ser divertido mostrar-lhe a cidade.

Larry estava curioso por conhecer detalhes de minha viagem pela China e ouviu com atenção o que lhe contei; mas, quando tentei fazê-lo falar sobre si próprio, fracassei. Mostrou-se tão pouco comunicativo que me vi forçado à conclusão de que me convidara somente pelo prazer da minha companhia. Fiquei contente, mas perplexo. Nem bem tínhamos acabado o café, ele pediu a conta, pagou-a e levantou-se.

– Bom, tenho que ir caminhando – disse.

Separamo-nos. Eu estava na mesma quanto às suas atividades. Não tornei a vê-lo.


3

Quando, mais cedo do que pretendiam, mrs. Bradley e Isabel vieram hospedar-se com Elliott, na primavera, eu não me achava em Paris; para completar, portanto, a narrativa do que sei que sucedeu, vejo-me de novo obrigado a recorrer à imaginação. Mãe e filha desembarcaram em Cherburgo e, com a costumeira gentileza, Elliott foi esperá-las. Passaram pela Alfândega. O trem partiu. Com ar um tanto benevolente, Elliott participou-lhes que tomara para elas uma ótima empregada particular; e quando mrs. Bradley replicou que achava a medida desnecessária, ele falou-lhe com rudeza.

– Não comece a implicar desde o momento da chegada, Louisa. Nenhuma senhora pode ficar bem-vestida sem o auxílio de uma criada particular, e resolvi tomar Antoinette não somente por sua causa e de Isabel, mas pela minha. Ficaria mortificado se vocês não se apresentassem impecavelmente vestidas.

Elliott lançou aos trajes das duas viajantes um olhar desdenhoso e continuou:

– Vocês, naturalmente, vão precisar de vestidos novos. Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que Chanel é a última palavra.

– Sempre tenho procurado Worth – declarou mrs. Bradley. Pela atenção que Elliott lhe deu, foi o mesmo que não ter falado.

– Conversei pessoalmente com Chanel e marquei hora para amanhã, às três. Depois temos que tratar dos chapéus. Quanto a isso, não há dúvida: Reboux.

– Não quero gastar muito, Elliott.

– Sei disso. Estou disposto a pagar por tudo. Quero que vocês me façam honra. Oh! enquanto me lembro, Louisa, arranjei várias reuniões para vocês e disse aos meus amigos franceses que Myron era embaixador, o que naturalmente ele chegaria a ser, se tivesse vivido um pouco mais; isso causa melhor efeito. Não creio que o assunto venha à baila, mas achei preferível preveni-la.

– Você é ridículo, Elliott.

– Não, não sou. Conheço a humanidade. Sei que a viúva de um embaixador tem mais prestígio que a viúva de um ministro.

Quando o trem ia entrando na Gare du Nord, Isabel, que estava à janela, exclamou:

– Lá está Larry.

Nem bem o trem parara, ela pulou para a plataforma e correu ao encontro do rapaz. Larry abraçou-a.

– Como é que ele soube que vocês vinham? – perguntou Elliott, secamente, à irmã.

– Isabel radiografou do navio.

Mrs. Bradley beijou Larry afetuosamente e Elliott estendeu-lhe molemente a mão. Eram dez horas da noite.nhã? – perguntou vivamente Isabel, de rosto corado e olhos cintilantes, com o braço enfiado no do rapaz.

– Eu teria nisso muito prazer, mas Larry me deu a entender que nunca almoça.

– Você almoça amanhã, não é verdade, Larry?

– Almoço – respondeu ele sorrindo.

– Espero então ter o prazer de vê-lo à uma hora. Elliott estendeu-lhe mais uma vez a mão, com evidente intenção de despedi-lo, mas Larry sorriu impudentemente.

– Vou ajudar com a bagagem e lhes arranjarei um táxi.

– Meu carro está esperando e meu criado tomará conta da bagagem – disse Elliott com dignidade.

– Ótimo. Então só nos resta partir. Se houver lugar para mim, irei até a porta de sua casa.

– Sim, venha, Larry – disse Isabel.

Desceram juntos a plataforma, seguidos por mrs. Bradley e Elliott. No rosto de Elliott havia uma expressão de gélida censura.

– Quelles manières – murmurou de si para si, pois em certas circunstâncias achava que podia exprimir seus sentimentos com mais energia em francês.

Não sendo madrugador, no dia seguinte às onze horas, quando acabou de se vestir, Elliott mandou um bilhete à irmã, por intermédio de seu criado Joseph e da criada dela, Antoinette, convidando-a a vir à biblioteca para conversarem um pouco. Quando mrs. Bradley apareceu, ele fechou cautelosamente a porta e, enfiando um cigarro numa imensa piteira de ágata, acendeu-o e sentou-se.

– Devo compreender que Isabel e Larry continuam noivos? – perguntou.

– Sim, pelo que me consta.

– Infelizmente não tenho muito boas notícias a dar-lhe sobre o rapaz. – Elliott contou-lhe como estivera disposto a apresentar Larry na sociedade e os planos que fizera para instalá-lo condignamente. – Eu estava mesmo de olho num rez-de-chaussée, que era exatamente o que lhe convinha. Pertence ao jovem marquês de Rethel, que queria sublocá-lo por ter sido nomeado embaixador em Madri.

Mas Larry recusara seus convites de uma maneira que indicava claramente que não queria auxílio.

– Para que vem uma pessoa a Paris, quando não pretende aproveitar-se das vantagens que esta cidade oferece, é coisa que está acima da minha compreensão. Não sei de que maneira ele passa o tempo; parece-me que não conhece ninguém. Sabe onde ele mora?

– O único endereço que nos deu foi o American Express.

– Tal um viajante de casa comercial, ou mestre-escola em férias! Não me admiraria se ele estivesse vivendo com alguma prostitutazinha num estúdio de Montmartre.

– Oh! Elliott!

– Que outra razão pode haver para o mistério em que envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe? envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe?

– Larry não é desse tipo. E, a noite passada, você não teve a impressão de que está tão apaixonado por Isabel como antes? Ele não poderia ser assim tão dissimulado.

Elliott encolheu os ombros, como a dizer que não há limites para a falsidade masculina.

– O que me conta de Gray Maturin? Ainda está na arena?

– Ele se casaria amanhã com Isabel se ela o aceitasse. Mrs. Bradley contou-lhe então o motivo que as trouxera à Europa mais cedo do que pretendiam. Não andava passando bem ultimamente, e os médicos lhe haviam dito que estava sofrendo de diabetes. Não era caso grave e, com dieta e doses módicas de insulina, não havia motivo para que não vivesse ainda por muitos anos; mas o fato de saber que sofria de uma moléstia incurável deixara-a ansiosa por ver a filha instalada na vida. As duas tinham discutido o assunto. Isabel era sensata; concordou que, se Larry não quisesse voltar para Chicago ao cabo dos dois anos combinados, e arranjar emprego, então a única coisa a fazer seria romper o noivado. Mas mrs. Bradley era de opinião que sua dignidade sofreria, se esperassem até o fim do prazo marcado, vindo depois buscá-lo como um fugitivo da justiça. Achava que Isabel se colocaria numa posição humilhante. No entanto era muito natural que quisessem passar o verão na Europa, aonde Isabel não vinha desde criança. Depois de uma visita a Paris, poderiam ir para uma estação de águas indicada para a moléstia de mrs. Bradley; em seguida, por algum tempo, para o Tirol austríaco; de lá iriam viajar calmamente pela Itália. Mrs. Bradley tinha intenção de convidar Larry a acompanhá-las, para que ele e Isabel pudessem verificar se a longa separação não lhes alterara os sentimentos. Depois de certo tempo ficaria claro se, tendo-se divertido à vontade, Larry estava ou não disposto a aceitar sua parte de responsabilidade na vida.

– Henry Maturin ofendeu-se por Larry ter recusado a colocação que ele lhe ofereceu, mas Gray conseguiu acalmá-lo e Larry pode começar a trabalhar assim que voltar para Chicago.

– Gray é um bom rapaz.

– Se é! – Mrs. Bradley suspirou e acrescentou: – Tenho certeza que faria Isabel feliz.

Elliott falou então das festas que organizara em honra delas. Ia dar um grande almoço no dia seguinte, e no fim da semana um grande jantar. Pretendia levá-las a uma recepção na casa dos Château-Gaillard e conseguira convites para um baile que os Rothschild iam dar.

– Você vai convidar Larry, não vai?

– Ele me disse que não tem traje a rigor – fungou

Elliott.

– Bom, convide-o assim mesmo. Afinal de contas ele é um bom rapaz e não há vantagem em boicotá-lo. Só serviria para aumentar a teima de Isabel.

– Claro que o convidarei, se é este o seu desejo.

À hora marcada, Larry compareceu ao almoço; e Elliott, que tinha maneiras impecáveis, procurou propositalmente ser amável com ele. Não foi difícil, pois Larry estava tão alegre e animado que somente um homem muito mais maldoso do que Elliott poderia deixar de ficar encantado. A conversa girou sobre Chicago e os amigos comuns que ali tinham, de modo que a Elliott bastava mostrar-se cortês e fingir interessar-se pela vida de pessoas que ele considerava sem a mínima importância social. Não lhe causava tédio escutar; pelo contrário, achava enternecedor ouvi-los comentar o noivado daquele jovem par, o casamento de outro jovem par e o divórcio de um terceiro jovem par. Quem jamais ouvira falar dessa gente? Agora: ele sabia que a linda marquesa de Clinchant tentara suicidar-se porque seu amante, o príncipe de Colombey, a abandonara para casar-se com a filha de um milionário sul-americano. Isto era fato que se comentasse. Observando Larry, viu-se obrigado a reconhecer que havia nele qualquer coisa de singularmente atraente; com seus olhos fundos, muito escuros, maçãs salientes, tez pálida e boca expressiva, ele lembrava a Elliott um retrato por Botticelli, e ocorreu-lhe que, se o rapazinho se vestisse à moda da época, ficaria extraordinariamente romântico. Lembrou-se do seu plano de lhe arranjar um “caso” com uma francesa distinta, e sorriu matreiramente ao refletir que no sábado esperava para jantar Marie Louise de Florimond, que combinava irrepreensíveis relações sociais com uma notória imoralidade. Já atingira os quarenta anos, mas aparentava dez anos menos; tinha a delicada beleza de uma de suas antepassadas que fora pintada por Nattier, quadro que, graças ao próprio Elliott, fazia agora parte de uma das grandes coleções americanas; e sua voracidade sexual era insaciável. Elliott resolveu colocar Larry a seu lado. Sabia que ela não perderia tempo em patentear-lhe os seus desejos. Já convidara um jovem attaché da embaixada britânica com quem, assim o julgava ele, provavelmente Isabel ia simpatizar. Isabel era muito bonita e, como o rapaz era inglês, e rico, pouco importava que ela não tivesse fortuna. Abrandado pelo excelente Montrachet, com que haviam iniciado o almoço, e pelo ótimo Bordeaux que veio em seguida, Elliott refletiu com calma e satisfação sobre as possibilidades que se apresentavam a seu espírito. Se as coisas se resolvessem como ele achava provável, a querida Louisa não mais teria motivo de inquietação. No íntimo ela sempre o criticara um pouco; coitadinha, era tão provinciana!... mas Elliott lhe queria bem. Seria um prazer arranjar tudo para ela, valendo-se da sua experiência da vida.

Para não perder tempo, Elliott decidira levar as senhoras para escolherem os vestidos logo depois do almoço, de seu forte ele insinuou a Larry que sua companhia era agora dispensável – mas ao mesmo tempo insistiu amavelmente para que o rapaz comparecesse às duas reuniões que estava organizando. Tanta diplomacia não teria sido necessária, pois Larry aceitou alegremente os dois convites.

Mas o plano de Elliott fracassou. Ele ficou aliviado quando Larry compareceu ao jantar num dinner-jacket muito apresentável, pois receara vê-lo surgir metido no mesmo terno de casimira azul que usara ao almoço; e depois do jantar, chamando Marie Louise de Florimond à parte, perguntou-lhe que tal achava o seu jovem amigo americano.

– Ele tem olhos bonitos e bons dentes.

– Só isto? Coloquei-o perto de você porque achei que era exatamente o seu bocado.

Madame de Florimond olhou-o desconfiada.

– Ele me disse que está noivo de sua sobrinha.

– Voyons, ma chère, o fato de um homem pertencer a outra mulher nunca foi obstáculo para você se apossar dele, se possível.

– É isto que você está querendo? Pois bem, não estou disposta a fazer o seu trabalhinho sujo por você, meu pobre Elliott.

Elliott deu uma risadinha.

– Presumo que isto significa que você entrou com o seu joguinho e viu que não adiantava.

– Gosto de você, Elliott, porque sua moral não é mais elevada que a de uma cafetina. Você não quer que o rapaz se case com sua sobrinha. Por quê? Ele é bem-educado e muito simpático. Mas é de fato inocente demais. Creio que nem de longe suspeitou das minhas intenções.

– Você devia ter sido mais explícita, cara amiga.

– Tenho suficiente experiência para saber quando estou perdendo meu tempo. A verdade é que ele só tem olhos para a sua Isabelzinha e, cá entre nós, a pequena tem vinte anos de vantagem sobre mim. E é um amor, ainda por cima.

– Você gosta do vestido dela? Eu mesmo o escolhi.

– É bonito e apropriado. Mas naturalmente ela não tem chie.

Elliott tomou aquilo como um insulto pessoal, e não ia deixar que madame de Florimond escapasse sem uma alfinetada. Sorriu alegremente e disse:

– Para ter o seu chie, cara amiga, uma pessoa precisa ter atingido a sua completa maturidade.

Madame de Florimond desferiu não um golpe de florete, e sim uma cacetada. Sua réplica fez ferver o sangue virginiano de Elliott.

– Mas garanto que no seu belo país de bandidos (votre heau pays d’apaches) ninguém notará a falta de coisa tão sutil e inimitável.

Mas, se madame de Florimond criticou, os outros amigos de Elliott mostraram-se encantados com Isabel e cia e vitalidade; gostaram da pitoresca aparência de Larry, de suas maneiras finas e espírito calmo, irônico. Ambos tinham a vantagem de falar correntemente o francês. Quanto a mrs. Bradley, depois de ter vivido vários anos em círculos diplomáticos, falava a língua com bastante correção, mas com um descarado sotaque americano. Elliott procurou distraí-las com incomparável prodigalidade.

Satisfeita com seus vestidos e chapéus novos, encantada com todos aqueles folguedos que Elliott lhe proporcionava, e feliz na companhia de Larry, Isabel achou que nunca se divertira tanto na vida.


4

Para Elliott, o café da manhã era refeição que só podia ser compartilhada com estranhos, e assim mesmo quando não havia outro remédio; em vista disso, contra a vontade de mrs. Bradley e com satisfação de Isabel, as duas tomavam aquela refeição no quarto. Mas às vezes, ao acordar, Isabel dizia à imponente Antoinette que levasse o seu café au lait para o quarto de mrs. Bradley, para poder conversar com a mãe. Na movimentada vida que levava, era esse o único momento em que podia ficar a sós com ela. Certa manhã, um mês depois de estarem em Paris, quando Isabel acabou de narrar os acontecimentos da noite anterior, que passara a visitar cabarés em companhia de Larry e de alguns amigos, mrs. Bradley aventurou a pergunta que desejava fazer desde o dia da chegada.

– Quando é que Larry pretende voltar para Chicago?

– Não sei. Ainda não falou nisso.

– Você não lhe perguntou?

– Não.

– Está com medo?

– Não; claro que não.

Deitada na chaise-longue, metida num roupão elegante com que Elliott fizera questão de presenteá-la, mrs. Bradley lustrava as unhas.

– Sobre que falam vocês durante todo tempo em que estão juntos?

– Não falamos o tempo todo. É agradável estarmos juntos. A senhora sabe, Larry sempre foi mais ou menos calado. Creio que, quando conversamos, sou eu que falo quase todo tempo.

– O que é que ele andou fazendo?

– Francamente não sei. Mas não creio que tenha sido grande coisa. Provavelmente esteve se divertindo.

– E onde está morando?

– Também não sei.

– Ele é muito reservado, não é?

Isabel acendeu um cigarro e, ao soltar fumaça pelo nariz, olhou friamente a mãe.

– O que é que você quer exatamente dizer com isto, mamãe?

– Seu tio Elliott acha que ele está vivendo com alguma mulher, num apartamento.

Isabel desatou a rir.

– Você não acredita nisto, acredita?

– Para ser franca, não. – Mrs. Bradley examinou as unhas com ar pensativo. – Você nunca lhe fala sobre Chicago?

– Sim, muitas vezes.

– Ele não deu nenhuma indicação de que pretende voltar?

– Não posso dizer que tenha dado.

– Em outubro vai fazer dois anos que ele se ausentou.

– Sei disso.

– Bom, isto é com você, meu bem; faça o que achar direito. Mas as coisas não se tornam mais fáceis pelo fato de serem adiadas. – Olhou de relance para a filha, mas os olhos de Isabel não encontraram os seus. mrs. Bradley sorriu afetuosamente. – Se você não quiser ficar atrasada para o almoço, é melhor ir tomar o seu banho.

– Vou almoçar com Larry, num restaurante do Quartier Latin.

– Divirtam-se.

Uma hora mais tarde, Larry veio buscá-la. Tomaram um táxi até Pont St. Michel e andaram pelo movimentado boulevard, até chegarem a um café cuja aparência lhes agradou. Sentaram-se no terraço e encomendaram dois Dubonnets. Depois tomaram outro táxi e foram a um restaurante. Isabel tinha bom apetite e apreciou as coisas gostosas que Larry encomendou para ela. Sentia prazer em observar as pessoas que quase roçavam neles, pois o restaurante estava repleto, e achava graça no visível prazer com que comiam; mas, acima de tudo, estava a satisfação de sentar-se a uma mesinha a sós com Larry. Agradava-lhe a expressão divertida do olhar dele, enquanto ela tagarelava alegremente. Que maravilha sentir-se tão à vontade com Larry! Mas, no subconsciente, sentia uma vaga inquietação, pois, embora ele também parecesse perfeitamente à vontade, Isabel percebia que era mais com o ambiente do que com ela. Ficara ligeiramente perturbada com o que a mãe lhe dissera e, embora parecesse conversar com despreocupação, observava todas as expressões de Larry. Ele não era o mesmo de quando saíra de Chicago, mas Isabel não podia dizer onde estava a diferença. Aparentemente era o mesmo Larry de quem ela se lembrava, igualmente moço, franco; mas sua expressão mudara. Não que estivesse mais sério, pois seu rosto, em repouso, sempre fora grave; tinha agora uma calma que Isabel nunca vira nele, como se tivesse resolvido alguma coisa consigo mesmo, sentindo uma tranquilidade que antes desconhecera.

Terminado o almoço, Larry propôs uma volta pelo

Luxemburgo. – Não; não quero ver quadros.

– Está certo. Vamos nos sentar nos jardins, então.

– Não; não é também isto que eu quero. Quero ver onde você mora.

– Não há nada para ver. Moro num quartinho sujo, num hotel.

– O tio Elliott diz que você tem um apartamento e está vivendo pecaminosamente com uma modelo.

– Pois bem, venha então verificar – propôs ele rindo.

– É a um pulo daqui. Podemos ir a pé.

Levou-a por ruas estreitas e tortuosas, escuras apesar da faixa de céu azul que aparecia entre as casas altas; pouco depois parou diante de um hotelzinho de fachada pretensiosa e disse:

– Chegamos.

Isabel entrou com ele num hall estreito. Viu, a um lado, uma escrivaninha a que estava sentado, lendo um jornal, um homem em mangas de camisa, com um colete de listas fininhas em branco e amarelo, e um avental sujo. Larry pediu sua chave e o homem deu-lha, tirando-a de uma prateleira logo atrás e lançando a Isabel um olhar indagador, que imediatamente se transformou num sorrisinho sabido. Estava claro que achava que ela não ia ao quarto de Larry para fins honestos.

Subiram dois lances de uma escada coberta por surrada passadeira vermelha, e Larry abriu sua porta. Isabel entrou num quartinho de duas janelas que davam para uma cinzenta casa de apartamentos, em cujo andar térreo funcionava uma papelaria. No quarto, uma cama de solteiro com criado-mudo ao lado, um pesado guarda-roupa de espelho grande, uma poltrona estofada mas de espaldar reto e, entre duas janelas, uma mesa onde se viam uma máquina de escrever, papéis e alguns livros. Na lareira estavam empilhadas algumas brochuras.

– Sente-se na poltrona. Não é muito confortável, mas é o melhor que lhe posso oferecer.

Larry puxou outra cadeira e sentou-se.

– É aqui que você vive? – perguntou Isabel.

Ele riu baixinho da expressão do rosto dela.

– É. Moro aqui desde que vim para Paris.

– Mas por quê?

– É cômodo. Fica perto da Bibliothèque Nationale e da Sorbonne. – Larry apontou para uma porta que ela não notara. – Tem banheiro. Tomo o café da manhã aqui e geralmente janto naquele restaurante onde almoçamos hoje.

– É horrivelmente sórdido.

– Oh! não; está muito bom. Não desejo mais que isso.

– Mas, que tipo de gente mora aqui?

– Oh! não sei. No sótão, alguns estudantes. Dois ou três solteirões, funcionários públicos; uma atriz do Odeon, aposentada; no único outro quarto com banheiro, a amante de um sujeito que vem visitá-la de quinze em quinze dias, às quintas-feiras; e mais alguns forasteiros. É um lugar muito quieto e familiar.

Isabel ficou um tanto desconcertada e, vendo que Larry disso se apercebera e estava achando graça, quase se melindrou.

– Que livro é aquele enorme ali na mesa? – perguntou ela.

– Aquele? Oh! é o meu dicionário grego.

– Seu o quê? – exclamou Isabel.

– Calma. Ele não tem garras.

– Você está estudando grego?

– Estou.

– Por quê?

– Porque me deu vontade.

Larry fitava-a com um sorriso nos olhos e Isabel correspondeu a esse sorriso.

– Você não acha que poderia contar-me o que andou fazendo durante todo esse tempo em que esteve em Paris?

– Tenho lido muito. Oito ou dez horas por dia. Tenho ido a conferências na Sorbonne. Creio que li tudo que há de importante na literatura francesa, e posso ler latim, prosa pelo menos, com a mesma facilidade com que leio francês. Claro que grego é mais difícil. Mas tenho um ótimo professor. Até você chegar eu ia três noites por semana à casa dele.

– E qual a finalidade de tudo isto?

– Adquirir cultura – respondeu ele sorrindo.

– Não me parece muito prático.

– Talvez não seja e, por outro lado, talvez seja. Mas é divertidíssimo. Você não pode imaginar como é emocionante ler a Odisseia no original. A gente tem a impressão de que bastaria ficar na ponta dos pés e estender as mãos para tocar as estrelas.

Larry levantou-se, como que impulsionado pela excitação que dele se apoderara, e pôs-se a andar de um lado ao outro do quartinho.

– Há um ou dois meses estive lendo Spinoza. Creio que não o entendo ainda muito bem, mas que delícia!... É como a gente descer do seu próprio avião num grande planalto, nas montanhas. Solidão e ar tão puro que intoxica como um vinho e faz a gente sentir-se como um rei.

– Quando é que você pretende voltar para Chicago?

– Chicago? Não sei. Não pensei nisso.

– Você disse que, se ao cabo de dois anos não alcançasse o que buscava, daria a experiência por mal-sucedida.

– Não me seria possível voltar agora. Estou no limiar. Vejo vastas planícies do espírito à minha frente, acenando-me, e estou ansioso por explorá-las.

– O que é que você espera encontrar ali?

– Respostas às minhas perguntas. – Larry relanceou para Isabel um olhar quase brincalhão, de modo que, se o não conhecesse tão bem, ela poderia pensar que ele estava troçando. – Quero ter certeza da existência ou da não existência de Deus. Quero conhecer a origem do mal. Quero saber se tenho uma alma imortal, ou se a morte põe fim a tudo.

Isabel ficou de respiração suspensa. Não se sentia à vontade quando Larry se exprimia dessa forma, e deu graças a Deus por ele ter falado tão despreocupadamente, no habitual tom de conversa, que lhe permitiu dominar o constrangimento.

– Mas, Larry, há milhares de anos a humanidade está fazendo essas perguntas – replicou ela sorrindo. – Se tivesse resposta, certamente há muito já teriam sido respondidas.

Larry deu uma risadinha.

– Não ria como se eu tivesse dito alguma tolice – replicou secamente Isabel.

– Pelo contrário, acho muito bem observado. Mas, por outro lado, a gente pode argumentar que o fato de os homens fazerem essas perguntas há milhares de anos prova que eles não podem deixar de perguntar, e continuarão perguntando. Além do mais, não é verdade que ninguém encontrou resposta. Existem mais respostas do que perguntas, e a muitas pessoas elas satisfizeram plenamente. O velho Ruysbroek, por exemplo.

– Quem é ele?

– Oh! apenas um sujeito que não conheci no colégio – respondeu Larry petulantemente.

Isabel não entendeu o que ele quis dizer, mas não insistiu.

– Acho isto muito infantil. São coisas que excitam a imaginação dos segundanistas, mas de que eles se esquecem por completo quando saem do colégio. Têm que ganhar a vida.

– Não os censuro. Mas, você vê, tenho a vantagem de possuir o suficiente para viver. Do contrário, eu teria que fazer como todo mundo e procurar ganhar dinheiro.

– Mas você não dá valor ao dinheiro?

– Nenhum – respondeu ele sorrindo.

– Quanto tempo acha que isso vai levar?

– Não posso saber. Cinco anos. Dez.

– E depois? Que pretende fazer com toda essa sabedoria?

– Se eu algum dia adquirir sabedoria, creio que serei então bastante sábio para saber o que fazer com ela.

Isabel apertou violentamente as mãos e inclinou-se para a frente.

– Você está tão errado, Larry. Você é americano. Seu lugar não é aqui, é na América.

– Voltarei quando estiver pronto.

– Mas você está perdendo tanta coisa! Como é que consegue ficar aqui nesta pasmaceira, quando estamos vivendo a mais maravilhosa aventura que o mundo jamais conheceu? A Europa está acabada. Somos a maior, a mais poderosa nação do mundo. Caminhamos aos saltos. Nada nos falta. É seu dever participar do progresso da sua pátria. Você já se esqueceu, você não sabe como é empolgante a vida na América hoje em dia. Tem certeza de que não está agindo assim por não ter coragem de enfrentar o trabalho que aguarda todo americano? Oh! Sei que de certo modo você está trabalhando, mas não será isto apenas uma maneira de fugir às suas responsabilidades? Será alguma coisa mais do que uma espécie de ociosidade laboriosa? Que fim levaria a América se todo mundo se esquivasse como você?

– Você é muito severa, meu bem – replicou ele sorrindo. – A resposta a isto é que nem todo mundo sente o que eu sinto. Felizmente para eles, talvez, a maioria dos homens está pronta a seguir o curso normal; você se esquece de que tenho tanta sede de saber como... Gray, por exemplo, tem de ganhar rios e rios de dinheiro. Serei, por acaso, traidor à minha pátria, só pelo fato de querer passar alguns anos a educar-me? É possível que, ao terminar, eu possa dar à humanidade alguma coisa que ela tenha prazer em receber. Não é certo, naturalmente; mas, se eu fracassar, estarei na mesma posição do homem que entra num negócio e não consegue ir adiante.

– E quanto a mim? Não tenho nenhum valor para você?

– Muitíssimo. Quero que você se case comigo.

– Quando? Daqui a dez anos?

– Não. Agora. O mais depressa possível.

– De que jeito? Mamãe não está em condições de me dar um níquel. Além do mais, mesmo que pudesse, ela não o faria. Acharia errado ajudá-lo a viver na ociosidade.

– Não quero nada de sua mãe – replicou Larry. – Tenho três mil dólares anuais. Isto é mais do que suficiente aqui em Paris. Poderíamos ter um apartamentozinho e uma bonne à tout faire. Seria tão divertido, querida!

– Mas, Larry, ninguém pode viver com três mil dólares anuais.

– Claro que pode. Inúmeras pessoas vivem com muito menos.

– Mas eu não quero viver assim. Não há razão para isso.

– Tenho vivido com a metade.

– Mas como!

Ela olhou para o sujo quartinho com um estremecimento de repulsa.

– Isto significa que tenho algumas economias. Poderíamos ir a Capri na lua de mel e à Grécia no outono. Tenho uma vontade louca de ir até lá. Não se lembra como falávamos em viajar juntos pelo mundo?

– Claro que desejo viajar. Mas não dessa forma. Não quero ir de segunda classe, nos vapores, nem me hospedar em hotéis de terceira categoria, sem banheiro, nem comer em restaurantes baratos.

– Em outubro passado viajei assim por toda a Itália. Diverti-me imensamente. Poderíamos percorrer o mundo inteiro com três mil dólares por ano.

– Mas eu quero ter filhos, Larry.

– Está certo. Eles irão conosco.

– Você é tão tolo! – disse ela rindo. – Sabe quanto custa ter um filho? Violet Tomlinson teve um, no ano passado, e fez tudo com a maior economia possível, mas mesmo assim gastou mil duzentos e cinquenta dólares. E quanto pensa você que ganha uma ama? – Isabel ia-se animando, à medida que as ideias lhe ocorriam. – Você é muito pouco prático. Não sabe o que me está pedindo. Sou moça, quero divertir-me. Quero fazer o que os outros fazem. Quero ir a festas, quero ir a bailes, quero jogar golfe e andar a cavalo. Quero vestir-me bem. Você é capaz de imaginar o que significa para uma mulher não se sentir tão bem-vestida como as outras do seu grupo? Compreende o que significa, Larry, ter que comprar os vestidos usados das amigas que se fartaram deles, e ficar agradecida quando, por piedade, alguém se lembra de lhe fazer presente de um novo? Eu não poderia nem mesmo ir a um cabeleireiro decente! Não quero andar de ônibus pelas ruas; quero ter o meu carro particular. E que pensa você que eu iria fazer o dia inteiro, enquanto você estivesse lendo na biblioteca? Andar pelas ruas namorando as vitrinas, ou sentar-me no jardim do Luxemburgo a vigiar meus filhos para que nada lhes acontecesse? Não poderíamos ter amigos...

– Oh! Isabel – interrompeu ele.

– Não do tipo a que estou habituada. Oh! sim, os amigos do tio Elliott de vez em quando nos convidariam em consideração a ele, mas não poderíamos aceitar porque eu não teria vestido, nem estaríamos em condição de lhes retribuir as gentilezas. Não quero ter relações com uma porção de gente malvestida e suja; eu não teria nada a dizer-lhes, nem eles a mim. Quero viver, Larry. – Subitamente ela percebeu a expressão dos olhos dele, afetuosos como sempre, quando pousados nela, mas levemente irônicos. – Você acha que sou uma tola, não é verdade? Acha que estou sendo fútil e maldosa.

– Não, não acho. É muito natural que diga o que está dizendo.

Larry estava de pé, de costas para a lareira. Isabel ergueu-se e aproximou-se; viram-se frente a frente.

– Larry, se você não possuísse um níquel, mas tivesse um emprego que lhe rendesse três mil dólares por ano, eu não hesitaria em me casar com você. Eu cozinharia, arrumaria as camas, pouco me importaria com vestidos, faria qualquer sacrifício e acharia tudo divertidíssimo, pois estaria certa de que seria apenas uma questão de tempo, até você acabar vencendo. Mas isso que você quer significa viver miseravelmente, sordidamente, a vida inteira, sem uma esperança pela frente. Eu seria uma escrava até o dia da minha morte. E para quê? Para que você pudesse passar anos procurando respostas a perguntas que você mesmo considera insolúveis. Está errado. Um homem tem que trabalhar. É para isso que está no mundo. É assim que ele contribui para o bem-estar da comunidade.

– Em resumo, é meu dever instalar-me em Chicago e entrar para o escritório de Henry Maturin. Você acha que, pelo fato de convencer meus amigos a adquirirem títulos em que Henry Maturin está interessado, eu contribuiria grandemente para o bem-estar da comunidade?

– É preciso que haja corretores no mundo, e é uma maneira muito decente e honrosa de ganhar a vida.

– Você pintou um quadro muito negro da vida em Paris com uma renda módica. Sabe, não é exatamente assim. Uma moça pode vestir-se muito bem sem procurar Chanel. Nem todas as pessoas interessantes vivem na vizinhança do Arc de Triomphe e da Avenue Foch. Para falar a verdade, são mesmo poucas, porque em geral as pessoas interessantes não têm grande fortuna. Conheço muita gente aqui, pintores, escritores e estudantes, franceses, americanos e de outras nacionalidades, que considero muito mais interessante do que as definhadas marquesas e as narigudas duquesas de Elliott. Você tem uma inteligência viva e bastante senso de humor. Garanto que acharia divertido vê-los trocar ideias à mesa, mesmo que o vinho fosse somente vin ordinaire e o jantar não fosse servido por um mordomo e dois lacaios.

– Não seja tolo, Larry. Claro que acharia divertido. Você sabe que não sou esnobe. Teria prazer em conhecer gente interessante.

– Sim, num vestido de Chanel. Pensa que eles não perceberiam que você considerava aquilo como uma espécie de aventura? Eles não se sentiriam à vontade, você tampouco; e você não tiraria nenhum proveito, a não ser o de poder depois contar a Emily de Montadour e Gracie de Château-Gaillard como achava divertido ficar conhecendo uma porção de boêmios excêntricos no Quartier Latin.

Isabel encolheu levemente os ombros.

– Talvez você tenha razão. Eles não são do tipo de gente com quem estou habituada a conviver. Não são do tipo de gente com quem eu possa ter afinidade.

– Como ficamos, então?

– Exatamente onde começamos. Moro em Chicago desde que me entendo por gente. Ali estão os meus amigos, todos os meus interesses. Ali me sinto em casa. É a minha terra, Larry, como é também a sua. Mamãe está doente e não se restabelecerá. Mesmo que eu quisesse, não poderia deixá-la.

– Isto significa que, a não ser que eu esteja disposto a voltar para Chicago, você não se casará comigo?

Isabel hesitou. Amava Larry. Queria casar-se com ele. Desejava-o com toda a força dos seus sentidos e sabia-se desejada por ele. Não achava possível que, chegado o momento decisivo, ele não fraquejasse. Teve medo, mas precisava arriscar.

– Sim, Larry, significa exatamente isso.

Ele riscou um fósforo na lareira, um daqueles antigos fósforos franceses, de enxofre, que nos enchem as narinas de um odor acre, e acendeu o cachimbo. Depois, passando por Isabel, foi postar-se a uma das janelas e ficou olhando para fora. Guardou silêncio pelo que pareceu um espaço de tempo interminável. Isabel continuou de pé, no mesmo lugar onde estivera de frente para ele, e olhou para o espelho da lareira, mas com olhos que nada viam. Seu coração batia loucamente e ela estava morta de apreensão. Finalmente Larry voltou-se.

– Eu gostaria de poder fazê-la compreender como a vida que lhe ofereço é mais cheia do que qualquer outra que você possa ter imaginado. Gostaria que você pudesse experiência. É ilimitada. E tão feliz! Só uma coisa se lhe compara: quando se está sozinho num avião, alto, bem alto, circundado apenas pelo infinito. Aquela amplidão é intoxicante. A gente experimenta tão intensa sensação de júbilo que não a trocaria por todas as riquezas e glórias deste mundo. Há poucos dias estive lendo Descartes. Que desembaraço, que graça, que lucidez. Céus!

Isabel interrompeu-o em tom de desespero:

– Mas, Larry, não vê que me está pedindo uma coisa para a qual não fui feita, pela qual não me interesso, e não me quero interessar? Quantas vezes terei que repetir que sou apenas uma moça medíocre, normal, que tenho vinte anos, que daqui a dez estarei velha, que quero divertir-me enquanto posso? Oh! Larry, gosto tanto, tanto, de você! Isso é uma fantasia; não o conduzirá a parte alguma. No seu próprio interesse, imploro-lhe que desista. Seja homem, Larry, e cumpra o seu dever de homem. Você está perdendo anos preciosos, de que outros estão tirando o máximo proveito. Larry, se você tem mesmo amor por mim, não me trocará por um sonho. Você já se divertiu bastante. Volte conosco para a América.

– Não posso, querida. Seria uma verdadeira morte para mim. Seria atraiçoar minha alma.

– Oh! Larry, por que fala dessa forma? É assim que se exprimem as mulheres histéricas, metidas a intelectuais. Que significa? Nada. Nada. Nada.

– Significa exatamente o que sinto – respondeu ele

– Como é que você pode brincar? Não vê que isto é muito sério? Chegamos à encruzilhada, e o que agora fizermos vai afetar toda a nossa vida.

– Sei disso. Creia-me, estou falando sério. Ela suspirou.

– Se você não quer ser razoável, então não há mais nada a dizer.

– Mas não acho que seja razoável. Acho que você só esteve dizendo disparates.

– Eu? – exclamou Isabel. Se não se sentisse tão infeliz, ela teria rido. – Meu pobre Larry, você está doido varrido.

Lentamente ela tirou do dedo o anel de noivado, colocou-o na palma da mão e ficou a contemplá-lo. Era um rubi quadrado, incrustado num fino aro de platina e Isabel sempre o apreciara.

– Se você gostasse de mim, não me faria sofrer tanto.

– Gosto de você. Infelizmente, às vezes a gente não pode fazer o que acha direito sem causar sofrimento a alguém.

Ela estendeu a mão onde estava o rubi e obrigou-se a sorrir.

– Aqui está, Larry.

– De nada me serve. Não quer guardá-lo como lembrança da nossa amizade? Você pode usá-lo no dedinho. Isto não altera a nossa amizade, não é mesmo?

– Sempre hei de gostar de você, Larry.

– Guarde-o, então, que me dará prazer.

Ela hesitou, depois enfiou o anel no dedo da mão direita.

– É grande demais.

– Você pode mandar diminuí-lo. Vamos até o bar do

Ritz, tomar um drinque.

– Está certo.

Isabel admirou-se de tudo ter se passado tão simplesmente. Ela não chorara. Nada parecia ter mudado; só que agora já não ia casar-se com Larry. Mal podia acreditar que estava tudo acabado. Ficou um tanto mortificada pelo fato de não ter havido uma violentíssima cena. Tinham resolvido o caso quase tão friamente como se estivessem a discutir a escolha de uma casa de aluguel. Ela se sentia como que lesada, mas ao mesmo tempo experimentou uma ligeira satisfação por terem se comportado de maneira tão civilizada. Daria muito para conhecer exatamente os sentimentos de Larry no momento. Mas isso era sempre difícil de saber; o rosto suave, os olhos escuros eram uma máscara que mesmo Isabel, que o conhecia há tantos anos, jamais poderia penetrar.

Ao entrar ela tirara o chapéu e o pusera sobre a cama; agora, em frente ao espelho, colocou-o de novo e, arranjando o cabelo, perguntou:

– Apenas por curiosidade: você queria desmanchar o nosso noivado?

– Não.

– Pensei que talvez fosse um alívio para você. – Como Larry não respondesse, ela virou-se com um sorriso alegre e acrescentou: – Estou pronta.

Ao sair, Larry trancou o quarto. Quando entregou a chave ao homem da portaria, este os envolveu num olhar de insolente cumplicidade. Isabel não pôde deixar de perceber que ideia o homem fazia da ida deles ao quarto.

– Não creio que aquele sujeito tenha muita fé na minha virgindade – disse ela.

Foram de táxi até o Ritz e ali tomaram um drinque. Falaram de coisas triviais, aparentemente sem constrangimento, como dois velhos amigos que se veem todos os dias. Embora Larry fosse calado por natureza, Isabel era tagarela, com amplo estoque de conversa-fiada, e estava decidida a não permitir que entre eles se fizesse um silêncio que seria depois difícil de quebrar. Não queria que Larry pensasse que lhe guardava ressentimento, e o orgulho obrigava-a a agir de forma a não deixá-lo suspeitar que estava magoada e infeliz. Dali a pouco sugeriu que Larry a levasse até em casa.

Quando chegaram à porta, Isabel disse alegremente:

– Não se esqueça que você vem almoçar conosco amanhã.

– Não há perigo!

Ela apresentou-lhe a face para ser beijada e passou pela porte-cochère.


5

Ao entrar na sala de visitas, Isabel viu que havia ali algumas pessoas para o chá. Lá estavam duas americanas que moravam em Paris, muito bem-vestidas, com colares de pérolas em volta do pescoço, braceletes de brilhantes nos pulsos e custosos anéis nos dedos. Embora o cabelo de uma fosse tinto de um negro carregado, e o da outra de um dourado artificial, ambas eram extraordinariamente semelhantes. Tinham as mesmas pestanas muito pintadas, os mesmos lábios rubros, as mesmas faces carregadas de carmim, a mesma delgada silhueta, mantida à custa de incríveis sacrifícios, as mesmas feições nítidas, agudas, o mesmo olhar faminto e inquieto; e ninguém podia deixar de perceber que sua vida era uma luta desesperada pela conservação de encantos que atingiam o ocaso. Falavam sobre futilidades, numa voz alta, metálica, sem uma pausa, como se temessem que, se ficassem por um momento silenciosas, a máquina enguiçasse, e o monumento artificial de que era símbolo se esfacelasse por completo. Lá estava um secretário da embaixada americana, suave, silencioso, pois não o deixavam dizer uma palavra, e homem muito fino; e também um trigueiro principezinho romeno, servil e todo cheio de mesuras, com vivos olhinhos pretos e escuro rosto barbeado, e que a cada momento pulava para oferecer uma xícara de chá, passar um prato de bolinhos ou acender um cigarro, e que cinicamente fazia às pessoas presentes os mais exagerados e vulgares elogios. Estava pagando pelos jantares que recebera das pessoas a quem assim adulava, e por todos os jantares a que esperava ser convidado.

Sentada a uma mesinha de chá e, para ser agradável a Elliott, vestida com maior luxo do que achava apropriado para a ocasião, mrs. Bradley cumpria os deveres de dona de casa com sua habitual, se bem que fria, gentileza. Que opinião tinha dos amigos de Elliott é coisa que deixo a cargo da imaginação. Só a conheci superficialmente, e era pessoa muito reservada. Nada tola; durante todos aqueles anos vividos em capitais estrangeiras, conhecera inúmeras pessoas, de vários tipos, e creio que as soubera julgar com bastante perspicácia, de acordo com o ponto de vista da cidadezinha da Virgínia onde nascera e fora criada. Parece-me que ela achava divertido observar os pontos ridículos dessas pessoas; e não creio que tenha dado maior importância aos seus dengues e mesuras do que aos sofrimentos e peripécias dos personagens de um romance que desde o princípio (pois do contrário não o teria lido) sabia que ia acabar bem. Paris, Roma, Pequim não tinham sobre o seu americanismo maior efeito do que o fervor católico de Elliott sobre sua firme, se bem que não exagerada, fé presbiteriana.

Com sua mocidade, aparência robusta e vitalidade, Isabel trouxe um sopro de ar fresco àquela atmosfera meretrícia. Irrompeu na sala como uma jovem deusa terrestre. O príncipe romeno levantou-se de um salto para lhe oferecer uma cadeira, e com ampla gesticulação desempenhou o seu papel. Com frases de estridente amabilidade, as duas americanas olharam-na da cabeça aos pés, notaram os detalhes do seu traje, e é possível que, no fundo do coração, tenham ficado consternadas com o confronto daquela exuberante mocidade. O diplomata americano sorriu intimamente, ao notar como a presença de Isabel fazia com que as outras duas parecessem artificiais e envelhecidas. Mas Isabel achou-as formidáveis: gostou dos ricos trajes e das valiosas pérolas, e sentiu uma pontinha de inveja da imponência e da pose que elas tinham. Gostaria de saber se jamais conseguiria atingir aquela suprema elegância. O principezinho romeno era, naturalmente, ridículo; mas não deixava de ser um amor e, mesmo que não fossem sinceras as coisas amáveis que dizia, sempre era um prazer ouvi-las. A conversa que a chegada de Isabel interrompera foi reatada, e falaram com tanta vivacidade, com tão grande convicção da importância do que diziam que quase se chegava a acreditar que havia sentido em tudo aquilo. Falaram das festas a que tinham ido e das festas a que pretendiam ir.

Comentaram o último escândalo. Reduziram os amigos à expressão mais simples. Citaram grandes nomes a torto e a direito. Pareciam íntimos de todo mundo. Não havia segredo que desconhecessem. Quase no mesmo fôlego, falaram da peça teatral da moda, da costureira da moda, do pintor da moda, da última amante do ministro da moda. Era de se pensar que não havia o que elas ignorassem. Isabel escutava deliciada. Tudo aquilo lhe parecia maravilhosamente civilizado. Aquilo, sim, era vida. Experimentou a emoção de quem sente que está compartilhando de coisas de interesse. Aquilo era real. O cenário, perfeito. A espaçosa sala com o seu tapete Savonnerie, os lindos desenhos nas paredes de lambris, as cadeiras de petit point, os valiosos móveis de madeira entalhada, as cômodas e mesas avulsas, peças todas dignas de um museu... A sala devia ter custado uma fortuna, mas valia a pena. A sóbria beleza mais do que nunca impressionou Isabel, pois ela ainda conservava vívida a lembrança do pobre quartinho de hotel, com sua cama de ferro, e aquela cadeira dura, tão pouco confortável, onde se sentara; aquele quarto em que Larry não via defeito algum... Nu, sombrio, horrível. Só a lembrança lhe causou um estremecimento.

As visitas saíram e Isabel ficou sozinha com sua mãe e Elliott.

– Senhoras encantadoras – disse Elliott, depois de ter acompanhado à porta os dois pobres farrapos pintados. – Conheci-as quando se instalaram em Paris. Nunca pensei que chegassem a ficar tão elegantes! É realmente extraordinário o poder de adaptação das nossas compatriotas.

Hoje ninguém diria que são americanas, e do Oeste Central, ainda por cima.

Com um arquear de sobrancelhas, mas sem dizer palavra, mrs. Bradley lançou a Elliott um olhar que com a sua perspicácia ele não pôde deixar de compreender.

– Ninguém poderia jamais dizer isto de você, minha pobre Louisa – continuou ele em tom ao mesmo tempo azedo e afetuoso. – Se bem que não lhe faltaram oportunidades!

Mrs. Bradley contraiu os lábios.

– Creio que sempre fui a sua grande decepção na vida, Elliott, mas, para ser franca, estou muito satisfeita comigo mesma assim como sou.

– Tous les goûts sont dans la nature – murmurou Elliott.

– Acho que é meu dever contar-lhes que não estou mais noiva de Larry – interveio Isabel.

– Ora, ora! – exclamou Elliott. – Isto vai transtornar o arranjo da minha mesa de almoço, amanhã. Como é que vou arranjar avulso em tão curto prazo?

– Oh! pode estar certo de que ele virá almoçar.

– Depois de vocês terem desmanchado o noivado? Mas não fica bem.

Isabel riu abafadamente. Continuou virada para Elliott, pois sabia que a mãe a fitava e não queria encontrar o olhar dela.

– Não brigamos. Discutimos o assunto hoje à tarde e chegamos à conclusão de que tínhamos cometido um erro. Ele não quer voltar para a América; quer continuar em Paris. Está falando em ir para a Grécia.

– Para quê, Santo Deus? Não há vida social em Atenas. Para ser franco, nunca dei mesmo grande valor à arte grega. Algumas daquelas coisas helênicas têm um encanto decadente, que não deixa de ser interessante. Mas Fídias, não, não!

– Olhe para mim, Isabel – disse mrs. Bradley.

Isabel virou-se e fitou-a com um leve sorriso. Mrs. Bradley observou-a com um olhar perscrutador, mas só o que disse foi “Humm”. Viu que a filha não chorara; parecia mesmo calma e senhora de si.

– A vantagem foi toda sua, Isabel – disse Elliott. – Eu estava disposto a fazer cara alegre, mas nunca achei que fosse um bom casamento. Larry não estava realmente à sua altura, e o procedimento dele aqui em Paris indica claramente que nunca chegará a ser alguém. Com sua beleza e relações você pode aspirar a coisa muito melhor. Na minha opinião, você agiu com raro discernimento.

Mrs. Bradley lançou à filha um olhar não de todo destituído de ansiedade.

– Você não fez isto por minha causa, Isabel? A moça sacudiu enfaticamente a cabeça.

– Não, meu bem. A responsabilidade é inteiramente minha.


6

Tendo regressado do Oriente, justamente nesta ocasião eu estava passando uns tempos em Londres. Quinze dias, talvez, após os acontecimentos que descrevi, Elliott chamou-me ao telefone. Não fiquei admirado ao reconhecer-lhe a voz, pois sabia que ele costumava vir gozar em Londres o fim da temporada. Contou-me que mrs. Bradley e Isabel tinham vindo com ele e que, se eu quisesse aparecer aquela tarde, às seis horas, para tomar um drinque, teriam muito prazer em receber-me. Estavam, naturalmente, hospedados no Claridge. Naquele tempo eu não morava muito longe dali, de modo que desci por Park Lane, a pé, e percorri as calmas e corretas ruas de Mayfair, até chegar ao hotel. Elliott estava no seu apartamento de costume. As paredes eram de lambris de tom havana, como o de uma caixa de charutos, e a mobília de uma sóbria suntuosidade. Encontrei-o só. Mrs. Bradley e Isabel tinham ido às compras, mas deviam voltar a qualquer minuto. Contou-me que Isabel já não estava noiva de Larry.

Com suas ideias românticas e excessivamente convencionais, a respeito do procedimento das pessoas em determinadas circunstâncias, Elliott ficara chocado com o comportamento dos dois jovens. Não somente Larry comparecera ao almoço no dia imediato ao rompimento, mas agira como se sua posição em nada estivesse alterada. Mostrou-se amável, atencioso e discretamente alegre como de costume. Tratou Isabel com a mesma afetuosa camaradagem; não parecia nervoso, perturbado, ou pesaroso. Tampouco Isabel se mostrara inconsolável. Parecendo tão feliz como antes, ria com a mesma despreocupação, pilheriava com igual vivacidade, como se não tivesse dado um passo decisivo, e certamente desagradável, na sua vida. Elliott não entendia mais nada. Por trechos de conversa que ouviu deles, veio a saber que não pretendiam cancelar nenhum dos compromissos que tinham assumido um com o outro. Na primeira oportunidade ele falou nisso a mrs. Bradley.

– Não fica bem – declarou. – Os dois não podem andar de lá para cá como se ainda fossem noivos. Francamente, Larry podia ter um pouco mais de respeito às convenções. Além do mais, isto prejudica Isabel. O jovem Fotheringham, aquele rapaz da embaixada inglesa, está visivelmente caído por ela. Tem dinheiro e boas relações; se soubesse que o terreno está livre, garanto que se candidataria. Acho que você deve falar a Isabel sobre isso.

– Meu caro, Isabel está com vinte anos, e tem – para dizer às pessoas, sem ofendê-las, que não se metam no que não é da sua conta – uma técnica contra a qual sempre achei dificílimo lutar.

– Pois então você educou-a pessimamente, Louisa. Além do mais, é da sua conta.

– Está aí um ponto em que ela, certamente, não concordaria com você.

– Você está esgotando a minha paciência, Louisa.

– Meu pobre Elliott, se você tivesse uma filha moça, ficaria sabendo que é relativamente mais fácil lidar com um tourinho do que com ela. Quanto a saber o que Isabel está sentindo... Bom, é preferível eu fingir ser a velha simples e inocente por quem ela me toma.

– Mas você discutiu o caso com ela?

– Experimentei. Isabel riu e disse que não havia realmente nada para contar.

– Está muito pesarosa?

– Não sei. Só o que posso dizer é que come bem e dorme como um anjinho.

– Pois bem, ouça o que lhe digo: se você deixar que continuem assim, um destes dias eles acabam fugindo e casando-se sem dizer nada a ninguém.

Mrs. Bradley condescendeu em sorrir.

– Deve ser para você um alívio saber que no momento atual estamos vivendo num país onde toda irregularidade sexual é facilitada, e onde o casamento encontra inúmeros obstáculos.

– E acertadamente. O casamento é uma instituição muito séria, sobre a qual se firmam a segurança da família e a estabilidade do Estado. Mas o casamento só pode conservar sua força se as relações extraconjugais forem não somente toleradas, mas permitidas. A prostituição, minha pobre Louisa...

– Basta, Elliott – interrompeu mrs. Bradley. – Não estou interessada em conhecer o seu ponto de vista sobre a importância social e moral da fornicação promíscua.

Foi aí que Elliott sugeriu o plano que iria interromper a convivência de Isabel com Larry, que tanto repugnava ao seu convencionalismo. A estação em Paris agonizava e a melhor gente estava providenciando sua ida para estações de águas, ou Deauville, antes de se retirar, para o resto do verão, para seus castelos ancestrais em Touraine, Anjou ou Bretanha. Em geral Elliott só ia para Londres em fins de junho, mas seu instinto de família era muito forte, e sincera a afeição que sentia por sua irmã e Isabel; estivera pronto a fazer o sacrifício de ficar em Paris, se elas assim o desejassem, quando ali já não havia pessoa que contasse socialmente; mas via-se agora na agradável posição de poder fazer o que era de vantagem para os outros e ao mesmo tempo conveniente para si próprio. Sugeriu a mrs. Bradley partirem imediatamente para Londres, onde a estação ainda estava no auge e onde novos interesses e novos amigos iriam distrair o pensamento de Isabel do seu malfadado romance. A julgar pelos jornais, um dos maiores especialistas em diabetes se encontrava em Londres, na ocasião, e a vantagem de consultá-lo justificaria amplamente a súbita partida, vencendo qualquer má vontade que Isabel pudesse ter em abandonar Paris. Mrs. Bradley aprovou a ideia. Isabel deixava-a perplexa. Impossível saber se a sua despreocupação era sincera ou se, magoada, zangada, ou infeliz, ela adotara aquela máscara ousada para esconder sua humilhação. Mrs. Bradley concordou com Elliott que faria bem a Isabel conhecer gente e lugares novos.

Elliott não perdeu tempo em telefonar, e, quando Isabel entrou em casa, depois de ter passado o dia em Versailles com Larry, ele pôde comunicar-lhe que conseguira marcar hora com o célebre especialista para dali a três dias, que reservara um apartamento no Claridge e que dois dias depois iam para Londres.

Mrs. Bradley observou Isabel, enquanto Elliott um tanto pedantemente lhe dava a notícia; mas a moça não se mostrou absolutamente perturbada.

– Oh! mamãe, estou tão contente de você poder consultar o especialista! – exclamou Isabel com a sua habitual impetuosidade. – Claro que não deve perder esta ocasião. E será ótimo, um passeio a Londres. Quanto tempo vamos ficar lá?

– Não adiantaria voltarmos para Paris – disse Elliott.

– Dentro de oito dias não haverá aqui uma alma. Quero que vocês fiquem comigo no Claridge até o fim da estação. Em julho há sempre bons bailes; além do mais, não nos devemos esquecer de Wimbledon. E, depois, Goodwood e Cowes. Tenho certeza de que os Ellingham terão prazer em nos convidar ao seu iate, para Cowes, e os Bantock sempre levam um grupo grande, para Goodwood.

Isabel parecia encantada e mrs. Bradley sentiu-se mais tranquila. A julgar pelas aparências, ela não estava dando a mínima importância a Larry.

Elliott acabara de me contar tudo isso, quando mãe e filha entraram. Fazia mais de ano e meio que eu não as via. Achei mrs. Bradley mais magra e de fisionomia ainda mais lívida; parecia cansada e não estava com boa aparência. Mas Isabel estava florescente. Com seu rosto corado, cabelos bronzeados, vivos olhos castanhos e pele transparente, dava tal impressão de mocidade, de tão intensa alegria de viver, que a gente quase tinha vontade de rir de puro gozo. Absurdamente, comparei-a a uma pera, dourada e saborosa, perfeitamente madura e tentando o apetite alheio. Irradiava calor, dando a impressão de que bastaria a gente estender as mãos para sentir o seu conforto. Pareceu-me mais alta, não sei se por estar usando salto mais alto ou se porque uma costureira habilidosa soubera escolher um modelo que lhe disfarçasse o excessivo arredondamento da mocidade; mantinha-se com a graça despreocupada da pessoa que desde a infância faz esportes ao ar livre. Em resumo, sexualmente era uma rapariga muitíssimo atraente. Se eu fosse sua mãe, trataria logo de casá-la.

Satisfeito com a oportunidade de poder retribuir a mrs. Bradley as gentilezas que ela me havia dispensado em Chicago, sugeri que os três fossem comigo ao teatro numa daquelas noites. Convidei-os também para um almoço.

– Trate de não deixar para muito tarde, meu caro – disse-me Elliott. – Participei aos amigos a minha chegada, e daqui a dois ou três dias provavelmente já estaremos comprometidos para toda a temporada.

Achei que com isso ele queria dizer que, nesse caso, não teria tempo a perder com gente da minha espécie, e não pude deixar de rir. Elliott lançou-me um olhar onde havia uma expressão altiva.

– Mas, naturalmente, você sempre nos encontrará aqui às seis horas, e teremos imenso prazer em vê-lo – disse-me amavelmente, mas com a visível intenção de me colocar, como escritor, na minha humilde posição.

Mas às vezes a vingança é doce...

– Você precisa procurar os St. Olpherd – disse-lhe eu. – Contaram-me que eles pretendem dispor do seu Constable of Salisbury Cathedral.

– No momento atual não tenho intenção de comprar quadros. – Sei disso, mas achei que talvez você pudesse servir de intermediário.

Os olhos de Elliott tiveram um brilho de aço.

– Meu caro amigo, a Inglaterra é uma grande nação, mas os ingleses nunca souberam e nunca saberão pintar. A escola inglesa não me interessa.


7

Naquelas quatro semanas pouco vi Elliott e sua família. Ele soube tratá-las. Levou-as para um fim de semana numa aristocrática mansão, em Sussex, e para outro fim de semana, ainda mais aristocrático, em Wiltshire. Foram à Ópera, ao camarote real, como convidadas de uma princesa de menos importância da Casa de Windsor. Almoçaram e jantaram com a nobreza. Isabel foi a vários bailes. Elliott deu, no Claridge, recepção a que compareceram convidados cujo nome fazia um vistão no jornal, no dia seguinte. Promoveu ceias no Ciro e na embaixada. Em resumo, fez tudo como devia ser feito, e Isabel precisaria ter sido muito mais blasé para não ficar ofuscada com a elegância e o esplendor exibidos para o seu deleite. Elliott podia gabar-se de estar fazendo tudo aquilo por um motivo puramente desinteressado, para que Isabel esquecesse o seu malogrado caso de amor; mas desconfiei que no fundo ele sentia grande satisfação em poder mostrar a mrs. Bradley como era íntimo dos ilustres e dos elegantes. Recebia admiravelmente e tinha imenso prazer em exibir essa sua qualidade.

Fui a uma ou duas de suas recepções, e de vez em quando passava pelo Claridge, às seis horas. Encontrava Isabel cercada por mocetões bonitos e bem-vestidos, da Household Brigade, ou por rapazes elegantes, mas menos bem-vestidos, do Ministério do Exterior. Numa dessas ocasiões ela me chamou de lado.

– Quero fazer-lhe uma pergunta – disse-me ela. – Lembra-se daquela noite em que fomos à drugstore tomar um ice-cream-soda?

– Lembro-me perfeitamente.

– O senhor foi muito camarada e me ajudou bastante. Quer ser camarada e ajudar-me de novo?

– Farei o possível.

– Quero falar com o senhor sobre certo assunto. Não podíamos almoçar juntos um destes dias?

– Quando quiser.

– Num lugar quieto.

– Que tal irmos de carro até Hampton Court e almoçar ali? Os jardins devem estar no auge da beleza e você poderia ver a cama da rainha Isabel.

O plano lhe agradou; ficou tudo combinado. Mas, quando chegou o dia, o tempo até então firme e quente mudou. Céu cinzento; caía uma chuvinha miúda. Telefonei a Isabel, perguntando-lhe se não preferia almoçar na cidade.

– Impossível nos sentarmos nos jardins, e os quadros estarão tão escuros que não distinguiremos coisa alguma – disse eu.

– Tenho me sentado em muitos jardins e estou farta dos grandes mestres. Vamos assim mesmo.

– Está certo.

Fui buscá-la de automóvel. Eu conhecia um hotelzinho onde a comida era passável; seguimos diretamente para lá. No caminho, com a sua habitual vivacidade Isabel falou das festas a que fora e das pessoas que ficara conhecendo. Estava se divertindo à grande, mas, pelos comentários que fez sobre seus novos conhecidos, vi que a pequena era perspicaz e sabia facilmente distinguir o ridículo. O mau tempo afugentara os visitantes e éramos os únicos na sala de jantar. A especialidade do hotel era a simples comida inglesa. Serviram-nos uma fatia de excelente perna de carneiro com ervilhas e batatinhas, e uma torta de maçã com creme Devonshire. Com um copo de cerveja, foi um ótimo almoço. Quando acabamos, sugeri irmos para a saleta do café, que estava vazia, e onde poderíamos nos sentar em confortáveis poltronas. Fazia frio ali, mas o fogo estava preparado e risquei um fósforo para acendê-lo. As chamas tornaram a fria salinha mais acolhedora.

– Pronto – disse eu. – Conte-me agora sobre que deseja conversar comIgo.

– A mesma coisa da última vez – disse ela com uma risadinha abafada. – Larry.

– Foi o que pensei.

– O senhor sabe que rompemos o nosso noivado.

– Elliott contou-me.

– Mamãe ficou aliviada e meu tio encantado.

Isabel hesitou por um instante e depois iniciou a descrição da cena com Larry, que já fiz o possível por narrar fielmente. Talvez o leitor se admire de Isabel ter escolhido, para confidente, uma pessoa que ela conhecia tão pouco. Não creio que eu a tivesse visto mais que uma dúzia de vezes e, a não ser naquela ocasião na drugstore, nunca a sós. Mas a mim isto não surpreendeu. Em primeiro lugar, fato que qualquer escritor confirmará, em geral as pessoas fazem a um escritor confidências que não fariam a outros. Desconheço a razão, a não ser que, pelo fato de terem lido um ou dois dos seus livros, se consideram em termos de intimidade com ele. Ou talvez elas se dramatizam a si próprias e, vendo-se como personagens de um romance, resolvam falar-lhe com a mesma franqueza com que, imaginam, lhe falam os tipos por ele criados. E penso que Isabel sentia que eu gostava dela e de Larry, que sua mocidade me comovia e que eu me condoía dos seus pesares. Ela não podia esperar encontrar um confidente de boa vontade em Elliott, pois este não tinha o menor desejo de se preocupar com pessoa que desprezara a melhor oportunidade que um rapaz jamais tivera de entrar na sociedade. Nem sua mãe poderia ajudá-la. Mrs. Bradley tinha princípios elevados e bom senso. Seu bom senso lhe dizia que, se uma pessoa deseja ir adiante neste mundo, tem que se conformar com as convenções do mundo e não fazer aquilo que todos consideram como sinal de desequilíbrio mental. Seus princípios elevados faziam com que achasse dever de um homem trabalhar num negócio onde, com energia e iniciativa, tivesse a oportunidade de ganhar dinheiro suficiente para sustentar mulher e filhos de acordo com a sua posição, dar aos filhos uma educação que lhes permitisse, mais tarde, ganhar honestamente a vida, e, ao morrer, deixar a viúva com recursos para se manter.

Isabel tinha boa memória e ainda se lembrava das várias fases da longa discussão com Larry. Ouvi em silêncio, até ela terminar. Interrompeu-se apenas uma vez, para me fazer uma pergunta:

– Quem foi Ruysdael?

– Ruysdael? Era um paisagista holandês. Por quê? Contou-me que Larry o mencionara. Dissera ele que pelo menos Ruysdael encontrara solução para o que desejara saber, e Isabel me repetiu a petulante réplica de Larry, quando ela lhe perguntara quem era aquele sujeito.

– O que quereria ele dizer? Tive uma inspiração.

– Você tem certeza de que ele não disse Ruysbroek? – perguntei.

– É bem possível. Quem era ele?

– Um místico flamengo que viveu no século xiv.

– Oh! – exclamou Isabel, decepcionada.

Para ela nada significava. Mas significava alguma coisa para mim. Era a primeira indicação que eu tinha do rumo que estavam tomando as reflexões de Larry; e, enquanto Isabel continuava a narrativa, embora eu a ouvisse atentamente, com outra parte do pensamento preocupei-me com as possibilidades que aquela referência de Larry sugeria. Não quis dar muita importância ao fato, pois era bem possível que ele houvesse citado o nome do Teólogo Místico apenas como argumento; mas podia também ter uma significação que escapara a Isabel. Ao dizer-lhe que Ruysbroek era apenas um sujeito que ele não conhecera no colégio, evidentemente Larry procurava despistá-la.

– Qual a sua opinião sobre tudo isso? – perguntou-me a moça ao terminar.

Esperei alguns instantes antes de responder.

– Lembra-se de Larry ter dito que ia apenas vadiar? Se o que ele lhe contou é verdade, então sua vagabundagem parece abranger um trabalho muito cansativo.

– Tenho certeza que é verdade. Mas não acha o senhor que, se ele se tivesse igualmente esforçado num trabalho produtivo, poderia estar com uma boa renda?

– Algumas pessoas têm um temperamento esquisito. Existem criminosos que trabalham como mouros a organizar planos que os levam à prisão e que, nem bem recuperam a liberdade, reincidem e acabam sendo novamente presos. Se eles empregassem a mesma perseverança, a mesma inteligência, a mesma paciência e os mesmos recursos em algum projeto honesto, poderiam ter uma ótima renda e ocupar posições de destaque. Mas a questão é que são feitos daquela massa. Gostam do crime.

– Pobre Larry – disse ela, rindo baixinho. – O senhor não me vai dizer que ele está aprendendo grego para assaltar um banco.

Também ri.

– Não vou, não; o que estou tentando dizer-lhe é que há homens que sentem tão intenso desejo de fazer uma determinada coisa que não podem absolutamente deixar de fazê-la. Estão dispostos a sacrificar tudo para satisfazer esse anseio.

– Até mesmo as pessoas que gostam deles?

– Oh! sim.

– Não acha que isso é puro egoísmo?

– Não sei dizer – respondi sorrindo.

– Que utilidade prática pode ter para Larry o estudo de línguas mortas?

– Algumas pessoas têm um desejo desinteressado de adquirir cultura. Não se pode dizer que seja um desejo ignóbil.

– Mas de que adianta a cultura, se a pessoa não pretende utilizá-la?

– Talvez ele pretenda. Talvez só o fato de saber seja uma satisfação, como ao artista basta a satisfação de produzir uma obra de arte. E talvez seja apenas um passo para coisa mais avançada.

– Se ele tem tanta sede de saber, por que não foi então para o colégio quando voltou da guerra? Era o que o dr. Nelson e mamãe queriam que ele fizesse.

– Falei com Larry sobre isso em Chicago. Um diploma de nada lhe adiantaria. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Você sabe, no estudo existe o lobo solitário, da mesma maneira que existe o lobo que se move com a alcateia. Acho que Larry é uma dessas pessoas que não podem tomar outro caminho a não ser o seu próprio.

– Lembro-me de que uma vez lhe perguntei se não sentia vontade de escrever. Ele me respondeu que não tinha sobre o quê escrever.

– É esta a razão mais inconcludente que conheço para uma pessoa não escrever – comentei sorrindo.

Isabel fez um gesto de impaciência. Não estava em estado de espírito de apreciar nem mesmo a mais leve pilhéria.

– Não posso compreender como ele chegou a ficar assim. Antes da guerra era como todo mundo. Talvez o senhor não acredite, mas ele joga muito bem tênis e é também perito no golfe. Costumava fazer tudo que o nosso grupo fazia. Era um rapaz perfeitamente normal e não havia razão para se supor que não viesse a ser um homem perfeitamente normal. Afinal de contas, o senhor é um romancista, deve ter uma explicação para isso.

– Quem sou eu para explicar as inúmeras complexidades da natureza humana?

– É por isso que eu queria falar hoje com o senhor – continuou Isabel, sem ligar ao que eu dissera.

– Você é infeliz?

– Infeliz, exatamente não. Quando Larry não está presente, tudo vai bem; quando estou perto dele é que me sinto tão fraca. Agora é apenas uma sensação dolorida, como a rigidez que sentimos após um longo passeio a cavalo, quando ficamos muito tempo sem montar; não é dor, não é insuportável, mas está ali. Isso passará, é lógico. Acho detestável pensar que Larry está estragando sua vida dessa forma.

– Talvez isto não aconteça. Ele está começando a viajar por uma estrada longa e árdua, mas é possível que no fim da jornada encontre o que procura.

– E o que ele procura?

– Ainda não lhe ocorreu? Parece-me, pelo que ele lhe disse, que não há dúvida a respeito: Deus.

– Deus! – exclamou Isabel. Mas foi uma exclamação de surpresa e incredulidade. Nosso emprego da mesma palavra, mas em sentido diverso, teve tão cômico efeito que não pudemos deixar de rir. Mas Isabel imediatamente ficou de novo séria, e notei em toda a sua atitude qualquer coisa que lembrava o medo.

– Mas, francamente, por que motivo chegou o senhor a essa conclusão?

– Estou apenas adivinhando. Mas você me pediu minha opinião como romancista. Infelizmente você não sabe qual foi o acontecimento, na guerra, que tão profundamente o afetou. Algum choque, suponho, com o qual ele absolutamente não contava. É possível que isto tenha feito Larry compreender como é transitória a vida, dando-lhe o angustioso desejo de saber que há uma compensação para os males e tristezas do mundo.

Percebi que Isabel não estava gostando do rumo que eu dera à conversa. Parecia intimidada e constrangida.

– Mas não será isto incrivelmente mórbido? A gente tem que aceitar o mundo como é. Se estamos aqui, é certamente para tirarmos o máximo proveito da vida.

– É provável que você tenha razão.

– Não tenho a pretensão de ser nada mais que uma moça perfeitamente normal, comum. Quero divertir-me.

– Parece-me que havia uma absoluta incompatibilidade de gênios entre vocês dois – disse eu. – Foi muito melhor terem descoberto isto antes do casamento.

– Quero casar-me, e ter filhos, e viver...

– Na condição de vida que uma misericordiosa Providência houve por bem lhe dar – interrompi sorrindo.

– Pois bem, não há mal nisso, há? É uma condição agradável e estou muito satisfeita com ela.

– Vocês são como dois amigos que desejam tirar férias juntos, mas um deles quer galgar as montanhas cobertas de neve da Groenlândia, ao passo que o outro quer ir pescar perto do banco de coral da Índia.

– Em todo caso, nas montanhas da Groenlândia talvez eu arranjasse um casaco de pele, mas duvido que haja peixes perto do banco de coral da Índia.

– É o que ainda se precisa ver.

– Por que diz isto? – perguntou-me Isabel, contraindo de leve as sobrancelhas. – O tempo todo o senhor parece estar guardando alguma coisa para si! Claro que sei que em tudo isto o papel bonito não é meu. Este papel cabe a Larry. É ele o idealista, o que teve um lindo sonho, e, mesmo que o sonho não se torne realidade, será sempre belo tê-lo sonhado. A mim me toca a parte dura, mercenária, prática. Bom senso nunca foi coisa muito simpática, não é verdade? Mas do que o senhor se esquece é que eu é que teria que sofrer. Larry avançaria majestosamente, com sua cauda gloriosa, e a mim só me restaria seguir atrás dele, procurando fazer o dinheiro render de um jeito ou de outro. Quero viver.

– Não me esqueci disso, em absoluto. Há anos, quando eu era moço, conheci um médico, nada mau, mas que não clinicava. Passou anos enfurnado na biblioteca do Museu Britânico e, com longos intervalos, surgia com um livro pseudocientífico, pseudofilosófico, que ninguém lia e que ele era obrigado a publicar por conta própria. Escreveu quatro ou cinco, antes de morrer; livros absolutamente sem valor. Tinha um filho que queria seguir a carreira militar, mas não havia dinheiro para mandá-lo para Sandhurst, de modo que o rapaz teve que se alistar e acabou morrendo na guerra. Tinha também uma filha. Era bem bonita e eu tinha uma quedinha por ela. Entrou para o teatro, mas, não tendo talento, andou de província em província representando papéis sem importância, em companhias de segunda classe, ganhando salário irrisório. Quanto à esposa do médico, depois de anos de luta e sórdida pobreza, adoeceu, e a filha teve que voltar para casa para tratar dela, vendo-se obrigada a fazer o trabalho penoso e ingrato para o qual a mãe já não tinha forças. Vidas perdidas, frustradas; e tudo sem proveito para ninguém. É uma verdadeira loteria, quando a pessoa resolve sair do caminho habitualmente trilhado. Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos.

– Mamãe e tio Elliott aprovam o que fiz. O senhor também aprova?

– Minha querida, que importância pode isto ter? Você mal me conhece.

– Considero-o um observador desinteressado – replicou ela com um sorriso simpático. – Gostaria de ter a sua aprovação. O senhor acha que fiz bem, não acha?

– Acho que sob o seu ponto de vista você fez bem – respondi, tendo quase certeza de que ela não perceberia a ligeira distinção que a minha resposta implicava.

– Então por que motivo não estou com a consciência tranquila?

– Não está?...

Ainda com um sorriso nos lábios, mas um sorriso um tanto encabulado, ela inclinou a cabeça e continuou:

– Sei que agi de acordo com a razão. Que qualquer pessoa sensata dirá que era a única coisa a fazer. Que, sob o ponto de vista prático, sob o ponto de vista da sabedoria humana, sob o ponto de vista do que é correto, sob o ponto de vista do bem e do mal, fiz o que devia fazer. E no entanto, no fundo do coração, sinto uma inquietude que me diz que se eu fosse melhor, mais desinteressada, mais desprendida e mais nobre, não teria hesitado em casar-me com Larry e levar sua vida. Se o meu amor fosse bastante forte, eu daria por bem empregado o sacrifício.

– Você pode argumentar de outra forma. Se o amor de Larry fosse bastante forte, ele não teria hesitado em fazer o que você pedia.

– Também pensei nisso. Mas não adianta. Creio que está mais na natureza da mulher sacrificar-se do que na do homem. – Ela riu baixinho. – Ruth e o trigo estrangeiro e aquela história toda.

– Por que você não arrisca?

Tínhamos até então conversado em tom despreocupado, como se estivéssemos a comentar casualmente a vida de pessoas que ambos conhecíamos, mas que não nos interessavam diretamente; mesmo quando me repetira sua conversa com Larry, Isabel falara com alegre vivacidade, pontilhando-a de observações espirituosas, como se não desejasse que eu levasse muito a sério o que dizia.

Mas agora ela empalideceu.

– Tenho medo.

Ficamos em silêncio durante alguns momentos. Um calafrio percorreu-me a espinha, como sempre acontece quando me vejo diante de uma emoção profunda e verdadeira.

– Você gosta muito dele? – perguntei afinal.

– Não sei. Ele me impacienta. Ele me exaspera. Estou sempre ansiando pela sua presença.

De novo se fez silêncio entre nós. Eu não sabia o que responder. A sala onde estávamos era pequena; pesadas cortinas de renda, nas janelas, impediam a claridade de fora. Nas paredes, empapeladas de amarelo, dependuravam-se velhas gravuras sobre caçadas. Com sua mobília de mogno, surradas cadeiras de couro e cheiro bolorento, lembrava estranhamente uma saleta de café de um romance de Dickens. Remexi o fogo e atirei-lhe mais carvão. Subitamente Isabel começou a falar.

– Sabe, achei que quando chegasse o momento de pôr as cartas na mesa Larry cederia. Eu sabia que ele era fraco.

– Fraco? – exclamei. – Aonde foi você buscar essa ideia? Um homem que durante um ano suportou a reprovação de amigos e conhecidos, por estar resolvido a seguir o seu caminho.

– Sempre consegui fazer dele o que quis. Era meu escravo. Ele nunca encabeçou o que fazíamos; apenas acompanhava o grupo.

Eu acendera um cigarro e observava o círculo azul da fumaça, que se foi alargando até se dissolver no ar.

– Mamãe e tio Elliott achavam que eu não devia con tinuar saindo com ele, como se nada tivesse acontecido; mas eu não levava aquilo muito a sério. Até o último dia pensei que ele acabaria cedendo. Não achei possível que, quando naquela sua cabeça dura penetrasse a ideia de que eu não estava brincando, ele não acabasse entregando os pontos. – Isabel hesitou e atirou-me um sorriso maroto, brincalhão. – O senhor ficará escandalizado se eu lhe contar uma coisa?

– Acho muito pouco provável.

– Quando resolvemos vir para Londres, telefonei a Larry e perguntei-lhe se não poderíamos passar juntos minha última noite em Paris. Quando contei isso aos meus, o tio Elliott declarou que não ficava nada bem, e mamãe que achava desnecessário. Quando mamãe diz que acha uma coisa desnecessária, significa que a desaprova em toda a linha. Tio Elliott me perguntou o que pretendíamos fazer; respondi que íamos jantar fora e dar depois um giro pelos cabarés. Ele virou-se para mamãe dizendo que ela devia proibir-me. Mamãe me perguntou: “Você me atenderia se eu a proibisse de ir?”. “Não, querida, nem por sombras.” E ela disse então: “Foi o que imaginei. Neste caso não vejo muita vantagem em proibir”.

– Sua mãe parece uma senhora extraordinariamente sensata.

– Não creio que muita coisa lhe escape. Quando Larry veio buscar-me, entrei no quarto dela para lhe dizer boa-noite. Eu me pintara um pouco; o senhor sabe, em Paris isto é preciso, senão a gente parece tão nua!... Quando mamãe notou o meu vestido, pelo olhar com que me examinou de cima a baixo tive a desagradável impressão de que desconfiava das minhas intenções. Mas não fez comentário algum. Beijou-me, apenas, dizendo que esperava que eu me divertisse.

– E quais eram as suas intenções?

Isabel olhou-me desconfiada, como se ainda não soubesse até que ponto levar a franqueza.

– Não creio que eu estivesse muito feia e era aquela a minha última oportunidade. Larry reservara uma mesa no Maxim. Comemos coisas gostosas, da minha preferência, e tomamos champanhe. Falamos os maiores absurdos, pelo menos eu falei, e fiz Larry rir. Uma das coisas que mais me agradam nele é o fato de eu poder sempre diverti-lo. Dançamos. Quando nos cansamos disso, fomos para o Château de Madrid. Ali encontramos alguns conhecidos, juntamo-nos ao seu grupo e tomamos mais champanhe. Depois fomos todos para o Acádia. Larry dança bem, e combinamos. O calor, a música, o vinho... eu estava um pouco tonta. Não tinha medo de nada. Dancei com a face contra a de Larry e vi que ele me desejava. Só Deus sabe como eu o desejava! Tive uma ideia... Provavelmente estivera no meu subconsciente o tempo todo. Resolvi fazer com que ele me acompanhasse até em casa; uma vez que o pegasse ali, pois bem, era inevitável que acontecesse o inevitável.

– Por Deus, você não poderia ter-se expressado com maior delicadeza.

– Meu quarto era bem afastado do de mamãe e do de tio Elliott, de modo que eu sabia que não havia perigo. Quando estivéssemos de novo na América, pensei, eu escreveria a Larry dizendo que ia ter um bebê. Ele seria obrigado a voltar, para casar-se comigo, e achei que, uma vez que o apanhasse na América, não seria difícil prendê-lo, principalmente com mamãe doente. “Que idiota fui em não me lembrar disso antes”, pensei com os meus botões. “Não há dúvida de que assim fica resolvido o caso.” Quando a música parou, continuei nos braços dele. Disse-lhe depois que estava ficando tarde e que, como eu tinha que tomar o trem ao meio-dia, era melhor irmos embora. Tomamos um táxi. Aconcheguei-me a ele; Larry enlaçou-me e beijou-me. Beijou-me e beijou-me e... oh! que paraíso! Quando o táxi parou à porta, pareceu-me que se passara apenas um minuto. Larry pagou o homem.

“Vou a pé para casa”, disse-me ele.

– O táxi afastou-se barulhentamente e eu pus os braços à volta do pescoço de Larry.

“Não quer entrar e tomar um último drinque?”, perguntei. “Sim, se você quiser.”

– Larry tocara a campainha e a porta estava aberta. Ele acendeu a luz e entramos. Olhei dentro dos seus olhos. Tão confiantes, tão sinceros, tão... ingênuos; evidentemente ele não tinha a menor ideia da armadilha que eu estava lhe preparando. Vi então que não me seria possível fazer papel tão indecente; era o mesmo que tirar um doce da boca de uma criança. Sabe o que eu disse? “Oh! bom, talvez seja melhor você não entrar. Mamãe não está hoje passando muito bem e não quero acordá-la, caso tenha adormecido. Boa noite.” Ergui o rosto para que ele me beijasse e empurrei-o para a rua. E assim acabou-se a história.

– Você está arrependida? – perguntei.

– Nem satisfeita nem arrependida. Não pude agir de outra forma. Não fui eu que fiz aquilo. Foi um impulso que se apossou de mim e agiu por mim. – Isabel sorriu. – Com certeza dirão que foi o meu lado bom.

– Com certeza.

– Então o meu lado bom tem que sofrer as consequências. Espero que no futuro ele seja mais prevenido.

Foi este, por assim dizer, o fim de nossa conversa. Talvez Isabel tenha sentido algum consolo em poder conversar com absoluta franqueza, mas foi esse o único auxílio que lhe pude prestar. Sentindo que não correspondera à expectativa, tentei pelo menos dizer-lhe uma coisinha que talvez a confortasse.

– Você sabe, quando amamos, e as coisas não correm a nosso contento, sentimo-nos profundamente infelizes e temos a impressão de que nunca nos consolaremos. Mas você ficará atônita ao ver o que o mar pode fazer.

– Que quer dizer com isso? – perguntou ela sorrindo.

– Bom, o amor não é bom marinheiro e definha-se numa viagem por mar. Quando o Atlântico se interpuser entre você e Larry, você vai ficar admirada ao verificar como é leve a dor que antes lhe parecia intolerável.

– Fala por experiência própria?

– Experiência de um tormentoso passado. Quando eu sofria as agonias de um amor não correspondido, metia-me imediatamente num navio.

A chuva não dava mostras de cessar; concordamos, portanto, em que Isabel não ia morrer por deixar de ver o nobre edifício de Hampton Court, ou mesmo o leito da rainha Isabel, e voltamos para Londres. Ainda a vi duas ou três vezes depois disso, mas sempre quando havia outras pessoas presentes; e então, tendo-me fartado de Londres por algum tempo, parti para o Tirol.


Três

Três


1

Nos dez anos seguintes perdi Isabel e Larry de vista. Continuei a ver Elliott e, por uma razão que mais tarde explicarei, mais frequentemente do que antes; por ele de vez em quando eu tinha notícias de Isabel. Mas a respeito de Larry ele nada soube contar-me.

– É bem possível que ainda esteja em Paris, mas duvido que nos venhamos a encontrar. Não frequentamos a mesma roda – acrescentou Elliott, com certa complacência. – É uma pena ele ter-se estragado dessa forma. É de uma ótima família. Garanto que teria dado alguma coisa, se tivesse seguido a minha orientação. Em todo caso foi uma sorte para Isabel.

Meu círculo de relações não era tão restrito quanto o de Elliott e eu conhecia, em Paris, muita gente que ele sem dúvida consideraria indesejável. Nas minhas breves mas não raras idas àquela capital perguntei a uma ou outra dessas pessoas se tinham visto Larry ou ouvido falar dele; algumas o conheciam ligeiramente, mas ninguém com suficiente intimidade para me dar informações a seu respeito. Fui ao restaurante onde ele costumava jantar, mas fazia tempo que ali não aparecia; julgavam que se ausentara de Paris. Nunca o vi em nenhum dos cafés do Boulevard du Montparnasse, geralmente frequentado pelas pessoas da vizinhança.

Sua intenção, depois que Isabel deixou Paris, era ir à Grécia, mas o projeto foi abandonado. Muitos anos mais tarde ele me contou o que fizera, mas vou relatar agora esses acontecimentos, pois, na medida do possível, acho mais conveniente colocá-los em ordem cronológica. Larry ficou em Paris durante o verão, trabalhando intensamente, até o outono já ir bem avançado.

– Achei então que precisava descansar dos livros – disse-me ele. – Durante dois anos eu estivera estudando de oito a dez horas por dia. Fui, portanto, trabalhar numa mina de carvão.

– Trabalhar onde? – exclamei. Ele riu do meu espanto.

– Achei que, durante alguns meses, o trabalho manual me faria bem. Pareceu-me que me daria oportunidade de coordenar as ideias e chegar a um entendimento comigo mesmo.

Fiquei em silêncio. Seria essa a única razão para aquele passo inesperado, ou teria relação com o rompimento do noivado com Isabel? A questão é que eu não sabia até que ponto Larry a amava. Muitas pessoas, quando apaixonadas, inventam razões para convencer a si próprias de que devem fazer o que desejam. Creio que é por isso que há tantos casamentos desastrosos. São como aquelas pessoas que entregam seus negócios a um homem reconhecidamente desonesto, só porque acontece tratar-se de um amigo; e, não querendo acreditar que um ladrão é primeiro ladrão, e depois amigo, pensam que por mais desonesto que ele seja com os outros, com elas o caso muda de figura. Larry tivera força suficiente para não sacrificar, por causa de Isabel, a vida que o atraía, mas talvez tivesse achado a dor de perdê-la mais amarga do que supusera. É bem possível que, como todos nós, ele tivesse querido comer o bolo e guardá-lo ao mesmo tempo.

– Pois bem, continue – disse eu.

– Arrumei meus livros e roupas em duas malas e mandei-as para o depósito do American Express. Depois enfiei um terno e algumas roupas de baixo numa maleta e parti. Meu professor de grego tinha uma irmã casada com o gerente de uma mina perto de Lens e deu-me uma carta de apresentação para ele. Conhece Lens?

– Não.

– Fica no norte da França, não muito distante da fronteira belga. Só passei ali uma noite, no hotel da estação; no dia seguinte tomei o trem de subúrbio que vai para o local da mina. Já esteve numa vila de mineiros?

– Sim, na Inglaterra.

– Bom, deve ser a mesma coisa. Havia a mina, a residência do gerente, e fileiras e fileiras de casas jeitosinhas, de dois andares; iguais, tão iguais, que chegavam a confranger o coração. Uma igreja mais ou menos nova, feia; vários bares. O tempo estava enfarruscado e frio quando lá cheguei; caía uma chuvinha miúda. Fui até o escritório do gerente e mandei-lhe a minha carta. Era ele um homem pequeno, gordo, de rosto rubro e ar de quem gosta de passar bem. Havia falta de braços, pois vários mineiros tinham morrido na guerra; ali trabalhavam muitos poloneses, de duzentos a trezentos, creio eu. Ele me fez duas ou três perguntas, não parecendo apreciar o fato de eu ser americano; tive a impressão de que achou isso meio suspeito. Mas na carta o cunhado me fazia boas referências e, em todo caso, ele ficou satisfeito de poder contar com mais alguém. Quis dar-me um lugar na superfície, mas eu lhe disse que preferia trabalhar no subsolo. Replicou que, não estando habituado, eu ia achar o serviço duro; como insisti, deu-me o lugar de ajudante de mineiro. Era realmente serviço de menino, mas não havia suficiente número deles para preencher as vagas. O gerente era um bom sujeito. Perguntou-me se eu já tinha providenciado acomodação e, ante minha resposta negativa, escreveu um endereço num papelzinho, dizendo que se eu fosse até lá a dona da casa me arranjaria um leito. Era viúva de um mineiro que morrera na guerra e seus dois filhos trabalhavam na mina.

“Peguei de novo a maleta e segui o meu caminho. Encontrei a casa. Uma mulher alta, emaciada, de cabelos grisalhos e grandes olhos negros veio abrir-me a porta. Tinha traços benfeitos e devia ter sido bonita. Mesmo agora não seria feia, no seu tipo esquálido, a não ser pelos dois dentes que lhe faltavam na frente. Disse-me que quarto ela não tinha, mas que havia duas camas no quarto que alugara a um polonês e que eu podia ficar com a que estava vaga. O aposento que ela me mostrou era no andar de baixo e devia ter sido sala de visitas. Eu teria preferido um quarto só para mim, mas resolvi deixar de exigências; a garoa transformara-se em chuva leve e persistente e eu já estava molhado; não me agradava a perspectiva de ir para diante e ficar encharcado até os ossos. Disse, portanto, que aceitava, e instalei-me. A cozinha, onde notei duas poltronas pouco firmes, servia também de sala. Havia, no pátio, um barracão onde guardavam o carvão, e que era também o banheiro. Os dois rapazes e o polonês tinham levado o seu almoço, mas a mulher me disse que eu poderia almoçar com ela ao meio-dia. Sentei-me depois na cozinha, com o meu cachimbo. Enquanto trabalhava, a mulher me contou sua história e a de sua família. Os outros chegaram assim que sua turma deixou de trabalhar. Primeiro o polonês, logo em seguida os dois rapazes. O polonês passou pela cozinha, cumprimentou-me com a cabeça, nada dizendo quando a dona da casa lhe participou que íamos compartilhar do mesmo quarto; tirou da chapa uma chaleira e foi lavar-se no barracão. Apesar da sujeira do rosto, os filhos da dona eram mocetões bonitos, e pareciam inclinados à camaradagem. Consideravam-me uma aberração pelo fato de eu ser americano. Um deles estava com dezenove anos e logo teria que fazer o serviço militar; o outro com dezoito.

“O polonês voltou e os rapazes foram lavar-se. Meu companheiro de quarto tinha um daqueles complicados nomes poloneses, mas chamavam-no de Kosti. Era um sujeito grande e pesado, quase dez centímetros mais alto do que eu. Pálido rosto carnudo, nariz curto e chato, boca larga. Seus olhos eram azuis e, por não ter conseguido tirar o carvão das pestanas e sobrancelhas, ele parecia estar pintado. As pestanas negras tornavam quase chocante o azul dos olhos. Sujeito feio, abrutalhado. Tendo trocado de roupa, os dois rapazes saíram. O polonês sentou-se na cozinha e pôs-se a ler o jornal, fumando o seu cachimbo. Eu tinha um livro no bolso; tirei-o e comecei também a ler. Notei que duas ou três vezes o polonês me olhou; dali a pouco largou o jornal.

“Que é que você está lendo?”, perguntou-me.

– Entreguei-lhe o livro para que ele mesmo verificasse. Era um exemplar da Princesse de Clèves que eu comprara na estação, em Paris, pela vantagem de poder carregá-lo no bolso. O polonês examinou o livro, fitou-me curiosamente e devolveu-mo. Notei-lhe o sorriso irônico.

“Acha graça nisso?”, perguntou.

“Acho interessantíssimo; absorvente, mesmo”, respondi.

“Li-o na escola, em Varsóvia. Achei-o cacetérrimo.” Ele falava bem o francês, quase sem sotaque estrangeiro. “Agora só leio os jornais e livros policiais.”

– Madame Duclerc, a dona da casa, estava sentada à mesa, cerzindo meias, mas de olho na sopa sobre o fogão. Contou a Kosti que eu fora mandado pelo gerente da mina e repetiu aquilo que me aprouvera contar-lhe. Ele ouviu, fumando, e olhou-me com aqueles seus brilhantes olhos azuis. Olhos duros e perspicazes. Fez-me algumas perguntas sobre a minha pessoa. Quando declarei que nunca trabalhara numa mina, de novo seus lábios se encresparam num sorriso irônico.

“Você não sabe em que se meteu. Quem pode trabalhar em outra coisa nunca devia procurar serviço numa mina. Mas isto não é da minha conta e com certeza você tem as suas razões. Onde morava em Paris?”

– Contei-lhe; Kosti disse, então:

“Houve época em que eu costumava ir todos os anos a Paris, mas ficava ali pelos Grands Boulevards. Conhece o Larue? Era um dos meus restaurantes prediletos.”

– Isto me surpreendeu, pois, como você sabe, não é barato.

– Longe disso.

– Creio que Kosti notou a minha surpresa, pois de novo teve um sorriso zombeteiro, mas não achou necessário entrar em explicações. Continuamos a conversar de uma coisa e outra e dali a pouco os dois rapazes chegaram. Terminada a ceia, Kosti me perguntou se eu queria acompanhá-lo ao bistrô para tomarmos uma cerveja. Fomos. Nada mais era que uma sala grande, com bar na extremidade e várias mesas de mármore, com cadeiras de madeira à volta. O piano automático, onde alguém colocara uma moeda, esganiçava uma música de dança. Além da nossa, só três mesas estavam ocupadas. Kosti perguntou-me se eu jogava belote. Respondi afirmativamente, pois aprendera a jogar com meus colegas; ele propôs então disputarmos a cerveja. Concordei. Veio o baralho. Perdi a primeira e a segunda rodadas. Kosti sugeriu então que jogássemos a dinheiro. Ele tinha boas cartas e eu estava de azar. As apostas eram insignificantes, mas mesmo assim perdi vários francos. Isto e a cerveja deixaram-no de bom humor, desatando-lhe a língua. Não levei tempo a perceber, tanto pelo seu modo de falar como por suas maneiras, que ele era um homem educado. Quando de novo se referiu a Paris, foi para perguntar-me se eu conhecia Fulana ou Sicrana, senhoras americanas que eu encontrara na casa de Elliott quando tia Louisa e Isabel ali estiveram hospedadas. Parecia conhecê-las melhor do que eu e fiquei a conjeturar como chegara ele à situação presente. Não era ainda muito tarde; tínhamos, no entanto, que nos retirar, pois precisávamos nos levantar de madrugada.

“Vamos tomar mais uma cerveja antes de sair”, propôs

Kosti.

– Sorveu-a aos bocadinhos, espiando-me com seus olhinhos vivos. Percebi então de que me fazia ele lembrar: de um porco mal-humorado.

“Por que motivo veio você trabalhar nesta mina infecta?”, perguntou-me.

“Pela experiência.”

“Tu es fou, mon petit.”

“E por que motivo está você trabalhando aqui?”

– Kosti encolheu os ombros desajeitados e maciços e respondeu:

“Entrei para a escola de cadetes, dos nobres, quando era criança. Meu pai era general do czar e eu fui oficial de cavalaria na última guerra. Mas eu não suportava Pilsudski. Tramamos matá-lo, mas alguém nos denunciou. Ele mandou fuzilar aqueles que foram capturados. Consegui atravessar a fronteira a tempo. Para mim só havia duas alternativas: a Legião Estrangeira ou uma mina de carvão. Escolhi dos males o menor.”

– Eu contara a Kosti qual ia ser o meu serviço na mina e ele não fizera comentário algum; mas agora, cravando o cotovelo na mesa, disse:

“Experimente abaixar minha mão.”

– Eu conhecia esta velha prova de força e coloquei minha palma aberta sobre a dele. Riu e disse: “Daqui a algumas semanas sua mão não estará assim macia”. Fiz toda a força possível, mas nada consegui contra aquela rocha; pouco a pouco ele foi empurrando minha mão até deitá-la sobre o mármore.

“Você é bem forte”, condescendeu ele em dizer. “Não são muitos que aguentam tanto tempo assim. Escute aqui: meu auxiliar não vale nada, é um francezinho esmirrado, sem um pingo de força. Venha comigo amanhã, que eu peço ao capataz que lhe dê o lugar dele.”

“Isto me agradaria”, respondi. “Acha que ele vai concordar?”

“Por um certo preço. Você pode dispor de cinquenta francos?”

– Kosti estendeu a mão e eu tirei uma nota da carteira. Fomos para casa e caímos na cama. Eu estava cansado e dormi como uma pedra.

– Achou o trabalho muito pesado? – perguntei a Larry.

– De quebrar os costados, a princípio – respondeu ele sorrindo. – Kosti ajeitou a coisa com o capataz e fui designado seu ajudante. Naquela ocasião ele estava trabalhando num espaço do tamanho de um banheiro de hotel; para chegar lá a gente tinha que atravessar um túnel tão baixo que era necessário andar de gatinhas.

Fazia ali um calor dos infernos e trabalhávamos só de calça. O vasto tronco branco e gordo de Kosti tinha qualquer coisa de intensamente repulsivo; parecia uma lesma enorme. O ruído do cortador pneumático, naquele espaço acanhado, era ensurdecedor. Meu trabalho era recolher os blocos de carvão que ele cortava, enfiá-los numa cesta e arrastá-la por todo o túnel até a boca, de onde seriam recolhidos para um vagonete quando, de intervalo em intervalo, por ali passasse o trem rumo aos elevadores. É a única mina de carvão que conheço, de modo que não sei se é esse o costume. Pareceu-me um tanto primitivo e dava um trabalhão dos infernos. Na metade do tempo parávamos para descansar, comíamos o nosso almoço e fumávamos. Eu me dava por feliz quando acabava o dia, e, céus, que coisa boa, um banho! Pensei que nunca conseguisse fazer com que meus pés ficassem limpos. Claro que minhas mãos ficaram cheias de bolhas, e doíam como o diabo; mas acabaram sarando. Habituei-me ao trabalho.

– Quanto tempo você aguentou?

– Só fiquei nesse serviço durante algumas semanas. Os vagonetes que levavam o carvão para os elevadores eram puxados por um trator, e o condutor era péssimo mecânico. Quando o motor enguiçava, o homem ficava sem saber o que fazer. Pois bem, acontece que sou um bom mecânico; examinei a máquina e em meia hora consegui pô-la a funcionar. O capataz contou ao gerente e este mandou me chamar, perguntando-me se eu entendia mesmo do assunto; o resultado foi ele dar-me o lugar do mecânico. Era monótono, naturalmente, mas fácil; e, como não tiveram mais aborrecimentos com a máquina, ficaram satisfeitos comigo.

Kosti ficou furioso com a mudança. Eu lhe convinha e ele estava habituado à minha companhia. Cheguei a conhecê-lo muito bem, trabalhando a seu lado o dia todo, indo com ele ao bistrô depois da ceia e dormindo no mesmo quarto. Era um sujeito engraçado. Tipo que você teria achado interessante. Não se misturava com os outros poloneses, e não frequentávamos os cafés que eles frequentavam. Kosti não podia esquecer que fora oficial de cavalaria e tratava-os como se fossem lixo. Eles, naturalmente, ficavam ofendidos com isso, mas o que podiam fazer? O sujeito era um touro; se houvesse uma briga, com ou sem faca, daria conta de meia dúzia deles. Mesmo assim, fiquei conhecendo alguns dos outros; e eles me contaram que Kosti fora de fato oficial de cavalaria de um dos mais elegantes regimentos, mas que mentia ao dizer que deixara a Polônia por razões políticas. Fora expulso do Clube dos Oficiais de Varsóvia e da cavalaria por ter sido apanhado trapaceando no jogo. Preveniram-me que não jogasse com ele, afirmando que era por esse motivo que Kosti os evitava – porque eles sabiam com quem estavam lidando.

Eu andara perdendo sistematicamente, não muito, apenas alguns francos cada noite; além do mais, quando ganhava, Kosti sempre insistia em pagar pelas bebidas, de modo que o prejuízo era insignificante. Pensei que estivesse numa maré de azar, ou que não jogasse tão bem quanto ele. Mas depois disso fiquei de olho atento e tive certeza de que ele roubava, mas juro que por mais que eu fizesse não conseguia descobrir o truque. Céus, que habilidade! Mas não achei possível ele ter as melhores cartas o tempo todo e continuei a observá-lo com olhar de lince. Kosti era esperto como ninguém e creio que percebeu que me haviam prevenido. Certa noite, depois de termos jogado durante algum tempo, fitou-me com um sorriso um tanto cruel, sarcástico, sua única maneira de sorrir, e disse:

“Quer ver uma mágica?”

– Pegou o baralho e me mandou dizer uma carta. Baralhou-as e pediu-me que escolhesse uma; ao aceder, verifiquei que era a carta que eu nomeara. Fez mais uma ou duas mágicas e depois me perguntou se eu jogava pôquer. Respondi que sim e ele deu as cartas. Quando olhei a minha mão, verifiquei que tinha uma quadra de ases e um rei ao lado.

‘’Você estaria disposto a apostar muito nesta mão, não estaria?”, perguntou-me.

“Todas as minhas fichas”, respondi.

“Pois seria tolice.” Ele mostrou a mão que dera para si próprio. Um straight flush. Como o conseguira, não sei. Riu do meu espanto. “Se eu não fosse um homem honesto, há muito já o teria depenado.”

“Não se pode dizer que você se saiu assim tão mal”, repliquei sorrindo.

“Isto é café pequeno. Não daria para pagar um jantar no Larue.”

– Continuamos a jogar quase todas as noites. Cheguei à conclusão de que ele roubava, não tanto pelo dinheiro, mas pela satisfação de roubar. Sentia um estranho prazer em me fazer de tolo, achando divertidíssimo saber que eu desconfiava de sua malandragem, sem no entanto poder atinar com ela.

Mas este era apenas um lado seu, e o outro é que o tornava interessante. Eu não podia conciliar os dois. Embora se gabasse de só ler jornais e histórias de detetive, Kosti era um homem culto. Tinha boa prosa, era sarcástico, áspero, cínico, mas que prazer ouvi-lo! Fervoroso católico; tinha um crucifixo na parede, em cima da cama, e ia à missa todos os domingos. Nos sábados à noite costumava embriagar-se. O bistrô que frequentávamos ficava repleto nesse dia; ar carregado de fumaça. Lá iam pacatos mineiros de meia-idade, com suas famílias, grupos de moços que faziam um barulho dos diabos, e homens de rosto coberto de transpiração, que se punham à volta de uma mesa, jogando belote com ruidosas exclamações, enquanto suas mulheres, sentadas um pouco atrás, sapeavam o jogo. A multidão e o barulho tinham um estranho efeito sobre Kosti; ele ficava sério e começava a falar daquilo que menos se esperava – misticismo. Naquela ocasião eu não entendia do assunto, a não ser por um ensaio de Maeterlinck, sobre Ruysbroek, que eu lera em Paris. Mas Kosti falava de Plotino e Dionísio, o Areopagita, de Jacob Boehme, o sapateiro, de Meister Eckhart. Fantástico, ouvir aquele sujeito desajeitado e grandalhão, que fora expulso do seu meio, aquele homem vencido, sarcástico e amargurado, falar da derradeira realidade das coisas e da bem-aventurança da união com Deus. Aquilo me era desconhecido e me deixava confuso e excitado. Eu me sentia como uma pessoa que, fechada num quarto escuro, sabe que lhe bastará afastá-la para ter diante dos olhos a beleza pura da madrugada sobre os campos. Mas, quando estava sóbrio e eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, Kosti ficava furioso.

Seus olhos adquiriam uma expressão despeitada. “Como é que posso explicar o que é, se eu não sabia o que estava dizendo?”, rosnava ele.

– Mas eu via que estava mentindo. Ele sabia perfeitamente sobre o que estivera falando. Sabia muita coisa. Claro que estivera bêbado; mas o olhar, a expressão arrebatada do seu rosto feio não tinham por causa única a bebida. Havia alguma coisa mais. Quando me falou nisso pela primeira vez, disse-me algo de que não me esqueci e que me deixou horrorizado: que o mundo não é coisa criada, pois do nada nada pode provir, e sim uma manifestação da natureza eterna; bom, até aí, vá lá; mas depois ele acrescentou que, tanto quanto o bem, o mal é uma direta manifestação da divindade. Estranhas palavras para serem ditas naquele café barulhento e sórdido, ao som de músicas populares que um piano automático tocava.


2

Para descanso do leitor, começo aqui nova seção; faço-o, porém, apenas para conveniência dele, pois a conversa foi ininterrupta. Aproveito a oportunidade para dizer que Larry falava sem pressa, muitas vezes escolhendo com cuidado os vocábulos e, embora eu não queira dar a entender que estive a repeti-los com exatidão, tentei reproduzir, não somente a essência, mas também a forma da narrativa. Sua voz, de timbre rico, possuía uma qualidade musical que agradava ao ouvido; e, enquanto falava, sem gesticulação de espécie alguma, fumando o seu cachimbo e parando de vez em quando para acendê-lo, fitava a gente com expressão simpática, às vezes quase patética, nos olhos negros.

– Depois veio a primavera – continuou Larry. – Chegou tarde àquela região lúgubre e plana, onde ainda chovia e fazia frio. Mas às vezes, com um dia bonito, era sacrifício a gente entranhar-se pela terra, num elevador gigante, repleto de mineiros metidos em sujos macacões. Era primavera, sim, mas chegava timidamente àquela paisagem sombria, como que incerta da recepção que lhe fariam. Lembrava uma flor, narciso ou lírio, que desabrochasse no vaso de uma janela de cortiço, deixando a gente a imaginar por que razão estaria ali. Certo domingo de manhã, lia eu na cama – sempre nos levantávamos tarde aos domingos – quando Kosti me disse sem mais aquela:

“Vou-me embora daqui. Quer ir comigo?”.

– Eu sabia que muitos poloneses voltavam à pátria, no verão, para ajudar na colheita, mas ainda era cedo para isso; além do mais, Kosti não podia voltar para a Polônia.

“Para onde vai você?”, perguntei.

“A pé, pela estrada afora. Através da Bélgica, pela Alemanha, e Reno abaixo. Poderíamos trabalhar em alguma fazenda durante o verão.”

– Não levei dois minutos a resolver. “Parece ótimo”, respondi.

– No dia seguinte avisamos o capataz que íamos sair. Encontrei um sujeito que concordou em ficar com a minha maleta, a troco de um saco de viagem. As roupas que eu não quis ou não pude levar dei-as ao filho mais novo de madame Duclerc, que era mais ou menos do meu tamanho. Kosti deixou sua mala e levou algumas roupas num saco de viagem; no dia seguinte, assim que a velha nos deu o café, partimos.

Não tínhamos pressa e sabíamos que nas fazendas não nos aceitariam a não ser quando o feno estivesse pronto para ser cortado. Vagueamos, portanto, pela França e Bélgica, passando por Namur e Liège, entrando na Alemanha por Aachen. Não caminhávamos mais que dez ou doze milhas por dia; quando o aspecto de uma aldeia nos agradava, parávamos ali. Sempre havia uma hospedaria onde nos arranjavam duas camas, e uma taverna onde podíamos comer e beber. Tivemos, em geral, sorte com o tempo. Ótimo, viver ao ar livre, depois de tantos meses enfurnados na mina. Creio que até então eu não compreendera, realmente, como é agradável o espetáculo de um campo verdejante, e como é bela a árvore cheia de brotos, quando os galhos estão velados por uma tênue neblina verde. Kosti começou a ensinar-me alemão e creio que conhecia tão bem essa língua quanto o francês. À medida que avançávamos ele me dizia os nomes dos objetos que íamos vendo, fazendo-me também repetir simples sentenças em alemão. Isto ajudava a passar o tempo e, quando chegamos à Alemanha, pelo menos eu podia pedir o que queria.

Colônia ficava um pouco fora do caminho, mas Kosti insistiu em ir até lá, por causa das Onze Mil Virgens, disse ele; mas, ali chegando, caiu na farra. Não o vi durante três dias; quando apareceu no quartinho que havíamos alugado numa espécie de pensão de operários, veio muito mal-humorado. Metera-se numa briga, levara um tapa-olho e tinha um lábio cortado. Não parecia nenhum Adônis, garanto-lhe! Dormiu durante vinte e quatro horas; depois começamos a descer o vale do Reno, rumo a Darmstadt, onde, dizia ele, teríamos mais probabilidade de conseguir trabalho, por ser região mais fértil.

Nunca houve coisa que me desse maior prazer! O bom tempo perdurava; andamos por cidades e aldeias.

Quando dávamos com uma vista bonita, parávamos para apreciá-la. Pernoitávamos onde podíamos e certa vez dormimos no feno, num paiol. Comíamos em estalagens à beira da estrada; quando penetramos na região vinícola, abandonamos a cerveja pelo vinho. Quase sempre fazíamos camaradagem com as pessoas que encontrávamos nas tavernas. Kosti tinha uma rude jovialidade, que lhes inspirava confiança; jogava com elas skat, jogo de cartas alemão, e as depenava com tão ruidoso bom humor, contando as piadas grosseiras que aquela gente apreciava, que elas quase não sentiam o prejuízo de alguns pfennigs. Pratiquei assim o meu alemão. Eu comprara em Colônia uma gramaticazinha anglo-germânica, e ia indo muito bem. Mas à noite, depois de ter ingerido alguns litros de vinho, de um modo estranho e mórbido Kosti falava da fuga do Só para o Só, da Negra Noite da Alma, e da união, em êxtase final, das criaturas com o Bem-Amado. Mas de madrugada, quando sobre a relva orvalhada caminhávamos em meio à risonha natureza, ao ver que eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, ficava tão indignado que parecia querer bater-me.

“Cale a boca, seu idiota”, dizia ele. “Que pretende você com toda essa bobice? Vamos continuar com o nosso alemão.”

– A gente não pode discutir com um sujeito que tem um punho que é um martelo e que não faria cerimônia em usá-lo – continuou Larry. – Eu já o vira com raiva. Sabia que era capaz de me pôr a nocaute e de me largar numa valeta, esvaziando-me os bolsos, ainda por cima. Por mais que eu tentasse, não conseguia compreendê-lo. Quando o vinho lhe desatava a língua, ele falava do Inefável, abandonando a linguagem obscena de que comumente se servia, como os sujos macacões que usava na mina; falava bem, e até mesmo com eloquência. Eu achava impossível que não estivesse sendo sincero. Não sei por quê, mas ocorreu-me que havia escolhido aquele trabalho duro, bruto, de mineiro para castigar a carne. Achei que detestava aquele seu corpo vasto e rude, desejando torturá-lo, e que sua desonestidade no jogo, sua amargura e crueldade eram a revolta da vontade contra... – oh! não sei como me exprimir – um arraigado instinto de santidade, contra um sujeito de Deus, que o apavorava e obcecava ao mesmo tempo.

Não nos tínhamos apressado; a primavera estava quase finda e as árvores enfolhadas. As uvas, nas parreiras, começavam a desenvolver-se. Fazíamos o possível para seguir pelas estradas, cada vez mais poeirentas. Nos arredores de Darmstadt, Kosti disse que era melhor começarmos a procurar trabalho. Nosso dinheiro estava escasseando. Eu tinha no bolso uma meia dúzia de letras de crédito, mas tomara a resolução de não usá-las, se possível. Quando víamos uma fazenda prometedora, parávamos e perguntávamos se não precisavam de dois camaradas. Confesso que não devíamos inspirar muita confiança. Sujos, cobertos de suor e de poeira. Kosti parecia um bandido e não creio que eu estivesse com melhor aparência. Não houve quem nos quisesse. Numa delas, o fazendeiro disse que tomaria Kosti, mas que não precisava de mim; Kosti replicou que éramos companheiros e não nos separaríamos. Eu lhe disse que ficasse, mas não consegui convencê-lo. Fiquei admirado. Sabia que ele simpatizara comigo; por quê, não sei, pois eu não era do tipo que deveria atraí-lo; mas nunca pensei que me tivesse suficiente amizade para recusar um emprego por minha causa. Cheguei a sentir remorsos, pois, para ser franco, eu não gostava dele, achando-o mesmo um tanto repulsivo; mas quando tentei exprimir o prazer que sua recusa me causara, ele logo me deu o contra.

Finalmente nossa sorte mudou. Tínhamos acabado de atravessar uma vila, numa baixada, quando chegamos a uma fazenda que não tinha muito má aparência. Batemos à porta; uma mulher veio abrir. Oferecemos nossos serviços, como de costume. Dissemos que não queríamos salário, mas que estávamos dispostos a trabalhar por casa e comida; qual nossa surpresa quando, em vez de nos bater com a porta na cara, ela nos disse que esperássemos! Chamou por alguém dentro de casa e um homem apareceu. Ele nos encarou bem e perguntou de onde vínhamos, pedindo para examinar nossos documentos. Olhou-me de novo, quando viu que eu era americano. Não pareceu muito satisfeito com isso, mas mesmo assim nos convidou para entrar e tomar um copo de vinho. Fomos para a cozinha; sentamo-nos. A mulher trouxe uma garrafa de mesa e uns copos. O fazendeiro nos contou que um touro investira contra seu empregado, que este estava no hospital e só ficaria bom depois de terminada a colheita. Com tantos homens mortos, e outros empregando-se nas fábricas que pululavam ao longo do Reno, havia enorme falta de braços nas fazendas. Para nós não era novidade; estivéramos mesmo contando com isso. Pois bem, para encurtar a história, o homem nos aceitou. Havia muito espaço na casa, mas creio que ele não nos queria com a família; em todo caso disse que havia duas camas no paiol e que podíamos dormir lá.

O trabalho não era duro. Tínhamos de cuidar das vacas e dos porcos; as máquinas estavam em mau estado e tratamos de consertá-las; mesmo assim, tínhamos momentos de lazer. Eu gostava do cheiro adocicado dos campos, e à noite ia passear por ali, a sonhar. Era uma boa vida.

A família consistia no velho Becker, sua mulher, sua nora viúva e os filhos desta. Becker era um homem troncudo, de cabelos grisalhos, que devia estar beirando os cinquenta anos. Estivera na guerra e mancava devido a um ferimento recebido na perna. Doía-lhe muito e ele bebia para disfarçar a dor. Geralmente estava bem embalado quando ia para a cama. Kosti deu-se admiravelmente com ele; habituaram-se a ir até a taverna, depois do jantar, jogar skat e empanturrar-se de vinho. Frau Becker fora criada da casa. Tinham-na tirado de um orfanato e Becker casara-se com ela pouco depois da morte de sua mulher. Era bem mais moça do que ele, bonitona, robusta, rosto corado e cabelos louros, ar profundamente sensual. Kosti não levou tempo para perceber que ali havia futuro. Eu lhe disse que não fosse idiota; não valia a pena arriscarmos o nosso emprego. Ele apenas zombou de mim, dizendo que Becker não a satisfazia e que ela não queria outra coisa. Eu sabia que era inútil apelar para a sua noção de honra, mas aconselhei-o a ter cuidado; talvez Becker não percebesse suas intenções, mas ali estava a nora, e a esta nada escapava.

Ellie, assim se chamava ela, era uma jovem alta, grande, de vinte e poucos anos; cabelos e olhos negros, pálido rosto quadrado, expressão taciturna. Ainda estava de luto pelo marido, que morrera em Verdun. Era muito devota e todos os domingos de manhã lá ia ela à aldeia assistir à primeira missa: à tarde voltava para a bênção. Tinha três filhos, um dos quais nascera depois da morte do marido; à hora das refeições nunca falava, a não ser para repreendê-los. Trabalhava pouco na fazenda, mas passava a maior parte do tempo tomando conta das crianças; à noite sentava-se sozinha na sala, com um romance, deixando aberta a porta para poder ouvir, caso algum deles chorasse. As duas mulheres odiavam-se. Ellie desprezava Frau Becker porque era enjeitada e fora empregada doméstica, não se conformando com o fato de ser ela a dona da casa e estar em posição de dar ordens.

Ellie era filha de um fazendeiro abastado e trouxera bom dote. Não fora educada na escola da aldeia, e sim em Zwingenberg, a cidade mais próxima, onde havia um gymnasium para meninas. A pobre Frau Becker viera para a fazenda com catorze anos, e quando muito sabia ler e escrever. Era este outro ponto da discórdia entre as duas mulheres. Ellie não perdia oportunidade de exibir sua sabedoria; e Frau Becker, muito vermelha, perguntava de que adiantava aquilo para uma mulher de fazendeiro. Ellie olhava então a medalha de identificação do marido, que usava no pulso, presa por uma corrente de ferro, e com expressão amarga no rosto taciturno, dizia:

“Mulher de fazendeiro, não. Apenas viúva de fazendeiro. Apenas viúva de um herói que deu sua vida pela pátria.”

– O pobre Becker tinha um trabalhão para conservar a paz entre as duas.

– Mas que pensavam eles de você? – perguntei a Larry.

– Oh! achavam que eu desertara do Exército americano e não podia voltar, pois do contrário seria preso. Era assim que explicavam a minha recusa em acompanhar Becker e Kosti à taverna. Julgavam que eu não queria chamar atenção sobre minha pessoa, nem correr o risco de ter que responder às perguntas do sargento de polícia. Quando Ellie descobriu que eu estava querendo aprender alemão, foi buscar seus livros escolares e disse que estava pronta a ensinar-me. E assim, depois da ceia, íamos para a sala, deixando Frau Becker na cozinha. Eu lia em voz alta enquanto ela me corrigia a pronúncia, procurando fazer-me compreender o sentido de palavras sobre as quais eu não tinha a mínima ideia. Desconfiei que estava fazendo isto não tanto para me ajudar, mas para levar vantagem sobre Frau Becker.

Durante todo esse tempo Kosti estava dando em cima de Frau Becker, mas sem nenhum resultado. Ela era uma mulher alegre, folgazã, sempre pronta a pilheriar e rir com ele, e Kosti tinha jeito para tratar as mulheres. Creio que ela desconfiava das intenções do polonês e sentia-se lisonjeada, mas, quando ele começou a beliscá-la, disse-lhe que não lhe pusesse as mãos em cima e deu-lhe uma bofetada na cara. E garanto que foi uma boa bofetada!

Larry hesitou durante alguns instantes, sorrindo um tanto encabulado.

– Nunca fui do tipo de achar que as mulheres me perseguem, mas ocorreu-me que... pois bem, que Frau Becker estava caída por mim. Não fiquei nada satisfeito. Para começar, ela era muito mais velha do que eu; além do mais, o marido fora muito correto conosco. Era ela quem servia à mesa, e não pude deixar de notar que era mais generosa comigo do que com os outros; pareceu-me também que estava sempre procurando ocasião de ficar a sós comigo. Dirigia-me sorrisos que, creio eu, poderiam ser qualificados de provocantes. Costumava perguntar-me se eu não tinha namorada, dizendo que um rapaz novo como eu deveria sentir falta disso, num lugar daqueles. O senhor sabe como são essas coisas. Eu só tinha três camisas e assim mesmo bem surradas. Certa vez ela me disse que era o cúmulo eu usar aqueles trapos; que as trouxesse, pois ela as consertaria para mim. Ellie ouviu-a e, da próxima vez que nos vimos a sós, disse-me que se eu tivesse alguma coisa para consertar, era só lhe trazer. Respondi que não valia a pena. Um ou dois dias depois notei que minhas meias estavam cerzidas, minhas camisas remendadas e de volta ao banco do paiol onde guardávamos as nossas coisas; mas até hoje não sei a qual das duas devo gratidão. Naturalmente não levei Frau Becker a sério; era uma boa alma e achei que aquilo devia ser apenas instinto maternal da sua parte. Mas certo dia Kosti me disse:

“Escute aqui; não é a mim que ela está querendo; é a você. Não tenho a mínima probabilidade.”

“Não diga tolices”, repliquei. “Ela tem idade bastante para ser minha mãe.”

“E que tem isso? Não faça cerimônia, meu rapaz; eu não sou obstáculo. Talvez ela não seja lá muito moça, mas é bem bonitona.”

“Oh! cale a boca.”

“Por que é que você hesita? Não por minha causa, espero. Sou filósofo e sei que coisa que não falta no mar é peixe. Não a censuro. Você é moço. Também já tive o

– Não me agradou verificar que Kosti tinha tão absoluta certeza daquilo em que eu não queria acreditar. Não sabia bem como agir; lembrei-me então de vários incidentes que no momento não me tinham chamado atenção. Frases ditas por Ellie, às quais eu não dera importância, mas que agora adquiriam significação; não havia dúvida de que também Ellie sabia. Muitas vezes ela aparecia de supetão na cozinha, quando acontecia de Frau Becker e eu estarmos a sós. Fiquei com a impressão de que estava nos espionando.

Não gostei daquilo; pareceu-me que estava querendo apanhar-nos. Eu sabia que ela detestava Frau Becker e que ao menor pretexto armaria um barulho. Naturalmente ela nada poderia descobrir, mas era uma criatura maldosa e eu não sabia que mentiras não iria inventar para envenenar o espírito do velho Becker. Fiquei sem saber o que fazer, a não ser fingir-me de tão ingênuo que não percebia o manejo da mulher. Estava satisfeito na fazenda, gostava do trabalho e não queria partir antes de terminada a colheita.

Não pude deixar de sorrir. Imaginei Larry, de shorts e

camisa remendada, rosto e pescoço queimados pelo sol quente do vale do Reno, corpo delgado e flexível, olhos negros cravados nas órbitas... Não duvidei de que o seu físico tivesse feito palpitar de desejo aquela matrona loura e de seios opulentos.

– Pois bem, passou-se o verão. Trabalhávamos como loucos; cortamos e empilhamos o feno. Depois, quando as cerejas amadureceram, Kosti e eu trepamos em escadas para colhê-las; as mulheres recolhiam nas cestas que o velho Becker ia vender em Zwingenberg. Depois cortamos o centeio. E, naturalmente, ainda tínhamos que tratar dos animais. Estávamos de pé antes do amanhecer e só parávamos com o cair da noite. Julguei que Frau Becker houvesse desistido da conquista; eu fazia o possível, sem ofendê-la, para conservá-la a distância. À noite eu tinha sono demais para querer estudar alemão, de modo que logo depois da ceia fugia para o paiol e caía na cama. Em geral Kosti e Becker iam à taverna, mas eu estava ferrado no sono quando Kosti voltava. Fazia calor no paiol e eu dormia nu.

Certa noite acordei. No primeiro momento não atinei com o que era; eu estava ainda meio adormecido. Senti uma mão quente na minha boca e percebi que havia alguém na cama comigo. Afastei com força a mão, mas uma boca se colou à minha, dois braços me enlaçaram e senti os pesados seios de Frau Becker contra o meu corpo.

“Sei still”, murmurou ela. “Fique quieto.”

– Ela me apertou, beijou-me o rosto com lábios quentes e carnudos, suas mãos desceram pelo meu corpo e suas pernas se entrelaçaram com as minhas.

Larry fez uma pausa. Não pude deixar de rir.

– E o que fez você?

Ele me atirou um sorriso modesto. Chegou mesmo a corar.

– Que podia eu fazer? Eu ouvia a respiração pesada de Kosti na cama pegada à minha. A situação de José sempre me pareceu um tanto ridícula. Eu tinha apenas vinte e três anos. Não podia fazer um escândalo e expulsá-la dali. Não quis ofendê-la. Fiz o que se esperava de mim.

Depois ela escorregou da cama e saiu do paiol na ponta dos pés. Garanto-lhe que suspirei de alívio. Sabe, eu tivera medo. “Céus, que perigo!”, pensei. Provavelmente Becker chegara completamente embriagado, tendo caído numa espécie de torpor; mas eles dormiam na mesma cama e existia a possibilidade de o velho acordar e ver que a mulher não estava a seu lado. E ainda havia Ellie. Ela sempre dizia que não dormia bem. Se estivesse acordada, poderia ter ouvido Frau Becker descer a escada e sair de casa. Subitamente, lembrei-me de uma coisa. Quando Frau Becker estivera na cama comigo, eu sentira um frio de metal contra a minha pele. Não prestara atenção a isso; como você sabe, a gente não liga a nada em tais circunstâncias, e nunca me passara pela cabeça procurar saber que diabo de coisa era aquela. Mas agora se tinha feito luz no meu espírito. Eu estava sentado na beira da cama, refletindo e preocupando-me com as consequências, e tão grande foi o meu choque que me pus de pé. A peça de metal era a medalha de identificação do marido de Ellie, que ela usava em volta do pulso, e não fora Frau Becker que se deitara comigo. Fora Ellie.

Ri a bandeiras despregadas. Não pude conter-me.

– Pode ser engraçado para os outros – disse Larry. – Mas não foi nada engraçado para mim.

– Pois bem, agora que você examina o caso a sangue-frio, não lhe parece que há nele uma nota cômica?

Larry não pôde reprimir um sorriso.

– Talvez. Mas era uma situação embaraçosa. Quais seriam as consequências? Eu não gostava de Ellie. Achava-a mesmo muito pouco simpática.

– Mas como é que você pôde confundi-las?

– Estava escuro como breu. Ela não disse uma palavra, a não ser para me recomendar que ficasse de bico calado. Ambas eram mulheres altas e robustas. Eu andava desconfiado de que Frau Becker estava de olho em mim. Nem por sombras me ocorrera que Ellie me desse confiança, pois estava sempre pensando no marido. Acendi um cigarro e refleti sobre a situação; quanto mais refletia, menos ela me agradava. Pareceu-me que a melhor coisa a fazer era sumir.

Inúmeras vezes eu amaldiçoara Kosti por ter sono tão pesado.

Quando trabalhávamos na mina, eu tinha que sacudi-lo com toda a força para fazê-lo levantar-se a tempo para o serviço. Mas agora me dei por feliz! Acendi a lamparina, vesti-me, meti minhas coisas no saco – não era muito, de modo que não me levou mais que um minuto – e enfiei os braços nas correias. Atravessei o paiol, só de meias, não calçando os sapatos a não ser quando cheguei embaixo da escada. Soprei então a lamparina. Noite escura, sem lua, mas eu sabia como ganhar a estrada; dali tomei a direção da aldeia.

Caminhei a passos rápidos, pois queria atravessá-la enquanto todos estivessem dormindo. Distava apenas doze milhas de Zwingenberg, e lá cheguei justamente quando a cidade começava a despertar. Nunca me esquecerei daquela caminhada. Silêncio absoluto, a não ser pelo som dos meus passos na estrada, e de vez em quando o canto de um galo numa fazenda. E então, aquela luz acinzentada, quando já não é mais noite e ainda não está claro; os primeiros sintomas da madrugada, o nascer do sol, os pássaros começando a cantar; e aquela luxuriante paisagem verde, prados, bosques, e nos campos o centeio de um ouro-prateado, à fria luz do novo dia...

Tomei uma xícara de café com pão em Zwingenberg; fui depois ao correio e telegrafei para o American Express, pedindo que mandassem minhas roupas e meus livros para Bonn.

– Por que Bonn? – interrompi.

– Eu simpatizara com a cidade quando ali paramos, na nossa descida pelo Reno. Gostei do reflexo da luz sobre os telhados e o rio, das ruas antigas e estreitas, das vilas, e jardins, e avenidas de castanheiros, e dos edifícios rococós da universidade. Ocorreu-me, na ocasião, que não seria mau lugar para a gente ali passar uns tempos. Mas achei preferível tornar-me mais apresentável antes de surgir por lá; eu parecia um vagabundo e, se fosse procurar lugar numa pensão, não inspiraria muita confiança. Tomei, portanto, o trem para Frankfurt e ali comprei uma maleta e algumas roupas. Fiquei um ano em Bonn.

– E tirou algum proveito da sua experiência, na mina, digo, e na fazenda?

– Tirei – respondeu Larry inclinando a cabeça e sorrindo.

Mas não me disse qual fora, e naquela ocasião eu já o conhecia bastante para saber que, quando queria contar uma coisa, contava-a, mas, quando não estava disposto a isso aparava as perguntas com calmos gracejos que tornavam inútil a insistência. Preciso, no entanto, lembrar ao leitor que Larry me narrou tudo isto dez anos mais tarde. Até então, até estar de novo em contato com ele, eu não tinha a menor ideia do seu paradeiro ou do que andara fazendo. Era mesmo possível que tivesse morrido. A não ser por minha amizade com Elliott, que me punha a par da vida de Isabel, e me fazia, portanto, lembrar de Larry, provavelmente eu teria me esquecido da sua existência.


3

Isabel casou-se com Gray Maturin em princípios de junho do ano seguinte àquele em que desmanchou o seu noivado com Larry. Embora Elliott achasse detestável sair de Paris quando a estação estava no auge, tendo portanto que perder inúmeras festas elegantíssimas, seu instinto de família era muito forte para permitir-lhe que deixasse de cumprir aquilo que considerava um dever social. Os irmãos de Isabel não podiam abandonar seus postos, em lugares tão remotos, de modo que ele se viu obrigado a fazer a penosa viagem a Chicago, para levar a noiva ao altar. Lembrando-se de que os aristocratas franceses tinham ido para a guilhotina nos seus trajes mais esplendorosos, foi especialmente a Londres para comprar um novo fraque, um colete cinza, transpassado, e um chapéu de seda. Quando voltou para Paris, convidou-me para ir inspecionar essas elegâncias. Estava um tanto preocupado, pois o alfinete de pérola cinza que ele geralmente usava não iria fazer vista contra a gravata cinzento-clara, que achava apropriada para a festiva solenidade. Lembrei-lhe o seu alfinete de esmeralda e brilhante.

– Se eu fosse um convidado... está certo – disse ele.

– Mas, na posição que vou ocupar, sinto que a pérola é indicada.

Estava muito satisfeito com o casamento, tão de acordo com suas ideias convencionais, e se referia a ele com a untuosidade de uma duquesa-mãe que desse opinião sobre as vantagens de uma união entre um rebento dos La Rochefoucauld e uma filha dos Montmorency. Sem medir despesas e como sinal evidente de sua aprovação, ia levando como presente de casamento um belo retrato, por Nattier, de uma princesa real da França.

Parece que Henry Maturin comprara para o jovem par uma casa em Astor Street, para que eles ficassem perto de mrs. Bradley e não muito longe do seu palácio em Lake Shore Drive. Por uma feliz coincidência, em que suspeitei da cumplicidade de Elliott, Gregory Brabazon se achava em Chicago na ocasião da compra e a decoração da casa lhe foi confiada. Ao voltar para a Europa, tendo desistido por completo da estação em Paris e indo diretamente para Londres, Elliott trouxe várias fotografias. Brabazon se lançara a todo pano. Nas salas de visitas e de jantar ele se limitara exclusivamente ao estilo George ii, e com amplo êxito. Quanto à biblioteca, aposento reservado a Gray, ele se inspirara numa sala do Palácio Amalienburg, de Munique; e que, exceto pelo inconveniente de ali não haver lugar para livros, ficara perfeita. A não ser pelas camas gêmeas, Luís xv em visita a madame de Pompadour se teria sentido perfeitamente à vontade no quarto que Brabazon decorara para o jovem casal; mas o banheiro de Isabel o teria deixado embasbacado: todo de espelhos – paredes, teto e banheira –, e nas paredes peixes prateados, em profusão, brincavam no meio de douradas plantas aquáticas.

– É, naturalmente, uma casa pequena – disse Elliott. – Mas Henry Maturin me contou que a decoração lhe custou nada menos que cem mil dólares. Uma fortuna para muita gente.

A cerimônia foi feita com a maior pompa que a Igreja Episcopal permitia.

– Em nada comparável a um casamento em Notre-Dame – disse-me Elliott em tom benevolente. – Mas, para um casamento protestante, não deixou de ser correto.

A imprensa se mantivera à altura; com ar despreocupado Elliott me atirou os recortes. Mostrou-me também fotografias de Isabel, pesadona, mas bonita no seu vestido de noiva; e Gray, maciço, mas belo rapaz, não parecendo muito à vontade nos trajes próprios para a ocasião. Havia um grupo dos noivos com as damas de honra; outro com mrs. Bradley num suntuoso vestido e Elliott segurando o seu chapéu de seda com uma graça que só mesmo ele sabia ter. Perguntei-lhe como ia indo mrs. Bradley.

– Emagreceu muito, e não gostei nada da sua cor, mas vai indo bem. Tudo isso, naturalmente, foi um esforço para ela, mas agora poderá descansar tranquilamente.

Um ano mais tarde Isabel teve uma filha a quem, de acordo com a moda da época, deu o nome de Joan; dali a dois anos teve outra filha, que, também para acompanhar a moda, se chamou Priscilla.

Um dos sócios de Henry Maturin morreu e os outros, sob pressão, se retiraram da firma, de modo que ele ficou sendo o único dono de um negócio que sempre administrara despoticamente. Viu então realizada a maior ambição de sua vida, que era admitir Gray como sócio. Nunca a firma estivera tão florescente.

– Estão ganhando dinheiro a rodo, caro amigo – contou-me Elliott. – Imagine você, com vinte e cinco anos de idade Gray está ganhando cinquenta mil dólares por ano, e isso é apenas o começo. Os recursos da América são inesgotáveis. Não se trata de falsa prosperidade, é apenas o desenvolvimento natural de uma grande nação.

Seu peito se encheu de exagerado patriotismo.

– Henry Maturin não viverá eternamente; ele tem pressão muito alta, você sabe. Quando chegar aos quarenta anos, provavelmente Gray terá uma fortuna de vinte milhões de dólares. Principesco, caro amigo, principesco.

Elliott mantinha regular correspondência com a irmã; de vez em quando, à medida que os anos iam passando, me contava as notícias que mrs. Bradley lhe dava. Gray e Isabel eram muito felizes, as crianças uns amores. Viviam num estilo que com prazer Elliott reconhecia ser o apropriado; recebiam muito e saíam muito. Foi com visível satisfação que ele me contou que Isabel e Gray não tinham jantado sós num espaço de três meses. A corrente de divertimentos foi interrompida pela morte de mrs. Maturin, aquela senhora apagada e de boa família, com quem Henry Maturin se casara pelas suas ótimas relações, quando estava procurando vencer na cidade aonde seu pai chegara como matuto. Em respeito à sua memória, durante um ano o jovem par nunca recebeu, para jantar, mais que seis pessoas de uma vez.

– Sempre achei que oito era o número ideal – disse Elliott, resolvido a encarar o lado bom das coisas. – É suficientemente íntimo para permitir uma conversa geral, e bastante grande para dar impressão de uma reunião.

Gray era generosíssimo com a esposa. No nascimento da primeira filha deu-lhe um brilhante quadrado e no da segunda um casaco de vison. Andava muito ocupado para poder sair de Chicago, mas, quando podia sair de férias, iam para a importante mansão de Henry Maturin, em Marvin. Henry não podia negar coisa alguma ao filho adorado, e em certo Natal presenteou-o com uma plantação na Carolina do Sul, para que ali pudesse caçar patos, na estação propícia.

– Claro que nossos reis do comércio correspondem aos grandes patronos das artes da Renascença italiana, que fizeram fortuna no comércio – disse-me Elliott. – Os Medici, por exemplo. Houve dois reis franceses que não se julgaram diminuídos por casar com filhas dessa ilustre família, e vejo o dia em que as cabeças coroadas da Europa procurarão a mão das nossas princesas dos dólares. Que foi mesmo que Shelley disse? A grande idade recomeça agora, voltam os anos de ouro.

Durante tantos anos zelara Henry Maturin pelos interesses de mrs. Bradley e Elliott, que estes tinham imensa confiança no seu critério. Maturin nunca fora a favor de especulações e empregara o dinheiro deles em títulos seguros; mas, com a valorização, os dois irmãos viram suas fortunas, relativamente modestas, aumentadas de uma maneira que os deixou surpresos e encantados. Elliott contou-me que, sem que ele tivesse mexido uma palha, de 1918 a 1926 sua fortuna duplicara. Estava agora com sessenta e cinco anos, tinha cabelos grisalhos, rosto enrugado e olhos empapuçados, mas mesmo assim suportava com galhardia o peso dos anos; era magro e mantinha-se mais teso do que nunca; sempre fora moderado e cuidara do físico. Enquanto pudesse fazer seus ternos no melhor alfaiate de Londres, entregar-se aos cuidados do seu barbeiro particular, e de uma massagista que vinha todas as manhãs ajudá-lo a manter em perfeitas condições o corpo esbelto, Elliott não tinha a menor intenção de submeter-se aos estragos do tempo. Havia muito se esquecera que houvera época em que se rebaixara a ponto de negociar; e por meias palavras, pois não sendo idiota não ia dizer uma flagrante mentira, dava a entender que na mocidade fizera parte do corpo diplomático. Confesso que, se algum dia eu houvesse de pintar o retrato de um embaixador, teria sem hesitação escolhido Elliott para modelo. Mas as coisas estavam mudando. As grandes damas que o tinham auxiliado na sua carreira estavam ou mortas ou em idade avançada. As nobres inglesas, tendo perdido os maridos, viam-se obrigadas a entregar suas mansões às noras, retirando-se para vilas em Cheltenham ou modestas casas em Regent Park. Stafford House foi transformada em museu, Curzon House tornou-se o centro de uma organização, Devonshire House foi posta à venda. O iate onde Elliott costumava ficar quando ia a Cowes mudara de dono. As pessoas elegantes que atualmente ocupavam o centro do palco pouco se importavam com o homem idoso que Elliott era agora. Achavam-no cansativo e ridículo. Ainda compareciam de boa vontade aos seus complicados almoços, no Claridge, mas Elliott era bastante perspicaz para perceber que vinham mais por causa uns dos outros do que para vê-lo. Agora já ele não podia escolher à vontade entre os convites que antigamente lhe abarrotavam a escrivaninha e, mais frequentemente do que desejaria que se soubesse, sofria a humilhação de jantar sozinho na intimidade do seu apartamento. As senhoras da alta roda, na Inglaterra, quando devido a algum escândalo lhes veem fechadas as portas da sociedade, começam a interessar-se por arte e artistas, cercando-se de pintores, escritores, músicos. Elliott era por demais orgulhoso para sujeitar-se a tal humilhação.

– Os impostos de transmissão causa mortis e os aproveitadores da guerra estragaram a sociedade inglesa – disse-me ele. – Hoje ninguém mais faz questão de escolher suas relações. Londres ainda tem seus alfaiates, sapateiros e chapeleiros, e espero que durem enquanto eu durar; mas, fora disso, não vale mais nada. Meu caro amigo, imagine que a mesa dos St. Erth é agora servida por mulheres.

Elliott fez esses comentários quando nos afastávamos do Carlton House Terrace, após um almoço onde se dera um desagradável incidente. O nobre que nos convidara possuía uma boa coleção de quadros, e um americano chamado Paul Barton, que lá ia pela primeira vez, manifestou desejo de conhecê-la.

– O senhor tem um Ticiano, não tem?

– Tínhamos. Está agora na América. Um judeu qualquer nos ofereceu por ele um bom dinheiro e, como estávamos apertados na ocasião, o velho vendeu-o.

Notei que Elliott, todo eriçado, atirou um olhar venenoso ao jovial marquês, e adivinhei que fora ele quem comprara o quadro. Ficou furioso por se ver assim descrito, ele, um virginiano e descendente de um dos signatários da Declaração da Independência. Jamais sofrera igual afronta. E o pior era que detestava Paul Barton. O rapaz aparecera em Londres logo depois da guerra; tinha vinte e três anos, era louro, bonito e simpático, dançava admiravelmente e tinha ampla fortuna. Viera recomendado a Elliott e este, com sua bondade natural, o apresentara a vários amigos. Não satisfeito com isso, dera-lhe alguns valiosos conselhos sobre conduta. Baseando-se em sua própria experiência, deu-lhe a entender que, com pequenas gentilezas a senhoras idosas, e dando ouvidos a homens de destaque, por mais tediosos que fossem, não seria difícil a um estranho introduzir-se na sociedade.

Mas o mundo que aguardava Paul Barton era muito diferente daquele onde, uma geração antes, Elliott Templeton penetrara à custa de incrível perseverança. Era um mundo que só pensava em divertir-se. O gênio alegre de Paul Barton, seu físico agradável e maneiras insinuantes fizeram por ele em algumas semanas o que Elliott só conseguira com anos de persistência e força de vontade. Logo já ele não precisou do auxílio de Elliott e pouco fez para esconder esse fato. Tratava-o amavelmente, quando se encontravam, mas de uma maneira distante que ofendia profundamente o homem idoso. Elliott não escolhia seus convidados por simpatia, e sim visando ao sucesso da reunião; como Paul Barton era muito popular, continuou a convidá-lo a um ou outro dos seus almoços semanais, mas o afortunado rapazinho em geral estava comprometido e por duas vezes deixou Elliott na mão à última hora. Elliott fizera isto muitas vezes para não desconfiar que o outro recebera convite mais tentador.

– Você não é obrigado a acreditar, mas juro que agora, quando nos encontramos, é ele quem toma ares protetores para comigo – disse-me Elliott, fulo de raiva. – comigo. Ticiano. Ticiano – gaguejou ele. – Garanto que se visse um Ticiano não saberia reconhecê-lo.

Eu nunca vira Elliott tão encolerizado e calculei que talvez fosse por acreditar que Paul Barton perguntara sobre o quadro por maldade, tendo chegado a saber que fora comprado por Elliott, e pretendendo divertir-se à custa dele, quando contasse o caso e a resposta do marquês.

– Ele não passa de um esnobezinho indecente, e se há coisa que detesto no mundo é o esnobismo. Se não fosse por mim, não teria dado um passo. Talvez você não acredite, mas o pai dele fabricava móveis de escritório. Móveis de escritório! – Elliott conseguiu pôr um causticante desprezo nessas três palavras. – E quando digo que ele nem existe na América, que sua origem não podia ser mais humilde, ninguém parece dar a isso a mínima importância. Ouça o que lhe digo, meu caro; a sociedade inglesa exalou o seu último suspiro.

E nem Elliott achava a França em melhores condições. Ali, as nobres damas do seu tempo que ainda viviam tinham-se dedicado ao bridge (jogo que ele abominava), a obras de caridade e à educação dos netos. As imponentes mansões da aristocracia eram agora habitadas por industriais, argentinos, chilenos e senhoras americanas separadas dos maridos, que recebiam muito e com grande pompa; mas nas suas festas Elliott tinha a surpresa de encontrar políticos que falavam o francês com pronúncia vulgar, jornalistas que não sabiam comportar-se à mesa, e até mesmo atores. Rebentos de famílias reais não se envergonhavam de casar com filhas de negociantes. Inegavelmente Paris era uma cidade alegre, mas com que falsa alegria! Na sua insaciável sede de gozo, os moços não achavam nada mais divertido do que correr de um abafado cabaré a outro, tomando champanhe a cem francos a garrafa, e dançando, até cinco da madrugada, lado a lado com a ralé. A fumaça, o calor, o barulho davam dor de cabeça a Elliott. Não era esta a Paris que trinta anos antes ele aceitara como sua morada espiritual. Não era esta a Paris para onde os bons americanos iam quando morriam.


4

Mas Elliott tinha faro. Uma voz íntima sussurrou-lhe que a Riviera ia tornar-se novamente o ponto de reunião dos nobres e dos elegantes. Conhecia bem o litoral; várias vezes, ao voltar de Roma onde fora cumprir seus deveres na corte pontifícia, passara alguns dias em Monte Carlo, ou em Cannes, na vila de um ou outro dos seus amigos. Mas isso fora no inverno, e ultimamente os murmúrios indicavam que estava sendo procurada para lugar de veraneio. Os grandes hotéis conservavam-se abertos; os nomes dos veranistas apareceram nas colunas sociais do Herald de Paris e Elliott leu os conhecidos nomes com ar de aprovação.

– Estou cansado do mundo – disse ele. – Cheguei a uma época da vida em que meu desejo é apreciar os encantos da natureza.

Talvez a observação pareça obscura. Mas não o é. Elliott sempre considerara a natureza um empecilho à vida social, e não tinha muita paciência com as pessoas que se davam ao trabalho de ir ver um lago, ou uma montanha, quando tinham diante dos olhos uma cômoda da Regência ou um quadro de Watteau. Naquela ocasião ele podia dispor de uma grande quantia. Atiçado por Gray e exasperado por ver seus amigos fazerem, na Bolsa, fortunas da noite para o dia, Henry Maturin finalmente se deixara arrastar pela corrente, e, abandonando pouco a pouco seus métodos conservadores, não vira motivo para não se aproveitar também da situação. Escreveu a Elliott, dizendo que como sempre continuava avesso a jogatinas, mas que aquilo não era especulação e sim uma prova da confiança que tinha nos inesgotáveis recursos do país. Seu otimismo tinha por base o bom senso. Ele não via obstáculo ao progresso da América. Terminava dizendo que comprara para Louisa Bradley, depositando margem, um certo número de títulos seguros, e que tinha o prazer de participar a Elliott que ela estava com um lucro de vinte mil dólares. Finalmente, se Elliott quisesse ganhar dinheiro e lhe permitisse seguir o seu critério, tinha ele quase certeza de que não o decepcionaria. Inclinado a usar as mais surradas citações, Elliott disse que tinha forças para resistir a tudo, menos à tentação; como consequência disso, quando lhe traziam o Herald, ao café da manhã, em vez de olhar a coluna social, hábito de tantos anos, concentrava toda a sua atenção nas cotações da Bolsa. Tão bom resultado tiveram as transações de Henry Maturin em seu favor que Elliott se via agora com a bela quantia de cinquenta mil dólares, que nada fizera para ganhar.

Decidiu liquidar, e com o lucro comprar uma casa na Riviera. Como retiro do mundo, escolheu Antibes, que ficava em posição estratégica entre Cannes e Monte Carlo, sendo acessível a essas duas cidades; mas é impossível dizer-se se foi a mão da Providência ou o seu instinto seguro que determinou a escolha de um lugar que logo se tornaria o centro da moda. Morar numa vila com jardim era de uma vulgaridade suburbana que repugnava ao seu exigente paladar; assim sendo, Elliott comprou duas casas dando para o mar, na parte velha da cidade, demoliu-as e construiu uma só, ali instalando aquecimento central, banheiros e todas as comodidades sanitárias que o exemplo americano impusera a um recalcitrante continente. A grande moda naquela época era decapé e, portanto, ele mobiliou a casa com móveis em estilo provençal, onde foi antes, devidamente, feito o serviço de decapé; além disso, cedeu discretamente ao modernismo escolhendo tecidos da atualidade. Tinha ainda má vontade em aceitar pintores como Picasso e Braque – “horrores, caro amigo, horrores!” –, de quem entusiastas mal orientados faziam muita propaganda, mas finalmente se achara no direito de estender sua proteção aos impressionistas, e nas paredes de sua casa se viam quadros bem bonitos. Lembro-me de um Monet, de algumas pessoas remando num rio; um Pissarro, de um trecho do cais e uma ponte do Sena; de uma paisagem do Taiti, de Gauguin; e de um encantador Renoir, uma moça de perfil com longos cabelos louros soltos nas costas. Depois de pronta, a casa ficou alegre, fresca, original; e simples, também, com aquela simplicidade que a gente sabe que só pode ser adquirida à custa de muito dinheiro.

Começou então o período de maior esplendor da vida de Elliott. Ele trouxe de Paris o seu excelente cozinheiro, e logo foi devidamente reconhecido que ele tinha a melhor mesa da Riviera. Vestiu de branco o mordomo e o lacaio, com galões dourados nos ombros. Recebia com uma magnificência que jamais ultrapassou os limites do bom gosto. O litoral do Mediterrâneo estava repleto de nobres de todas as partes da Europa, alguns atraídos pelo clima; outros em exílio; outros porque um passado escandaloso ou casamento desigual tornava preferível a existência no estrangeiro. Havia Rumanoffs da Rússia, Habsburgos da Áustria, Bourbons da Espanha, das duas Sicílias e Parma; havia príncipes da Casa de Windsor e príncipes da Casa de Bragança; Altezas da Suécia e Altezas da Grécia; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Havia príncipes e princesas não de sangue real, duques e duquesas, marqueses e marquesas da Áustria, Itália, Espanha, Rússia e Bélgica; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. No inverno, o rei da Suécia e o rei da Dinamarca vieram passar uns tempos no litoral; de vez em quando Afonso da Espanha aparecia para uma rápida visita; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Nunca me cansei de admirar, quando com graça cortesã ele se curvava diante daqueles augustos personagens, da maneira com que conseguia manter a atitude independente de cidadão de um país onde dizem que todos os homens são iguais.

Depois de ter viajado durante alguns anos, eu comprara uma casa em Cap Ferrat e, portanto, via Elliott frequentemente. Tão alto subira eu no seu conceito que muitas vezes ele me convidava às suas mais pomposas reuniões.

– É um favor que me faz, caro amigo – dizia ele. – Garanto-lhe que, tanto quanto você, sei que os nobres estragam uma reunião. Mas as outras pessoas gostam de encontrá-los e acho que a gente tem obrigação de dar um pouco de atenção aos pobres coitados. Se bem que só Deus sabe que não são merecedores! São as pessoas mais ingratas deste mundo; usam e abusam da gente e, quando acham que não temos mais serventia, empurram-nos para um lado como um trapo; aceitam inúmeros favores, mas nenhum deles se daria ao trabalho de atravessar a rua para em troca nos fazer uma gentileza.

Elliott se esforçava por ficar de bem com as autoridades locais; o prefeito do distrito, assim como o bispo da diocese e o vigário-geral muitas vezes honravam a sua mesa. Antes de se ordenar, o bispo fora oficial de cavalaria e na guerra comandara um regimento. Homem atarracado, rubicundo, que fazia questão de usar a linguagem rude da caserna; seu austero e cadavérico vigário-geral estava sempre em palpos de aranha, tal o medo de que ele dissesse alguma coisa escabrosa. Ouvia com um sorriso súplice, quando seu superior contava alguma das suas histórias prediletas. Mas o bispo dirigia a diocese com grande competência, e sua eloquência no púlpito só podia ser comparada ao espírito dos seus ditos à mesa. Ele apreciava Elliott pela generosidade de suas contribuições para a Igreja, e gostava dele pela sua amabilidade e bons almoços que proporcionava; os dois tornaram-se grandes amigos. Elliott podia congratular-se por estar assim cuidando ao mesmo tempo deste mundo e do outro; e, se me é permitida uma observação, ia conseguindo um arranjo muito satisfatório entre Deus e Mamon.

Elliott sabia apreciar o que era seu, e estava aflito para mostrar a casa nova à irmã; sempre notara nela certa reserva, e queria que mrs. Bradley visse em que estilo vivia ele agora e que roda frequentava. Isso poria ponto final às suas hesitações; ela teria que concordar que ele vencera. Escreveu-lhe, portanto, convidando-a para vir com Gray e Isabel, não para a casa dele, pois não tinha acomodações, mas para se hospedarem, como seus convidados, no vizinho Hôtel du Capo. Mrs. Bradley replicou que seus dias de viagem estavam findos, pois sua saúde não era boa e ela se sentia melhor em casa; além do mais, Gray não poderia ausentar-se de Chicago, pois os negócios estavam florescendo e ele ganhando muito dinheiro, tendo que ficar ali à mão. Elliott era afeiçoado à irmã e a carta o alarmou. Escreveu a Isabel sobre isso. Ela respondeu por cabograma que, embora sua mãe não andasse nada boa, tendo que ficar de cama um dia por semana, nem por isso estava em perigo de vida, podendo mesmo, com cuidado, durar ainda muito tempo; mas Gray precisava de descanso, e, com o pai a cuidar dos negócios, não havia motivo para que ele não tirasse umas férias. Assim sendo, não neste verão, mas no próximo, ela e Gray lhe aceitariam o convite.

No dia 23 de outubro de 1929 deu-se o pânico na Bolsa de Nova York.


5

Estava eu em Londres, nessa época, e a princípio ninguém na Inglaterra compreendeu a gravidade da situação nem como seriam funestas as consequências. Quanto a mim, embora pesaroso pelo prejuízo de enorme quantia, perdi na realidade lucros realizados no papel; assim sendo, quando a coisa serenou vi que, em dinheiro, eu não estava muito mais pobre do que antes. Sabia que Elliott andara jogando pesadamente e temi que tivesse sofrido enorme perda, mas só o vi no Natal quando fomos ambos para a Riviera. Ele me contou então que Henry Maturin morrera e Gray estava arruinado.

Pouco entendo de negócios e é possível que minha relação dos acontecimentos, como me foram contados por Elliott, pareça confusa. Pelo que pude compreender, a catástrofe que se abatera sobre a firma fora causada em parte pela teimosia de Henry Maturin e em parte pela precipitação de Gray. A princípio Henry Maturin não quisera acreditar que a baixa fosse séria, convencido de que se tratava de uma conspiração por parte dos corretores de Nova York, para passarem a perna nos seus colegas provincianos; assim sendo, ficara firme e começara a desembolsar dinheiro para sustentar o mercado. Vociferava contra os corretores de Chicago, que se deixavam atemorizar por aqueles canalhas de Nova York. Sempre se vangloriara de que seus clientes modestos, viúvas com renda certa, oficiais aposentados etc., jamais tinham perdido por lhe seguir os conselhos; e agora, em vez de permitir que cada um arcasse com seus prejuízos, ele completava as margens com sua fortuna particular. Dizia que estava disposto a aceitar a ruína, que poderia fazer depois nova fortuna, mas que, se permitisse que os coitados que haviam confiado nele perdessem tudo o que tinham, nunca mais poderia andar de cabeça erguida. Pensava que estava sendo magnânimo, mas na realidade estava apenas sendo vaidoso. Sua imensa fortuna evaporou-se e certa noite ele teve um ataque de coração. Estava com mais de sessenta anos, e sempre trabalhara com afinco, jogara muito, comera demais e bebera em excesso; após algumas horas de agonia, morreu de trombose coronária. Gray ficou só para enfrentar a situação. Também ele especulara grandemente pelo seu lado, sem o conhecimento do pai, e estava em grandes dificuldades. Seus esforços para salvar-se falharam. Os bancos não lhe faziam empréstimos; homens mais velhos, na Bolsa, disseram-lhe que a única coisa a fazer era entregar os pontos. Não estou muito certo quanto ao resto da história. Não conseguindo saldar seus compromissos ele foi, creio eu, declarado falido; já hipotecara sua casa e sentiu alívio em entregá-la aos credores; a casa de seu pai, em Lake Shore Drive, e a de Marvin foram vendidas pelo que puderam alcançar; Isabel vendeu suas joias. Tudo que lhe restou foi a plantação na Carolina do Sul, que estava em nome de Isabel, mas para a qual não foi possível encontrar comprador. Gray ficou limpo.

– E quanto a você, Elliott? – perguntei.

– Oh! não me queixo – respondeu ele despreocupadamente. – Deus dá o frio conforme a coberta.

Não insisti, pois nada tinha com sua situação financeira, mas, fossem quais fossem os prejuízos, achei que ele devia ter sofrido como todos nós.

A princípio a depressão não atingiu em cheio a Riviera. Ouvi falar de duas ou três pessoas que tinham tido grandes prejuízos, muitas vilas ficaram fechadas durante o inverno e outras foram postas à venda. Os hotéis estavam vazios e a gerência do Cassino de Monte Cado queixou-se da pobreza do movimento. Mas foi somente dali a dois anos que se compreendeu a extensão do desastre. Um corretor de imóveis contou-me que, na faixa de litoral que ia de Toulon à fronteira italiana, havia quarenta e oito mil propriedades, grandes e pequenas, à venda. As ações do Cassino caíram repentinamente. Os grandes hotéis baixaram seus preços, numa vã tentativa de atrair. Os únicos estrangeiros que se viam eram aqueles que tinham sido sempre tão pobres que não podiam ficar mais pobres, e que não gastavam porque não tinham o que gastar. Os lojistas desesperavam-se. Mas Elliott não somente não despediu nenhum dos seus empregados, como também não lhes diminuiu o ordenado, como muitos haviam feito; continuou a oferecer, aos nobres e aos de sangue real, lautos jantares regados a bons vinhos. Comprou um vasto carro novo, importado da América e sobre o qual teve que pagar pesados direitos alfandegários. Contribuiu, generosamente, para as obras de caridade que o bispo organizara para distribuir comida grátis aos desempregados. Em resumo, vivia como se não houvesse crise e metade do mundo não estivesse a sofrer as consequências.

Descobri por acaso a razão disso. Elliott já não ia à Inglaterra, a não ser por quinze dias ao ano, para comprar suas roupas, mas conservava o hábito de transferir sua residência para o apartamento de Paris durante três meses, no outono, e em maio e junho, época em que seus amigos abandonavam a Riviera. Era aqui que gostava de passar o verão, em parte por causa dos banhos, mas principalmente, pelo menos assim o julgo eu, porque os dias quentes lhe permitiam satisfazer o gosto que tinha pelas vestimentas alegres, que sua dignidade até então não lhe permitira usar. Ele apareceria com calças de cores surpreendentes, vermelhas, azuis, verdes ou amarelas, usando camisas de tons contrastantes – lilás, violeta, castanho-escuro – ou mesmo axadrezadas; e, com o modesto sorriso da atriz a quem dizem que representou um novo papel divinamente, aceitaria os parabéns que seus trajes estavam a exigir.

Aconteceu que passei um dia em Paris, na primavera, antes de voltar para Cap Ferrat, e convidei Elliott para almoçar comigo. Encontramo-nos no bar do Ritz, não mais repleto de estudantes que vinham da América para se divertir, mas deserto como um teatro após a estreia de uma peça que fracassou. Tomamos um coquetel, hábito transatlântico com o qual Elliott finalmente se conformara, e encomendamos o almoço. Quando acabamos ele propôs um giro pelos antiquários; respondi que, embora não tivesse dinheiro para gastar, teria muito prazer em acompanhá-lo. Atravessamos a Place Vendôme e ele me perguntou se eu me importava de dar com ele um pulinho até Charvet; tinha encomendado umas roupas e desejava saber se estavam prontas. Pareceu-me que encomendara umas camisas e umas cuecas e nelas mandara bordar suas iniciais. As camisas ainda não haviam chegado, mas as cuecas estavam ali, e o caixeiro perguntou-lhe se gostaria de vê-las.

– Gostaria, sim – respondeu Elliott. Depois que o homem se afastou ele virou-se para mim e acrecentou: – Mandei fazê-las, sob encomenda, de acordo com um modelo que eu mesmo imaginei.

Vieram as cuecas e, a não ser pelo fato de serem de seda, pareceram-me idênticas às que eu costumava comprar em Macy; mas o que me chamou atenção foi uma coroa de conde sobre as iniciais E. T. Não fiz, porém, o mínimo comentário.

– Ótimas, ótimas – declarou Elliott. – Pois bem, quando as camisas estiverem prontas, faça o favor de me mandar tudo junto.

Saímos da loja e, enquanto caminhávamos, Elliott virou-se para mim, sorrindo:

– Você reparou na coroa? Para ser franco, tinha-me esquecido disso quando o convidei para vir comigo até Charvet. Não sei se já tive ocasião de lhe contar que Sua Santidade houve por bem ressuscitar em meu favor o nosso velho título de família.

– Seu o quê? – exclamei, o espanto fazendo-me esquecer a polidez.

Elliott ergueu as sobrancelhas em ar desaprovador.

– Você não sabia? Descendo, pelo lado materno, do conde de Lauria que veio para a Inglaterra na comitiva de Filipe ii, casando-se com uma dama de honra da rainha Maria.

– Nossa velha amiga Maria, a Sanguinária?

– Parece-me que é assim que a chamam os hereges – replicou Elliott secamente. – Creio que nunca lhe contei que passei o mês de setembro de 29 em Roma. Achei enfadonho ter que ir, pois Roma está vazia nessa ocasião; mas foi para mim uma sorte ter o sentimento do dever prevalecido sobre o meu desejo de divertir-me. Meus amigos do Vaticano avisaram-me que a crise era inevitável e me aconselharam vivamente a vender meus títulos americanos.

A Igreja Católica conta com a sabedoria de vinte séculos, e não hesitei por um momento sequer. Mandei a Henry Maturin um cabograma, dando-lhe instruções para vender tudo e comprar ouro, e um a Louisa, aconselhando-a a fazer o mesmo. Henry mandou-me outro, perguntando se eu enlouquecera e declarando que nada faria até receber confirmação. Foi o que fiz e de maneira peremptória, dizendo-lhe que seguisse minhas instruções e me avisasse assim que as tivesse cumprido. A pobre Louisa não me deu atenção e sofreu as consequências.

– Quer dizer que, quando houve o pânico, você já se tinha defendido direitinho?

– Expressão de gíria, caro amigo, para a qual não vejo necessidade, mas que define bem a situação. Não tive prejuízo algum; ao contrário, pode-se mesmo dizer que ganhei uma bolada. Tempos depois, por uma fração do preço primitivo, pude comprar novamente os meus títulos; e, já que devia isso ao que considero direta intervenção da Providência, achei mais do que justo que, em troca, fizesse também alguma coisa para a Providência.

– E de que maneira você se desempenhou disso?

– Pois bem, você não ignora que o Duce mandou sanear os Pântanos Pontinos, e cheguei a saber que Sua Santidade estava gravemente preocupado com a falta de lugares de oração para os colonos. E, portanto, para encurtar uma longa história, construí uma igrejinha românica, reprodução exata de uma que visitei na Provença, perfeita em todos os detalhes e que, embora seja eu quem o diga, é uma verdadeira joia. Foi consagrada a são Martinho, porque tive a sorte de encontrar um vitral antigo representando são Martinho no ato de rasgar sua capa em duas para dar a metade a um mendigo nu; e, como o simbolismo me pareceu tão adequado, comprei-o e coloquei-o sobre o altar-mor.

Não interrompi Elliott para lhe perguntar que relação via ele entre a célebre ação do santo e a desistência dele, Elliott, de parte do lucro que tivera por vender na hora certa e que, como a comissão de um agente, ele pagava a um poder superior. Mas, para uma pessoa prosaica como eu, muitas vezes o simbolismo é obscuro. Elliott continuou:

– Quando tive a honra de mostrar as fotografias ao Santo Padre, ele condescendeu em dizer-me que de relance podia ver que eu era um homem de gosto impecável, acrescentando ser para ele um prazer encontrar nessa era de perdição uma pessoa que combinava fervor religioso com raros dons artísticos. Uma experiência memorável, caro amigo, uma experiência memorável. Mas ninguém ficou mais admirado do que eu quando, pouco depois, vim a saber que ele houvera por bem conferir-me um título. Como cidadão americano acho mais modesto não usá-lo, a não ser, naturalmente, no Vaticano, e proibi meu criado Joseph de me chamar de monsieur le Comte. Espero que você respeite o meu segredo; não quero que a notícia se espalhe. Mas também não desejo que o Santo Padre julgue que não aprecio a honra que me conferiu, e é puramente em consideração a ele que mandei bordar a coroa na minha roupa de baixo. Não me importo de confessar-lhe, caro amigo, que sinto um modesto orgulho em esconder minha classe sob o simples título de cavalheiro norte-americano.

Separamo-nos, tendo Elliott me dito que viria à Riviera em fins de junho. Mas não veio. Acabara de providenciar a transferência de sua criadagem, de Paris para a Riviera, pretendendo ele viajar tranquilamente de carro, a fim de encontrar tudo em ordem quando chegasse, quando recebeu um cabograma de Isabel avisando que o estado de saúde de sua mãe se agravara. Além de ser afeiçoado à irmã, Elliott tinha, como já disse, um arraigado instinto de família. Tomou em Cherburgo o primeiro vapor, e de Nova York foi para Chicago. Escreveu-me contando que mrs. Bradley estava muito doente e que ele levara um choque ao ver como emagrecera. Talvez ela durasse algumas semanas, ou mesmo meses; em todo caso, cabia-lhe o triste dever de ficar ao lado dela até o fim. Disse que achara o intenso calor mais suportável do que imaginara, mas que a falta de convivência com pessoas com quem pudesse ter afinidade só não lhe pesava pelo fato de não estar no momento em disposição festiva. Ficara decepcionado com a maneira pela qual seus compatriotas haviam reagido contra a depressão; esperara deles maior serenidade na desgraça. Sabendo eu que não há nada mais fácil do que suportar com fortaleza de ânimo os desastres alheios, achei que, mais rico agora do que em qualquer outra época da vida, talvez Elliott não tivesse o direito de se mostrar tão severo. Terminava a carta mandando recados para vários amigos seus, recomendando que eu não esquecesse de explicar a todos a razão pela qual sua casa permanecia fechada no verão.

Dali a um mês e pouco recebi outra carta sua, comunicando-me a morte de mrs. Bradley. Escreveu com sinceridade e emoção. Eu não o teria julgado capaz de se exprimir com tanta dignidade, sentimento e simplicidade, se há muito não tivesse percebido que apesar de seu esnobismo e incrível afetação Elliott era um homem bom, amoroso e sincero. Na carta ele me contou que os negócios de mrs. Bradley não estavam muito em ordem. Seu filho mais velho, diplomata, encarregado de negócios em Tóquio na ausência do embaixador, não pudera, naturalmente, abandonar seu posto. O segundo filho, Templeton, que estivera morando nas Filipinas quando eu conhecera os Bradley, fora, com o tempo, devidamente chamado a Washington e ocupava um posto importante no Departamento de Estado. Viera a Chicago com a esposa, ao ser notificado do estado desesperador de sua mãe, mas vira-se obrigado a voltar para a capital logo depois do enterro. Nestas circunstâncias, Elliott julgava-se na obrigação de ficar na América até que as coisas endireitassem. Mrs. Bradley dividira igualmente a fortuna entre os três filhos, mas parece que seus prejuízos na crise de 29 haviam sido pesadíssimos. Felizmente tinham encontrado comprador para a fazenda de Marvin. Na carta, Elliott dizia “a propriedade rural da cara Louisa”.

“É sempre triste quando uma família tem que dispor de sua morada ancestral”, escreveu-me ele. “Mas ultimamente tenho visto tantas vezes meus amigos ingleses forçados a isso, que acho que Isabel e meus sobrinhos devem aceitar o inevitável com a mesma coragem e resignação que eles demonstraram. Noblesse oblige.”

Tinham também tido a sorte de vender a casa de Chicago. Desde muito havia um projeto de derrubar a fila de casas da qual fazia parte a de mrs. Bradley, para ali construírem um bloco de apartamentos, mas os interessados tinham sido detidos pela teimosia da velha senhora, que queria morrer na casa onde sempre vivera. Nem bem exalara ela o último suspiro, de novo apresentaram uma proposta, que desta vez foi imediatamente aceita. Mas, mesmo assim, Isabel não ficava em boa situação financeira.

Depois do pânico da Bolsa, Gray tentara arranjar colocação, mesmo como empregado no escritório de algum corretor que houvesse sobrevivido à catástrofe, mas os negócios estavam parados. Pediu aos antigos amigos que lhe dessem qualquer serviço, por mais humilde e mal remunerado que fosse, mas nada conseguiu. Os frenéticos esforços que fizera para impedir o desastre, o peso da ansiedade, a humilhação resultaram num esgotamento nervoso e ele começou a ter tremendas dores de cabeça, que durante vinte e quatro horas o deixavam inutilizado e completamente sem forças depois que passavam. Isabel achou que não havia melhor solução do que irem com as crianças para a plantação da Carolina do Sul, até Gray se restabelecer. Nos bons tempos o arroz ali tinha dado cem mil dólares por ano, mas agora não passava de um lugar abandonado e selvagem, que só servia para os esportistas que quisessem caçar patos, e para o qual não se achava comprador. Ali tinham eles vivido desde a crise e para lá pretendiam voltar até que a situação melhorasse e Gray pudesse arranjar emprego.

“Eu não podia consentir numa coisa dessas”, escreveu-me Elliott. “Imagine, caro amigo, eles iriam viver como animais. Isabel sem uma criada, sem governanta para as crianças e com apenas duas negras como pajens. Resolvi, portanto, oferecer-lhes o meu apartamento em Paris e sugeri que ali fiquem até que as coisas mudem neste fantástico país. Fornecerei os empregados; além do mais, a ajudante do meu chefe sabe cozinhar muito bem, de modo que pretendo deixá-la com Isabel e arranjar alguém para substituí-la. Pagarei eu as contas, para que Isabel possa gastar sua pequena renda em vestidos e nos menus plaisirs da família. Isto, naturalmente, significa que terei que passar muito mais tempo na Riviera, e espero, portanto, ter o prazer de vê-lo mais amiúde, caro amigo.

Londres e Paris sendo o que atualmente são, sinto-me realmente mais em casa na Riviera. É o único lugar onde ainda encontro gente que fale a minha língua. Não digo que não vá a Paris de vez em quando, mas não me importarei absolutamente de me hospedar no Ritz. É com satisfação que lhe participo que finalmente convenci Gray e Isabel a acederem aos meus desejos, e pretendo levá-los comigo assim que os necessários preparativos estiverem terminados. A mobília e os quadros (insignificantes, meu caro, e da mais duvidosa autenticidade!) serão vendidos daqui a quinze dias. Neste meio-tempo, como achei que lhes seria penoso continuar a viver na casa onde minha querida irmã faleceu, trouxe-os para ficarem comigo no Drake. Assim que os tiver instalado em Paris, voltarei para a Riviera. Não se esqueça de transmitir minhas lembranças ao seu real vizinho.”

Quem poderia negar que Elliott, aquele ultraesnobe, era também o mais bondoso, mais delicado e generoso dos homens?


Quatro

Quatro


1

Tendo instalado os Maturin no seu apartamento da Margem Esquerda, no fim do ano Elliott voltou para a Riviera. Construíra a casa para si próprio e nela não havia lugar para uma família de quatro pessoas, de modo que, mesmo que fosse esse o seu desejo, ele não os poderia ter ali recebido. Não creio, no entanto, que o fato lhe causasse desprazer. Sabia perfeitamente que, sozinho, teria mais cotação do que se estivesse sempre na companhia de sobrinho e sobrinha; além do mais, a tarefa de organizar suas distintíssimas reuniões (assunto que tanto o preocupava) ficaria dificultada se tivesse invariavelmente que contar com a presença de dois hóspedes.

– É preferível que eles se instalem em Paris e se habituem à vida civilizada – disse-me Elliott. – Além do mais, as duas meninas já estão em idade de ir para a escola. Encontrei, mais ou menos perto do apartamento, uma que me afirmaram ser muito seleta.

Assim sendo, só vi Isabel na primavera, na ocasião em que, devido a um trabalho que pedia a minha permanência em Paris durante algumas semanas, tomei quartos num hotel perto da Place Vendôme. Era um hotel que eu frequentava não somente por ser bem situado, mas porque tinha atmosfera. Casarão antigo, à volta de um pátio; funcionava como hospedaria havia bem uns duzentos anos. Os banheiros estavam longe de ser luxuosos, os encanamentos deixavam muito a desejar; os quartos, com suas camas esmaltadas de branco, colchas brancas fora de moda e enormes armoires à glace, tinham uma aparência pobre; mas os salões eram mobiliados com belas peças antigas. O sofá e as poltronas datavam do alegre reinado de Napoleão iii e, embora eu não possa dizer que fossem confortáveis, tinham um garrido encanto. Naquela sala eu vivia no passado dos romancistas franceses. Ao olhar para o relógio Império sob a sua redoma de vidro, eu imaginava uma bela mulher de cabelos cacheados e vestido de franja a observar o ponteiro dos minutos enquanto esperava pela visita de Rastignac, aquele aristocrático aventureiro cuja carreira, em romance após romance, Balzac acompanhou desde o seu humilde começo até o esplendor final. E o dr. Bianchon – médico tão real a Balzac que no seu leito de morte este exclamou: “Somente Bianchon poderá salvar-me” – talvez tivesse entrado naquela sala, para tomar o pulso e examinar a língua de uma duquesa-mãe, que viera da província consultar um advogado sobre um complicado processo e chamara um médico devido a uma indisposição passageira. É possível que, à escrivaninha, uma dama de crinolina e cabelos repartidos ao meio tivesse escrito uma carta apaixonada ao amante infiel, ou um velho e assanhado fidalgo de casaco verde e pescocinho talvez houvesse redigido irada epístola ao seu extravagante primogênito.

No dia seguinte ao de minha chegada, telefonei a Isabel perguntando se podia ir tomar uma xícara de chá em sua companhia, às cinco horas. Fazia dez anos que não a via. Quando o circunspecto mordomo me introduziu na sala, ela estava lendo um romance francês. Levantou-se, tomou-me ambas as mãos, recebendo-me com um sorriso caloroso e amável. Em toda a minha vida eu não a vira mais que uma dúzia de vezes, e apenas duas a sós, mas ela me fez, imediatamente, sentir como se fôssemos velhos amigos e não apenas conhecidos. Os dez anos decorridos haviam diminuído o abismo que separara a mocinha do homem maduro, e eu já não sentia a disparidade de idade entre nós. Com a lisonjeira delicadeza de uma dama da sociedade, tratou-me como se eu fosse seu contemporâneo, e dali a cinco minutos tagarelávamos com a naturalidade e franqueza de companheiros habituados a um convívio diário. Ela adquirira desembaraço, domínio sobre si e segurança.

Mas o que mais me chamou atenção foi a diferença no seu físico. Eu me lembrava de uma moça bonita, viva, com tendência para engordar; não sei se, compenetrando-se do perigo, ela fizera heroicos sacrifícios para diminuir de peso, ou se isso era uma consequência feliz, se bem que rara, da maternidade; mas agora era de uma esbeltez que satisfaria aos mais exigentes. A moda da época acentuava essa sua qualidade. Estava de preto; num relance notei que seu vestido de seda, nem muito simples, nem excessivamente complicado, fora confeccionado por uma das melhores costureiras de Paris – e ela o usava com o confiante desembaraço da mulher que está habituada a roupas caras. Dez anos antes, mesmo sob a orientação de Elliott, seus vestidos inclinavam-se para o lado vistoso e ela não parecera muito à vontade dentro deles. Mas hoje, Marie Louise de Florimond não poderia dizer que lhe faltava chie. Isabel era chie até a ponta das unhas esmaltadas de cor-de-rosa.

Suas feições tinham-se afinado; ocorreu-me que em mulher alguma eu jamais vira nariz tão bonito e tão reto. Nenhuma ruga na testa ou sob os olhos castanhos; embora sua pele tivesse perdido a resplendente frescura da adolescência, continuava tão delicada quanto antes. Provavelmente devia algum favor a loções, cremes e massagens, mas com isso adquirira uma transparência macia, suave, de singular atração. As faces magras estavam pintadas de leve e a boca discretamente acentuada. Conforme a moda do momento, Isabel usava cortados e ondulados os seus luzidios cabelos castanhos. Não lhe vi anéis nos dedos; lembrei-me então de que Elliott me contara que ela vendera suas joias. Embora não muito pequenas, as mãos eram benfeitas. Naquela época as mulheres usavam vestidos curtos durante o dia; notei que as pernas de Isabel, sob as meias cor de champanhe, eram bem torneadas, longas e finas. Perna é coisa que estraga muita mulher bonita; mas as de Isabel, antigamente o seu maior defeito, agora nada deixavam a desejar. Em resumo, de moça que atraíra pela exuberante saúde, animação e vivacidade, transformara-se em bela mulher. Pouco importava que devesse parte desse encanto à arte, disciplina e mortificações; o resultado era mais que satisfatório. É possível que a graça dos movimentos e a elegância do porte tivessem sido adquiridos intencionalmente, mas davam a impressão de absoluta espontaneidade. Provavelmente aqueles quatro meses em Paris tinham dado os últimos retoques na consciente obra de arte que levara anos a ser completada. Nem mesmo Elliott, nos seus momentos mais exigentes, encontraria nela motivo de crítica; e eu, pessoa bem mais fácil de contentar, achei-a encantadora.

Gray fora jogar golfe em Montefontaine, mas Isabel me disse que ele não tardaria.

– E você precisa ver minhas filhas. Foram ao jardim das Tulherias, mas não devem demorar. São uns amores.

Falamos de uma coisa e outra. Isabel gostava de Paris e estavam bem instalados no apartamento de Elliott. Antes de partir, este os apresentara aos amigos com quem achara que eles iriam simpatizar; tinham, portanto, um agradável círculo de relações. Elliott insistira para que recebessem com a frequência a que ele estava habituado.

– Sabe de uma coisa, acho engraçadíssimo estarmos vivendo como gente rica, quando na realidade estamos completamente arruinados – disse-me Isabel.

– Tanto assim?

Ela riu baixinho e lembrei-me agora do riso despreocupado, alegre, que tanto me agradara dez anos antes.

– Gray não tem um níquel e eu tenho quase que exatamente a mesma renda com que Larry contava na época em que queria que me casasse com ele, quando não concordei por achar que não poderíamos viver com tal quantia; e agora tenho duas filhas, ainda por cima! Não deixa de ser engraçado, não é verdade?

– Agrada-me verificar que você percebe o humorismo da situação.

– Que notícias me dá de Larry?

– Eu? Nenhuma. Nunca mais o vi, desde aquela época em que vocês estiveram aqui em Paris. Eu me dava ligeiramente com algumas pessoas que também o conheciam e perguntei que fim levara ele; mas isso há anos. Ninguém soube dizer-me. Ele sumira, simplesmente.

– Conhecemos, em Chicago, o gerente do banco onde Larry tem a sua conta, e ele nos disse que de vez em quando recebe um aviso de pagamento de algum lugar esquisito, China, Birmânia, Índia. Parece que ele tem corrido o mundo.

Não hesitei em fazer a pergunta que estava na ponta da minha língua. Afinal de contas, se a gente quer saber uma coisa, o melhor meio é perguntar.

– Você se arrependeu de não ter casado com Larry? Um sorriso insinuante apareceu nos lábios de Isabel. – Tenho sido muito feliz com Gray. É um ótimo marido. Sabe, até vir a crise, divertimo-nos imensamente. Temos os mesmos gostos, simpatizamos com as mesmas pessoas. Ele é muito bom. E é agradável ser adorada; Gray está hoje tão apaixonado por mim como quando nos casamos; considera-me a mulher mais maravilhosa deste mundo. Você não pode imaginar como é amável e delicado. E foi sempre de uma generosidade exagerada; nada era bom demais para mim. E em todos estes anos de casados, nunca me disse uma palavra áspera ou pouco amável.

Acharia ela que respondera à minha pergunta? Mudei de assunto.

– Fale-me de suas filhinhas. Nisto a campainha tocou.

– Aí estão elas. Veja você mesmo.

No momento seguinte as meninas entraram acompanhadas pela governanta; fui apresentado primeiro a Joan, a mais velha, depois a Priscilla. Cada uma me fez uma delicada reverenciazinha ao estender-me a mão. Uma tinha oito anos, a outra seis. Eram altas para a idade; Isabel, naturalmente, era alta, e lembrei-me de que Gray era imenso; mas as meninas só eram bonitas no sentido em que são bonitas todas as crianças. Pareciam frágeis. Tinham herdado os cabelos pretos do pai e os olhos castanhos da mãe. A presença de um estranho não as intimidou: em tom animado contaram a Isabel suas peripécias nos jardins. Lançaram um olhar cobiçoso às coisas gostosas que a cozinheira preparara para o chá e em que não ha víamos tocado; recebendo licença de tirar uma, viram-se no terrível dilema de não saber qual escolher. Era agradável notar com que carinho tratavam a mãe, e as três assim juntas formavam um grupo encantador. Depois de cada uma ter comido o seu bolinho, Isabel mandou-as embora e elas saíram sem uma palavra de protesto. Pareceu-me que estavam sendo educadas a obedecer.

Quando ficamos sós, eu disse as coisas que a gente costuma dizer a uma mãe a respeito de seus filhos, e Isabel aceitou os elogios com evidente, se bem que despreocupado, prazer. Pergunteilhe se Gray estava gostando de Paris.

– Bastante. Tio Elliott nos deixou um carro, de modo que ele pode jogar golfe quase todos os dias; além disso, entrou para sócio do Clube dos Viajantes, onde costuma jogar bridge. O oferecimento do tio Elliott, de nos sustentar neste apartamento, veio, naturalmente, como uma bênção dos céus. Os nervos de Gray estão em mísero estado e ele ainda tem aquelas terríveis enxaquecas; mesmo que arranjasse emprego, não estaria em condições de aceitá-lo e isso, naturalmente, o aborrece. Ele tem vontade de trabalhar, acha que deve trabalhar e sente-se humilhado por não o quererem. Sim, pois é de opinião que a missão do homem é lutar e que, não podendo cumpri-la, é preferível morrer de uma vez. Não se conforma com a sua inutilidade; só consegui trazê-lo para cá depois de convencê-lo de que a mudança e o descanso o fariam voltar ao seu normal. Mas tenho certeza de que só se sentirá feliz quando estiver de novo em plena atividade.

– Vejo que vocês sofreram bastante nestes últimos dois anos e meio.

– Pois bem, saiba que, quando veio a crise, eu simplesmente não pude acreditar nela. Parecia-me impossível que estivéssemos arruinados. Compreendia que outras pessoas estivessem na miséria, mas nós... não; era inconcebível. Continuei pensando que à última hora aconteceria alguma coisa que nos viesse salvar. E então, quando foi desferido o golpe final, achei que não valia mais a pena viver, que não me seria possível enfrentar o futuro; era por demais sombrio. Durante uma semana me senti profundamente infeliz. Céus, foi horrível ter que dispor de tudo, sabendo que estavam acabados os divertimentos, que iria ficar privada de todas as coisas de que gostava... Mas ao fim de quinze dias exclamei: “Oh! com os diabos, não vou pensar mais nisso”, e juro-lhe que não pensei mesmo. Não choro o que perdi. Diverti-me muito enquanto durou, mas agora que terminou está acabado.

– Não há dúvida de que a ruína é bem mais suportável num luxuoso apartamento, num bairro elegante, com um mordomo competente e uma excelente cozinheira – de graça, ainda por cima – e quando a gente pode cobrir a carcaça com um vestido de Chanel, não é verdade?

– Lanvin – corrigiu ela rindo baixinho. – Vejo que você não mudou muito, em dez anos. Não sei se vai acreditar-me, cínico como é, mas se não fosse por Gray e pelas crianças não garanto que eu tivesse aceito a oferta do tio Elliott. Com os meus dois mil e oitocentos dólares anuais poderíamos perfeitamente ter vivido na plantação; cultivaríamos arroz e centeio, criaríamos porcos. Afinal de contas, nasci e fui criada numa fazenda de Illinois.

– Por assim dizer – repliquei sorrindo, pois sabia que na realidade ela nascera numa luxuosa maternidade de Nova York.

Neste momento Gray entrou. É verdade que eu só me encontrara com ele duas ou três vezes, e isso doze anos antes, mas vira sua fotografia ao lado da noiva (Elliott conservava-a sobre o piano, em esplêndida moldura, ao lado das fotografias autografadas do rei da Suécia, da rainha da Espanha e do duque de Guise, mas lembrava-me muito bem dele). Fiquei agora estupefato. Estava calvo no alto da cabeça, e as entradas tinham aumentado consideravelmente; rosto rubro e intumescido, papada. Engordara demais naqueles anos de boa vida e muito álcool, e somente sua grande altura impedira que se tornasse vulgarmente obeso. Mas foram os olhos que mais me chamaram atenção. Eu me lembrava perfeitamente da sua expressão franca, confiante, quando Gray via o mundo à sua frente e não tinha uma única preocupação na vida; mas agora pareceu-me distinguir neles uma espécie de perplexa consternação e, mesmo que eu desconhecesse os fatos, creio que teria adivinhado que acontecera alguma coisa que destruíra a confiança que Gray tivera em si e na ordem natural dos acontecimentos. Senti nele uma espécie de modéstia, como se tivesse agido mal, embora involuntariamente, e disso se envergonhasse. Evidentemente seus nervos estavam em petição de miséria. Cumprimentou-me muito cordialmente, como se eu fosse um velho amigo; mas pareceu-me que a sua ruidosa amabilidade era mais uma atitude, pouco de acordo com seus sentimentos.

Trouxeram as bebidas e ele nos preparou um coquetel. Estivera no clube de golfe e ficara satisfeito com o seu jogo. Meteu-se a descrever, com exagerada loquacidade, as dificuldades que vencera num dos buracos. Isabel ouviu-o aparentemente com vivo interesse. Dali a pouco, após termos combinado um dia para eles irem jantar comigo, e um teatro depois, despedi-me e saí.


2

Adquiri o hábito de ir ver Isabel três ou quatro vezes por semana, à tarde, terminada a minha tarefa do dia. Em geral ela estava só nesta hora e gostava de uma prosinha. As pessoas a quem Elliott a apresentara eram muito mais velhas; percebi que poucas companheiras tinham sua idade. Meus amigos estavam geralmente ocupados até a hora do jantar e, a ir ao clube jogar bridge com alguns franceses rabugentos que não apreciavam a presença de um intruso, eu preferia a companhia de Isabel. Sua encantadora maneira de me tratar como se fôssemos da mesma idade tornava fácil a conversa; pilheriávamos, ríamos, caçoávamos um do outro, falando às vezes sobre nós, às vezes sobre amigos comuns, de outras sobre livros e quadros; assim o tempo passava agradavelmente. Um dos meus defeitos é nunca me acostumar com a fealdade das pessoas; por melhor gênio que tenha um amigo meu, nem com anos de intimidade consigo conformar-me com seus maus dentes ou nariz torto; por outro lado, jamais me canso de apreciar a beleza, e depois de vinte anos de convivência ainda me agrada ver uma sobrancelha benfeita ou o delicado contorno de um rosto. E, portanto, ao chegar à presença de Isabel, nunca deixei de experimentar uma leve sensação de prazer ante o oval perfeito do rosto, o acetinado da pele e o cálido brilho dos olhos castanhos.

Nisto aconteceu um fato inesperado.


3

Em todas as grandes cidades existem grupos fechados que não se comunicam entre si, pequenos mundos dentro de um mundo maior, a viver a sua vida, dependendo seus componentes da companhia uns dos outros, como habitantes de ilhas separadas entre si por canais inavegáveis. De acordo com a minha experiência, mais do que de qualquer outra cidade pode-se dizer isso de Paris. Ali, raramente a alta sociedade permite intrusos no seu meio; os políticos vivem no seu círculo corrupto; os burgueses, grandes e pequenos convivem uns com os outros; escritores se congregam com escritores (é interessante notar, no Journal de André Gide, como ele teve pouca intimidade com pessoas que não eram da sua profissão), pintores misturam-se com pintores e músicos com músicos. O mesmo acontece em Londres, se bem que de maneira menos acentuada; ali os pássaros da mesma plumagem já não se juntam tanto, e há uma dúzia de casas onde a gente pode encontrar ao mesmo tempo uma duquesa, uma atriz, um pintor, um membro do Parlamento, um advogado, uma costureira e um escritor.

As circunstâncias da minha vida levaram-me a viver transitoriamente em quase todos os mundos de Paris, até mesmo (por intermédio de Elliott) no círculo fechado do Boulevard St. Germain; mas aquele de que mais gosto, mais que da roda discreta que tem seu centro no que hoje se chama Avenue Foch, mais que do grupo cosmopolita, que dá sua preferência ao Larue e ao Café de Paris, mais que da ruidosa e sórdida alegria de Montmartre, é o trecho que tem por artéria principal o Boulevard du Montparnasse. Na minha mocidade passei um ano num apartamentozinho próximo ao Lion de Belfort, no quinto andar, de onde se avistava perfeitamente o cemitério. Para mim, Montparnasse ainda tem um pacato ar de cidade de interior, característico naquele tempo. Quando passo pela sombria e estreita Rue d’Odessa, é com dor no coração que me lembro do modesto restaurante onde nos reuníamos para jantar, pintores, ilustradores, escultores e eu, o único escritor, a não ser por Arnold Bennett, que aparecia de vez em quando, ali ficando até tarde a discutir animadamente, absurdamente, colericamente, sobre pintura e literatura. Ainda é para mim um prazer descer pelo boulevard e observar as pessoas que têm a mocidade que eu tinha naquele tempo, e inventar, para meu gozo particular, histórias a respeito delas. Quando não tenho o que fazer, tomo um táxi e vou sentar-me no velho Café de Dôme. Já não é o que era naquele tempo, ponto de reunião exclusivamente da boêmia; os pequenos comerciantes da vizinhança habituaram-se a frequentá-lo, e surgem estranhos do outro lado do Sena, na esperança de ver um mundo que deixou de existir. Naturalmente os estudantes ainda aparecem, e pintores, e escritores; mas são, na maioria, estrangeiros; quem está ali sentado ouve tanto russo, alemão e inglês como francês. Mas tenho a impressão de que dizem mais ou menos as mesmas coisas que dizíamos há quarenta anos, só que discutem Picasso em vez de Manet, e André Breton em vez de Guillaume Apollinaire. Meu coração voa para perto deles.

Certa tarde, mais ou menos quinze dias depois de me achar em Paris, estava eu sentado no Dôme; tendo encontrado cheio o terraço, vira-me obrigado a tomar uma mesa da primeira fila. Tempo bonito e quente. Os plátanos começavam a enfolhar-se e havia no ar aquela nota de ociosidade, despreocupação e alegria, própria da cidade de Paris. Sentei-me em paz comigo mesmo, mas não letargicamente; pelo contrário, quase que com júbilo. Subitamente um homem que passara por mim parou e, exibindo os dentes brancos num sorriso, exclamou: “Alô”. Fitei-o inexpressivamente. Alto e magro. Estava sem chapéu; notei-lhe a cabeleira escura, que estava clamando por uma tesoura. O lábio superior e o queixo se escondiam sob cerrada barba castanha. Testa e pescoço muito queimados do sol. Estava com uma camisa puída, sem gravata, paletó marrom surradíssimo e uma calça cinzenta em não muito melhores condições. Parecia um vagabundo e eu poderia jurar que nunca o tinha visto. Tomei-o por um daqueles sujeitos ordinários que decaíram completamente em Paris, e esperei que me contasse uma série de infelicidades, no intuito de me arrancar alguns francos que lhe garantissem cama e comida por uma noite. Ele estava de pé, diante da minha mesa, mãos enfiadas nos bolsos, dentes brancos à mostra, expressão divertida nos olhos escuros.

– Não se lembra de mim? – perguntou.

– É a primeira vez que o vejo na vida.

Eu estava disposto a lhe dar vinte francos, mas não tinha a menor intenção de permitir que continuasse com o blefe de que éramos conhecidos.

– Larry – disse ele.

– Deus do céu! Sente-se – exclamei. Ele deu uma risadinha abafada, adiantou-se e ocupou a cadeira vazia à minha mesa. – Tome alguma coisa – continuei, chamando o garçom. – Como é que você esperou que eu o reconhecesse com todos esses pelos no rosto?

Veio o garçom e Larry encomendou uma laranjada. Agora que podia vê-lo melhor, lembrei-me da singularidade dos olhos, que residia no fato de ser a íris tão negra quanto a pupila, dando-lhes ao mesmo tempo penetração e opacidade.

– Há quanto tempo está em Paris? – perguntei.

– Há um mês.

– Vai continuar aqui?

– Por algum tempo.

Enquanto eu fazia essas perguntas, meu pensamento trabalhava. Notei que a bainha da calça estava puída, roto o paletó nos cotovelos. Tinha a aparência pobre de qualquer vagabundo que eu tivesse encontrado num porto oriental. Naquela época era difícil a gente se esquecer da depressão, e fiquei a conjeturar se a crise de 29 não o teria arruinado. O pensamento desagradou-me e, não sendo amigo de rodeios, perguntei-lhe francamente:

– Você está mal de finanças?

– Não; absolutamente. Que ideia foi essa?

– Pois bem, você está com ar de quem precisa de uma boa refeição, e as roupas que está usando só servem para o lixo.

– Tanto assim? Não pensei nisso. Para falar a verdade, eu estava com ideia de fazer algumas compras, mas nunca chega a hora.

Pensei que fosse orgulho, ou timidez, e não vi motivo para concordar com essa tolice.

– Não seja idiota, Larry. Não sou nenhum milionário, mas também não sou pobre. Se você está em apuros, deixe que lhe empreste alguns milhares de francos, que nem por isso ficarei quebrado.

Ele soltou uma gargalhada.

– Muito agradecido; mas não estou em apuros. Nem chego mesmo a gastar o que tenho.

– Apesar da crise?

– Oh! a crise não me atingiu. Tudo o que eu tinha estava em títulos do governo. Não sei se baixaram de cotação, não indaguei a respeito, mas o fato é que o Tio Sam continua a pagar os juros, como sujeito correto que é. Para ser franco, estive gastando tão pouco nestes últimos anos, que devo mesmo ter uma boa reserva.

– De onde é que você está vindo, então?

– Da Índia.

– Oh! eu soube que você tinha andado por lá. Isabel contou-me. Parece que ela conhece o gerente do seu banco, em Chicago.

– Isabel? Quando foi que a viu pela última vez?

– Ontem.

– Ela não está em Paris, está?

– Claro que está. Moram no apartamento de Elliott Templeton.

– Ótimo. Teria imenso prazer em vê-la.

Embora eu o observasse atentamente, notei nos seus olhos apenas prazer, e uma surpresa natural, mas nenhum sentimento mais complexo.

– Gray também está aqui. Você sabe que eles se casaram?

– Sei. O tio Bob – o dr. Nelson, meu tutor – escreveu, contando-me. Ele morreu há alguns anos.

Ocorreu-me que, com a quebra daquilo que era aparentemente o único elo que o prendia a Chicago, provavelmente Larry não estava a par dos acontecimentos. Falei-lhe do nascimento das duas filhas de Isabel, da morte de Henry Maturin e de Louisa Bradley, da ruína completa de Gray e da generosidade de Elliott.

– Elliott também está aqui?

– Não.

Pela primeira vez em quarenta anos Elliott não passava a primavera em Paris. Embora não aparentasse essa idade, estava agora com setenta anos e, como acontece comumente com homens tão idosos, havia dias em que se sentia cansado e doente. Ia aos poucos abandonando os exercícios e agora quase que só se limitava aos passeios a pé. Preocupava-se muito com a saúde e seu médico vinha vê-lo duas vezes por semana, para espetar alternadamente numa das nádegas uma agulha com a injeção da moda. Em todas as refeições, tanto em casa como fora, Elliott tirava do bolso um estojinho de ouro e dele extraía um comprimido, engolindo-o com o ar compenetrado de quem está cumprindo um rito sagrado. Seu médico lhe recomendara uma cura em Montecatini, estação de águas no norte da Itália, e de lá ele pretendia ir a Veneza, a fim de procurar um modelo de pia batismal apropriado para a sua igreja românica. Agora já não lhe era tanto sacrifício não visitar Paris, pois de ano em ano achava a vida social ali menos satisfatória. Não gostava de gente velha, ofendendo-se quando o convidavam para encontrar somente pessoas da sua idade; e, quanto aos moços, achava-os enfadonhos. A igreja que ele construíra era agora o interesse máximo da sua vida; podia, assim, satisfazer o seu arraigado gosto de adquirir obras de arte, tendo a agradável certeza de que o fazia para a glória de Deus. Encontrara em Roma um altar antigo, de melite, e durante seis meses estivera remexendo Florença à procura de um tríptico da escola sienense, para colocá-lo sobre o altar.

Larry perguntou-me que tal Gray estava achando Paris.

– Creio que se sente um tanto desambientado. Tentei explicar a impressão que Gray me causara. Larry ouviu-me com olhos fixos no meu rosto, sem pestanejar, e, não sei por quê, a expressão contemplativa me fez pensar que ele escutava, não com os ouvidos, mas com algum mais sensível e mais íntimo órgão auditivo. Esquisito, e para mim não muito agradável.

– Mas você verá por si mesmo – concluí.

– Sim, eu teria muito prazer em vê-los. Com certeza encontrarei o endereço na lista telefônica.

– Mas, a não ser que você queira pregar-lhes um susto e tanto, e arrancar gritos histéricos às crianças, vá cortar o cabelo e tirar essa barba.

Ele riu.

– A ideia já me ocorreu. Não tenho nenhum interesse em chamar atenção.

– E, enquanto estiver com a mão na massa, compre um terno novo.

– Creio que estou mesmo um tanto esfarrapado. Quando saí da Índia, verifiquei que não tinha outras roupas a não ser estas que trago no corpo.

Olhou para o meu terno e perguntou quem era o meu alfaiate. Contei-lhe, mas acrescentei que o homem estava em Londres e que, portanto, não poderia ser de grande utilidade. Mudamos de assunto, falando de novo sobre Gray e Isabel.

– Tenho-os visto frequentemente – disse eu. – São muito felizes. Ainda não tive oportunidade de conversar a sós com Gray e, em todo caso, acho que não me falaria sobre Isabel, mas sei que gosta muito dela. Seu rosto, em repouso, é um tanto taciturno; os olhos têm uma expressão atormentada, mas quando descansam em Isabel adquirem uma suavidade e uma meiguice realmente comovedoras. É minha impressão que, durante toda aquela época de luta, ela se manteve como uma rocha ao lado do marido e ele não se esquece de quanto lhe deve. Você vai achar Isabel mudada. – Não disse a Larry que ela estava linda como jamais o fora, pois não sabia se ele tinha suficiente discernimento para ver como a moça bonita e sacudida soubera transformar-se em mulher adoravelmente graciosa, delicada e fina. Há homens que se escandalizam com o auxílio que a arte presta à beleza feminina... Acrescentei: – Ela é muito boa para Gray. Está fazendo o possível para que ele readquira confiança em si.

Mas estava ficando tarde; perguntei a Larry se não queria descer comigo o boulevard, para jantarmos juntos.

– Não, obrigado; creio que hoje não – respondeu ele. – Tenho que ir caminhando.

Levantou-se, cumprimentou-me amavelmente e passou para a calçada.


4

Estive com Gray e Isabel no dia seguinte e contei-lhes que vira Larry. Ficaram tão admirados quanto eu.

– Que vontade de vê-lo novamente! – exclamou Isabel. – Vamos telefonar-lhe agora mesmo.

Lembrei-me então de que não pensara em pedir a Larry o seu endereço. Isabel me passou uma descompostura em regra.

– Não sei se ele me teria contado – defendi-me, rindo. Com certeza o meu subconsciente teve interferência no caso. Você não se lembra, ele não gostava de dizer onde estava morando. Era uma das suas esquisitices; mas é bem capaz de aparecer aqui a qualquer momento.

– Não seria de admirar – disse Gray. – Mesmo nos velhos tempos ninguém podia contar com ele onde era esperado. Estava hoje aqui, amanhã ali. A gente o via numa sala e pensava em ir cumprimentá-lo dali a pouco, mas quando lá chegava ele já tinha desaparecido.

– Larry sempre foi uma criatura exasperante – disse Isabel. – Quanto a isto, não há dúvida. Provavelmente teremos que esperar até que ele se lembre de aparecer.

Ele não veio neste dia, nem no seguinte, nem no outro. Isabel acusou-me de ter inventado a história só para aborrecer. Garanti-lhe que não, procurando apresentar razões que explicassem a ausência de Larry. Mas não eram plausíveis. Pensei comigo mesmo que, refletindo melhor, talvez ele tivesse achado preferível não ver Gray e Isabel, tendo mesmo saído de Paris. Já naquela época eu sentia que ele não criava raízes em parte alguma, estando sempre pronto – por uma razão que lhe parecesse boa, ou por capricho a continuar o seu caminho de um momento para outro.

Finalmente ele apareceu. Chovia, e Gray não fora a Mortefontaine. Estávamos os três na sala, Isabel e eu tomando uma xícara de chá, Gray um uísque com perrier, quando o mordomo abriu a porta e Larry entrou. Isabel pulou da cadeira com uma exclamação e, atirando-se nos braços dele, beijou-o em ambas as faces. Gray, seu rosto rubro tornando-se ainda mais rubro, apertou-lhe calorosamente a mão.

– Viva, que prazer em vê-lo – disse, em voz trêmula de emoção. Isabel mordeu os lábios e percebi que se esforçava para não chorar.

– Tome qualquer coisa, meu velho – disse Gray em voz ainda pouco firme.

Fiquei comovido com o prazer que lhes causava a volta do amigo errante. E para Larry deve ter sido agradável verificar quanto lhe queriam bem. Sorriu, satisfeito. Percebi, no entanto, que estava absolutamente senhor de si. Notando a bandeja do chá, disse:

– Aceito uma xícara de chá.

– Oh! céus, você não há de querer chá! – exclamou Gray. – Vamos abrir uma garrafa de champanhe.

– Prefiro chá – sorriu Larry.

Sua serenidade teve nos outros o efeito que ele provavelmente desejava que tivesse. Acalmaram-se, mas ainda o olhavam com afeição. Não quero com isso dizer que ele tenha correspondido com frieza pouco simpática à espontânea exuberância dos outros; pelo contrário, não podia ter sido mais cordial e encantador; senti, no entanto, na sua atitude qualquer coisa que só posso qualificar como “remota” e fiquei a imaginar o que seria.

– Por que não veio logo nos ver, “sua” peste? – exclamou Isabel, fingindo indignação. – Passei estes últimos cinco dias dependurada na janela, e todas as vezes que a campainha tocava meu coração batia acelerado, dando-me um trabalhão para acalmá-lo novamente!

Larry riu baixinho.

– Mr. Maugham me disse que eu estava com aparência tão pouco respeitável que o seu criado não me deixaria entrar. Fui a Londres de avião, para comprar umas roupas.

– Isto não teria sido necessário – disse eu. – Você poderia ter comprado uma roupa feita aqui no Printemps ou na Belle Jardinière.

– Achei que, já que estava decidido, era melhor fazer a coisa em estilo – respondeu Larry. – Há dez anos que não compro trajes europeus. Procurei o seu alfaiate e disse-lhe que queria um terno em três dias. Ele respondeu que levaria quinze, de modo que concordamos com quatro. Faz uma hora que cheguei de Londres.

Ele usava um terno de casimira azul bem assentado no seu corpo esguio, camisa branca de colarinho mole, gravata azul e sapato marrom. Cortara curto o cabelo e tirara a barba. Estava não somente decente, mas bem tratado. Verdadeira transformação. Muito magro; maçãs ainda mais salientes, têmporas mais entradas, olhos maiores nas órbitas fundas; apesar disso, estava muito bem-disposto. Para falar a verdade, com seu rosto muito queimado, sem uma ruga, ele parecia extraordinariamente jovem. Era um ano mais moço do que Gray, tendo ambos pouco mais de trinta anos; mas, se Gray dava a impressão de ter dez anos mais, Larry parecia ter dez menos. Os movimentos de Gray, devido ao seu volume, eram deliberados e um tanto pesados; os de Larry, leves e naturais. Tinha um jeito de adolescente, alegre e donairoso, mas no íntimo possuía uma serenidade que singularmente me era perceptível, e que eu não me lembrava de ter notado no rapazinho que conhecera em Chicago. À medida que a conversa prosseguia, com muita naturalidade, como acontece entre velhos amigos que têm muitas recordações em comum, com notícias de Chicago fornecidas por Gray e Isabel – conversa trivial, entremeada de risos, uma coisa conduzindo a outra–, eu continuava com a impressão de que, embora fosse espontâneo o seu riso e ele ouvisse com evidente prazer o alegre tagarelar de Isabel, havia em Larry um singular desprendimento. Não que estivesse representando um papel, pois era natural demais para isso, e sua sinceridade era inegável; senti que havia qualquer coisa dentro dele, não sei se devo chamá-la de percepção, sensibilidade, ou força, que se conservava estranhamente isolada.

As crianças apareceram, foram apresentadas a Larry e fizeram suas delicadas reverenciazinhas. Ele lhes estendeu a mão, fitando-as com encantadora ternura nos olhos suaves, e elas a apertaram com ar grave. Com muita vivacidade Isabel contou a Larry que as filhas iam muito bem nos estudos, deu um bolinho a cada uma e mandou-as embora.

– Vou depois ler para vocês durante dez minutos, quando estiverem na cama.

Naquele momento ela não queria ver interrompido o prazer que lhe causava a presença de Larry. As meninas foram dar boa-noite ao pai. Achei comovente ver iluminar-se o rosto vermelho daquele homem pesadão, quando as abraçou e beijou. Ninguém podia deixar de notar com que orgulho as adorava; quando elas saíram, virou-se para Larry e disse:

– Podiam ser piores, não podiam?

Isabel lançou ao marido um olhar afetuoso.

– Se eu deixasse Gray fazer o que quer, elas estariam completamente estragadas. Este brutamontes me deixaria foie gras.

Gray fitou-a sorrindo e disse:

– Você é uma mentirosa e sabe disso. Tenho verdadeira paixão por você.

Nos olhos de Isabel brilhou um sorriso compreensivo. Ela sabia disso e o fato lhe causava prazer. Um casal feliz.

Isabel insistiu em que ficássemos para jantar. Achando que talvez eles preferissem ficar sós, inventei uma desculpa, mas Isabel não se conformou.

– Direi a Marie que ponha mais uma cenoura na sopa e assim dará bem para quatro. Temos frango; você e Gray poderão comer as pernas e Larry e eu ficaremos com as asas; e ela que faça o suflê de um tamanho que dê para todos nós.

Também Gray parecia querer que eu ficasse, de modo que me deixei persuadir a fazer o que eu desejava.

Enquanto esperávamos, Isabel contou detalhadamente a Larry aquilo que eu já lhe contara por alto. Embora narrasse a lamentável história da maneira mais alegre possível, o rosto de Gray tornou-se taciturnamente melancólico. Ela procurou animá-lo.

– Em todo caso, agora está tudo acabado. Caímos de pé e temos o futuro à nossa frente. Assim que as coisas melhorarem, Gray vai arranjar um ótimo emprego e ganhar milhões. Vieram os coquetéis, e dois conseguiram levantar o moral do pobre coitado. Notei que, embora tivesse tirado um, Larry mal tocou nele; e quando Gray, mau observador, lhe ofereceu outro, Larry recusou-o. Fomos lavar as mãos e sentamo-nos à mesa. Gray mandara abrir uma garrafa de champanhe, mas, quando o mordomo começou a servir Larry, este lhe disse que não queria.

– Oh! mas você precisa tomar um pouco! – exclamou Isabel. – É o melhor champanhe do tio Elliott, que ele reserva para os convidados especiais.

– Para ser franco, prefiro água. Depois de ter vivido tanto tempo no Oriente, é um prazer poder beber uma água que não seja perigosa.

– Mas é uma ocasião especial.

– Está certo; tomarei um pouco.

O jantar estava ótimo, mas, assim como eu, Isabel notou que Larry comeu muito pouco. Ocorreu-lhe então, creio, que estivera falando o tempo todo e que pouca oportunidade tivera ele de dizer alguma coisa; em vista disso, começou a indagar dos seus atos durante aqueles dez anos em que não se tinham visto. Ele respondeu com a sua amável franqueza, mas tão vagamente que não ficamos lá muito bem informados.

– Oh! você sabe, estive vagando por aí. Passei um ano na Alemanha e algum tempo na Espanha e Itália. E perambulei um pouco pelo Oriente.

– De onde está vindo agora?

– Da Índia.

– Quanto tempo ficou lá?

– Cinco anos.

– Divertiu-se? – perguntou Gray. – Matou algum tigre?

– Não – respondeu Larry sorrindo.

– Mas, francamente, o que esteve você fazendo na Índia durante cinco anos? – perguntou Isabel.

– Divertindo-me – respondeu ele com um sorriso de amável zombaria.

– Que tal a Mágica da Corda? – perguntou Gray. – Viu-a?

– Não, não vi.

– Que foi que você viu?

– Muita coisa.

Nesta altura fiz uma pergunta.

– É verdade que os iogues adquirem poderes que nos pareceriam sobrenaturais?

– Não sei. Só o que posso dizer é que, na Índia, geralmente se acredita nisso. Mas os mais sensatos não dão muito valor a poderes dessa natureza; acham que retardam o progresso espiritual. Lembro-me de que um deles me falou de um iogue que chegou à beira de um rio, e que não tinha dinheiro para pagar o barqueiro que devia levá-lo à outra margem, recusando-se este a transportá-lo de graça; e, portanto, o homem pisou a água e andou sobre a superfície, até chegar ao outro lado. O iogue que me contou o fato encolheu os ombros desdenhosamente e disse: “Tal milagre não vale mais que o níquel que teria custado a passagem”.

– Mas você acha que o iogue andou realmente sobre a água?

– O iogue que me contou acreditava nisso piamente. Era um prazer ouvir Larry falar, pois sua voz era adoravelmente melodiosa; leve, rica sem ser profunda, e com uma singular variedade de entonações. Terminado o jantar, fomos para a sala de visitas, onde nos foi servido o café. Eu não conhecia a Índia e estava ansioso por mais detalhes.

– Você chegou a conhecer escritores e pensadores? – perguntei.

– Noto que você faz uma distinção entre os dois – disse Isabel, para troçar comigo.

– Fiz questão disso – declarou Larry.

– Como é que você se comunicou com eles? Em inglês?

– Os mais interessantes, quando sabiam inglês, não falavam muito bem e entendiam menos ainda. Aprendi hindustani. E, quando fui para o sul, cheguei a entender bastante tamul para não me sentir perdido.

– Quantas línguas você conhece, Larry?

– Não sei. Mais ou menos uma meia dúzia.

– Conte-me mais alguma coisa sobre os iogues – pediu Isabel. – Chegou a conhecer algum intimamente?

– O mais intimamente que se possa conhecer uma pessoa que vive a maior parte do tempo no Infinito – respondeu ele sorrindo. – Passei dois anos no ashrama de um deles.

– Dois anos? Que é ashrama?

– Bom, suponho que é o que chamaríamos de eremitério. Há homens santos que vivem sós, num templo, na floresta ou nas encostas do Himalaia. Há outros que atraem discípulos. Uma pessoa caridosa, que queira adquirir mérito, constrói um quarto grande ou pequeno, para que ali viva um iogue cuja piedade o impressionou, e os discípulos vivem com ele, dormindo na varanda, ou na cozinha se existe uma, ou mesmo embaixo das árvores. Eu tinha uma choça, perto, onde apenas havia lugar para minha cama de lona, uma cadeira, uma mesa e uma estante.

– Onde foi isso? – perguntei.

– Em Travancore, bela região de morros verdejantes, vales poéticos e rios de águas mansas. Lá em cima, nas montanhas, há tigres, leopardos, elefantes e bisões, mas o ashrama ficava numa laguna cercada de arecas e coqueirais. Distava cinco ou seis quilômetros da cidade mais próxima, mas vinha gente de lá, e mesmo de mais longe, a pé ou de carro de boi, para ouvir o iogue falar quando a tal se sentia inclinado, ou apenas para se sentar a seus pés e compartilhar da paz e bem-aventurança que, tal a fragrância que a tuberosa espalha no ar, sua santa presença irradiava.

Gray moveu-se desajeitadamente na cadeira. Pareceu-me que a conversa estava tomando um rumo que não o deixava lá muito à vontade.

– Quer tomar um uísque? – perguntou-me.

– Não, obrigado.

– Bom, eu vou tomar um. E você, Isabel?

Ergueu da cadeira o corpo pesadão e foi até a mesa onde havia uísque Perrier e alguns copos.

– Havia lá outros homens brancos?

– Não; eu era o único.

– Como é que você pôde aguentar isso durante dois anos? – exclamou Isabel.

– Passaram voando. Tenho conhecido dias que me pareceriam mais longos.

– O que é que você fazia o tempo todo?

– Lia. Fazia longos passeios a pé. Saía de barco pela laguna.

Meditava. A meditação é tarefa árdua; depois de duas ou três horas, a pessoa fica exausta como se tivesse guiado um carro durante mil quilômetros, e só o que deseja é repousar.

Isabel franziu de leve as sobrancelhas. Estava perplexa e não garanto que não estivesse também um pouco amedrontada. Creio que começava a achar que o Larry que horas antes entrara na sala, embora aparentemente inalterado, franco e amigo como antigamente, não era o mesmo Larry ingênuo, alegre e de gênio fácil, quase seu escravo, mas encantador, que ela conhecera no passado. Perdera-o uma vez e, ao vê-lo novamente, tomando-o pelo mesmo de outros tempos, julgava que, por diferentes que fossem as circunstâncias, ele ainda lhe pertencia; mas estava agora ligeiramente consternada, como se tivesse querido capturar um raio de sol e ele lhe houvesse escapado pelos dedos no momento em que o agarrara. Eu a observara bastante naquela noite, tarefa, aliás, sempre agradável, e notara a expressão afetuosa do seu olhar quando pousara na cabeça benfeita de Larry, de orelhas pequenas rentes ao crânio, e vira essa expressão mudar ao fixar-se nas têmporas fundas e faces macilentas. Olhou de relance para as mãos longas, finas, que apesar de emaciadas eram fortes e viris. Depois seu olhar se demorou na boca expressiva, benfeita, carnuda sem ser sensual, e na fronte serena e nariz benfeito. Larry usava suas roupas, não com a elegância de figurino de Elliott, mas com a despreocupação de quem as tivesse usado todos os dias durante um ano. Vi que ele inspirava em Isabel um sentimento maternal que eu não lhe notara no trato com as filhas. Era ela uma mulher experiente; ele parecia ainda um rapazinho; creio ter percebido na atitude de Isabel um orgulho de mãe pelo filho crescido, pelo fato de estar ele falando inteligentemente e ser ouvido como se suas palavras tivessem sentido. Não creio que ela alcançasse o que ele dizia.

Mas eu ainda não acabara com as perguntas.

– Como era o seu iogue?

– Quer dizer, fisicamente? Pois bem, não era alto; nem magro nem gordo; pele de um pardo acinzentado, barba feita, cabelo branco cortado rente. Usava apenas uma tanga, e no entanto conseguia ter a aparência limpa e correta de qualquer rapaz de um anúncio de Brooks Brothers.

– E qual a maior atração que você viu nele?

Larry fitou-me durante um longo momento antes de responder. Os olhos profundos pareciam querer penetrar-me até o mais íntimo da alma.

– Santidade.

Fiquei um tanto desconcertado com a resposta. Naquela sala de mobília fina e belos desenhos nas paredes, a palavra caiu como uma gota-d’água que houvesse filtrado pelo teto, oriunda de uma banheira transbordante.

– Temos lido muito sobre os santos, são Francisco, são João da Cruz e outros, mas isto aconteceu há centenas de anos. Nunca pensei que fosse possível conhecer um que vivesse atualmente. Desde o primeiro momento em que o vi, tive certeza de que era um santo. Foi um maravilhoso acontecimento.

– E o que você ganhou com isso?

– Paz – respondeu ele despreocupadamente, com um leve sorriso. Depois, bruscamente, ergueu-se e disse: – Tenho que ir.

– Oh! ainda não, Larry – exclamou Isabel. – É muito cedo.

– Boa-noite – disse ele, ainda sorrindo, sem ligar ao protesto. Beijou-a na face e acrescentou: – Provavelmente nos veremos daqui a um ou dois dias.

– Onde é que você está morando? Eu lhe telefonarei.

– Oh! não se incomode. Você sabe como é difícil a gente conseguir uma ligação em Paris e, além do mais, o nosso telefone está sempre com defeito.

Ri-me intimamente ao ver com que habilidade Larry se esquivara. Era uma esquisitice sua, guardar segredo sobre o seu endereço. Propus jantarem todos comigo, não na noite seguinte, mas na outra, no Bois de Boulogne. Naquele verão ameno era muito agradável a gente comer ao ar livre, sob as árvores; Gray poderia levar-nos no cupê. Saí com Larry e de boa vontade teria andado um trecho do caminho em sua companhia, mas assim que ganhamos a rua ele me estendeu a mão, afastando-se rapidamente. Tomei um táxi.


C O N T I N U A

Nunca senti maior apreensão ao começar um romance. E se digo romance é por não saber de que outra maneira chamá-lo. Não tem grande enredo, não acaba com morte nem com casamento. A morte põe termo a todas as coisas e é, portanto, fim lógico para uma história; mas também o casamento é solução muito correta e os blasés fariam mal em escarnecer daquilo que comumente se diz que “acabou bem”. O instinto popular anda acertado ao afirmar que, com isto, tudo o que devia ser dito foi dito. Quando, depois de inúmeras vicissitudes, macho e fêmea finalmente se reúnem, sua função biológica foi cumprida e o interesse passa à geração vindoura. Mas estou deixando o meu leitor no escuro. Este livro consiste nas recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contato; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar fatos de que tenho conhecimento.
Há anos escrevi um romance intitulado Um gosto e seis vinténs. Nele, destaquei um famoso pintor, Paul Gauguin, e, valendo-me do privilégio do romancista, imaginei vários incidentes, no intuito de ilustrar o tipo que eu criara inspirado nos escassos fatos que conhecia da vida do artista francês. Na obra atual nada tentei de semelhante. Não inventei coisa alguma. Para poupar constrangimento a pessoas que ainda vivem, dei aos personagens desta história nomes fictícios e procurei, por outros meios, evitar que sejam reconhecidos. O homem sobre quem escrevo não é célebre; talvez nunca chegue a sê-lo. É possível que, ao atingir o fim da vida, não deixe, de sua passagem pela terra, vestígio maior que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas. Neste caso, se o meu livro for lido, sê-lo-á exclusivamente pelo interesse intrínseco que possa ter. Mas é possível que o gênero de vida que esse homem escolheu para si próprio e a singular força e doçura do seu caráter tenham uma influência sempre crescente sobre seus semelhantes, de modo que, mesmo muito tempo depois de sua morte, talvez se compreenda que nesta época viveu uma criatura extraordinária. Ficará, então, claro sobre quem escrevi neste livro, e aqueles que desejarem conhecer alguma coisa dos primeiros anos da existência desse homem talvez aqui encontrem algo que lhes satisfaça. Creio que o meu livro, dentro de suas possibilidades, que reconheço limitadas, será uma útil fonte de informações para os biógrafos do meu amigo.
Não é minha intenção fazer crer que as conversas foram registradas literalmente. Não tomei nota sobre o que foi dito nesta ou naquela ocasião, mas tenho boa memória quanto ao que me diz respeito e creio que, embora expressas em minhas próprias palavras, essas conversas representam fielmente o que foi dito. Há pouco declarei nada ter inventado; quero agora modificar essa asserção. Tomei a liberdade, que desde o tempo de Heródoto os historiadores têm tomado, de pôr nos lábios dos meus personagens palavras que eu, pessoalmente, não poderia ter ouvido. Agi pela mesma razão que os fez agir; para dar vida e verossimilhança a cenas que teriam sido incolores se apenas relatadas. Quero ser lido, e creio estar no meu direito quando faço o possível para tornar agradável a leitura do meu livro. O leitor inteligente facilmente perceberá em que ocasiões me vali deste artifício e tem toda a liberdade de rejeitá-lo.
Outro motivo que me fez iniciar esta obra com apreensão foi o fato de eu aqui lidar a maior parte do tempo com americanos. É difícil a gente compreender bem as criaturas e não creio que possamos conhecer ninguém a fundo, a não ser os nossos próprios compatriotas. Pois os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos com que brincaram quando crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que frequentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas coisas fizeram deles o que são, e essas coisas ninguém pode conhecê-las somente por ouvir dizer, e sim se as tiver sentido. Só pode conhecê-las quem é parte delas. E, por não se poder conhecer as pessoas de um país estrangeiro a não ser por observação, é difícil torná-las reais nas páginas de um livro. Mesmo um observador sutil e cuidadoso como Henry James, embora tivesse vivido quarenta anos na Inglaterra, jamais conseguiu criar um inglês que fosse cem por cento inglês. Quanto a mim, a não ser em alguns contos, nunca tentei manejar a não ser os meus próprios compatriotas; e se nas histórias curtas me aventurei à exceção, foi porque nelas o escritor pode tratar os tipos mais sumariamente. Dá ao leitor indicações gerais e deixa por conta dele os detalhes. Possivelmente perguntarão por que motivo, já que transformei Paul Gauguin em inglês, não pude fazer o mesmo com os personagens deste livro. A resposta é simples: não pude. Eles não teriam sido quem são. Não quero dizer que sejam americanos como os americanos veem a si mesmos; são americanos, sob o ponto de vista inglês. Não tentei reproduzir as singularidades do seu modo de falar. A barafunda que fazem os escritores ingleses quando se atiram à empreitada só pode ser comparada à confusão que fazem os escritores americanos quando tentam reproduzir o idioma inglês como é falado na Inglaterra. A gíria é a grande arapuca. Nos seus contos ingleses, Henry James sempre fez uso dela, mas nunca da mesma maneira que os ingleses; assim sendo, em vez de conseguir o desejado efeito coloquial, a maior parte das vezes dá ao leitor inglês um desagradável sobressalto.

 


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2
Aconteceu-me estar em Chicago em 1919, a caminho do Extremo Oriente, pretendendo, por motivos que nada têm com esta história, ali me demorar durante duas ou três semanas. Pouco tempo antes eu publicara um romance que obtivera sucesso; estando, portanto, em evidência, fui entrevistado assim que desembarquei.

No dia seguinte meu telefone tocou. Atendi.

– Quem fala aqui é Elliott Templeton.

– Elliott? Pensei que você estivesse em Paris.

– Não; vim visitar minha irmã. Queremos que você venha almoçar conosco.

– Com muito prazer.

Ele indicou a hora e o endereço.

Meu conhecimento com Elliott datava de quinze anos. Na ocasião em que me telefonou ele devia estar perto dos sessenta anos, homem alto e elegante, de traços agradáveis e espessos cabelos escuros e ondulados, com a nota grisalha apenas suficiente para acentuar a distinção de sua aparência. Ele comprava os acessórios de toalete em Charvet, mas seus ternos, chapéus e sapatos eram de Londres. Tinha em Paris um apartamento na Rive Gauche da elegante Rue St. Guillaume. As pessoas que não o apreciavam diziam que ele era negociante, acusação que o indignava. Elliott tinha gosto e entendia de arte, não se importando de confessar que, em anos idos, quando pela primeira vez se instalara em Paris, dera a ricos colecionadores o favor de sua opinião; e, quando devido às suas relações sociais ouvia falar de algum fidalgo arruinado, inglês ou francês, que estava disposto a vender um bom quadro, ficava satisfeito de poder pô-lo em contato com os diretores de museus americanos que, acontecia ele saber, estavam à procura de uma obra-prima de tal ou tal mestre. Havia na França e na Inglaterra muitas famílias antigas cujas circunstâncias as obrigavam a dispor de uma peça assinada, de Buhl, ou de uma escrivaninha feita pelo próprio Chippendale, se o negócio pudesse ser feito sem alarde, e que gostavam de conhecer um homem de grande cultura e finas maneiras que saberia tratar discretamente do assunto. Supunha-se, naturalmente, que Elliott lucrava com essas transações, mas a boa educação não deixava que se tecessem comentários a respeito. Pessoas pouco generosas afirmavam que em seu apartamento tudo estava à venda e que, depois de ter oferecido a milionários americanos um ótimo almoço, com vinhos velhos, uma ou duas de suas valiosas telas desapareceriam, ou uma cômoda de madeira entalhada seria substituída por uma outra, laqueada. Quando lhe perguntavam por que razão sumira determinada peça, ele muito logicamente explicava que não a achara bem à sua altura e resolvera, portanto, substituí-la por outra de superior qualidade. Acrescentava que era enfadonho estar sempre a ver as mesmas coisas.

– Nous autres américains, nós, americanos, gostamos e variar – dizia ele. – É, ao mesmo tempo, a nossa fraqueza e a nossa força.

Algumas das senhoras americanas residentes em Paris, que se gabavam de saber tudo a respeito de Elliott, diziam que sua família era muito pobre e que, se ele conseguia manter-se no padrão em que vivia, era por ter sido muito hábil. Não sei a quanto montava a sua fortuna, mas o duque de quem era inquilino certamente o fazia pagar muito pelo apartamento que, além do mais, era mobiliado com peças de valor. Havia, nas paredes, desenhos dos grandes mestres franceses, Watteau, Fragonard, Claude Lorraine e outros; tapetes Savonnerie e Aubusson exibiam sua beleza em soalhos de parquete; e na sala de visitas havia um conjunto Luís xv, em petit paint, de tal elegância que poderia ter pertencido, como afirmava ele, a madame Pompadour. Em todo caso, Elliott possuía bastante para viver no estilo que considerava correto para um cavalheiro, sem precisar para isso ganhar dinheiro, e o método que no passado usara para consegui-lo era assunto que, a não ser que se quisesse romper relações com ele, era conveniente evitar. Liberto assim de preocupações materiais, ele se dedicou à paixão máxima de sua vida – relações sociais. Suas transações comerciais com os fidalgos empobrecidos, tanto na França como na Inglaterra, consolidaram a posição que ele conseguira ao chegar à Europa, moço, com cartas de apresentação a pessoas importantes. Sua origem o favorecia aos olhos das titulares americanas a quem vinha recomendado, pois ele pertencia à antiga família da Virgínia, e do lado materno podia reclamar parentesco direto com um dos signatários da Declaração da Independência. Tinha boa aparência, era vivo, dançava bem, atirava regularmente e sobressaía no tênis. Era elemento que valia a pena ter-se em qualquer festa. Ninguém mais pródigo, em se tratando de flores e caixas de bombons. Embora recebesse pouco, quando o fazia era com originalidade que agradava; aquelas ricaças achavam divertido ser convidadas a restaurantes boêmios no Soho ou bistrôs no Quartier Latin. Ele estava sempre pronto a servir e não havia favor, por maçante que fosse, que se lhe pedisse que ele não fizesse com prazer. Esforçava-se bastante por ser agradável a senhoras maduras, e rapidamente se tornava o ami de la maison, o queridinho de muita mansão imponente. Era extrema a sua gentileza; nunca se ofendia por ser convidado à última hora, quando alguém deixava a dona da casa em apuros, e a gente podia colocá-lo ao lado de uma velhota enfadonha, tendo certeza de que seria espirituoso e amável como só ele sabia ser.

Dentro de dois anos, tanto em Londres – para onde ia durante a última parte da temporada, e no princípio do outono para fazer algumas visitas a casas de campo – como em Paris, onde se instalara definitivamente, Elliott conhecia todas as pessoas que era possível a um jovem americano conhecer. As senhoras que o tinham introduzido na sociedade surpreenderam-se ao verificar como se alargara o seu círculo de relações. Os sentimentos dessas senhoras eram confusos. Por um lado, ficaram satisfeitas com o sucesso do seu protégé, e por outro, um tanto despeitadas ao vê-lo em tais termos de intimidade com pessoas com quem elas continuavam a manter relações de absoluta cerimônia. Embora Elliott continuasse a ser obsequioso e serviçal, elas tinham a desagradável impressão de que ele as usara como escada para o seu avanço social.

Desconfiavam que ele fosse esnobe. Claro que o era. Incrivelmente esnobe. Um esnobe sem a menor vergonha. Ele engoliria qualquer afronta, ignoraria qualquer desfeita, toleraria qualquer descortesia para ser convidado a uma festa a que desejasse ir ou para conseguir aproximar-se de alguma rabugenta duquesa-mãe. Neste particular era incansável. Quando fixava o olhar na presa, perseguia-a com a tenacidade do botânico que, para conseguir uma orquídea rara, desafia enchentes, terremotos, febres e nativos hostis. A guerra de 1914 deu-lhe a sua oportunidade decisiva. Logo no início, entrou para o Corpo de Saúde e serviu, primeiro em Flandres, depois em Argonne; voltou ao fim de um ano com uma fita vermelha na lapela e conseguiu um posto na Cruz Vermelha de Paris. Nessa época, já estava em ótima situação financeira e contribuiu generosamente para obras de caridade patrocinadas por pessoas importantes. Com seu fino gosto e dom de organização, estava sempre pronto a trabalhar para qualquer festa de caridade que fosse amplamente anunciada. Ficou sócio de dois dos mais seletos clubes de Paris. Era ce cher Elliott para as maiores damas da França. Finalmente vencera.


3

Quando conheci Elliott, eu era um jovem autor como qualquer outro e ele não me deu a mínima atenção. Ótimo fisionomista, quando nos encontrávamos por acaso aqui ou acolá sempre me apertava cordialmente a mão, sem no entanto manifestar desejo de estreitar relações; e quando eu o via na Ópera, digamos, com uma pessoa da alta-roda, ele dava um jeitinho de não me ver. Mas aconteceu que, pouco depois, tive inesperado sucesso como dramaturgo e não tardei a perceber que Elliott me olhava com mais entusiasmo. Certo dia recebi dele um bilhete, convidando-me para almoçar no Claridge, onde se hospedava quando em Londres. Fui. Grupo pequeno e pouco elegante; pareceu-me que Elliott estava a experimentar-me. Mas dali por diante, já que o meu sucesso me valera muitos amigos novos, comecei a vê-lo mais assiduamente. Pouco depois, no outono, fui passar algumas semanas em Paris e encontrei-o na casa de um amigo comum. Perguntou-me onde eu estava hospedado e dali a dois ou três dias recebi novo convite para almoçar, dessa vez no apartamento; quando cheguei, fiquei surpreendido ao verificar que era reunião muito seleta. Ri intimamente. Percebi que, com o seu perfeito discernimento de coisas sociais, ele compreendera que na sociedade inglesa, como escritor, eu não era pessoa importante, mas que na França, onde um autor tem prestígio só pelo fato de ser autor, o caso mudava de figura. Nos anos seguintes nossas relações se estreitaram, sem no entanto tomar o cunho da amizade. Duvido que Elliott Templeton jamais tenha sido amigo de alguém. Não se interessava pelas pessoas a não ser pela sua posição social. Quando acontecia estar eu em Paris, ou ele em Londres, continuava a chamar-me às suas reuniões, sempre que precisava de um avulso, ou quando era obrigado a convidar americanos em viagem. Alguns destes eram, creio eu, velhos fregueses; outros, desconhecidos que o procuravam com cartas de apresentação. Eram a cruz de sua vida. Elliott achava que devia fazer alguma coisa por eles, não desejando, no entanto, pô-los em contato com seus amigos elegantes. A melhor maneira de se livrar deles era oferecer-lhes um jantar e levá-los depois ao teatro; mas mesmo isso às vezes se tornava difícil, pelo fato de Elliott ter compromissos para todas as noites, num espaço de três semanas, e também por achar que isso não iria satisfazê-los. Já que eu era escritor e, portanto, pessoa sem muita importância, ele não se incomodava de me fazer confidências a respeito.

– O pessoal na América tem tão pouca consideração quando se trata de cartas de apresentação! Não que eu não tenha muito prazer em receber os que me procuram, mas não vejo razão para impingi-los aos meus amigos.

Procurava reparar, mandando-lhes belas cestas de flores e enormes caixas de bombons, mas às vezes isso não bastava. Foi aí que, um tanto ingenuamente, em vista do que me contara, ele me convidou a uma festa que estava organizando.

“Eles desejam imensamente conhecê-lo”, escreveu-me Elliott, para me lisonjear. “A Sra. Fulana de Tal é muito culta e leu todas as suas obras.”

A Sra. Fulana de Tal me diria então que apreciara muitíssimo o meu livro Mr. Perrin e Mr. Trail, felicitando-me pela minha peça The Mollusc. A primeira destas obras foi escrita por Hugh Walpole e a segunda por Hubert Henry Davies.


4

Se dei ao leitor a impressão de que Elliott Templeton era um tipo desprezível, cometi uma injustiça.

Ele era, em primeiro lugar, aquilo que os franceses chamam de serviable, palavra para a qual, pelo que me consta, não existe equivalente na língua inglesa. O dicionário me ensina que serviceable, no sentido de prestadio, obsequioso e amável, é arcaico. Elliott era justamente isto. Generoso, também; embora no princípio de sua carreira provavelmente houvesse cumulado seus conhecidos de flores, doces e presentes movido pelo interesse, continuava a agir da mesma forma quando isso já não era necessário. Sentia prazer em dar. Hospitaleiro, também. Seu cozinheiro não tinha em Paris quem o superasse, e todos podiam estar certos de encontrar à mesa de Elliott as coisas raras de princípio de estação. Seus vinhos indicavam a excelência do seu critério. É verdade que os convidados eram escolhidos mais pela posição social do que pelo encanto pessoal que pudessem ter, mas ele se dava ao trabalho de convidar duas ou três pessoas somente por serem boa companhia, e desta forma suas reuniões eram quase sempre divertidas. Muitos se riam dele pelas costas, chamando-o de esnobe indecente, mas apesar disso aceitavam alegremente os seus convites. O francês de Elliott era correto e fluente, a pronúncia impecável. Esforçara-se ele grandemente para adotar a maneira de falar dos ingleses, e somente uma pessoa de ouvido muito fino perceberia de vez em quando uma entonação americana. Era um conversador agradável, contanto que a gente o mantivesse afastado do assunto de duques e duquesas; mas, mesmo a respeito deles, agora que sua posição era inexpugnável, ele se permitia, principalmente quando a sós com a gente, uma observação espirituosa. Tinha uma língua agradavelmente maliciosa e não havia escândalo sobre esses altos personagens que não lhe chegasse aos ouvidos. Por ele, vim a saber quem era o pai do último filho da princesa X e quem era a amante do marquês de Y. Creio que nem mesmo Marcel Proust conhecia melhor do que Elliott Templeton a vida íntima da aristocracia.

Quando eu estava em Paris, constantemente almoçávamos juntos, às vezes no seu apartamento, outras num restaurante. Gosto de vaguear pelas lojas de antiguidades, ocasionalmente para comprar alguma coisa, mas mais frequentemente só para espiar, e Elliott sempre sentia prazer em acompanhar-me. Era conhecedor e tinha verdadeiro amor aos objetos de arte.

Creio que não havia em Paris, no gênero, loja que ele não conhecesse, parecendo sempre íntimo do proprietário. Adorava pechinchar; quando saíamos, ele me dizia:

– Se quiser comprar alguma coisa, não faça você o negócio. Dê-me uma indicação e deixe o resto por minha conta.

Ficava encantado quando, pela metade do preço, conseguia para mim alguma coisa que me despertara o interesse. Era um gozo vê-lo pechinchar. Discutiria, adularia, perderia a calma, apelaria para os bons sentimentos do vendedor, ridicularizaria-o, apontaria os defeitos do objeto em questão, ameaçaria nunca mais pôr os pés naquela casa, suspiraria, encolheria os ombros, advertiria, ganharia colericamente a porta e finalmente, ao conseguir o desejado, sacudiria a cabeça tristemente, como se aceitasse a derrota com resignação. Depois me diria baixinho, em inglês:

– Leve-o. Pelo dobro do preço ainda seria barato.

Elliott era católico fervoroso. Algum tempo depois de estar vivendo em Paris, ficou conhecendo um padre célebre pelo seu sucesso em atrair ao rebanho hereges e infiéis. O padre gostava muito de jantar fora e era conhecido pela sua vivacidade. Reservava seu consolo espiritual para os ricos e aristocratas. Inevitável, portanto, que Elliott se sentisse atraído por um homem que, embora de origem humilde, era bem-vindo nos lares mais fechados; assim sendo, confessou a uma rica senhora americana, uma das recentes convertidas do padre, que, embora sua família sempre tivesse pertencido à seita episcopal, ele pessoalmente havia muito estava interessado na religião católica. Essa senhora um dia con vidou Elliott para jantar em sua casa, só os três, e o sacerdote brilhou como nunca. A dona da casa puxou a conversa para o catolicismo e o padre exprimiu-se com fervor, mas sem pedantismo, como homem vivido, embora sacerdote, dirigindo-se a outro homem vivido. Elliott ficou lisonjeado ao ver que o padre sabia tudo a seu respeito.

– A duquesa de Vendôme estava falando do senhor, no outro dia. Disse que o acha sumamente inteligente.

Elliott enrubesceu de prazer. Fora apresentado à Sua Alteza Real, mas nunca lhe ocorrera que ela o tivesse notado. O padre discursou sobre a fé, com sabedoria e benevolência; tinha ideias largas, moderno ponto de vista e era tolerante. Fez Elliott sentir que, mais do que qualquer outra coisa, a Igreja era um clube seleto a que um homem fino tinha obrigação de pertencer. Seis meses mais tarde Elliott abraçava a nova fé. Sua conversão, aliada à generosidade de que deu provas em contribuições para obras de caridade católicas, abriu-lhe várias portas que até então lhe tinham estado fechadas.

É possível que fossem confusas as razões que o fizeram abandonar a fé dos seus antepassados, mas não houve dúvida quanto à sua devoção, uma vez que se decidiu àquele passo. Assistia à missa todos os domingos, na igreja frequentada pelo pessoal mais fino, confessava-se regularmente e fazia periódicas visitas a Roma. Com tempo, essa piedade foi recompensada pela sua nomeação para camareiro da corte pontifícia, e a assiduidade com que cumpriu os deveres do ofício mereceu-lhe, creio, a honra de pertencer à Ordem do Santo Sepulcro. Em resumo, sua carreira como católico não foi menos brilhante que sua carreira como homme du monde.

Muitas vezes fiquei cogitando na causa do esnobismo que obcecava aquele homem tão inteligente, tão bom e tão culto. Ele não era nenhum adventício. Seu pai fora presidente de uma das universidades do Sul e seu avô um teólogo de certa importância. Elliott era inteligente demais para não perceber que muitas das pessoas que lhe aceitavam os convites o faziam para ter uma refeição grátis, e que algumas eram tolas e outras completamente sem valor. O fulgor dos títulos sonoros cegava-o aos defeitos daquela gente. Só o que me ocorre é que o fato de estar em termos de intimidade com aqueles cavalheiros de alta linhagem, e de ser o fiel servo de suas damas, lhe dava uma sensação de triunfo nunca diminuída; e creio que atrás de tudo isso havia um incurável romantismo que o fazia ver, no raquítico duquezinho francês, o cruzado que acompanhara S. Luís à Terra Santa; e no fanfarrão conde inglês que ia à caça de raposas, o antepassado que acompanhara Henrique viii à entrevista no Campo do Pano de Ouro. Em companhia de tais pessoas, tinha a impressão de estar vivendo num passado de galanteria e esplendor. Creio que, quando virava as páginas do Almanach de Gotha, seu coração batia tumultuoso, à medida que os nomes sucessivos lhe traziam recordações de antigas pelejas, cercos históricos e duelos célebres, intrigas diplomáticas e amores de reis. Em todo caso, assim era Elliott Templeton.


5

Eu estava me preparando para ir ao almoço a que Elliott me convidara quando da portaria telefonaram que ele me esperava embaixo. Admirei-me, mas desci assim que fiquei pronto.

– Achei mais seguro vir buscá-lo – disse ele ao apertar-me a mão. – Não sei se você conhece bem Chicago.

Tinha a mesma ideia que observei em outros americanos que durante muito tempo residiram fora do seu país, de achar que a América é um lugar difícil e mesmo perigoso, onde o europeu não pode, sem risco, locomover-se sozinho.

– Ainda é cedo; podemos andar parte do caminho – sugeriu ele. O ar estava levemente abafadiço, mas no céu não havia uma única nuvem; era agradável poder espichar as pernas.

– Achei preferível falar-lhe de minha irmã, antes que você lhe seja apresentado – disse-me Elliott enquanto caminhávamos. – Ela hospedou-se comigo uma ou duas vezes em Paris, mas não creio que você estivesse lá na ocasião. Não é uma reunião grande, você sabe. Apenas minha irmã, sua filha Isabel e Gregory Brabazon.

– O decorador? – perguntei.

– Ele mesmo. A casa de minha irmã é pavorosa e Isabel e eu queremos que ela a reforme. Por acaso cheguei a saber, que Gregory se achava em Chicago e fiz com que Louisa o convidasse para almoçar. Ele não é exatamente um cavalheiro, é claro, mas tem gosto. Foi quem decorou o Castelo Raney para Mary Olifant, e St. Clement Talbot para os St. Erth. A duquesa ficou encantada com ele. Você vai ver com seus próprios olhos a casa de Louisa. Não compreendo como pôde ali viver durante todos estes anos! Para ser franco, jamais compreenderei como é que ela pode mesmo viver em Chicago.

Vim a saber que mrs. Bradley era viúva, com três filhos, dois rapazes e uma menina; mas os rapazes eram muito mais velhos e já estavam casados. Um ocupava um posto oficial nas Filipinas e o outro, que a exemplo do pai seguira a carreira diplomática, morava em Buenos Aires. O marido de mrs. Bradley ocupara postos em várias partes do mundo e, depois de ter sido durante alguns anos primeiro-secretário em Roma, fora nomeado ministro para uma das repúblicas da costa ocidental da América do Sul, onde viera a falecer.

– Eu quis então que Louisa vendesse a casa de Chicago – continuou Elliott. – Mas ela não concordou, por razões sentimentais. Há muitos anos que pertence à família Bradley, que é uma das mais antigas de Illinois. Eles vieram da Virgínia em 1839, instalando-se mais ou menos a sessenta milhas do que é hoje Chicago. Ainda são deles, as terras. – Elliott hesitou ligeiramente e olhou-me para ver como eu iria receber suas palavras. – O Bradley que aqui se fixou era o que você com certeza chamaria de fazendeiro. Talvez você não saiba, mas em meados do século passado, quando o Oeste Central começou a ser desvendado, muitos habitantes da Virgínia, filhos mais novos de boas famílias, deixaram seus lares, sucumbindo à atração do desconhecido. O pai do meu cunhado, Chester Bradley, viu que aqui em Chicago havia futuro e entrou para um escritório de advocacia. Em todo caso, ganhou bastante para deixar o filho garantido.

Mais que as palavras de Elliott, sua maneira de falar indicava que talvez não fosse exatamente de bom-tom o falecido Chester Bradley ter abandonado a imponente mansão, e as vastas terras que herdara, para entrar num escritório de advocacia, mas que o fato de ter acumulado grande fortuna era, em parte, uma compensação. Também não ficou lá muito satisfeito quando, em outra ocasião, mrs. Bradley me mostrou alguns instantâneos do que ele chamava a sua “propriedade” no campo e vi uma modesta casa de madeira, com um bonito jardinzinho, mas com celeiro, curral e chiqueiro bem à vista, cercados por áridas planícies. Não pude deixar de refletir que mr. Bradley sabia o que estava fazendo, quando abandonara aquilo para ir ganhar a vida na cidade.

Dali a pouco fizemos sinal a um táxi. Este nos deixou diante de uma casa de pedra marrom, estreita e muito alta; da numa fileira de outras casas, numa rua que saía de Lake Shore Drive, e, mesmo naquela bela manhã de outono, sua aparência era tão insípida que a gente se admirava de que alguém pudesse ter sentimentalismos a seu respeito. A porta foi aberta por um negro alto e forte, de cabelos brancos, que nos fez entrar na sala de visitas. Mrs. Bradley ergueu-se ao ver-nos e Elliott me apresentou a ela. Devia ter sido bonita quando jovem, pois seus traços, embora graúdos, eram benfeitos, e seus olhos, bonitos. Mas o rosto pálido, quase que acintosamente desprovido de pintura, tinha linhas caídas, e evidentemente ela desistira de lutar contra a corpulência da idade madura. Pareceu-me que aceitara de má vontade a derrota, pois se sentava muito tesa na cadeira de espaldar reto, onde, devido à cruel armadura do colete, provavelmente se sentia melhor do que numa cadeira estofada. Usava um vestido azul, com pesados alamares, e a gola alta mantinha-se firme à custa de barbatanas. Bela cabeça; cabelos brancos ondulados a ferro, num penteado muito complicado. O outro convidado ainda não chegara e, enquanto esperávamos, falamos de uma coisa e outra.

– Elliott me contou que o senhor veio pelo Sul – disse mrs. Bradley. – Parou em Roma?

– Sim, passei lá uma semana.

– E como vai indo a boa rainha Margherita?

Um tanto surpreso com a pergunta, respondi que não sabia.

– Oh! não foi vê-la, então? É muito simpática. Foi tão amável conosco quando estivemos em Roma! Mr. Bradley era primeiro-secretário. Por que não foi visitá-la? O senhor não é como Elliott, tão vil que não pode ir ao Quirinal?

– Absolutamente – respondi sorrindo. – A questão é que não a conheço.

– Não conhece? – exclamou mrs. Bradley como se não acreditasse nos seus ouvidos. – Por que não?

– Para lhe falar com franqueza, geralmente os escritores não convivem com reis e rainhas.

– Mas ela é uma mulher tão simpática – disse mrs. Bradley em tom de censura, como se fosse muito malfeito da minha parte não conhecer a augusta personagem. – Tenho certeza que o senhor iria gostar dela.

Neste momento a porta abriu-se e o criado introduziu Gregory Brabazon.

Apesar do seu nome, Gregory Brabazon não era um sujeito romântico. Baixo, muito gordo, completamente calvo, a não ser por um círculo de ondulados cabelos negros na nuca e à volta das orelhas, rosto vermelho, nu, dando a impressão de que a qualquer momento iria cobrir-se de violento suor, vivos olhos cinzentos, lábios sensuais e maxilar pesado. Era inglês, e eu já o vira em festas boêmias, em Londres. Tinha uma voz barulhenta, mãos pequenas e gordas, extraordinariamente expressivas. Com gestos eficazes e uma torrente de palavras animadas ele conseguia excitar a imaginação do freguês hesitante, a ponto de tornar impossível a desistência da encomenda que ele parecia fazer favor em aceitar.

O criado entrou novamente, com uma bandeja de aperitivos.

– Não vamos esperar por Isabel – disse mrs. Bradley, servindo-se de um.

– Onde está ela? – perguntou Elliott.

– Foi jogar golfe com Larry. Preveniu que talvez chegasse atrasada.

Elliott virou-se para mim e explicou:

– Larry é Laurence Darrell. Parece que ele e Isabel estão noivos.

– Não pensei que você tomasse coquetéis, Elliott –comentei.

– Não tomo – disse ele lugubremente, bebericando o que tinha em mão. – Mas, nesta bárbara terra de proibição, que é que se pode fazer? – Suspirou e prosseguiu: – Estão começando a servi-los em algumas casas em Paris. As más relações corrompem as boas maneiras.

– Tolice! – exclamou mrs. Bradley.

Disse isso bastante afavelmente, mas com uma firmeza que indicava uma mulher de opinião e, pelo olhar divertido, mas sagaz, que atirou a Elliott, percebi que não tinha grandes ilusões a seu respeito. Que iria ela pensar de Gregory Brabazon? Eu notara o olhar profissional que o decorador lançara à sala, ao entrar, assim como o involuntário arquear das espessas sobrancelhas. Era realmente uma sala extraordinária. O papel das paredes, o cretone das cortinas e o estofamento da mobília tinham o mesmo desenho; nas paredes, em pesadas molduras douradas, dependuravam-se quadros a óleo, provavelmente trazidos de Roma pelos Bradley. Virgens da escola de Rafael, virgens da escola de Guido Reni, paisagens da escola de Zuccarelli, ruínas da escola de Pannini. Havia troféus da permanência deles em Pequim, mesas de ébano excessivamente entalhadas, enormes vasos cloisonné e também lembranças do Chile e do Peru, obesas figuras de granito e vasos de barro. Vi uma escrivaninha Chippendale e uma vitrina entalhada. Os abajures eram de seda branca e neles algum artista mal inspirado pintara pastores e pastoras em trajes de Watteau. Sala pavorosa e, no entanto, não sei dizer por quê, agradável. Tinha um ar familiar, caseiro; a gente sentia que a incrível mixórdia tinha significação. Todos aqueles incongruentes objetos combinavam uns com os outros porque faziam parte da vida de mrs. Bradley.

Tínhamos acabado nossos aperitivos quando a porta se abriu e entrou uma moça, seguida por um rapaz.

– Estamos atrasados? – perguntou ela. – Trouxe Larry comigo. Há alguma coisa para ele comer?

– Creio que sim – sorriu mrs. Bradley. – Toque a campainha e diga a Eugene que ponha mais um lugar à mesa.

– Já disse a ele. Foi ele quem nos abriu a porta.

– Esta é a minha filha Isabel – apresentou mrs. Bradley, virando-se para mim. – E aqui, Laurence Darrell.

Isabel apertou-me rapidamente a mão e virou-se impulsivamente para Gregory Brabazon.

– O senhor é que é mr. Brabazon? Estava louca por conhecê-lo. Fiquei encantada com o que o senhor fez para Clementine Dormer. Não acha esta sala horrível? Há anos procuro convencer mamãe a reformá-la e agora que o senhor está em Chicago não há melhor oportunidade. Diga-me sinceramente a sua opinião.

Eu sabia que isto seria a última coisa que Brabazon faria. Ele atirou um rápido olhar a mrs. Bradley, mas o rosto impassível nada lhe contou. Viu que Isabel era a pessoa que contava e soltou uma ruidosa gargalhada.

– Não duvido que seja muito confortável e essa história toda – disse ele. – Mas, se quer que eu fale com franqueza, pois bem, acho-a pavorosa.

Isabel era uma moça alta, de rosto oval, nariz reto, olhos bonitos e lábios carnudos, traço este que parecia característico da família. Era bonita, se bem que ligeiramente inclinada à obesidade, o que se podia atribuir à idade; achei que afinaria quando ficasse mais velha. Tinha mãos boas, fortes, embora um pouco gordas; as pernas, que a saia curta deixava bem à mostra, eram também um pouco grossas. Tinha boa pele e o corado natural provavelmente estava agora acentuado pelo exercício e pela viagem de volta, em carro aberto. Era animada e viva. Sua exuberância, sua risonha alegria, o gosto pela vida, a felicidade que havia nela causavam prazer à gente. Sua naturalidade era tão grande que fazia com que Elliott, malgrado a sua elegância, parecesse espalhafatoso. Era tal a sua frescura que a seu lado mrs. Bradley, de rosto enrugado e pálido, parecia velha e cansada.

Descemos para o almoço. Gregory Brabazon piscou os olhos quando viu a sala de jantar. Paredes cobertas por um papel vermelho-escuro, imitando tecido, onde se viam retratos muito pouco artísticos, de mulheres e homens de rosto sombrio e azedo, os antepassados próximos do falecido mr. Bradley. Lá estava ele, também, com um vasto bigode, muito teso, de fraque e colarinho engomado; mrs. Bradley, pintada por um artista francês do fim do século xix, estava dependurada sobre a lareira, num vestido comprido de cetim azul-claro, com um colar de pérolas à volta do pescoço e uma estrela de brilhantes nos cabelos. Com a mão cheia de anéis ela acariciava uma echarpe de renda, tão cuidadosamente pintada que se lhe poderia contar os pontos; com a outra segurava despreocupadamente um leque de penas de avestruz. A mobília, de carvalho preto, era pesada e opressiva,– Que acha o senhor? – perguntou Isabel a Gregory Brabazon, quando nos sentamos.

– Não duvido que tenha custado um dinheirão – respondeu ele.

– E custou mesmo – declarou mrs. Bradley. – Foi-nos dada, como presente de casamento, pelo pai de meu marido. Tem nos acompanhado pelo mundo inteiro. Lisboa, Pequim, Quito, Roma. A boa rainha Margherita admirava-a muito.

– Que faria o senhor com ela, se fosse sua? – perguntou Isabel a Brabazon.

Elliott antecipou-o na resposta.

– Queimava-a.

Começaram os três a discutir a reforma da sala. Elliott inclinava-se para o estilo Luís xv, mas Isabel preferia uma mesa de refeitório com cadeiras italianas. Brabazon achava que Chippendale estava mais de acordo com a personalidade de mrs. Bradley.– Sempre achei isto muito importante – disse ele. – A personalidade de uma pessoa. – E virando-se para Elliott: – O senhor, naturalmente, conhece a duquesa de Olifant?

– Mary? É uma de minhas maiores amigas.

– Ela queria que eu decorasse a sua sala de jantar e, assim que vi a duquesa, declarei: George ii.

– E como acertou! Notei a sala, da última vez que lá jantei. É de um gosto impecável.

E assim continuou a conversa. Mrs. Bradley ouvia, mas não se podia dizer qual a sua opinião. Eu pouco falei; quanto ao namorado de Isabel, Larry – no momento não me lembrei do sobrenome –, não disse nada. Estava sentado do outro lado da mesa, entre Brabazon e Elliott; de vez em quando eu o olhava de relance. Parecia muito moço. Era aproximadamente da altura de Elliott, devendo ter pouco menos de dois metros; magro e despreocupado. Simpático; nem bonito nem feio; um tanto tímido e em nada extraordinário. Despertou o meu interesse porque, embora não tivesse pronunciado meia dúzia de palavras desde que entrara, parecia perfeitamente à vontade e, estranhamente, dava a impressão de participar da conversa mesmo sem abrir a boca. Notei-lhe as mãos. Longas, mas não grandes demais para o seu tamanho, de belo formato e ao mesmo tempo fortes. Ocorreu-me que um artista teria prazer em pintá-las. Era miúdo, sem parecer frágil; pelo contrário, eu antes o diria vigoroso e resistente. Seu rosto, grave quando em repouso, estava bem queimado; a não ser por isso, quase não tinha cor; suas feições, embora regulares, não chamavam atenção. Maçãs do rosto salientes, têmporas entradas. Cabelos de um castanhoescuro levemente ondulados. Os olhos pareciam maiores do que realmente eram, por estarem plantados profundamente nas órbitas; pestanas grossas e longas. Olhos singulares, não do castanho rico que era o tom dos de Isabel, de sua mãe e de Elliott, mas tão escuros que a íris se confundia com a pupila, dando-lhes estranha penetração. Larry tinha uma graça natural, muito atraente, e achei compreensível Isabel estar caída por ele. De vez em quando o olhar dela pousava no rapaz por um momento e julguei nele distinguir não somente amor, mas afeição.


Os olhos de ambos se encontraram e havia nos de Larry uma ternura bela de se ver. Nada mais comovente que o espetáculo de um amor moço, e eu, homem de meiaidade naquele tempo, invejei-os, mas, ao mesmo tempo, não sei por quê, não pude deixar de ter pena deles. Tolice da minha parte, pois, ao que me parecia, não havia empecilho à sua felicidade; as circunstâncias eram favoráveis e não existia razão para que não se casassem e vivessem felizes dali por diante.

Isabel, Elliott e Gregory Brabazon continuavam falando da redecoração da casa, procurando forçar mrs. Bradley a, pelo menos, reconhecer que se devia fazer alguma coisa; mas esta apenas sorria amavelmente.

– Não procurem me afobar. Quero ter tempo para refletir. – E virando-se para o rapaz: – Que acha você de tudo isso, Larry?

Ele passeou um olhar sorridente pela mesa e disse:

– Creio que tanto faz de um jeito ou de outro.

– Oh! Larry, “sua” peste! – exclamou Isabel. – Depois de eu tanto lhe ter recomendado que nos apoiasse!

– Se a tia Louisa está satisfeita com o que tem, para que fazer modificações?

A observação era tão lógica e sensata que desatei a rir. Ele olhou-me e sorriu.

– E não sorria deste jeito só porque fez uma observação idiota – disse Isabel.

Mas ele apenas alargou o sorriso e notei então que seus dentes eram pequenos, brancos e regulares. Qualquer coisa no olhar que ele lançou a Isabel fez com que ela enrubescesse e ficasse de respiração suspensa. A não ser que eu me enganasse redondamente, ela estava loucamente apaixonada por ele; mas, não sei por quê, tive a impressão de que no seu amor havia também algo de maternal. Estranhável, em criatura tão moça. Com um sorriso doce nos lábios ela dedicou de novo sua atenção a Gregory Brabazon.

– Não dê confiança a Larry. É muito tolo e completamente ignorante. Não entende de coisa alguma, a não ser de aviação.

– Aviação? – perguntei.

– Ele foi aviador na guerra.

– Pensei que fosse muito moço para ter estado na guerra.

– E era. Moço demais. Ele comportou-se muito mal. Fugiu da escola e foi para o Canadá. Mentindo a torto e a direito, conseguiu convencê-los de que tinha dezoito anos e entrou para a aviação. Estava lutando na França na ocasião do armistício.

– Você está chateando os convidados de sua mãe, Isabel – disse Larry.

– Conheço-o desde menino; quando voltou, estava um amor de farda, com todas aquelas fitas bonitas na túnica, de modo que fiquei plantada à soleira de sua porta – em sentido figurado – até que, para ter um pouco de sossego, ele concordou em casar comigo! A concorrência era enorme.

– Francamente, Isabel – admoestou sua mãe. Larry inclinou-se para mim.

– Espero que não acredite em uma palavra do que ela diz. Isabel não é má pessoa, mas é mentirosa.

Terminou-se o almoço e logo depois Elliott e eu saímos. Eu lhe contara que ia ver os quadros no museu e ele disse que me levaria. Ir a museus acompanhado é coisa que não me agrada, mas eu não podia dizer que preferia ir sozinho e, portanto, aceitei-lhe o oferecimento. No caminho falamos de Isabel e Larry.

– É um prazer a gente ver duas criaturas tão jovens assim apaixonadas uma pela outra – disse eu.

– São moços demais para se casar.

– Por quê? É tão divertido ser moço, amar e casar.

– Não seja ridículo. Ela tem dezenove anos e Larry apenas vinte. Ele está desempregado. Tem uma rendazinha, só três mil dólares anuais, a julgar pelo que me contou Louisa, e Louisa não é nenhuma milionária. Precisa do que tem para viver.

– Bom, ele pode arranjar emprego.

– É justamente essa a questão. Ele não se esforça. Parece muito satisfeito de não fazer nada.

– Provavelmente passou uma temporada dura na guerra. Talvez queira descansar.

– Há um ano que está descansando. É mais do que suficiente.

– Pareceu-me um bom rapaz.

– Oh! nada tenho contra ele. É de muito boa família, e essa história toda. Seu pai era de Baltimore. Foi, em Yale, assistente de professor de línguas neolatinas, ou coisa que o valha. Sua mãe era de Filadélfia, da velha raça dos Quaker.

– Você fala deles no passado. Morreram?

– Sim; a mãe morreu de parto e o pai há mais ou menos doze anos. Larry foi educado por um velho colega do pai, um médico de Marvin. Foi assim que Louisa e Isabel o conheceram.

– Onde fica Marvin?

– É onde os Bradley têm a sua propriedade. Louisa costuma ali passar o verão. Ela ficou com pena do menino. O dr. Nelson é solteiro e não entendia patavina da educação de uma criança. Foi Louisa quem insistiu para que Larry fosse mandado para St. Paul, e sempre o convidou à sua casa para as férias de Natal. – Elliott encolheu os ombros em gesto bem gaulês e continuou: – Ela devia ter previsto o inevitável resultado.

Tínhamos chegado ao museu e concentramos nossa atenção nos quadros. Mais uma vez fiquei impressionado com o conhecimento e bom gosto de Elliott. Conduzia-me pelas salas como se eu fosse um grupo de turistas, e nenhum professor de arte teria sabido instruir melhor do que ele. Conformei-me, tomando a resolução de voltar sozinho quando pudesse andar a esmo e distrair-me à vontade; depois de algum tempo ele consultou o relógio.

– Vamos indo – disse-me. – Nunca passo mais de uma hora numa galeria de arte; é o máximo a que resiste o nosso poder de apreciação. Voltaremos um outro dia.

Agradeci-lhe calorosamente quando nos separamos. Segui o meu caminho, indubitavelmente mais esclarecido, mas de humor bem mais azedo.

Ao despedir-se de mim, mrs. Bradley me dissera que no dia seguinte Isabel receberia alguns amiguinhos para jantar, pois iriam todos a uma festa; se eu quisesse vir também, depois que eles partissem Elliott e eu poderíamos conversar à vontade.– É um favor que o senhor lhe faz – acrescentou ela. – Elliott viveu fora tanto tempo, que se sente um pouco desambientado aqui. Parece que não encontra ninguém com quem tenha afinidade.

Aceitei e, antes de nos despedirmos nos degraus do museu, Elliott me disse que isso lhe causara prazer.

– Sou uma alma perdida nesta vasta cidade – declarou. – Prometi a Louisa que passaria seis semanas com ela, pois não nos víamos desde 1912, mas estou contando os dias até a minha volta para Paris. É o único lugar do mundo onde um homem civilizado pode viver. Caro amigo, sabe como me olham nestas bandas? Consideram-me uma aberração. Selvagens!

Ri-me e deixei-o.


6

Na noite seguinte, tendo recusado o oferecimento de Elliott de vir buscar-me, cheguei sem risco à casa de mrs. Bradley. Eu fora detido por uma pessoa que viera ver-me e cheguei um pouco atrasado. Quando subi a escada, ouvi tanto barulho vindo da sala de visitas que julguei tratar-se de uma reunião importante; admirei-me ao verificar que éramos, eu inclusive, apenas doze pessoas. Mrs. Bradley estava muito imponente, de vestido de cetim verde e colar de aljôfares em volta do pescoço; e Elliott, no seu bem talhado dinner jacket, apresentava-se elegante como só ele sabia ser. Quando me apertou a mão, todos os perfumes da Arábia penetraram-me pelas narinas. Fui apresentado a um homem troncudo e alto, de rosto vermelho, que não parecia muito à vontade em traje de rigor. Era um tal dr. Nelson, mas naquele momento o nome não me disse nada. O resto do grupo compunha-se de amigos de Isabel, mas os nomes me escaparam assim que os ouvi. As mulheres eram moças e bonitas, os homens, moços e simpáticos. Nenhum deles me impressionou, a não ser talvez um rapaz – e isso por ser ele muito alto e maciço. Devia ter mais de dois metros de altura; ombros largos e fortes. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda branca, de saia comprida que lhe escondia as pernas gordas: o talho do vestido deixava adivinhar que tinha seios bem desenvolvidos; os braços talvez fossem um pouco rechonchudos, mas o pescoço era lindo. Estava animada e de olhos luzentes. Não havia dúvida: era uma rapariga muito bonita e desejável, mas, se não abrisse os olhos, acabaria adquirindo uma corpulência pouco atraente.

À mesa do jantar vi-me entre mrs. Bradley e uma mocinha desenxabida e tímida, que parecia ainda mais jovem do que as outras. Quando tomamos os nossos lugares, para facilitar a conversa mrs. Bradley explicou-me que os avós da minha vizinha moravam em Marvin, e que ela e Isabel haviam sido colegas de escola. Seu nome, o único que guardei, era Sophie. Durante o jantar houve muita brincadeira de um lado ao outro da mesa; todos falavam alto e riam à toa. Pareciam íntimos. Quando minha atenção não estava voltada para a dona da casa, procurei puxar prosa com a minha vizinha, embora sem grande resultado. Era mais quieta que os outros. Não se podia dizer que fosse bonita, mas tinha um rosto engraçado, de narizinho arrebitado, boca larga e olhos de um azul-esverdeado; seu cabelo, penteado com simplicidade, era de um castanho-pálido. Muito magra, com peito quase tão chato como o de um rapaz. Ria das brincadeiras que iam pela mesa, mas de maneira um pouco forçada, como se não achasse tanta graça como queria dar a entender. Pareceu-me que estava fazendo um esforço para se mostrar boa companheira. Não consegui descobrir se era um pouco tola ou apenas muito tímida e, depois de ter tentado inutilmente vários tópicos, por falta de coisa melhor pedi-lhe que me explicasse quem eram os outros convidados.

– Pois bem, o dr. Nelson o senhor conhece – disse-me, indicando o homem maduro que estava à minha frente, do outro lado de mrs. Bradley. – É tutor de Larry e nosso médico em Marvin. Muito inteligente; inventa bugigangas para aviões, de que ninguém quer saber; e, quando não está assim ocupado, bebe.

Ao dizer isso, havia nos seus olhos pálidos um brilho que me fez supor que eu me enganara a seu respeito. Continuou a dizer-me os nomes de toda aquela mocidade, quem eram seus pais e, no caso dos rapazes, que colégio haviam frequentado e em que negócio trabalhavam. Nada de muito esclarecedor.

“Ela é um amor”; ou então, “Ele joga muito bem golfe”.

– E quem é aquele grandalhão de sobrancelhas cerradas?

– Quem?... Oh! aquele é Gray Maturin. Seu pai tem uma casa enorme em Marvin, à beira do rio. É o nosso milionário. Temos muito orgulho dele; dá-nos importância. Maturin, Hobbes, Rayner e Smith. É um dos homens mais ricos de Chicago e Gray é seu único filho.

A lista de nomes fora recitada com tão agradável ironia que lancei a Sophie um olhar indagador. Ela notou-o e corou.

– Conte-me mais alguma coisa de mr. Maturin – pedi.

– Não há nada para contar. É rico. Muito respeitado. Deu a Marvin uma nova igreja, e um milhão de dólares à Universidade de Chicago.

– O filho é um rapagão bonito.

– É correto. Ninguém havia de pensar que seu avô foi um irlandês sem eira nem beira, e sua avó uma garçonete sueca num restaurante qualquer.

Gray Maturin era mais vistoso do que bonito. Tinha um ar rude, inacabado; nariz curto e chato, boca sensual e a pele corada dos irlandeses; grande quantidade de cabelos negros, bem lisos, olhos muito azuis sob as cerradas sobrancelhas. Embora de compleição tão robusta, era muito bem proporcionado e, nu, devia ser um belo tipo de homem. Parecia ter muita força. Sua virilidade era impressionante. Fazia com que Larry, que estava sentado ao seu lado e tinha somente oito ou dez centímetros menos que ele, parecesse insignificante.

– Gray é muito apreciado – disse a minha tímida vizinha. – Conheço várias moças que dariam a vida para agarrá-lo. Mas não têm a mínima probabilidade.

– Por que não?

– O senhor não sabe nada, sabe?

– Como poderia eu saber?

– Ele está cego de paixão por Isabel, e Isabel gosta de Larry.

– Por que é que ele não tenta suplantar o rival?

– Larry é o seu maior amigo.

– Creio que isto complica o caso.

– Sim, quando se têm os elevados princípios de Gray.

Não sei se ela disse isto seriamente, ou se havia na sua voz uma nota de zombaria. Na sua atitude nada havia de impertinente, confiado ou petulante, e, no entanto, tive impressão de que não lhe faltavam nem espírito nem perspicácia. Em que estaria pensando enquanto conversava comigo? Bom, isto eu nunca chegaria a saber. Não havia dúvida de que ela não era senhora de si e ocorreu-me que devia ser filha única, tendo levado vida isolada, em companhia de pessoas muito mais velhas. Havia nela uma modéstia, uma discrição que achei encantadoras; mas, se eu acertara ao imaginar que vivera sozinha, então achei que devia ter tranquilamente observado as pessoas com quem convivia, formando opinião categórica a respeito delas. Nós, de idade madura, raramente suspeitamos com que crueldade, e ao mesmo tempo com que clarividência, os muito moços nos julgam. Olhei de novo dentro daqueles olhos esverdeados.

– Que idade tem você? – perguntei.

– Dezessete.

– Lê muito? – indaguei ao acaso.

Mas, antes que ela me respondesse, mrs. Bradley atraiu minha atenção com uma observação qualquer; logo depois terminou o jantar. Os moços saíram imediatamente para onde tinham que ir; quanto a nós, os quatro restantes, subimos para a sala de visitas.

Fiquei admirado de ter sido convidado para aquela reunião, ao ver que após alguma conversa fiada eles encetaram um assunto que, imaginei, haviam de preferir discutir sozinhos. Fiquei sem saber se seria mais discreto levantar-me e sair ou se, como ouvinte desinteressado, eu lhes seria útil. O ponto discutido era a estranha má vontade de Larry em começar a trabalhar, e que agora vinha à baila devido a um emprego que mr. Maturin, pai do rapaz que eu conhecera ao jantar, lhe oferecera em seu escritório. Era uma bela oportunidade. Com habilidade e perseverança Larry poderia, com o tempo, vir a ganhar muito dinheiro. O jovem Gray Maturin desejava ardentemente que ele aceitasse.

Não me recordo de tudo o que foi dito, mas minha memória reteve o essencial. Quando Larry voltara da França, o dr. Nelson, seu tutor, sugerira que ele fosse para a escola; mas o rapaz recusara. Era natural que desejasse ficar na ociosidade durante algum tempo; passara uma temporada dura, na guerra, e duas vezes recebera ferimentos, embora sem gravidade. O dr. Nelson achava que ele ainda estava sofrendo as consequências do choque, e o descanso parecia indicado até ele ficar completamente restabelecido. Mas as semanas se converteram em meses; já fazia agora mais de um ano que ele despira a farda. Fiquei sabendo que sobressaíra na aviação, tendo ficado em evidência ao voltar para Chicago; assim sendo, vários chefes de firmas lhe tinham oferecido emprego. Larry agradecera, mas recusara. Não deu desculpa, a não ser que ainda não sabia o que queria fazer. Pouco depois ficava noivo de Isabel. Isto não causou surpresa a mrs. Bradley, pois os dois tinham sido inseparáveis durante anos e ela sabia da paixão da filha por Larry. Gostava do rapaz e achava que ele poderia fazer Isabel feliz.

– O caráter dela é mais forte que o dele. Isabel lhe dará exatamente aquilo que lhe falta.

Embora fossem tão moços, mrs. Bradley não se opunha a um casamento imediato, contanto que Larry começasse a trabalhar. Ele tinha um dinheirinho seu; mas, mesmo que tivesse dez vezes mais, ela não cederia nesse ponto. Pelo que pude perceber, ela e Elliott desejavam saber do dr. Nelson quais as intenções de Larry. Queriam que ele usasse sua influência para obrigá-lo a aceitar o emprego que mr. Maturin lhe oferecia.

– Vocês sabem que nunca tive muita autoridade sobre Larry – alegou o médico. – Mesmo quando criança ele sempre fez o que quis.

– Sei disso. Você lhe deu liberdade demais. É um milagre ele ter saído tão bom como é – disse mrs. Bradley.

O dr. Nelson, que estivera bebendo sem cessar, olhou-a com azedume. Seu rosto tornou-se ainda mais rubro.

– Eu era muito ocupado; tinha que cuidar dos meus interesses. Recebi-o porque ele não tinha para onde ir e seu pai era meu amigo. Não era fácil lidar com ele.

– Não sei como você pode dizer isso – replicou secamente mrs. Bradley. – Larry tem um gênio ótimo.

– Que é que a gente pode fazer com um menino que nunca discute, mas faz exatamente o que quer e, quando é repreendido, apenas diz que “sente muito” e deixa que a gente esbraveje à vontade? Se fosse meu filho, eu poderia ter-lhe batido. Mas eu não podia dar num menino que não tinha um único parente no mundo e cujo pai o deixara a meus cuidados por achar que eu seria bom para ele.

– Isto não vem ao caso – disse Elliott um tanto irritado. – A questão é esta: ele já vadiou bastante; agora lhe aparece um bom emprego, onde terá oportunidade de ganhar muito dinheiro; se quiser casar-se com Isabel, terá que aceitá-lo.

– Larry precisa ver que, no estado do mundo atual, um homem tem que trabalhar – interveio mrs. Bradley.

– Ele está agora em perfeitas condições físicas. Todos nós sabemos que, terminada a guerra entre os estados, muitos homens nunca mais trabalharam depois que voltaram para casa. Eram um fardo para a família e inúteis à comunidade.

Neste momento entrei na conversa.

– Mas que razão apresenta ele para recusar as várias ofertas que lhe têm sido feitas?

– Nenhuma; a não ser que não lhe agradam.

– Mas ele não quer fazer nada?

– É o que parece.

O dr. Nelson serviu-se de outro uísque. Tomou um longo trago e depois olhou para os seus dois amigos.

– Querem saber qual a minha impressão? Não digo que eu seja grande conhecedor da natureza humana, mas, em todo caso, depois de ter clinicado durante trinta anos, creio entender um pouco do assunto. A guerra teve um efeito qualquer sobre Larry. Ele não voltou o mesmo. Não que esteja somente mais velho; aconteceu alguma coisa que modificou a sua personalidade.

– Que espécie de coisa? – indaguei.

– Não sei dizer. Ele é muito reservado quanto às suas peripécias na guerra. – O dr. Nelson virou-se para mrs. Bradley e perguntou: – Falou alguma vez sobre isso com você, Louisa?

Ela sacudiu a cabeça.

– Não. Logo que chegou, tentamos ver se nos descrevia algumas das suas aventuras, mas ele apenas riu daquele seu jeito e disse que nada tinha para contar. Não falou sobre isso nem mesmo com Isabel. Ela tentou várias vezes, mas não lhe arrancou palavra.

A conversa continuou desta maneira pouco satisfatória e dali a pouco, consultando o seu relógio, o dr. Nelson declarou que tinha que ir embora. Fiz menção de sair com ele, mas Elliott insistiu para que eu ficasse. Depois que o importunado com seus negócios particulares, dizendo que receava que eu estivesse me chateando.

– Mas o senhor compreende que isto me preocupa enormemente – terminou ela.

– Mr. Maugham é muito discreto, Louisa; você não precisa ter medo de confiar nele. Não creio que Bob Nelson e Larry sejam muito íntimos, e há certas coisas que Louisa e eu achamos preferível não falar na presença dele.

– Elliott!

– Você já lhe contou tanta coisa que é melhor contar-lhe o resto. – E virando-se para mim: – Não sei se você notou Gray Maturin ao jantar?

– É tão grande que não pode passar despercebido – respondi.

– É um dos apaixonados de Isabel. Cumulou-a de atenções durante toda a ausência de Larry. Ela gosta dele e, se a guerra se tivesse prolongado, é bem provável que acabassem noivos. Gray pediu-a em casamento. Isabel não aceitou, nem recusou. Louisa desconfiou que ela não queria decidir-se antes da volta de Larry.

– Como é que ele não foi para a guerra? – perguntei.

– Ele forçou o coração jogando futebol. Nada de sério, mas não foi aceito. Em todo caso, depois que Larry voltou, não houve mais esperanças para ele. Isabel deu-lhe um fora definitivo.

Eu não sabia que comentário esperavam que eu fizesse e, portanto, preferi calar-me. Elliott continuou a falar. Com sua distinta aparência e pronúncia oxfordiana, ele mais parecia um alto funcionário do Ministério da Guerra.

– Claro que Larry é um ótimo rapaz, e foi muito correto da sua parte fazer tanto empenho em se alistar, mas sou profundo conhecedor do gênero humano... – Aqui Elliott teve um sorrizinho astuto e ousou a única referência que jamais lhe ouvi ao fato de ter feito fortuna negociando com objetos de arte. – Do contrário eu não teria hoje uma boa quantiazinha em ações do governo. E minha opinião é que Larry nunca chegará a ser alguém. Não tem dinheiro, por assim dizer, nem posição. Agora, com Gray Maturin o caso é outro. Ele tem um bom e antigo nome irlandês. Houve um bispo na família, um dramaturgo, vários militares que se distinguiram e alguns intelectuais.

– Como é que você chegou a saber de tudo isto? – perguntei.

– São coisas que a gente fica sabendo – respondeu ele em tom despreocupado. – Para ser exato, estive dando uma olhada no Dictionary of National Biography, um dia desses, no clube, e dei com o nome por acaso.

Achei que não era da minha conta repetir o que a minha vizinha, ao jantar, me contara do irlandês sem eira nem beira e da garçonete sueca que tinham sido avós de Gray. Elliott prosseguiu:

– Há anos que conhecemos Henry Maturin. É um homem muito direito e muito rico. Gray vai herdar o melhor escritório de corretagens de Chicago. Tem o mundo a seus pés. Quer casar-se com Isabel e não se pode negar que, para ela, seria um ótimo casamento. Sou francamente favorável a ele, e Louisa concorda comigo.

– Você esteve tanto tempo fora da América, Elliott, que se esqueceu de que neste país as moças não se casam só para satisfazer suas mães e tios – disse mrs. Bradley com um sorriso árido.

– Isto não é motivo de orgulho, Louisa – replicou Elliott bruscamente. – Graças a uma experiência de trinta anos, posso asseverar-lhe que o casamento que é considerado sob o ponto de vista de posição, fortuna e igualdade de meio leva vantagem sobre o casamento de amor. Na França, que afinal de contas é o único país civilizado do mundo, Isabel não hesitaria em casar-se com Gray; ao fim de um ou dois anos, se a tal se sentisse inclinada, tornar-se-ia amante de Larry; Gray instalaria uma atriz de fama num luxuoso apartamento, e todos ficariam satisfeitos.

Mrs. Bradley não era nenhuma tola. Fitou o irmão com ar de brejeira ironia e replicou:

– A questão, Elliott, é que, como as companhias teatrais de Nova York só ficam aqui durante certo tempo, Gray não poderia conservar as inquilinas do seu luxuoso apartamento a não ser por prazo limitado. Isto seria, certamente, um inconveniente para todos os interessados.

Elliott sorriu.

– Gray poderia comprar uma cadeira na Bolsa de Nova York. Afinal de contas, se uma pessoa tem que viver na América, não vejo razão para viver noutro lugar a não ser em Nova York.

Saí logo depois; mas antes, não sei por que cargas-d’água, Elliott me perguntou se eu queria almoçar com ele para ficar conhecendo os Maturin, pai e filho. – Henry é o melhor tipo do negociante americano

– disse ele. – Você precisa conhecê-lo. É quem há anos aplica o nosso dinheiro.

Eu não tinha muita vontade de aceitar, mas, faltando-me motivo para a recusa, respondi que iria com prazer.


7

Eu fora admitido, pela minha permanência em Chicago, como sócio temporário de um clube que contava com uma boa biblioteca; na manhã seguinte fui até lá dar uma espiada numa ou duas revistas universitárias, que quem não é assinante sempre tem dificuldade em obter. Era cedo e lá só havia mais uma pessoa, sentada numa vasta poltrona de couro e parecendo absorta na leitura. Foi com surpresa que reconheci Larry. Era a última pessoa que eu esperaria encontrar em tal lugar. Ergueu os olhos quando passei por ele, reconheceu-me e fez menção de se levantar.

– Não se incomode – disse eu. E depois, quase que automaticamente: – Que está lendo?

– Um livro – replicou ele, mas com um sorriso tão simpático que a secura da resposta não podia absolutamente melindrar.

Fechou o livro e, fitando-me com aqueles seus olhos singularmente opacos, segurou-o de modo a não me deixar ver o título.

– Divertiu-se ontem à noite? – perguntei.

– Muitíssimo. Cheguei em casa às cinco da manhã.

– É uma façanha estar aqui tão cedo.

– Venho muito aqui. Em geral a esta hora tenho a sala à minha disposição.

– Eu não o incomodarei.

– O senhor não me está incomodando – disse ele, sorrindo de novo; ocorreu-me então que o seu sorriso era de uma extraordinária doçura. Não animado, nem vivo; era um sorriso que parecia iluminar-lhe o rosto com alguma luz interior. Ele estava sentado numa alcova formada por prateleiras salientes. Apoiou a mão no braço da poltrona a seu lado e prosseguiu: – Não quer sentar-se um pouco?

– Está certo.

Larry entregou-me o livro que segurava.

– Era isto que eu estava lendo.

Vi que se tratava de Principles of Psychology, de William James. É, naturalmente, uma obra clássica, e importante na história da ciência de que se ocupa; de agradável leitura, além do mais, mas não era absolutamente o tipo de livro que eu esperaria ver nas mãos de pessoa tão jovem, um aviador, que estivera dançando até as cinco da manhã.

– Por que está lendo isto? – perguntei.

– Sou muito ignorante.

– É também muito moço – repliquei sorrindo.

Larry ficou calado durante tanto tempo que comecei a achar o silêncio constrangedor e estive a ponto de me levantar para ir à procura das revistas que tinham me levado ali. Mas dominava-me a impressão de que ele queria dizer alguma coisa. Tinha o olhar perdido no espaço, seu rosto era grave e atento e ele parecia meditar. Esperei. Estava curioso por saber do que se tratava. Quando ele falou, foi como se continuasse a conversa, não parecendo ter notado o prolongado silêncio.

– Quando voltei da França, queriam todos que eu fosse para o colégio. Impossível. Depois de tudo por que passei, compreendi que não poderia voltar para a escola. Além do mais, eu pouco aprendera na escola preparatória. Senti que não me convinha a vida de calouro. Eles não teriam gostado de mim. Eu não queria fingir aquilo que não sentia. E não achei que os professores pudessem ensinar-me as coisas que eu desejava conhecer.

– Naturalmente reconheço que isto não é de minha conta, mas não sei se você teve razão – disse eu. – Creio que compreendo o que quer dizer e acho que, depois de dois anos de guerra, teria realmente sido aborrecido voltar a ser pouco mais que um colegial, pois todo primeiro e segundanista não passa disto. Não posso acreditar que eles não teriam gostado de você. Não conheço bem as universidades daqui, mas duvido que os estudantes americanos sejam muito diferentes dos ingleses; talvez um pouco mais barulhentos e mais brincalhões, mas no fundo muito corretos e sensatos; e ouvi dizer que, se um colega não quer levar a vida deles, estão plenamente de acordo, se esse colega tiver um pouco de tato, em deixá-lo seguir seu caminho. Não estive em Cambridge, como meus irmãos. Tive essa oportunidade, mas desprezei-a; eu queria correr mundo. Até hoje me arrependo. Creio que isso me teria evitado muitos erros. A gente aprende mais depressa sob a orientação de professores experientes. Perdemos muito tempo enveredando por becos sem saída, quando não temos ninguém que nos conduza.

– Talvez o senhor tenha razão. Mas não me importo de errar. É possível que num desses becos sem saída eu encontre alguma coisa do que procuro.

– O que é que você procura?

Ele hesitou durante alguns segundos.

– Aí está. Ainda não sei ao certo.

Fiquei em silêncio, pois não parecia haver resposta para isso.

Eu, que desde muito cedo sempre soube o que quis, senti-me ligeiramente impacientado. Mas dominei-me, pois, devido ao que só posso chamar de intuição, senti que na alma daquele rapaz se travava uma luta obscura – não sei se de pensamentos mal esboçados ou emoções confusamente sentidas – que determinava uma inquietação que o impelia nem ele mesmo sabia para onde. Senti-me estranhamente condoído dele. Nunca o ouvira falar muito, e só agora notava como a sua voz era melodiosa. Muito convincente. Como se fosse um bálsamo. Ao considerar essa sua qualidade, o sorriso simpático e os expressivos olhos negros, achei perfeitamente compreensível que Isabel o amasse. Havia realmente nele qualquer coisa que atraía. Larry virou a cabeça e olhou-me sem constrangimento, mas com expressão ao mesmo tempo perscrutadora e divertida.

– Será que tenho razão ao imaginar que ontem, depois que saímos para a festa, ficaram falando de mim?

– Durante algum tempo.

– Achei que foi por isso que insistiram tanto para que o tio Bob fosse jantar. Ele detesta sair de casa.

– Ouvi dizer que você teve oferta de um bom emprego.

– Ótimo.

– Vai aceitá-lo?

– Acho que não.

– Por quê?

– Não tenho vontade.

Eu estava me metendo no que não era da minha conta, mas tive a impressão de que, justamente pelo fato de eu ser um desconhecido, e de um país estrangeiro, Larry não tinha má vontade em discutir o caso comigo.

– Bom, você sabe que, quando uma pessoa não consegue fazer nada, vira escritor – disse eu com uma risadinha.

– Não tenho talento.

– Mas, então, que pretende fazer?

Ele me atirou um dos seus sorrisos radiosos, fascinantes.

– Vadiar – respondeu. Não pude deixar de rir.

– Não me consta que Chicago seja o melhor lugar para isso – repliquei. – Em todo caso, deixo-o à sua leitura. Quero dar uma olhada na Yale Quarterly.

Levantei-me. Quando saí da biblioteca, Larry ainda estava absorto no livro de William James. Almocei sozinho no clube e, como a biblioteca era lugar sossegado, fui para lá fumar o meu charuto e distrair-me por uma ou duas horas, lendo e escrevendo cartas. Fiquei admirado por ver Larry ainda mergulhado na leitura. Pareceu-me que não se movera desde que eu o deixara. Quando saí, às quatro horas, ainda lá estava. Fiquei impressionado com o seu poder de concentração. Ele não me vira entrar ou sair. Tendo muito que fazer durante a tarde, não voltei ao Blackstone senão à hora de me vestir para ir a um jantar a que fora convidado. No caminho tive um acesso de curiosidade. Entrei de novo no clube e fui até a biblioteca. Havia ali, agora, muita gente, lendo jornais e outras coisas. Larry continuava na mesma cadeira, atento no mesmo livro. Esquisito!


8

No dia seguinte Elliott me convidou para almoçar no Palmer House, para encontrar-me com o velho Maturin e seu filho. Éramos somente quatro. Henry Maturin era um homem quase tão grande como seu filho, com um carnudo rosto vermelho e maxilar pesado; tinha o mesmo nariz chato, agressivo, mas seus olhos eram menores que os de Gray, não tão azuis, e extraordinariamente sagazes. Embora não pudesse ter mais de cinquenta anos, parecia ter dez anos mais; seus cabelos, que rapidamente se aproximavam da calvície, eram brancos como a neve. À primeira vista não era simpático. Dava a impressão de ter durante anos vivido bem demais, e pareceu-me um sujeito brutal, inteligente e competente e que, pelo menos em matéria de negócios, devia ser implacável.

A princípio ele pouco falou e ocorreu-me que estava tomando o meu pulso. Não pude deixar de perceber que não levava Elliott muito a sério. Gray, amável e delicado, ficou quase que em completo silêncio e a reunião teria sido um fracasso se, com seu incomparável tato social, Elliott não tivesse mantido uma conversa fácil e agradável. Achei que, em outros tempos, ele devia ter adquirido certa experiência lidando com negociantes do Oeste Central, que necessitavam de persuasão para pagar um preço exorbitante por alguma obra de arte. Dali a pouco mr. Maturin começou a sentir-se mais à vontade, tendo feito uma ou duas observações que indicavam que ele era mais vivo do que parecia e tinha mesmo um árido senso do humor. Durante algum tempo a conversa girou sobre títulos e ações. Eu teria ficado admirado por ver como Elliott entendia do assunto, se há muito já não tivesse percebido que, apesar de todas as suas bobices, ele não era nenhum tolo. Foi aí que mr. Maturin observou:

– Recebi hoje uma carta do amigo de Gray, Larry Darrell.

– Você não me contou nada, papai – disse Gray. Mr. Maturin voltou-se para mim.

– O senhor conhece Larry, não conhece? – Inclinei a cabeça e ele continuou: – Gray convenceu-me a convidá-lo para trabalhar conosco. São muito amigos. Gray tem dele uma opinião muito elevada.

– O que foi que ele disse, papai?

– Agradeceu-me. Declarou que sabia que não podia haver melhor oportunidade para um rapaz e que refletira seriamente sobre o assunto, chegando à conclusão de que iria decepcionar-me e que era preferível recusar.

– É uma grande tolice da parte dele – disse Elliott.

– De fato – concordou mr. Maturin.

– Sinto muito, papai – disse Gray. – Teria sido ótimo trabalharmos juntos.

– A gente pode conduzir um cavalo ao rio, mas não pode obrigá-lo a beber.

Ao dizer isto, mr. Maturin olhou para o filho e a expressão dos seus olhos suavizou-se. Vi que havia outra faceta no caráter daquele duro negociante; ele adorava aquele seu filhão desajeitado. Virou-se de novo para mim:

– Sabe de uma coisa, no domingo este rapaz deu a volta em dois abaixo do par. Ele me bateu sete e seis. Tive vontade de abrir-lhe a cabeça com o meu taco. E pensar que fui eu que lhe ensinei golfe!

O homem não cabia em si de orgulho. Comecei a gostar dele.

– Tive muita sorte, papai.

– Absolutamente. Acha então que é sorte sair da banca e colocar a bola a seis polegadas da bandeira? No mínimo trinta e oito jardas, aquela batida. Quero que no próximo ano ele tome parte no campeonato de amadores.

– Não vou ter tempo para isso.

– Sou eu o seu patrão, não sou?

– Se é!... O barulho que você faz quando chego um minuto atrasado no escritório!

Mr. Maturin deu uma risadinha e virou-se para mim.

– Ele está querendo me fazer de tirano. Não acredite. O meu negócio sou eu, pois meus sócios não prestam para nada, e tenho muito orgulho do meu negócio. Fiz este meu filho começar de baixo, e espero que ele vá subindo por merecimento, como qualquer outro empregado, de momento oportuno. Um escritório como o nosso é uma grande responsabilidade. Há trinta anos que cuido do emprego de capital de alguns dos meus clientes e eles têm confiança em mim. Para falar com franqueza, prefiro perder o meu dinheiro a vê-los perder o seu.

Gray deu uma risada.

– Um destes dias, quando uma velhota veio procurá-lo para empregar mil dólares num projeto fantástico que o seu pastor lhe recomendara, ele se recusou a aceitar a incumbência; e, quando a mulher insistiu, passou-lhe uma tal descompostura que ela foi embora chorando. Depois ele chamou o pastor e passou-lhe também um sabão.

– Falam muito mal da nossa classe, mas há corretores e corretores – disse mr. Maturin. – Não quero que meus clientes tenham prejuízo; quero que tenham lucro, mas, pela atitude de muitos, a gente pensaria que estão loucos para se ver livres do último centavo que possuem!


– Então, que tal é ele? – perguntou-me Elliott enquanto caminhávamos, depois que os Maturin nos deixaram para voltar ao escritório.

– Sempre tenho prazer em conhecer tipos novos. Achei enternecedora a mútua afeição entre pai e filho. Não creio que isto seja muito comum na Inglaterra.

– Ele adora aquele rapaz. É um sujeito esquisito. Saiba que é verdade o que disse a respeito dos seus clientes.

Toma conta das economias de centenas de velhas, militares aposentados e pastores. Na minha opinião isso dá mais trabalho do que lucro, mas Maturin se orgulha da confiança que depositam nele. Mas, quando se trata de um negócio de vulto e ele tem que lutar contra poderosos interesses, não há homem mais duro. Inexorável. Piedade é palavra que então desconhece. Quer o seu lucro, e não há obstáculo que o detenha. Se uma pessoa pisar nos seus calos, não somente ele a arruinará, mas ainda achará graça à situação.

Ao chegar em casa Elliott contou a mrs. Bradley que Larry recusara a oferta de Henry Maturin. Isabel fora almoçar com algumas amiguinhas e chegou quando ainda discutiam o assunto. Deram-lhe a notícia. Pelo que Elliott me repetiu da cena, cheguei à conclusão de que ele se exprimira com grande eloquência. Embora tivesse vivido na ociosidade naqueles últimos dez anos, não tendo o seu trabalho anterior, que lhe valera a fortuna, sido dos mais árduos, Elliott era de opinião que, para o bem da humanidade, o trabalho era essencial. Larry era um rapazinho como qualquer outro, sem nenhuma importância social, e não havia absolutamente razão para que não se conformasse com aquele louvável hábito do seu país. Era evidente, para um homem de visão como Elliott, que a América entrava numa época de prosperidade como jamais conhecera. Larry tinha a oportunidade de participar dessa prosperidade e, se fosse perseverante, quando chegasse aos quarenta anos, poderia ser muitas vezes milionário. Se aí então quisesse aposentar-se e viver como um cavalheiro, digamos em Paris, com um apartamento na Avenue du Bois e um castelo em Touraine, ele (Elliott) nada teria a dizer. Mas Louisa Bradley foi mais concisa e mais categórica. Disse:

– Se ele gosta de você, deve estar disposto a trabalhar para você.

Não sei que resposta Isabel deu a isso, mas teve o bom senso de reconhecer que os mais velhos estavam com a razão. Todos os rapazes de sua roda estavam estudando para uma profissão ou trabalhando em algum escritório. Larry não podia pretender passar a vida inteira dormindo sobre suas glórias de aviador. A guerra acabara, estavam todos fartos dela e aflitos por esquecê-la. A conversa teve como resultado a promessa de Isabel de discutir o assunto com Larry de uma vez por todas. Mrs. Bradley sugeriu que ela pedisse ao rapaz que a levasse de carro até Marvin. Pretendia encomendar cortinas novas para a sala de visitas e perdera as dimensões, querendo portanto que Isabel as tomasse novamente.

– Vocês podem almoçar na casa de Bob Nelson – concluiu.

– Tenho ideia melhor – disse Elliott. – Ponha no carro uma cesta de piquenique; eles poderão comer na varanda e conversar depois do almoço.

– Seria divertido – disse Isabel.

– Há poucas coisas no mundo tão agradáveis como um almoço de piquenique saboreado com todo conforto – declarou Elliott sentenciosamente. – A velha duquesa d’Uzès costumava dizer que, em tais circunstâncias, o macho mais recalcitrante se torna sugestionável. Que é que você pretende dar-lhes para o almoço?

– Ovos cozidos e sanduíches de galinha.

– Absurdo. Ninguém pode fazer um piquenique sem pâté de foie gras. Eles precisam levar, em primeiro lugar, camarões com caril; peito de galinha em gelatina, com uma salada de alfaces tenras, que eu mesmo prepararei; e depois do pâté, se você quiser, como concessão ao hábito nacional, uma torta de maçã.

– Eles levarão ovos cozidos e sanduíches de galinha, Elliott – declarou mrs. Bradley em tom decidido.

– Pois bem, tome nota do que digo: vai ser um fracasso e a culpa será sua.

– Larry come muito pouco, tio Elliott – interveio Isabel. – E creio que nem nota o que come.

– Espero que você não considere isto uma qualidade, minha pobre menina – replicou ele.

Mas aquilo que mrs. Bradley dissera que os dois levariam foi exatamente o que levaram. Ao contar-me o resultado da excursão, Elliott encolheu os ombros em gesto muito francês.

– Bem que as preveni de que seria um fracasso. Supliquei a Louisa que enfiasse na cesta uma garrafa de Montrachet, que eu lhe enviara pouco antes da guerra, mas ela não me deu ouvidos. Levaram uma garrafa térmica com café, e nada mais. Que se poderia então esperar?

Parece que Louisa Bradley e Elliott estavam sozinhos na sala quando ouviram o carro parar à porta e Isabel entrar em casa. Caíra a tarde e as cortinas estavam descidas. Elliott estava à vontade numa poltrona, lendo um romance, e mrs. Bradley trabalhava numa tapeçaria que ia servir de biombo para a lareira. Isabel subira diretamente para o quarto. Elliott fitara a irmã por cima dos óculos.

– Com certeza ela foi tirar o chapéu – disse mrs. Bradley. – Daqui a pouco vai descer.

Mas passaram-se vários minutos sem que Isabel viesse.

– Talvez ela esteja cansada; com certeza deitou-se por um pouco.

– Não acha que seria mais natural Larry ter entrado?

– Não seja irritante, Elliott.

– Bom, isso não é comigo, é com você.

Elliott voltou à sua leitura. Mrs. Bradley recomeçou a bordar.

Mas depois de se ter passado meia hora ela se levantou bruscamente.

– Acho melhor eu subir para ver se ela está bem. Se estiver descansando, não a incomodarei.

Saiu da sala, mas voltou logo em seguida.

– Ela esteve chorando. Larry vai para Paris; pretende ficar ausente dois anos. Isabel prometeu esperar por ele.

– Por que motivo deseja ele ir para Paris?

– Não adianta fazer-me perguntas, Elliott. Não sei. Isabel não me quis contar nada. Diz que compreende e que não quer ser um estorvo para ele. Eu disse: “Se Larry está disposto a deixá-la por dois anos, Isabel, então seu amor não pode ser muito forte”. E ela respondeu: “Paciência. O essencial é que eu o amo muito”. “Mesmo depois do que aconteceu hoje?”, perguntei. “O dia de hoje fez com que eu o amasse mais ainda. E ele também me ama, mamãe; tenho certeza disso.”

Elliott refletiu durante alguns instantes.

– E que vai acontecer depois desses dois anos?

– Já lhe disse que não sei, Elliott.

– Não acha o arranjo pouco satisfatório?

– Acho.

– Só resta um consolo: é que são ambos muito moços. Não lhes fará mal esperar dois anos, e nesse espaço de tempo muita coisa pode acontecer.

Concordaram em que seria preferível deixar Isabel em paz, pois iam jantar fora aquela noite.

– Não quero perturbá-la – disse mrs. Bradley. – Todo mundo ficaria fazendo conjeturas se ela aparecesse de olhos inchados.

Mas no dia seguinte, ao almoço, que foi tomado na intimidade, de novo mrs. Bradley tocou no assunto. Mas pouco arrancou de Isabel.

– Não há realmente quase mais nada para contar além do que lhe contei ontem à noite, mamãe – disse ela.

– Mas que é que Larry pretende fazer em Paris? Isabel sorriu, pois sabia quanto a resposta ia parecer absurda à sua mãe.

– Vadiar.

– Vadiar? Que quer você dizer com isso?

– Foi o que ele me disse.

– Francamente, você me faz perder a paciência. Se tivesse um pouco de energia, teria desmanchado o noivado ali na hora. Ele está brincando com você.

Isabel olhou para o anel que trazia na mão esquerda.

– Que hei de fazer? Eu o amo.

Neste momento Elliott entrou na conversa. Discutiu o assunto com o seu tato habitual. “Não como um tio, meu caro amigo, mas como um homem vivido que se dirigisse a uma donzela inexperiente.” Mas não obteve melhores resultados. A impressão que tive foi que, delicadamente mas com firmeza, Isabel lhe dissera que não se metesse no que não era da sua conta. Elliott me repetiu tudo isto no mesmo dia, um pouco mais tarde, quando estávamos ambos na saleta que eu tinha no Blackstone.

– Claro que Louisa tem razão – disse ele. – É muito pouco satisfatório, mas é o que acontece quando deixam que os moços resolvam um casamento que só tem por base uma afeição mútua. Eu disse a Louisa que não se preocupe; creio que as coisas se resolverão melhor do que ela espera. Com Larry no estrangeiro e o jovem Maturin sempre presente... Bom, se é que entendo alguma coisa da psicologia humana, não é difícil prever-se o resultado. Aos dezoito anos nossas emoções são violentas, mas pouco duradouras.

– Você hoje está filósofo, Elliott – comentei sorrindo.

– Não foi à toa que li o meu La Rochefoucauld. Você conhece Chicago; eles se encontrarão constantemente. Uma moça fica lisonjeada por ter alguém que lhe faça a corte o tempo todo e, quando ela sabe que não há uma de suas amigas que não ficaria radiante de poder casar-se com ele... Pois bem, diga-me lá: acha natural que resista à tentação de suplantar todas as outras? Explico-me melhor: é o mesmo que você ir a uma festa, sabendo que vai se aborrecer à grande e que lá só servirão limonada e biscoitos; mas você vai porque sabe que seus amigos dariam a vida por ir, e no entanto não foram convidados.

– Quando é que Larry pretende partir?

– Não sei. Creio que ainda não foi resolvido. – Elliott sacou do bolso uma cigarreira de ouro e platina e tirou de dentro um cigarro egípcio. Nada de Fátimas, para ele, ou Chesterfields ou Camels, ou Lucky Strikes. Fitou-me com um sorriso repleto de insinuações e continuou:

– Claro que eu não diria isso a Louisa, mas a você não me importo de confessar que no fundo compreendo o ponto de vista do rapazinho. Parece que ele tomou um gostinho de Paris durante a guerra, e não o censuro por se sentir atraído pela única cidade do mundo onde um homem civilizado pode viver. É moço e com certeza quer divertir-se um pouco, antes de se assentar na vida de casado. Muito natural e muito certo. Olharei por ele. Apresentá-lo-ei na boa sociedade; ele tem maneiras finas e, com uma ou duas indiretas que eu lhe der, ficará mais apresentável; garanto que posso mostrar-lhe um aspecto da vida na França que a bem poucos americanos é dado conhecer. Creia-me, caro amigo, é mais fácil ao tipo comum de americano entrar no reino dos céus do que no Boulevard St. Germain. Larry tem vinte anos e é simpático. Não será difícil arranjar-lhe uma ligação com uma mulher mais velha. Isto o formaria. Sempre achei que não há melhor educação para um rapaz do que se tornar amante de uma mulher de certa idade e, naturalmente, se ela for do tipo de mulher que tenho em vista, uma femme du monde, você compreende, isto imediatamente lhe daria uma posição em Paris.

– Você disse isso a mrs. Bradley? – perguntei sorrindo. Elliott deu uma risadinha.

– Meu caro amigo, se há uma coisa de que me orgulho neste mundo é do meu tato. Não lhe disse absolutamente nada. Ela não entenderia, a coitadinha. Está aí uma coisa que jamais compreendi em Louisa; embora tenha passado metade de sua vida na diplomacia, residindo em inúmeras capitais do mundo, ela se conservou irremediavelmente americana.


9

Aquela noite fui jantar em Lake Shore Drive, numa enorme casa de pedra que dava a impressão de que o arquiteto iniciara a construção de um castelo medieval e depois, mudando repentinamente de ideia, resolvera transformá-lo em chalé suíço. Era uma reunião grande e, quando entrei na vasta e suntuosa sala de visitas, cheia de estátuas, palmeiras, candelabros, quadros célebres e pesadíssima mobília, fiquei satisfeito por ver que pelo menos algumas das pessoas presentes eu conhecia. Henry Maturin apresentou-me à sua magra, pouco interessante e frágil esposa. Cumprimentei mrs. Bradley e sua filha. Isabel estava muito bonita, com um vestido de seda vermelha que dava realce aos seus cabelos escuros e olhos castanhos. Parecia muito animada e ninguém diria que acabara de ter um grande aborrecimento. Conversava alegremente com dois ou três rapazes, Gray entre eles, que a cercavam. Ao jantar sentou-se a outra mesa e não pude vê-la; mas mais tarde, quando nós, homens, depois de termos nos eternizado nos nossos cafés, licores e cigarros, voltamos para a sala de visitas e tive oportunidade de falar-lhe. Eu a conhecia muito pouco para tocar diretamente no assunto a que Elliott se referira, mas tinha alguma coisa para contar-lhe, que, achei, iria causar-lhe prazer.

– Vi o seu namorado no clube, há poucos dias – disse eu despreocupadamente.

– Ah! viu?...

Seu tom era tão despreocupado quanto o meu, mas percebi que ela ficara imediatamente alerta. Seus olhos adquiriram uma expressão vigilante e creio ter notado neles a sombra da apreensão.

– Ele estava lendo na biblioteca. Fiquei impressionadíssimo com o seu poder de concentração. Lia quando cheguei, pouco depois das dez, lia quando apareci depois do almoço, e ainda estava lendo quando lá voltei à hora do jantar. Não creio que tenha se levantado da cadeira durante a maior parte de um espaço de dez horas.

– O que ele estava lendo?

– Principles of Psychology de William James.

Isabel baixou os olhos para que eu não pudesse ver a impressão que isso lhe causara, mas pareceu-me que ela ficara ao mesmo tempo perplexa e aliviada. Neste momento o dono da casa veio chamar-me para o bridge; quando o jogo acabou, Isabel e sua mãe já tinham ido para casa.


10

Dois dias mais tarde fui despedir-me de mrs. Bradley e Elliott. Encontrei-os tomando chá. Logo depois Isabel apareceu. Falamos da minha próxima viagem, agradeci-lhes as gentilezas que me tinham dispensado durante minha permanência em Chicago, e depois de um prazo regular levantei-me para partir.

– Vou com o senhor até a drugstore – disse Isabel. – Lembrei-me agora que tenho uma compra a fazer.

As últimas palavras que mrs. Bradley me disse foram: “O senhor dará lembranças minhas à querida rainha Margherita, não é?”.

Eu desistira de procurar convencê-la de que não conhecia aquela augusta personagem, e mais que depressa respondi que lhe faria a vontade.

Quando ganhamos a rua, Isabel lançou-me de soslaio um olhar sorridente.

– O senhor acha que poderia tomar um ice-cream-soda? – perguntou-me.

– Só experimentando – respondi prudentemente. Isabel não falou até chegarmos à drugstore e eu, por nada ter a dizer, também fiquei em silêncio. Entramos e tomamos uma mesa, sentando-nos em cadeiras com encosto de ferro forjado e pés no mesmo estilo. Muito pouco confortáveis. Encomendei dois ice-cream-soda. Algumas pessoas faziam compras diante dos balcões; dois ou três casais, sentados a outras mesas, só pareciam atentos aos seus interesses; estávamos, pois, por assim dizer, sozinhos. Acendi um cigarro e esperei, observando Isabel que, com aparente satisfação, chupava o seu refresco por meio de uma longa palhinha. Pareceu-me nervosa.

– Eu queria falar com o senhor – disse-me bruscamente.

– Foi o que me pareceu – respondi sorrindo.

Ela me fitou, pensativa, durante um ou dois minutos.

– Por que motivo me disse aquilo de Larry a noite retrasada na casa dos Satterthwaites?

– Achei que lhe ia interessar. Ocorreu-me que talvez você não soubesse o que ele queria dizer com “vadiar”.

– Tio Elliott é um linguarudo. Quando me disse que ia ao Blackstone dar uma perobinha com o senhor, logo vi que ia contar-lhe tudo.

– Eu o conheço há muitos anos, sabe. Ele tem prazer em comentar a vida alheia.

– É verdade – disse ela, com um sorriso apenas esboçado. Fitou-me atentamente, com expressão séria no olhar. – Que é que acha de Larry?

– Só o vi três vezes. Parece-me muito bom rapaz.

– Só isso?

Havia uma nota de tristeza na voz dela.

– Não; não é. Fica difícil eu dar opinião; você vê, conheço-o há muito pouco tempo. Claro que é simpático. Há nele qualquer coisa de modesto, amável e suave, que é deveras atraente. E é muito senhor de si, considerando-se a sua mocidade. Não se parece com nenhum dos rapazes que fiquei conhecendo aqui.

Enquanto eu assim desajeitadamente procurava dar forma a uma impressão ainda confusa no meu pensamento, Isabel me fitava atentamente. Quando terminei, ela soltou um suspirozinho, como que aliviada, e lançou-me um sorriso encantador, meio maroto.

– O tio Elliott diz que muitas vezes tem ficado admirado do seu dom de observação, mr. Maugham. Diz que pouca coisa lhe escapa, mas que a sua maior qualidade como escritor é o seu bom senso.

– Conheço uma qualidade mais apreciável – repliquei secamente. – Talento, por exemplo.

– Sabe, não tenho ninguém com quem discutir o meu caso. Mamãe só enxerga as coisas sob o seu ponto de vista. Quer garantir o meu futuro.

– É mais que natural, não é?

– E o tio Elliott só vê o lado social. Minhas amigas, refiro-me às da minha geração, acham Larry muito pouco interessante. Isto dói terrivelmente.

– Claro.

– Não digo que elas não sejam gentis com ele. Ninguém pode deixar de ser gentil com Larry. Mas não o levam a sério. Fazem muita troça dele e ficam exasperadas por ver que ele não faz caso. Larry apenas ri. O senhor sabe em que pé estão as coisas atualmente?

– Só sei o que Elliott me contou.

– Posso contar-lhe exatamente o que se passou quando fomos a Marvin?

– Claro.

Consegui reconstruir o episódio que Isabel me descreveu, em parte pela lembrança que tenho do que ela me disse naquele dia, e em parte acudido pela imaginação. Mas foi longa a conversa entre ela e Larry e não duvido que tenham dito muito mais do que pretendo agora relatar. Creio que, como acontece com todo mundo nessas ocasiões, eles não somente disseram muita coisa que não vinha ao caso, mas repetiram várias vezes as mesmas frases.

Quando se levantou, naquele dia, ao ver a beleza da manhã Isabel telefonou a Larry, dizendo que sua mãe queria que ela fosse até Marvin, e pedindo-lhe que a levasse de carro. Tomara a precaução de acrescentar uma garrafa térmica, de martíni, à de café que sua mãe ordenara a Eugene que pusesse na cesta. O carro era novo e Larry tinha orgulho dele. Gostava de guiar depressa, e a velocidade os deixou muito animados. Chegando a Marvin, Isabel mediu as cortinas que deviam ser substituídas, enquanto Larry ia anotando os números. Depois prepararam o almoço na varanda. Esta era protegida contra todo e qualquer vento, e o sol do verão de S. Martinho aquecia agradavelmente. A casa, à beira de uma estrada poeirenta, nada tinha da elegância das velhas casas de madeira da Nova Inglaterra e, mesmo com boa vontade, o mais que se poderia dizer era que era grande e confortável; mas da varanda tinha-se uma vista agradável, do barracão vermelho com o seu telhado negro, uma moita de velhas árvores, e além, até onde alcançava a vista, campos pardacentos. Paisagem monótona, mas o sol e as tintas brilhantes do fim do ano davam-lhe uma beleza toda sua. Era intoxicante aquela amplidão. Por mais fria, nua e melancólica que se apresentasse no inverno, por mais seca, crestada e opressiva que fosse em outros dias, naquela ocasião era estranhamente excitante, pois a vastidão do panorama convidava a alma à aventura.

Eles saborearam o almoço como criaturas moças e sadias que eram, sentindo prazer na companhia um do outro. Isabel serviu o café e Larry acendeu o cachimbo.

– Agora, desabafe-se, meu bem – disse ele com um sorriso divertido nos olhos.

Isabel foi apanhada de surpresa.

– Desabafar-me sobre o quê? – perguntou com o ar mais inocente que lhe foi possível assumir.

Ele deu uma risadinha.

– Pensa que sou algum idiota, meu amor? Se sua mãe não conhecer perfeitamente as dimensões das janelas da sala, quero ser mico de cavalinho! Não foi por isso que você me pediu para trazê-la aqui.

Novamente senhora de si, Isabel lançou-lhe um sorriso encantador.

– Pode ser que eu tenha achado que seria agradável passarmos um dia juntos, só nós dois.

– Pode ser, mas não creio que tenha sido. Meu palpite é que o tio Elliott lhe contou que recusei o convite de Henry Maturin.

Ele falava alegre e despreocupadamente e Isabel achou conveniente adotar o mesmo tom.

– Gray deve ter ficado profundamente decepcionado. Achava que seria ótimo ter você com ele no escritório. Você tem que trabalhar um dia e, quanto mais for adiando, pior.

Larry tirou uma cachimbada e fitou-a, sorrindo ternamente, de modo que Isabel não soube dizer se ele estava falando sério ou não.

– Sabe, tenho a impressão de que quero fazer da minha vida alguma coisa mais do que vender títulos.

– Está certo, então. Entre para um escritório de advocacia ou vá estudar medicina.

– Não; não é também isto que eu quero.

– O que é que você quer, então?

– Vadiar – replicou ele calmamente.

– Oh! Larry, não se faça de engraçado. Isto é muito, muito sério.

A voz de Isabel tremia e seus olhos se encheram de lágrimas.

– Não chore, querida. Não desejo fazê-la sofrer.

Ele foi sentar-se ao lado de Isabel, passando o braço à volta dos ombros dela. Havia uma tão grande ternura na sua voz que Isabel não pôde conter as lágrimas. Mas enxugou-as e tentou chamar aos lábios um sorriso.

– É muito fácil dizer que não quer fazer-me sofrer. Você está me fazendo sofrer. Porque, sabe, eu gosto de você, Larry.

– Eu também gosto de você, Isabel.

Ela suspirou profundamente. Depois se desvencilhou dos braços dele, afastando-se ligeiramente.

– Sejamos sensatos. Um homem tem que trabalhar, Larry. É uma questão de amor-próprio. Vivemos num país novo e é dever de todo homem tomar parte nas atividades deste país. Ainda no outro dia, Henry Maturin estava dizendo que nos encontramos no início de uma era que fará com que as realizações passadas pareçam insignificantes. Disse que não vê limites para o nosso progresso, e está convencido de que lá para 1930 seremos o país maior e mais rico do mundo. Você não acha isto formidável?

– Formidável.

– Nunca os moços tiveram igual oportunidade. Pensei que você fosse sentir-se orgulhoso de participar do trabalho que temos à nossa frente. É uma maravilhosa aventura.

Ele riu ligeiramente.

– Creio que você tem razão. As Armour e Swift produzirão melhores conservas e em maior escala, as McCormick farão melhores foices e em maior quantidade, Henry Ford porá no mercado maior número de melhores carros. E todo mundo ficará mais rico e ainda mais rico. E por que não?

– Sim, como diz você, por que não? Mas acontece que o dinheiro não me interessa.

Isabel riu nervosamente.

– Meu bem, não diga tolices. Ninguém pode viver sem dinheiro.

– Tenho um pouquinho; é por isso que posso fazer o que quero.

– Vadiar?

– Sim – respondeu ele sorrindo.

– Você está dificultando tanto as coisas para mim, Larry – suspirou Isabel.

– Sinto muito. Eu não o faria, se dependesse da minha vontade.

– Depende da sua vontade.

Ele sacudiu a cabeça. Ficou quieto durante alguns instantes, imerso nos seus pensamentos. Quando finalmente quebrou o silêncio, foi para dizer algo que a sobressaltou.

– Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos quando mortos.

– O que quer você exatamente dizer com isto? – perguntou ela, perturbada.

– Justamente isto. – Ele sorriu, meio encabulado. – A gente tem muito tempo para pensar, quando está voando, sozinho. Fica-se com ideias esquisitas.

– Que espécie de ideias?

– Vagas – respondeu ele sorrindo. – Incoerentes. Confusas.

Isabel refletiu durante alguns instantes.

– Não acha que, se você começasse a trabalhar, elas se coordenariam e você ficaria sabendo em que terreno pisava?

– A ideia me ocorreu. Pensei em ir trabalhar numa carpintaria ou em alguma garagem.

– Oh! Larry, todo mundo pensaria que você está maluco.

– Teria isto importância?

– Para mim, sim.

De novo se fez silêncio entre eles. Foi Isabel quem o quebrou. Soltou um suspiro e disse:

– Você está tão diferente do que era quando foi para a França!

– Isto não é de estranhar. Muita coisa me aconteceu, você sabe.

– Como por exemplo?

– Oh, nada de extraordinário. Meu maior amigo na aviação morreu ao salvar-me a vida. Não foi fácil conformar-me com isso.

– Conte-me como foi, Larry.

Ele fitou-a com profunda angústia no olhar.

– Prefiro não falar nisso. Afinal de contas, foi um incidente corriqueiro.

Emotiva por natureza, Isabel sentiu de novo lágrimas nos olhos.

– Você é infeliz, meu bem?

– Não – respondeu ele sorrindo. – A única coisa que me torna infeliz é saber que estou tornando você infeliz.

– Ele segurou a mão de Isabel, e era tão amigo o aperto daquela mão firme e forte, havia nele tão afetuosa intimidade que Isabel teve que morder os lábios para não chorar.

– Creio que não terei paz de espírito enquanto não resolver certas coisas – continuou Larry gravemente. Hesitou e depois: – É difícil explicar. A gente experimenta e logo fica constrangida. Pensa: “Quem sou eu para quebrar minha cabeça sobre isso, aquilo e aquele outro? Mas talvez eu não passe de um pedante pretensioso. Não seria melhor seguir o caminho que os outros trilharam e deixar que os acontecimentos venham como têm que vir?”. Mas então a gente se lembra de um sujeito que uma hora antes estava cheio de vida e de alegria e agora está morto. Tudo tão cruel e sem significação! É difícil deixar de perguntar a si próprio que finalidade tem a vida, se ela tem algum sentido ou se não passa de um erro trágico por parte do destino cego.

Quando Larry falava com aquela sua voz maravilhosamente melodiosa, interrompendo-se como se fizesse um esforço para dizer coisas que preferia calar, e exprimindo-se, no entanto, com tão angustiosa sinceridade, era impossível ao ouvinte não se comover; assim sendo, durante algum tempo Isabel teve medo de falar.

– Acha que adiantaria se você se ausentasse durante algum tempo?

Isabel formulara a pergunta com o coração na mão. Larry levou muito tempo para responder.

– Creio que sim. A gente procura mostrar-se indiferente à opinião pública, mas não é assim tão fácil. Quando essa opinião é antagônica, excita em nós antagonismo e isto nos perturba.

– Então, por que não vai?

– Bom, por sua causa.

– Sejamos francos um com o outro, meu bem. No momento atual não há lugar na sua vida para mim.

– Quer dizer que você prefere desmanchar o nosso noivado?

Ela conseguiu chamar um sorriso aos lábios trêmulos.

– Não, tolinho; quer dizer que estou disposta a esperar.

– Talvez seja um ano. Talvez dois.

– Não faz mal. Talvez seja menos. Para onde você quer ir?

Ele fitou-a atentamente, como se desejasse ler-lhe o mais íntimo pensamento. Isabel sorriu despreocupadamente para esconder o seu profundo desgosto. Larry disse:

– Pois bem, pensei em começar indo para Paris. Não conheço ali ninguém. Não haveria ninguém para se meter com a minha vida. Fui diversas vezes a Paris quando em licença. Não sei por quê, mas tenho impressão de que ali tudo o que está confuso no meu espírito se aclararia. É um lugar engraçado; a gente tem impressão de que ali poderá analisar a fundo os próprios pensamentos. Creio que assim eu talvez chegue a saber que caminho tomar.

– E que acontecerá se não ficar sabendo? Ele deu uma risadinha.

– Então recuperarei o proverbial bom senso americano, darei a experiência por malsucedida e voltarei para Chicago, aceitando o emprego que conseguir arranjar.

A cena impressionara demasiadamente Isabel para que ela pudesse repetir-me sem ficar emocionada. Ao terminar, fitou-me com um arzinho que me penalizou.

– Acha que fiz bem?

– Acho que fez a única coisa possível e, mais ainda, acho que foi extraordinariamente boa, generosa e compreensiva.

– Gosto de Larry e quero que ele seja feliz. E, sabe, até certo ponto acho preferível que ele vá. Quero que se veja livre desta atmosfera hostil, não somente por sua causa, mas pela minha também. Não posso criticar as pessoas que afirmam que ele nunca dará coisa alguma; detesto-as por dizerem isso e, no entanto, bem no fundo, tenho um medo horrível de que estejam com a razão. Mas não diga que sou compreensiva. Não tenho a mínima ideia do que ele procura.

– Talvez você compreenda mais com o coração do que com a razão – repliquei sorrindo. – Por que não se casa imediatamente com ele e não o acompanha a Paris?

O olhar de Isabel teve o brilho de um sorriso.

– Nada que eu desejasse mais. Mas não posso. E, o senhor sabe, embora eu deteste reconhecer semelhante coisa, acho que ele estará melhor sem a minha companhia. Se o dr. Nelson acerta ao dizer que Larry está sofrendo as consequências do choque, então um ambiente novo e outros interesses o curarão e, ao recuperar o equilíbrio, ele voltará para Chicago e vai trabalhar como todo mundo. Não tenho a mínima vontade de me casar com um vadio.

Isabel fora educada de certa maneira e aceitava os princípios que lhe haviam sido incutidos. Não pensava em dinheiro, porque ignorava o que era não ter tudo de que necessitava, mas instintivamente compreendia a sua importância. Poder, influência, posição social. Era natural e óbvio que um homem procurasse ganhá-lo.

Era esta a sua missão na terra.

– Não me admiro que você não compreenda Larry, pois garanto que nem ele se compreende a si próprio – disse eu. – Se ele se mostra reservado quanto aos seus desígnios, talvez seja porque esses desígnios ainda lhe são obscuros. Previno-a: conheço-o muito pouco e isto é apenas um palpite, mas não acha possível que ele esteja procurando por alguma coisa, mas uma coisa que ele ignora qual seja, de cuja existência talvez nem mesmo certeza tenha? É possível que o que lhe aconteceu na guerra, seja o que for, tenha determinado uma inquietação que nunca o abandona. Não acha que ele talvez esteja à procura de um ideal que se oculta na névoa do desconhecido, como o astrônomo que busca a estrela que somente um cálculo matemático lhe diz que existe?

– Sinto que alguma coisa o está afligindo.

– Sua alma? É possível que ele esteja com um pouco de medo de si próprio. É possível que não acredite na autenticidade da visão que vagamente distingue no seu espírito.

– Às vezes ele me dá uma impressão esquisita; como se fosse um sonâmbulo que de repente acordasse num lugar estranho, não podendo imaginar onde está. Era tão normal antes da guerra! Um dos seus maiores atrativos era o seu amor à vida. Tão alegre e estouvado que era um prazer a gente estar na sua companhia; tão meigo e ridículo! Que é que pode ter acontecido para tê-lo mudado desta forma?

– Não sei. Às vezes uma coisinha de nada tem sobre a pessoa um efeito completamente fora de proporção com o acontecimento. Depende das circunstâncias, e do estado de espírito dessa pessoa no momento. Lembro-me de ter ido à missa num Dia de Todos os Santos, que os franceses chamavam Dia de Finados, na igreja de uma aldeia que, no seu primeiro avanço sobre a França, os alemães tinham estragado um pouco. Estava repleta de soldados e mulheres de preto. No cemitério ao lado, havia fileiras de cruzes de madeira e, à medida que o serviço solene, triste, prosseguia, e homens e mulheres choravam, experimentei a sensação de que talvez aqueles que descansavam sob as cruzes fossem mais felizes do que nós, os vivos. Contei a um amigo o que sentia e ele me perguntou o que queria eu dizer. Não me foi possível explicar e percebi que ele me considerava um grandíssimo idiota. E lembro-me de ter visto, depois de uma batalha, um monte de franceses mortos, empilhados uns sobre os outros. Pareciam fantoches de uma companhia falida, que haviam sido atirados desordenadamente num canto poeirento, por não prestarem para mais nada. Pensei, então, aquilo que Larry disse a você, no outro dia: “Os mortos parecem tão irremediavelmente mortos”.

Não quero que o leitor pense que estou fazendo mistério do que acontecera a Larry na guerra, fosse o que fosse, que tão profundamente o afetara – mistério que revelarei no momento oportuno.

Não creio que ele jamais tenha contado a quem quer que seja. Anos mais tarde, no entanto, ele falou a uma mulher, Suzanne Rouvier, também minha conhecida, sobre o aviador que morrera ao salvar-lhe a vida. Ela repetiu-me o caso e só posso, portanto, relatá-lo de segunda mão.

Traduzi-o do francês em que ela me falou. Parece que Larry ficara muito amigo de outro rapaz de seu esquadrão. Suzanne só o conhecia pelo irônico apelido com que Larry se referia a ele.

– Era um sujeitinho pequeno de cabelos vermelhos, um irlandês – disse Larry. – Costumávamos chamá-lo de Patsy e ele tinha mais vivacidade do que qualquer outra pessoa que jamais conheci. Céus, era um azougue! Tinha uma cara engraçada e um sorriso engraçado, de modo que só de olhar para ele a gente tinha vontade de rir. Era um diabo temerário e fazia as maiores loucuras; estava sempre sendo chamado à ordem pelos superiores. Não sabia o que era medo e, depois de ter escapado da morte por um triz, seu rosto se alargaria num sorriso, como se aquilo fosse a maior pilhéria do mundo. Mas era um aviador nato e lá em cima, nas nuvens, sabia ser frio e cauteloso. Ensinou-me muita coisa. Era um pouco mais velho do que eu e tomou-me sob sua proteção; isto era realmente um pouco cômico, considerando-se que eu tinha bem uns quinze centímetros a mais de altura do que ele e, se por um acaso brigássemos, eu poderia pô-lo a nocaute em dois tempos. Foi o que aconteceu, certa vez, em Paris, quando ele estava bêbado e fiquei com medo de que se metesse em alguma embrulhada.

Larry fez uma pausa e continuou:

– Eu não me sentia muito à vontade quando me reuni ao esquadrão e tinha medo de não me sair bem, mas ele me obrigou a ter confiança em mim. Tinha ideias engraçadas sobre a guerra; não sentia ódio dos alemães; gostava de uma brigazinha e achava divertidíssimo combatê-los. Não podia considerar o fato de pôr abaixo um avião inimigo a não ser como grandíssima pilhéria. Era impudente e louco e irresponsável, mas ao mesmo tempo tão sincero que a gente não podia deixar de lhe querer bem. Daria a um companheiro o seu último níquel, com a mesma facilidade com que aceitaria o dele. Se um de nós se sentia isolado, ou com saudade de casa, ou com medo, como algumas vezes me aconteceu, ele logo o perceberia e, a carinha feia enrugando-se de riso, diria exatamente aquilo que podia fazer a gente sentir-se bem outra vez.

Larry tirou uma cachimbada e Suzanne esperou que ele continuasse.

– Costumávamos manobrar de jeito a ter nossas licenças juntos e quando íamos a Paris ele ficava endiabrado. Divertíamo-nos à grande. Íamos ter uns dias de licença em princípio de março, isto em 1918, e traçamos nossos planos de antemão. Não havia o que não pretendêssemos fazer! Na véspera da partida, recebemos ordem de voar sobre as linhas inimigas e apresentar o nosso relatório. Subitamente demos com alguns aviões alemães e, quando menos esperávamos, estávamos no meio de uma batalha. Um deles me perseguiu, mas peguei-o primeiro. Espiei para ver se ele ia cair e com o rabo do olho vi outro aparelho no meu encalço. Mergulhei para ver se escapava, mas o inimigo se aproximou como um relâmpago e pensei que eu estivesse liquidado; nisto vi Patsy cair sobre ele como se fosse um raio e despejar-lhe toda a munição que tinha. Os alemães deram-se por vencidos e fugiram, e nós voltamos às nossas linhas. Meu avião estava bem avariado e eu mal consegui aterrissar. Patsy chegara antes de mim. Quando desci do meu avião, vi que tinham acabado de tirá-lo do seu. Estava deitado no chão; esperavam que chegasse a ambulância. Ele sorriu ao ver-me. Disse:

“Derrubei aquele sujeito que estava atrás de você”. “Que foi que aconteceu, Patsy?”, perguntei.

“Oh! nada. Ele me pegou na asa.”

– Estava mortalmente pálido. De repente uma expressão estranha cobriu-lhe o rosto. Só neste momento percebeu que estava agonizante, e a ideia da morte jamais lhe passara pela cabeça. Antes que alguém pudesse impedi-lo, ele sentou-se e soltou uma risada.

“Ora, essa é boa!”

– Caiu morto. Tinha vinte e dois anos. Ia casar-se com uma moça na Irlanda quando acabasse a guerra.

No dia seguinte à minha conversa com Isabel, saí de Chicago para São Francisco, onde devia tomar o vapor que me levaria ao Extremo Oriente.


Dois

Dois


1

Só tornei a ver Elliott quando ele veio a Londres, em fins de junho do ano seguinte. Perguntei-lhe se, afinal de contas, Larry tinha ido mesmo para Paris. Respondeu-me que sim. Achei graça ao perceber como Elliott ficara exasperado com ele.

– No fundo eu compreendia o ponto de vista do rapazinho – disse-me. – Não o censurava por querer passar um ou dois anos em Paris, e estava disposto a lançá-lo na sociedade. Pedi-lhe que me avisasse assim que chegasse, mas só quando Louisa se referiu a isso numa carta foi que eu soube que ele estava em Paris. Escrevi-lhe aos cuidados do American Express, endereço que ela me dera, convidando-o para vir jantar e ser apresentado a algumas das pessoas que eu achava que ele devia conhecer. Queria primeiro experimentá-lo com o grupo franco-americano, Emily de Montadour, Gracie de Chãteau-Gaillard e outras, mas sabe você o que ele me respondeu? Que sentia não poder aceitar, uma vez que não trouxera traje de noite.

Elliott encarou-me para ver no meu rosto o espanto que certamente eu iria sentir. Ergueu um tanto desdenhosamente as sobrancelhas ao verificar que eu aceitava com calma a comunicação.

– Respondeu à minha carta numa folha de papel ordinário, que tinha em cima o nome de um café do Quartier Latin; quando lhe escrevi novamente, pedi-lhe que me dissesse onde estava hospedado. Achei que, em consideração a Isabel, precisava fazer alguma coisa por ele, e pensei que talvez fosse apenas uma questão de timidez – isto é, não achei crível que um rapaz no seu juízo perfeito viesse para Paris sem traje de noite; além do mais, há ali alfaiates passáveis. Convidei-o, portanto, para almoçar, avisando que seria um grupo pequeno e, imagine você, não somente ele ignorou o meu pedido sobre o endereço, mas disse que nunca almoçava! Isto fez com que eu lavasse definitivamente as mãos a seu respeito.

– O que será que anda fazendo?

– Não sei e, para ser franco, tanto se me dá. Acho que é um rapazinho indesejável, e que seria um grande erro da parte de Isabel casar-se com ele. Afinal de contas, se ele levasse vida normal, eu o teria visto no bar do Ritz, ou no Fouquet, ou em qualquer outro lugar.

Vou às vezes a estes lugares elegantes, mas vou também a outros, e aconteceu que passei vários dias em Paris, no princípio do outono daquele ano, a caminho de Marselha, onde pretendia tomar um dos vapores da Messagerie, para Cingapura. Jantei uma noite com alguns amigos em Montparnasse e depois do jantar fomos ao Dôme tomar um copo de cerveja. Dali a pouco meu olhar vadio deu com Larry sentado sozinho a uma mesa de mármore, no terraço repleto de gente. Observava desinteressadamente as pessoas que passeavam para lá e para cá a apreciar a frescura da noite depois de um dia opressivo. Deixei o meu grupo e fui até lá. Seu rosto iluminou-se quando me viu. Dirigiu-me um sorriso amável e convidou-me para sentar, mas respondi que não podia por estar com uns amigos.

– Quis apenas cumprimentá-lo – disse eu.

– O senhor está aqui? – perguntou-me.

– Apenas por alguns dias.

– Quer almoçar comigo amanhã?

– Pensei que você nunca almoçasse. Ele riu baixinho.

– O senhor esteve com Elliott! Em geral não almoço, pois não posso perder tempo; tomo só um copo de leite, com um brioche, mas gostaria que o senhor almoçasse comigo.

– Está certo.

Combinamos encontro no Dôme, no dia seguinte, para um aperitivo; iríamos depois almoçar em qualquer restaurante do boulevard. Voltei para a companhia dos meus amigos. Ficamos sentados, conversando. Quando procurei por Larry, dali a pouco, vi que ele havia saído.


2

No dia seguinte passei uma manhã muito agradável. Fui ao Luxemburgo e ali me demorei durante uma hora, vendo alguns quadros do meu gosto. Depois vaguei pelos jardins, tentando recapturar as memórias da mocidade. Nada mudara. Poderiam ter sido os mesmos estudantes, aqueles que passeavam aos pares pelas alamedas de pedregulho, a discutir os autores que lhes tinham despertado o interesse. Poderiam ter sido as mesmas crianças, a rodar os mesmos arcos, sob a vigilância das mesmas amas. Poderiam ter sido os mesmos velhos, que se aqueciam ao sol e liam o jornal da manhã. Poderiam ter sido as mesmas mulheres maduras, de luto, sentadas nos bancos a discutir o preço dos mantimentos e a insolência das empregadas. Depois fui ao Odeon, examinei os livros novos nas galerias e vi os rapazinhos que, como eu trinta anos antes, procuravam, sob o olhar petulante dos empregados de avental, ler o maior número possível de livros que eles não estavam em condições de comprar. Caminhei em seguida vagarosamente pelas ruas sujas e queridas, até chegar ao Boulevard du Montparnasse e finalmente ao Dôme. Larry estava à minha espera. Tomamos um aperitivo e procuramos depois um restaurante onde pudéssemos comer ao ar livre.

Talvez ele estivesse um pouco mais pálido, e isto fazia com que seus olhos muito escuros, nas órbitas fundas, atraíssem mais ainda atenção; mas continuava igualmente senhor de si, fato curioso em pessoa tão jovem, e tinha o mesmo sorriso franco. Quando encomendou o almoço, notei que falava francês corretamente e com boa pronúncia. Felicitei-o.

– Bom, eu já sabia um pouco de francês – explicou ele. – Tia Louisa tinha uma governanta francesa para Isabel e, quando estávamos em Marvin, ela nos obrigava a praticar o tempo todo.

Perguntei-lhe se estava gostando de Paris.

– Muito.

– Mora em Montparnasse?

– Moro – disse ele depois de um momento de hesitação, que interpretei como indicando má vontade de contar exatamente onde morava.

– Elliott ficou um pouco vexado por você lhe ter dado como endereço somente o American Express.

Larry sorriu, mas não respondeu.

– O que é que você faz o tempo todo?

– Vagabundeio.

– E lê?

– Leio, sim.

– Tem notícias de Isabel?

– De vez em quando. Nenhum de nós dois é muito dado a escrever cartas. Está se divertindo à grande em Chicago. No próximo ano elas vêm para cá, visitar

Elliott.

– Que bom para você!

– Creio que Isabel não conhece Paris. Vai ser divertido mostrar-lhe a cidade.

Larry estava curioso por conhecer detalhes de minha viagem pela China e ouviu com atenção o que lhe contei; mas, quando tentei fazê-lo falar sobre si próprio, fracassei. Mostrou-se tão pouco comunicativo que me vi forçado à conclusão de que me convidara somente pelo prazer da minha companhia. Fiquei contente, mas perplexo. Nem bem tínhamos acabado o café, ele pediu a conta, pagou-a e levantou-se.

– Bom, tenho que ir caminhando – disse.

Separamo-nos. Eu estava na mesma quanto às suas atividades. Não tornei a vê-lo.


3

Quando, mais cedo do que pretendiam, mrs. Bradley e Isabel vieram hospedar-se com Elliott, na primavera, eu não me achava em Paris; para completar, portanto, a narrativa do que sei que sucedeu, vejo-me de novo obrigado a recorrer à imaginação. Mãe e filha desembarcaram em Cherburgo e, com a costumeira gentileza, Elliott foi esperá-las. Passaram pela Alfândega. O trem partiu. Com ar um tanto benevolente, Elliott participou-lhes que tomara para elas uma ótima empregada particular; e quando mrs. Bradley replicou que achava a medida desnecessária, ele falou-lhe com rudeza.

– Não comece a implicar desde o momento da chegada, Louisa. Nenhuma senhora pode ficar bem-vestida sem o auxílio de uma criada particular, e resolvi tomar Antoinette não somente por sua causa e de Isabel, mas pela minha. Ficaria mortificado se vocês não se apresentassem impecavelmente vestidas.

Elliott lançou aos trajes das duas viajantes um olhar desdenhoso e continuou:

– Vocês, naturalmente, vão precisar de vestidos novos. Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que Chanel é a última palavra.

– Sempre tenho procurado Worth – declarou mrs. Bradley. Pela atenção que Elliott lhe deu, foi o mesmo que não ter falado.

– Conversei pessoalmente com Chanel e marquei hora para amanhã, às três. Depois temos que tratar dos chapéus. Quanto a isso, não há dúvida: Reboux.

– Não quero gastar muito, Elliott.

– Sei disso. Estou disposto a pagar por tudo. Quero que vocês me façam honra. Oh! enquanto me lembro, Louisa, arranjei várias reuniões para vocês e disse aos meus amigos franceses que Myron era embaixador, o que naturalmente ele chegaria a ser, se tivesse vivido um pouco mais; isso causa melhor efeito. Não creio que o assunto venha à baila, mas achei preferível preveni-la.

– Você é ridículo, Elliott.

– Não, não sou. Conheço a humanidade. Sei que a viúva de um embaixador tem mais prestígio que a viúva de um ministro.

Quando o trem ia entrando na Gare du Nord, Isabel, que estava à janela, exclamou:

– Lá está Larry.

Nem bem o trem parara, ela pulou para a plataforma e correu ao encontro do rapaz. Larry abraçou-a.

– Como é que ele soube que vocês vinham? – perguntou Elliott, secamente, à irmã.

– Isabel radiografou do navio.

Mrs. Bradley beijou Larry afetuosamente e Elliott estendeu-lhe molemente a mão. Eram dez horas da noite.nhã? – perguntou vivamente Isabel, de rosto corado e olhos cintilantes, com o braço enfiado no do rapaz.

– Eu teria nisso muito prazer, mas Larry me deu a entender que nunca almoça.

– Você almoça amanhã, não é verdade, Larry?

– Almoço – respondeu ele sorrindo.

– Espero então ter o prazer de vê-lo à uma hora. Elliott estendeu-lhe mais uma vez a mão, com evidente intenção de despedi-lo, mas Larry sorriu impudentemente.

– Vou ajudar com a bagagem e lhes arranjarei um táxi.

– Meu carro está esperando e meu criado tomará conta da bagagem – disse Elliott com dignidade.

– Ótimo. Então só nos resta partir. Se houver lugar para mim, irei até a porta de sua casa.

– Sim, venha, Larry – disse Isabel.

Desceram juntos a plataforma, seguidos por mrs. Bradley e Elliott. No rosto de Elliott havia uma expressão de gélida censura.

– Quelles manières – murmurou de si para si, pois em certas circunstâncias achava que podia exprimir seus sentimentos com mais energia em francês.

Não sendo madrugador, no dia seguinte às onze horas, quando acabou de se vestir, Elliott mandou um bilhete à irmã, por intermédio de seu criado Joseph e da criada dela, Antoinette, convidando-a a vir à biblioteca para conversarem um pouco. Quando mrs. Bradley apareceu, ele fechou cautelosamente a porta e, enfiando um cigarro numa imensa piteira de ágata, acendeu-o e sentou-se.

– Devo compreender que Isabel e Larry continuam noivos? – perguntou.

– Sim, pelo que me consta.

– Infelizmente não tenho muito boas notícias a dar-lhe sobre o rapaz. – Elliott contou-lhe como estivera disposto a apresentar Larry na sociedade e os planos que fizera para instalá-lo condignamente. – Eu estava mesmo de olho num rez-de-chaussée, que era exatamente o que lhe convinha. Pertence ao jovem marquês de Rethel, que queria sublocá-lo por ter sido nomeado embaixador em Madri.

Mas Larry recusara seus convites de uma maneira que indicava claramente que não queria auxílio.

– Para que vem uma pessoa a Paris, quando não pretende aproveitar-se das vantagens que esta cidade oferece, é coisa que está acima da minha compreensão. Não sei de que maneira ele passa o tempo; parece-me que não conhece ninguém. Sabe onde ele mora?

– O único endereço que nos deu foi o American Express.

– Tal um viajante de casa comercial, ou mestre-escola em férias! Não me admiraria se ele estivesse vivendo com alguma prostitutazinha num estúdio de Montmartre.

– Oh! Elliott!

– Que outra razão pode haver para o mistério em que envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe? envolve a sua residência, e a recusa em misturar-se com gente da sua classe?

– Larry não é desse tipo. E, a noite passada, você não teve a impressão de que está tão apaixonado por Isabel como antes? Ele não poderia ser assim tão dissimulado.

Elliott encolheu os ombros, como a dizer que não há limites para a falsidade masculina.

– O que me conta de Gray Maturin? Ainda está na arena?

– Ele se casaria amanhã com Isabel se ela o aceitasse. Mrs. Bradley contou-lhe então o motivo que as trouxera à Europa mais cedo do que pretendiam. Não andava passando bem ultimamente, e os médicos lhe haviam dito que estava sofrendo de diabetes. Não era caso grave e, com dieta e doses módicas de insulina, não havia motivo para que não vivesse ainda por muitos anos; mas o fato de saber que sofria de uma moléstia incurável deixara-a ansiosa por ver a filha instalada na vida. As duas tinham discutido o assunto. Isabel era sensata; concordou que, se Larry não quisesse voltar para Chicago ao cabo dos dois anos combinados, e arranjar emprego, então a única coisa a fazer seria romper o noivado. Mas mrs. Bradley era de opinião que sua dignidade sofreria, se esperassem até o fim do prazo marcado, vindo depois buscá-lo como um fugitivo da justiça. Achava que Isabel se colocaria numa posição humilhante. No entanto era muito natural que quisessem passar o verão na Europa, aonde Isabel não vinha desde criança. Depois de uma visita a Paris, poderiam ir para uma estação de águas indicada para a moléstia de mrs. Bradley; em seguida, por algum tempo, para o Tirol austríaco; de lá iriam viajar calmamente pela Itália. Mrs. Bradley tinha intenção de convidar Larry a acompanhá-las, para que ele e Isabel pudessem verificar se a longa separação não lhes alterara os sentimentos. Depois de certo tempo ficaria claro se, tendo-se divertido à vontade, Larry estava ou não disposto a aceitar sua parte de responsabilidade na vida.

– Henry Maturin ofendeu-se por Larry ter recusado a colocação que ele lhe ofereceu, mas Gray conseguiu acalmá-lo e Larry pode começar a trabalhar assim que voltar para Chicago.

– Gray é um bom rapaz.

– Se é! – Mrs. Bradley suspirou e acrescentou: – Tenho certeza que faria Isabel feliz.

Elliott falou então das festas que organizara em honra delas. Ia dar um grande almoço no dia seguinte, e no fim da semana um grande jantar. Pretendia levá-las a uma recepção na casa dos Château-Gaillard e conseguira convites para um baile que os Rothschild iam dar.

– Você vai convidar Larry, não vai?

– Ele me disse que não tem traje a rigor – fungou

Elliott.

– Bom, convide-o assim mesmo. Afinal de contas ele é um bom rapaz e não há vantagem em boicotá-lo. Só serviria para aumentar a teima de Isabel.

– Claro que o convidarei, se é este o seu desejo.

À hora marcada, Larry compareceu ao almoço; e Elliott, que tinha maneiras impecáveis, procurou propositalmente ser amável com ele. Não foi difícil, pois Larry estava tão alegre e animado que somente um homem muito mais maldoso do que Elliott poderia deixar de ficar encantado. A conversa girou sobre Chicago e os amigos comuns que ali tinham, de modo que a Elliott bastava mostrar-se cortês e fingir interessar-se pela vida de pessoas que ele considerava sem a mínima importância social. Não lhe causava tédio escutar; pelo contrário, achava enternecedor ouvi-los comentar o noivado daquele jovem par, o casamento de outro jovem par e o divórcio de um terceiro jovem par. Quem jamais ouvira falar dessa gente? Agora: ele sabia que a linda marquesa de Clinchant tentara suicidar-se porque seu amante, o príncipe de Colombey, a abandonara para casar-se com a filha de um milionário sul-americano. Isto era fato que se comentasse. Observando Larry, viu-se obrigado a reconhecer que havia nele qualquer coisa de singularmente atraente; com seus olhos fundos, muito escuros, maçãs salientes, tez pálida e boca expressiva, ele lembrava a Elliott um retrato por Botticelli, e ocorreu-lhe que, se o rapazinho se vestisse à moda da época, ficaria extraordinariamente romântico. Lembrou-se do seu plano de lhe arranjar um “caso” com uma francesa distinta, e sorriu matreiramente ao refletir que no sábado esperava para jantar Marie Louise de Florimond, que combinava irrepreensíveis relações sociais com uma notória imoralidade. Já atingira os quarenta anos, mas aparentava dez anos menos; tinha a delicada beleza de uma de suas antepassadas que fora pintada por Nattier, quadro que, graças ao próprio Elliott, fazia agora parte de uma das grandes coleções americanas; e sua voracidade sexual era insaciável. Elliott resolveu colocar Larry a seu lado. Sabia que ela não perderia tempo em patentear-lhe os seus desejos. Já convidara um jovem attaché da embaixada britânica com quem, assim o julgava ele, provavelmente Isabel ia simpatizar. Isabel era muito bonita e, como o rapaz era inglês, e rico, pouco importava que ela não tivesse fortuna. Abrandado pelo excelente Montrachet, com que haviam iniciado o almoço, e pelo ótimo Bordeaux que veio em seguida, Elliott refletiu com calma e satisfação sobre as possibilidades que se apresentavam a seu espírito. Se as coisas se resolvessem como ele achava provável, a querida Louisa não mais teria motivo de inquietação. No íntimo ela sempre o criticara um pouco; coitadinha, era tão provinciana!... mas Elliott lhe queria bem. Seria um prazer arranjar tudo para ela, valendo-se da sua experiência da vida.

Para não perder tempo, Elliott decidira levar as senhoras para escolherem os vestidos logo depois do almoço, de seu forte ele insinuou a Larry que sua companhia era agora dispensável – mas ao mesmo tempo insistiu amavelmente para que o rapaz comparecesse às duas reuniões que estava organizando. Tanta diplomacia não teria sido necessária, pois Larry aceitou alegremente os dois convites.

Mas o plano de Elliott fracassou. Ele ficou aliviado quando Larry compareceu ao jantar num dinner-jacket muito apresentável, pois receara vê-lo surgir metido no mesmo terno de casimira azul que usara ao almoço; e depois do jantar, chamando Marie Louise de Florimond à parte, perguntou-lhe que tal achava o seu jovem amigo americano.

– Ele tem olhos bonitos e bons dentes.

– Só isto? Coloquei-o perto de você porque achei que era exatamente o seu bocado.

Madame de Florimond olhou-o desconfiada.

– Ele me disse que está noivo de sua sobrinha.

– Voyons, ma chère, o fato de um homem pertencer a outra mulher nunca foi obstáculo para você se apossar dele, se possível.

– É isto que você está querendo? Pois bem, não estou disposta a fazer o seu trabalhinho sujo por você, meu pobre Elliott.

Elliott deu uma risadinha.

– Presumo que isto significa que você entrou com o seu joguinho e viu que não adiantava.

– Gosto de você, Elliott, porque sua moral não é mais elevada que a de uma cafetina. Você não quer que o rapaz se case com sua sobrinha. Por quê? Ele é bem-educado e muito simpático. Mas é de fato inocente demais. Creio que nem de longe suspeitou das minhas intenções.

– Você devia ter sido mais explícita, cara amiga.

– Tenho suficiente experiência para saber quando estou perdendo meu tempo. A verdade é que ele só tem olhos para a sua Isabelzinha e, cá entre nós, a pequena tem vinte anos de vantagem sobre mim. E é um amor, ainda por cima.

– Você gosta do vestido dela? Eu mesmo o escolhi.

– É bonito e apropriado. Mas naturalmente ela não tem chie.

Elliott tomou aquilo como um insulto pessoal, e não ia deixar que madame de Florimond escapasse sem uma alfinetada. Sorriu alegremente e disse:

– Para ter o seu chie, cara amiga, uma pessoa precisa ter atingido a sua completa maturidade.

Madame de Florimond desferiu não um golpe de florete, e sim uma cacetada. Sua réplica fez ferver o sangue virginiano de Elliott.

– Mas garanto que no seu belo país de bandidos (votre heau pays d’apaches) ninguém notará a falta de coisa tão sutil e inimitável.

Mas, se madame de Florimond criticou, os outros amigos de Elliott mostraram-se encantados com Isabel e cia e vitalidade; gostaram da pitoresca aparência de Larry, de suas maneiras finas e espírito calmo, irônico. Ambos tinham a vantagem de falar correntemente o francês. Quanto a mrs. Bradley, depois de ter vivido vários anos em círculos diplomáticos, falava a língua com bastante correção, mas com um descarado sotaque americano. Elliott procurou distraí-las com incomparável prodigalidade.

Satisfeita com seus vestidos e chapéus novos, encantada com todos aqueles folguedos que Elliott lhe proporcionava, e feliz na companhia de Larry, Isabel achou que nunca se divertira tanto na vida.


4

Para Elliott, o café da manhã era refeição que só podia ser compartilhada com estranhos, e assim mesmo quando não havia outro remédio; em vista disso, contra a vontade de mrs. Bradley e com satisfação de Isabel, as duas tomavam aquela refeição no quarto. Mas às vezes, ao acordar, Isabel dizia à imponente Antoinette que levasse o seu café au lait para o quarto de mrs. Bradley, para poder conversar com a mãe. Na movimentada vida que levava, era esse o único momento em que podia ficar a sós com ela. Certa manhã, um mês depois de estarem em Paris, quando Isabel acabou de narrar os acontecimentos da noite anterior, que passara a visitar cabarés em companhia de Larry e de alguns amigos, mrs. Bradley aventurou a pergunta que desejava fazer desde o dia da chegada.

– Quando é que Larry pretende voltar para Chicago?

– Não sei. Ainda não falou nisso.

– Você não lhe perguntou?

– Não.

– Está com medo?

– Não; claro que não.

Deitada na chaise-longue, metida num roupão elegante com que Elliott fizera questão de presenteá-la, mrs. Bradley lustrava as unhas.

– Sobre que falam vocês durante todo tempo em que estão juntos?

– Não falamos o tempo todo. É agradável estarmos juntos. A senhora sabe, Larry sempre foi mais ou menos calado. Creio que, quando conversamos, sou eu que falo quase todo tempo.

– O que é que ele andou fazendo?

– Francamente não sei. Mas não creio que tenha sido grande coisa. Provavelmente esteve se divertindo.

– E onde está morando?

– Também não sei.

– Ele é muito reservado, não é?

Isabel acendeu um cigarro e, ao soltar fumaça pelo nariz, olhou friamente a mãe.

– O que é que você quer exatamente dizer com isto, mamãe?

– Seu tio Elliott acha que ele está vivendo com alguma mulher, num apartamento.

Isabel desatou a rir.

– Você não acredita nisto, acredita?

– Para ser franca, não. – Mrs. Bradley examinou as unhas com ar pensativo. – Você nunca lhe fala sobre Chicago?

– Sim, muitas vezes.

– Ele não deu nenhuma indicação de que pretende voltar?

– Não posso dizer que tenha dado.

– Em outubro vai fazer dois anos que ele se ausentou.

– Sei disso.

– Bom, isto é com você, meu bem; faça o que achar direito. Mas as coisas não se tornam mais fáceis pelo fato de serem adiadas. – Olhou de relance para a filha, mas os olhos de Isabel não encontraram os seus. mrs. Bradley sorriu afetuosamente. – Se você não quiser ficar atrasada para o almoço, é melhor ir tomar o seu banho.

– Vou almoçar com Larry, num restaurante do Quartier Latin.

– Divirtam-se.

Uma hora mais tarde, Larry veio buscá-la. Tomaram um táxi até Pont St. Michel e andaram pelo movimentado boulevard, até chegarem a um café cuja aparência lhes agradou. Sentaram-se no terraço e encomendaram dois Dubonnets. Depois tomaram outro táxi e foram a um restaurante. Isabel tinha bom apetite e apreciou as coisas gostosas que Larry encomendou para ela. Sentia prazer em observar as pessoas que quase roçavam neles, pois o restaurante estava repleto, e achava graça no visível prazer com que comiam; mas, acima de tudo, estava a satisfação de sentar-se a uma mesinha a sós com Larry. Agradava-lhe a expressão divertida do olhar dele, enquanto ela tagarelava alegremente. Que maravilha sentir-se tão à vontade com Larry! Mas, no subconsciente, sentia uma vaga inquietação, pois, embora ele também parecesse perfeitamente à vontade, Isabel percebia que era mais com o ambiente do que com ela. Ficara ligeiramente perturbada com o que a mãe lhe dissera e, embora parecesse conversar com despreocupação, observava todas as expressões de Larry. Ele não era o mesmo de quando saíra de Chicago, mas Isabel não podia dizer onde estava a diferença. Aparentemente era o mesmo Larry de quem ela se lembrava, igualmente moço, franco; mas sua expressão mudara. Não que estivesse mais sério, pois seu rosto, em repouso, sempre fora grave; tinha agora uma calma que Isabel nunca vira nele, como se tivesse resolvido alguma coisa consigo mesmo, sentindo uma tranquilidade que antes desconhecera.

Terminado o almoço, Larry propôs uma volta pelo

Luxemburgo. – Não; não quero ver quadros.

– Está certo. Vamos nos sentar nos jardins, então.

– Não; não é também isto que eu quero. Quero ver onde você mora.

– Não há nada para ver. Moro num quartinho sujo, num hotel.

– O tio Elliott diz que você tem um apartamento e está vivendo pecaminosamente com uma modelo.

– Pois bem, venha então verificar – propôs ele rindo.

– É a um pulo daqui. Podemos ir a pé.

Levou-a por ruas estreitas e tortuosas, escuras apesar da faixa de céu azul que aparecia entre as casas altas; pouco depois parou diante de um hotelzinho de fachada pretensiosa e disse:

– Chegamos.

Isabel entrou com ele num hall estreito. Viu, a um lado, uma escrivaninha a que estava sentado, lendo um jornal, um homem em mangas de camisa, com um colete de listas fininhas em branco e amarelo, e um avental sujo. Larry pediu sua chave e o homem deu-lha, tirando-a de uma prateleira logo atrás e lançando a Isabel um olhar indagador, que imediatamente se transformou num sorrisinho sabido. Estava claro que achava que ela não ia ao quarto de Larry para fins honestos.

Subiram dois lances de uma escada coberta por surrada passadeira vermelha, e Larry abriu sua porta. Isabel entrou num quartinho de duas janelas que davam para uma cinzenta casa de apartamentos, em cujo andar térreo funcionava uma papelaria. No quarto, uma cama de solteiro com criado-mudo ao lado, um pesado guarda-roupa de espelho grande, uma poltrona estofada mas de espaldar reto e, entre duas janelas, uma mesa onde se viam uma máquina de escrever, papéis e alguns livros. Na lareira estavam empilhadas algumas brochuras.

– Sente-se na poltrona. Não é muito confortável, mas é o melhor que lhe posso oferecer.

Larry puxou outra cadeira e sentou-se.

– É aqui que você vive? – perguntou Isabel.

Ele riu baixinho da expressão do rosto dela.

– É. Moro aqui desde que vim para Paris.

– Mas por quê?

– É cômodo. Fica perto da Bibliothèque Nationale e da Sorbonne. – Larry apontou para uma porta que ela não notara. – Tem banheiro. Tomo o café da manhã aqui e geralmente janto naquele restaurante onde almoçamos hoje.

– É horrivelmente sórdido.

– Oh! não; está muito bom. Não desejo mais que isso.

– Mas, que tipo de gente mora aqui?

– Oh! não sei. No sótão, alguns estudantes. Dois ou três solteirões, funcionários públicos; uma atriz do Odeon, aposentada; no único outro quarto com banheiro, a amante de um sujeito que vem visitá-la de quinze em quinze dias, às quintas-feiras; e mais alguns forasteiros. É um lugar muito quieto e familiar.

Isabel ficou um tanto desconcertada e, vendo que Larry disso se apercebera e estava achando graça, quase se melindrou.

– Que livro é aquele enorme ali na mesa? – perguntou ela.

– Aquele? Oh! é o meu dicionário grego.

– Seu o quê? – exclamou Isabel.

– Calma. Ele não tem garras.

– Você está estudando grego?

– Estou.

– Por quê?

– Porque me deu vontade.

Larry fitava-a com um sorriso nos olhos e Isabel correspondeu a esse sorriso.

– Você não acha que poderia contar-me o que andou fazendo durante todo esse tempo em que esteve em Paris?

– Tenho lido muito. Oito ou dez horas por dia. Tenho ido a conferências na Sorbonne. Creio que li tudo que há de importante na literatura francesa, e posso ler latim, prosa pelo menos, com a mesma facilidade com que leio francês. Claro que grego é mais difícil. Mas tenho um ótimo professor. Até você chegar eu ia três noites por semana à casa dele.

– E qual a finalidade de tudo isto?

– Adquirir cultura – respondeu ele sorrindo.

– Não me parece muito prático.

– Talvez não seja e, por outro lado, talvez seja. Mas é divertidíssimo. Você não pode imaginar como é emocionante ler a Odisseia no original. A gente tem a impressão de que bastaria ficar na ponta dos pés e estender as mãos para tocar as estrelas.

Larry levantou-se, como que impulsionado pela excitação que dele se apoderara, e pôs-se a andar de um lado ao outro do quartinho.

– Há um ou dois meses estive lendo Spinoza. Creio que não o entendo ainda muito bem, mas que delícia!... É como a gente descer do seu próprio avião num grande planalto, nas montanhas. Solidão e ar tão puro que intoxica como um vinho e faz a gente sentir-se como um rei.

– Quando é que você pretende voltar para Chicago?

– Chicago? Não sei. Não pensei nisso.

– Você disse que, se ao cabo de dois anos não alcançasse o que buscava, daria a experiência por mal-sucedida.

– Não me seria possível voltar agora. Estou no limiar. Vejo vastas planícies do espírito à minha frente, acenando-me, e estou ansioso por explorá-las.

– O que é que você espera encontrar ali?

– Respostas às minhas perguntas. – Larry relanceou para Isabel um olhar quase brincalhão, de modo que, se o não conhecesse tão bem, ela poderia pensar que ele estava troçando. – Quero ter certeza da existência ou da não existência de Deus. Quero conhecer a origem do mal. Quero saber se tenho uma alma imortal, ou se a morte põe fim a tudo.

Isabel ficou de respiração suspensa. Não se sentia à vontade quando Larry se exprimia dessa forma, e deu graças a Deus por ele ter falado tão despreocupadamente, no habitual tom de conversa, que lhe permitiu dominar o constrangimento.

– Mas, Larry, há milhares de anos a humanidade está fazendo essas perguntas – replicou ela sorrindo. – Se tivesse resposta, certamente há muito já teriam sido respondidas.

Larry deu uma risadinha.

– Não ria como se eu tivesse dito alguma tolice – replicou secamente Isabel.

– Pelo contrário, acho muito bem observado. Mas, por outro lado, a gente pode argumentar que o fato de os homens fazerem essas perguntas há milhares de anos prova que eles não podem deixar de perguntar, e continuarão perguntando. Além do mais, não é verdade que ninguém encontrou resposta. Existem mais respostas do que perguntas, e a muitas pessoas elas satisfizeram plenamente. O velho Ruysbroek, por exemplo.

– Quem é ele?

– Oh! apenas um sujeito que não conheci no colégio – respondeu Larry petulantemente.

Isabel não entendeu o que ele quis dizer, mas não insistiu.

– Acho isto muito infantil. São coisas que excitam a imaginação dos segundanistas, mas de que eles se esquecem por completo quando saem do colégio. Têm que ganhar a vida.

– Não os censuro. Mas, você vê, tenho a vantagem de possuir o suficiente para viver. Do contrário, eu teria que fazer como todo mundo e procurar ganhar dinheiro.

– Mas você não dá valor ao dinheiro?

– Nenhum – respondeu ele sorrindo.

– Quanto tempo acha que isso vai levar?

– Não posso saber. Cinco anos. Dez.

– E depois? Que pretende fazer com toda essa sabedoria?

– Se eu algum dia adquirir sabedoria, creio que serei então bastante sábio para saber o que fazer com ela.

Isabel apertou violentamente as mãos e inclinou-se para a frente.

– Você está tão errado, Larry. Você é americano. Seu lugar não é aqui, é na América.

– Voltarei quando estiver pronto.

– Mas você está perdendo tanta coisa! Como é que consegue ficar aqui nesta pasmaceira, quando estamos vivendo a mais maravilhosa aventura que o mundo jamais conheceu? A Europa está acabada. Somos a maior, a mais poderosa nação do mundo. Caminhamos aos saltos. Nada nos falta. É seu dever participar do progresso da sua pátria. Você já se esqueceu, você não sabe como é empolgante a vida na América hoje em dia. Tem certeza de que não está agindo assim por não ter coragem de enfrentar o trabalho que aguarda todo americano? Oh! Sei que de certo modo você está trabalhando, mas não será isto apenas uma maneira de fugir às suas responsabilidades? Será alguma coisa mais do que uma espécie de ociosidade laboriosa? Que fim levaria a América se todo mundo se esquivasse como você?

– Você é muito severa, meu bem – replicou ele sorrindo. – A resposta a isto é que nem todo mundo sente o que eu sinto. Felizmente para eles, talvez, a maioria dos homens está pronta a seguir o curso normal; você se esquece de que tenho tanta sede de saber como... Gray, por exemplo, tem de ganhar rios e rios de dinheiro. Serei, por acaso, traidor à minha pátria, só pelo fato de querer passar alguns anos a educar-me? É possível que, ao terminar, eu possa dar à humanidade alguma coisa que ela tenha prazer em receber. Não é certo, naturalmente; mas, se eu fracassar, estarei na mesma posição do homem que entra num negócio e não consegue ir adiante.

– E quanto a mim? Não tenho nenhum valor para você?

– Muitíssimo. Quero que você se case comigo.

– Quando? Daqui a dez anos?

– Não. Agora. O mais depressa possível.

– De que jeito? Mamãe não está em condições de me dar um níquel. Além do mais, mesmo que pudesse, ela não o faria. Acharia errado ajudá-lo a viver na ociosidade.

– Não quero nada de sua mãe – replicou Larry. – Tenho três mil dólares anuais. Isto é mais do que suficiente aqui em Paris. Poderíamos ter um apartamentozinho e uma bonne à tout faire. Seria tão divertido, querida!

– Mas, Larry, ninguém pode viver com três mil dólares anuais.

– Claro que pode. Inúmeras pessoas vivem com muito menos.

– Mas eu não quero viver assim. Não há razão para isso.

– Tenho vivido com a metade.

– Mas como!

Ela olhou para o sujo quartinho com um estremecimento de repulsa.

– Isto significa que tenho algumas economias. Poderíamos ir a Capri na lua de mel e à Grécia no outono. Tenho uma vontade louca de ir até lá. Não se lembra como falávamos em viajar juntos pelo mundo?

– Claro que desejo viajar. Mas não dessa forma. Não quero ir de segunda classe, nos vapores, nem me hospedar em hotéis de terceira categoria, sem banheiro, nem comer em restaurantes baratos.

– Em outubro passado viajei assim por toda a Itália. Diverti-me imensamente. Poderíamos percorrer o mundo inteiro com três mil dólares por ano.

– Mas eu quero ter filhos, Larry.

– Está certo. Eles irão conosco.

– Você é tão tolo! – disse ela rindo. – Sabe quanto custa ter um filho? Violet Tomlinson teve um, no ano passado, e fez tudo com a maior economia possível, mas mesmo assim gastou mil duzentos e cinquenta dólares. E quanto pensa você que ganha uma ama? – Isabel ia-se animando, à medida que as ideias lhe ocorriam. – Você é muito pouco prático. Não sabe o que me está pedindo. Sou moça, quero divertir-me. Quero fazer o que os outros fazem. Quero ir a festas, quero ir a bailes, quero jogar golfe e andar a cavalo. Quero vestir-me bem. Você é capaz de imaginar o que significa para uma mulher não se sentir tão bem-vestida como as outras do seu grupo? Compreende o que significa, Larry, ter que comprar os vestidos usados das amigas que se fartaram deles, e ficar agradecida quando, por piedade, alguém se lembra de lhe fazer presente de um novo? Eu não poderia nem mesmo ir a um cabeleireiro decente! Não quero andar de ônibus pelas ruas; quero ter o meu carro particular. E que pensa você que eu iria fazer o dia inteiro, enquanto você estivesse lendo na biblioteca? Andar pelas ruas namorando as vitrinas, ou sentar-me no jardim do Luxemburgo a vigiar meus filhos para que nada lhes acontecesse? Não poderíamos ter amigos...

– Oh! Isabel – interrompeu ele.

– Não do tipo a que estou habituada. Oh! sim, os amigos do tio Elliott de vez em quando nos convidariam em consideração a ele, mas não poderíamos aceitar porque eu não teria vestido, nem estaríamos em condição de lhes retribuir as gentilezas. Não quero ter relações com uma porção de gente malvestida e suja; eu não teria nada a dizer-lhes, nem eles a mim. Quero viver, Larry. – Subitamente ela percebeu a expressão dos olhos dele, afetuosos como sempre, quando pousados nela, mas levemente irônicos. – Você acha que sou uma tola, não é verdade? Acha que estou sendo fútil e maldosa.

– Não, não acho. É muito natural que diga o que está dizendo.

Larry estava de pé, de costas para a lareira. Isabel ergueu-se e aproximou-se; viram-se frente a frente.

– Larry, se você não possuísse um níquel, mas tivesse um emprego que lhe rendesse três mil dólares por ano, eu não hesitaria em me casar com você. Eu cozinharia, arrumaria as camas, pouco me importaria com vestidos, faria qualquer sacrifício e acharia tudo divertidíssimo, pois estaria certa de que seria apenas uma questão de tempo, até você acabar vencendo. Mas isso que você quer significa viver miseravelmente, sordidamente, a vida inteira, sem uma esperança pela frente. Eu seria uma escrava até o dia da minha morte. E para quê? Para que você pudesse passar anos procurando respostas a perguntas que você mesmo considera insolúveis. Está errado. Um homem tem que trabalhar. É para isso que está no mundo. É assim que ele contribui para o bem-estar da comunidade.

– Em resumo, é meu dever instalar-me em Chicago e entrar para o escritório de Henry Maturin. Você acha que, pelo fato de convencer meus amigos a adquirirem títulos em que Henry Maturin está interessado, eu contribuiria grandemente para o bem-estar da comunidade?

– É preciso que haja corretores no mundo, e é uma maneira muito decente e honrosa de ganhar a vida.

– Você pintou um quadro muito negro da vida em Paris com uma renda módica. Sabe, não é exatamente assim. Uma moça pode vestir-se muito bem sem procurar Chanel. Nem todas as pessoas interessantes vivem na vizinhança do Arc de Triomphe e da Avenue Foch. Para falar a verdade, são mesmo poucas, porque em geral as pessoas interessantes não têm grande fortuna. Conheço muita gente aqui, pintores, escritores e estudantes, franceses, americanos e de outras nacionalidades, que considero muito mais interessante do que as definhadas marquesas e as narigudas duquesas de Elliott. Você tem uma inteligência viva e bastante senso de humor. Garanto que acharia divertido vê-los trocar ideias à mesa, mesmo que o vinho fosse somente vin ordinaire e o jantar não fosse servido por um mordomo e dois lacaios.

– Não seja tolo, Larry. Claro que acharia divertido. Você sabe que não sou esnobe. Teria prazer em conhecer gente interessante.

– Sim, num vestido de Chanel. Pensa que eles não perceberiam que você considerava aquilo como uma espécie de aventura? Eles não se sentiriam à vontade, você tampouco; e você não tiraria nenhum proveito, a não ser o de poder depois contar a Emily de Montadour e Gracie de Château-Gaillard como achava divertido ficar conhecendo uma porção de boêmios excêntricos no Quartier Latin.

Isabel encolheu levemente os ombros.

– Talvez você tenha razão. Eles não são do tipo de gente com quem estou habituada a conviver. Não são do tipo de gente com quem eu possa ter afinidade.

– Como ficamos, então?

– Exatamente onde começamos. Moro em Chicago desde que me entendo por gente. Ali estão os meus amigos, todos os meus interesses. Ali me sinto em casa. É a minha terra, Larry, como é também a sua. Mamãe está doente e não se restabelecerá. Mesmo que eu quisesse, não poderia deixá-la.

– Isto significa que, a não ser que eu esteja disposto a voltar para Chicago, você não se casará comigo?

Isabel hesitou. Amava Larry. Queria casar-se com ele. Desejava-o com toda a força dos seus sentidos e sabia-se desejada por ele. Não achava possível que, chegado o momento decisivo, ele não fraquejasse. Teve medo, mas precisava arriscar.

– Sim, Larry, significa exatamente isso.

Ele riscou um fósforo na lareira, um daqueles antigos fósforos franceses, de enxofre, que nos enchem as narinas de um odor acre, e acendeu o cachimbo. Depois, passando por Isabel, foi postar-se a uma das janelas e ficou olhando para fora. Guardou silêncio pelo que pareceu um espaço de tempo interminável. Isabel continuou de pé, no mesmo lugar onde estivera de frente para ele, e olhou para o espelho da lareira, mas com olhos que nada viam. Seu coração batia loucamente e ela estava morta de apreensão. Finalmente Larry voltou-se.

– Eu gostaria de poder fazê-la compreender como a vida que lhe ofereço é mais cheia do que qualquer outra que você possa ter imaginado. Gostaria que você pudesse experiência. É ilimitada. E tão feliz! Só uma coisa se lhe compara: quando se está sozinho num avião, alto, bem alto, circundado apenas pelo infinito. Aquela amplidão é intoxicante. A gente experimenta tão intensa sensação de júbilo que não a trocaria por todas as riquezas e glórias deste mundo. Há poucos dias estive lendo Descartes. Que desembaraço, que graça, que lucidez. Céus!

Isabel interrompeu-o em tom de desespero:

– Mas, Larry, não vê que me está pedindo uma coisa para a qual não fui feita, pela qual não me interesso, e não me quero interessar? Quantas vezes terei que repetir que sou apenas uma moça medíocre, normal, que tenho vinte anos, que daqui a dez estarei velha, que quero divertir-me enquanto posso? Oh! Larry, gosto tanto, tanto, de você! Isso é uma fantasia; não o conduzirá a parte alguma. No seu próprio interesse, imploro-lhe que desista. Seja homem, Larry, e cumpra o seu dever de homem. Você está perdendo anos preciosos, de que outros estão tirando o máximo proveito. Larry, se você tem mesmo amor por mim, não me trocará por um sonho. Você já se divertiu bastante. Volte conosco para a América.

– Não posso, querida. Seria uma verdadeira morte para mim. Seria atraiçoar minha alma.

– Oh! Larry, por que fala dessa forma? É assim que se exprimem as mulheres histéricas, metidas a intelectuais. Que significa? Nada. Nada. Nada.

– Significa exatamente o que sinto – respondeu ele

– Como é que você pode brincar? Não vê que isto é muito sério? Chegamos à encruzilhada, e o que agora fizermos vai afetar toda a nossa vida.

– Sei disso. Creia-me, estou falando sério. Ela suspirou.

– Se você não quer ser razoável, então não há mais nada a dizer.

– Mas não acho que seja razoável. Acho que você só esteve dizendo disparates.

– Eu? – exclamou Isabel. Se não se sentisse tão infeliz, ela teria rido. – Meu pobre Larry, você está doido varrido.

Lentamente ela tirou do dedo o anel de noivado, colocou-o na palma da mão e ficou a contemplá-lo. Era um rubi quadrado, incrustado num fino aro de platina e Isabel sempre o apreciara.

– Se você gostasse de mim, não me faria sofrer tanto.

– Gosto de você. Infelizmente, às vezes a gente não pode fazer o que acha direito sem causar sofrimento a alguém.

Ela estendeu a mão onde estava o rubi e obrigou-se a sorrir.

– Aqui está, Larry.

– De nada me serve. Não quer guardá-lo como lembrança da nossa amizade? Você pode usá-lo no dedinho. Isto não altera a nossa amizade, não é mesmo?

– Sempre hei de gostar de você, Larry.

– Guarde-o, então, que me dará prazer.

Ela hesitou, depois enfiou o anel no dedo da mão direita.

– É grande demais.

– Você pode mandar diminuí-lo. Vamos até o bar do

Ritz, tomar um drinque.

– Está certo.

Isabel admirou-se de tudo ter se passado tão simplesmente. Ela não chorara. Nada parecia ter mudado; só que agora já não ia casar-se com Larry. Mal podia acreditar que estava tudo acabado. Ficou um tanto mortificada pelo fato de não ter havido uma violentíssima cena. Tinham resolvido o caso quase tão friamente como se estivessem a discutir a escolha de uma casa de aluguel. Ela se sentia como que lesada, mas ao mesmo tempo experimentou uma ligeira satisfação por terem se comportado de maneira tão civilizada. Daria muito para conhecer exatamente os sentimentos de Larry no momento. Mas isso era sempre difícil de saber; o rosto suave, os olhos escuros eram uma máscara que mesmo Isabel, que o conhecia há tantos anos, jamais poderia penetrar.

Ao entrar ela tirara o chapéu e o pusera sobre a cama; agora, em frente ao espelho, colocou-o de novo e, arranjando o cabelo, perguntou:

– Apenas por curiosidade: você queria desmanchar o nosso noivado?

– Não.

– Pensei que talvez fosse um alívio para você. – Como Larry não respondesse, ela virou-se com um sorriso alegre e acrescentou: – Estou pronta.

Ao sair, Larry trancou o quarto. Quando entregou a chave ao homem da portaria, este os envolveu num olhar de insolente cumplicidade. Isabel não pôde deixar de perceber que ideia o homem fazia da ida deles ao quarto.

– Não creio que aquele sujeito tenha muita fé na minha virgindade – disse ela.

Foram de táxi até o Ritz e ali tomaram um drinque. Falaram de coisas triviais, aparentemente sem constrangimento, como dois velhos amigos que se veem todos os dias. Embora Larry fosse calado por natureza, Isabel era tagarela, com amplo estoque de conversa-fiada, e estava decidida a não permitir que entre eles se fizesse um silêncio que seria depois difícil de quebrar. Não queria que Larry pensasse que lhe guardava ressentimento, e o orgulho obrigava-a a agir de forma a não deixá-lo suspeitar que estava magoada e infeliz. Dali a pouco sugeriu que Larry a levasse até em casa.

Quando chegaram à porta, Isabel disse alegremente:

– Não se esqueça que você vem almoçar conosco amanhã.

– Não há perigo!

Ela apresentou-lhe a face para ser beijada e passou pela porte-cochère.


5

Ao entrar na sala de visitas, Isabel viu que havia ali algumas pessoas para o chá. Lá estavam duas americanas que moravam em Paris, muito bem-vestidas, com colares de pérolas em volta do pescoço, braceletes de brilhantes nos pulsos e custosos anéis nos dedos. Embora o cabelo de uma fosse tinto de um negro carregado, e o da outra de um dourado artificial, ambas eram extraordinariamente semelhantes. Tinham as mesmas pestanas muito pintadas, os mesmos lábios rubros, as mesmas faces carregadas de carmim, a mesma delgada silhueta, mantida à custa de incríveis sacrifícios, as mesmas feições nítidas, agudas, o mesmo olhar faminto e inquieto; e ninguém podia deixar de perceber que sua vida era uma luta desesperada pela conservação de encantos que atingiam o ocaso. Falavam sobre futilidades, numa voz alta, metálica, sem uma pausa, como se temessem que, se ficassem por um momento silenciosas, a máquina enguiçasse, e o monumento artificial de que era símbolo se esfacelasse por completo. Lá estava um secretário da embaixada americana, suave, silencioso, pois não o deixavam dizer uma palavra, e homem muito fino; e também um trigueiro principezinho romeno, servil e todo cheio de mesuras, com vivos olhinhos pretos e escuro rosto barbeado, e que a cada momento pulava para oferecer uma xícara de chá, passar um prato de bolinhos ou acender um cigarro, e que cinicamente fazia às pessoas presentes os mais exagerados e vulgares elogios. Estava pagando pelos jantares que recebera das pessoas a quem assim adulava, e por todos os jantares a que esperava ser convidado.

Sentada a uma mesinha de chá e, para ser agradável a Elliott, vestida com maior luxo do que achava apropriado para a ocasião, mrs. Bradley cumpria os deveres de dona de casa com sua habitual, se bem que fria, gentileza. Que opinião tinha dos amigos de Elliott é coisa que deixo a cargo da imaginação. Só a conheci superficialmente, e era pessoa muito reservada. Nada tola; durante todos aqueles anos vividos em capitais estrangeiras, conhecera inúmeras pessoas, de vários tipos, e creio que as soubera julgar com bastante perspicácia, de acordo com o ponto de vista da cidadezinha da Virgínia onde nascera e fora criada. Parece-me que ela achava divertido observar os pontos ridículos dessas pessoas; e não creio que tenha dado maior importância aos seus dengues e mesuras do que aos sofrimentos e peripécias dos personagens de um romance que desde o princípio (pois do contrário não o teria lido) sabia que ia acabar bem. Paris, Roma, Pequim não tinham sobre o seu americanismo maior efeito do que o fervor católico de Elliott sobre sua firme, se bem que não exagerada, fé presbiteriana.

Com sua mocidade, aparência robusta e vitalidade, Isabel trouxe um sopro de ar fresco àquela atmosfera meretrícia. Irrompeu na sala como uma jovem deusa terrestre. O príncipe romeno levantou-se de um salto para lhe oferecer uma cadeira, e com ampla gesticulação desempenhou o seu papel. Com frases de estridente amabilidade, as duas americanas olharam-na da cabeça aos pés, notaram os detalhes do seu traje, e é possível que, no fundo do coração, tenham ficado consternadas com o confronto daquela exuberante mocidade. O diplomata americano sorriu intimamente, ao notar como a presença de Isabel fazia com que as outras duas parecessem artificiais e envelhecidas. Mas Isabel achou-as formidáveis: gostou dos ricos trajes e das valiosas pérolas, e sentiu uma pontinha de inveja da imponência e da pose que elas tinham. Gostaria de saber se jamais conseguiria atingir aquela suprema elegância. O principezinho romeno era, naturalmente, ridículo; mas não deixava de ser um amor e, mesmo que não fossem sinceras as coisas amáveis que dizia, sempre era um prazer ouvi-las. A conversa que a chegada de Isabel interrompera foi reatada, e falaram com tanta vivacidade, com tão grande convicção da importância do que diziam que quase se chegava a acreditar que havia sentido em tudo aquilo. Falaram das festas a que tinham ido e das festas a que pretendiam ir.

Comentaram o último escândalo. Reduziram os amigos à expressão mais simples. Citaram grandes nomes a torto e a direito. Pareciam íntimos de todo mundo. Não havia segredo que desconhecessem. Quase no mesmo fôlego, falaram da peça teatral da moda, da costureira da moda, do pintor da moda, da última amante do ministro da moda. Era de se pensar que não havia o que elas ignorassem. Isabel escutava deliciada. Tudo aquilo lhe parecia maravilhosamente civilizado. Aquilo, sim, era vida. Experimentou a emoção de quem sente que está compartilhando de coisas de interesse. Aquilo era real. O cenário, perfeito. A espaçosa sala com o seu tapete Savonnerie, os lindos desenhos nas paredes de lambris, as cadeiras de petit point, os valiosos móveis de madeira entalhada, as cômodas e mesas avulsas, peças todas dignas de um museu... A sala devia ter custado uma fortuna, mas valia a pena. A sóbria beleza mais do que nunca impressionou Isabel, pois ela ainda conservava vívida a lembrança do pobre quartinho de hotel, com sua cama de ferro, e aquela cadeira dura, tão pouco confortável, onde se sentara; aquele quarto em que Larry não via defeito algum... Nu, sombrio, horrível. Só a lembrança lhe causou um estremecimento.

As visitas saíram e Isabel ficou sozinha com sua mãe e Elliott.

– Senhoras encantadoras – disse Elliott, depois de ter acompanhado à porta os dois pobres farrapos pintados. – Conheci-as quando se instalaram em Paris. Nunca pensei que chegassem a ficar tão elegantes! É realmente extraordinário o poder de adaptação das nossas compatriotas.

Hoje ninguém diria que são americanas, e do Oeste Central, ainda por cima.

Com um arquear de sobrancelhas, mas sem dizer palavra, mrs. Bradley lançou a Elliott um olhar que com a sua perspicácia ele não pôde deixar de compreender.

– Ninguém poderia jamais dizer isto de você, minha pobre Louisa – continuou ele em tom ao mesmo tempo azedo e afetuoso. – Se bem que não lhe faltaram oportunidades!

Mrs. Bradley contraiu os lábios.

– Creio que sempre fui a sua grande decepção na vida, Elliott, mas, para ser franca, estou muito satisfeita comigo mesma assim como sou.

– Tous les goûts sont dans la nature – murmurou Elliott.

– Acho que é meu dever contar-lhes que não estou mais noiva de Larry – interveio Isabel.

– Ora, ora! – exclamou Elliott. – Isto vai transtornar o arranjo da minha mesa de almoço, amanhã. Como é que vou arranjar avulso em tão curto prazo?

– Oh! pode estar certo de que ele virá almoçar.

– Depois de vocês terem desmanchado o noivado? Mas não fica bem.

Isabel riu abafadamente. Continuou virada para Elliott, pois sabia que a mãe a fitava e não queria encontrar o olhar dela.

– Não brigamos. Discutimos o assunto hoje à tarde e chegamos à conclusão de que tínhamos cometido um erro. Ele não quer voltar para a América; quer continuar em Paris. Está falando em ir para a Grécia.

– Para quê, Santo Deus? Não há vida social em Atenas. Para ser franco, nunca dei mesmo grande valor à arte grega. Algumas daquelas coisas helênicas têm um encanto decadente, que não deixa de ser interessante. Mas Fídias, não, não!

– Olhe para mim, Isabel – disse mrs. Bradley.

Isabel virou-se e fitou-a com um leve sorriso. Mrs. Bradley observou-a com um olhar perscrutador, mas só o que disse foi “Humm”. Viu que a filha não chorara; parecia mesmo calma e senhora de si.

– A vantagem foi toda sua, Isabel – disse Elliott. – Eu estava disposto a fazer cara alegre, mas nunca achei que fosse um bom casamento. Larry não estava realmente à sua altura, e o procedimento dele aqui em Paris indica claramente que nunca chegará a ser alguém. Com sua beleza e relações você pode aspirar a coisa muito melhor. Na minha opinião, você agiu com raro discernimento.

Mrs. Bradley lançou à filha um olhar não de todo destituído de ansiedade.

– Você não fez isto por minha causa, Isabel? A moça sacudiu enfaticamente a cabeça.

– Não, meu bem. A responsabilidade é inteiramente minha.


6

Tendo regressado do Oriente, justamente nesta ocasião eu estava passando uns tempos em Londres. Quinze dias, talvez, após os acontecimentos que descrevi, Elliott chamou-me ao telefone. Não fiquei admirado ao reconhecer-lhe a voz, pois sabia que ele costumava vir gozar em Londres o fim da temporada. Contou-me que mrs. Bradley e Isabel tinham vindo com ele e que, se eu quisesse aparecer aquela tarde, às seis horas, para tomar um drinque, teriam muito prazer em receber-me. Estavam, naturalmente, hospedados no Claridge. Naquele tempo eu não morava muito longe dali, de modo que desci por Park Lane, a pé, e percorri as calmas e corretas ruas de Mayfair, até chegar ao hotel. Elliott estava no seu apartamento de costume. As paredes eram de lambris de tom havana, como o de uma caixa de charutos, e a mobília de uma sóbria suntuosidade. Encontrei-o só. Mrs. Bradley e Isabel tinham ido às compras, mas deviam voltar a qualquer minuto. Contou-me que Isabel já não estava noiva de Larry.

Com suas ideias românticas e excessivamente convencionais, a respeito do procedimento das pessoas em determinadas circunstâncias, Elliott ficara chocado com o comportamento dos dois jovens. Não somente Larry comparecera ao almoço no dia imediato ao rompimento, mas agira como se sua posição em nada estivesse alterada. Mostrou-se amável, atencioso e discretamente alegre como de costume. Tratou Isabel com a mesma afetuosa camaradagem; não parecia nervoso, perturbado, ou pesaroso. Tampouco Isabel se mostrara inconsolável. Parecendo tão feliz como antes, ria com a mesma despreocupação, pilheriava com igual vivacidade, como se não tivesse dado um passo decisivo, e certamente desagradável, na sua vida. Elliott não entendia mais nada. Por trechos de conversa que ouviu deles, veio a saber que não pretendiam cancelar nenhum dos compromissos que tinham assumido um com o outro. Na primeira oportunidade ele falou nisso a mrs. Bradley.

– Não fica bem – declarou. – Os dois não podem andar de lá para cá como se ainda fossem noivos. Francamente, Larry podia ter um pouco mais de respeito às convenções. Além do mais, isto prejudica Isabel. O jovem Fotheringham, aquele rapaz da embaixada inglesa, está visivelmente caído por ela. Tem dinheiro e boas relações; se soubesse que o terreno está livre, garanto que se candidataria. Acho que você deve falar a Isabel sobre isso.

– Meu caro, Isabel está com vinte anos, e tem – para dizer às pessoas, sem ofendê-las, que não se metam no que não é da sua conta – uma técnica contra a qual sempre achei dificílimo lutar.

– Pois então você educou-a pessimamente, Louisa. Além do mais, é da sua conta.

– Está aí um ponto em que ela, certamente, não concordaria com você.

– Você está esgotando a minha paciência, Louisa.

– Meu pobre Elliott, se você tivesse uma filha moça, ficaria sabendo que é relativamente mais fácil lidar com um tourinho do que com ela. Quanto a saber o que Isabel está sentindo... Bom, é preferível eu fingir ser a velha simples e inocente por quem ela me toma.

– Mas você discutiu o caso com ela?

– Experimentei. Isabel riu e disse que não havia realmente nada para contar.

– Está muito pesarosa?

– Não sei. Só o que posso dizer é que come bem e dorme como um anjinho.

– Pois bem, ouça o que lhe digo: se você deixar que continuem assim, um destes dias eles acabam fugindo e casando-se sem dizer nada a ninguém.

Mrs. Bradley condescendeu em sorrir.

– Deve ser para você um alívio saber que no momento atual estamos vivendo num país onde toda irregularidade sexual é facilitada, e onde o casamento encontra inúmeros obstáculos.

– E acertadamente. O casamento é uma instituição muito séria, sobre a qual se firmam a segurança da família e a estabilidade do Estado. Mas o casamento só pode conservar sua força se as relações extraconjugais forem não somente toleradas, mas permitidas. A prostituição, minha pobre Louisa...

– Basta, Elliott – interrompeu mrs. Bradley. – Não estou interessada em conhecer o seu ponto de vista sobre a importância social e moral da fornicação promíscua.

Foi aí que Elliott sugeriu o plano que iria interromper a convivência de Isabel com Larry, que tanto repugnava ao seu convencionalismo. A estação em Paris agonizava e a melhor gente estava providenciando sua ida para estações de águas, ou Deauville, antes de se retirar, para o resto do verão, para seus castelos ancestrais em Touraine, Anjou ou Bretanha. Em geral Elliott só ia para Londres em fins de junho, mas seu instinto de família era muito forte, e sincera a afeição que sentia por sua irmã e Isabel; estivera pronto a fazer o sacrifício de ficar em Paris, se elas assim o desejassem, quando ali já não havia pessoa que contasse socialmente; mas via-se agora na agradável posição de poder fazer o que era de vantagem para os outros e ao mesmo tempo conveniente para si próprio. Sugeriu a mrs. Bradley partirem imediatamente para Londres, onde a estação ainda estava no auge e onde novos interesses e novos amigos iriam distrair o pensamento de Isabel do seu malfadado romance. A julgar pelos jornais, um dos maiores especialistas em diabetes se encontrava em Londres, na ocasião, e a vantagem de consultá-lo justificaria amplamente a súbita partida, vencendo qualquer má vontade que Isabel pudesse ter em abandonar Paris. Mrs. Bradley aprovou a ideia. Isabel deixava-a perplexa. Impossível saber se a sua despreocupação era sincera ou se, magoada, zangada, ou infeliz, ela adotara aquela máscara ousada para esconder sua humilhação. Mrs. Bradley concordou com Elliott que faria bem a Isabel conhecer gente e lugares novos.

Elliott não perdeu tempo em telefonar, e, quando Isabel entrou em casa, depois de ter passado o dia em Versailles com Larry, ele pôde comunicar-lhe que conseguira marcar hora com o célebre especialista para dali a três dias, que reservara um apartamento no Claridge e que dois dias depois iam para Londres.

Mrs. Bradley observou Isabel, enquanto Elliott um tanto pedantemente lhe dava a notícia; mas a moça não se mostrou absolutamente perturbada.

– Oh! mamãe, estou tão contente de você poder consultar o especialista! – exclamou Isabel com a sua habitual impetuosidade. – Claro que não deve perder esta ocasião. E será ótimo, um passeio a Londres. Quanto tempo vamos ficar lá?

– Não adiantaria voltarmos para Paris – disse Elliott.

– Dentro de oito dias não haverá aqui uma alma. Quero que vocês fiquem comigo no Claridge até o fim da estação. Em julho há sempre bons bailes; além do mais, não nos devemos esquecer de Wimbledon. E, depois, Goodwood e Cowes. Tenho certeza de que os Ellingham terão prazer em nos convidar ao seu iate, para Cowes, e os Bantock sempre levam um grupo grande, para Goodwood.

Isabel parecia encantada e mrs. Bradley sentiu-se mais tranquila. A julgar pelas aparências, ela não estava dando a mínima importância a Larry.

Elliott acabara de me contar tudo isso, quando mãe e filha entraram. Fazia mais de ano e meio que eu não as via. Achei mrs. Bradley mais magra e de fisionomia ainda mais lívida; parecia cansada e não estava com boa aparência. Mas Isabel estava florescente. Com seu rosto corado, cabelos bronzeados, vivos olhos castanhos e pele transparente, dava tal impressão de mocidade, de tão intensa alegria de viver, que a gente quase tinha vontade de rir de puro gozo. Absurdamente, comparei-a a uma pera, dourada e saborosa, perfeitamente madura e tentando o apetite alheio. Irradiava calor, dando a impressão de que bastaria a gente estender as mãos para sentir o seu conforto. Pareceu-me mais alta, não sei se por estar usando salto mais alto ou se porque uma costureira habilidosa soubera escolher um modelo que lhe disfarçasse o excessivo arredondamento da mocidade; mantinha-se com a graça despreocupada da pessoa que desde a infância faz esportes ao ar livre. Em resumo, sexualmente era uma rapariga muitíssimo atraente. Se eu fosse sua mãe, trataria logo de casá-la.

Satisfeito com a oportunidade de poder retribuir a mrs. Bradley as gentilezas que ela me havia dispensado em Chicago, sugeri que os três fossem comigo ao teatro numa daquelas noites. Convidei-os também para um almoço.

– Trate de não deixar para muito tarde, meu caro – disse-me Elliott. – Participei aos amigos a minha chegada, e daqui a dois ou três dias provavelmente já estaremos comprometidos para toda a temporada.

Achei que com isso ele queria dizer que, nesse caso, não teria tempo a perder com gente da minha espécie, e não pude deixar de rir. Elliott lançou-me um olhar onde havia uma expressão altiva.

– Mas, naturalmente, você sempre nos encontrará aqui às seis horas, e teremos imenso prazer em vê-lo – disse-me amavelmente, mas com a visível intenção de me colocar, como escritor, na minha humilde posição.

Mas às vezes a vingança é doce...

– Você precisa procurar os St. Olpherd – disse-lhe eu. – Contaram-me que eles pretendem dispor do seu Constable of Salisbury Cathedral.

– No momento atual não tenho intenção de comprar quadros. – Sei disso, mas achei que talvez você pudesse servir de intermediário.

Os olhos de Elliott tiveram um brilho de aço.

– Meu caro amigo, a Inglaterra é uma grande nação, mas os ingleses nunca souberam e nunca saberão pintar. A escola inglesa não me interessa.


7

Naquelas quatro semanas pouco vi Elliott e sua família. Ele soube tratá-las. Levou-as para um fim de semana numa aristocrática mansão, em Sussex, e para outro fim de semana, ainda mais aristocrático, em Wiltshire. Foram à Ópera, ao camarote real, como convidadas de uma princesa de menos importância da Casa de Windsor. Almoçaram e jantaram com a nobreza. Isabel foi a vários bailes. Elliott deu, no Claridge, recepção a que compareceram convidados cujo nome fazia um vistão no jornal, no dia seguinte. Promoveu ceias no Ciro e na embaixada. Em resumo, fez tudo como devia ser feito, e Isabel precisaria ter sido muito mais blasé para não ficar ofuscada com a elegância e o esplendor exibidos para o seu deleite. Elliott podia gabar-se de estar fazendo tudo aquilo por um motivo puramente desinteressado, para que Isabel esquecesse o seu malogrado caso de amor; mas desconfiei que no fundo ele sentia grande satisfação em poder mostrar a mrs. Bradley como era íntimo dos ilustres e dos elegantes. Recebia admiravelmente e tinha imenso prazer em exibir essa sua qualidade.

Fui a uma ou duas de suas recepções, e de vez em quando passava pelo Claridge, às seis horas. Encontrava Isabel cercada por mocetões bonitos e bem-vestidos, da Household Brigade, ou por rapazes elegantes, mas menos bem-vestidos, do Ministério do Exterior. Numa dessas ocasiões ela me chamou de lado.

– Quero fazer-lhe uma pergunta – disse-me ela. – Lembra-se daquela noite em que fomos à drugstore tomar um ice-cream-soda?

– Lembro-me perfeitamente.

– O senhor foi muito camarada e me ajudou bastante. Quer ser camarada e ajudar-me de novo?

– Farei o possível.

– Quero falar com o senhor sobre certo assunto. Não podíamos almoçar juntos um destes dias?

– Quando quiser.

– Num lugar quieto.

– Que tal irmos de carro até Hampton Court e almoçar ali? Os jardins devem estar no auge da beleza e você poderia ver a cama da rainha Isabel.

O plano lhe agradou; ficou tudo combinado. Mas, quando chegou o dia, o tempo até então firme e quente mudou. Céu cinzento; caía uma chuvinha miúda. Telefonei a Isabel, perguntando-lhe se não preferia almoçar na cidade.

– Impossível nos sentarmos nos jardins, e os quadros estarão tão escuros que não distinguiremos coisa alguma – disse eu.

– Tenho me sentado em muitos jardins e estou farta dos grandes mestres. Vamos assim mesmo.

– Está certo.

Fui buscá-la de automóvel. Eu conhecia um hotelzinho onde a comida era passável; seguimos diretamente para lá. No caminho, com a sua habitual vivacidade Isabel falou das festas a que fora e das pessoas que ficara conhecendo. Estava se divertindo à grande, mas, pelos comentários que fez sobre seus novos conhecidos, vi que a pequena era perspicaz e sabia facilmente distinguir o ridículo. O mau tempo afugentara os visitantes e éramos os únicos na sala de jantar. A especialidade do hotel era a simples comida inglesa. Serviram-nos uma fatia de excelente perna de carneiro com ervilhas e batatinhas, e uma torta de maçã com creme Devonshire. Com um copo de cerveja, foi um ótimo almoço. Quando acabamos, sugeri irmos para a saleta do café, que estava vazia, e onde poderíamos nos sentar em confortáveis poltronas. Fazia frio ali, mas o fogo estava preparado e risquei um fósforo para acendê-lo. As chamas tornaram a fria salinha mais acolhedora.

– Pronto – disse eu. – Conte-me agora sobre que deseja conversar comIgo.

– A mesma coisa da última vez – disse ela com uma risadinha abafada. – Larry.

– Foi o que pensei.

– O senhor sabe que rompemos o nosso noivado.

– Elliott contou-me.

– Mamãe ficou aliviada e meu tio encantado.

Isabel hesitou por um instante e depois iniciou a descrição da cena com Larry, que já fiz o possível por narrar fielmente. Talvez o leitor se admire de Isabel ter escolhido, para confidente, uma pessoa que ela conhecia tão pouco. Não creio que eu a tivesse visto mais que uma dúzia de vezes e, a não ser naquela ocasião na drugstore, nunca a sós. Mas a mim isto não surpreendeu. Em primeiro lugar, fato que qualquer escritor confirmará, em geral as pessoas fazem a um escritor confidências que não fariam a outros. Desconheço a razão, a não ser que, pelo fato de terem lido um ou dois dos seus livros, se consideram em termos de intimidade com ele. Ou talvez elas se dramatizam a si próprias e, vendo-se como personagens de um romance, resolvam falar-lhe com a mesma franqueza com que, imaginam, lhe falam os tipos por ele criados. E penso que Isabel sentia que eu gostava dela e de Larry, que sua mocidade me comovia e que eu me condoía dos seus pesares. Ela não podia esperar encontrar um confidente de boa vontade em Elliott, pois este não tinha o menor desejo de se preocupar com pessoa que desprezara a melhor oportunidade que um rapaz jamais tivera de entrar na sociedade. Nem sua mãe poderia ajudá-la. Mrs. Bradley tinha princípios elevados e bom senso. Seu bom senso lhe dizia que, se uma pessoa deseja ir adiante neste mundo, tem que se conformar com as convenções do mundo e não fazer aquilo que todos consideram como sinal de desequilíbrio mental. Seus princípios elevados faziam com que achasse dever de um homem trabalhar num negócio onde, com energia e iniciativa, tivesse a oportunidade de ganhar dinheiro suficiente para sustentar mulher e filhos de acordo com a sua posição, dar aos filhos uma educação que lhes permitisse, mais tarde, ganhar honestamente a vida, e, ao morrer, deixar a viúva com recursos para se manter.

Isabel tinha boa memória e ainda se lembrava das várias fases da longa discussão com Larry. Ouvi em silêncio, até ela terminar. Interrompeu-se apenas uma vez, para me fazer uma pergunta:

– Quem foi Ruysdael?

– Ruysdael? Era um paisagista holandês. Por quê? Contou-me que Larry o mencionara. Dissera ele que pelo menos Ruysdael encontrara solução para o que desejara saber, e Isabel me repetiu a petulante réplica de Larry, quando ela lhe perguntara quem era aquele sujeito.

– O que quereria ele dizer? Tive uma inspiração.

– Você tem certeza de que ele não disse Ruysbroek? – perguntei.

– É bem possível. Quem era ele?

– Um místico flamengo que viveu no século xiv.

– Oh! – exclamou Isabel, decepcionada.

Para ela nada significava. Mas significava alguma coisa para mim. Era a primeira indicação que eu tinha do rumo que estavam tomando as reflexões de Larry; e, enquanto Isabel continuava a narrativa, embora eu a ouvisse atentamente, com outra parte do pensamento preocupei-me com as possibilidades que aquela referência de Larry sugeria. Não quis dar muita importância ao fato, pois era bem possível que ele houvesse citado o nome do Teólogo Místico apenas como argumento; mas podia também ter uma significação que escapara a Isabel. Ao dizer-lhe que Ruysbroek era apenas um sujeito que ele não conhecera no colégio, evidentemente Larry procurava despistá-la.

– Qual a sua opinião sobre tudo isso? – perguntou-me a moça ao terminar.

Esperei alguns instantes antes de responder.

– Lembra-se de Larry ter dito que ia apenas vadiar? Se o que ele lhe contou é verdade, então sua vagabundagem parece abranger um trabalho muito cansativo.

– Tenho certeza que é verdade. Mas não acha o senhor que, se ele se tivesse igualmente esforçado num trabalho produtivo, poderia estar com uma boa renda?

– Algumas pessoas têm um temperamento esquisito. Existem criminosos que trabalham como mouros a organizar planos que os levam à prisão e que, nem bem recuperam a liberdade, reincidem e acabam sendo novamente presos. Se eles empregassem a mesma perseverança, a mesma inteligência, a mesma paciência e os mesmos recursos em algum projeto honesto, poderiam ter uma ótima renda e ocupar posições de destaque. Mas a questão é que são feitos daquela massa. Gostam do crime.

– Pobre Larry – disse ela, rindo baixinho. – O senhor não me vai dizer que ele está aprendendo grego para assaltar um banco.

Também ri.

– Não vou, não; o que estou tentando dizer-lhe é que há homens que sentem tão intenso desejo de fazer uma determinada coisa que não podem absolutamente deixar de fazê-la. Estão dispostos a sacrificar tudo para satisfazer esse anseio.

– Até mesmo as pessoas que gostam deles?

– Oh! sim.

– Não acha que isso é puro egoísmo?

– Não sei dizer – respondi sorrindo.

– Que utilidade prática pode ter para Larry o estudo de línguas mortas?

– Algumas pessoas têm um desejo desinteressado de adquirir cultura. Não se pode dizer que seja um desejo ignóbil.

– Mas de que adianta a cultura, se a pessoa não pretende utilizá-la?

– Talvez ele pretenda. Talvez só o fato de saber seja uma satisfação, como ao artista basta a satisfação de produzir uma obra de arte. E talvez seja apenas um passo para coisa mais avançada.

– Se ele tem tanta sede de saber, por que não foi então para o colégio quando voltou da guerra? Era o que o dr. Nelson e mamãe queriam que ele fizesse.

– Falei com Larry sobre isso em Chicago. Um diploma de nada lhe adiantaria. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Pareceu-me que ele tinha uma ideia exata do que queria, mas sentia que não iria encontrar satisfação numa universidade. Você sabe, no estudo existe o lobo solitário, da mesma maneira que existe o lobo que se move com a alcateia. Acho que Larry é uma dessas pessoas que não podem tomar outro caminho a não ser o seu próprio.

– Lembro-me de que uma vez lhe perguntei se não sentia vontade de escrever. Ele me respondeu que não tinha sobre o quê escrever.

– É esta a razão mais inconcludente que conheço para uma pessoa não escrever – comentei sorrindo.

Isabel fez um gesto de impaciência. Não estava em estado de espírito de apreciar nem mesmo a mais leve pilhéria.

– Não posso compreender como ele chegou a ficar assim. Antes da guerra era como todo mundo. Talvez o senhor não acredite, mas ele joga muito bem tênis e é também perito no golfe. Costumava fazer tudo que o nosso grupo fazia. Era um rapaz perfeitamente normal e não havia razão para se supor que não viesse a ser um homem perfeitamente normal. Afinal de contas, o senhor é um romancista, deve ter uma explicação para isso.

– Quem sou eu para explicar as inúmeras complexidades da natureza humana?

– É por isso que eu queria falar hoje com o senhor – continuou Isabel, sem ligar ao que eu dissera.

– Você é infeliz?

– Infeliz, exatamente não. Quando Larry não está presente, tudo vai bem; quando estou perto dele é que me sinto tão fraca. Agora é apenas uma sensação dolorida, como a rigidez que sentimos após um longo passeio a cavalo, quando ficamos muito tempo sem montar; não é dor, não é insuportável, mas está ali. Isso passará, é lógico. Acho detestável pensar que Larry está estragando sua vida dessa forma.

– Talvez isto não aconteça. Ele está começando a viajar por uma estrada longa e árdua, mas é possível que no fim da jornada encontre o que procura.

– E o que ele procura?

– Ainda não lhe ocorreu? Parece-me, pelo que ele lhe disse, que não há dúvida a respeito: Deus.

– Deus! – exclamou Isabel. Mas foi uma exclamação de surpresa e incredulidade. Nosso emprego da mesma palavra, mas em sentido diverso, teve tão cômico efeito que não pudemos deixar de rir. Mas Isabel imediatamente ficou de novo séria, e notei em toda a sua atitude qualquer coisa que lembrava o medo.

– Mas, francamente, por que motivo chegou o senhor a essa conclusão?

– Estou apenas adivinhando. Mas você me pediu minha opinião como romancista. Infelizmente você não sabe qual foi o acontecimento, na guerra, que tão profundamente o afetou. Algum choque, suponho, com o qual ele absolutamente não contava. É possível que isto tenha feito Larry compreender como é transitória a vida, dando-lhe o angustioso desejo de saber que há uma compensação para os males e tristezas do mundo.

Percebi que Isabel não estava gostando do rumo que eu dera à conversa. Parecia intimidada e constrangida.

– Mas não será isto incrivelmente mórbido? A gente tem que aceitar o mundo como é. Se estamos aqui, é certamente para tirarmos o máximo proveito da vida.

– É provável que você tenha razão.

– Não tenho a pretensão de ser nada mais que uma moça perfeitamente normal, comum. Quero divertir-me.

– Parece-me que havia uma absoluta incompatibilidade de gênios entre vocês dois – disse eu. – Foi muito melhor terem descoberto isto antes do casamento.

– Quero casar-me, e ter filhos, e viver...

– Na condição de vida que uma misericordiosa Providência houve por bem lhe dar – interrompi sorrindo.

– Pois bem, não há mal nisso, há? É uma condição agradável e estou muito satisfeita com ela.

– Vocês são como dois amigos que desejam tirar férias juntos, mas um deles quer galgar as montanhas cobertas de neve da Groenlândia, ao passo que o outro quer ir pescar perto do banco de coral da Índia.

– Em todo caso, nas montanhas da Groenlândia talvez eu arranjasse um casaco de pele, mas duvido que haja peixes perto do banco de coral da Índia.

– É o que ainda se precisa ver.

– Por que diz isto? – perguntou-me Isabel, contraindo de leve as sobrancelhas. – O tempo todo o senhor parece estar guardando alguma coisa para si! Claro que sei que em tudo isto o papel bonito não é meu. Este papel cabe a Larry. É ele o idealista, o que teve um lindo sonho, e, mesmo que o sonho não se torne realidade, será sempre belo tê-lo sonhado. A mim me toca a parte dura, mercenária, prática. Bom senso nunca foi coisa muito simpática, não é verdade? Mas do que o senhor se esquece é que eu é que teria que sofrer. Larry avançaria majestosamente, com sua cauda gloriosa, e a mim só me restaria seguir atrás dele, procurando fazer o dinheiro render de um jeito ou de outro. Quero viver.

– Não me esqueci disso, em absoluto. Há anos, quando eu era moço, conheci um médico, nada mau, mas que não clinicava. Passou anos enfurnado na biblioteca do Museu Britânico e, com longos intervalos, surgia com um livro pseudocientífico, pseudofilosófico, que ninguém lia e que ele era obrigado a publicar por conta própria. Escreveu quatro ou cinco, antes de morrer; livros absolutamente sem valor. Tinha um filho que queria seguir a carreira militar, mas não havia dinheiro para mandá-lo para Sandhurst, de modo que o rapaz teve que se alistar e acabou morrendo na guerra. Tinha também uma filha. Era bem bonita e eu tinha uma quedinha por ela. Entrou para o teatro, mas, não tendo talento, andou de província em província representando papéis sem importância, em companhias de segunda classe, ganhando salário irrisório. Quanto à esposa do médico, depois de anos de luta e sórdida pobreza, adoeceu, e a filha teve que voltar para casa para tratar dela, vendo-se obrigada a fazer o trabalho penoso e ingrato para o qual a mãe já não tinha forças. Vidas perdidas, frustradas; e tudo sem proveito para ninguém. É uma verdadeira loteria, quando a pessoa resolve sair do caminho habitualmente trilhado. Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos.

– Mamãe e tio Elliott aprovam o que fiz. O senhor também aprova?

– Minha querida, que importância pode isto ter? Você mal me conhece.

– Considero-o um observador desinteressado – replicou ela com um sorriso simpático. – Gostaria de ter a sua aprovação. O senhor acha que fiz bem, não acha?

– Acho que sob o seu ponto de vista você fez bem – respondi, tendo quase certeza de que ela não perceberia a ligeira distinção que a minha resposta implicava.

– Então por que motivo não estou com a consciência tranquila?

– Não está?...

Ainda com um sorriso nos lábios, mas um sorriso um tanto encabulado, ela inclinou a cabeça e continuou:

– Sei que agi de acordo com a razão. Que qualquer pessoa sensata dirá que era a única coisa a fazer. Que, sob o ponto de vista prático, sob o ponto de vista da sabedoria humana, sob o ponto de vista do que é correto, sob o ponto de vista do bem e do mal, fiz o que devia fazer. E no entanto, no fundo do coração, sinto uma inquietude que me diz que se eu fosse melhor, mais desinteressada, mais desprendida e mais nobre, não teria hesitado em casar-me com Larry e levar sua vida. Se o meu amor fosse bastante forte, eu daria por bem empregado o sacrifício.

– Você pode argumentar de outra forma. Se o amor de Larry fosse bastante forte, ele não teria hesitado em fazer o que você pedia.

– Também pensei nisso. Mas não adianta. Creio que está mais na natureza da mulher sacrificar-se do que na do homem. – Ela riu baixinho. – Ruth e o trigo estrangeiro e aquela história toda.

– Por que você não arrisca?

Tínhamos até então conversado em tom despreocupado, como se estivéssemos a comentar casualmente a vida de pessoas que ambos conhecíamos, mas que não nos interessavam diretamente; mesmo quando me repetira sua conversa com Larry, Isabel falara com alegre vivacidade, pontilhando-a de observações espirituosas, como se não desejasse que eu levasse muito a sério o que dizia.

Mas agora ela empalideceu.

– Tenho medo.

Ficamos em silêncio durante alguns momentos. Um calafrio percorreu-me a espinha, como sempre acontece quando me vejo diante de uma emoção profunda e verdadeira.

– Você gosta muito dele? – perguntei afinal.

– Não sei. Ele me impacienta. Ele me exaspera. Estou sempre ansiando pela sua presença.

De novo se fez silêncio entre nós. Eu não sabia o que responder. A sala onde estávamos era pequena; pesadas cortinas de renda, nas janelas, impediam a claridade de fora. Nas paredes, empapeladas de amarelo, dependuravam-se velhas gravuras sobre caçadas. Com sua mobília de mogno, surradas cadeiras de couro e cheiro bolorento, lembrava estranhamente uma saleta de café de um romance de Dickens. Remexi o fogo e atirei-lhe mais carvão. Subitamente Isabel começou a falar.

– Sabe, achei que quando chegasse o momento de pôr as cartas na mesa Larry cederia. Eu sabia que ele era fraco.

– Fraco? – exclamei. – Aonde foi você buscar essa ideia? Um homem que durante um ano suportou a reprovação de amigos e conhecidos, por estar resolvido a seguir o seu caminho.

– Sempre consegui fazer dele o que quis. Era meu escravo. Ele nunca encabeçou o que fazíamos; apenas acompanhava o grupo.

Eu acendera um cigarro e observava o círculo azul da fumaça, que se foi alargando até se dissolver no ar.

– Mamãe e tio Elliott achavam que eu não devia con tinuar saindo com ele, como se nada tivesse acontecido; mas eu não levava aquilo muito a sério. Até o último dia pensei que ele acabaria cedendo. Não achei possível que, quando naquela sua cabeça dura penetrasse a ideia de que eu não estava brincando, ele não acabasse entregando os pontos. – Isabel hesitou e atirou-me um sorriso maroto, brincalhão. – O senhor ficará escandalizado se eu lhe contar uma coisa?

– Acho muito pouco provável.

– Quando resolvemos vir para Londres, telefonei a Larry e perguntei-lhe se não poderíamos passar juntos minha última noite em Paris. Quando contei isso aos meus, o tio Elliott declarou que não ficava nada bem, e mamãe que achava desnecessário. Quando mamãe diz que acha uma coisa desnecessária, significa que a desaprova em toda a linha. Tio Elliott me perguntou o que pretendíamos fazer; respondi que íamos jantar fora e dar depois um giro pelos cabarés. Ele virou-se para mamãe dizendo que ela devia proibir-me. Mamãe me perguntou: “Você me atenderia se eu a proibisse de ir?”. “Não, querida, nem por sombras.” E ela disse então: “Foi o que imaginei. Neste caso não vejo muita vantagem em proibir”.

– Sua mãe parece uma senhora extraordinariamente sensata.

– Não creio que muita coisa lhe escape. Quando Larry veio buscar-me, entrei no quarto dela para lhe dizer boa-noite. Eu me pintara um pouco; o senhor sabe, em Paris isto é preciso, senão a gente parece tão nua!... Quando mamãe notou o meu vestido, pelo olhar com que me examinou de cima a baixo tive a desagradável impressão de que desconfiava das minhas intenções. Mas não fez comentário algum. Beijou-me, apenas, dizendo que esperava que eu me divertisse.

– E quais eram as suas intenções?

Isabel olhou-me desconfiada, como se ainda não soubesse até que ponto levar a franqueza.

– Não creio que eu estivesse muito feia e era aquela a minha última oportunidade. Larry reservara uma mesa no Maxim. Comemos coisas gostosas, da minha preferência, e tomamos champanhe. Falamos os maiores absurdos, pelo menos eu falei, e fiz Larry rir. Uma das coisas que mais me agradam nele é o fato de eu poder sempre diverti-lo. Dançamos. Quando nos cansamos disso, fomos para o Château de Madrid. Ali encontramos alguns conhecidos, juntamo-nos ao seu grupo e tomamos mais champanhe. Depois fomos todos para o Acádia. Larry dança bem, e combinamos. O calor, a música, o vinho... eu estava um pouco tonta. Não tinha medo de nada. Dancei com a face contra a de Larry e vi que ele me desejava. Só Deus sabe como eu o desejava! Tive uma ideia... Provavelmente estivera no meu subconsciente o tempo todo. Resolvi fazer com que ele me acompanhasse até em casa; uma vez que o pegasse ali, pois bem, era inevitável que acontecesse o inevitável.

– Por Deus, você não poderia ter-se expressado com maior delicadeza.

– Meu quarto era bem afastado do de mamãe e do de tio Elliott, de modo que eu sabia que não havia perigo. Quando estivéssemos de novo na América, pensei, eu escreveria a Larry dizendo que ia ter um bebê. Ele seria obrigado a voltar, para casar-se comigo, e achei que, uma vez que o apanhasse na América, não seria difícil prendê-lo, principalmente com mamãe doente. “Que idiota fui em não me lembrar disso antes”, pensei com os meus botões. “Não há dúvida de que assim fica resolvido o caso.” Quando a música parou, continuei nos braços dele. Disse-lhe depois que estava ficando tarde e que, como eu tinha que tomar o trem ao meio-dia, era melhor irmos embora. Tomamos um táxi. Aconcheguei-me a ele; Larry enlaçou-me e beijou-me. Beijou-me e beijou-me e... oh! que paraíso! Quando o táxi parou à porta, pareceu-me que se passara apenas um minuto. Larry pagou o homem.

“Vou a pé para casa”, disse-me ele.

– O táxi afastou-se barulhentamente e eu pus os braços à volta do pescoço de Larry.

“Não quer entrar e tomar um último drinque?”, perguntei. “Sim, se você quiser.”

– Larry tocara a campainha e a porta estava aberta. Ele acendeu a luz e entramos. Olhei dentro dos seus olhos. Tão confiantes, tão sinceros, tão... ingênuos; evidentemente ele não tinha a menor ideia da armadilha que eu estava lhe preparando. Vi então que não me seria possível fazer papel tão indecente; era o mesmo que tirar um doce da boca de uma criança. Sabe o que eu disse? “Oh! bom, talvez seja melhor você não entrar. Mamãe não está hoje passando muito bem e não quero acordá-la, caso tenha adormecido. Boa noite.” Ergui o rosto para que ele me beijasse e empurrei-o para a rua. E assim acabou-se a história.

– Você está arrependida? – perguntei.

– Nem satisfeita nem arrependida. Não pude agir de outra forma. Não fui eu que fiz aquilo. Foi um impulso que se apossou de mim e agiu por mim. – Isabel sorriu. – Com certeza dirão que foi o meu lado bom.

– Com certeza.

– Então o meu lado bom tem que sofrer as consequências. Espero que no futuro ele seja mais prevenido.

Foi este, por assim dizer, o fim de nossa conversa. Talvez Isabel tenha sentido algum consolo em poder conversar com absoluta franqueza, mas foi esse o único auxílio que lhe pude prestar. Sentindo que não correspondera à expectativa, tentei pelo menos dizer-lhe uma coisinha que talvez a confortasse.

– Você sabe, quando amamos, e as coisas não correm a nosso contento, sentimo-nos profundamente infelizes e temos a impressão de que nunca nos consolaremos. Mas você ficará atônita ao ver o que o mar pode fazer.

– Que quer dizer com isso? – perguntou ela sorrindo.

– Bom, o amor não é bom marinheiro e definha-se numa viagem por mar. Quando o Atlântico se interpuser entre você e Larry, você vai ficar admirada ao verificar como é leve a dor que antes lhe parecia intolerável.

– Fala por experiência própria?

– Experiência de um tormentoso passado. Quando eu sofria as agonias de um amor não correspondido, metia-me imediatamente num navio.

A chuva não dava mostras de cessar; concordamos, portanto, em que Isabel não ia morrer por deixar de ver o nobre edifício de Hampton Court, ou mesmo o leito da rainha Isabel, e voltamos para Londres. Ainda a vi duas ou três vezes depois disso, mas sempre quando havia outras pessoas presentes; e então, tendo-me fartado de Londres por algum tempo, parti para o Tirol.


Três

Três


1

Nos dez anos seguintes perdi Isabel e Larry de vista. Continuei a ver Elliott e, por uma razão que mais tarde explicarei, mais frequentemente do que antes; por ele de vez em quando eu tinha notícias de Isabel. Mas a respeito de Larry ele nada soube contar-me.

– É bem possível que ainda esteja em Paris, mas duvido que nos venhamos a encontrar. Não frequentamos a mesma roda – acrescentou Elliott, com certa complacência. – É uma pena ele ter-se estragado dessa forma. É de uma ótima família. Garanto que teria dado alguma coisa, se tivesse seguido a minha orientação. Em todo caso foi uma sorte para Isabel.

Meu círculo de relações não era tão restrito quanto o de Elliott e eu conhecia, em Paris, muita gente que ele sem dúvida consideraria indesejável. Nas minhas breves mas não raras idas àquela capital perguntei a uma ou outra dessas pessoas se tinham visto Larry ou ouvido falar dele; algumas o conheciam ligeiramente, mas ninguém com suficiente intimidade para me dar informações a seu respeito. Fui ao restaurante onde ele costumava jantar, mas fazia tempo que ali não aparecia; julgavam que se ausentara de Paris. Nunca o vi em nenhum dos cafés do Boulevard du Montparnasse, geralmente frequentado pelas pessoas da vizinhança.

Sua intenção, depois que Isabel deixou Paris, era ir à Grécia, mas o projeto foi abandonado. Muitos anos mais tarde ele me contou o que fizera, mas vou relatar agora esses acontecimentos, pois, na medida do possível, acho mais conveniente colocá-los em ordem cronológica. Larry ficou em Paris durante o verão, trabalhando intensamente, até o outono já ir bem avançado.

– Achei então que precisava descansar dos livros – disse-me ele. – Durante dois anos eu estivera estudando de oito a dez horas por dia. Fui, portanto, trabalhar numa mina de carvão.

– Trabalhar onde? – exclamei. Ele riu do meu espanto.

– Achei que, durante alguns meses, o trabalho manual me faria bem. Pareceu-me que me daria oportunidade de coordenar as ideias e chegar a um entendimento comigo mesmo.

Fiquei em silêncio. Seria essa a única razão para aquele passo inesperado, ou teria relação com o rompimento do noivado com Isabel? A questão é que eu não sabia até que ponto Larry a amava. Muitas pessoas, quando apaixonadas, inventam razões para convencer a si próprias de que devem fazer o que desejam. Creio que é por isso que há tantos casamentos desastrosos. São como aquelas pessoas que entregam seus negócios a um homem reconhecidamente desonesto, só porque acontece tratar-se de um amigo; e, não querendo acreditar que um ladrão é primeiro ladrão, e depois amigo, pensam que por mais desonesto que ele seja com os outros, com elas o caso muda de figura. Larry tivera força suficiente para não sacrificar, por causa de Isabel, a vida que o atraía, mas talvez tivesse achado a dor de perdê-la mais amarga do que supusera. É bem possível que, como todos nós, ele tivesse querido comer o bolo e guardá-lo ao mesmo tempo.

– Pois bem, continue – disse eu.

– Arrumei meus livros e roupas em duas malas e mandei-as para o depósito do American Express. Depois enfiei um terno e algumas roupas de baixo numa maleta e parti. Meu professor de grego tinha uma irmã casada com o gerente de uma mina perto de Lens e deu-me uma carta de apresentação para ele. Conhece Lens?

– Não.

– Fica no norte da França, não muito distante da fronteira belga. Só passei ali uma noite, no hotel da estação; no dia seguinte tomei o trem de subúrbio que vai para o local da mina. Já esteve numa vila de mineiros?

– Sim, na Inglaterra.

– Bom, deve ser a mesma coisa. Havia a mina, a residência do gerente, e fileiras e fileiras de casas jeitosinhas, de dois andares; iguais, tão iguais, que chegavam a confranger o coração. Uma igreja mais ou menos nova, feia; vários bares. O tempo estava enfarruscado e frio quando lá cheguei; caía uma chuvinha miúda. Fui até o escritório do gerente e mandei-lhe a minha carta. Era ele um homem pequeno, gordo, de rosto rubro e ar de quem gosta de passar bem. Havia falta de braços, pois vários mineiros tinham morrido na guerra; ali trabalhavam muitos poloneses, de duzentos a trezentos, creio eu. Ele me fez duas ou três perguntas, não parecendo apreciar o fato de eu ser americano; tive a impressão de que achou isso meio suspeito. Mas na carta o cunhado me fazia boas referências e, em todo caso, ele ficou satisfeito de poder contar com mais alguém. Quis dar-me um lugar na superfície, mas eu lhe disse que preferia trabalhar no subsolo. Replicou que, não estando habituado, eu ia achar o serviço duro; como insisti, deu-me o lugar de ajudante de mineiro. Era realmente serviço de menino, mas não havia suficiente número deles para preencher as vagas. O gerente era um bom sujeito. Perguntou-me se eu já tinha providenciado acomodação e, ante minha resposta negativa, escreveu um endereço num papelzinho, dizendo que se eu fosse até lá a dona da casa me arranjaria um leito. Era viúva de um mineiro que morrera na guerra e seus dois filhos trabalhavam na mina.

“Peguei de novo a maleta e segui o meu caminho. Encontrei a casa. Uma mulher alta, emaciada, de cabelos grisalhos e grandes olhos negros veio abrir-me a porta. Tinha traços benfeitos e devia ter sido bonita. Mesmo agora não seria feia, no seu tipo esquálido, a não ser pelos dois dentes que lhe faltavam na frente. Disse-me que quarto ela não tinha, mas que havia duas camas no quarto que alugara a um polonês e que eu podia ficar com a que estava vaga. O aposento que ela me mostrou era no andar de baixo e devia ter sido sala de visitas. Eu teria preferido um quarto só para mim, mas resolvi deixar de exigências; a garoa transformara-se em chuva leve e persistente e eu já estava molhado; não me agradava a perspectiva de ir para diante e ficar encharcado até os ossos. Disse, portanto, que aceitava, e instalei-me. A cozinha, onde notei duas poltronas pouco firmes, servia também de sala. Havia, no pátio, um barracão onde guardavam o carvão, e que era também o banheiro. Os dois rapazes e o polonês tinham levado o seu almoço, mas a mulher me disse que eu poderia almoçar com ela ao meio-dia. Sentei-me depois na cozinha, com o meu cachimbo. Enquanto trabalhava, a mulher me contou sua história e a de sua família. Os outros chegaram assim que sua turma deixou de trabalhar. Primeiro o polonês, logo em seguida os dois rapazes. O polonês passou pela cozinha, cumprimentou-me com a cabeça, nada dizendo quando a dona da casa lhe participou que íamos compartilhar do mesmo quarto; tirou da chapa uma chaleira e foi lavar-se no barracão. Apesar da sujeira do rosto, os filhos da dona eram mocetões bonitos, e pareciam inclinados à camaradagem. Consideravam-me uma aberração pelo fato de eu ser americano. Um deles estava com dezenove anos e logo teria que fazer o serviço militar; o outro com dezoito.

“O polonês voltou e os rapazes foram lavar-se. Meu companheiro de quarto tinha um daqueles complicados nomes poloneses, mas chamavam-no de Kosti. Era um sujeito grande e pesado, quase dez centímetros mais alto do que eu. Pálido rosto carnudo, nariz curto e chato, boca larga. Seus olhos eram azuis e, por não ter conseguido tirar o carvão das pestanas e sobrancelhas, ele parecia estar pintado. As pestanas negras tornavam quase chocante o azul dos olhos. Sujeito feio, abrutalhado. Tendo trocado de roupa, os dois rapazes saíram. O polonês sentou-se na cozinha e pôs-se a ler o jornal, fumando o seu cachimbo. Eu tinha um livro no bolso; tirei-o e comecei também a ler. Notei que duas ou três vezes o polonês me olhou; dali a pouco largou o jornal.

“Que é que você está lendo?”, perguntou-me.

– Entreguei-lhe o livro para que ele mesmo verificasse. Era um exemplar da Princesse de Clèves que eu comprara na estação, em Paris, pela vantagem de poder carregá-lo no bolso. O polonês examinou o livro, fitou-me curiosamente e devolveu-mo. Notei-lhe o sorriso irônico.

“Acha graça nisso?”, perguntou.

“Acho interessantíssimo; absorvente, mesmo”, respondi.

“Li-o na escola, em Varsóvia. Achei-o cacetérrimo.” Ele falava bem o francês, quase sem sotaque estrangeiro. “Agora só leio os jornais e livros policiais.”

– Madame Duclerc, a dona da casa, estava sentada à mesa, cerzindo meias, mas de olho na sopa sobre o fogão. Contou a Kosti que eu fora mandado pelo gerente da mina e repetiu aquilo que me aprouvera contar-lhe. Ele ouviu, fumando, e olhou-me com aqueles seus brilhantes olhos azuis. Olhos duros e perspicazes. Fez-me algumas perguntas sobre a minha pessoa. Quando declarei que nunca trabalhara numa mina, de novo seus lábios se encresparam num sorriso irônico.

“Você não sabe em que se meteu. Quem pode trabalhar em outra coisa nunca devia procurar serviço numa mina. Mas isto não é da minha conta e com certeza você tem as suas razões. Onde morava em Paris?”

– Contei-lhe; Kosti disse, então:

“Houve época em que eu costumava ir todos os anos a Paris, mas ficava ali pelos Grands Boulevards. Conhece o Larue? Era um dos meus restaurantes prediletos.”

– Isto me surpreendeu, pois, como você sabe, não é barato.

– Longe disso.

– Creio que Kosti notou a minha surpresa, pois de novo teve um sorriso zombeteiro, mas não achou necessário entrar em explicações. Continuamos a conversar de uma coisa e outra e dali a pouco os dois rapazes chegaram. Terminada a ceia, Kosti me perguntou se eu queria acompanhá-lo ao bistrô para tomarmos uma cerveja. Fomos. Nada mais era que uma sala grande, com bar na extremidade e várias mesas de mármore, com cadeiras de madeira à volta. O piano automático, onde alguém colocara uma moeda, esganiçava uma música de dança. Além da nossa, só três mesas estavam ocupadas. Kosti perguntou-me se eu jogava belote. Respondi afirmativamente, pois aprendera a jogar com meus colegas; ele propôs então disputarmos a cerveja. Concordei. Veio o baralho. Perdi a primeira e a segunda rodadas. Kosti sugeriu então que jogássemos a dinheiro. Ele tinha boas cartas e eu estava de azar. As apostas eram insignificantes, mas mesmo assim perdi vários francos. Isto e a cerveja deixaram-no de bom humor, desatando-lhe a língua. Não levei tempo a perceber, tanto pelo seu modo de falar como por suas maneiras, que ele era um homem educado. Quando de novo se referiu a Paris, foi para perguntar-me se eu conhecia Fulana ou Sicrana, senhoras americanas que eu encontrara na casa de Elliott quando tia Louisa e Isabel ali estiveram hospedadas. Parecia conhecê-las melhor do que eu e fiquei a conjeturar como chegara ele à situação presente. Não era ainda muito tarde; tínhamos, no entanto, que nos retirar, pois precisávamos nos levantar de madrugada.

“Vamos tomar mais uma cerveja antes de sair”, propôs

Kosti.

– Sorveu-a aos bocadinhos, espiando-me com seus olhinhos vivos. Percebi então de que me fazia ele lembrar: de um porco mal-humorado.

“Por que motivo veio você trabalhar nesta mina infecta?”, perguntou-me.

“Pela experiência.”

“Tu es fou, mon petit.”

“E por que motivo está você trabalhando aqui?”

– Kosti encolheu os ombros desajeitados e maciços e respondeu:

“Entrei para a escola de cadetes, dos nobres, quando era criança. Meu pai era general do czar e eu fui oficial de cavalaria na última guerra. Mas eu não suportava Pilsudski. Tramamos matá-lo, mas alguém nos denunciou. Ele mandou fuzilar aqueles que foram capturados. Consegui atravessar a fronteira a tempo. Para mim só havia duas alternativas: a Legião Estrangeira ou uma mina de carvão. Escolhi dos males o menor.”

– Eu contara a Kosti qual ia ser o meu serviço na mina e ele não fizera comentário algum; mas agora, cravando o cotovelo na mesa, disse:

“Experimente abaixar minha mão.”

– Eu conhecia esta velha prova de força e coloquei minha palma aberta sobre a dele. Riu e disse: “Daqui a algumas semanas sua mão não estará assim macia”. Fiz toda a força possível, mas nada consegui contra aquela rocha; pouco a pouco ele foi empurrando minha mão até deitá-la sobre o mármore.

“Você é bem forte”, condescendeu ele em dizer. “Não são muitos que aguentam tanto tempo assim. Escute aqui: meu auxiliar não vale nada, é um francezinho esmirrado, sem um pingo de força. Venha comigo amanhã, que eu peço ao capataz que lhe dê o lugar dele.”

“Isto me agradaria”, respondi. “Acha que ele vai concordar?”

“Por um certo preço. Você pode dispor de cinquenta francos?”

– Kosti estendeu a mão e eu tirei uma nota da carteira. Fomos para casa e caímos na cama. Eu estava cansado e dormi como uma pedra.

– Achou o trabalho muito pesado? – perguntei a Larry.

– De quebrar os costados, a princípio – respondeu ele sorrindo. – Kosti ajeitou a coisa com o capataz e fui designado seu ajudante. Naquela ocasião ele estava trabalhando num espaço do tamanho de um banheiro de hotel; para chegar lá a gente tinha que atravessar um túnel tão baixo que era necessário andar de gatinhas.

Fazia ali um calor dos infernos e trabalhávamos só de calça. O vasto tronco branco e gordo de Kosti tinha qualquer coisa de intensamente repulsivo; parecia uma lesma enorme. O ruído do cortador pneumático, naquele espaço acanhado, era ensurdecedor. Meu trabalho era recolher os blocos de carvão que ele cortava, enfiá-los numa cesta e arrastá-la por todo o túnel até a boca, de onde seriam recolhidos para um vagonete quando, de intervalo em intervalo, por ali passasse o trem rumo aos elevadores. É a única mina de carvão que conheço, de modo que não sei se é esse o costume. Pareceu-me um tanto primitivo e dava um trabalhão dos infernos. Na metade do tempo parávamos para descansar, comíamos o nosso almoço e fumávamos. Eu me dava por feliz quando acabava o dia, e, céus, que coisa boa, um banho! Pensei que nunca conseguisse fazer com que meus pés ficassem limpos. Claro que minhas mãos ficaram cheias de bolhas, e doíam como o diabo; mas acabaram sarando. Habituei-me ao trabalho.

– Quanto tempo você aguentou?

– Só fiquei nesse serviço durante algumas semanas. Os vagonetes que levavam o carvão para os elevadores eram puxados por um trator, e o condutor era péssimo mecânico. Quando o motor enguiçava, o homem ficava sem saber o que fazer. Pois bem, acontece que sou um bom mecânico; examinei a máquina e em meia hora consegui pô-la a funcionar. O capataz contou ao gerente e este mandou me chamar, perguntando-me se eu entendia mesmo do assunto; o resultado foi ele dar-me o lugar do mecânico. Era monótono, naturalmente, mas fácil; e, como não tiveram mais aborrecimentos com a máquina, ficaram satisfeitos comigo.

Kosti ficou furioso com a mudança. Eu lhe convinha e ele estava habituado à minha companhia. Cheguei a conhecê-lo muito bem, trabalhando a seu lado o dia todo, indo com ele ao bistrô depois da ceia e dormindo no mesmo quarto. Era um sujeito engraçado. Tipo que você teria achado interessante. Não se misturava com os outros poloneses, e não frequentávamos os cafés que eles frequentavam. Kosti não podia esquecer que fora oficial de cavalaria e tratava-os como se fossem lixo. Eles, naturalmente, ficavam ofendidos com isso, mas o que podiam fazer? O sujeito era um touro; se houvesse uma briga, com ou sem faca, daria conta de meia dúzia deles. Mesmo assim, fiquei conhecendo alguns dos outros; e eles me contaram que Kosti fora de fato oficial de cavalaria de um dos mais elegantes regimentos, mas que mentia ao dizer que deixara a Polônia por razões políticas. Fora expulso do Clube dos Oficiais de Varsóvia e da cavalaria por ter sido apanhado trapaceando no jogo. Preveniram-me que não jogasse com ele, afirmando que era por esse motivo que Kosti os evitava – porque eles sabiam com quem estavam lidando.

Eu andara perdendo sistematicamente, não muito, apenas alguns francos cada noite; além do mais, quando ganhava, Kosti sempre insistia em pagar pelas bebidas, de modo que o prejuízo era insignificante. Pensei que estivesse numa maré de azar, ou que não jogasse tão bem quanto ele. Mas depois disso fiquei de olho atento e tive certeza de que ele roubava, mas juro que por mais que eu fizesse não conseguia descobrir o truque. Céus, que habilidade! Mas não achei possível ele ter as melhores cartas o tempo todo e continuei a observá-lo com olhar de lince. Kosti era esperto como ninguém e creio que percebeu que me haviam prevenido. Certa noite, depois de termos jogado durante algum tempo, fitou-me com um sorriso um tanto cruel, sarcástico, sua única maneira de sorrir, e disse:

“Quer ver uma mágica?”

– Pegou o baralho e me mandou dizer uma carta. Baralhou-as e pediu-me que escolhesse uma; ao aceder, verifiquei que era a carta que eu nomeara. Fez mais uma ou duas mágicas e depois me perguntou se eu jogava pôquer. Respondi que sim e ele deu as cartas. Quando olhei a minha mão, verifiquei que tinha uma quadra de ases e um rei ao lado.

‘’Você estaria disposto a apostar muito nesta mão, não estaria?”, perguntou-me.

“Todas as minhas fichas”, respondi.

“Pois seria tolice.” Ele mostrou a mão que dera para si próprio. Um straight flush. Como o conseguira, não sei. Riu do meu espanto. “Se eu não fosse um homem honesto, há muito já o teria depenado.”

“Não se pode dizer que você se saiu assim tão mal”, repliquei sorrindo.

“Isto é café pequeno. Não daria para pagar um jantar no Larue.”

– Continuamos a jogar quase todas as noites. Cheguei à conclusão de que ele roubava, não tanto pelo dinheiro, mas pela satisfação de roubar. Sentia um estranho prazer em me fazer de tolo, achando divertidíssimo saber que eu desconfiava de sua malandragem, sem no entanto poder atinar com ela.

Mas este era apenas um lado seu, e o outro é que o tornava interessante. Eu não podia conciliar os dois. Embora se gabasse de só ler jornais e histórias de detetive, Kosti era um homem culto. Tinha boa prosa, era sarcástico, áspero, cínico, mas que prazer ouvi-lo! Fervoroso católico; tinha um crucifixo na parede, em cima da cama, e ia à missa todos os domingos. Nos sábados à noite costumava embriagar-se. O bistrô que frequentávamos ficava repleto nesse dia; ar carregado de fumaça. Lá iam pacatos mineiros de meia-idade, com suas famílias, grupos de moços que faziam um barulho dos diabos, e homens de rosto coberto de transpiração, que se punham à volta de uma mesa, jogando belote com ruidosas exclamações, enquanto suas mulheres, sentadas um pouco atrás, sapeavam o jogo. A multidão e o barulho tinham um estranho efeito sobre Kosti; ele ficava sério e começava a falar daquilo que menos se esperava – misticismo. Naquela ocasião eu não entendia do assunto, a não ser por um ensaio de Maeterlinck, sobre Ruysbroek, que eu lera em Paris. Mas Kosti falava de Plotino e Dionísio, o Areopagita, de Jacob Boehme, o sapateiro, de Meister Eckhart. Fantástico, ouvir aquele sujeito desajeitado e grandalhão, que fora expulso do seu meio, aquele homem vencido, sarcástico e amargurado, falar da derradeira realidade das coisas e da bem-aventurança da união com Deus. Aquilo me era desconhecido e me deixava confuso e excitado. Eu me sentia como uma pessoa que, fechada num quarto escuro, sabe que lhe bastará afastá-la para ter diante dos olhos a beleza pura da madrugada sobre os campos. Mas, quando estava sóbrio e eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, Kosti ficava furioso.

Seus olhos adquiriam uma expressão despeitada. “Como é que posso explicar o que é, se eu não sabia o que estava dizendo?”, rosnava ele.

– Mas eu via que estava mentindo. Ele sabia perfeitamente sobre o que estivera falando. Sabia muita coisa. Claro que estivera bêbado; mas o olhar, a expressão arrebatada do seu rosto feio não tinham por causa única a bebida. Havia alguma coisa mais. Quando me falou nisso pela primeira vez, disse-me algo de que não me esqueci e que me deixou horrorizado: que o mundo não é coisa criada, pois do nada nada pode provir, e sim uma manifestação da natureza eterna; bom, até aí, vá lá; mas depois ele acrescentou que, tanto quanto o bem, o mal é uma direta manifestação da divindade. Estranhas palavras para serem ditas naquele café barulhento e sórdido, ao som de músicas populares que um piano automático tocava.


2

Para descanso do leitor, começo aqui nova seção; faço-o, porém, apenas para conveniência dele, pois a conversa foi ininterrupta. Aproveito a oportunidade para dizer que Larry falava sem pressa, muitas vezes escolhendo com cuidado os vocábulos e, embora eu não queira dar a entender que estive a repeti-los com exatidão, tentei reproduzir, não somente a essência, mas também a forma da narrativa. Sua voz, de timbre rico, possuía uma qualidade musical que agradava ao ouvido; e, enquanto falava, sem gesticulação de espécie alguma, fumando o seu cachimbo e parando de vez em quando para acendê-lo, fitava a gente com expressão simpática, às vezes quase patética, nos olhos negros.

– Depois veio a primavera – continuou Larry. – Chegou tarde àquela região lúgubre e plana, onde ainda chovia e fazia frio. Mas às vezes, com um dia bonito, era sacrifício a gente entranhar-se pela terra, num elevador gigante, repleto de mineiros metidos em sujos macacões. Era primavera, sim, mas chegava timidamente àquela paisagem sombria, como que incerta da recepção que lhe fariam. Lembrava uma flor, narciso ou lírio, que desabrochasse no vaso de uma janela de cortiço, deixando a gente a imaginar por que razão estaria ali. Certo domingo de manhã, lia eu na cama – sempre nos levantávamos tarde aos domingos – quando Kosti me disse sem mais aquela:

“Vou-me embora daqui. Quer ir comigo?”.

– Eu sabia que muitos poloneses voltavam à pátria, no verão, para ajudar na colheita, mas ainda era cedo para isso; além do mais, Kosti não podia voltar para a Polônia.

“Para onde vai você?”, perguntei.

“A pé, pela estrada afora. Através da Bélgica, pela Alemanha, e Reno abaixo. Poderíamos trabalhar em alguma fazenda durante o verão.”

– Não levei dois minutos a resolver. “Parece ótimo”, respondi.

– No dia seguinte avisamos o capataz que íamos sair. Encontrei um sujeito que concordou em ficar com a minha maleta, a troco de um saco de viagem. As roupas que eu não quis ou não pude levar dei-as ao filho mais novo de madame Duclerc, que era mais ou menos do meu tamanho. Kosti deixou sua mala e levou algumas roupas num saco de viagem; no dia seguinte, assim que a velha nos deu o café, partimos.

Não tínhamos pressa e sabíamos que nas fazendas não nos aceitariam a não ser quando o feno estivesse pronto para ser cortado. Vagueamos, portanto, pela França e Bélgica, passando por Namur e Liège, entrando na Alemanha por Aachen. Não caminhávamos mais que dez ou doze milhas por dia; quando o aspecto de uma aldeia nos agradava, parávamos ali. Sempre havia uma hospedaria onde nos arranjavam duas camas, e uma taverna onde podíamos comer e beber. Tivemos, em geral, sorte com o tempo. Ótimo, viver ao ar livre, depois de tantos meses enfurnados na mina. Creio que até então eu não compreendera, realmente, como é agradável o espetáculo de um campo verdejante, e como é bela a árvore cheia de brotos, quando os galhos estão velados por uma tênue neblina verde. Kosti começou a ensinar-me alemão e creio que conhecia tão bem essa língua quanto o francês. À medida que avançávamos ele me dizia os nomes dos objetos que íamos vendo, fazendo-me também repetir simples sentenças em alemão. Isto ajudava a passar o tempo e, quando chegamos à Alemanha, pelo menos eu podia pedir o que queria.

Colônia ficava um pouco fora do caminho, mas Kosti insistiu em ir até lá, por causa das Onze Mil Virgens, disse ele; mas, ali chegando, caiu na farra. Não o vi durante três dias; quando apareceu no quartinho que havíamos alugado numa espécie de pensão de operários, veio muito mal-humorado. Metera-se numa briga, levara um tapa-olho e tinha um lábio cortado. Não parecia nenhum Adônis, garanto-lhe! Dormiu durante vinte e quatro horas; depois começamos a descer o vale do Reno, rumo a Darmstadt, onde, dizia ele, teríamos mais probabilidade de conseguir trabalho, por ser região mais fértil.

Nunca houve coisa que me desse maior prazer! O bom tempo perdurava; andamos por cidades e aldeias.

Quando dávamos com uma vista bonita, parávamos para apreciá-la. Pernoitávamos onde podíamos e certa vez dormimos no feno, num paiol. Comíamos em estalagens à beira da estrada; quando penetramos na região vinícola, abandonamos a cerveja pelo vinho. Quase sempre fazíamos camaradagem com as pessoas que encontrávamos nas tavernas. Kosti tinha uma rude jovialidade, que lhes inspirava confiança; jogava com elas skat, jogo de cartas alemão, e as depenava com tão ruidoso bom humor, contando as piadas grosseiras que aquela gente apreciava, que elas quase não sentiam o prejuízo de alguns pfennigs. Pratiquei assim o meu alemão. Eu comprara em Colônia uma gramaticazinha anglo-germânica, e ia indo muito bem. Mas à noite, depois de ter ingerido alguns litros de vinho, de um modo estranho e mórbido Kosti falava da fuga do Só para o Só, da Negra Noite da Alma, e da união, em êxtase final, das criaturas com o Bem-Amado. Mas de madrugada, quando sobre a relva orvalhada caminhávamos em meio à risonha natureza, ao ver que eu procurava fazê-lo expandir-se sobre o assunto, ficava tão indignado que parecia querer bater-me.

“Cale a boca, seu idiota”, dizia ele. “Que pretende você com toda essa bobice? Vamos continuar com o nosso alemão.”

– A gente não pode discutir com um sujeito que tem um punho que é um martelo e que não faria cerimônia em usá-lo – continuou Larry. – Eu já o vira com raiva. Sabia que era capaz de me pôr a nocaute e de me largar numa valeta, esvaziando-me os bolsos, ainda por cima. Por mais que eu tentasse, não conseguia compreendê-lo. Quando o vinho lhe desatava a língua, ele falava do Inefável, abandonando a linguagem obscena de que comumente se servia, como os sujos macacões que usava na mina; falava bem, e até mesmo com eloquência. Eu achava impossível que não estivesse sendo sincero. Não sei por quê, mas ocorreu-me que havia escolhido aquele trabalho duro, bruto, de mineiro para castigar a carne. Achei que detestava aquele seu corpo vasto e rude, desejando torturá-lo, e que sua desonestidade no jogo, sua amargura e crueldade eram a revolta da vontade contra... – oh! não sei como me exprimir – um arraigado instinto de santidade, contra um sujeito de Deus, que o apavorava e obcecava ao mesmo tempo.

Não nos tínhamos apressado; a primavera estava quase finda e as árvores enfolhadas. As uvas, nas parreiras, começavam a desenvolver-se. Fazíamos o possível para seguir pelas estradas, cada vez mais poeirentas. Nos arredores de Darmstadt, Kosti disse que era melhor começarmos a procurar trabalho. Nosso dinheiro estava escasseando. Eu tinha no bolso uma meia dúzia de letras de crédito, mas tomara a resolução de não usá-las, se possível. Quando víamos uma fazenda prometedora, parávamos e perguntávamos se não precisavam de dois camaradas. Confesso que não devíamos inspirar muita confiança. Sujos, cobertos de suor e de poeira. Kosti parecia um bandido e não creio que eu estivesse com melhor aparência. Não houve quem nos quisesse. Numa delas, o fazendeiro disse que tomaria Kosti, mas que não precisava de mim; Kosti replicou que éramos companheiros e não nos separaríamos. Eu lhe disse que ficasse, mas não consegui convencê-lo. Fiquei admirado. Sabia que ele simpatizara comigo; por quê, não sei, pois eu não era do tipo que deveria atraí-lo; mas nunca pensei que me tivesse suficiente amizade para recusar um emprego por minha causa. Cheguei a sentir remorsos, pois, para ser franco, eu não gostava dele, achando-o mesmo um tanto repulsivo; mas quando tentei exprimir o prazer que sua recusa me causara, ele logo me deu o contra.

Finalmente nossa sorte mudou. Tínhamos acabado de atravessar uma vila, numa baixada, quando chegamos a uma fazenda que não tinha muito má aparência. Batemos à porta; uma mulher veio abrir. Oferecemos nossos serviços, como de costume. Dissemos que não queríamos salário, mas que estávamos dispostos a trabalhar por casa e comida; qual nossa surpresa quando, em vez de nos bater com a porta na cara, ela nos disse que esperássemos! Chamou por alguém dentro de casa e um homem apareceu. Ele nos encarou bem e perguntou de onde vínhamos, pedindo para examinar nossos documentos. Olhou-me de novo, quando viu que eu era americano. Não pareceu muito satisfeito com isso, mas mesmo assim nos convidou para entrar e tomar um copo de vinho. Fomos para a cozinha; sentamo-nos. A mulher trouxe uma garrafa de mesa e uns copos. O fazendeiro nos contou que um touro investira contra seu empregado, que este estava no hospital e só ficaria bom depois de terminada a colheita. Com tantos homens mortos, e outros empregando-se nas fábricas que pululavam ao longo do Reno, havia enorme falta de braços nas fazendas. Para nós não era novidade; estivéramos mesmo contando com isso. Pois bem, para encurtar a história, o homem nos aceitou. Havia muito espaço na casa, mas creio que ele não nos queria com a família; em todo caso disse que havia duas camas no paiol e que podíamos dormir lá.

O trabalho não era duro. Tínhamos de cuidar das vacas e dos porcos; as máquinas estavam em mau estado e tratamos de consertá-las; mesmo assim, tínhamos momentos de lazer. Eu gostava do cheiro adocicado dos campos, e à noite ia passear por ali, a sonhar. Era uma boa vida.

A família consistia no velho Becker, sua mulher, sua nora viúva e os filhos desta. Becker era um homem troncudo, de cabelos grisalhos, que devia estar beirando os cinquenta anos. Estivera na guerra e mancava devido a um ferimento recebido na perna. Doía-lhe muito e ele bebia para disfarçar a dor. Geralmente estava bem embalado quando ia para a cama. Kosti deu-se admiravelmente com ele; habituaram-se a ir até a taverna, depois do jantar, jogar skat e empanturrar-se de vinho. Frau Becker fora criada da casa. Tinham-na tirado de um orfanato e Becker casara-se com ela pouco depois da morte de sua mulher. Era bem mais moça do que ele, bonitona, robusta, rosto corado e cabelos louros, ar profundamente sensual. Kosti não levou tempo para perceber que ali havia futuro. Eu lhe disse que não fosse idiota; não valia a pena arriscarmos o nosso emprego. Ele apenas zombou de mim, dizendo que Becker não a satisfazia e que ela não queria outra coisa. Eu sabia que era inútil apelar para a sua noção de honra, mas aconselhei-o a ter cuidado; talvez Becker não percebesse suas intenções, mas ali estava a nora, e a esta nada escapava.

Ellie, assim se chamava ela, era uma jovem alta, grande, de vinte e poucos anos; cabelos e olhos negros, pálido rosto quadrado, expressão taciturna. Ainda estava de luto pelo marido, que morrera em Verdun. Era muito devota e todos os domingos de manhã lá ia ela à aldeia assistir à primeira missa: à tarde voltava para a bênção. Tinha três filhos, um dos quais nascera depois da morte do marido; à hora das refeições nunca falava, a não ser para repreendê-los. Trabalhava pouco na fazenda, mas passava a maior parte do tempo tomando conta das crianças; à noite sentava-se sozinha na sala, com um romance, deixando aberta a porta para poder ouvir, caso algum deles chorasse. As duas mulheres odiavam-se. Ellie desprezava Frau Becker porque era enjeitada e fora empregada doméstica, não se conformando com o fato de ser ela a dona da casa e estar em posição de dar ordens.

Ellie era filha de um fazendeiro abastado e trouxera bom dote. Não fora educada na escola da aldeia, e sim em Zwingenberg, a cidade mais próxima, onde havia um gymnasium para meninas. A pobre Frau Becker viera para a fazenda com catorze anos, e quando muito sabia ler e escrever. Era este outro ponto da discórdia entre as duas mulheres. Ellie não perdia oportunidade de exibir sua sabedoria; e Frau Becker, muito vermelha, perguntava de que adiantava aquilo para uma mulher de fazendeiro. Ellie olhava então a medalha de identificação do marido, que usava no pulso, presa por uma corrente de ferro, e com expressão amarga no rosto taciturno, dizia:

“Mulher de fazendeiro, não. Apenas viúva de fazendeiro. Apenas viúva de um herói que deu sua vida pela pátria.”

– O pobre Becker tinha um trabalhão para conservar a paz entre as duas.

– Mas que pensavam eles de você? – perguntei a Larry.

– Oh! achavam que eu desertara do Exército americano e não podia voltar, pois do contrário seria preso. Era assim que explicavam a minha recusa em acompanhar Becker e Kosti à taverna. Julgavam que eu não queria chamar atenção sobre minha pessoa, nem correr o risco de ter que responder às perguntas do sargento de polícia. Quando Ellie descobriu que eu estava querendo aprender alemão, foi buscar seus livros escolares e disse que estava pronta a ensinar-me. E assim, depois da ceia, íamos para a sala, deixando Frau Becker na cozinha. Eu lia em voz alta enquanto ela me corrigia a pronúncia, procurando fazer-me compreender o sentido de palavras sobre as quais eu não tinha a mínima ideia. Desconfiei que estava fazendo isto não tanto para me ajudar, mas para levar vantagem sobre Frau Becker.

Durante todo esse tempo Kosti estava dando em cima de Frau Becker, mas sem nenhum resultado. Ela era uma mulher alegre, folgazã, sempre pronta a pilheriar e rir com ele, e Kosti tinha jeito para tratar as mulheres. Creio que ela desconfiava das intenções do polonês e sentia-se lisonjeada, mas, quando ele começou a beliscá-la, disse-lhe que não lhe pusesse as mãos em cima e deu-lhe uma bofetada na cara. E garanto que foi uma boa bofetada!

Larry hesitou durante alguns instantes, sorrindo um tanto encabulado.

– Nunca fui do tipo de achar que as mulheres me perseguem, mas ocorreu-me que... pois bem, que Frau Becker estava caída por mim. Não fiquei nada satisfeito. Para começar, ela era muito mais velha do que eu; além do mais, o marido fora muito correto conosco. Era ela quem servia à mesa, e não pude deixar de notar que era mais generosa comigo do que com os outros; pareceu-me também que estava sempre procurando ocasião de ficar a sós comigo. Dirigia-me sorrisos que, creio eu, poderiam ser qualificados de provocantes. Costumava perguntar-me se eu não tinha namorada, dizendo que um rapaz novo como eu deveria sentir falta disso, num lugar daqueles. O senhor sabe como são essas coisas. Eu só tinha três camisas e assim mesmo bem surradas. Certa vez ela me disse que era o cúmulo eu usar aqueles trapos; que as trouxesse, pois ela as consertaria para mim. Ellie ouviu-a e, da próxima vez que nos vimos a sós, disse-me que se eu tivesse alguma coisa para consertar, era só lhe trazer. Respondi que não valia a pena. Um ou dois dias depois notei que minhas meias estavam cerzidas, minhas camisas remendadas e de volta ao banco do paiol onde guardávamos as nossas coisas; mas até hoje não sei a qual das duas devo gratidão. Naturalmente não levei Frau Becker a sério; era uma boa alma e achei que aquilo devia ser apenas instinto maternal da sua parte. Mas certo dia Kosti me disse:

“Escute aqui; não é a mim que ela está querendo; é a você. Não tenho a mínima probabilidade.”

“Não diga tolices”, repliquei. “Ela tem idade bastante para ser minha mãe.”

“E que tem isso? Não faça cerimônia, meu rapaz; eu não sou obstáculo. Talvez ela não seja lá muito moça, mas é bem bonitona.”

“Oh! cale a boca.”

“Por que é que você hesita? Não por minha causa, espero. Sou filósofo e sei que coisa que não falta no mar é peixe. Não a censuro. Você é moço. Também já tive o

– Não me agradou verificar que Kosti tinha tão absoluta certeza daquilo em que eu não queria acreditar. Não sabia bem como agir; lembrei-me então de vários incidentes que no momento não me tinham chamado atenção. Frases ditas por Ellie, às quais eu não dera importância, mas que agora adquiriam significação; não havia dúvida de que também Ellie sabia. Muitas vezes ela aparecia de supetão na cozinha, quando acontecia de Frau Becker e eu estarmos a sós. Fiquei com a impressão de que estava nos espionando.

Não gostei daquilo; pareceu-me que estava querendo apanhar-nos. Eu sabia que ela detestava Frau Becker e que ao menor pretexto armaria um barulho. Naturalmente ela nada poderia descobrir, mas era uma criatura maldosa e eu não sabia que mentiras não iria inventar para envenenar o espírito do velho Becker. Fiquei sem saber o que fazer, a não ser fingir-me de tão ingênuo que não percebia o manejo da mulher. Estava satisfeito na fazenda, gostava do trabalho e não queria partir antes de terminada a colheita.

Não pude deixar de sorrir. Imaginei Larry, de shorts e

camisa remendada, rosto e pescoço queimados pelo sol quente do vale do Reno, corpo delgado e flexível, olhos negros cravados nas órbitas... Não duvidei de que o seu físico tivesse feito palpitar de desejo aquela matrona loura e de seios opulentos.

– Pois bem, passou-se o verão. Trabalhávamos como loucos; cortamos e empilhamos o feno. Depois, quando as cerejas amadureceram, Kosti e eu trepamos em escadas para colhê-las; as mulheres recolhiam nas cestas que o velho Becker ia vender em Zwingenberg. Depois cortamos o centeio. E, naturalmente, ainda tínhamos que tratar dos animais. Estávamos de pé antes do amanhecer e só parávamos com o cair da noite. Julguei que Frau Becker houvesse desistido da conquista; eu fazia o possível, sem ofendê-la, para conservá-la a distância. À noite eu tinha sono demais para querer estudar alemão, de modo que logo depois da ceia fugia para o paiol e caía na cama. Em geral Kosti e Becker iam à taverna, mas eu estava ferrado no sono quando Kosti voltava. Fazia calor no paiol e eu dormia nu.

Certa noite acordei. No primeiro momento não atinei com o que era; eu estava ainda meio adormecido. Senti uma mão quente na minha boca e percebi que havia alguém na cama comigo. Afastei com força a mão, mas uma boca se colou à minha, dois braços me enlaçaram e senti os pesados seios de Frau Becker contra o meu corpo.

“Sei still”, murmurou ela. “Fique quieto.”

– Ela me apertou, beijou-me o rosto com lábios quentes e carnudos, suas mãos desceram pelo meu corpo e suas pernas se entrelaçaram com as minhas.

Larry fez uma pausa. Não pude deixar de rir.

– E o que fez você?

Ele me atirou um sorriso modesto. Chegou mesmo a corar.

– Que podia eu fazer? Eu ouvia a respiração pesada de Kosti na cama pegada à minha. A situação de José sempre me pareceu um tanto ridícula. Eu tinha apenas vinte e três anos. Não podia fazer um escândalo e expulsá-la dali. Não quis ofendê-la. Fiz o que se esperava de mim.

Depois ela escorregou da cama e saiu do paiol na ponta dos pés. Garanto-lhe que suspirei de alívio. Sabe, eu tivera medo. “Céus, que perigo!”, pensei. Provavelmente Becker chegara completamente embriagado, tendo caído numa espécie de torpor; mas eles dormiam na mesma cama e existia a possibilidade de o velho acordar e ver que a mulher não estava a seu lado. E ainda havia Ellie. Ela sempre dizia que não dormia bem. Se estivesse acordada, poderia ter ouvido Frau Becker descer a escada e sair de casa. Subitamente, lembrei-me de uma coisa. Quando Frau Becker estivera na cama comigo, eu sentira um frio de metal contra a minha pele. Não prestara atenção a isso; como você sabe, a gente não liga a nada em tais circunstâncias, e nunca me passara pela cabeça procurar saber que diabo de coisa era aquela. Mas agora se tinha feito luz no meu espírito. Eu estava sentado na beira da cama, refletindo e preocupando-me com as consequências, e tão grande foi o meu choque que me pus de pé. A peça de metal era a medalha de identificação do marido de Ellie, que ela usava em volta do pulso, e não fora Frau Becker que se deitara comigo. Fora Ellie.

Ri a bandeiras despregadas. Não pude conter-me.

– Pode ser engraçado para os outros – disse Larry. – Mas não foi nada engraçado para mim.

– Pois bem, agora que você examina o caso a sangue-frio, não lhe parece que há nele uma nota cômica?

Larry não pôde reprimir um sorriso.

– Talvez. Mas era uma situação embaraçosa. Quais seriam as consequências? Eu não gostava de Ellie. Achava-a mesmo muito pouco simpática.

– Mas como é que você pôde confundi-las?

– Estava escuro como breu. Ela não disse uma palavra, a não ser para me recomendar que ficasse de bico calado. Ambas eram mulheres altas e robustas. Eu andava desconfiado de que Frau Becker estava de olho em mim. Nem por sombras me ocorrera que Ellie me desse confiança, pois estava sempre pensando no marido. Acendi um cigarro e refleti sobre a situação; quanto mais refletia, menos ela me agradava. Pareceu-me que a melhor coisa a fazer era sumir.

Inúmeras vezes eu amaldiçoara Kosti por ter sono tão pesado.

Quando trabalhávamos na mina, eu tinha que sacudi-lo com toda a força para fazê-lo levantar-se a tempo para o serviço. Mas agora me dei por feliz! Acendi a lamparina, vesti-me, meti minhas coisas no saco – não era muito, de modo que não me levou mais que um minuto – e enfiei os braços nas correias. Atravessei o paiol, só de meias, não calçando os sapatos a não ser quando cheguei embaixo da escada. Soprei então a lamparina. Noite escura, sem lua, mas eu sabia como ganhar a estrada; dali tomei a direção da aldeia.

Caminhei a passos rápidos, pois queria atravessá-la enquanto todos estivessem dormindo. Distava apenas doze milhas de Zwingenberg, e lá cheguei justamente quando a cidade começava a despertar. Nunca me esquecerei daquela caminhada. Silêncio absoluto, a não ser pelo som dos meus passos na estrada, e de vez em quando o canto de um galo numa fazenda. E então, aquela luz acinzentada, quando já não é mais noite e ainda não está claro; os primeiros sintomas da madrugada, o nascer do sol, os pássaros começando a cantar; e aquela luxuriante paisagem verde, prados, bosques, e nos campos o centeio de um ouro-prateado, à fria luz do novo dia...

Tomei uma xícara de café com pão em Zwingenberg; fui depois ao correio e telegrafei para o American Express, pedindo que mandassem minhas roupas e meus livros para Bonn.

– Por que Bonn? – interrompi.

– Eu simpatizara com a cidade quando ali paramos, na nossa descida pelo Reno. Gostei do reflexo da luz sobre os telhados e o rio, das ruas antigas e estreitas, das vilas, e jardins, e avenidas de castanheiros, e dos edifícios rococós da universidade. Ocorreu-me, na ocasião, que não seria mau lugar para a gente ali passar uns tempos. Mas achei preferível tornar-me mais apresentável antes de surgir por lá; eu parecia um vagabundo e, se fosse procurar lugar numa pensão, não inspiraria muita confiança. Tomei, portanto, o trem para Frankfurt e ali comprei uma maleta e algumas roupas. Fiquei um ano em Bonn.

– E tirou algum proveito da sua experiência, na mina, digo, e na fazenda?

– Tirei – respondeu Larry inclinando a cabeça e sorrindo.

Mas não me disse qual fora, e naquela ocasião eu já o conhecia bastante para saber que, quando queria contar uma coisa, contava-a, mas, quando não estava disposto a isso aparava as perguntas com calmos gracejos que tornavam inútil a insistência. Preciso, no entanto, lembrar ao leitor que Larry me narrou tudo isto dez anos mais tarde. Até então, até estar de novo em contato com ele, eu não tinha a menor ideia do seu paradeiro ou do que andara fazendo. Era mesmo possível que tivesse morrido. A não ser por minha amizade com Elliott, que me punha a par da vida de Isabel, e me fazia, portanto, lembrar de Larry, provavelmente eu teria me esquecido da sua existência.


3

Isabel casou-se com Gray Maturin em princípios de junho do ano seguinte àquele em que desmanchou o seu noivado com Larry. Embora Elliott achasse detestável sair de Paris quando a estação estava no auge, tendo portanto que perder inúmeras festas elegantíssimas, seu instinto de família era muito forte para permitir-lhe que deixasse de cumprir aquilo que considerava um dever social. Os irmãos de Isabel não podiam abandonar seus postos, em lugares tão remotos, de modo que ele se viu obrigado a fazer a penosa viagem a Chicago, para levar a noiva ao altar. Lembrando-se de que os aristocratas franceses tinham ido para a guilhotina nos seus trajes mais esplendorosos, foi especialmente a Londres para comprar um novo fraque, um colete cinza, transpassado, e um chapéu de seda. Quando voltou para Paris, convidou-me para ir inspecionar essas elegâncias. Estava um tanto preocupado, pois o alfinete de pérola cinza que ele geralmente usava não iria fazer vista contra a gravata cinzento-clara, que achava apropriada para a festiva solenidade. Lembrei-lhe o seu alfinete de esmeralda e brilhante.

– Se eu fosse um convidado... está certo – disse ele.

– Mas, na posição que vou ocupar, sinto que a pérola é indicada.

Estava muito satisfeito com o casamento, tão de acordo com suas ideias convencionais, e se referia a ele com a untuosidade de uma duquesa-mãe que desse opinião sobre as vantagens de uma união entre um rebento dos La Rochefoucauld e uma filha dos Montmorency. Sem medir despesas e como sinal evidente de sua aprovação, ia levando como presente de casamento um belo retrato, por Nattier, de uma princesa real da França.

Parece que Henry Maturin comprara para o jovem par uma casa em Astor Street, para que eles ficassem perto de mrs. Bradley e não muito longe do seu palácio em Lake Shore Drive. Por uma feliz coincidência, em que suspeitei da cumplicidade de Elliott, Gregory Brabazon se achava em Chicago na ocasião da compra e a decoração da casa lhe foi confiada. Ao voltar para a Europa, tendo desistido por completo da estação em Paris e indo diretamente para Londres, Elliott trouxe várias fotografias. Brabazon se lançara a todo pano. Nas salas de visitas e de jantar ele se limitara exclusivamente ao estilo George ii, e com amplo êxito. Quanto à biblioteca, aposento reservado a Gray, ele se inspirara numa sala do Palácio Amalienburg, de Munique; e que, exceto pelo inconveniente de ali não haver lugar para livros, ficara perfeita. A não ser pelas camas gêmeas, Luís xv em visita a madame de Pompadour se teria sentido perfeitamente à vontade no quarto que Brabazon decorara para o jovem casal; mas o banheiro de Isabel o teria deixado embasbacado: todo de espelhos – paredes, teto e banheira –, e nas paredes peixes prateados, em profusão, brincavam no meio de douradas plantas aquáticas.

– É, naturalmente, uma casa pequena – disse Elliott. – Mas Henry Maturin me contou que a decoração lhe custou nada menos que cem mil dólares. Uma fortuna para muita gente.

A cerimônia foi feita com a maior pompa que a Igreja Episcopal permitia.

– Em nada comparável a um casamento em Notre-Dame – disse-me Elliott em tom benevolente. – Mas, para um casamento protestante, não deixou de ser correto.

A imprensa se mantivera à altura; com ar despreocupado Elliott me atirou os recortes. Mostrou-me também fotografias de Isabel, pesadona, mas bonita no seu vestido de noiva; e Gray, maciço, mas belo rapaz, não parecendo muito à vontade nos trajes próprios para a ocasião. Havia um grupo dos noivos com as damas de honra; outro com mrs. Bradley num suntuoso vestido e Elliott segurando o seu chapéu de seda com uma graça que só mesmo ele sabia ter. Perguntei-lhe como ia indo mrs. Bradley.

– Emagreceu muito, e não gostei nada da sua cor, mas vai indo bem. Tudo isso, naturalmente, foi um esforço para ela, mas agora poderá descansar tranquilamente.

Um ano mais tarde Isabel teve uma filha a quem, de acordo com a moda da época, deu o nome de Joan; dali a dois anos teve outra filha, que, também para acompanhar a moda, se chamou Priscilla.

Um dos sócios de Henry Maturin morreu e os outros, sob pressão, se retiraram da firma, de modo que ele ficou sendo o único dono de um negócio que sempre administrara despoticamente. Viu então realizada a maior ambição de sua vida, que era admitir Gray como sócio. Nunca a firma estivera tão florescente.

– Estão ganhando dinheiro a rodo, caro amigo – contou-me Elliott. – Imagine você, com vinte e cinco anos de idade Gray está ganhando cinquenta mil dólares por ano, e isso é apenas o começo. Os recursos da América são inesgotáveis. Não se trata de falsa prosperidade, é apenas o desenvolvimento natural de uma grande nação.

Seu peito se encheu de exagerado patriotismo.

– Henry Maturin não viverá eternamente; ele tem pressão muito alta, você sabe. Quando chegar aos quarenta anos, provavelmente Gray terá uma fortuna de vinte milhões de dólares. Principesco, caro amigo, principesco.

Elliott mantinha regular correspondência com a irmã; de vez em quando, à medida que os anos iam passando, me contava as notícias que mrs. Bradley lhe dava. Gray e Isabel eram muito felizes, as crianças uns amores. Viviam num estilo que com prazer Elliott reconhecia ser o apropriado; recebiam muito e saíam muito. Foi com visível satisfação que ele me contou que Isabel e Gray não tinham jantado sós num espaço de três meses. A corrente de divertimentos foi interrompida pela morte de mrs. Maturin, aquela senhora apagada e de boa família, com quem Henry Maturin se casara pelas suas ótimas relações, quando estava procurando vencer na cidade aonde seu pai chegara como matuto. Em respeito à sua memória, durante um ano o jovem par nunca recebeu, para jantar, mais que seis pessoas de uma vez.

– Sempre achei que oito era o número ideal – disse Elliott, resolvido a encarar o lado bom das coisas. – É suficientemente íntimo para permitir uma conversa geral, e bastante grande para dar impressão de uma reunião.

Gray era generosíssimo com a esposa. No nascimento da primeira filha deu-lhe um brilhante quadrado e no da segunda um casaco de vison. Andava muito ocupado para poder sair de Chicago, mas, quando podia sair de férias, iam para a importante mansão de Henry Maturin, em Marvin. Henry não podia negar coisa alguma ao filho adorado, e em certo Natal presenteou-o com uma plantação na Carolina do Sul, para que ali pudesse caçar patos, na estação propícia.

– Claro que nossos reis do comércio correspondem aos grandes patronos das artes da Renascença italiana, que fizeram fortuna no comércio – disse-me Elliott. – Os Medici, por exemplo. Houve dois reis franceses que não se julgaram diminuídos por casar com filhas dessa ilustre família, e vejo o dia em que as cabeças coroadas da Europa procurarão a mão das nossas princesas dos dólares. Que foi mesmo que Shelley disse? A grande idade recomeça agora, voltam os anos de ouro.

Durante tantos anos zelara Henry Maturin pelos interesses de mrs. Bradley e Elliott, que estes tinham imensa confiança no seu critério. Maturin nunca fora a favor de especulações e empregara o dinheiro deles em títulos seguros; mas, com a valorização, os dois irmãos viram suas fortunas, relativamente modestas, aumentadas de uma maneira que os deixou surpresos e encantados. Elliott contou-me que, sem que ele tivesse mexido uma palha, de 1918 a 1926 sua fortuna duplicara. Estava agora com sessenta e cinco anos, tinha cabelos grisalhos, rosto enrugado e olhos empapuçados, mas mesmo assim suportava com galhardia o peso dos anos; era magro e mantinha-se mais teso do que nunca; sempre fora moderado e cuidara do físico. Enquanto pudesse fazer seus ternos no melhor alfaiate de Londres, entregar-se aos cuidados do seu barbeiro particular, e de uma massagista que vinha todas as manhãs ajudá-lo a manter em perfeitas condições o corpo esbelto, Elliott não tinha a menor intenção de submeter-se aos estragos do tempo. Havia muito se esquecera que houvera época em que se rebaixara a ponto de negociar; e por meias palavras, pois não sendo idiota não ia dizer uma flagrante mentira, dava a entender que na mocidade fizera parte do corpo diplomático. Confesso que, se algum dia eu houvesse de pintar o retrato de um embaixador, teria sem hesitação escolhido Elliott para modelo. Mas as coisas estavam mudando. As grandes damas que o tinham auxiliado na sua carreira estavam ou mortas ou em idade avançada. As nobres inglesas, tendo perdido os maridos, viam-se obrigadas a entregar suas mansões às noras, retirando-se para vilas em Cheltenham ou modestas casas em Regent Park. Stafford House foi transformada em museu, Curzon House tornou-se o centro de uma organização, Devonshire House foi posta à venda. O iate onde Elliott costumava ficar quando ia a Cowes mudara de dono. As pessoas elegantes que atualmente ocupavam o centro do palco pouco se importavam com o homem idoso que Elliott era agora. Achavam-no cansativo e ridículo. Ainda compareciam de boa vontade aos seus complicados almoços, no Claridge, mas Elliott era bastante perspicaz para perceber que vinham mais por causa uns dos outros do que para vê-lo. Agora já ele não podia escolher à vontade entre os convites que antigamente lhe abarrotavam a escrivaninha e, mais frequentemente do que desejaria que se soubesse, sofria a humilhação de jantar sozinho na intimidade do seu apartamento. As senhoras da alta roda, na Inglaterra, quando devido a algum escândalo lhes veem fechadas as portas da sociedade, começam a interessar-se por arte e artistas, cercando-se de pintores, escritores, músicos. Elliott era por demais orgulhoso para sujeitar-se a tal humilhação.

– Os impostos de transmissão causa mortis e os aproveitadores da guerra estragaram a sociedade inglesa – disse-me ele. – Hoje ninguém mais faz questão de escolher suas relações. Londres ainda tem seus alfaiates, sapateiros e chapeleiros, e espero que durem enquanto eu durar; mas, fora disso, não vale mais nada. Meu caro amigo, imagine que a mesa dos St. Erth é agora servida por mulheres.

Elliott fez esses comentários quando nos afastávamos do Carlton House Terrace, após um almoço onde se dera um desagradável incidente. O nobre que nos convidara possuía uma boa coleção de quadros, e um americano chamado Paul Barton, que lá ia pela primeira vez, manifestou desejo de conhecê-la.

– O senhor tem um Ticiano, não tem?

– Tínhamos. Está agora na América. Um judeu qualquer nos ofereceu por ele um bom dinheiro e, como estávamos apertados na ocasião, o velho vendeu-o.

Notei que Elliott, todo eriçado, atirou um olhar venenoso ao jovial marquês, e adivinhei que fora ele quem comprara o quadro. Ficou furioso por se ver assim descrito, ele, um virginiano e descendente de um dos signatários da Declaração da Independência. Jamais sofrera igual afronta. E o pior era que detestava Paul Barton. O rapaz aparecera em Londres logo depois da guerra; tinha vinte e três anos, era louro, bonito e simpático, dançava admiravelmente e tinha ampla fortuna. Viera recomendado a Elliott e este, com sua bondade natural, o apresentara a vários amigos. Não satisfeito com isso, dera-lhe alguns valiosos conselhos sobre conduta. Baseando-se em sua própria experiência, deu-lhe a entender que, com pequenas gentilezas a senhoras idosas, e dando ouvidos a homens de destaque, por mais tediosos que fossem, não seria difícil a um estranho introduzir-se na sociedade.

Mas o mundo que aguardava Paul Barton era muito diferente daquele onde, uma geração antes, Elliott Templeton penetrara à custa de incrível perseverança. Era um mundo que só pensava em divertir-se. O gênio alegre de Paul Barton, seu físico agradável e maneiras insinuantes fizeram por ele em algumas semanas o que Elliott só conseguira com anos de persistência e força de vontade. Logo já ele não precisou do auxílio de Elliott e pouco fez para esconder esse fato. Tratava-o amavelmente, quando se encontravam, mas de uma maneira distante que ofendia profundamente o homem idoso. Elliott não escolhia seus convidados por simpatia, e sim visando ao sucesso da reunião; como Paul Barton era muito popular, continuou a convidá-lo a um ou outro dos seus almoços semanais, mas o afortunado rapazinho em geral estava comprometido e por duas vezes deixou Elliott na mão à última hora. Elliott fizera isto muitas vezes para não desconfiar que o outro recebera convite mais tentador.

– Você não é obrigado a acreditar, mas juro que agora, quando nos encontramos, é ele quem toma ares protetores para comigo – disse-me Elliott, fulo de raiva. – comigo. Ticiano. Ticiano – gaguejou ele. – Garanto que se visse um Ticiano não saberia reconhecê-lo.

Eu nunca vira Elliott tão encolerizado e calculei que talvez fosse por acreditar que Paul Barton perguntara sobre o quadro por maldade, tendo chegado a saber que fora comprado por Elliott, e pretendendo divertir-se à custa dele, quando contasse o caso e a resposta do marquês.

– Ele não passa de um esnobezinho indecente, e se há coisa que detesto no mundo é o esnobismo. Se não fosse por mim, não teria dado um passo. Talvez você não acredite, mas o pai dele fabricava móveis de escritório. Móveis de escritório! – Elliott conseguiu pôr um causticante desprezo nessas três palavras. – E quando digo que ele nem existe na América, que sua origem não podia ser mais humilde, ninguém parece dar a isso a mínima importância. Ouça o que lhe digo, meu caro; a sociedade inglesa exalou o seu último suspiro.

E nem Elliott achava a França em melhores condições. Ali, as nobres damas do seu tempo que ainda viviam tinham-se dedicado ao bridge (jogo que ele abominava), a obras de caridade e à educação dos netos. As imponentes mansões da aristocracia eram agora habitadas por industriais, argentinos, chilenos e senhoras americanas separadas dos maridos, que recebiam muito e com grande pompa; mas nas suas festas Elliott tinha a surpresa de encontrar políticos que falavam o francês com pronúncia vulgar, jornalistas que não sabiam comportar-se à mesa, e até mesmo atores. Rebentos de famílias reais não se envergonhavam de casar com filhas de negociantes. Inegavelmente Paris era uma cidade alegre, mas com que falsa alegria! Na sua insaciável sede de gozo, os moços não achavam nada mais divertido do que correr de um abafado cabaré a outro, tomando champanhe a cem francos a garrafa, e dançando, até cinco da madrugada, lado a lado com a ralé. A fumaça, o calor, o barulho davam dor de cabeça a Elliott. Não era esta a Paris que trinta anos antes ele aceitara como sua morada espiritual. Não era esta a Paris para onde os bons americanos iam quando morriam.


4

Mas Elliott tinha faro. Uma voz íntima sussurrou-lhe que a Riviera ia tornar-se novamente o ponto de reunião dos nobres e dos elegantes. Conhecia bem o litoral; várias vezes, ao voltar de Roma onde fora cumprir seus deveres na corte pontifícia, passara alguns dias em Monte Carlo, ou em Cannes, na vila de um ou outro dos seus amigos. Mas isso fora no inverno, e ultimamente os murmúrios indicavam que estava sendo procurada para lugar de veraneio. Os grandes hotéis conservavam-se abertos; os nomes dos veranistas apareceram nas colunas sociais do Herald de Paris e Elliott leu os conhecidos nomes com ar de aprovação.

– Estou cansado do mundo – disse ele. – Cheguei a uma época da vida em que meu desejo é apreciar os encantos da natureza.

Talvez a observação pareça obscura. Mas não o é. Elliott sempre considerara a natureza um empecilho à vida social, e não tinha muita paciência com as pessoas que se davam ao trabalho de ir ver um lago, ou uma montanha, quando tinham diante dos olhos uma cômoda da Regência ou um quadro de Watteau. Naquela ocasião ele podia dispor de uma grande quantia. Atiçado por Gray e exasperado por ver seus amigos fazerem, na Bolsa, fortunas da noite para o dia, Henry Maturin finalmente se deixara arrastar pela corrente, e, abandonando pouco a pouco seus métodos conservadores, não vira motivo para não se aproveitar também da situação. Escreveu a Elliott, dizendo que como sempre continuava avesso a jogatinas, mas que aquilo não era especulação e sim uma prova da confiança que tinha nos inesgotáveis recursos do país. Seu otimismo tinha por base o bom senso. Ele não via obstáculo ao progresso da América. Terminava dizendo que comprara para Louisa Bradley, depositando margem, um certo número de títulos seguros, e que tinha o prazer de participar a Elliott que ela estava com um lucro de vinte mil dólares. Finalmente, se Elliott quisesse ganhar dinheiro e lhe permitisse seguir o seu critério, tinha ele quase certeza de que não o decepcionaria. Inclinado a usar as mais surradas citações, Elliott disse que tinha forças para resistir a tudo, menos à tentação; como consequência disso, quando lhe traziam o Herald, ao café da manhã, em vez de olhar a coluna social, hábito de tantos anos, concentrava toda a sua atenção nas cotações da Bolsa. Tão bom resultado tiveram as transações de Henry Maturin em seu favor que Elliott se via agora com a bela quantia de cinquenta mil dólares, que nada fizera para ganhar.

Decidiu liquidar, e com o lucro comprar uma casa na Riviera. Como retiro do mundo, escolheu Antibes, que ficava em posição estratégica entre Cannes e Monte Carlo, sendo acessível a essas duas cidades; mas é impossível dizer-se se foi a mão da Providência ou o seu instinto seguro que determinou a escolha de um lugar que logo se tornaria o centro da moda. Morar numa vila com jardim era de uma vulgaridade suburbana que repugnava ao seu exigente paladar; assim sendo, Elliott comprou duas casas dando para o mar, na parte velha da cidade, demoliu-as e construiu uma só, ali instalando aquecimento central, banheiros e todas as comodidades sanitárias que o exemplo americano impusera a um recalcitrante continente. A grande moda naquela época era decapé e, portanto, ele mobiliou a casa com móveis em estilo provençal, onde foi antes, devidamente, feito o serviço de decapé; além disso, cedeu discretamente ao modernismo escolhendo tecidos da atualidade. Tinha ainda má vontade em aceitar pintores como Picasso e Braque – “horrores, caro amigo, horrores!” –, de quem entusiastas mal orientados faziam muita propaganda, mas finalmente se achara no direito de estender sua proteção aos impressionistas, e nas paredes de sua casa se viam quadros bem bonitos. Lembro-me de um Monet, de algumas pessoas remando num rio; um Pissarro, de um trecho do cais e uma ponte do Sena; de uma paisagem do Taiti, de Gauguin; e de um encantador Renoir, uma moça de perfil com longos cabelos louros soltos nas costas. Depois de pronta, a casa ficou alegre, fresca, original; e simples, também, com aquela simplicidade que a gente sabe que só pode ser adquirida à custa de muito dinheiro.

Começou então o período de maior esplendor da vida de Elliott. Ele trouxe de Paris o seu excelente cozinheiro, e logo foi devidamente reconhecido que ele tinha a melhor mesa da Riviera. Vestiu de branco o mordomo e o lacaio, com galões dourados nos ombros. Recebia com uma magnificência que jamais ultrapassou os limites do bom gosto. O litoral do Mediterrâneo estava repleto de nobres de todas as partes da Europa, alguns atraídos pelo clima; outros em exílio; outros porque um passado escandaloso ou casamento desigual tornava preferível a existência no estrangeiro. Havia Rumanoffs da Rússia, Habsburgos da Áustria, Bourbons da Espanha, das duas Sicílias e Parma; havia príncipes da Casa de Windsor e príncipes da Casa de Bragança; Altezas da Suécia e Altezas da Grécia; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Havia príncipes e princesas não de sangue real, duques e duquesas, marqueses e marquesas da Áustria, Itália, Espanha, Rússia e Bélgica; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. No inverno, o rei da Suécia e o rei da Dinamarca vieram passar uns tempos no litoral; de vez em quando Afonso da Espanha aparecia para uma rápida visita; pois bem, Elliott os recebeu em sua casa. Nunca me cansei de admirar, quando com graça cortesã ele se curvava diante daqueles augustos personagens, da maneira com que conseguia manter a atitude independente de cidadão de um país onde dizem que todos os homens são iguais.

Depois de ter viajado durante alguns anos, eu comprara uma casa em Cap Ferrat e, portanto, via Elliott frequentemente. Tão alto subira eu no seu conceito que muitas vezes ele me convidava às suas mais pomposas reuniões.

– É um favor que me faz, caro amigo – dizia ele. – Garanto-lhe que, tanto quanto você, sei que os nobres estragam uma reunião. Mas as outras pessoas gostam de encontrá-los e acho que a gente tem obrigação de dar um pouco de atenção aos pobres coitados. Se bem que só Deus sabe que não são merecedores! São as pessoas mais ingratas deste mundo; usam e abusam da gente e, quando acham que não temos mais serventia, empurram-nos para um lado como um trapo; aceitam inúmeros favores, mas nenhum deles se daria ao trabalho de atravessar a rua para em troca nos fazer uma gentileza.

Elliott se esforçava por ficar de bem com as autoridades locais; o prefeito do distrito, assim como o bispo da diocese e o vigário-geral muitas vezes honravam a sua mesa. Antes de se ordenar, o bispo fora oficial de cavalaria e na guerra comandara um regimento. Homem atarracado, rubicundo, que fazia questão de usar a linguagem rude da caserna; seu austero e cadavérico vigário-geral estava sempre em palpos de aranha, tal o medo de que ele dissesse alguma coisa escabrosa. Ouvia com um sorriso súplice, quando seu superior contava alguma das suas histórias prediletas. Mas o bispo dirigia a diocese com grande competência, e sua eloquência no púlpito só podia ser comparada ao espírito dos seus ditos à mesa. Ele apreciava Elliott pela generosidade de suas contribuições para a Igreja, e gostava dele pela sua amabilidade e bons almoços que proporcionava; os dois tornaram-se grandes amigos. Elliott podia congratular-se por estar assim cuidando ao mesmo tempo deste mundo e do outro; e, se me é permitida uma observação, ia conseguindo um arranjo muito satisfatório entre Deus e Mamon.

Elliott sabia apreciar o que era seu, e estava aflito para mostrar a casa nova à irmã; sempre notara nela certa reserva, e queria que mrs. Bradley visse em que estilo vivia ele agora e que roda frequentava. Isso poria ponto final às suas hesitações; ela teria que concordar que ele vencera. Escreveu-lhe, portanto, convidando-a para vir com Gray e Isabel, não para a casa dele, pois não tinha acomodações, mas para se hospedarem, como seus convidados, no vizinho Hôtel du Capo. Mrs. Bradley replicou que seus dias de viagem estavam findos, pois sua saúde não era boa e ela se sentia melhor em casa; além do mais, Gray não poderia ausentar-se de Chicago, pois os negócios estavam florescendo e ele ganhando muito dinheiro, tendo que ficar ali à mão. Elliott era afeiçoado à irmã e a carta o alarmou. Escreveu a Isabel sobre isso. Ela respondeu por cabograma que, embora sua mãe não andasse nada boa, tendo que ficar de cama um dia por semana, nem por isso estava em perigo de vida, podendo mesmo, com cuidado, durar ainda muito tempo; mas Gray precisava de descanso, e, com o pai a cuidar dos negócios, não havia motivo para que ele não tirasse umas férias. Assim sendo, não neste verão, mas no próximo, ela e Gray lhe aceitariam o convite.

No dia 23 de outubro de 1929 deu-se o pânico na Bolsa de Nova York.


5

Estava eu em Londres, nessa época, e a princípio ninguém na Inglaterra compreendeu a gravidade da situação nem como seriam funestas as consequências. Quanto a mim, embora pesaroso pelo prejuízo de enorme quantia, perdi na realidade lucros realizados no papel; assim sendo, quando a coisa serenou vi que, em dinheiro, eu não estava muito mais pobre do que antes. Sabia que Elliott andara jogando pesadamente e temi que tivesse sofrido enorme perda, mas só o vi no Natal quando fomos ambos para a Riviera. Ele me contou então que Henry Maturin morrera e Gray estava arruinado.

Pouco entendo de negócios e é possível que minha relação dos acontecimentos, como me foram contados por Elliott, pareça confusa. Pelo que pude compreender, a catástrofe que se abatera sobre a firma fora causada em parte pela teimosia de Henry Maturin e em parte pela precipitação de Gray. A princípio Henry Maturin não quisera acreditar que a baixa fosse séria, convencido de que se tratava de uma conspiração por parte dos corretores de Nova York, para passarem a perna nos seus colegas provincianos; assim sendo, ficara firme e começara a desembolsar dinheiro para sustentar o mercado. Vociferava contra os corretores de Chicago, que se deixavam atemorizar por aqueles canalhas de Nova York. Sempre se vangloriara de que seus clientes modestos, viúvas com renda certa, oficiais aposentados etc., jamais tinham perdido por lhe seguir os conselhos; e agora, em vez de permitir que cada um arcasse com seus prejuízos, ele completava as margens com sua fortuna particular. Dizia que estava disposto a aceitar a ruína, que poderia fazer depois nova fortuna, mas que, se permitisse que os coitados que haviam confiado nele perdessem tudo o que tinham, nunca mais poderia andar de cabeça erguida. Pensava que estava sendo magnânimo, mas na realidade estava apenas sendo vaidoso. Sua imensa fortuna evaporou-se e certa noite ele teve um ataque de coração. Estava com mais de sessenta anos, e sempre trabalhara com afinco, jogara muito, comera demais e bebera em excesso; após algumas horas de agonia, morreu de trombose coronária. Gray ficou só para enfrentar a situação. Também ele especulara grandemente pelo seu lado, sem o conhecimento do pai, e estava em grandes dificuldades. Seus esforços para salvar-se falharam. Os bancos não lhe faziam empréstimos; homens mais velhos, na Bolsa, disseram-lhe que a única coisa a fazer era entregar os pontos. Não estou muito certo quanto ao resto da história. Não conseguindo saldar seus compromissos ele foi, creio eu, declarado falido; já hipotecara sua casa e sentiu alívio em entregá-la aos credores; a casa de seu pai, em Lake Shore Drive, e a de Marvin foram vendidas pelo que puderam alcançar; Isabel vendeu suas joias. Tudo que lhe restou foi a plantação na Carolina do Sul, que estava em nome de Isabel, mas para a qual não foi possível encontrar comprador. Gray ficou limpo.

– E quanto a você, Elliott? – perguntei.

– Oh! não me queixo – respondeu ele despreocupadamente. – Deus dá o frio conforme a coberta.

Não insisti, pois nada tinha com sua situação financeira, mas, fossem quais fossem os prejuízos, achei que ele devia ter sofrido como todos nós.

A princípio a depressão não atingiu em cheio a Riviera. Ouvi falar de duas ou três pessoas que tinham tido grandes prejuízos, muitas vilas ficaram fechadas durante o inverno e outras foram postas à venda. Os hotéis estavam vazios e a gerência do Cassino de Monte Cado queixou-se da pobreza do movimento. Mas foi somente dali a dois anos que se compreendeu a extensão do desastre. Um corretor de imóveis contou-me que, na faixa de litoral que ia de Toulon à fronteira italiana, havia quarenta e oito mil propriedades, grandes e pequenas, à venda. As ações do Cassino caíram repentinamente. Os grandes hotéis baixaram seus preços, numa vã tentativa de atrair. Os únicos estrangeiros que se viam eram aqueles que tinham sido sempre tão pobres que não podiam ficar mais pobres, e que não gastavam porque não tinham o que gastar. Os lojistas desesperavam-se. Mas Elliott não somente não despediu nenhum dos seus empregados, como também não lhes diminuiu o ordenado, como muitos haviam feito; continuou a oferecer, aos nobres e aos de sangue real, lautos jantares regados a bons vinhos. Comprou um vasto carro novo, importado da América e sobre o qual teve que pagar pesados direitos alfandegários. Contribuiu, generosamente, para as obras de caridade que o bispo organizara para distribuir comida grátis aos desempregados. Em resumo, vivia como se não houvesse crise e metade do mundo não estivesse a sofrer as consequências.

Descobri por acaso a razão disso. Elliott já não ia à Inglaterra, a não ser por quinze dias ao ano, para comprar suas roupas, mas conservava o hábito de transferir sua residência para o apartamento de Paris durante três meses, no outono, e em maio e junho, época em que seus amigos abandonavam a Riviera. Era aqui que gostava de passar o verão, em parte por causa dos banhos, mas principalmente, pelo menos assim o julgo eu, porque os dias quentes lhe permitiam satisfazer o gosto que tinha pelas vestimentas alegres, que sua dignidade até então não lhe permitira usar. Ele apareceria com calças de cores surpreendentes, vermelhas, azuis, verdes ou amarelas, usando camisas de tons contrastantes – lilás, violeta, castanho-escuro – ou mesmo axadrezadas; e, com o modesto sorriso da atriz a quem dizem que representou um novo papel divinamente, aceitaria os parabéns que seus trajes estavam a exigir.

Aconteceu que passei um dia em Paris, na primavera, antes de voltar para Cap Ferrat, e convidei Elliott para almoçar comigo. Encontramo-nos no bar do Ritz, não mais repleto de estudantes que vinham da América para se divertir, mas deserto como um teatro após a estreia de uma peça que fracassou. Tomamos um coquetel, hábito transatlântico com o qual Elliott finalmente se conformara, e encomendamos o almoço. Quando acabamos ele propôs um giro pelos antiquários; respondi que, embora não tivesse dinheiro para gastar, teria muito prazer em acompanhá-lo. Atravessamos a Place Vendôme e ele me perguntou se eu me importava de dar com ele um pulinho até Charvet; tinha encomendado umas roupas e desejava saber se estavam prontas. Pareceu-me que encomendara umas camisas e umas cuecas e nelas mandara bordar suas iniciais. As camisas ainda não haviam chegado, mas as cuecas estavam ali, e o caixeiro perguntou-lhe se gostaria de vê-las.

– Gostaria, sim – respondeu Elliott. Depois que o homem se afastou ele virou-se para mim e acrecentou: – Mandei fazê-las, sob encomenda, de acordo com um modelo que eu mesmo imaginei.

Vieram as cuecas e, a não ser pelo fato de serem de seda, pareceram-me idênticas às que eu costumava comprar em Macy; mas o que me chamou atenção foi uma coroa de conde sobre as iniciais E. T. Não fiz, porém, o mínimo comentário.

– Ótimas, ótimas – declarou Elliott. – Pois bem, quando as camisas estiverem prontas, faça o favor de me mandar tudo junto.

Saímos da loja e, enquanto caminhávamos, Elliott virou-se para mim, sorrindo:

– Você reparou na coroa? Para ser franco, tinha-me esquecido disso quando o convidei para vir comigo até Charvet. Não sei se já tive ocasião de lhe contar que Sua Santidade houve por bem ressuscitar em meu favor o nosso velho título de família.

– Seu o quê? – exclamei, o espanto fazendo-me esquecer a polidez.

Elliott ergueu as sobrancelhas em ar desaprovador.

– Você não sabia? Descendo, pelo lado materno, do conde de Lauria que veio para a Inglaterra na comitiva de Filipe ii, casando-se com uma dama de honra da rainha Maria.

– Nossa velha amiga Maria, a Sanguinária?

– Parece-me que é assim que a chamam os hereges – replicou Elliott secamente. – Creio que nunca lhe contei que passei o mês de setembro de 29 em Roma. Achei enfadonho ter que ir, pois Roma está vazia nessa ocasião; mas foi para mim uma sorte ter o sentimento do dever prevalecido sobre o meu desejo de divertir-me. Meus amigos do Vaticano avisaram-me que a crise era inevitável e me aconselharam vivamente a vender meus títulos americanos.

A Igreja Católica conta com a sabedoria de vinte séculos, e não hesitei por um momento sequer. Mandei a Henry Maturin um cabograma, dando-lhe instruções para vender tudo e comprar ouro, e um a Louisa, aconselhando-a a fazer o mesmo. Henry mandou-me outro, perguntando se eu enlouquecera e declarando que nada faria até receber confirmação. Foi o que fiz e de maneira peremptória, dizendo-lhe que seguisse minhas instruções e me avisasse assim que as tivesse cumprido. A pobre Louisa não me deu atenção e sofreu as consequências.

– Quer dizer que, quando houve o pânico, você já se tinha defendido direitinho?

– Expressão de gíria, caro amigo, para a qual não vejo necessidade, mas que define bem a situação. Não tive prejuízo algum; ao contrário, pode-se mesmo dizer que ganhei uma bolada. Tempos depois, por uma fração do preço primitivo, pude comprar novamente os meus títulos; e, já que devia isso ao que considero direta intervenção da Providência, achei mais do que justo que, em troca, fizesse também alguma coisa para a Providência.

– E de que maneira você se desempenhou disso?

– Pois bem, você não ignora que o Duce mandou sanear os Pântanos Pontinos, e cheguei a saber que Sua Santidade estava gravemente preocupado com a falta de lugares de oração para os colonos. E, portanto, para encurtar uma longa história, construí uma igrejinha românica, reprodução exata de uma que visitei na Provença, perfeita em todos os detalhes e que, embora seja eu quem o diga, é uma verdadeira joia. Foi consagrada a são Martinho, porque tive a sorte de encontrar um vitral antigo representando são Martinho no ato de rasgar sua capa em duas para dar a metade a um mendigo nu; e, como o simbolismo me pareceu tão adequado, comprei-o e coloquei-o sobre o altar-mor.

Não interrompi Elliott para lhe perguntar que relação via ele entre a célebre ação do santo e a desistência dele, Elliott, de parte do lucro que tivera por vender na hora certa e que, como a comissão de um agente, ele pagava a um poder superior. Mas, para uma pessoa prosaica como eu, muitas vezes o simbolismo é obscuro. Elliott continuou:

– Quando tive a honra de mostrar as fotografias ao Santo Padre, ele condescendeu em dizer-me que de relance podia ver que eu era um homem de gosto impecável, acrescentando ser para ele um prazer encontrar nessa era de perdição uma pessoa que combinava fervor religioso com raros dons artísticos. Uma experiência memorável, caro amigo, uma experiência memorável. Mas ninguém ficou mais admirado do que eu quando, pouco depois, vim a saber que ele houvera por bem conferir-me um título. Como cidadão americano acho mais modesto não usá-lo, a não ser, naturalmente, no Vaticano, e proibi meu criado Joseph de me chamar de monsieur le Comte. Espero que você respeite o meu segredo; não quero que a notícia se espalhe. Mas também não desejo que o Santo Padre julgue que não aprecio a honra que me conferiu, e é puramente em consideração a ele que mandei bordar a coroa na minha roupa de baixo. Não me importo de confessar-lhe, caro amigo, que sinto um modesto orgulho em esconder minha classe sob o simples título de cavalheiro norte-americano.

Separamo-nos, tendo Elliott me dito que viria à Riviera em fins de junho. Mas não veio. Acabara de providenciar a transferência de sua criadagem, de Paris para a Riviera, pretendendo ele viajar tranquilamente de carro, a fim de encontrar tudo em ordem quando chegasse, quando recebeu um cabograma de Isabel avisando que o estado de saúde de sua mãe se agravara. Além de ser afeiçoado à irmã, Elliott tinha, como já disse, um arraigado instinto de família. Tomou em Cherburgo o primeiro vapor, e de Nova York foi para Chicago. Escreveu-me contando que mrs. Bradley estava muito doente e que ele levara um choque ao ver como emagrecera. Talvez ela durasse algumas semanas, ou mesmo meses; em todo caso, cabia-lhe o triste dever de ficar ao lado dela até o fim. Disse que achara o intenso calor mais suportável do que imaginara, mas que a falta de convivência com pessoas com quem pudesse ter afinidade só não lhe pesava pelo fato de não estar no momento em disposição festiva. Ficara decepcionado com a maneira pela qual seus compatriotas haviam reagido contra a depressão; esperara deles maior serenidade na desgraça. Sabendo eu que não há nada mais fácil do que suportar com fortaleza de ânimo os desastres alheios, achei que, mais rico agora do que em qualquer outra época da vida, talvez Elliott não tivesse o direito de se mostrar tão severo. Terminava a carta mandando recados para vários amigos seus, recomendando que eu não esquecesse de explicar a todos a razão pela qual sua casa permanecia fechada no verão.

Dali a um mês e pouco recebi outra carta sua, comunicando-me a morte de mrs. Bradley. Escreveu com sinceridade e emoção. Eu não o teria julgado capaz de se exprimir com tanta dignidade, sentimento e simplicidade, se há muito não tivesse percebido que apesar de seu esnobismo e incrível afetação Elliott era um homem bom, amoroso e sincero. Na carta ele me contou que os negócios de mrs. Bradley não estavam muito em ordem. Seu filho mais velho, diplomata, encarregado de negócios em Tóquio na ausência do embaixador, não pudera, naturalmente, abandonar seu posto. O segundo filho, Templeton, que estivera morando nas Filipinas quando eu conhecera os Bradley, fora, com o tempo, devidamente chamado a Washington e ocupava um posto importante no Departamento de Estado. Viera a Chicago com a esposa, ao ser notificado do estado desesperador de sua mãe, mas vira-se obrigado a voltar para a capital logo depois do enterro. Nestas circunstâncias, Elliott julgava-se na obrigação de ficar na América até que as coisas endireitassem. Mrs. Bradley dividira igualmente a fortuna entre os três filhos, mas parece que seus prejuízos na crise de 29 haviam sido pesadíssimos. Felizmente tinham encontrado comprador para a fazenda de Marvin. Na carta, Elliott dizia “a propriedade rural da cara Louisa”.

“É sempre triste quando uma família tem que dispor de sua morada ancestral”, escreveu-me ele. “Mas ultimamente tenho visto tantas vezes meus amigos ingleses forçados a isso, que acho que Isabel e meus sobrinhos devem aceitar o inevitável com a mesma coragem e resignação que eles demonstraram. Noblesse oblige.”

Tinham também tido a sorte de vender a casa de Chicago. Desde muito havia um projeto de derrubar a fila de casas da qual fazia parte a de mrs. Bradley, para ali construírem um bloco de apartamentos, mas os interessados tinham sido detidos pela teimosia da velha senhora, que queria morrer na casa onde sempre vivera. Nem bem exalara ela o último suspiro, de novo apresentaram uma proposta, que desta vez foi imediatamente aceita. Mas, mesmo assim, Isabel não ficava em boa situação financeira.

Depois do pânico da Bolsa, Gray tentara arranjar colocação, mesmo como empregado no escritório de algum corretor que houvesse sobrevivido à catástrofe, mas os negócios estavam parados. Pediu aos antigos amigos que lhe dessem qualquer serviço, por mais humilde e mal remunerado que fosse, mas nada conseguiu. Os frenéticos esforços que fizera para impedir o desastre, o peso da ansiedade, a humilhação resultaram num esgotamento nervoso e ele começou a ter tremendas dores de cabeça, que durante vinte e quatro horas o deixavam inutilizado e completamente sem forças depois que passavam. Isabel achou que não havia melhor solução do que irem com as crianças para a plantação da Carolina do Sul, até Gray se restabelecer. Nos bons tempos o arroz ali tinha dado cem mil dólares por ano, mas agora não passava de um lugar abandonado e selvagem, que só servia para os esportistas que quisessem caçar patos, e para o qual não se achava comprador. Ali tinham eles vivido desde a crise e para lá pretendiam voltar até que a situação melhorasse e Gray pudesse arranjar emprego.

“Eu não podia consentir numa coisa dessas”, escreveu-me Elliott. “Imagine, caro amigo, eles iriam viver como animais. Isabel sem uma criada, sem governanta para as crianças e com apenas duas negras como pajens. Resolvi, portanto, oferecer-lhes o meu apartamento em Paris e sugeri que ali fiquem até que as coisas mudem neste fantástico país. Fornecerei os empregados; além do mais, a ajudante do meu chefe sabe cozinhar muito bem, de modo que pretendo deixá-la com Isabel e arranjar alguém para substituí-la. Pagarei eu as contas, para que Isabel possa gastar sua pequena renda em vestidos e nos menus plaisirs da família. Isto, naturalmente, significa que terei que passar muito mais tempo na Riviera, e espero, portanto, ter o prazer de vê-lo mais amiúde, caro amigo.

Londres e Paris sendo o que atualmente são, sinto-me realmente mais em casa na Riviera. É o único lugar onde ainda encontro gente que fale a minha língua. Não digo que não vá a Paris de vez em quando, mas não me importarei absolutamente de me hospedar no Ritz. É com satisfação que lhe participo que finalmente convenci Gray e Isabel a acederem aos meus desejos, e pretendo levá-los comigo assim que os necessários preparativos estiverem terminados. A mobília e os quadros (insignificantes, meu caro, e da mais duvidosa autenticidade!) serão vendidos daqui a quinze dias. Neste meio-tempo, como achei que lhes seria penoso continuar a viver na casa onde minha querida irmã faleceu, trouxe-os para ficarem comigo no Drake. Assim que os tiver instalado em Paris, voltarei para a Riviera. Não se esqueça de transmitir minhas lembranças ao seu real vizinho.”

Quem poderia negar que Elliott, aquele ultraesnobe, era também o mais bondoso, mais delicado e generoso dos homens?


Quatro

Quatro


1

Tendo instalado os Maturin no seu apartamento da Margem Esquerda, no fim do ano Elliott voltou para a Riviera. Construíra a casa para si próprio e nela não havia lugar para uma família de quatro pessoas, de modo que, mesmo que fosse esse o seu desejo, ele não os poderia ter ali recebido. Não creio, no entanto, que o fato lhe causasse desprazer. Sabia perfeitamente que, sozinho, teria mais cotação do que se estivesse sempre na companhia de sobrinho e sobrinha; além do mais, a tarefa de organizar suas distintíssimas reuniões (assunto que tanto o preocupava) ficaria dificultada se tivesse invariavelmente que contar com a presença de dois hóspedes.

– É preferível que eles se instalem em Paris e se habituem à vida civilizada – disse-me Elliott. – Além do mais, as duas meninas já estão em idade de ir para a escola. Encontrei, mais ou menos perto do apartamento, uma que me afirmaram ser muito seleta.

Assim sendo, só vi Isabel na primavera, na ocasião em que, devido a um trabalho que pedia a minha permanência em Paris durante algumas semanas, tomei quartos num hotel perto da Place Vendôme. Era um hotel que eu frequentava não somente por ser bem situado, mas porque tinha atmosfera. Casarão antigo, à volta de um pátio; funcionava como hospedaria havia bem uns duzentos anos. Os banheiros estavam longe de ser luxuosos, os encanamentos deixavam muito a desejar; os quartos, com suas camas esmaltadas de branco, colchas brancas fora de moda e enormes armoires à glace, tinham uma aparência pobre; mas os salões eram mobiliados com belas peças antigas. O sofá e as poltronas datavam do alegre reinado de Napoleão iii e, embora eu não possa dizer que fossem confortáveis, tinham um garrido encanto. Naquela sala eu vivia no passado dos romancistas franceses. Ao olhar para o relógio Império sob a sua redoma de vidro, eu imaginava uma bela mulher de cabelos cacheados e vestido de franja a observar o ponteiro dos minutos enquanto esperava pela visita de Rastignac, aquele aristocrático aventureiro cuja carreira, em romance após romance, Balzac acompanhou desde o seu humilde começo até o esplendor final. E o dr. Bianchon – médico tão real a Balzac que no seu leito de morte este exclamou: “Somente Bianchon poderá salvar-me” – talvez tivesse entrado naquela sala, para tomar o pulso e examinar a língua de uma duquesa-mãe, que viera da província consultar um advogado sobre um complicado processo e chamara um médico devido a uma indisposição passageira. É possível que, à escrivaninha, uma dama de crinolina e cabelos repartidos ao meio tivesse escrito uma carta apaixonada ao amante infiel, ou um velho e assanhado fidalgo de casaco verde e pescocinho talvez houvesse redigido irada epístola ao seu extravagante primogênito.

No dia seguinte ao de minha chegada, telefonei a Isabel perguntando se podia ir tomar uma xícara de chá em sua companhia, às cinco horas. Fazia dez anos que não a via. Quando o circunspecto mordomo me introduziu na sala, ela estava lendo um romance francês. Levantou-se, tomou-me ambas as mãos, recebendo-me com um sorriso caloroso e amável. Em toda a minha vida eu não a vira mais que uma dúzia de vezes, e apenas duas a sós, mas ela me fez, imediatamente, sentir como se fôssemos velhos amigos e não apenas conhecidos. Os dez anos decorridos haviam diminuído o abismo que separara a mocinha do homem maduro, e eu já não sentia a disparidade de idade entre nós. Com a lisonjeira delicadeza de uma dama da sociedade, tratou-me como se eu fosse seu contemporâneo, e dali a cinco minutos tagarelávamos com a naturalidade e franqueza de companheiros habituados a um convívio diário. Ela adquirira desembaraço, domínio sobre si e segurança.

Mas o que mais me chamou atenção foi a diferença no seu físico. Eu me lembrava de uma moça bonita, viva, com tendência para engordar; não sei se, compenetrando-se do perigo, ela fizera heroicos sacrifícios para diminuir de peso, ou se isso era uma consequência feliz, se bem que rara, da maternidade; mas agora era de uma esbeltez que satisfaria aos mais exigentes. A moda da época acentuava essa sua qualidade. Estava de preto; num relance notei que seu vestido de seda, nem muito simples, nem excessivamente complicado, fora confeccionado por uma das melhores costureiras de Paris – e ela o usava com o confiante desembaraço da mulher que está habituada a roupas caras. Dez anos antes, mesmo sob a orientação de Elliott, seus vestidos inclinavam-se para o lado vistoso e ela não parecera muito à vontade dentro deles. Mas hoje, Marie Louise de Florimond não poderia dizer que lhe faltava chie. Isabel era chie até a ponta das unhas esmaltadas de cor-de-rosa.

Suas feições tinham-se afinado; ocorreu-me que em mulher alguma eu jamais vira nariz tão bonito e tão reto. Nenhuma ruga na testa ou sob os olhos castanhos; embora sua pele tivesse perdido a resplendente frescura da adolescência, continuava tão delicada quanto antes. Provavelmente devia algum favor a loções, cremes e massagens, mas com isso adquirira uma transparência macia, suave, de singular atração. As faces magras estavam pintadas de leve e a boca discretamente acentuada. Conforme a moda do momento, Isabel usava cortados e ondulados os seus luzidios cabelos castanhos. Não lhe vi anéis nos dedos; lembrei-me então de que Elliott me contara que ela vendera suas joias. Embora não muito pequenas, as mãos eram benfeitas. Naquela época as mulheres usavam vestidos curtos durante o dia; notei que as pernas de Isabel, sob as meias cor de champanhe, eram bem torneadas, longas e finas. Perna é coisa que estraga muita mulher bonita; mas as de Isabel, antigamente o seu maior defeito, agora nada deixavam a desejar. Em resumo, de moça que atraíra pela exuberante saúde, animação e vivacidade, transformara-se em bela mulher. Pouco importava que devesse parte desse encanto à arte, disciplina e mortificações; o resultado era mais que satisfatório. É possível que a graça dos movimentos e a elegância do porte tivessem sido adquiridos intencionalmente, mas davam a impressão de absoluta espontaneidade. Provavelmente aqueles quatro meses em Paris tinham dado os últimos retoques na consciente obra de arte que levara anos a ser completada. Nem mesmo Elliott, nos seus momentos mais exigentes, encontraria nela motivo de crítica; e eu, pessoa bem mais fácil de contentar, achei-a encantadora.

Gray fora jogar golfe em Montefontaine, mas Isabel me disse que ele não tardaria.

– E você precisa ver minhas filhas. Foram ao jardim das Tulherias, mas não devem demorar. São uns amores.

Falamos de uma coisa e outra. Isabel gostava de Paris e estavam bem instalados no apartamento de Elliott. Antes de partir, este os apresentara aos amigos com quem achara que eles iriam simpatizar; tinham, portanto, um agradável círculo de relações. Elliott insistira para que recebessem com a frequência a que ele estava habituado.

– Sabe de uma coisa, acho engraçadíssimo estarmos vivendo como gente rica, quando na realidade estamos completamente arruinados – disse-me Isabel.

– Tanto assim?

Ela riu baixinho e lembrei-me agora do riso despreocupado, alegre, que tanto me agradara dez anos antes.

– Gray não tem um níquel e eu tenho quase que exatamente a mesma renda com que Larry contava na época em que queria que me casasse com ele, quando não concordei por achar que não poderíamos viver com tal quantia; e agora tenho duas filhas, ainda por cima! Não deixa de ser engraçado, não é verdade?

– Agrada-me verificar que você percebe o humorismo da situação.

– Que notícias me dá de Larry?

– Eu? Nenhuma. Nunca mais o vi, desde aquela época em que vocês estiveram aqui em Paris. Eu me dava ligeiramente com algumas pessoas que também o conheciam e perguntei que fim levara ele; mas isso há anos. Ninguém soube dizer-me. Ele sumira, simplesmente.

– Conhecemos, em Chicago, o gerente do banco onde Larry tem a sua conta, e ele nos disse que de vez em quando recebe um aviso de pagamento de algum lugar esquisito, China, Birmânia, Índia. Parece que ele tem corrido o mundo.

Não hesitei em fazer a pergunta que estava na ponta da minha língua. Afinal de contas, se a gente quer saber uma coisa, o melhor meio é perguntar.

– Você se arrependeu de não ter casado com Larry? Um sorriso insinuante apareceu nos lábios de Isabel. – Tenho sido muito feliz com Gray. É um ótimo marido. Sabe, até vir a crise, divertimo-nos imensamente. Temos os mesmos gostos, simpatizamos com as mesmas pessoas. Ele é muito bom. E é agradável ser adorada; Gray está hoje tão apaixonado por mim como quando nos casamos; considera-me a mulher mais maravilhosa deste mundo. Você não pode imaginar como é amável e delicado. E foi sempre de uma generosidade exagerada; nada era bom demais para mim. E em todos estes anos de casados, nunca me disse uma palavra áspera ou pouco amável.

Acharia ela que respondera à minha pergunta? Mudei de assunto.

– Fale-me de suas filhinhas. Nisto a campainha tocou.

– Aí estão elas. Veja você mesmo.

No momento seguinte as meninas entraram acompanhadas pela governanta; fui apresentado primeiro a Joan, a mais velha, depois a Priscilla. Cada uma me fez uma delicada reverenciazinha ao estender-me a mão. Uma tinha oito anos, a outra seis. Eram altas para a idade; Isabel, naturalmente, era alta, e lembrei-me de que Gray era imenso; mas as meninas só eram bonitas no sentido em que são bonitas todas as crianças. Pareciam frágeis. Tinham herdado os cabelos pretos do pai e os olhos castanhos da mãe. A presença de um estranho não as intimidou: em tom animado contaram a Isabel suas peripécias nos jardins. Lançaram um olhar cobiçoso às coisas gostosas que a cozinheira preparara para o chá e em que não ha víamos tocado; recebendo licença de tirar uma, viram-se no terrível dilema de não saber qual escolher. Era agradável notar com que carinho tratavam a mãe, e as três assim juntas formavam um grupo encantador. Depois de cada uma ter comido o seu bolinho, Isabel mandou-as embora e elas saíram sem uma palavra de protesto. Pareceu-me que estavam sendo educadas a obedecer.

Quando ficamos sós, eu disse as coisas que a gente costuma dizer a uma mãe a respeito de seus filhos, e Isabel aceitou os elogios com evidente, se bem que despreocupado, prazer. Pergunteilhe se Gray estava gostando de Paris.

– Bastante. Tio Elliott nos deixou um carro, de modo que ele pode jogar golfe quase todos os dias; além disso, entrou para sócio do Clube dos Viajantes, onde costuma jogar bridge. O oferecimento do tio Elliott, de nos sustentar neste apartamento, veio, naturalmente, como uma bênção dos céus. Os nervos de Gray estão em mísero estado e ele ainda tem aquelas terríveis enxaquecas; mesmo que arranjasse emprego, não estaria em condições de aceitá-lo e isso, naturalmente, o aborrece. Ele tem vontade de trabalhar, acha que deve trabalhar e sente-se humilhado por não o quererem. Sim, pois é de opinião que a missão do homem é lutar e que, não podendo cumpri-la, é preferível morrer de uma vez. Não se conforma com a sua inutilidade; só consegui trazê-lo para cá depois de convencê-lo de que a mudança e o descanso o fariam voltar ao seu normal. Mas tenho certeza de que só se sentirá feliz quando estiver de novo em plena atividade.

– Vejo que vocês sofreram bastante nestes últimos dois anos e meio.

– Pois bem, saiba que, quando veio a crise, eu simplesmente não pude acreditar nela. Parecia-me impossível que estivéssemos arruinados. Compreendia que outras pessoas estivessem na miséria, mas nós... não; era inconcebível. Continuei pensando que à última hora aconteceria alguma coisa que nos viesse salvar. E então, quando foi desferido o golpe final, achei que não valia mais a pena viver, que não me seria possível enfrentar o futuro; era por demais sombrio. Durante uma semana me senti profundamente infeliz. Céus, foi horrível ter que dispor de tudo, sabendo que estavam acabados os divertimentos, que iria ficar privada de todas as coisas de que gostava... Mas ao fim de quinze dias exclamei: “Oh! com os diabos, não vou pensar mais nisso”, e juro-lhe que não pensei mesmo. Não choro o que perdi. Diverti-me muito enquanto durou, mas agora que terminou está acabado.

– Não há dúvida de que a ruína é bem mais suportável num luxuoso apartamento, num bairro elegante, com um mordomo competente e uma excelente cozinheira – de graça, ainda por cima – e quando a gente pode cobrir a carcaça com um vestido de Chanel, não é verdade?

– Lanvin – corrigiu ela rindo baixinho. – Vejo que você não mudou muito, em dez anos. Não sei se vai acreditar-me, cínico como é, mas se não fosse por Gray e pelas crianças não garanto que eu tivesse aceito a oferta do tio Elliott. Com os meus dois mil e oitocentos dólares anuais poderíamos perfeitamente ter vivido na plantação; cultivaríamos arroz e centeio, criaríamos porcos. Afinal de contas, nasci e fui criada numa fazenda de Illinois.

– Por assim dizer – repliquei sorrindo, pois sabia que na realidade ela nascera numa luxuosa maternidade de Nova York.

Neste momento Gray entrou. É verdade que eu só me encontrara com ele duas ou três vezes, e isso doze anos antes, mas vira sua fotografia ao lado da noiva (Elliott conservava-a sobre o piano, em esplêndida moldura, ao lado das fotografias autografadas do rei da Suécia, da rainha da Espanha e do duque de Guise, mas lembrava-me muito bem dele). Fiquei agora estupefato. Estava calvo no alto da cabeça, e as entradas tinham aumentado consideravelmente; rosto rubro e intumescido, papada. Engordara demais naqueles anos de boa vida e muito álcool, e somente sua grande altura impedira que se tornasse vulgarmente obeso. Mas foram os olhos que mais me chamaram atenção. Eu me lembrava perfeitamente da sua expressão franca, confiante, quando Gray via o mundo à sua frente e não tinha uma única preocupação na vida; mas agora pareceu-me distinguir neles uma espécie de perplexa consternação e, mesmo que eu desconhecesse os fatos, creio que teria adivinhado que acontecera alguma coisa que destruíra a confiança que Gray tivera em si e na ordem natural dos acontecimentos. Senti nele uma espécie de modéstia, como se tivesse agido mal, embora involuntariamente, e disso se envergonhasse. Evidentemente seus nervos estavam em petição de miséria. Cumprimentou-me muito cordialmente, como se eu fosse um velho amigo; mas pareceu-me que a sua ruidosa amabilidade era mais uma atitude, pouco de acordo com seus sentimentos.

Trouxeram as bebidas e ele nos preparou um coquetel. Estivera no clube de golfe e ficara satisfeito com o seu jogo. Meteu-se a descrever, com exagerada loquacidade, as dificuldades que vencera num dos buracos. Isabel ouviu-o aparentemente com vivo interesse. Dali a pouco, após termos combinado um dia para eles irem jantar comigo, e um teatro depois, despedi-me e saí.


2

Adquiri o hábito de ir ver Isabel três ou quatro vezes por semana, à tarde, terminada a minha tarefa do dia. Em geral ela estava só nesta hora e gostava de uma prosinha. As pessoas a quem Elliott a apresentara eram muito mais velhas; percebi que poucas companheiras tinham sua idade. Meus amigos estavam geralmente ocupados até a hora do jantar e, a ir ao clube jogar bridge com alguns franceses rabugentos que não apreciavam a presença de um intruso, eu preferia a companhia de Isabel. Sua encantadora maneira de me tratar como se fôssemos da mesma idade tornava fácil a conversa; pilheriávamos, ríamos, caçoávamos um do outro, falando às vezes sobre nós, às vezes sobre amigos comuns, de outras sobre livros e quadros; assim o tempo passava agradavelmente. Um dos meus defeitos é nunca me acostumar com a fealdade das pessoas; por melhor gênio que tenha um amigo meu, nem com anos de intimidade consigo conformar-me com seus maus dentes ou nariz torto; por outro lado, jamais me canso de apreciar a beleza, e depois de vinte anos de convivência ainda me agrada ver uma sobrancelha benfeita ou o delicado contorno de um rosto. E, portanto, ao chegar à presença de Isabel, nunca deixei de experimentar uma leve sensação de prazer ante o oval perfeito do rosto, o acetinado da pele e o cálido brilho dos olhos castanhos.

Nisto aconteceu um fato inesperado.


3

Em todas as grandes cidades existem grupos fechados que não se comunicam entre si, pequenos mundos dentro de um mundo maior, a viver a sua vida, dependendo seus componentes da companhia uns dos outros, como habitantes de ilhas separadas entre si por canais inavegáveis. De acordo com a minha experiência, mais do que de qualquer outra cidade pode-se dizer isso de Paris. Ali, raramente a alta sociedade permite intrusos no seu meio; os políticos vivem no seu círculo corrupto; os burgueses, grandes e pequenos convivem uns com os outros; escritores se congregam com escritores (é interessante notar, no Journal de André Gide, como ele teve pouca intimidade com pessoas que não eram da sua profissão), pintores misturam-se com pintores e músicos com músicos. O mesmo acontece em Londres, se bem que de maneira menos acentuada; ali os pássaros da mesma plumagem já não se juntam tanto, e há uma dúzia de casas onde a gente pode encontrar ao mesmo tempo uma duquesa, uma atriz, um pintor, um membro do Parlamento, um advogado, uma costureira e um escritor.

As circunstâncias da minha vida levaram-me a viver transitoriamente em quase todos os mundos de Paris, até mesmo (por intermédio de Elliott) no círculo fechado do Boulevard St. Germain; mas aquele de que mais gosto, mais que da roda discreta que tem seu centro no que hoje se chama Avenue Foch, mais que do grupo cosmopolita, que dá sua preferência ao Larue e ao Café de Paris, mais que da ruidosa e sórdida alegria de Montmartre, é o trecho que tem por artéria principal o Boulevard du Montparnasse. Na minha mocidade passei um ano num apartamentozinho próximo ao Lion de Belfort, no quinto andar, de onde se avistava perfeitamente o cemitério. Para mim, Montparnasse ainda tem um pacato ar de cidade de interior, característico naquele tempo. Quando passo pela sombria e estreita Rue d’Odessa, é com dor no coração que me lembro do modesto restaurante onde nos reuníamos para jantar, pintores, ilustradores, escultores e eu, o único escritor, a não ser por Arnold Bennett, que aparecia de vez em quando, ali ficando até tarde a discutir animadamente, absurdamente, colericamente, sobre pintura e literatura. Ainda é para mim um prazer descer pelo boulevard e observar as pessoas que têm a mocidade que eu tinha naquele tempo, e inventar, para meu gozo particular, histórias a respeito delas. Quando não tenho o que fazer, tomo um táxi e vou sentar-me no velho Café de Dôme. Já não é o que era naquele tempo, ponto de reunião exclusivamente da boêmia; os pequenos comerciantes da vizinhança habituaram-se a frequentá-lo, e surgem estranhos do outro lado do Sena, na esperança de ver um mundo que deixou de existir. Naturalmente os estudantes ainda aparecem, e pintores, e escritores; mas são, na maioria, estrangeiros; quem está ali sentado ouve tanto russo, alemão e inglês como francês. Mas tenho a impressão de que dizem mais ou menos as mesmas coisas que dizíamos há quarenta anos, só que discutem Picasso em vez de Manet, e André Breton em vez de Guillaume Apollinaire. Meu coração voa para perto deles.

Certa tarde, mais ou menos quinze dias depois de me achar em Paris, estava eu sentado no Dôme; tendo encontrado cheio o terraço, vira-me obrigado a tomar uma mesa da primeira fila. Tempo bonito e quente. Os plátanos começavam a enfolhar-se e havia no ar aquela nota de ociosidade, despreocupação e alegria, própria da cidade de Paris. Sentei-me em paz comigo mesmo, mas não letargicamente; pelo contrário, quase que com júbilo. Subitamente um homem que passara por mim parou e, exibindo os dentes brancos num sorriso, exclamou: “Alô”. Fitei-o inexpressivamente. Alto e magro. Estava sem chapéu; notei-lhe a cabeleira escura, que estava clamando por uma tesoura. O lábio superior e o queixo se escondiam sob cerrada barba castanha. Testa e pescoço muito queimados do sol. Estava com uma camisa puída, sem gravata, paletó marrom surradíssimo e uma calça cinzenta em não muito melhores condições. Parecia um vagabundo e eu poderia jurar que nunca o tinha visto. Tomei-o por um daqueles sujeitos ordinários que decaíram completamente em Paris, e esperei que me contasse uma série de infelicidades, no intuito de me arrancar alguns francos que lhe garantissem cama e comida por uma noite. Ele estava de pé, diante da minha mesa, mãos enfiadas nos bolsos, dentes brancos à mostra, expressão divertida nos olhos escuros.

– Não se lembra de mim? – perguntou.

– É a primeira vez que o vejo na vida.

Eu estava disposto a lhe dar vinte francos, mas não tinha a menor intenção de permitir que continuasse com o blefe de que éramos conhecidos.

– Larry – disse ele.

– Deus do céu! Sente-se – exclamei. Ele deu uma risadinha abafada, adiantou-se e ocupou a cadeira vazia à minha mesa. – Tome alguma coisa – continuei, chamando o garçom. – Como é que você esperou que eu o reconhecesse com todos esses pelos no rosto?

Veio o garçom e Larry encomendou uma laranjada. Agora que podia vê-lo melhor, lembrei-me da singularidade dos olhos, que residia no fato de ser a íris tão negra quanto a pupila, dando-lhes ao mesmo tempo penetração e opacidade.

– Há quanto tempo está em Paris? – perguntei.

– Há um mês.

– Vai continuar aqui?

– Por algum tempo.

Enquanto eu fazia essas perguntas, meu pensamento trabalhava. Notei que a bainha da calça estava puída, roto o paletó nos cotovelos. Tinha a aparência pobre de qualquer vagabundo que eu tivesse encontrado num porto oriental. Naquela época era difícil a gente se esquecer da depressão, e fiquei a conjeturar se a crise de 29 não o teria arruinado. O pensamento desagradou-me e, não sendo amigo de rodeios, perguntei-lhe francamente:

– Você está mal de finanças?

– Não; absolutamente. Que ideia foi essa?

– Pois bem, você está com ar de quem precisa de uma boa refeição, e as roupas que está usando só servem para o lixo.

– Tanto assim? Não pensei nisso. Para falar a verdade, eu estava com ideia de fazer algumas compras, mas nunca chega a hora.

Pensei que fosse orgulho, ou timidez, e não vi motivo para concordar com essa tolice.

– Não seja idiota, Larry. Não sou nenhum milionário, mas também não sou pobre. Se você está em apuros, deixe que lhe empreste alguns milhares de francos, que nem por isso ficarei quebrado.

Ele soltou uma gargalhada.

– Muito agradecido; mas não estou em apuros. Nem chego mesmo a gastar o que tenho.

– Apesar da crise?

– Oh! a crise não me atingiu. Tudo o que eu tinha estava em títulos do governo. Não sei se baixaram de cotação, não indaguei a respeito, mas o fato é que o Tio Sam continua a pagar os juros, como sujeito correto que é. Para ser franco, estive gastando tão pouco nestes últimos anos, que devo mesmo ter uma boa reserva.

– De onde é que você está vindo, então?

– Da Índia.

– Oh! eu soube que você tinha andado por lá. Isabel contou-me. Parece que ela conhece o gerente do seu banco, em Chicago.

– Isabel? Quando foi que a viu pela última vez?

– Ontem.

– Ela não está em Paris, está?

– Claro que está. Moram no apartamento de Elliott Templeton.

– Ótimo. Teria imenso prazer em vê-la.

Embora eu o observasse atentamente, notei nos seus olhos apenas prazer, e uma surpresa natural, mas nenhum sentimento mais complexo.

– Gray também está aqui. Você sabe que eles se casaram?

– Sei. O tio Bob – o dr. Nelson, meu tutor – escreveu, contando-me. Ele morreu há alguns anos.

Ocorreu-me que, com a quebra daquilo que era aparentemente o único elo que o prendia a Chicago, provavelmente Larry não estava a par dos acontecimentos. Falei-lhe do nascimento das duas filhas de Isabel, da morte de Henry Maturin e de Louisa Bradley, da ruína completa de Gray e da generosidade de Elliott.

– Elliott também está aqui?

– Não.

Pela primeira vez em quarenta anos Elliott não passava a primavera em Paris. Embora não aparentasse essa idade, estava agora com setenta anos e, como acontece comumente com homens tão idosos, havia dias em que se sentia cansado e doente. Ia aos poucos abandonando os exercícios e agora quase que só se limitava aos passeios a pé. Preocupava-se muito com a saúde e seu médico vinha vê-lo duas vezes por semana, para espetar alternadamente numa das nádegas uma agulha com a injeção da moda. Em todas as refeições, tanto em casa como fora, Elliott tirava do bolso um estojinho de ouro e dele extraía um comprimido, engolindo-o com o ar compenetrado de quem está cumprindo um rito sagrado. Seu médico lhe recomendara uma cura em Montecatini, estação de águas no norte da Itália, e de lá ele pretendia ir a Veneza, a fim de procurar um modelo de pia batismal apropriado para a sua igreja românica. Agora já não lhe era tanto sacrifício não visitar Paris, pois de ano em ano achava a vida social ali menos satisfatória. Não gostava de gente velha, ofendendo-se quando o convidavam para encontrar somente pessoas da sua idade; e, quanto aos moços, achava-os enfadonhos. A igreja que ele construíra era agora o interesse máximo da sua vida; podia, assim, satisfazer o seu arraigado gosto de adquirir obras de arte, tendo a agradável certeza de que o fazia para a glória de Deus. Encontrara em Roma um altar antigo, de melite, e durante seis meses estivera remexendo Florença à procura de um tríptico da escola sienense, para colocá-lo sobre o altar.

Larry perguntou-me que tal Gray estava achando Paris.

– Creio que se sente um tanto desambientado. Tentei explicar a impressão que Gray me causara. Larry ouviu-me com olhos fixos no meu rosto, sem pestanejar, e, não sei por quê, a expressão contemplativa me fez pensar que ele escutava, não com os ouvidos, mas com algum mais sensível e mais íntimo órgão auditivo. Esquisito, e para mim não muito agradável.

– Mas você verá por si mesmo – concluí.

– Sim, eu teria muito prazer em vê-los. Com certeza encontrarei o endereço na lista telefônica.

– Mas, a não ser que você queira pregar-lhes um susto e tanto, e arrancar gritos histéricos às crianças, vá cortar o cabelo e tirar essa barba.

Ele riu.

– A ideia já me ocorreu. Não tenho nenhum interesse em chamar atenção.

– E, enquanto estiver com a mão na massa, compre um terno novo.

– Creio que estou mesmo um tanto esfarrapado. Quando saí da Índia, verifiquei que não tinha outras roupas a não ser estas que trago no corpo.

Olhou para o meu terno e perguntou quem era o meu alfaiate. Contei-lhe, mas acrescentei que o homem estava em Londres e que, portanto, não poderia ser de grande utilidade. Mudamos de assunto, falando de novo sobre Gray e Isabel.

– Tenho-os visto frequentemente – disse eu. – São muito felizes. Ainda não tive oportunidade de conversar a sós com Gray e, em todo caso, acho que não me falaria sobre Isabel, mas sei que gosta muito dela. Seu rosto, em repouso, é um tanto taciturno; os olhos têm uma expressão atormentada, mas quando descansam em Isabel adquirem uma suavidade e uma meiguice realmente comovedoras. É minha impressão que, durante toda aquela época de luta, ela se manteve como uma rocha ao lado do marido e ele não se esquece de quanto lhe deve. Você vai achar Isabel mudada. – Não disse a Larry que ela estava linda como jamais o fora, pois não sabia se ele tinha suficiente discernimento para ver como a moça bonita e sacudida soubera transformar-se em mulher adoravelmente graciosa, delicada e fina. Há homens que se escandalizam com o auxílio que a arte presta à beleza feminina... Acrescentei: – Ela é muito boa para Gray. Está fazendo o possível para que ele readquira confiança em si.

Mas estava ficando tarde; perguntei a Larry se não queria descer comigo o boulevard, para jantarmos juntos.

– Não, obrigado; creio que hoje não – respondeu ele. – Tenho que ir caminhando.

Levantou-se, cumprimentou-me amavelmente e passou para a calçada.


4

Estive com Gray e Isabel no dia seguinte e contei-lhes que vira Larry. Ficaram tão admirados quanto eu.

– Que vontade de vê-lo novamente! – exclamou Isabel. – Vamos telefonar-lhe agora mesmo.

Lembrei-me então de que não pensara em pedir a Larry o seu endereço. Isabel me passou uma descompostura em regra.

– Não sei se ele me teria contado – defendi-me, rindo. Com certeza o meu subconsciente teve interferência no caso. Você não se lembra, ele não gostava de dizer onde estava morando. Era uma das suas esquisitices; mas é bem capaz de aparecer aqui a qualquer momento.

– Não seria de admirar – disse Gray. – Mesmo nos velhos tempos ninguém podia contar com ele onde era esperado. Estava hoje aqui, amanhã ali. A gente o via numa sala e pensava em ir cumprimentá-lo dali a pouco, mas quando lá chegava ele já tinha desaparecido.

– Larry sempre foi uma criatura exasperante – disse Isabel. – Quanto a isto, não há dúvida. Provavelmente teremos que esperar até que ele se lembre de aparecer.

Ele não veio neste dia, nem no seguinte, nem no outro. Isabel acusou-me de ter inventado a história só para aborrecer. Garanti-lhe que não, procurando apresentar razões que explicassem a ausência de Larry. Mas não eram plausíveis. Pensei comigo mesmo que, refletindo melhor, talvez ele tivesse achado preferível não ver Gray e Isabel, tendo mesmo saído de Paris. Já naquela época eu sentia que ele não criava raízes em parte alguma, estando sempre pronto – por uma razão que lhe parecesse boa, ou por capricho a continuar o seu caminho de um momento para outro.

Finalmente ele apareceu. Chovia, e Gray não fora a Mortefontaine. Estávamos os três na sala, Isabel e eu tomando uma xícara de chá, Gray um uísque com perrier, quando o mordomo abriu a porta e Larry entrou. Isabel pulou da cadeira com uma exclamação e, atirando-se nos braços dele, beijou-o em ambas as faces. Gray, seu rosto rubro tornando-se ainda mais rubro, apertou-lhe calorosamente a mão.

– Viva, que prazer em vê-lo – disse, em voz trêmula de emoção. Isabel mordeu os lábios e percebi que se esforçava para não chorar.

– Tome qualquer coisa, meu velho – disse Gray em voz ainda pouco firme.

Fiquei comovido com o prazer que lhes causava a volta do amigo errante. E para Larry deve ter sido agradável verificar quanto lhe queriam bem. Sorriu, satisfeito. Percebi, no entanto, que estava absolutamente senhor de si. Notando a bandeja do chá, disse:

– Aceito uma xícara de chá.

– Oh! céus, você não há de querer chá! – exclamou Gray. – Vamos abrir uma garrafa de champanhe.

– Prefiro chá – sorriu Larry.

Sua serenidade teve nos outros o efeito que ele provavelmente desejava que tivesse. Acalmaram-se, mas ainda o olhavam com afeição. Não quero com isso dizer que ele tenha correspondido com frieza pouco simpática à espontânea exuberância dos outros; pelo contrário, não podia ter sido mais cordial e encantador; senti, no entanto, na sua atitude qualquer coisa que só posso qualificar como “remota” e fiquei a imaginar o que seria.

– Por que não veio logo nos ver, “sua” peste? – exclamou Isabel, fingindo indignação. – Passei estes últimos cinco dias dependurada na janela, e todas as vezes que a campainha tocava meu coração batia acelerado, dando-me um trabalhão para acalmá-lo novamente!

Larry riu baixinho.

– Mr. Maugham me disse que eu estava com aparência tão pouco respeitável que o seu criado não me deixaria entrar. Fui a Londres de avião, para comprar umas roupas.

– Isto não teria sido necessário – disse eu. – Você poderia ter comprado uma roupa feita aqui no Printemps ou na Belle Jardinière.

– Achei que, já que estava decidido, era melhor fazer a coisa em estilo – respondeu Larry. – Há dez anos que não compro trajes europeus. Procurei o seu alfaiate e disse-lhe que queria um terno em três dias. Ele respondeu que levaria quinze, de modo que concordamos com quatro. Faz uma hora que cheguei de Londres.

Ele usava um terno de casimira azul bem assentado no seu corpo esguio, camisa branca de colarinho mole, gravata azul e sapato marrom. Cortara curto o cabelo e tirara a barba. Estava não somente decente, mas bem tratado. Verdadeira transformação. Muito magro; maçãs ainda mais salientes, têmporas mais entradas, olhos maiores nas órbitas fundas; apesar disso, estava muito bem-disposto. Para falar a verdade, com seu rosto muito queimado, sem uma ruga, ele parecia extraordinariamente jovem. Era um ano mais moço do que Gray, tendo ambos pouco mais de trinta anos; mas, se Gray dava a impressão de ter dez anos mais, Larry parecia ter dez menos. Os movimentos de Gray, devido ao seu volume, eram deliberados e um tanto pesados; os de Larry, leves e naturais. Tinha um jeito de adolescente, alegre e donairoso, mas no íntimo possuía uma serenidade que singularmente me era perceptível, e que eu não me lembrava de ter notado no rapazinho que conhecera em Chicago. À medida que a conversa prosseguia, com muita naturalidade, como acontece entre velhos amigos que têm muitas recordações em comum, com notícias de Chicago fornecidas por Gray e Isabel – conversa trivial, entremeada de risos, uma coisa conduzindo a outra–, eu continuava com a impressão de que, embora fosse espontâneo o seu riso e ele ouvisse com evidente prazer o alegre tagarelar de Isabel, havia em Larry um singular desprendimento. Não que estivesse representando um papel, pois era natural demais para isso, e sua sinceridade era inegável; senti que havia qualquer coisa dentro dele, não sei se devo chamá-la de percepção, sensibilidade, ou força, que se conservava estranhamente isolada.

As crianças apareceram, foram apresentadas a Larry e fizeram suas delicadas reverenciazinhas. Ele lhes estendeu a mão, fitando-as com encantadora ternura nos olhos suaves, e elas a apertaram com ar grave. Com muita vivacidade Isabel contou a Larry que as filhas iam muito bem nos estudos, deu um bolinho a cada uma e mandou-as embora.

– Vou depois ler para vocês durante dez minutos, quando estiverem na cama.

Naquele momento ela não queria ver interrompido o prazer que lhe causava a presença de Larry. As meninas foram dar boa-noite ao pai. Achei comovente ver iluminar-se o rosto vermelho daquele homem pesadão, quando as abraçou e beijou. Ninguém podia deixar de notar com que orgulho as adorava; quando elas saíram, virou-se para Larry e disse:

– Podiam ser piores, não podiam?

Isabel lançou ao marido um olhar afetuoso.

– Se eu deixasse Gray fazer o que quer, elas estariam completamente estragadas. Este brutamontes me deixaria foie gras.

Gray fitou-a sorrindo e disse:

– Você é uma mentirosa e sabe disso. Tenho verdadeira paixão por você.

Nos olhos de Isabel brilhou um sorriso compreensivo. Ela sabia disso e o fato lhe causava prazer. Um casal feliz.

Isabel insistiu em que ficássemos para jantar. Achando que talvez eles preferissem ficar sós, inventei uma desculpa, mas Isabel não se conformou.

– Direi a Marie que ponha mais uma cenoura na sopa e assim dará bem para quatro. Temos frango; você e Gray poderão comer as pernas e Larry e eu ficaremos com as asas; e ela que faça o suflê de um tamanho que dê para todos nós.

Também Gray parecia querer que eu ficasse, de modo que me deixei persuadir a fazer o que eu desejava.

Enquanto esperávamos, Isabel contou detalhadamente a Larry aquilo que eu já lhe contara por alto. Embora narrasse a lamentável história da maneira mais alegre possível, o rosto de Gray tornou-se taciturnamente melancólico. Ela procurou animá-lo.

– Em todo caso, agora está tudo acabado. Caímos de pé e temos o futuro à nossa frente. Assim que as coisas melhorarem, Gray vai arranjar um ótimo emprego e ganhar milhões. Vieram os coquetéis, e dois conseguiram levantar o moral do pobre coitado. Notei que, embora tivesse tirado um, Larry mal tocou nele; e quando Gray, mau observador, lhe ofereceu outro, Larry recusou-o. Fomos lavar as mãos e sentamo-nos à mesa. Gray mandara abrir uma garrafa de champanhe, mas, quando o mordomo começou a servir Larry, este lhe disse que não queria.

– Oh! mas você precisa tomar um pouco! – exclamou Isabel. – É o melhor champanhe do tio Elliott, que ele reserva para os convidados especiais.

– Para ser franco, prefiro água. Depois de ter vivido tanto tempo no Oriente, é um prazer poder beber uma água que não seja perigosa.

– Mas é uma ocasião especial.

– Está certo; tomarei um pouco.

O jantar estava ótimo, mas, assim como eu, Isabel notou que Larry comeu muito pouco. Ocorreu-lhe então, creio, que estivera falando o tempo todo e que pouca oportunidade tivera ele de dizer alguma coisa; em vista disso, começou a indagar dos seus atos durante aqueles dez anos em que não se tinham visto. Ele respondeu com a sua amável franqueza, mas tão vagamente que não ficamos lá muito bem informados.

– Oh! você sabe, estive vagando por aí. Passei um ano na Alemanha e algum tempo na Espanha e Itália. E perambulei um pouco pelo Oriente.

– De onde está vindo agora?

– Da Índia.

– Quanto tempo ficou lá?

– Cinco anos.

– Divertiu-se? – perguntou Gray. – Matou algum tigre?

– Não – respondeu Larry sorrindo.

– Mas, francamente, o que esteve você fazendo na Índia durante cinco anos? – perguntou Isabel.

– Divertindo-me – respondeu ele com um sorriso de amável zombaria.

– Que tal a Mágica da Corda? – perguntou Gray. – Viu-a?

– Não, não vi.

– Que foi que você viu?

– Muita coisa.

Nesta altura fiz uma pergunta.

– É verdade que os iogues adquirem poderes que nos pareceriam sobrenaturais?

– Não sei. Só o que posso dizer é que, na Índia, geralmente se acredita nisso. Mas os mais sensatos não dão muito valor a poderes dessa natureza; acham que retardam o progresso espiritual. Lembro-me de que um deles me falou de um iogue que chegou à beira de um rio, e que não tinha dinheiro para pagar o barqueiro que devia levá-lo à outra margem, recusando-se este a transportá-lo de graça; e, portanto, o homem pisou a água e andou sobre a superfície, até chegar ao outro lado. O iogue que me contou o fato encolheu os ombros desdenhosamente e disse: “Tal milagre não vale mais que o níquel que teria custado a passagem”.

– Mas você acha que o iogue andou realmente sobre a água?

– O iogue que me contou acreditava nisso piamente. Era um prazer ouvir Larry falar, pois sua voz era adoravelmente melodiosa; leve, rica sem ser profunda, e com uma singular variedade de entonações. Terminado o jantar, fomos para a sala de visitas, onde nos foi servido o café. Eu não conhecia a Índia e estava ansioso por mais detalhes.

– Você chegou a conhecer escritores e pensadores? – perguntei.

– Noto que você faz uma distinção entre os dois – disse Isabel, para troçar comigo.

– Fiz questão disso – declarou Larry.

– Como é que você se comunicou com eles? Em inglês?

– Os mais interessantes, quando sabiam inglês, não falavam muito bem e entendiam menos ainda. Aprendi hindustani. E, quando fui para o sul, cheguei a entender bastante tamul para não me sentir perdido.

– Quantas línguas você conhece, Larry?

– Não sei. Mais ou menos uma meia dúzia.

– Conte-me mais alguma coisa sobre os iogues – pediu Isabel. – Chegou a conhecer algum intimamente?

– O mais intimamente que se possa conhecer uma pessoa que vive a maior parte do tempo no Infinito – respondeu ele sorrindo. – Passei dois anos no ashrama de um deles.

– Dois anos? Que é ashrama?

– Bom, suponho que é o que chamaríamos de eremitério. Há homens santos que vivem sós, num templo, na floresta ou nas encostas do Himalaia. Há outros que atraem discípulos. Uma pessoa caridosa, que queira adquirir mérito, constrói um quarto grande ou pequeno, para que ali viva um iogue cuja piedade o impressionou, e os discípulos vivem com ele, dormindo na varanda, ou na cozinha se existe uma, ou mesmo embaixo das árvores. Eu tinha uma choça, perto, onde apenas havia lugar para minha cama de lona, uma cadeira, uma mesa e uma estante.

– Onde foi isso? – perguntei.

– Em Travancore, bela região de morros verdejantes, vales poéticos e rios de águas mansas. Lá em cima, nas montanhas, há tigres, leopardos, elefantes e bisões, mas o ashrama ficava numa laguna cercada de arecas e coqueirais. Distava cinco ou seis quilômetros da cidade mais próxima, mas vinha gente de lá, e mesmo de mais longe, a pé ou de carro de boi, para ouvir o iogue falar quando a tal se sentia inclinado, ou apenas para se sentar a seus pés e compartilhar da paz e bem-aventurança que, tal a fragrância que a tuberosa espalha no ar, sua santa presença irradiava.

Gray moveu-se desajeitadamente na cadeira. Pareceu-me que a conversa estava tomando um rumo que não o deixava lá muito à vontade.

– Quer tomar um uísque? – perguntou-me.

– Não, obrigado.

– Bom, eu vou tomar um. E você, Isabel?

Ergueu da cadeira o corpo pesadão e foi até a mesa onde havia uísque Perrier e alguns copos.

– Havia lá outros homens brancos?

– Não; eu era o único.

– Como é que você pôde aguentar isso durante dois anos? – exclamou Isabel.

– Passaram voando. Tenho conhecido dias que me pareceriam mais longos.

– O que é que você fazia o tempo todo?

– Lia. Fazia longos passeios a pé. Saía de barco pela laguna.

Meditava. A meditação é tarefa árdua; depois de duas ou três horas, a pessoa fica exausta como se tivesse guiado um carro durante mil quilômetros, e só o que deseja é repousar.

Isabel franziu de leve as sobrancelhas. Estava perplexa e não garanto que não estivesse também um pouco amedrontada. Creio que começava a achar que o Larry que horas antes entrara na sala, embora aparentemente inalterado, franco e amigo como antigamente, não era o mesmo Larry ingênuo, alegre e de gênio fácil, quase seu escravo, mas encantador, que ela conhecera no passado. Perdera-o uma vez e, ao vê-lo novamente, tomando-o pelo mesmo de outros tempos, julgava que, por diferentes que fossem as circunstâncias, ele ainda lhe pertencia; mas estava agora ligeiramente consternada, como se tivesse querido capturar um raio de sol e ele lhe houvesse escapado pelos dedos no momento em que o agarrara. Eu a observara bastante naquela noite, tarefa, aliás, sempre agradável, e notara a expressão afetuosa do seu olhar quando pousara na cabeça benfeita de Larry, de orelhas pequenas rentes ao crânio, e vira essa expressão mudar ao fixar-se nas têmporas fundas e faces macilentas. Olhou de relance para as mãos longas, finas, que apesar de emaciadas eram fortes e viris. Depois seu olhar se demorou na boca expressiva, benfeita, carnuda sem ser sensual, e na fronte serena e nariz benfeito. Larry usava suas roupas, não com a elegância de figurino de Elliott, mas com a despreocupação de quem as tivesse usado todos os dias durante um ano. Vi que ele inspirava em Isabel um sentimento maternal que eu não lhe notara no trato com as filhas. Era ela uma mulher experiente; ele parecia ainda um rapazinho; creio ter percebido na atitude de Isabel um orgulho de mãe pelo filho crescido, pelo fato de estar ele falando inteligentemente e ser ouvido como se suas palavras tivessem sentido. Não creio que ela alcançasse o que ele dizia.

Mas eu ainda não acabara com as perguntas.

– Como era o seu iogue?

– Quer dizer, fisicamente? Pois bem, não era alto; nem magro nem gordo; pele de um pardo acinzentado, barba feita, cabelo branco cortado rente. Usava apenas uma tanga, e no entanto conseguia ter a aparência limpa e correta de qualquer rapaz de um anúncio de Brooks Brothers.

– E qual a maior atração que você viu nele?

Larry fitou-me durante um longo momento antes de responder. Os olhos profundos pareciam querer penetrar-me até o mais íntimo da alma.

– Santidade.

Fiquei um tanto desconcertado com a resposta. Naquela sala de mobília fina e belos desenhos nas paredes, a palavra caiu como uma gota-d’água que houvesse filtrado pelo teto, oriunda de uma banheira transbordante.

– Temos lido muito sobre os santos, são Francisco, são João da Cruz e outros, mas isto aconteceu há centenas de anos. Nunca pensei que fosse possível conhecer um que vivesse atualmente. Desde o primeiro momento em que o vi, tive certeza de que era um santo. Foi um maravilhoso acontecimento.

– E o que você ganhou com isso?

– Paz – respondeu ele despreocupadamente, com um leve sorriso. Depois, bruscamente, ergueu-se e disse: – Tenho que ir.

– Oh! ainda não, Larry – exclamou Isabel. – É muito cedo.

– Boa-noite – disse ele, ainda sorrindo, sem ligar ao protesto. Beijou-a na face e acrescentou: – Provavelmente nos veremos daqui a um ou dois dias.

– Onde é que você está morando? Eu lhe telefonarei.

– Oh! não se incomode. Você sabe como é difícil a gente conseguir uma ligação em Paris e, além do mais, o nosso telefone está sempre com defeito.

Ri-me intimamente ao ver com que habilidade Larry se esquivara. Era uma esquisitice sua, guardar segredo sobre o seu endereço. Propus jantarem todos comigo, não na noite seguinte, mas na outra, no Bois de Boulogne. Naquele verão ameno era muito agradável a gente comer ao ar livre, sob as árvores; Gray poderia levar-nos no cupê. Saí com Larry e de boa vontade teria andado um trecho do caminho em sua companhia, mas assim que ganhamos a rua ele me estendeu a mão, afastando-se rapidamente. Tomei um táxi.

 

 


C O N T I N U A