CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.
CONTINUA
CAPÍTULO 4
O REFLETOR
Bond deixou o Bentley diante de Brooks e caminhou até à esquina da Park Street. A fachada de Blades, em estilo Adams, um pouco retraída em relação ao alinhamento dos prédios vizinhos, era elegante e harmoniosa, vista assim à luz daquele crepúsculo agonizante. As cortinas vermelho-escuro haviam sido corridas nas janelas em arco do andar térreo, situadas de cada lado do portão de entrada. Um empregado uniformizado apareceu por instantes, na altura em que puxava também os reposteiros das três janelas do andar de cima. No centro da terceira, Bond pôde enxergar as cabeças e ombros de dois homens curvados sobre um tabuleiro de jogo, possivelmente gamão, conjeturou ele. Depois, teve uma rápida visão do brilho fulgurante de um dos três enormes lustres que iluminavam a sala de jogo.
Bond transpôs a porta giratória e dirigiu-se ao balcão da portaria, onde reinava Brevett, guardião do Blades e conselheiro e amigo familiar da metade dos sócios.
— Boa-noite, Brevett. O Almirante está por aí?
— Boa-noite, sir — respondeu Brevett, que conhecia Bond como um frequentador ocasional, convidado por membros do clube.
— O Almirante está esperando o senhor na sala de jogo de cartas. Moço, acompanhe o Comandante Bond até onde está o Almirante. Vá!
Enquanto Bond seguia o boy uniformizado, cruzando o vasto hall de mármore, preto e branco, subindo depois pela larga escadaria com belo corrimão de mogno, ia recordando a história que acontecera em certa eleição, quando tinham sido encontradas nove bolas pretas na urna, havendo apenas oito membros do Comitê presentes. Brevett, que fora passando a urna de um para outro, teria acabado por confessar ao presidente que seu receio fora tanto de que o candidato ganhasse a eleição que colocara ele própria também uma bola preta. Ninguém pusera objeções. O Comitê teria preferido perder seu presidente do que o porteiro, cuja família ocupava aquele posto no Blades há cem anos.
O boy abriu uma das altas portas no topo da escada, segurando-a para que Bond passasse. A comprida sala não estava cheia, e Bond viu M. sentado, sozinho, jogando paciência no recanto formado pela ala esquerda das três janelas. Despediu o boy e caminhou pelo pesado e espesso tapete, observando o rico aroma do ambiente, produzido pelos charutos caros, o sussurro das vozes que provinham das três mesas de bridge e ainda o ruído característico de dados, provenientes de um tabuleiro que ele não divisava.
— Olá, sempre veio, então? — foi dizendo M., quando Bond se aproximou dele. Indicou com um gesto uma cadeira à sua frente, do outro lado de uma mesa de jogo. — Deixe-me acabar isto primeiro. Quer um drinque?
— Não, obrigado — respondeu Bond.
Sentou-se, acendeu um cigarro e observou, divertido, como M. se concentrava em sua paciência.
“Almirante Sir M.. . M. . .: qualquer coisa no Ministério da Defesa.” M. assemelhava-se a qualquer sócio de qualquer dos muitos clubes de St. James Street. Terno cinzento-escuro, colarinho branco e duro, a gravata borboleta predileta, azul-marinho com bolinhas brancas, atada de maneira bastante displicente, o cordãozinho fino e preto dos óculos sem aro, que M. só parecia usar para ler cardápios, o rosto vigilante de marinheiro, olhos claros e observadores. Era difícil acreditar que esse mesmo homem estivera, há menos de uma hora, jogando com peças vivas de xadrez contra os inimigos da Inglaterra; em cujas mãos poderia haver, nessa mesma noite, um drama sangrento, ou um roubo bem sucedido, ou o conhecimento de um repugnante caso de chantagem.
E que poderia pensar dele próprio um observador eventual? “Comandante James Bond, G.M.G., R.N.S.R.”, também fazendo “qualquer coisa no Ministério da Defesa”. Rapaz bastante sério, de trinta e poucos anos, sim, aquele, sentado ali, defronte do Almirante. Havia qualquer coisa de frio e perigoso naquele rosto. Parece em ótima forma. Talvez tivesse estado em missão na Malásia, adido ao QG de Templer. Ou em Nairobi. Negócio de Mau-Mau. Freguês de aspecto durão. Não tem o tipo de camarada que se costume ver pelo Blades.
Bond sabia ter um que de estrangeiro e pouco de inglês em toda sua pessoa. Reconhecia ser um homem difícil de esconder ou passar despercebido. Principalmente na Inglaterra. Deu de ombros. No estrangeiro é que tinha importância. Ele jamais teria de trabalhar em qualquer caso na Inglaterra. Estava fora da jurisdição do Serviço. De qualquer modo, não tinha por que se ocultar aquela noite. Aquilo não passava de um divertimento.
M. fungou e jogou as cartas sobre a mesa. Bond, automaticamente, recolheu-as e baralhou à maneira de Scarne. Juntou tudo em duas partes iguais e misturou com um movimento rápido, de cima para baixo, sem retirar as cartas da mesa. Depois, endireitou o baralho e empurrou-o para um lado.
M. fez sinal a um garçom que passava.
— Cartas para piquet, por favor, Tanner.
O garçom se afastou, regressando pouco depois com dois baralhos novinhos em folha. Retirou-os do envólucro e colocou-os, com dois blocos de marcação, sobre o pano verde da mesa. Depois ficou esperando.
— Traga-me um uísque com soda — pediu M. — Você não quer nada mesmo?
Bond olhou o relógio. Eram seis e meia.
— Pode trazer-me um Martini seco? Com vodca e uma boa casca de limão.
— Que bela droga — comentou M., lacônico, quando o garçom se afastou. — E agora prepare-se para perder uma ou duas libras. Depois iremos dar uma olhada no bridge. Nosso amigo ainda não chegou.
Durante meia hora, estiveram absorvidos no jogo, em que um perito pode ganhar quase sempre, mesmo que as cartas sejam ligeiramente adversas. No final da partida, Bond riu e contou três notas de uma libra.
— Um dia destes vou levar o negócio a sério e aprender a jogar piquet direitinho mesmo — declarou Bond, entregando as notas a M. — Não consegui vencê-lo nem uma vez, até agora. ..
— É tudo uma questão de memória e de saber que vantagens se podem tirar — respondeu M., satisfeito. Terminou de tomar seu uísque com soda.
— Vamos ver agora o que está acontecendo na roda do bridge. Nosso homem joga na mesa de Basildon. Chegou há cerca de dez minutos. Se você notar alguma coisa, basta me fazer um aceno, e nós iremos lá para baixo comentar o caso.
Levantou-se, e Bond seguiu-o.
A sala começava a encher-se, e meia dúzia de mesas de bridge já funcionavam. Na mesa redonda do pôquer, sob o lustre central, três jogadores contavam fichas, formando cinco pilhas, enquanto esperavam mais dois parceiros que deviam chegar ainda. A mesa do bacará ainda estava coberta e, provavelmente, assim permaneceria até depois do jantar, quando seria utilizada para o chémin-de-fer.
Bond acompanhava M., deleitando-se com o espetáculo que se desenrolava por todo o salão: os oásis verdes, o tilintar de copos, quando os garçons se moviam entre as mesas, o zunzum das conversas pontilhadas de súbitas exclamações e calorosas risadas, a névoa de fumaça azulada, subindo por dentro dos abajures vermelho-escuro, que pendiam sobre o centro de cada mesa. Suas pulsações aceleraram com aquele odor, e as narinas se dilataram ligeiramente, quando os dois homens foram até ao fundo da sala, reunindo-se aos demais.
M., com Bond a seu lado, derivou ao acaso de mesa em mesa, trocando cumprimentos com os jogadores, até chegarem à última, colocada sob um esplêndido quadro de Lawrence, “Belo Brummel”, acima da vasta lareira estilo Adams.
— Dobro, que diabo! — exclamou uma voz alta e alegre, a do jogador situado de costas para Bond. Este observou a cabeça, de cabelos curtos e avermelhados, única coisa que via da pessoa que falara, desviando depois os olhos para a esquerda, onde se recortava o perfil escolástico de Lorde Basildon. O presidente do Blades reclinara-se para trás, olhos pousados nas cartas que segurava, conservando-as afastadas do corpo, como se fossem um objeto raro.
— Minha mão está tão boa que sou forçado a redobrar, meu caro Drax — anunciou ele. Olhou para o lado oposto da mesa, dirigindo-se a seu parceiro. — Tommy, ponha em minha conta, se isto não der certo. Serei o culpado. . .
— Bobagem — retorquiu o parceiro de Basildon. — Meyer? O melhor é fazer sair Drax.
— Hummm. . . ele está amedrontado demais — disse o homem de meia-idade que jogava de parceiro com Drax. — Não ofereço. — Apanhou o charuto do cinzeiro e colocou-o cuidadosamente na boca.
— Aqui também não — disse o parceiro de Basildon.
— E nada aqui — completou a voz de Drax.
— Então abro. Cinco paus. Redobrado — disse Basildon. — Você começa, Meyer.
Bond olhou por cima do ombro de Drax. Este tinha o ás de espadas e o de copas. Fez os dois imediatamente e jogou outra carta de copas, que deu vaza para Basildon, pegando com o rei de copas.
— Bom, são quatro trunfos contra mim, incluindo a dama — disse Basildon. — Aposto que Drax a tem. — Queria experimentar a esperteza de Drax. Mas foi Meyer quem apanhou a vaza com a rainha.
— Com mil demônios! O que é que a dama está fazendo nas mãos de Meyer? Então estou mesmo frito, não? De qualquer modo, o resto é meu.
Expôs as cartas em leque sobre a mesa. Olhou depois para o parceiro, como que desculpando-se:
— Você já viu coisa assim, Tommy? Drax dobra a aposta, e Meyer tem a dama.
Na voz de Basildon nada mais se notava que uma natural exasperação.
Drax deu uma risadinha.
— Você não esperava que meu parceiro tivesse um Yarborough, esperava? — perguntou alegremente, dirigindo-se a Basildon. — Bom, é uma daquelas chances imprevisíveis, não é? Você dá.
Drax cortou para Basildon, e o jogo prosseguiu.
Então fora a mão de Drax, na jogada anterior. Isso podia ser importante. Bond acendeu um cigarro e examinou, refletidamente, a nuca da Drax.
A voz de M., de súbito, cortou os pensamentos de Bond.
— Boa-noite — disse ele. Fez uma saudação geral à mesa, com um largo aceno de mão. — Basil, você se recorda de meu amigo, o Comandante Bond? Convidei-o para jogarmos bridge esta noite.
Basildon sorriu para Bond.
— Como está? — disse ele. Depois, com a mão, foi indicando da esquerda para a direita. — Meyer, Dangerfield e Drax.
Os três homens ergueram a cabeça, por momentos, e Bond enviou uma saudação geral.
— Vocês todos já conhecem o Almirante, não é verdade? — continuou Basildon, começando a dar cartas.
Drax voltou-se na cadeira.
— Ah, o Almirante! — disse espalhafatosamente. — Prazer em tê-lo a bordo, Almirante. Um drinque?
— Não, obrigado — respondeu M., sorrindo. — Acabo de tomar um.
Drax levantou depois os olhos para Bond, que vislumbrou um tufo de bigode arruivado e uns olhos azuis e glaciais.
— E o senhor, quer alguma coisa? — perguntou Drax, indiferente.
— Não, obrigado. Por enquanto nada, respondeu Bond.
Drax voltou-se novamente para o pano verde e apanhou as cartas. Bond observou as mãos grandes e rudes do homem. Depois, passeou em torno da mesa, com uma segunda pista para meditar.
Drax não separava as cartas por naipes, como faz a maioria dos jogadores. Dividia-as em vermelhas e pretas, sem fazer a escala dos valores, tornando assim muito difícil dominar sua mão e quase impossível, para um dos vizinhos, se porventura a isso estivesse inclinado, decifrá-la.
Bond, pela maneira como as pessoas seguravam as cartas, identificava as que se enquadravam na categoria de jogadores extremamente cautelosos. Afastou-se um pouco da mesa e ficou de pé, encostado à lareira. Acendeu um cigarro na pequena chama de gás, incrustada numa grelha de prata, que saía da parede ao lado dele — relíquia dos dias anteriores ao uso de fósforos.
Do ponto onde se colocara, podia ver a mão de Meyer e, dando um passo para a direita, a de Basildon. Sir Hugo Drax permanecia dentro de seu campo visual, e Bond examinava-o cuidadosamente, embora dando a impressão de se interessar apenas pelo jogo.
Drax era um homem que parecia ter sido feito em medidas maiores do que o padrão normal de vida. Fisicamente grande — devia ter mais de um metro e oitenta, calculava Bond — com uns ombros excepcionalmente largos. Cabeça também grande e quadrada, cabelos ruivos e cortados rentes, partidos ao meio. De cada lado, o cabelo baixava em curva na direção das têmporas, com o objetivo notório de ocultar, quanto possível, o tecido lustroso e enrugado que cobria grande parte de sua face direita. Outros espécimes de cirurgia plástica podiam-se observar na orelha direita, que não fazia um par muito correto com a esquerda, e, no olho direito, que fora um fracasso cirúrgico. Era consideravelmente maior do que o outro, devido a uma contração de pele tomada de empréstimo, a fim de reconstruir as pálpebras superior e inferior, além de parecer dolorosamente injetado de sangue. Bond punha em dúvida que ele fechasse completamente e pressentia que, de noite, Drax cobriria o olho com uma pala.
Para esconder tanto quanto possível a pele repuxada e desagradável à vista, Drax deixara crescer um bigode espesso, com amplas guias, que quase atingiam os lóbulos das orelhas. O bigode tinha ainda outra finalidade. Ajudava a esconder uma arcada superior naturalmente prognata e a pronunciada saliência da dentadura superior. Bond refletia que isso talvez fosse o resultado de chupar o polegar quando criança, causando a feia disposição diastêmica dos dentes, que Bond ouvira seu dentista chamar de “centrais”. O bigode ajudava a esconder aquela dentuça de “bicho-papão”. Só quando Drax soltava suas risadinhas, o que fazia constantemente, é que o defeito aparecia.
O efeito geral do conjunto — a cabeleira desordenada, quase ruiva, o nariz e o queixo fortes, a pele avermelhada — era exuberante. Dava a Bond a impressão de um diretor de circo. A frieza e a astúcia contrastantes do olho esquerdo corroboravam a semelhança.
Tipo vulgar, cacete, falastrão e mandão. Seria este o veredicto de Bond, se não conhecesse algumas das habilidades de Drax. Ao chegar a essa conclusão, passou-lhe pela cabeça a ideia de que muita coisa daquela encenação devia ter sido criada pelo próprio Drax, cuja concepção de um bonitão dos últimos dias da Regência corresponderia, por certo, àquele tipo — o disfarce inocente de um homem de rosto amassado, mas que, ao mesmo tempo, também era um esnobe.
Procurando outros indícios, Bond observou que Drax transpirava copiosamente. Apesar de um ou outro trovão lá fora, a noite estava fresca e, no entanto, Drax enxugava constantemente o rosto e o pescoço, com um vasto lenço colorido. Fumava sem cessar, amassando as pontas dos cigarros Virgínia, de ponta de cortiça, depois de aspirar umas doze fumaças, mas acendendo logo outro em seguida, que retirava de uma caixa de cinquenta, guardada no bolso do casaco. Suas grandes mãos não paravam de agitar-se, brincando com as cartas, segurando o isqueiro, colocado ao lado de uma cigarreira de prata chatinha, diante dele, enrolando mechas de cabelos, enxugando o rosto e o pescoço no lenço. De vez em quando, levava um dedo à boca e roía uma unha. Mesmo à distância a que se encontrava, Bond percebia que as unhas de Drax estavam roídas até o sabugo. As mãos eram fortes, mas os polegares tinham um que de rústico ou estranho, que Bond levou alguns instantes a definir. Por fim descobriu que eram anormalmente longos, atingindo a altura da falange superior do dedo indicador.
Bond finalizou o exame com as roupas de Drax, caras e de gosto impecável: terno azul, de listas muito finas, em flanela leve, jaquetão. Camisa branca de seda pura, colarinho duro, gravata discreta, em xadrez miúdo, cinza e branco. Abotoaduras que pareciam ser de Cartier e um relógio de ouro, Patek Philhpe, com pulseira em couro preto.
Bond acendeu outro cigarro e concentrou-se no jogo, deixando o subconsciente diferir os detalhes da aparência e maneiras de Drax, que lhe pareciam significativos e poderiam ajudar a esclarecer o enigma de suas trapaças, cuja natureza faltava ainda descobrir.
Meia hora depois, as cartas haviam completado o círculo.
— É minha vez de dar — disse Drax, com autoridade.
— Joguem tudo, parceiros, e teremos um excedente nada mau. Vamos, Max, veja se pega alguns ases. Estou cansado de fazer a força toda.
Distribuiu as cartas, lenta e dextramente, em volta da mesa, conservando o grupo sob um fogo cerrado de gracejos um tanto pesados.
— Rubber comprido — continuou, dirigindo-se a M., que ficara sentado, fumando cachimbo, entre Basildon e Drax. — Lamento tê-lo feito esperar tanto tempo. Que me diz de uma partida, depois do jantar? Max e eu contra você e o Comandante. . . como foi que disse ser o nome dele? É bom jogador?
— Bond. James Bond — respondeu M. — Sim, creio que nos agradaria essa ideia. Que diz você, James?
Os olhos de Bond estavam grudados na cabeça inclinada e nas mãos do homem que dava cartas. Sim, era aquilo mesmo! Apanhei-o com a boca na botija, seu filho da mãe. Um refletor. Um vulgaríssimo refletor, que não teria aguentado cinco minutos num jogo de autênticos profissionais. M. viu o lampejo de certeza no olhar de Bond, quando seus olhos se cruzaram por cima da mesa.
— Ótimo. Não poderia ser melhor — respondeu Bond, alegremente. Fez um imperceptível sinal de cabeça. — E que tal se me mostrasse o livro de betting, antes de jantarmos? o senhor sempre me disse que me divertiria.
M. acenou afirmativamente.
— Está certo. Vamos até lá, então. O livro está na secretaria. Depois Basildon pode descer e nos dar um coquetel, além do resultado desta luta de vida ou de morte.
M. levantou-se.
— Peça o que quiser — disse Basildon, com um penetrante olhar para M. — Descerei assim que limparmos estes dois.
— Por volta das nove, então? — disse Drax, olhando de M. para Bond. — Mostre-lhe no livro aquela aposta da pequena no balão. — Apanhou suas cartas. — Puxa! Parece que vou precisar de todo o dinheiro do cassino para jogar. Agora ninguém me aguenta — comentou, com ar triunfante, depois de um rápido relance às cartas que tinha na mão. — Três sem trunfo. — Olhou para Basildon, como que seguro da vitória. — Meta esta no cachimbo e fume.
Bond, seguindo M. para fora do salão, já não ouviu a resposta que Basildon teria dado.
Desceram as escadas e seguiram para a secretaria, os dois em silêncio. A sala estava às escuras. M. acendeu a luz e foi sentar-se na cadeira giratória, diante da escrivaninha. Virou-se na cadeira para encarar Bond, que se encaminhara para a lareira apagada e estava retirando um cigarro da cigarreira.
— Teve alguma sorte, James? — perguntou M.
— Sim, apanhei o homem. Ele faz trapaça mesmo.
— Então sempre é verdade? — comentou M., imperturbável. — Como faz ele a coisa?
— Só quando é ele a dar as cartas. Reparou na cigarreira de prata que coloca diante de si, junto com o isqueiro? Nunca tira cigarros dela. Não deseja que fique com marcas de dedos em sua superfície polida. É de prata lisa como um espelho. Quando ele dá cartas, a cigarreira fica quase completamente oculta pelo baralho e pelas manápulas. E nunca tira as mãos do mesmo lugar. Distribui o baralho em quatro montes, que vai pondo bem junto dele. Quando acaba de repartir o primeiro pelos parceiros, pega no segundo, e assim por diante. Cada uma das cartas se reflete no tampo da cigarreira. É tão eficiente quanto um espelho, apesar de parecer completamente inocente, ali em cima da mesa. Além disso, ele é um homem de negócios tão eficiente, que o normal será que tenha boa memória. Lembra-se do que eu lhe contei a respeito dos “refletores”? Pois bem, esta é precisamente uma das versões. Não admira que, de vez em quando, tenha esses golpes que tanto surpreendem os demais. Daquela vez que ele dobrou, foi a coisa mais fácil. Ele sabia que seu parceiro tinha a dama defendida. Como Drax estava com dois ases, podia dobrar a aposta que a coisa era certa. O resto do tempo ele faz jogo comum. Mas conhecer as cartas todas, de quatro em quatro rodadas, é uma tremenda vantagem. Não admira que tenha sempre lucros enormes.
— Mas não se nota quando ele põe o truque em ação — interrompeu M.
— É muito natural baixar os olhos quando se está dando cartas, disse Bond. — Todo o mundo faz isso. E ele disfarça com uma série de gracejos, coisa que não costuma fazer quando outra pessoa dá cartas. Tenho a impressão de que ele possui ótima visão periférica — isso que é considerado tão importante, quando passamos pela inspeção médica, para entrar para o Serviço. Um ângulo de visão muito amplo.
Abriu-se a porta, e Basildon entrou. Vinha “tinindo”. Fechou a porta atrás de si.
— Aquele maldito Drax! Como pode fazer tais apostas? — explodiu ele. — Tommy e eu poderíamos ter feito quatro copas, se ao menos tivéssemos conseguido contratar. Eles dois tinham o ás de copas, seis vazas de paus, o ás e o rei de ouros, e apenas cumpriam em espadas, sem possibilidade de ganhar vazas. Fizeram nove vazas de entrada, assim, de cara. Como teve ele coragem de abrir com três, sem trunfos, é algo que não consigo entender. — Basildon se acalmou um pouco. — Bom, Miles, seu amigo descobriu a resposta?
M. acenou para Bond, que repetiu o que já contara a seu chefe. A expressão de Lorde Basildon ia ficando cada vez mais furiosa, à medida que Bond se aproximava do fim do relato.
— Maldito homem! — explodiu. — Que desgraçado! Para que faz ele uma coisa dessas? Milionário, nadando em dinheiro. . . Belo escândalo temos nós em perspectiva, sim senhores. Não tivemos aqui um só caso de batota, desde a guerra de 1914-18.
Pôs-se a medir o aposento a grandes passadas. O clube foi rapidamente esquecido, quando se lembrou da importância do próprio Drax:
— Dizem que o tal foguete dele ficará pronto em breve. Só vem aqui uma ou duas vezes por semana, para relaxar um pouco os nervos. Imaginem só! Um herói popular! Isto é o fim!
A cólera de Basildon esfriou, com a noção de sua responsabilidade. Voltou-se para M., à cata de um auxílio.
— E agora, Miles? Que posso eu fazer? Ele já ganhou aqui milhares de libras, e outros sócios perderam-nas. Veja a noite de hoje, por exemplo. Minhas perdas não têm importância, naturalmente. Mas que me dizem de Dangerfield? Sei que ele está atravessando um período ruim na Bolsa, ultimamente. Não vejo como evitar expor o caso ao Comitê. Não posso esconder isto.. . mesmo sendo Drax quem é. E vocês sabem o que vai acontecer. No Comitê somos dez. Tudo leva a crer que o caso seja divulgado. Pense no escândalo! Ao que parece, o “Explorador da Lua” não poderá existir sem Drax, e a imprensa diz que todo o futuro do País depende dessa máquina. Aqui estou eu como uma dessas histórias, hem?
Fez uma pausa e lançou um olhar esperançoso, primeiro a M, e depois a Bond:
— Existirá alguma alternativa?
Bond esmagou o cigarro no cinzeiro.
— Pode-se fazê-lo parar — declarou calmamente. Depois, acrescentou com um leve sorriso: — Isto é, se não se incomoda que o façamos pagar na mesma moeda...
— Faça como lhe aprouver — respondeu Basildon, enfático. — Em que está o senhor pensando?
Nos olhos de Basildon havia o brilho de uma esperança, diante da segurança com que Bond falara.
— Pois bem, eu poderia mostrar-lhe que descobri seu truque e, ao mesmo tempo, virar o feitiço contra o feiticeiro. Naturalmente, Meyer sofreria as consequências. Poderia perder muito dinheiro, como parceiro de Drax. Isso teria importância?
— É bem feito para ele! — disse Basildon, muito aliviado e pronto a agarrar-se a qualquer solução que o libertasse do impasse. — Tem ganho um dinheirão jogando como parceiro de Drax. Você acha que também ele...
— Não, tenho a certeza de que não sabe o que se passa. Apesar de que algumas apostas de Drax devem-lhe ter causado um certo choque. Bom... — foi dizendo Bond, voltado para M. — está bem assim, sir?
M. refletia. Olhou em seguida para Basildon. Não havia dúvida quanto a seu ponto de vista. Encarou novamente Bond.
— Está bem, James. O que tem de ser será. Não me agrada a ideia, mas compreendo o ponto de vista e o apuro da situação de Basildon. Na condição de que você possa desmascarar sozinho o negócio e não queira que eu empalme cartas ou faça coisas desse gênero. Nunca tive talento para isso.
— Não é preciso — retorquiu Bond. Pôs as mãos nos bolsos do casaco e tocou nos dois lenços de seda. — Só preciso de um baralho de cartas usado, ou melhor, dois — um de cada cor — além de dez minutos sozinho aqui.
CAPITULO 5
JANTAR NO BLADES
Eram oito horas, quando Bond seguiu M. através das portas altas que do salão de jogo dão para a bela varanda da escadaria e, do outro lado, abrem para o maravilhoso restaurante estilo Regência, branco e dourado, do Clube Blades.
M. fingiu não ouvir o chamado de Basildon, que presidia a grande mesa central, onde havia ainda dois lugares vagos. Em vez de se deter, seguiu sem hesitar para o meio da sala, dirigindo-se para a última mesa de uma fila um pouco desviada. Fez sinal a Bond que se acomodasse numa confortável cadeira de braços, colocada de frente para o refeitório, enquanto se sentava ele próprio numa outra à esquerda de Bond, de modo a ficar de costas para os demais circunstantes. O chefe dos garçons já se postara atrás da cadeira de Bond, colocando um enorme cardápio ao lado de seu prato e passou outro para M. A palavra “Blades” encabeçava a extensa lista, em rebuscadas letras douradas, ao que se seguia uma floresta de coisas impressas .
— Não se dê o trabalho de ler tudo isso — advertiu M. — a não ser que esteja sem qualquer ideia. Uma das primeiras e melhores regras do clube foi que qualquer sócio pode ordenar qualquer prato, barato ou caro, porém terá de o pagar. A mesma regra persiste até hoje, mas é bem possível que já não tenha de se pagar assim. Peça o que quiser. M. encarou o garçom. — Ainda sobrou algum daquele caviar Beluga, Porterfield?
— Sim, senhor. Tivemos nova remessa a semana passada.
— Ótimo. Então caviar para mim — começou M. — Depois, rins grelhados à Blades, e uma fatia de seu excelente bacon. Ervilhas e batatinhas. Morangos au kirsch. E você, James?
— Tenho verdadeira mania por salmão defumado, quando é bom de verdade. — Depois apontou para o cardápio. — Costeletas de cordeiro, com o mesmo acompanhamento que vem para o senhor, pois estamos em maio, que é o bom mês. Aspargos com molho Bearnês, me parece delicioso. E talvez uma fatia de abacaxi.
Bond afastou o cardápio.
— Dou graças aos céus, quando encontro um homem que sabe o que quer — comentou M. Depois ergueu a vista para o garçom. — Tem tudo isso, Porterfield?
— Claro, sir. — O garçom sorriu. — Não lhe apeteceria, sir, uma geleia de mocotó à moda da casa, depois dos morangos? Recebemos hoje meia-dúzia diretamente do campo, e guardei uma, para o caso que o senhor aparecesse.
— Esplêndido. Você sabe que eu não resisto a isso. Mau para meu fígado, mas não há remédio. Só Deus sabe o que estarei comemorando hoje. Contudo, não é coisa que aconteça muitas vezes. Peça ao Grimley que venha até cá, está bem?
— Aqui o tem, sir — respondeu o garçom, dando passagem ao garçom dos vinhos.
— Ah, Grimley! Um pouco de vodca, por favor. — Voltou-se para Bond. — não é a mesma droga que você tomou no seu coquetel. Este é autêntico, de antes da guerra. Volfschmidt de Riga. Quer tomar um pouco com seu salmão defumado?
— Gostaria muito — confirmou Bond.
— E depois? Champanha? Para mim, tomarei meia garrafa de clarete. O Mouton Rothschild de 34, por favor, Grimley. Mas não se preocupe comigo, James. Já estou velho para certas coisas, e o champanha não me cai bem. Temos alguns champanhas excepcionais, não é verdade, Grimley? Nenhuma dessas drogas de que você me está sempre falando, lamento muito, James. Não se encontra muito disso na Inglaterra. Taitinger, não era?
Bond sorriu, admirando a memória de M.
— É isso, mas reconheço que não passa de uma de minhas manias. A verdade é que, por várias razões, gostaria de tomar champanha esta noite. Mas vou deixar a decisão a critério de Grimley.
O garçom dos vinhos ficou satisfeito.
— Se me permite uma sugestão, sir, recomendar-lhe-ei o Dom Perignon de 46. Informaram-me que a França só vende esse champanha na base de dólares, de modo que não é encontrado frequentemente em Londres. Creio que se trata de um presente do Regency Club de New York, sir. Tenho algumas garrafas no gelo. É a predileta do nosso presidente, e ele me recomenda que tenha sempre prontas umas quantas, todas as noites, para o caso de ele precisar.
Bond sorriu, satisfeito, concordando.
— Pois seja, Grimley. Dom Perignon. Pode trazê-lo já, sim?
Apareceu uma garçonete e colocou diversas fatias de pão torrado, ainda quente, sobre a mesa, além de uma pequena bandeja de prata com rolinhos de manteiga de Jersey. Ao curvar-se, sua saia preta roçou o braço de Bond, que não se desviou. Seus olhos encontraram os da moça, maliciosos e brilhantes, sob uma franjinha de cabelos sedosos. Fitaram-se por segundos, mas logo ela se afastou rápida. O olhar de Bond acompanhou o laço branco na cintura coleante, a golinha e os punhos engomados do uniforme, que se afastavam para o outro lado da sala. Apertou os olhos. Recordava-se de um restaurante de antes da guerra, em Paris, onde as pequenas se vestiam com a mesma excitante severidade. Até o momento em que se viravam e mostravam as costas.
Sorriu consigo mesmo. A lei “Marthe Richard” mudara tudo aquilo. Depois de ter estudado os vizinhos colocados nas mesas em redor, Bond voltou-se para sua própria mesa.
— Por que motivo se mostrou você tão misterioso, nessa história de beber champanha?
— Bom, se o senhor não se opõe, pretendo ficar um pouco “alto” esta noite. Terei de mostrar-me bastante embriagado, quando chegar a hora. Não é coisa fácil de fingir, a menos que se represente com uma boa dose de convicção. Espero que não fique preocupado se lhe parecer, mais tarde, que eu passei da conta — explicou Bond.
M. sacudiu os ombros.
— Você tem uma cabeça firme como rocha, James. Beba quanto lhe aprouver, se isso servir para arrumar o caso. Olhe... aí vem o vodca.
Quando M. lhe serviu três dedos da garrafa opaca e gelada, Bond tomou uma pitada de pimenta negra e jogou-a em cima do líquido cristalino. A pimenta acamou-se lentamente no fundo do pequeno copo, ficando alguns grãos sobrenadando à superfície, os quais Bond retirou com a ponta do dedo. Em seguida, virou a bebida gelada bem para o fundo da garganta e recolocou o copo com os restos de pimenta sobre a mesa.
M. endereçou ao agente um olhar entre interrogativo e irônico.
— É um truque que os russos me ensinaram, daquela vez que o senhor me enviou como adido à embaixada em Moscou — disse Bond, em jeito de desculpa. — Existe quase sempre uma boa porção de resíduos oleosos de fermentação à superfície desta droga... pelo menos, costuma haver, quando a destilação é imperfeita. É uma mistura altamente venenosa. Na Rússia, onde há uma quantidade de vodca de fabricação clandestina, tornou-se um hábito espalhar um pouco de pimenta no copo. Absorve o óleo e o carrega para o fundo. Acontece que eu gostei do sabor, e agora tornou-se também um hábito para mim. Mas não tive a intenção de insultar o Volfschmidt — acrescentou com um sorriso.
— Contanto que você não ponha pimenta-do-reino no champanha predileto de Basildon — comentou M. com um grunhido.
Uma risada áspera e zurrada, já deles conhecida, partiu de uma mesa bem na extremidade do salão. M. olhou por cima do ombro e voltou ao seu caviar.
— Que acha você de Drax? — perguntou, com um pedaço de torrada barrada de manteiga dentro da boca.
Bond serviu-se de outra fatia de salmão defumado, que retirou da travessa posta a seu lado. Tinha aquela contextura delicada e compacta que só os preparadores dos Highlands sabem obter, muito diferente do salmão dissecado na Escandinávia. Depois, enrolou uma fatia finíssima de pão preto com manteiga, formando um cilindro, e ficou contemplando-o pensativo.
— Não se pode gostar muito das maneiras dele. A princípio, fiquei muito surpreendido pelo fato de o senhor tolerá-lo aqui. — Bond olhou de relance para M. que sacudiu os ombros. — Mas isso, claro, não é de minha conta, e os clubes seriam muito monótonos, realmente, sem uns toques de excentricidade. Além do mais, é um herói nacional, milionário e, evidentemente, exímio jogador.. Mesmo quando não está aproveitando-se das circunstâncias. Porém vejo que, afinal, é o tipo de homem que eu sempre imaginei que fosse.
Bond fez uma pausa, como que procurando sintetizar a biografia de Drax, e continuou:
— Sanguíneo, astuto e implacável. Audacioso. Não me surpreende que tenha chegado onde chegou. Mas já não compreendo é por que motivo se sentiria ele feliz jogando tudo isso pela borda fora. Essa história das trapaças, por exemplo. É lealmente incrível. Que estará ele querendo provar com isso? Que pode bater a todos em tudo? Põe tamanha paixão em suas cartas... como se não fosse um simples jogo, mas uma espécie de prova de força. Basta olhar para suas unhas, roídas até ao sabugo. E como sua! Seu espírito está sob forte tensão, seja qual fôr o motivo. Isso revela-se naqueles horrorosos gracejos que são sua especialidade. São pesados, sem o mais tênue sinal de leveza de espírito. Parecia querer esmagar Basildon como se este fosse uma mosca importuna. Tem uns modos exasperantes. Só faço votos para que eu possa me controlar. Chega a tratar o parceiro como se este não passasse de um monte de estrume. É isto. Ele não me entrou de jeito nenhum, e só espero poder-lhe dar hoje uma boa alfinetada. Se tudo correr bem... — acrescentou sorrindo para M.
— Compreendo o que quer dizer. Mas talvez esteja sendo um pouco duro com o homem. Afinal de contas, foi um passo gigantesco vir lá das docas de Liverpool, ou de onde tenha sido, até alcançar a posição invejável de que hoje desfruta. É uma dessas pessoas naturalmente grossas. Nada quer com refinamentos e esnobismos. Tenho a impressão de que os camaradas dele nas docas consideravam-no tão desbocado quanto os sócios do Blades. Quanto às trapaças, possui, naturalmente, um traço congênito de desonestidade em seu caráter. Aposto como andou por muitos caminhos e atalhos equívocos, em sua carreira ascensional. Uma pessoa, para tornar-se rica em pouco tempo, tem de ser ajudada por uma conjugação de circunstâncias invulgares e uma inesgotável veia de sorte. Não é, certamente, por suas qualidades que o indivíduo enriquece. Pelo menos, é o que a experiência nos ensina. De início, para arranjar as primeiras dez ou cem mil libras, as coisas tem de sair muito direitinhas. E nesses negócios do pós-guerra, com todas as regulamentações e restrições, creio que o nosso homem deve ter usado com vantagens a possibilidade de deixar cair uns milhares de libras nos bolsos apropriados. Funcionalismo. Os que nada entendem senão adição, divisão. . . e silêncio. Os que são úteis..
M. fez uma pausa, enquanto chegava o segundo prato. Com ele veio o champanha, num balde de prata para gelo, e o clarete de M., recostado numa cestinha de vime.
O garçom dos vinhos aguardou, até que eles formulassem seus juízos favoráveis sobre as bebidas, afastando-se depois. Naquele instante, aproximou-se um boy.
— Comandante Bond? — perguntou.
Bond pegou o envelope que lhe era entregue e rasgou-o. Retirou dele um pequeno pacote de papel muito fino e abriu-o cuidadosamente, à altura do nível da mesa. Continha um pó branco. Bond pegou numa faca de fruta, de cima da mesa, e mergulhou a ponta no pacotinho, de modo que metade de seu conteúdo foi transferido para a lâmina da faca. Depois, estendeu a mão para a taça de champanha e passou o pó para dentro dela.
— Que vem a ser isto agora? — perguntou M., com uma ponta de impaciência.
Não se registrou o menor indício de desculpa, na fisionomia de Bond. Não era M. quem ia fazer o serviço aquela noite, era ele. E Bond sabia perfeitamente o que tinha a fazer. Todas as vezes que lhe tocava executar um trabalho, tomava primeiro inúmeras precauções, deixando o menor número possível de coisas por conta da improvisação e do acaso. Assim, se alguma coisa não desse certo, depois, seria sempre o imprevisível. Bond já não aceitava qualquer responsabilidade nisso.
— É benzedrina. Telefonei para minha secretária, antes do jantar, e pedi-lhe que retirasse um pouco da sala de operações no QG. É só do que eu preciso para manter a cabeça bem clara toda a noite. É possível que me torne um pouco confiante em excesso, mas isso também será útil.
Remexeu o champanha com um pedaço de torrada, de modo que o pó rodopiasse entre as bolhas gasosas. Depois, bebeu tudo num longo traço.
— Não tem gosto algum. O champanha é excelente — rematou ele.
M. sorriu com indulgência.
— O funeral será seu. O melhor é terminarmos agora o jantar. Que tal estavam as costeletas?
— Soberbas! Poderia até cortá-las com o garfo. A melhor cozinha inglesa é a melhor do mundo, principalmente nesta época. É verdade, qual é a base de apostas com que jogaremos hoje? Não que isso me preocupe pessoalmente. Devemos acabar vencedores. Mas tenho curiosidade em saber quanto Drax poderá perder hoje.
— Ele prefere sempre jogar na base de “Um e Um”, como costuma dizer — informou M., servindo-se dos morangos que acabavam de ser postos na mesa. — Assim dito, dá a impressão de aposta modesta, quando não se sabe o sentido que tem. Na verdade, quer dizer uma libra por cem pontos e cem libras por rubber.
— Puxa! — disse Bond, respeitosamente. — Já compreendi .
— Mas ele se sentirá perfeitamente feliz em jogar dois e dois, ou mesmo três e três. Sobe até essas importâncias. A média, no bridge do Blades, é de, aproximadamente, dez pontos por rubber. No Um e Um isso corresponde a duzentas libras. E o bridge, aqui, dá sempre para grandes rubbers. Não existem convenções, de modo que se especula muito e faz-se muito blefe. Por vezes, mais parece pôquer. Temos jogadores de várias categorias. Alguns são dos melhores da Inglaterra, mas outros são terrivelmente aloucados. Não parecem ligar a quanto perdem. O General Bealey, que está aqui por trás de nós — M. fez um gesto de cabeça — não distingue as vermelhas das pretas. Vão sempre embora algumas centenas de libras, no fim de cada semana. Contudo, não parece ligar. É doente do coração. Não tem família. Montes de dinheiro provenientes da importação de juta. Mas Duff Sutherland, o camarada todo pelancudo sentado ao lado de Basildon, é um colosso. Faz regularmente umas dez mil libras anuais com os lucros do jogo aqui no clube. Camarada simpático. Maneiras refinadas ao jogo. Já representou diversas vezes a Inglaterra em torneios internacionais de xadrez.
M. foi interrompido pela chegada de seu mocotó. Vinha colocado dentro de um osso, disposto verticalmente sobre um imaculado guardanapo de renda, em bandeja de prata. Os talheres de prata lavrada, apropriados para extrair a geleia, vinham ao lado.
Depois dos aspargos, Bond quase já não tinha apetite para comer as fatias de abacaxi. Serviu o resto do champanha gelado em sua taça. Sentia-se maravilhosamente bem. Os efeitos da benzedrina e do champanha, haviam mais que compensado o torpor da lauta refeição. Desviou o pensamento do jantar e da conversa com M., percorrendo o olhar pelo salão.
A cena era esplendorosa. Havia talvez umas cinquenta pessoas presentes, a grande maioria em dinner jackets, num à vontade de gente acostumada aos ambientes e excitada, tanto pelo impecável serviço do restaurante como pelo interesse comum: a perspectiva de jogo alto, o grande slam, o ace pot e as paradas espetaculares do backgammon. Poderia haver trapaceiros ou eventuais trapaceiros, entre os circunstantes, homens que batiam em suas mulheres, homens com instintos perversos, excessivamente ambiciosos e cúpidos, covardes, mentirosos; mas a elegância do ambiente refletia em todos um ar de aristocracia.
A um dos lados do salão, acima da vasta mesa dos frios, carregada de lagostas, carnes, galantinas e especialidades de aspic, imperava o retrato inacabado, de corpo inteiro, da Srta. Fitzherbert, pintado por Romney, olhando provocantemente para o lado oposto, onde se admirava o Jeu de Caries, de Fragonard, ampla tela que cobria quase toda a parede, por cima de uma requintada lareira Adams. Ao longo das paredes laterais, raras gravuras do Hell-Fire Club, em molduras douradas com passe-partout, e em que cada figura parecia estar executando um sutil gesto de significado mágico ou escatológico. Mais acima, casando as paredes ao teto, corria um friso de gêsso em relevo, minuciosamente trabalhando, com volutas interrompidas pelo remate das pilastras que emolduravam as janelas e altas portas duplas, estas delicadamente esculpidas com o desenho da Rosa Tudor, entrelaçada com efeitos que lembravam fitas pendentes.
O candelabro central, cascata de cristal que terminava numa grande corbelha de quartzo lapidado, cintilava acima das toalhas de mesa em damasco branco e punha revérberos na prataria George IV. Por toda a parte, castiçais de três braços espargiam luz dourada de outras tantas; velas, cada qual protegida por pequenos abajures de seda vermelha, de modo que os rostos dos comensais refletiam um calor de cordialidade que ofuscava o frio que porventura se refletisse num olhar de antipatia ou numa cruel contorção dle lábios.
Bond deleitava-se ainda no calor e elegância da cena, quando os primeiros grupos começaram a levantar-se, dispersando-se. Dentro em pouco, era a debandada, rumo ao salão de jogo, acompanhada de trocas de apostas, desafios e gracejos, para que todos se apressassem e começasse o negócio. Sir Hugo Drax, o rosto congestionado e peludo, brilhando de alegro antecipação, aproximou-se deles, com Meyer em sua esteira.
— Muito bem, cavalheiros — disse ele jovialmente, ao chegar à mesa. — Os cordeirinhos estão prontos para o matadouro, e os gansos para serem depenados? — Gargalhou e, numa pantomima feroz, levou os dedos ao pescoço. — Bom, nós já vamos andando. Fizeram seus testamentos?
— Estaremos com vocês dentro em pouco. Vão andando e preparem as cartas — disse M.
Drax riu.
— Não precisaremos de nenhum auxílio artificial, parceiros. Não demorem — respondeu Drax, dirigindo-se para a porta.
Meyer envolveu-os num sorriso incerto e seguiu o outro. M. deu um suspiro, resmungando.
— Tomaremos café e conhaque na sala de jogo — disse ele, dirigindo-se a Bond. — Aqui não se pode fumar. Então? Algum plano final?
— Terei de o engordar para depois lhe dar o golpe mortal. Não se preocupe, por favor, se eu der a impressão de estar ficando alto — avisou Bond. — Teremos de fazer nosso jogo normal até chegar a hora. Quando fôr a vez de ele dar, será preciso muito cuidado. Naturalmente, ele não pode alterar as cartas, e não há razão para não recebermos também algumas boas, mas é possível que Drax saia então com algum de seus famosos truques. Importa-se que eu me sente à sua esquerda?
— Claro que não. Mais alguma coisa? — indagou M.
Bond refletiu por instantes.
— Apenas uma coisa, sir. Quando chegar a hora, eu tirarei um lenço branco do bolso de meu casaco. Isso significará que o senhor estará prestes a receber um Yarborough, ou seja, a mão sem cartas acima de nove. Quer fazer o favor de deixar a aposta dessa mão a meu cargo?
CAPITULO 6
JOGANDO COM UM ESTRANHO
Drax e Meyer esperavam por eles. Recostavam-se nas respectivas cadeiras, fumando charutos Havana.
Nas mesas pequenas, ao lado dos dois, havia café e grandes frascos de conhaque. No momento em que M. e Bond se aproximaram, Drax rasgava o envólucro de um baralho novo. O outro já se encontrava espalhado diante dele, sobre o pano verde.
— Ah, já chegaram — saudou Drax. — Inclinou-se para a frente e cortou uma carta. Todos fizeram o mesmo. Drax ganhou no corte e escolheu ficar onde estava, pegando as cartas vermelhas.
Bond sentou-se à esquerda de Drax. M. fez um sinal para o garçom que passava.
— Café e conhaque da casa — pediu. Tirou depois uma cigarrilha fina e preta do estojo, oferecendo também a Bond, que aceitou. Depois, pegou nas cartas vermelhas e começou a embaralhar.
— E as apostas? — perguntou Drax, olhando para M. — Um e Um? Ou mais? Terei muito prazer em contratarmos até Cinco e Cinco, se todos estiverem de acordo.
— Para mim, Um e Um é suficiente — respondeu M. — E você, James?
Drax interrompeu.
— Suponho que seu convidado saberá no que se mete, não é? — perguntou, incisivo.
Bond respondeu por M. — Como não? — Dirigiu um sorriso a Drax. — E esta noite, até que me sinto muito generoso. Quanto gostaria o senhor de me sacar?
— Até o seu último centavo, comandante — respondeu Drax, alegremente. — De quanto pode dispor?
— Isso eu lhe direi quando já não sobrar mais nada — foi a resposta de Bond. De repente, resolveu ser implacável.
— Ouvi dizer que Cinco e Cinco é o seu limite, não é verdade? Pois joguemos assim.
Quase que antes de as palavras lhe saírem da boca, Bond já lamentava tê-las pronunciado. Cinquenta libras por cem pontos! Quinhentas em apostas por fora! Quatro rubbers ruins representariam o dobro de sua renda anual. Se qualquer coisa saísse errada, ele ficaria com cara de bobo, o que seria bastante estúpido. Teria de pedir dinheiro emprestado a M. E o patrão não era homem assim tão rico. Percebeu, subitamente, que aquele jogo ridículo poderia terminar numa confusão bem feia. Sentiu o suor brotar-lhe na fronte. Aquela maldita benzedrina. Logo ele, entre tantas outras pessoas, iria deixar-se embrulhar por um pilantra falastrão e gabarola, como esse tal Drax! E nem sequer estava ali em missão.
A noite toda constituía uma espécie de pantomima social, que não significava coisa alguma para ele. O próprio M. fora arrastado àquilo por acaso. E eis que, de repente, ele se deixara envolver num duelo com esse multimilionário, num jogo em que arriscava, praticamente, tudo o que possuía, pela simples razão de ter aquele homem maneiras abomináveis, e ele ter querido dar-lhe uma boa lição. Mas, suponhamos que a lição não desse resultado? Bond amaldiçoava o impulso que, anteriormente, lhe teria parecido um absurdo. Champanha e benzedrina! Nunca mais.
Drax o fitava numa incredulidade sarcástica. Voltou-se para M., que continuava impassível, embaralhando as cartas.
— Suponho que seu convidado seja correto em seus compromissos — disse, num tom inexorável.
Bond viu o sangue afluir ao pescoço de M., até se espalhar pelo rosto. Por um instante, parou de embaralhar. Ao continuar, observou que as mãos de M. estavam perfeitamente calmas. Ergueu os olhos e tirou a cigarrilha, num gesto resoluto, de entre os dentes. A voz saiu totalmente controlada, quando respondeu:
— Se quer saber se eu respondo pelos compromissos de meus convidados pessoais, a resposta é sim.
Cortou as cartas para Drax, com a mão esquerda e, com a direita, bateu a cinza da cigarrilha, dentro de um cinzeiro de cobre, a um canto da mesa. Bond percebeu o leve chiar da cinza ainda quente caindo na água.
Drax lançou um olhar de esguelha para M. e apanhou as cartas.
— Claro, claro — disse ele, precipitadamente. — Eu não quis dizer que... — Deixou a frase inacabada e voltou-se pare Bond. — Então, está bem. Será Cinco e Cinco — disse ele olhando de maneira bastante curiosa para Bond. — E você, Meyer — continuou, dirigindo-se agora ao parceiro — quanto gostaria de marcar? Pode subir para Seis e Seis.
— Um e Um é bastante para mim, Hugger — disse Meyer, desculpando-se. — A não ser que você prefira que eu aumente a parada...
Olhou ansiosamente para o parceiro.
— Claro que não. Gosto de um jogo alto, mas, geralmente, não consigo um. Pois então, aí vamos nós — disse Drax, enquanto começava a dar cartas.
De súbito, Bond não se incomodou mais com as apostas elevadas. A única coisa que desejava agora era dar àquele macaco peludo a maior lição de sua vida, causar-lhe um choque que o fizesse recordar para sempre aquela noite, lembrar-se de Bond, lembrar-se de M., recordar da última vez em que pôde fazer trapaça no Blades, lembrar-se da hora em que tudo acontecera, do tempo que fazia lá fora, dos pratos que tivera para o jantar.
Apesar de toda a sua importância, Bond se esquecera do “Explorador da Lua”. Aquilo, agora, era um caso particular entre dois homens.
Observou o olhar lançado, como por acaso, à cigarreira colocada entre as mãos de Drax e sentiu a fria memória do homem registrando os valores das cartas, à medida que estas passavam sobre a lisa superfície do refletor. Bond afastou do espírito todos os remorsos. Absolveu-se de toda a culpa pelo que estava prestes a acontecer e focalizou sua atenção no jogo. Instalou-se melhor na cadeira e descansou as mãos nos braços estofados. Em seguida, retirou a cigarrilha da boca, colocou-a no cinzeiro de cobre que estava a seu lado, e estendeu a mão para a xícara de café. Era muito negro e forte. Esvaziou-a e pegou na taça com o conhaque. Provou e voltou a beber com maior entusiasmo. Olhava por cima do rebordo para M. Este encontrou seu olhar e sorriu de leve.
— Espero que o aprecie. Provém de uma das propriedades dos Rothschild, em Cognac. Cerca de cem anos atrás, um membro da família nos deixou como legado um barril, a ser entregue perpètuamente, de cada colheita. Durante a guerra, esconderam um para nós, cada ano, depois, nos enviaram todos juntos em 1945. De então para cá, temos bebido o dobro do conhaque. Bom, e agora precisamos nos concentrar — concluiu, apanhando as cartas.
Bond pegou as suas. Eram razoáveis. Duas vazas de caras e os naipes distribuídos muito por igual. Estendeu a mão para sua cigarrilha, puxou uma baforada final e, depois, apagou-a de encontro ao fundo do cinzeiro.
— Três paus — disse Drax.
Bond não ofereceu.
Quatro paus de Meyer.
Nenhuma oferta de M.
— Hummm... — pensou Bond. Ele não tem as cartas necessárias para abrir desta vez. Fecha-se, porque sabe que seu parceiro tem apenas uma vaza a mais. M. poderia fazer um belo contrato. É possível que tenhamos todas as copas nas mãos, por exemplo. Mas M. jamais faz contrato. Presumo que eles farão quatro paus.
Foi o que fizeram, com o auxílio de uma finesse, por intermédio de Bond. Verificou-se que M. não tinha copas, mas uma longa sequência de ouros, faltando apenas o rei, que estava nas mãos de Meyer e teria sido apanhado. Drax não tinha quase com que cobrir a oferta de três vazas. Meyer tinha o resto dos paus.
Em todo caso, pensou Bond ao dar as cartas para a mão seguinte, tivemos sorte em escapar desta vez.
A sorte continuava a sorrir-lhes. Bond abriu sem trunfos, foi coberto com três vazas por M., e fizeram ambos um excedente de vazas. Na vez de Meyer distribuir cartas, eles caíram com cinco ouros, mas na seguinte mão, M. abriu quatro espadas, e os três pequenos trunfos de Bond, além de um rei e uma dama de outros naipes, foi tudo o que M. precisou para cumprir o contrato.
O primeiro rubber foi de M. e Bond. Drax pareceu contrariado. Perdera 900 libras nesse rubber, e as cartas pareciam estar virando-se contra eles.
— Vamos continuar? Não vejo necessidade de cortar — propôs Drax.
M. endereçou um sorriso a Bond. O mesmo pensamento cruzara a mente de ambos. Então Drax desejava continuar, dando ele as cartas. Bond deu de ombros.
Nao faço qualquer objeção — disse M. — Nossos lugares parecem estar fazendo o mais que podem por nós.
Até o momento — comentou Drax, parecendo mais alegre.
E com razão. Na mão seguinte, ele e Meyer, apostaram e conseguiram um pequeno slam em espadas, que puxaram duas finesses de arrepiar os cabelos. Com todas duas, Drax, depois de muita pantomima e rodeios, negociou jeitosamente, comentando de cada vez, em voz alta, sua boa sorte.
— Hugger, você é formidável — observou Meyer, num excesso de entusiasmo pelo jogo de seu parceiro. — Como consegue você isso?
Bond achou que era o momento de lançar uma pequena semente.
— Memória — disse ele.
Drax fitou-o intensamente.
— Que quer dizer com memória? Que tem ela que ver com receber uma finesse?
— Eu ainda ia acrescentar... “e senso das cartas” — disse Bond, com suavidade. — São as duas qualidades que fazem o grande jogador de cartas.
Drax aplacou-se.
— Ah, sim, compreendo...
Cortou as cartas para Bond distribuir. Enquanto as dava, Bond sentia os olhos do outro examinando-o atentamente.
O jogo prosseguia em ritmo igual. As cartas se recusavam a esquentar, e ninguém parecia inclinado a aventuras. M. dobrou Meyer numa imprudente aposta de quatro espadas e ficou em duas vazas. Mas, na mão seguinte, Drax saiu com um sem trunfos descoberto. O ganho de Bond no primeiro rubber foi anulado, e ainda perdeu um pouco mais.
— Alguém quer beber? — perguntou M., enquanto cortava as cartas para Drax e para o terceiro rubber.
— James. Tome um pouco mais de champanha. A segunda garrafa sempre sabe melhor.
— Gostaria imenso — respondeu Bond.
O garçom se aproximou. Os outros pediram uísque com soda.
Drax voltou-se para Bond.
— Este jogo precisa ser animado — comentou. — Aposto cem como ganhamos esta mão.
Terminara a distribuição, e as cartas estavam empilhadas em montes bem feitos no centro da mesa.
Bond fitou-o. O olho danificado brilhava, vermelho, em sua direção. O outro era frio, duro e desdenhoso. Bagas de suor escorriam de ambos os lados do nariz grande e adunco.
Bond meditou se Drax não o estaria provocando, para ver se ele desconfiava da distribuição de cartas. Resolveu deixá-lo em dúvida. Eram cem libras que enfiavam pelo cano, mas isso lhe daria uma desculpa para aumentar mais tarde as paradas .
— É a sua vez de dar? — perguntou com um sorriso. — Bom — pesou os riscos imaginários. — Está bem. Combinado. — Parecia ter-lhe ocorrido uma ideia. — E o mesmo para a próxima, se o senhor quiser — acrescentou.
— Está bem, está bem — disse Drax, impaciente. — Já que você deseja jogar fora o dinheiro bom, depois de jogar o mau...
— O senhor parece muito seguro quanto ao resultado desta mão — disse Bond, indiferente, enquanto pegava as cartas. Eram bem ruins, e ele não teve resposta para a abertura sem trunfos de Drax, a não ser dobrando-a. O blefe não produziu o menor efeito no parceiro de Drax. Meyer disse: “Dois, sem trunfo”, e Bond sentiu-se aliviado quando M., sem nenhum naipe em sequência, disse: “Não faço contrato.” Drax saiu em dois sem trunfo e fechou o contrato.
— Obrigado — disse com deleite, escrevendo cuidadosamente o escore. — Agora vamos ver se o senhor pode reaver sua aposta.
Para seu grande pesar, Bond não podia. As cartas ainda estavam favoráveis a Meyer e Drax, e eles fizeram três copas e o jogo.
Drax estava satisfeito consigo mesmo. Ingeriu um vasto gole de uísque e soda, limpando depois o rosto num grande lenço colorido.
— Deus fica do lado dos grandes batalhões — comentou jovialmente. — Não é só ter as cartas na mão, mas saber jogá-las. Quer continuar, ou já chega?
O champanha de Bond tinha chegado e fora colocado a seu lado, num balde de prata. Havia também uma taça com três quartos cheios, numa mesinha próxima. Bond pegou nela e esvaziou-a, para obter um pouco mais de coragem. Depois, voltou a enchê-la .
— Está bem — respondeu com voz pastosa. — Cem para as duas próximas mãos.
E perdeu-as prontamente, assim como o rubber.
Bond compreendeu, de súbito, que já estava perdendo quase 1.500 libras. Tomou outra taça de champanha.
— Pouparíamos tempo se dobrássemos as apostas para este rubber — falou, de modo bastante destemperado. — Para o senhor está bem?
Drax tinha dado cartas e examinava as próprias. Seus lábios se umedeceram, prevendo o que estava para vir. Olhou para Bond, que parecia ter certa dificuldade em acender o cigarro.
— Feito — respondeu rapidamente. — Cem libras por cem e mil no rubber. — Em seguida, achou que poderia arriscar um toque de esportividade. Bond dificilmente poderia cancelar agora a aposta. — Mas devo dizer que me parece ter aqui algumas coisas bastante boas — acrescentou. — Continua tudo de pé?
— Claro, claro — disse Bond, apanhando desajeitadamente as cartas. — Eu fiz a aposta, não fiz?
— Pois então está bem — finalizou Drax, com satisfação. — Três sem trunfo.
Fez quatro.
Mas depois, para alívio de Bond, as cartas se modificaram. Bond marcou e fez um pequeno slam de copas e, na mão seguinte, M. acabou com três sem trunfos.
Bond sorriu alegremente para o rosto suado do outro. Drax roia as unhas, irritado.
— Os grandes batalhões... — disse Bond, irônico. Drax resmungou qualquer coisa e aplicou-se em anotar o escore.
Bond olhou para M., que chegava um fósforo, com evidente satisfação pelo caminho por onde o jogo enveredava, à segunda cigarrilha que fumava nessa noite, uma concessão que fazia a si próprio, quase única nos anais da História.
— Receio que este seja meu último rubber — disse Bond. — Preciso me levantar cedo. Espero que me perdoem...
M. olhou o relógio.
— Já passa da meia-noite. Que diz você, Meyer?
Meyer, que se conservara em silêncio quase durante a noite toda e tinha o aspecto de um homem preso numa jaula cheia de tigres, pareceu aliviado ao ser-lhe oferecida uma oportunidade de escapulir. Pulou à ideia de voltar a seu apartamento sossegado em Albany e à reconfortante coleção de suas caixas de rapés de Battersea.
— Para mim está ótimo, Almirante. E para você, Hugger? — perguntou Meyer, dirigindo-se a Drax. — Já está disposto a ir para a cama?
Drax ignorou-o. Levantou os olhos das folhas de anotação de escores, e fixou-os em Bond. Observou os sinais de intoxicação alcoólica, a testa úmida, a vírgula preta de cabelos que tombavam, desalinhados, sobre sua sobrancelha direita, o brilho do álcool nos olhos azul-cinza.
— Até o momento, o equilíbrio de jogo foi um desastre. Calculo que ganharam mais ou menos umas duzentas libras. Naturalmente, poderão sair do jogo, se quiserem. Mas que tal se arranjássemos um fogo de artifício para finalizar? Triplicar, por exemplo, as apostas deste último rubber? Quinze e quinze. Partida histórica. Aceitam?
Bond fitou Drax. Fez uma pausa, antes de responder. Queria que Drax se recordasse de todos os detalhes desse último rubber. Cada palavra que fosse pronunciada, cada um dos gestos feitos.
Drax repetiu, impaciente:
— Então, que me dizem?
Bond olhou para o olho esquerdo, frio e calculista, e para o rosto vermelho. E falou apenas para ele:
— Cento e cinquenta libras por cem pontos e mil e quinhentas libras o rubber, — articulou, distintamente. — Está combinado.