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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FOGUETE DA MORTE / Ian Fleming
O FOGUETE DA MORTE / Ian Fleming

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

 

 

 

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

CONTINUA

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

Os dois 38 detonaram simultaneamente. As paredes da câmara subterrânea receberam o impacto do som, jogando-o para a frente e para trás, em múltiplos ricochêtes, até o silêncio voltar a estabelecer-se. James Bond observou a fumaça que se esvaía de cada lado do compartimento, atraída para o ventilador de exaustão. A recordação em sua mão direita de como fizera pontaria e atirara, com um rápido movimento da esquerda, deixava-o confiante. Abriu o tambor para um lado, em seu Colt especial de detetive, e esperou, a arma apontando para o chão, enquanto o Instrutor caminhava as vinte jardas em sua direção, no hemiciclo da galeria de tiro. Bond viu o Instrutor rindo.
— Não acredito, não É possível. Desta vez lhe peguei direitinho — foi dizendo.
O Instrutor acercou-se ainda mais.
— Eu vou para o hospital, mas você está morto. Trazia em uma das mãos, o alvo-silhuêta, representando a parte superior do corpo de um homem. Na outra, um filme polaroide do tamanho de um cartão postal. Entregou este último a Bond, e os dois se encaminharam para uma mesa que estava colocada atrás de ambos e sobre a qual se via uma lâmpada de escrivaninha, velada por um abajur verde, e uma grande lente.
Bond segurou a lente e debruçou-se sobre a fotografia. Era um filme em flash de Bond. Em torno die sua mão direita via-se um halo, um tanto impreciso, de chama branca. Focalizou a lente, cuidadosamente, sobre o lado esquerdo de seu casaco escuro. No meio do coração via-se um minúsculo ponto de luz.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_FOGUETE_DA_MORTE.jpg

 

Sem dizer palavra, o Instrutor colocou o grande alvo branco, com o formato de um homem, sob a luz da lâmpada. O coração era representado por um olho de boi, negro, de uns sete centímetros de largura. Bem por debaixo e a um centímetro para a direita, estava o rasgão provocado pela bala da arma de Bond.

— Perfurou o lado esquerdo da parede do estômago e saiu pelas costas — disse o Instrutor, satisfeito. Tomou de um lápis e fez uma conta na margem do alvo.

— Vinte rounds, e creio que me deve sete xelins e meio — continuou ele, impassível.

Bond riu. Contou algumas moedas de prata.

— Dobre a parada, na próxima segunda-feira — sugeriu.

— Por mim, estou de acordo — retorquiu o Instrutor. — Mas não pode vencer a máquina. E se quer realmente entrar para a equipe que disputa o Troféu Dewar, convém darmos algum repouso aos .38 e dedicar algum tempo à Remington. Aquele novo tipo de cartucho vinte e dois que acaba de ser criado significará, pelo menos, 7.900 probabilidades de ganhar em 8.000. A maioria de suas balas terão de se alojar no círculo-x, e quando está bem por debaixo de nossos narizes, não é maior do que uma moeda de xelim. A cem jardas, é como se nem sequer lá estivesse.

— Quero que o Troféu Dewar vá para o inferno — disse Bond. — É de seu dinheiro que eu ando atrás.

Com uma pancada seca, retirou as balas não detonadas do interior do tambor de seu revólver, para a mão em concha, colocando a arma e os projéteis sobre a mesa:

— Ver-nos-emos então segunda-feira. À mesma hora?

— Às dez em ponto, seria ótimo para mim — respondeu o Instrutor, fazendo girar os puxadores da porta de ferro.

Sorriu nas costas de Bond, quando este desapareceu, galgando a íngreme escada de ferro que levava ao andar térreo. Estava satisfeito com os exercícios de tiro de Bond, mas nem sonhava sequer em dizer-lhe que era o melhor atirador no Serviço. Só M. podia saber disso, e seu chefe de gabinete, a quem deveria comunicar os resultados do exercício de tiro daquele dia, para serem anotados no Registro Confidencial relativo a Bond.

Bond transpôs a porta verde almofadada, à prova de som, no fim da escadaria do porão, e encaminhou-se para o elevador que o transportaria ao oitavo andar do edifício cinzento e maciço, próximo a Regent’s Park, onde estava instalado o Quartel-General do Serviço Secreto. Bond ficara satisfeito com a marca atingida, mas não orgulhoso dela. O dedo com que puxara o gatilho estremeceu dentro do bolso, enquanto ele cogitava sobre a maneira como superar aquela infinitésima fração de velocidade que venceria a máquina — aquela complicada caixa de truques que mostrava o alvo por apenas três segundos, ripostava ao atirador com um .38 sem balas e expedia um feixe de luz em sua direção, fotografando o momento exato em que ele atirava, colocado no centro do círculo de giz, no chão.

A porta do elevador abriu-se, com um ranger suave, e Bond entrou. O ascensorista captou nele o cheiro de cordite. Todos tinham esse cheiro quando vinham das galerias de tiro. Gostava desse cheiro forte. Recordava-lhe o Exército. Apertou o botão do oitavo andar e repousou o coto do braço esquerdo na manivela de comando.

Se ao menos a luz fosse melhor, pensava Bond. Mas M. insistia em que todos os exercícios de tiro deviam ser efetuados em condições de visibilidade razoavelmente precárias. Luz frouxa e um alvo que ripostava ao tiro era o mínimo que se podia obter como cópia de uma situação real. “Fazer misérias, atirando num pedaço indefeso de papelão, não prova coisa alguma”, era a lacônica frase de introdução do Manual de Defesa com Pequenas Armas.

O elevador parou, e quando Bond saiu, enfiando pelo austero corredor do Ministério do Trabalho e penetrando no mundo trepidante de garotas carregando dossiês, de portas que abriam e fechavam, de telefones retinindo, abafados, despojou a mente de todos os pensamentos relacionados com tiros. Preparou-se para o trabalho normal de um dia de rotina no Quartel-General.

Encaminhou seus passos para a última porta à direita. Era tão anônima quanto todas as demais que ultrapassara. Nada de números. Se alguém precisasse tratar algum assunto no oitavo andar e seu escritório não fosse aí, apareceria alguém que o levaria à sala onde precisasse ir e escoltá-lo-ia de volta ao elevador, quando o caso terminasse.

Bond bateu e esperou. Olhou o relógio. Onze horas. As segundas-feiras eram tremendas. Dois dias de processos e dossiês para serem examinados. E, em geral, os fins de semana eram dias bastante movimentados por aí fora. Apartamentos vazios eram roubados. Pessoas eram fotografadas em situações comprometedoras. Os “acidentes” com automóveis eram coisa mais fácil de resolver, comparados com os morticínios que ocorriam nas estradas, cada fim de semana. As malas semanais que vinham de Washington, Istambul e Tóquio, teriam chegado e sido repartidas. Talvez houvesse alguma coisa para ele.

A porta se abriu, e Bond desfrutou seu momento diário de prazer, por dispor de uma bela secretária.

— Bom dia, Lil — cumprimentou ele.

O meticuloso calor do sorriso dela, sempre acolhedor, caiu uns dez graus.

— Me dê esse casaco— disse a moça. — Fede a cordite. E não me chame de Lil. Sabe que detesto.

Bond tirou o casaco e entregou-o à secretária.

— Qualquer pessoa batizada com o nome de Loelia Ponsonby deve habituar-se a apelidos.

Bond estava de pé, ao lado da escrivaninha da secretária, na pequena ante-sala que ela conseguira transformar em algo mais humano que um escritório funcional. Observou-a enquanto ela pendurava o casaco no caixilho de ferro da janela aberta.

Lil era alta, morena, com um tipo de beleza discreto, ao qual a guerra e cinco anos no Serviço Secreto haviam acrescentado um quê de severidade. Se não se casasse logo ou arranjasse um amante, pensou Bond pela centésima vez, seu ar frio de austeridade poderia facilmente converter-se no de uma solteirona, e ela ingressaria no batalhão das mulheres que desposaram uma carreira.

Bond já lhe dissera mais ou menos isso, diversas vezes, e tanto ele como dois outros agentes da secção 00, haviam desencadeado assaltos à virtude da moça. Ela os tratara a todos com o mesmo e frio jeito maternal (que, para apaziguar seus respectivos egos ofendidos, eles definiam, intimamente, como frigidez sexual), mas, no dia seguinte, tratava-os com pequenas atenções e amabilidades, como se quisesse mostrar que a culpa era realmente dela, e que lhes perdoava.

O que eles ignoravam era que Lil quase morria de preocupação quando eles corriam perigo, e os amava a todos por igual; mas que não tinha a menor intenção de se envolver, emocionalmente, com homens que podiam estar mortos daí a uma semana. Era bem verdade que trabalhar no Serviço Secreto constituía uma forma de escravidão. E, sendo mulher, quase não sobrava de si mesma para fomentar outras relações. Para os homens era mais fácil. Tinham uma desculpa para casos acidentais e sem consequências. Para eles, casamento, filhos e um lar eram coisas fora de questão, se quisessem ser úteis “no negócio”, como diziam na gíria íntima. Mas, para as mulheres, um “caso” fora do Serviço convertia-se, automaticamente, num “risco para a segurança” e, em última análise, só tinham a escolher entre o pedido de demissão do Serviço e uma vida normal, ou então o concubinato perpétuo com seu Rei e Pátria.

Loelia Ponsonby sabia ter quase atingido a hora da decisão, e todos os seus instintos lhe gritavam que saísse dali. Entretanto, dia após dia, o drama e romance de seu mundo de Edith Cavell-Nightingale estreitavam-na, cada vez mais irredutivelmente, à companhia das outras moças do Quartel-General, pelo que cada dia lhe parecia mais difícil desertar, através de um pedido de demissão, traindo aquela figura paternal em que O Serviço se convertera.

Entretanto, era ela uma das moças, mais invejadas no edifício, membro do pequeno grupo de Secretárias Principais que tinham acesso aos mais recônditos segredos do Serviço — o “Clube das Pérolas e Gêmeas”, como eram apelidadas nas costas por outras pequenas, numa alusão irônica ao fato de serem supostamente originárias do “condado” e de “Kensington”. E, no que dizia respeito à Seção de Pessoal, o destino dela seria, daqui a vinte anos, aquela simples linha dourada, no final da lista de honradas do Ano Novo, entre as condecorações atribuídas aos funcionários do Departamento de Pescas, do Departamento de Correios, do Instituto Feminino, lá bem no fundo das O.B.E. (cavaleiros da Ordem do Império Britânico): “Miss Loelia Ponsonby, Secretária Principal do Ministério de Defesa.”

Deixou a janela. Trajava uma blusa listada de branco e rosa pálido, e uma saia lisa, azul-marinho.

Bond sorriu para o fundo de seus olhos cinzentos.

— Só lhe chamo Lil às segundas-feiras. Miss Ponsonby o resto da semana. Mas juro que nunca a chamarei de Loelia. Me dá a impressão de personagem de versinhos indecentes. Algum recado?

— Não — respondeu a moça, lacônica. Depois, adoçou a voz. — Em compensação tem pilhas de coisas em sua escrivaninha . Nada de urgente. Mas muita coisa mesmo. Ah.. . e o “Clube das Boateiras” informa que 008 saiu. Está em Berlim, repousando. Não é estupendo?

Bond olhou-a rapidamente:

— Quando soube você disso?

— Há meia hora — respondeu ela.

Bond abriu a porta interna de comunicação para o amplo escritório, com suas três escrivaninhas, e tornou a fechá-la. Encaminhou-se para a janela e contemplou os últimos vestígios de verde primaveril, no arvoredo do Regenfs Park. Assim é que Bill sempre conseguira. Peenemunde e volta. Devia estar em estado deplorável. Repouso em Berlim não soava bem. Bom, só lhe restava aguardar as últimas novidades, através da única fuga no sistema de todo o edifício: a sala de estar das moças, conhecida como “Clube das Boateiras”, para fúria impotente de todo o pessoal do serviço de segurança interna.

Bond suspirou e foi sentar-se diante de sua escrivaninha, puxando para si o gavetão sobre o qual se empilhavam os envelopes marrons, marcados com a estrela vermelha de top-secret. Que seria feito de 0011? Já fazia dois meses que ele desaparecera na “Meia-Milha Suja”, em Singapura. Nem uma palavra desde então. Enquanto que ele, Bond, n.° 007, o mais antigo dos três homens no Serviço que conquistaram o duplo zero, estava ali, sentado diante de sua cômoda escrivaninha, com o nariz em cima da papelada e flertando com a secretária.

Deu de ombros e, resolutamente, abriu o primeiro envelope. Dentro, encontrava-se um mapa detalhado da Polônia meridional e do nordeste da Alemanha. Sua principal característica era uma linha vermelha e irregular, ligando Varsóvia e Berlim. Havia também um memorando datilografado, com o título: Tópico: Uma Rota de Fuga, consolidada, do Leste para o Oeste.

Bond retirou do bolso sua cigarreira de metal, de cor negra de aço, e o isqueiro Ronson, negro-oxidado, colocando-os a seu lado. Acendeu um cigarro, da mistura de Macedônia com três anéis dourados que Morlands de Grosvenor Square preparava especialmente para ele; acomodou-se na poltrona, estofada e giratória, inclinando-se ligeiramente para a frente. Começou a ler.

Era o início da típica rotina diária para Bond. Só duas ou três vezes por ano surgia missão para a qual eram requeridos seus talentos pessoais. Durante o resto do tempo, competiam-lhe as obrigações de um folgado funcionário público superior — horário de escritório elástico, desde cerca das dez até às seis; almoço, geralmente na cantina; noites passadas jogando cartas, em companhia de um punhado escasso de amigos íntimos, ou no Crockford’s; ou fazendo amor, com uma paixão algo fria, na companhia de uma de três senhoras casadas de idênticas disposições afetivas; fins de semana jogando golfe, com paradas altas, num dos clubes dos arredores de Londres.

Não tomava férias mas, geralmente, concediam-lhe uma licença de quinze dias, ao término de cada missão — além de qualquer outra que, por motivo de doença, pudesse ser necessária. Ganhava 1500 libras por ano, ordenado de um Primeiro-Oficial no Serviço Civil, e possuía uma renda própria de outras mil libras, deduzidos os impostos. Quando estava tratando de um caso, podia gastar o dinheiro que lhe aprouvesse, de modo que durante os outros meses do ano podia viver confortàvelmente com suas 2000 libras líquidas. Possuía um pequeno mas confortável apartamento nas cercanias de Kings Road, uma velha governante escocesa — um tesouro chamado Mary — e um Bentley coupé, modelo 1930, quatro e meio de cilindrada, mas super-remodelado, tendo Bond acondicionado o carro, eficientemente, de maneira a poder fazer os cento e cinquenta quilômetros por hora, quando lhe apetecia.

Nessas coisas gastava quase todo o dinheiro, e sua ambição consistia em ter depositada no Banco a menor quantia possível, caso fosse morto como, nos momentos de depressão, ele sabia que seria, muito antes da idade limite estabelecida pela lei, aos quarenta e cinco anos.

Faltavam oito para ser automaticamente retirado do quadro dos agentes 00 e passar a ocupar um cargo de gabinete no Quartel-General. Tinha pela frente, portanto, oito duras missões. Provavelmente dezesseis. Talvez mesmo vinte e quatro. Eram demais.

Havia já cinco pontas de cigarros no cinzeiro grande, de vidro, quando Bond terminou de decorar os pormenores das diretrizes relativas ao tópico Varsóvia-Berlim, rota de fuga. Pegou um lápis vermelho e passou os olhos pela lista de distribuição, indicada na capa. A lista começava com “M”, depois “COS”, em seguida, mais uma dúzia de letras e números, terminando com “00”. Diante desta sigla, fez uma rubrica nítida, assinou com o número 7, e jogou os papéis na bandeja marcada “Saída”.

Era meio-dia. Bond pegou o seguinte envelope da pilha e lançou o olhar pela primeira página. Era da Seção do Serviço Secreto Radiofônico da OTAN, com a recomendação habitual “Apenas para Informação” e tendo como epígrafe “Assinaturas e Prefixos de Rádio”. Puxou então o resto da pilha para junto de si, relanceando cada um dos papéis. Traziam os seguintes títulos:

O Inspectoscópio — Máquina para Detecção de Contrabando.

Philopon — Droga mortífera japonesa.

Possíveis pontos de esconderijo em trens. N.° 11. Alemanha.

Os Métodos de Smersh. N.° 6: Rapto.

Rota Cinco para Pequim.

Vladivostock. Reconhecimento fotográfico pelos Thunderjet da Força Aérea dos Estados Unidos

Não se surpreendeu com a curiosa mistura que teria de digerir. A Seção 00 do Serviço Secreto não tomava conhecimento das operações comuns das outras seções e bases, mas somente das informações essenciais que pudessem ser úteis ou instrutivas para os únicos três homens do Serviço, entre cujos deveres se incluía o assassinato — a quem podia ser ordenado que matassem. Não havia qualquer urgência naquela papelada. Não era pedida qualquer providência ou ação, por parte dele ou de seus dois colegas, exceto que cada um anotasse os números de processos que julgasse conveniente que os demais lessem, quando voltassem a estar adidos ao Quartel-General. Quando a Seção 00 acabasse de examinar o lote, os papéis iriam para baixo, para seu destino final, nos “Registros”.

Bond voltou ao documento da OTAN Leu o seguinte: “A maneira quase inevitável como a individualidade se revela, por meio dos padrões de reação instantânea do comportamento, está demonstrada pelas características imutáveis do “punho” de cada operador. Esse “punho” ou modo de bater as mensagens é peculiar e reconhecível pelos que estão habituados a recebê-las, constituindo como que a assinatura ou o prefixo pessoal do operador, para cada mensagem que transmite. Pode também ser medido por mecanismos muito sensíveis. Ilustrando esta informação, em 1943, o Departamento norte-americano do Serviço Secreto especializado em radiofonia utilizou-se desse conhecimento para descobrir uma estação inimiga no Chile, a qual era operada por “Pedro”, um jovem alemão. Quando a polícia chilena cercou a estação, “Pedro” ainda logrou escapar. Um ano depois, os peritos do Serviço Secreto pegaram um novo transmissor clandestino e conseguiram reconhecer “Pedro” como operador. Para disfarçar seu “punho”, ele transmitia com a mão esquerda, mas o disfarce não foi bastante eficiente, e ele foi capturado, finalmente.”

E o relatório prosseguia: “O Departamento de Pesquisas de Rádio da OTAN esteve utilizando recentemente, em regime experimental, uma forma de “misturador” que pode ser ligado ao pulso dos operadores, com a finalidade de interferir, instantaneamente, nos centros nervosos que controlam os músculos da mão. Contudo...”

Havia três telefones sobre a escrivaninha de Bond. Um preto, para chamadas externas; um verde, para as comunicações internas; e um vermelho, este ligado apenas para M. e seu chefe de gabinete. Foi o zumbido familiar do telefone vermelho que quebrou o silêncio da sala.

Era o chefe de gabinete de M.

— Pode subir? — perguntou a voz, em tom agradável.

— M.? — indagou Bond.

— Sim.

— Tem alguma ideia do que seja?

— Disse apenas que, se você estivesse aqui, ele gostaria de vê-lo...

— Está bem — respondeu Bond, desligando.

Pegou o casaco, disse à secretária que estaria com M. e não esperasse por ele, saiu do escritório e caminhou pelo corredor, rumo ao elevador.

Enquanto esperava, pensou naquelas outras vezes em que, no meio de um dia vazio, o telefone interrompera o silêncio, de súbito, e o transportara de um mundo para outro. Deu de ombros. Segunda-feira! Devia ter contado com complicações.

O elevador chegou.

— Para o nono — disse Bond, entrando.

CAPÍTULO 2


O REI DA COLUMBITE

 

O nono andar era o último do edifício. A maior parte estava ocupada pelo Serviço de Comunicações, a selecionada equipe de operadores inter-serviços, cujo único interesse era o mundo das micro-ondas, das manchas solares e das “camadas mais pesadas”. Por cima deles, no telhado plano, ficavam as três antenas, atarracadas e robustas, de um dos mais potentes transmissores de toda a Inglaterra, descrito na placa de bronze do hall de entrada do edifício como “Rádio-Testes Limitada”. Os demais inquilinos figuravam com os nomes da “Companhia Universal de Exportação”, “Delaney & Irmãos (1940) Limitada”, “The Omnium Corporation” e “Informações (Miss E. Twining, OBE)”.

Miss Twining era uma pessoa de verdade. Quarenta anos atrás, fora uma Loelia Ponsonby. Agora, aposentada, sentava-se em seu pequeno escritório do andar térreo e passava os dias rasgando circulares, pagando os impostos e taxas de seus locatários fantasmas e afastando, delicadamente, vendedores e pessoas que desejavam exportar alguma coisa, ou queriam consertar seus rádios.

O nono andar era sempre muito silencioso. Quando Bond dobrou à esquerda e seguiu pelo corredor, maciamente atapetado, em direção à porta verde que dava para os escritórios de M. e seus auxiliares pessoais, o único som que ouviu foi um gemido fino e agudo, porém tão fraco que quase obrigava a apurar toda a atenção, para que fosse perceptível. Sem bater, empurrou a porta verde e penetrou na penúltima sala do corredor.

Miss Moneypenny, secretária particular de M., ergueu os olhos da máquina e sorriu para o recém chegado. Gostavam um do outro, e ela sabia que Bond a admirava. Usava o mesmo modelo de blusa de sua secretária, mas com as listas em azul.

— Uniforme novo, Penny? — perguntou Bond.

A moça riu.

— Loelia e eu compramos na mesma lojinha. Tiramos a sorte, e o azul calhou para mim.

Pela porta entreaberta dia sala contígua chegou até eles uma espécie de tosse. O Chefe de Gabinete, homem mais ou menos da idade de Bond, apareceu com um sorriso sardônico no rosto pálido e fatigado.

— Acabe com isso. M. está esperando. Aceita um almoço depois?

— Ótimo — respondeu Bond.

Voltou-se em direção da porta que ficava ao lado de Miss Moneypenny, passou por ela e, ao entrar, fechou-a atrás de si. Por cima da porta, acendeu-se uma luz verde. Miss Moneypenny ergueu as sobrancelhas para o Chefe de Gabinete. Este sacudiu a cabeça.

— Não creio que se trate de negócio, Penny. Mandou chamá-lo assim, sem mais nem menos.

O funcionário voltou para seu próprio gabinete e mergulhou no trabalho do dia.

Quando Bond abriu a porta, M. estava sentado por detrás de sua imensa escrivaninha, acendendo um cachimbo. Fez um gesto vago com o fósforo, indicando a cadeira do outro lado da escrivaninha, para a qual Bond se dirigiu, sentando-se. M. fitou-o atentamente, por entre a fumaça das primeiras baforadas e, depois, jogou a caixa de fósforos sobre o espaço vazio, de couro vermelho, diante dele.

— Aproveitou bem sua licença? — perguntou M., de repente.

— Sim senhor, muito obrigado.

— Ainda está queimado do sol, pelo que vejo.

M. revelava sua desaprovação pela expressão do rosto. Não que lamentasse ter concedido a Bond umas férias que, em parte, tinham sido gastas em convalescença. A ponta de crítica provinha do puritano e jesuíta que vive em todos os condutores de homens.

— É verdade — respondeu Bond, em tom neutro. — Faz muito calor nas vizinhanças do Equador...

— Muito. Foi, aliás, um repouso merecido — comentou M., apertando os olhos, mas sem intenção de humor. — Espero que essa cor não dure muito. Os homens queimados são sempre suspeitos na Inglaterra. Ou não têm que fazer, ou adquirem o bronzeado com lâmpadas de ultravioleta.

M. liquidou o assunto com um movimento curto e lateral do cachimbo.

Voltou a pôr o cachimbo na boca e chupou-o, distraído. Procurou os fósforos e levou algum tempo para tornar a acendê-lo. Finalmente disse:

— Parece que conseguiremos aquele ouro, no fim de contas. Tem havido alguns comentários a respeito, no Tribunal de Haia, mas Ashenheim é um ótimo advogado.

— Esplêndido — disse Bond.

Seguiu-se um intervalo de silêncio. M. remirava o cachimbo. Pelas janelas, coava-se o ruído longínquo do tráfego de Londres. Um pombo foi pousar num dos peitoris da janela aberta, com um ruflar de asas, e tornou a levantar voo, rapidamente .

Bond tentava decifrar alguma coisa naquele rosto marcado por tantas intempéries, que ele conhecia tão bem e refletia tanto sua lealdade. Mas os olhos cinzentos estavam calmos, e a pequena artéria, que sempre pulsava no alto de sua têmpora direita, não dava qualquer sinal de vida.

De súbito, Bond desconfiou de que M. estava embaraçado. Tinha a impressão de que o chefe não sabia por onde começar a verdadeira conversa. Bond quis ajudiar. Mexeu-se um pouco na cadeira e afastou os olhos de M. Este baixou os olhos para as próprias mãos e, ociosamente, pôs-se a mexer uma unha partida.

Em seguida, levantou os olhos do cachimbo e pigarreou, clareando a garganta.

— Está empenhado em algum caso especial, no momento, James? — perguntou M., num tom aparentemente indiferente e ocasional.

“James”. Aquilo não era normal. Era raro que M. usasse um nome próprio naquela sala.

— Não... só a papelada e as coisas habituais. O senhor quer que eu trate de alguma coisa? — perguntou Bond.

— Para ser franco, quero — respondeu M., franzindo as sobrancelhas para seu interlocutor.

— Mas... na realidade, não é nada que se relacione com o Serviço. Trata-se quase, como direi?... de um assunto pessoal. Pensei que talvez você me pudesse dar uma ajuda...

— Claro que posso — disse logo Bond.

Sentia-se aliviado ao verificar que, pelo que tudo indicava, a barreira já fora transposta. Provavelmente, alguém das relações do patrão estava em apuros, mas não queria pedir um favor à Scotland Yard. Chantagem, talvez. Ou questão de drogas entorpecentes. Bond sentia-se satisfeito por M. tê-lo escolhido. Claro que trataria do caso. M. era um daqueles fanáticos, no que se referia à propriedade e pessoal do Governo. Empregar Bond num caso pessoal, deveria ter-lhe parecido assim como se fosse um roubo de dinheiro do Estado.

— Já calculava que você me respondesse assim — disse M., com seu jeito rude. — Não é coisa que vá lhe tomar muito tempo. Suponho que uma noite será o bastante. — Fez uma pausa: — Diga, você já ouviu falar num tal Sir Hugo Drax?

— Claro que ouvi — respondeu Bond, surpreendido com o nome. — Não se pode abrir um jornal sem ler alguma coisa a respeito dele. O Sunday Express está publicando agora uma história de sua vida. História extraordinária, diga-se de passagem...

— Eu sei. Fale-me apenas dos fatos, tal como você os encara. Gostaria de saber se sua versão combina com a minha — pediu M., incisivo.

Bond olhou pela janela, durante alguns instantes, enquanto punha em ordem seus pensamentos. M. não gostava de conversa fiada. Apreciava imenso uma narrativa completa e detalhada de qualquer caso, sem comentários ou digressões.

Finalmente, Bond tomou a palavra:

— Bem, para começar, o homem é um herói nacional. O público tomou-se de amores por ele. Creio que está na mesma categoria de Stanley Matthews ou Gordon Richards. Estimam-no sinceramente. Consideram-no como um deles, mas em versão gloriosa. Espécie de super-homem. Pela aparência pessoal, não é lá grande coisa, com todas aquelas cicatrizes da guerra. É um tanto falastão e exibicionista. Mas o pessoal gosta até disso. Faz dele um tipo no gênero Lonsdale, porém de maior popularidade entre as classes populares. Gostam que seus amigos o chamem de Hugger Drax, que, como trocadilho, não está mal. Ganhou por isso a fama de gostosão, e penso que não deixa de fazer sucesso com as mulheres. Depois, quando se pensa o que ele está fazendo pelo País, invertendo somas consideráveis de seu próprio bolso e muito mais do que qualquer governo parece ser capaz de fazer, é realmente extraordinário que não insistam em fazê-lo primeiro-ministro.

Bond observou os olhos frios de M. gelarem ainda mais, contudo, estava resolvido a não permitir que sua admiração pelos feitos de Drax levassem uma ducha de água fria, por parte do patrão.

— No fim de contas — prosseguiu Bond — tudo indica que ele conseguiu livrar este País de guerras, durante bastantes anos, no futuro. E não deve ter muito mais de quarenta anos de idade. Sinto por ele o mesmo que a grande maioria das pessoas. Além do mais, existe ainda todo esse mistério a respeito de sua verdadeira identidade. Não me surpreende o fato de o povo ter uma certa pena dele, apesar de ser multimilionário. É um tipo solitário e misantrópico, ao que parece, apesar da vida alegre que leva.

M. esboçou um de seus sorrisos glaciais.

— Tudo o que você me disse dá a impressão de fazer parte do roteiro para o folhetim do Express. Ele é, sem dúvida, um homem extraordinário. Mas qual é sua versão dos fatos? Não creio que saiba muito mais do que você. Provavelmente até sei menos. Não leio os jornais muito detalhadamente, e não existe dossiê a respeito dele, a não ser no Ministério da Guerra. Assim mesmo, não são muito esclarecedores. E agora me diga, James. Qual é o ponto principal da estória do Express?

— Lamento muito — respondeu Bond. — Mas os fatos não são muito concretos. Vejamos.

Olhou novamente para a janela e procurou concentrar-se:

— Durante a ofensiva alemã das Ardenas, durante o inverno de 1944, o Exército nazista usou em grande escala guerrilheiros e sabotadores. Deu-lhes o nome um tanto fantasmagórico de “lobisomens”! Causaram danos de toda a espécie. Excelentes em camuflagem e truques de toda a espécie. Alguns continuaram agindo mesmo depois de os aliados rechaçarem o ímpeto alemão nas Ardenas e termos passado à ofensiva, com a invasão do País. Organizavam-se com enorme rapidez, quando as coisas ficavam mesmo pretas.

Bond continuou:

— Um dos melhores golpes deles foi desmantelar a ligação da retaguarda entre os QG britânico e norte-americano. Reforços para as unidades de manutenção, creio que eram. Foi um negócio complicado, que envolveu toda a espécie de pessoal aliado — sinaleiros americanos, motoristas de ambulâncias britânicas — enfim, um grupo bastante sortido. Os “lobisomens” deram um jeito para minar a messe, e quando esta foi pelos ares, carregou também uma boa parte do hospital de campanha. Mais de cem mortos e feridos. Separar e reconhecer todos os corpos foi um diabo de negócio. Um dos corpos ingleses era o de Drax. Metade do rosto desaparecera. Foi atacado por uma amnésia total, que durou um ano, e no fim ninguém sabia quem ele era, nem ele próprio. Houve cerca de mais vinte corpos que não foram identificados, e que nem nós, nem os americanos, pudemos reconhecer. Ou por excessivas mutilações, ou porque se tratava de pessoas em trânsito, ou porque estavam ali sem autorização. Era uma unidade desse tipo. Dois oficiais comandantes, claro. Trabalho de equipe bastante confuso. Uns registros desleixados. De modo que, depois de um ano por diversos hospitais, puseram Drax no registro de “Homens Desaparecidos” do Ministério da Guerra. Quando chegaram os papéis de um tal Hugo Drax, órfão que trabalhara nas docas de Liverpool, antes da guerra, ele mostrou sinais de interesse. A fotografia e descrição física pareciam adaptar-se, mais ou menos, ao que nosso homem deveria ter sido antes do desastre. Daí por diante, começou a recuperação dele. Começou falando um pouco a respeito de coisas simples de que se recordava, e os médicos sentiram-se muito orgulhosos dele. O Ministério da Guerra encontrou um homem que servira na mesma unidade de Pioneiros onde estivera Hugo Drax. Quando o levaram ao hospital, afirmou ter a certeza de que esse homem era seu camarada Hugo Drax. Isto resolveu o caso. Os anúncios publicados não fizeram aparecer mais ninguém que se chamasse Hugo Drax e, finalmente, ele foi reformado no final de 1945 com esse nome e pensão integral, por incapacidade física.

— Mas ele continua dizendo que realmente não sabe quem é — interrompeu M. — É sócio do Blades. Joguei cartas muitas vezes com ele, e conversamos depois de jantar. Diz que, por vezes, tem uma forte sensação de “ter ali estado antes”. Vai frequentemente a Liverpool, tentar desenterrar o passado. De qualquer forma, que mais?

Os olhos de Bond revelavam sua concentração, no esforço de recordar a sequência do caso.

— Ao que parece, Drax esteve desaparecido durante três anos, depois da guerra. Então, a City começou ouvindo falar dele, através de notícias que provinham do mundo inteiro. O mercado de metais foi o primeiro a inteirar-se a respeito dele. Dizia-se que descobrira uma mina muito valiosa de columbite. Todos queriam apoderar-se dela. A columbite é um metal que possui um ponto de fusão extremamente alto. Os motores de propulsão a jato não poderiam ser construídos sem ele. Existe muito pouca quantidade desse metal, no mundo inteiro. Apenas alguns milhares de toneladas são produzidos cada ano, a maior parte como produto derivado das minas de estanho da Nigéria. Drax deve ter previsto o incremento da Era do Jato, e tocou no ponto nevrálgico da escassez de matéria-prima para determinadas partes vitais dos novos engenhos. Deve ter conseguido, não sabemos como, a soma de 10.000 libras, visto o Express afirmar que em 1946 Drax comprou três toneladas de columbite, à razão de 3.000 libras cada. Recebeu um bônus de 5.000 libras de uma firma norte-americana de construção de aviões, pois estavam com uma pressa danada em receber o lote, e Drax fez a entrega antecipada. Quem quisesse columbite, só tinha de procurar a organização “Metais Drax”. Todo esse tempo continuou negociando pela certa com qualquer coisa que lhe desse um lucro interessante — Shellac, sisal, pimenta-do-reino, tudo servia. Naturalmente, jogava com a alta de um produto na Bolsa, mas tinha “peito” para enfrentar as situações, mesmo quando estas não lhe sorriam. Os lucros eram novamente investidos, criando outras fontes de rendimento. Por exemplo, foi um dos primeiros homens a comprar poços usados de minas, na África do Sul. Agora, estão sendo reabertos e explorados de novo, na mineração de urânio.

Os olhos calmos de M. estavam fixos em Bond, enquanto puxava fundas baforadas do cachimbo e escutava o agente. Este continuou:

— Naturalmente, tudo isso causou espanto na City, que se perguntava que demônio estaria acontecendo. Os corretores de matérias-primas topavam constantemente o nome de Drax. Tudo o que desejassem, Drax tinha e pedia um preço muito mais elevado do que eles estavam preparados para aceitar. Nosso homem operava de Tânger, porto livre, nada de impostos ou restrições monetárias. Por volta de 1950 estava multimilionário. Foi então que regressou à Inglaterra e começou a gastar como um nababo. Jogava fora o dinheiro, praticamente. Tinha as melhores casas, os melhores carros, as mais belas mulheres. Camarotes na Ópera e para as corridas em Goodwood. Manadas de gado Jersey premiadas em concursos de raças. Cravos premiados em exposições florais. Dois iates: dinheiro para as tripulações da Walter Cup. 100.000 libras doadas ao Fundo de Sinistrados de Inundações. Prêmios de potros de dois anos. Baile de Coroação para Enfermeiras no Royal Albert Hall... não há uma semana em que seu nome não surja nas manchetes dos jornais com alguma nota de sensação. E ficando cada vez mais rico. O povo adora isto. É como nas Mil e Uma Noites. Ilumina-lhes as vidas. Se um humilde soldado de Liverpool, ferido e mutilado, conseguiu chegar a tal ponto em cinco anos, por que não aconteceria o mesmo com eles, ou com seus filhos? Dava a impressão de ser quase tão fácil quanto ganhar uma fantástica soma nas apostas de futebol.

— E foi então que apareceu a surpreendente carta para a Rainha: “Vossa Majestade, permití-me a temeridade. ..” e a genialidade típica da manchete no Express do dia seguinte: DRAX TEMERIDADE, e a história de como oferecera à Grã-Bretanha todos os estoques de columbite, pondo-os à disposição do Governo para que fosse construído um foguete superatômico, com um raio de ação que cobriria todas as capitais europeias — resposta imediata a quem tentasse o bombardeamento nuclear de Londres. Dez milhões de libras seriam dadas de seu próprio bolso, já possuía um projeto da coisa, e estava preparado para encontrar os quadros técnicos necessários para a construção do engenho. Seguiram-se meses de expectativa, e todo o mundo estava impaciente. Surgiram perguntas na Câmara dos Comuns. A oposição quase forçou um voto de confiança. E veio então a notícia de que o Primeiro-Ministro anunciara a aprovação do projeto pelos peritos balísticos do Ministério de Abastecimento, que Sua Majestade aceitara graciosamente a oferta, em nome do povo da Grã-Bretanha, e conferira ao doador o grau de Cavaleiro do Reino Unido.

Bond fez uma pausa, quase empolgado pela história desse homem extraordinário.

M. comentou:

— Sim.. . Paz em nossa Era. Na Era presente. Lembro-me das manchetes há um ano. E agora o foguete está quase pronto. “O Explorador da Lua”. Ao que me consta, deve fazer realmente o que estava projetado. É muito estranho.

M. tornou a guardar silêncio, olhando para a janela. Voltando bruscamente a cabeça, encarou Bond do outro lado da escrivaninha, e disse, devagar, martelando as palavras:

— É, o negócio é esse, pouco mais ou menos. Não sei multo mais do que você. Uma história maravilhosa. . . um homem extraordinário.

M. parecia refletir. Mordia a ponta do cachimbo entre os dentes:

— Só tem uma coisa...

— De que se trata, chefe? — indagou Bond.

M. parecia tomar uma decisão. Dirigiu um olhar amistoso ao agente, ligeiramente curvado para a escrivaninha.

— Sir Hugo Drax faz trapaça jogando cartas.

CAPÍTULO 3


ESTRIPADORES & CIA.

 

— Faz batota no jogo?

— Isso mesmo — respondeu M., de sobrancelhas franzidas. — Não lhe parece estranho que um multimilionário trapaceie no jogo de cartas?

Bond sorriu, com ar de desculpa.

— Nem tanto assim. Conheci muitas pessoas ricas que roubavam a si mesmas nos jogos de paciência. Mas só que isso não se enquadra na ideia que faço de Drax. É um pouco... digamos, decepcionante.

— Aí é que está o negócio — disse M. — Por que faz ele uma coisa dessas? E não se esqueça de que trapacear com cartas ainda pode liquidar um homem. Na chamada Alta Sociedade, quase constitui o único crime que pode aniquilar alguém, seja quem fôr. Drax faz a coisa tão bem feita, que até hoje ainda ninguém o pegou. Aliás, duvido de que alguém suspeite, a não ser Basildon, o atual presidente do Blades. Veio falar comigo. Tem uma vaga ideia de que tenho alguma coisa que ver com o Serviço Secreto, além de eu já lhe ter dado a mão em uma ou duas complicações, em tempos idos. Pediu meu conselho. Disse que, evidentemente, não desejava confusões no clube, mas que, acima de tudo, quer evitar que Drax se veja metido numa situação falsa. Admira-o tanto quanto qualquer de nós, e está apavorado com a hipótese de um incidente. Não se pode evitar que escândalos desse gênero transpirem além do clube. Muitos membros do Parlamento são sócios, e o caso seria logo comentado nos bastidores. Depois, a imprensa marrom tomaria conta do caso. Drax seria obrigado a sair do Blades, e surgiria logo uma ação judicial, apresentada em sua defesa por algum amigo. Repetição completa do Tranby Croft. Pelo menos, é assim que as coisas se apresentam no espírito de Basildon, e confesso que compartilho de sua maneira de pensar. Enfim, prometi ajudá-lo e — lançando um olhar a Bond, M. finalizou — é nesse ponto que você entra em cena. Você é o melhor jogador de cartas entre nós, ou, pelo menos, tem obrigação de ser, depois dos casos que resolveu nos cassinos. M. sorriu ironicamente:

— Lembro-me do dinheiro que gastamos para lhe fazer seguir um curso de aperfeiçoamento em jogos de baralho, antes de você ir na pista daqueles romenos, em Monte Carlo, antes da guerra.

Bond sorriu com certa amargura.

— Steffi Esposito — disse ele, entre dentes. — Era o nome do camarada. Americano. Me fez trabalhar dez horas por dia, durante uma semana, para que eu aprendesse uma coisa chamada Riffle Stack, e como dar as cartas de baixo, as segundas e as do meio. Escrevi um longo relatório a esse respeito, nessa ocasião. Deve estar enterrado nos Arquivos. O cara conhecia todos os truques do jogo. Como encerar os ases, para que o baralho abrisse neles; trabalhinho nas bordas e fios das cartas altas, feito nas costas com uma lâmina de barbear; como fazer recortes; reserva sob pressão, debaixo do braço — um truque mecânico dentro da manga, que nos fornece cartas. Estripadores — aparar um baralho inteiro, em menos de um milímetro de cada lado, mas deixando uma imperceptível barriguinha nas cartas que interessam — os ases, por exemplo. Refletores — minúsculo espelho embutido num anel ou adaptado ao fundo do cachimbo. Foi, na realidade, o que aprendi sobre Leituras Luminosas, que me ajudou no caso de Monte Carlo. Um crupiê vinha usando uma tinta invisível que o pessoal da turma lia com umas lentes especiais. Mas Steffi era um camarada formidável. Foi a Scotland Yard quem o descobriu para nós. Era capaz de embaralhar cartas uma única vez e depois partir sempre nos ases. Verdadeira prestidigitação.

M. comentou: — Isso me parece demasiado profissional para o nosso homem. Esse tipo de trabalho requer muitas horas diárias de prática ou um cúmplice, e eu não acredito que ele o encontre no Blades. Não, não há nada de sensacional na maneira como ele faz batota, e até pode ser que tenha, afinal, uma sorte fantástica. É estranho! Ele não é assim um jogador tão bom, aliás só joga bridge, porém apresenta constantemente lances que são verdadeiramente espantosos. . . inesperados ou contrários às convenções. Mas resultam. Ganha sempre, e no Blades joga-se forte. Desde que entrou para o Clube, há um ano, que não perde uma só partida semanal. Contamos com dois ou três dos melhores jogadores do mundo, lá no clube, e nenhum deles teve recorde semelhante, num período de doze meses. Está começando a ser comentado, em ar de gracejo, e penso que Basildon tem todo o direito de tomar uma atitude a tal respeito. Qual o sistema que você acha ser empregado por Drax?

Bond estava louco para ir almoçar. O Chefe de Gabinete já devia ter desistido de esperar por ele há mais de meia hora. Poderia conversar com M. sobre trapaças, durante horas a fio. M., que nunca parecia interessado em comer ou dormir, ouviria tudo e de tudo se lembraria muito mais tarde. Mas Bond estava com fome.

— Levando em conta o fato de ele não ser um profissional e não preparar as cartas, de jeito nenhum, só existem duas respostas. Ou ele vê as cartas, ou então, usa um sistema de sinais com o parceiro. Costuma jogar sempre com o mesmo parceiro?

— Sempre tiramos à sorte a escolha de parceiros, depois de cada rubber. A não ser que haja desafio. E nas noites de convidados, segundas e terças, cada um fica com seu convidado. Drax quase sempre traz um homem chamado Meyer, seu corretor de metais. Um camarada simpático. É judeu e ótimo jogador.

— Se eu assistisse a um jogo, talvez pudesse descobrir — disse Bond.

— Era o que eu ia propor — cortou M. — Que tal irmos até lá esta noite? Pelo menos, você terá um bom jantar. Esperá-lo-ei por volta das seis. Ganharei um pouco de seu dinheiro no piquet e iremos observar um pouco de bridge, depois. A seguir ao jantar, jogaremos um ou dois rubbers com Drax e o amigo dele. Nunca falham às segundas-feiras. Está bem assim? Não estou desviando você de seu trabalho?

Bond respondeu sorrindo:

— De maneira alguma, chefe. E me agradaria imenso ir. Se Drax estiver trapaceando, eu lhe farei ver que descobri o truque, e isso será suficiente para colocá-lo de sobreaviso. Não gostaria de o ver metido em complicações. É só isto, chefe?

— Sim, James. Obrigado por sua colaboração. Drax deve ser um doido varrido. Evidentemente, essa é mais uma de suas manias. Mas não é o homem que me preocupa. Eu não ficaria nada satisfeito se acontecesse algo de ruim ao tal foguete. E Drax é, mais ou menos, o próprio “Explorador da Lua”. Bom, às seis horas, está bem? Não se preocupe com a roupa. Alguns vestem-se para jantar, e outros não. Hoje não iremos de black tie. E agora, é melhor que trate de limar as pontas dos dedos, ou lá o que vocês fazem para jogar.

Bond retribuiu o sorriso de M. e levantou-se. A noite prometia. Ao encaminhar-se para a porta, concluiu que, afinal, tivera uma entrevista com M. que não lhe trouxera grandes preocupações.

Quando saiu do gabinete, a secretária de M. ainda estava em sua escrivaninha. Via-se um prato de sanduíches e um copo de leite, ao lado da máquina de escrever. Fitou intensamente Bond, mas nada havia para ler na expressão do agente.

— Suponho que ele terá desistido — disse Bond.

— Há quase uma hora — respondeu Miss Moneypenny, em tom de censura. — Já são duas e meia. Ele deve estar chegando.

— Vou descer à cantina antes que feche. Diga-lhe que pagarei eu o almoço, na próxima vez.

Sorriu para a moça e meteu pelo corredor, até o elevador.

Já havia pouca gente na cantina dos funcionários. Bond sentou-se sozinho, devorou um peixe grelhado, com uma boa salada mista, regada ao molho tártaro e mostarda. Bebeu meia garrafa de Bordeaux e finalizou com duas xícaras de café, torradas e queijo Brie. O espírito, parcialmente ocupado com o problema de M., Bond percorreu rapidamente o resto da papelada da OTAN, despediu-se da secretária, depois de lhe dizer onde estaria nessa noite e, às quatro e meia, pegava o carro na garage do pessoal, nos fundos do edifício.

— O ventilador está chiando um pouco — disse o ex-mecânico da RAF, que considerava o Bentley de Bond como sua propriedade. — Traga-o aqui amanhã de manhã, se não estiver precisando dele na hora do almoço. Quero dar-lhe uma olhadela.

— Obrigado — respondeu Bond — isso será ótimo.

Retirou o carro e meteu na direção da Baker Street, com o tubo de escape produzindo um barulho infernal ao arrancar.

Chegou a casa em quinze minutos. Deixou o auto sob as árvores, na pequena praça, e entrou no andar térreo da casa estilo Regência, remodelada. Foi direto à sala de estar, cujas paredes estavam revestidas de estantes e, depois de uma rápida busca, puxou o Manual Scarne Sobre Jogos de Cartas, deixando-o cair sobre a ornamentada escrivaninha Império, colocada junto à janela.

Dirigiu-se depois ao pequeno quarto de dormir, forrado com papel de parede branco e dourado, decorado com cortinas vermelho-escuro, e despiu-se, jogando as roupas, mais ou menos metòdicamente, sobre a coberta azul-marinho da cama de casal. Depois, entrou no banheiro e tomou um chuveiro rápido. Antes de sair, examinou o rosto no espelho e decidiu que não tinha a mínima intenção de sacrificar um preconceito de toda a vida, barbeando-se duas vezes num dia.

No espelho, os olhos azul-cinza devolveram-lhe o relance com o fulgor adicional que deles irradiava quando seu espírito estava absorvido num problema que o interessava. O rosto seco, duro de expressão, revelava um quê de faminta necessidade de ação e de encontrar com quem medir forças. Passou rapidamente os dedos pelo queixo e, com um impaciente golpe de escova, empurrou para trás a vírgula de cabelos negros que teimava em tombar sobre a testa, acima da sobrancelha direita. Passou-lhe pela ideia que, à medida que o bronzeado do sol ia diminuindo, a cicatriz na parte inferior da face direita, que a princípio parecia tão branca, já chamava agora muito menos atenção. Lançou mecanicamente uma olhadela ao corpo nu, observando que a zona branca, quase indecente, causada pelo calção de banho, estava também menos definida. Sorriu a uma recordação qualquer e entrou no quarto.

Dez minutos depois, envergando uma camisa de seda branca, calças de sarja azul-marinho, meias azuis-escuras e mocassins pretos bem engraxados, sentava-se diante da escrivaninha, tendo um baralho em uma das mãos e o maravilhoso manual de trapaças de Scarne aberto diante dele.

Durante meia hora, examinou rapidamente o capítulo dedicado aos métodos, praticando a “mão mecânica” (três dedos curvados sobre o lado mais comprido das cartas e o indicador sobre a borda mais curta e superior) e o truque de empalmar e anular um corte. Suas mãos trabalhavam automaticamente, nessas manobras básicas, enquanto os olhos continuavam lendo. Ficou satisfeito ao verificar que seus dedos mantinham a agilidade de sempre e não produziam o mínimo ruído nas cartas, mesmo ao pôr em prática a dificílima anulação com uma só mão.

Às cinco e meia, atirou as cartas sobre a mesa e fechou o livro. Entrou no quarto, encheu a grande cigarreira negra e guardou-a no bolso de trás das calças. Escolheu uma gravata preta de seda tricotada, vestiu o casaco, e verificou se o talão de cheques estava na carteira, junto com as notas.

Deixou-se ficar de pé, por instantes, pensando. Depois, escolheu dois lenços de seda branca e, amassando-os cuidadosamente, colocou um em cada bolso latefal do casaco.

Acendeu um cigarro, voltou à sala de estar e sentou-se à escrivaninha, relaxando os nervos durante dez minutos. Olhou pela janela a praceta vazia e pensou na noite que ia começar no Blades, provavelmente o mais famoso clube particular de jogo carteado do mundo.

A data exata da fundação desse clube era incerta. A segunda metade do século XVIII viu abrirem-se muitas salas de jogo e cafés, mas os estabelecimentos e seus proprietários mudavam, constantemente, ao sabor da moda e da fortuna. O White fora fundado em 1755, o Almack em 1764, o Brooks em 1774, e foi nesse mesmo ano que o Savoir Vivre, antecessor do Blades, abriu suas portas em Park Street, uma rua tranquila e sem importância, um pouco adiante de St. James.

O Savoir Vivre era demasiado fechado para poder sobreviver, e decretou sua própria morte um ano depois. Mais tarde, em 1776, Horace Walpole escreveu: “Foi aberto um novo clube, vizinho de St. James Street, que timbra em superar todos os seus predecessores.” Em 1778, o Blades vem mencionado, pela primeira vez, numa carta de Giggon, o historiador, que o junta ao de seu fundador, um alemão chamado Longchamp, nessa época dirigente do Jockey Club, em Newmarket.

Desde o início, o Blades pareceu fadado ao sucesso e, em 1782, encontramos o Duque de Wirttenberg escrevendo para seu irmão mais moço, com grande entusiasmo: “Este é, realmente, o ás dos clubes! Funcionam quatro ou cinco mesas de “quinze”, simultaneamente com as de whist e piquet e ainda uma grande mesa de hazard. Pude jogar em duas delas ao mesmo tempo. Dois contadores, cada um com o total de quatro mil guinéus em fichas, mal chegavam para a circulação da noite.”

A menção do jogo de hazard talvez forneça uma indicação para o segredo da prosperidade do famoso clube. A licença para jogar esse perigoso mas popular jogo de cartas deve ter sido concedida pelo Comitê, em contravenção às suas próprias regras, que estabeleciam o seguinte: “Nenhum jogo será admitido em Casa de Sociedade, salvo o xadrez, o whist, o pichei, o cribbage, quadrille, ombre e tredville.”

O fato é que o clube continuou progredindo e continua sendo ainda hoje o centro de alguns dos mais refinados jogos do mundo. Já não é tão aristocrático como foi em tempos idos; a distribuição das fortunas por outras mãos alterou esse aspecto, mas ainda é o clube mais fechado de Londres. O número de sócios está limitado a duzentos, e cada candidato deve ter duas qualificações fundamentais para ser aceito: comportar-se como um cavalheiro e poder “mostrar” 100.000 libras em dinheiro ou em objetos de valor, como garantia.

As coisas boas do Blades, além do jogo, são de tal modo desejáveis, que o Comitê foi obrigado a estabelecer uma regra, pela qual se requer de cada sócio que ganhe ou perca 500 libras por ano, dentro do clube, ou pague uma multa anual de 250. A comida e os vinhos são os melhores de Londres. As contas não são apresentadas, sendo o custo de todas as refeições deduzidas no final de cada semana, proporcionalmente aos lucros de cada ganhador. Tendo em vista que cerca de 5.000 libras mudam de dono semanalmente, nas mesas, a contribuição não é muito penosa, e os perdedores têm a satisfação de salvar alguma coisa, no meio do descalabro; e o costume explica a equidade da exigência para os jogadores menos assíduos.

Os empregados de um clube contribuem poderosamente para fazê-lo progredir ou decair, e os do Blades eram insuperáveis. A meia dúzia de garçonetes de serviço no restaurante são de um padrão de beleza tão elevado, que alguns dos sócios mais jovens levaram-nas contrabandeadas para certos bailes de debutantes da mais alta projeção social; e, se a noite, uma ou outra dessas garotas fôr persuadida a desgarrar-se para um dos doze quartos de sócios, nos fundos do clube, isso é assunto considerado da conta exclusiva dos referidos cavalheiros.

Existem mais umas duas ou três sutilezas que contribuem para o luxo e requinte do local. Somente notas novas e virgens de qualquer uso, bem como moedas de prata que parecem ter acabado de sair da cunhagem, são utilizadas nos pagamentos efetuados dentro do clube. Se um sócio decidir ficar para passar a noite, suas notas e trocos miúdos são levados pelo valet-de-chambre, que os substitui por dinheiro novinho em folha na manhã seguinte, com o chá e o Times matinais. Nenhum jornal entra na sala de leitura sem ter sido primeiro passado a ferro. Flóris é quem fornece os sabonetes e loções para os toaletes e quartos de dormir. Há uma linha direta para Ladbroke, no balcão da portaria. O clube detém os melhores camarotes e localidades nos mais famosos prados, como Ascott, Newmarket e outros locais de corridas de cavalos; no Lords, para o cricket; Henley, para as regatas; Wimbledon, para o tênis. Todos os sócios que viajam pelo estrangeiro têm, automaticamente, o direito de frequentar o melhor clube em qualquer grande capital.

Em resumo, ser sócio do Blades, em troca das 100 libras de joia e da quota de 50 libras anuais, significa desfrutar de um luxo da era vitoriana, aliado à oportunidade de vencer ou perder, dentro do maior conforto, qualquer coisa até 20.000 libras por ano.

Cogitando de tudo isso, Bond chegou à conclusão de que ia apreciar bastante a noitada que o aguardava. Jogara no Blades apenas umas dez ou doze vezes, em toda a sua vida e, na última delas, ficara limpo, depois de um pôquer. Mas a perspectiva de uma partida cara de bridge e o ingresso em seu bolso de algumas centenas de libras, deixavam seus músculos antecipadamente tensos de excitação. Depois, claro, havia ainda o caso de Sir Hugo Drax, que poderia contribuir com um toque dramático para completar aquela noite.

Bond nem sequer se perturbou com um curioso prenuncio de mau agouro que se lhe deparou, enquanto rodava pela King’s Road, a caminho de Sloane Square, com metade de seu espírito atento ao trânsito e a outra conjeturando sobre o que lhe estaria reservado naquela noite.

Faltavam poucos minutos para as seis, e a atmosfera estava carregada, ameaçando trovoada. O céu prometia chuva e tornara-se repentinamente escuro. Do lado oposto da praça, sobre os telhados, um grande anúncio luminoso apagava e acendia. O mecanismo catódico pusera em funcionamento os enormes tubos de néon vermelho, mantendo-os acesos até às seis horas da manhã, quando voltariam a ser automaticamente desligados pelo corte de circuito, graças à célula fotelétrica. Bond chegou até à esquina e olhou para o alto, um tanto surpreendido pelo fulgor vermelho que se desdobrava sobre os edifícios. E não pôde deixar de sorrir para si mesmo.

Então era isso. Algumas linhas do anúncio tinham ficado semiocultas pelos edifícios fronteiros. Tratava-se de um dos habituais reclames luminosos dos amortecedores Rodney.

“RODNEY, O AMORTECEDOR QUE VOCÊ ESPERAVA.”

Mas, quando Bond lera o anúncio pela primeira vez, meio oculto, as grandes letras rubras lhe enviavam uma mensagem bem diversa:

A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA... A MORTE... O... ESPERA

 

 

                              CONTINUA