CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.
CONTINUA
CAPITULO 17
LOUCAS SUPOSIÇÕES
Terminado o paroxismo, ele sentiu a mão de Gala nos cabelos. Virou a cabeça e viu-a contrair a fisionomia ao fitá-lo. Puxou-lhe o cabelo e apontou os penhascos. No momento em que assim fazia, uma chuva de pequenos fragmentos de giz despencou ao lado deles.
Dèbilmente, conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se. Juntos deslizaram pela montanha de giz abaixo e longe da cratera formada no penhasco de onde tinham escapado.
A areia áspera sob seus pés dava-lhes a impressão de veludo. Ambos caíram com todo o comprimento do corpo, agarrando-a com suas mãos horríveis e brancas, como se o ouro grosseiro lavasse a brancura suja de uma vez. Foi então a vez de Gala ter sua crise de náuseas, e Bond se arrastou alguns passos para deixá-la só. Tornou a equilibrar-se nos pés, simples bloco de giz tão grande quanto um pequeno automóvel. Finalmente, seus olhos injetados de sangue contemplaram o inferno que quase os engolfara.
Até a base das rochas, agora lambidas pelas ondas da maré enchente, espalhavam-se os detritos do lado do penhasco, uma avalancha de blocos de cré e fragmentos. A poeira branca de sua queda estendia-se por quase um quilômetro de extensão. Acima dele um corte em v aparecera no penhasco e um triângulo de céu azul fora marcado no topo distante, onde antes a linha do horizonte era quase reta. Não havia mais nenhum pássaro marítimo perto deles, e Bond calculou que o cheiro de desastre os afastaria do lugar durante muitos dias.
A proximidade de seus corpos com o penhasco foi o que os salvou, isto e a ligeira proteção formada por uma saliência sob a qual o mar se introduzira na base do penhasco. Eles haviam sido enterrados pelo dilúvio de fragmentos menores. Os pedaços maiores e mais pesados, cada um dos quais poderia tê-los esmagado, caíram para a frente, o mais próximo não os alcançando por uma diferença de poucos centímetros. A mesma proximidade do penhasco fora a razão de o braço direito de Bond ter ficado relativamente livre, de modo que puderam sair do monte antes de serem sufocados. Bond compreendeu que, se certo reflexo não o tivesse atirado para cima de Gala no momento da avalancha, agora estariam ambos mortos.
Sentiu a mão dela no ombro. Sem olhá-la, passou-lhe o braço pela cintura e juntos desceram para o mar abençoado, deixando os corpos caírem mansamente, misericordiosamente, nas águas tranquilas.
Dez minutos depois eram dois seres relativamente humanos que caminhavam de volta pela areia até as rochas onde estavam suas roupas, pouco adiante do ponto onde tombara parte do penhasco. Estavam ambos completamente nus. Os trapos de suas roupas internas tinham ficado num ponto qualquer debaixo da pilha de massa calcária, rasgados em sua luta para escapar. Mas, como os sobreviventes de um naufrágio, sua nudez nada significava. Lavados e limpos do giz pegajoso e áspero, com os cabelos e bocas também limpos pela água salgada, sentiam-se fracos e mal cuidados. Mas quando vestiram as roupas e usaram ambos o pente de Gala, pouco restava para demonstrar o que haviam sofrido.
Sentaram-se recostados na rocha, e Bond acendeu um primeiro cigarro delicioso, inalando a fumaça profundamente nos pulmões e expelindo-a lentamente pelas narinas. Quando Gala fez o que pôde com o pó de arroz e o batom, ele acendeu um cigarro para ela. Pela primeira vez olharam-se nos olhos e sorriram. Em seguida, permaneceram sentados, fitando silenciosamente o mar, o panorama dourado que era o mesmo e, no entanto, completamente novo.
Bond quebrou o silêncio:
— Por Deus do céu! Escapamos por pouco. — Eu ainda não sei o que aconteceu — disse Gala. — A única coisa de que me dou conta é que você salvou minha vida. Colocou a mão na dele e depois retirou-a.
— Se você não estivesse ali, eu estaria morto — disse Bond. — Se eu tivesse ficado onde estava.
Sacudiu os ombros. Depois voltou-se para ela:
— Suponho que você compreende que alguém despenhou a rocha para cima de nós.
A moça devolveu-lhe o olhar, com os olhos bem arregalados.
— Se nós procurássemos em tudo isso — Bond fez um gesto em direção à avalancha de cré, — encontraríamos as marcas de duas ou três perfurações e vestígios de dinamite. Eu vi a fumaça e ouvi o ruído da explosão numa fração de segundo antes de o penhasco tombar. As gaivotas também ouviram. — E o que é mais — continuou Bond, depois de uma pausa. — Não pode ter sido obra de Krebs sozinho. O negócio foi feito bem à vista da base. Foi feito por diversas pessoas, bem organizado, com espiões tomando conta de nós, desde o instante em que descemos o caminho do penhasco até a praia.
Os olhos de Gala registraram compreensão e um lampejo de medo.
— Que devemos fazer? — perguntou ansiosa. — Que significa tudo isto?
— Querem-nos mortos — disse Bond calmamente. — De modo que precisamos manter-nos vivos. Quanto ao que significa tudo isto, teremos de descobrir sozinhos — Quer saber de uma coisa? Receio que nem Vallance nos será de grande auxílio. Quando se convenceram de que estávamos convenientemente enterrados, devem ter-se afastado do topo do penhasco tão depressa quanto lhes foi possível. Deviam saber que, mesmo se alguém visse o penhasco cair, ou ouvisse sua queda, não ficaria muito excitado. Existem vinte milhas desses penhascos, e muito pouca gente vem aqui antes do verão. Se os guarda-costas ouviram, devem ter tomado nota no caderno de ocorrências. Mas na primavera, tenho a impressão de que o fato se repete constantemente. Os pontos gelados no inverno se derretem, rachando-se em fragmentos que podem ter cem anos de idade. De modo que nossos amigos esperariam até que nós não aparecêssemos à noite e, então, mandariam a polícia da costa à nossa procura. Ficariam calados até que a maré alta fizesse um mingau de uma boa porção disso tudo.
Bond fez um gesto na direção dos pedaços de giz caído:
— O plano todo é admirável. E mesmo que Vallance acredite em nós, não há base suficiente para fazer o Primeiro-Ministro interferir com o “Explorador da Lua”. O diabo da coisa é tão tremendamente importante. O mundo inteiro espera para ver se dará certo ou não. E, afinal de contas, qual é a nossa história? Que diabo significa tudo isto? Alguns desses malditos alemães lá de cima parecem desejar ver-nos mortos antes de sexta-feira. Mas por quê?
Bond fez uma pausa:
— Depende de nós, Gala. É um negócio sujo e complicado, mas nós não temos outro jeito senão resolvermos o problema sozinhos.
Fitou-a dentro dos olhos:
— Que me diz você?
Gala deu uma risada brusca.
— Não seja ridículo. É para isto que estamos sendo pagos. Naturalmente trataremos do assunto. Concordo que não chegaríamos a nenhuma conclusão com o pessoal de Londres. Pareceríamos completamente ridículos telefonando para contar a queda de penhascos em nossas cabeças. Que fazemos aqui embaixo, afinal, brincando, sem roupas, em vez de continuarmos a cuidar de nossos trabalhos?
Bond riu.
— Nós só nos deitamos aqui durante dez minutos para secarmos — protestou. — Como você acha que devíamos ter passado a tarde? Tomando novamente as impressões digitais da turma toda? É só nisto que vocês pensam na polícia, ou quase que só nisto.
Sentiu-se logo envergonhado ao vê-la enrijecer-se:
— Não foi isto que eu quis dizer. Mas você não vê o que fizemos esta tarde? Exatamente o que deveria ser feito. Fizemos o inimigo mostrar seus planos. Agora precisamos dar o passo seguinte e descobrir quem é o inimigo e porque desejava nos tirar de seu caminho. Depois então, se obtivermos provas suficientes de que alguém está tentando sabotar o “Explorador da Lua”, mandaremos revistar a base toda, de cima a baixo, adiaremos o lançamento experimental, e a política que leve o diabo.
Gala levantou-se num salto. Falou, impaciente:
— Você tem razão, naturalmente. É que eu quero fazer qualquer coisa logo, depressa.
Olhou um momento o mar, o pensamento longe de Bond:
— Você acaba de entrar no negócio. Eu venho convivendo com esse foguete por mais de um ano, e não posso tolerar a ideia de que algo venha a lhe acontecer. Tanta coisa parece depender de seu êxito. Para todos nós. Quero voltar para lá depressa e descobrir quem foi que quis nos matar. Pode não ter nada que ver com o “Explorador da Lua”, mas eu quero certificar-me.
Bond levantou-se, não demonstrando a dor que sentia nos cortes e ferimentos nas costas e pernas:
— Vamos. São quase seis horas. A maré vem enchendo depressa, mas podemos chegar a St. Margaret antes que ela nos pegue. Nós nos arrumamos em Granville, tomaremos e comeremos qualquer coisa, voltando depois para a casa no meio do jantar deles. Tenho interesse em ver que espécie de recepção nos vão fazer. Depois disso, teremos de nos concentrar em mantermo-nos vivos e ver o que pudermos ver. Você aguenta ir até St. Margaret?
Gala respondeu:
— Não seja tolo. As mulheres policiais não são feitas de gaze. — Endereçou um sorriso relutante ao ironicamente respeitoso: “Claro que não” — de Bond, e viraram na direção da torre distante da casa do farol de South Foreland, seguindo pela trilha.
Às oito e meia, o táxi de St. Margaret deixou-os no segundo portão da guarda, eles mostraram seus passes e caminharam calmamente por entre as árvores, sobre a faixa de concreto. Ambos sentiam-se de ótimo humor. Um banho quente e uma hora de repouso no acomodadiço Granville foram seguidos por dois conhaques com soda para Gala e três para Bond. Comeram então deliciosos peixes fritos, coelho à moda galesa e tomaram café. Agora, ao aproximarem-se confiantes da casa, teria sido necessário o dom divinatório para saber que estavam ambos mortos de cansaço e que estavam nus e machucados sob os trajes de passeio.
Entraram calmamente pela porta da frente e pararam um momento no hall iluminado. Um alegre murmúrio de vozes vinha da sala de jantar. Houve uma pausa, seguida de um coro de risadas, dominadas pelo áspero latido de Sir Hugo Drax.
A boca de Bond se retorceu, quando ele se adiantou para entrar no hall e, depois, transpor a porta da sala de jantar. Aí, fixou um alegre sorriso no rosto, e abriu-a para deixar Gala passar.
Drax estava sentado à cabeceira da mesa, com um aspecto festivo em sua jaqueta cor de ameixa. Uma garfada de comida, a meio caminho de sua boca aberta, parou no ar, quando eles apareceram. Sem que se desse conta, deixou cair a comida, que escorregou do garfo e caiu com um macio, audível “plaf” na beira da mesa.
Krebs bebia um copo de vinho tinto, e este, enregelado contra sua boca, foi deixando cair um fio pelo queixo, e dali para a gravata de cetim marrom e a camisa amarela.
Dr. Walter achava-se de costas para a porta, e só depois de haver observado as atitudes incomuns dos outros, os olhos esbugalhados, as bocas abertas e os rostos pálidos, foi que virou a cabeça naquela direção. Suas reações, pensou Bond, eram mais lentas que as dos outros, ou então seus nervos mais firmes.
— Ach so, Die Engländer — disse baixinho.
Drax se levantou.
— Meu caro amigo. Nós estávamos verdadeiramente preocupados. Sem saber se devíamos mandar uma turma de salvamento. Poucos minutos atrás, um dos guardas entrou e contou que parecia ter havido uma queda de parte do penhasco.
Drax aproximou-se dos dois, o guardanapo em uma das mãos e o garfo ainda ereto na outra.
Com o movimento, o sangue voltou-lhe ao rosto, que se tornou, primeiro, manchado e, depois, da cor vermelha habitual.
— Francamente, devia ter-me avisado — disse, dirigindo-se à moça, a cólera vibrando em sua voz. — Seu procedimento foi realmente muito estranho.
— A culpa foi minha — interveio Bond, penetrando mais na sala, de modo a poder abranger a todos com a vista. — A caminhada foi mais longa do que eu previa. Pensei que pudéssemos ser apanhados pela maré enchente, de modo que fomos até St. Margaret, comemos lá qualquer coisa, e tomamos um táxi. Miss Brand queria telefonar, mas eu achei que chegaríamos antes das oito. Deve pôr a culpa em mim. Mas, por favor, não interrompam o jantar. Talvez eu lhes possa fazer companhia na sobremesa e no café. Creio que Miss Brand preferirá ir para o quarto. Deve estar cansada, depois de um longo dia.
Rodeou deliberadamente a mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Krebs. Aqueles olhos desbotados, notou, depois do primeiro choque, tinham-se fixado no prato. Ao chegar atrás dele, ficou encantado por ver um “galo” enorme coberto com esparadrapo no alto da cabeça de Krebs.
— Sim, vá-se deitar, Miss Brand, eu lhe falo amanhã — disse Drax.
Gala, obedientemente, saiu da sala, e Sir Hugo voltou para sua cadeira, ali tombando pesadamente.
— São simplesmente notáveis estes penhascos — comentou Bond, alegremente. — É uma coisa que nos inspira um respeito cheio de temor, caminhar ao lado deles conjeturando se vão escolher justamente aquele instante para desabar em cima da gente. Lembra-me a roleta russa. No entanto, nunca se lê nada a respeito de pessoas mortas por penhascos que lhes tombaram em cima.
Fez uma pausa:
— A propósito, que é que você dizia a respeito do desmoronamento de um penhasco ainda há pouco?
Ouviu-se um débil grunhido à direita de Bond, seguido de um tinido de vidro e louça, quando a cabeça de Krebs caiu para frente, em cima da mesa.
Bond olhou para ele com um ar de curiosidade polida.
— Walter — chamou Drax enérgico. — Não está vendo que Krebs está doente? Leve o homem para fora e ponha-o na cama. E não o trate com muita indulgência. Ele bebe demais. Vamos. Depressa.
Walter, com o rosto franzido e encolerizado, contornou a mesa e levantou a cabeça de Krebs de cima dos cacos. Segurou-o pela gola do casaco e puxou-o até a porta que dava para a copa, forçando-o a passar por ela.
— Du Scheisskerl! Marsch! — ordenou. — Ouviram-se sons abafados de pragas e tropeções. Em seguida uma porta bateu e reinou o silêncio.
— Ele deve ter tido um dia cheio de trabalho — disse Bond fitando Drax.
O homenzarrão suava abundantemente. Limpou o rosto com um gesto circular do guardanapo.
— Bobagem. Ele bebe — explicou, lacônico.
O garçom, ereto e imperturbável, apesar da aparição de Krebs e Walter na copa, trouxe o café. Bond tomou um pouco, aos goles. Esperou que a porta da copa tornasse a se fechar. Outro alemão, pensou. Com certeza já transmitiu a notícia ao pessoal dos alojamentos. Ou talvez a equipe toda não tomasse parte na história. Talvez houvesse um grupo dentro de outro. Se era assim, Drax estava a par? Sua atitude, quando Bond e Gala entraram pela porta, tinha sido difícil de definir. Teria uma parte de seu espanto sido dignidade ofendida, o choque de um homem vaidoso cujo programa fora perturbado por uma pequena secretária? Ele disfarçara tudo muito bem. E passara a tarde inteira lá no interior do cilindro supervisionando o recebimento de combustível. Bond resolveu provocá-lo um pouco.
— Como ocorreu a operação combustível? — perguntou com os olhos fixos no outro.
Drax acendia um longo charuto. Encarou Bond por dentro da fumaça e da chama do fósforo.
— Òtimamente. — Sugou o charuto para acendê-lo bem. — Está tudo pronto agora. Os guardas estão fora. Uma ou duas horas de limpeza lá embaixo, pela manhã, e então a base será fechada. É verdade, vou levar Miss Brand a Londres comigo, amanhã de tarde. Vou precisar de uma secretária e de Krebs. Tem algum projeto?
— Também preciso ir a Londres — disse Bond, num impulso. — Tenho meu relatório final para apresentar no Ministério.
— Ah, sim? — perguntou Drax — A respeito de quê? Pensei que estivesse satisfeito com o que organizamos.
— Estou sim — respondeu Bond, sem nenhuma expressão particular.
— Pois então está tudo certo — disse Drax, num tom de voz despreocupado. — E agora, se você não se opõe, tenho alguns papéis à minha espera no meu gabinete. De modo que vou desejar-lhe uma boa-noite — finalizou, levantando-se da mesa.
— Boa-noite — respondeu Bond para a figura que já ia afastando-se. Terminou o café e, passando pelo hall, dirigiu-se ao quarto. Via-se claramente que tinha sido novamente revistado. Deu de ombros. Havia apenas a pasta de couro. Seu conteúdo não revelaria nada, a não ser que estava equipado com os utensílios de seu ofício.
A Bereta com o coldre de ombro continuava no lugar onde a tinha escondido, no estojo de couro vazio que pertencera aos binóculos de Tallon. Retirou a pistola e colocou-a debaixo do travesseiro.
Depois, tomou um banho quente e gastou meio vidro de iodo nos cortes e contusões que pôde alcançar. Finalmente, foi para a cama e apagou a luz. O corpo lhe doía e ele estava exausto.
Pensou em Gala por alguns instantes. Dissera-lhe que tomasse uma pílula para dormir e que trancasse a porta do quarto, mas que, fora disso, não se preocupasse com coisa alguma até de manhã.
Antes de esvaziar o cérebro de todos os pensamentos para adormecer, ficou matutando de maneira pouco tranquilizante a respeito da viagem dela acompanhada de Drax no dia seguinte.
De modo pouco tranquilo, porém não desesperado. No tempo devido, muitas perguntas teriam de ser respondidas, e muitos mistérios viriam à tona, mas os fatos básicos pareciam sólidos e irrespondíveis. Esse extraordinário milionário construíra aquela possante arma. O Ministério de Abastecimento parecia satisfeito com ela e considerava seguro o projeto. O Primeiro-Ministro e o Parlamento eram do mesmo parecer. O foguete devia ser lançado dentro de menos de trinta e seis horas, sob uma supervisão completa, e as providências quanto à segurança eram tão severas quanto possível. Alguém, provavelmente muitas pessoas mesmo, desejavam vê-lo, assim como a pequena, fora de combate. Os nervos estavam tensos ali. Sentia-se no ar uma grande dose de tensão nervosa. Talvez houvesse rivalidades e invejas. Talvez alguns dos membros da equipe suspeitassem que eles fossem sabotadores. Mas que diferença fazia, contanto que ele e Gala se mantivessem de olhos bem abertos? Não precisavam ter cuidado senão por pouco mais de um dia. Encontravam-se em espaço aberto, no mês de maio, na Inglaterra, em tempo de paz. Seria loucura preocupar-se com alguns lunáticos, desde que o “Explorador da Lua” ficasse fora de perigo.
Quanto ao dia seguinte, refletia Bond, quando o sono chegou até ele, daria um jeito para encontrar-se com Gala em Londres e trazê-la de volta consigo. Ou ela poderia ficar em Londres e passar a noite lá. De um ou de outro modo, ele olharia por ela até o “Explorador da Lua” ser lançado com toda a segurança. Depois então, antes que o trabalho começasse na arma Mark II, deveria haver uma completa e minuciosa operação limpeza.
Esses pensamentos, porém, eram traidoramente reconfortantes. Havia perigo no ar, e Bond sabia disso.
Finalmente adormeceu com uma pequenina cena firmemente gravada no espírito.
Observara uma coisa deveras inquietante na mesa do jantar lá embaixo. Fora posta para três pessoas somente.
TERCEIRA PARTE
QUINTA, SEXTA-FEIRA
CAPITULO 18
DEBAIXO DA LÁPIDE
O Mercedes era uma coisa linda. Bond trouxe o Bentley cinzento usado para junto dele e examinou-o .
Era um tipo 300 s, modelo esporte, com um capô que ia desaparecendo do mercado — um da única meia dúzia existente na Inglaterra, pensou. A direção do lado esquerdo. Provavelmente comprado na Alemanha. Tinha visto alguns desses por lá. Um até havia passado zunindo por ele quando, no Munich Autobahn, corria a noventa no seu Bentley. A carroçaria, curta e pesada demais para ser graciosa, era pintada de branco, com o estofamento em couro vermelho. Um tanto vistoso para a Inglaterra, mas Bond calculou que Drax escolhera branco em homenagem às cores famosas nas corridas dos Mercedes-Benz que já haviam alcançado novamente o pináculo da glória depois da guerra, tanto em Le Mans como em Nurburgring.
Típico de Drax comprar um Mercedes. Havia um quê de majestoso e cruel nesses carros, convenceu-se, lembrando os anos entre 1934 e 1939, quando haviam dominado inteiramente a cena do Grand Prix, descendentes diretos dos famosos Blitzen Benz que haviam batido o recorde de velocidade no ano de 1911. Bond lembrava-se de alguns de seus célebres volantes: Caracciola, Lang, Seaman, Brauschitz e dos dias em que os vira “voando” pelas curvas sinuosas de Tripoli, a 190, ou gritando ao passar pela reta margeada de árvores de Berna, com os Auto Unions seguindo-lhes bem de perto.
No entanto, Bond lançou um olhar ao seu Bentley, quase vinte e cinco anos mais velho que o carro de Drax e ainda capaz de fazer 100 por hora, todavia, quando os Bentley tomavam parte em corridas, antes de os Rolls terem-nos transformado em pacatos carros urbanos, eles haviam batido os SS-K tantas vezes quanto haviam desejado.
Outrora Bond andara lidando e quase partilhara das emoções do mundo das corridas, de modo que se perdia em recordações, ouvindo novamente o rugido áspero do enorme monstro branco de Caracciola, ao passar zunindo pelos postos de Le Mans, quando Drax saiu de casa seguido por Gala Brand e Krebs.
— É um carro muito veloz — disse Drax, satisfeito com o olhar de admiração de Bond.
Fez um gesto em direção ao Bentley.
— Costumavam ser bons, no passado — acrescentou com um quê de indulgência superior. — Atualmente estão sendo fabricados para ir ao teatro. Bem comportados demais. Mesmo o Continental. Bem, você aí, entre para o banco de trás.
Krebs subiu, obediente, para o estreito assento preto, por trás do chofer. Sentou-se de lado, a capa de chuva suspensa até as orelhas, os olhos fixos enigmàticamente em Bond.
Gala Brand, elegante num costume cinza-escuro, boina preta, trazendo nas mãos um impermeável preto, leve, e luvas, subiu para a metade direita do dividido assento da frente. A porta larga se fechou com o rico estalido duplo de uma caixa Fabergé.
Não houve nenhum sinal entre Bond e Gala. Haviam traçado seus planos num encontro cochichado no quarto dele antes do almoço — jantar em Londres às sete e meia e então a volta para casa no carro de Bond. A moça sentara-se muito séria, as mãos no colo e os olhos postos em frente, quando Drax subiu, apertou o arranque e mexeu com a mudança até colocá-la em terceira. O carro foi seguindo quase sem produzir ruído no cano de descarga, e Bond observou-o desaparecer por entre as árvores antes de subir no Bentley e seguir calmamente atrás dele.
Dentro do veloz Mercedes, Gala entretinha-se com os próprios pensamentos. A noite passara sem nada acontecer, e a manhã fora dedicada à limpeza da base de lançamento, dela se retirando tudo que tivesse possibilidade de queimar quando o “Explorador da Lua” fosse lançado. Drax não se referira aos acontecimentos do dia anterior, e não houvera nenhuma modificação em suas maneiras habituais. Preparara o último plano de lançamento (o próprio Drax deveria executá-lo no dia seguinte) e, como de costume, Walter fora chamado e, através de seu orifício de observação ela vira os números serem anotados no caderninho preto de Drax.
Era um dia quente, ensolarado, e Drax guiava em mangas de camisa. Gala baixou os olhos para a esquerda, onde a pontinha do caderno aparecia-lhe no bolso da calça. Essa viagem poderia ser a sua última chance. Desde a noite anterior, sentia-se uma pessoa diferente. Talvez Bond tivesse despertado seu espírito de competição, talvez fosse uma reviravolta de sentimentos por bancar a secretária durante tanto tempo, talvez o choque da queda do penhasco e o prazer de verificar, depois de tantos meses de pasmaceira, que tomava parte num jogo perigoso. Mas agora sentia que chegara a hora de arriscar-se. A descoberta do plano de voo do “Explorador da Lua” era um caso de simples rotina e lhe causaria satisfação pessoal descobrir o segredo do caderninho de notas preto. Seria fácil.
Como por acaso, colocou o casaco dobrado no espaço compreendido entre ela e Drax. Ao mesmo tempo, fingiu arrumar-se de maneira mais confortável, aproveitando-se da movimentação para chegar-se alguns centímetros mais para perto dele. Descansou a mão nas dobras da capa entre os dois. Depois acomodou-se à espera.
A oportunidade chegou, conforme calculara, no tráfego congestionado de Maidstone. Drax, atento, tentava vencer a sinalização na esquina de King Street com Gabriel’s Hill, mas a fila dos carros era muito lenta, e ele teve de parar atrás de um automóvel velho e fechado. Gala percebeu que, quando as luzes mudassem, ele se disporia a passar em frente e dar-lhe uma lição. Era um chofer notável, mas vingativo e impaciente, desses que estão sempre dispostos a deixar uma lembrança em qualquer carro que os detenha. ...
Quando as luzes ficaram verdes, deu uma violenta buzinada em três sons, encostou à direita, no cruzamento, acelerou brutalmente e avançou, sacudindo a cabeça, colérico, para o chofer do coupé, assim que este passou.
No meio dessa manobra violenta, era natural que Gala caísse por cima dele. Ao mesmo tempo, mergulhou a mão esquerda sob o casaco, e seus dedos tocaram, sentiram e retiraram o caderninho num só movimento suave. Logo depois, repunha a mão nas dobras do casaco, e Drax, toda a atenção concentrada nos pés e nas mãos, nada via além do trânsito à sua frente e as oportunidades de chegar à parte externa listrada do Royal Star, sem atingir duas mulheres e um menino que se encontravam já a meio caminho para lá.
Agora era uma questão de enfrentar o grunhido de raiva de Drax, quando, com uma vozinha virginal mas ansiosa, lhe pedisse para parar um momento, a fim de que ela empoasse o nariz.
Uma garage seria perigoso. Ele poderia resolver mandar encher o tanque de gasolina. Talvez também levasse o dinheiro no bolso da calça. Mas haveria um hotel? Sim, ela se lembrava, o Thomas Wyatt, logo depois de Maidstone. Puxou o casaco para o colo. Limpou a garganta.
— Oh, desculpe-me, Sir Hugo — disse com a voz embargada .
— Então, que é que há?
— Sinto imensamente, Sir Hugo. Mas não seria possível o senhor parar um minutinho só. Eu quero, quer dizer, eu peço que me desculpe, mas eu gostaria de empoar o nariz. É uma coisa estúpida de minha parte. Lamento sinceramente.
— Oh, meu Deus! — exclamou Drax. — Por que diabo a senhorita não... Oh, está bem. Arrange um lugar então.
Resmungou dentro dos bigodes, mas diminuiu a marcha do carro.
— Há um hotel bem na virada dessa curva — disse Gala, nervosa. — Muito obrigada, Sir Hugo. Foi estupidez minha. Não me demorarei nada. É esse mesmo, olhe ali.
O carro se dirigiu para a frente do hotelzinho e parou com um arranco.
— Vamos, vamos, depressa — disse Drax, no momento em que Gala, deixando a porta do carro aberta, apressava-se obediente pelos pedregulhos, o casaco e seu precioso segredo bem apertados contra o corpo.
Trancou a porta do toalete e abriu o caderninho de notas.
Ali estavam, tal como havia pensado. Em cada página, sob a data, a coluna ordenada dos números, a pressão atmosférica, a velocidade do vento, a temperatura, conforme ela havia registrado, de acordo com os dados do Ministério da Aeronáutica. No fim de cada página, as direções calculadas para as bússolas do giroscópio.
Gala franziu a testa. A um simples olhar, percebeu que estavam completamente diferentes dos dela. Os números de Drax não tinham a menor relação com os seus.
Virou a última página completa, contendo os cálculos daquele dia. Que era aquilo? Ela se enganara em quase noventa graus do curso calculado. Se o foguete fosse lançado de acordo com seu plano de voo, iria aterrissar num ponto qualquer da França. Olhou desesperada o próprio rosto no espelho acima do lavatório. Como poderia ter-se enganado de forma tão monstruosa? E por que Drax nunca havia lhe falado nisso? Percorreu rapidamente todo o caderninho de novo, verificando que diariamente se enganara em noventa graus, lançando o “Explorador da Lua” em ângulos corretos para sua verdadeira direção. No entanto, não era possível ter feito um erro assim tão grande. O Ministério conheceria esses cálculos secretos? E por que deveriam ser secretos?
Repentinamente seu espanto transformou-se em medo. Precisava chegar de qualquer maneira a Londres, sem despertar atenção e a salvo. Aí então contaria a alguém. Mesmo que fosse chamada de idiota ou intrometida.
Friamente, virou diversas páginas do livro, pegou a lima de unhas de dentro da bolsa e, tão certinho quanto pôde, cortou uma das páginas, enrolou-a numa bolinha apertada e enfiou-a na ponta do dedo de uma das luvas.
Olhou-se no espelho. Seu rosto estava pálido, e esfregou depressa as faces para fazer voltar a cor. Em seguida, afivelou à fisionomia a expressão de secretária que se desculpa, e saiu correndo pela passagem coberta de pedregulhos até o carro, com o caderninho agarrado na mão, entre as dobras da capa.
O motor do Mercedes já funcionava. Drax fitou-a impaciente, enquanto ela retornava ao seu lugar.
— Vamos. Vamos — disse, engrenando o carro em prise e tirando o pé do freio, de modo que ela quase ficou com o tornozelo preso na pesada porta. Os pneumáticos deslizaram pelo caminho pedregoso, quando ele acelerou, saindo do ponto de estacionamento, e retomou a estrada para Londres.
Gala foi atirada para trás, mas lembrou-se de deixar a capa, com a mão culposa em suas dobras, cair no assento entre ela e Drax.
Agora, precisava tratar de recolocar o caderninho no bolso de trás das calças dele.
Observou o velocímetro marcar mais ou menos cento e dez, quando Drax arremeteu o pesado carro pela estrada.
Procurou lembrar-se de suas lições. Uma pressão para desviar a atenção, em qualquer outra parte do corpo. Distrairia a atenção. Distração. A vítima não pode estar à vontade. Seus sentidos devem concentrar-se bem longe dali. Deve ficar alheio ao toque em seu corpo. Anestesiado por um estímulo mais forte.
Como agora, por exemplo. Drax, curvado sobre o volante, lutava por uma oportunidade de ultrapassar um reboque pesado da RAF, mas o tráfego que vinha em sentido oposto não deixava um espaço no meio da estrada. De repente, houve uma trégua, e Drax movimentou a mudança em segunda, passando pela brecha, enquanto a buzina berrava, imperiosamente.
A mão de Gala procurou a esquerda, debaixo do casaco.
Mas outra mão bateu-lhe como uma serpente.
— Apanhei-a.
Krebs se inclinava até a metade do corpo por cima do assento do chofer. Sua mão esmagava a sua na capa escorregadia do caderninho de notas, sob as dobras da capa.
Gala permanecia sentada e rígida. Com toda a força procurou arrancar a mão. Não adiantou. Krebs largava todo seu peso sobre ela agora.
Drax ultrapassara o reboque, e a estrada estava limpa, no momento. Krebs falou aflito em alemão:
— Por favor, pare o carro, mein Kapitän. Miss Brand é uma espiã.
Drax lançou um olhar assustado à direita. O que viu foi o bastante. Baixou a mão rapidamente para o bolso das calças e depois, lenta, deliberadamente, recolocou-a no volante.
— Segure-a — ordenou. Freou tão forte que os pneus cantaram, fez a mudança e desviou o carro para o lado da estrada. Alguns quilômetros mais abaixo levou-o para um lado e parou.
Drax olhou para cima e para baixo da estrada. Estava deserta. Esticou uma das mãos enluvadas e torceu o rosto de Gala para seu lado.
— Que significa isto?
—Posso explicar-lhe, Sir Hugo. — Gala tentava blefar, apesar do horror e desespero que sabia estarem estampados em seu rosto.
— É um engano. Eu não tinha intenção... Acobertada por um colérico dar de ombros, sua mão direita moveu-se de leve por detrás e o indiciado par de luvas foi enfiado por trás da almofada de couro.
— Sehen sie her, mein Kapitän. Vi quando ela se chegava para perto do senhor. Isto me pareceu esquisito.
Com a mão livre, Krebs atirara a capa para longe, e lá estavam os dedos curvos de sua mão esquerda firmemente dobrados sobre a capa do caderninho, distante ainda alguns centímetros do bolso da calça de Drax.
— Ah, então é assim!
A palavra saiu mortalmente fria e com a finalidade de arrepiar.
Drax largou-lhe o queixo, mas os olhos horrorizados de Gala permaneceram presos aos dele.
Uma espécie de gélida crueldade transparecia através da alegre fachada de sua pele e das suíças vermelhas. Era um homem diferente. O homem por trás da máscara. A criatura que jazia sob a lápide que Gala Brand levantara.
Drax tornou a olhar para cima e para baixo da estrada deserta.
Depois, fitando cauto os olhos azuis subitamente alertas, puxou a luva de couro para dirigir da mão esquerda e, com a direita, bateu tão fortemente quanto pôde, com a luva, no rosto da moça.
Apenas um gritinho escapou da garganta apertada de Gala, mas lágrimas de dor escorreram-lhe pelas faces. Repentinamente, começou a lutar como uma louca.
Com toda a força, insurgia-se e debatia-se contra os dois braços de ferro que a continham. Com a mão direita livre, tentou alcançar o rosto que se inclinava para sua mão e acertá-lo nos olhos. Mas Krebs desviou a cabeça facilmente, colocando-a fora de seu alcance e, calmamente, aumentou a pressão em sua garganta, sibilando furioso quando as unhas dela arrancavam tiras de pele das costas de suas mãos, porém observando, com olhos de cientista, que os esforços dela iam esmorecendo.
Atento, Drax assistia a tudo, com um olho na estrada, esperando, até que Krebs a subjugou. Então, pôs novamente o carro em movimento e dirigiu-o cuidadosamente ao longo da estrada do bosque. Grunhiu de satisfação quando chegou a uma picada, fez uma volta e só parou quando se encontrou bem fora do alcance da vista de quem passasse pela estrada.
Gala acabara de perceber que não havia mais ruído nos motores, quando ouviu Drax dizer: “Aqui.” Um dedo tocou-lhe o crânio, por trás da orelha esquerda. O braço de Krebs se afastou de sua garganta, e ela reclinou-se aliviada para a frente, procurando respirar. Foi então que qualquer coisa se chocou contra sua nuca, no ponto onde o dedo tocara, e seguiu-se um lampejo de dor maravilhosamente misericordioso, logo secundado por profundas trevas.
Uma hora depois, os transeuntes viram um Mercedes branco parar diante de uma pequena casa na extremidade do Buckingham Palace, que fica na Ebury Street, e dois senhores bondosos ajudarem uma moça doente a descer pela porta da frente. Os que estavam perto observaram que o rosto da pequena estava muito pálido, que seus olhos estavam fechados e que os senhores bondosos quase tiveram de carregá-la pelos degraus acima. O senhor grandalhão, de cara e suíças vermelhas, disse bem distintamente ao outro, e várias pessoas ouviram-no, que a pobre Mildred tinha prometido que não sairia enquanto não estivesse perfeitamente bem. Tudo muito triste.
Gala voltou a si num aposento grande lá em cima, que lhe pareceu entulhado de máquinas. Estava fortemente amarrada a uma cadeira e, além da dor dilacerante que sentia na cabeça, sentia os lábios e as faces machucados e inchados.
Pesadas cortinas haviam sido puxadas nas janelas, e sentia-se um cheiro de mofo no quarto, como se fosse usado raramente. Havia poeira sobre as poucas peças de mobiliário convencional, e só os mostradores de cromo e ebonite das máquinas pareciam limpos e novos. Ela pensou que, provavelmente, se encontrava num hospital. Fechou os olhos e se pôs a conjeturar. Não tardou muito que se recordasse de tudo. Passou vários minutos se controlando e depois tornou a abrir os olhos.
Drax, de costas para ela, observava o mostrador de uma máquina que se assemelhava a um aparelho de rádio, em ponto maior. Três máquinas semelhantes ali estavam também, e de uma delas uma antena fina de aço elevava-se até um orifício grosseiro que fora feito no gêsso do teto. A sala achava-se brilhantemente iluminada por diversos suportes bem altos, cada um deles contendo uma lâmpada de muitos wats.
À sua esquerda ouviu um barulho de latas batidas e, revirando os olhos semicerrados dentro das órbitas, coisa que lhe piorou muito a dor de cabeça, viu a figura de Krebs curvado sobre um gerador elétrico no chão, ao lado do qual estava um pequeno motor a gasolina, e era ele que produzia o ruído. De quando em quando Krebs agarrava a manícula de ligação e punha-a para funcionar com força. Um débil batimento vinha do motor, antes de voltar ao seu ruído metálico.
— Como é, seu cretino? — disse Drax em alemão. — Vamos com isto. Tenho de ir procurar aqueles malditos cabeças-de-pau do Ministério.
— Agora mesmo, mein Kapitän — disse Krebs humilde. Pegou novamente a manícula. Dessa vez, depois de duas ou três tossidas, o motor começou a funcionar, roncando.
Não fará muito ruído? — perguntou Drax.
— Não, mein Kapitän. A sala está preparada à prova de som — respondeu Krebs. — O Dr. Walter me garantiu que nada se ouvirá do lado de fora.
Gala fechou os olhos a concluiu que sua única esperança era fingir inconsciência, por quanto tempo lhe fosse possível. Teriam intenção de liquidá-la? Ali mesmo, naquela sala? E para que seriam todas essas máquinas? Pareciam um rádio ou, talvez, um painel de radar. Aquela cobertura de vidro curvo, por exemplo, por cima da cabeça de Drax, que emitira um lampejo quando ele manejava os botões embaixo dos mostradores.
Lentamente, seu cérebro recomeçou a trabalhar. Por que motivo Drax falava, de repente, num alemão perfeito? E por que Krebs se dirigia a ele como Herr Kapitän? E os números no caderninho negro, por que quase a mataram, só por ela os ter visto? Que intenções teriam?
Noventa graus, noventa graus.
Ansiosamente, seu espírito remoía o problema.
Noventa graus de diferença. Suponhamos que seus cálculos estivessem certos e equacionados constantemente em relação ao alvo, situado a 80 milhas para o Mar do Norte. Façamos uma simples suposição de que ela estivesse certa. Nesse caso, o foguete não estaria sendo apontado para o centro da França, no fim de contas. Mas, e os cálculos de Drax? Noventa graus para a esquerda de seu alvo, no Mar do Norte? Então, nalgum ponto da Inglaterra, presumivelmente. A oitenta milhas de Dover. Sim, era isso. Isso mesmo. Os números de Drax. O plano de lançamento no pequeno caderno negro. Eles atirariam o “Explorador da Lua”.. . bem no coração de Londres!
Em Londres! Em Londres!
Então é verdade isso de que o coração da gente parece que vai saltar pela boca. Que coisa estranha! Uma frase tão comum, e afinal era verdade. Ali estava ela de coração na boca, sem poder respirar, sufocada.
E agora, vejamos. . . Então aquele aparelho é um radar de retorno! Que coisa engenhosa. O mesmo que deveria estar colocado na jangada, em pleno Mar do Norte, orientando o voo do foguete. Mas isso faria com que o foguete viesse cair, afinal, num raio de ação que não excederia as cem jardas do Palácio de Buckingham. Mas isto teria importância, com uma cápsula cheia de instrumentos?
Foi, provavelmente, a crueldade da pancada de Drax, em seu rosto, que elucidou tudo. De repente, ela soube que seria uma bomba de verdade que seria colocada na cápsula, uma bomba atômica, e que Drax era um inimigo da Inglaterra. Sabia mais: que no dia seguinte, ao meio-dia, ele ia destruir Londres.
Gala fez um último esforço para compreender.
Através deste teto, desta cadeira, caindo no chão. A fina agulha do foguete. Tombando ligeira como a luz de um céu claro. As multidões na rua. O Palácio. As amas no parque. Os passarinhos nas árvores. O grande estrondo de chamas, circular e imenso. Depois, a nuvem em forma de cogumelo. E nada mais restaria. Nada. Nada. Nada.
— Não. Oh, Não!
Mas o grito foi só dentro de seu cérebro, e Gala, o corpo semelhante a uma batata preta, retorcida e encolhida no meio de milhões de outras, já desmaiara.
CAPITULO 19
PESSOA DESAPARECIDA
Bond estava sentado à sua mesa predileta num restaurante de Londres, a mesa do canto à direita, para duas pessoas, no primeiro andar, observando os transeuntes e o tráfego em Piccadilly e Haymarket, mais abaixo.
Eram 7,45 e seu segundo Vodca-Martini seco, com uma larga fatia de limão, acabava de ser trazido por Baker, o chefe dos garçons. Bond tomou um gole, imaginando porque Gala estaria atrasada. Aquilo não era dela. Gala era o tipo da pequena que telefonaria, se tivesse sido detida na Yard. Vallance, que ele visitara às cinco horas, dissera ser Gala esperada ali, em seu gabinete, às seis.
Ele se mostrara muito aflito por vê-la. Era um homem preocupado; e quando Bond relatou sucintamente os fatos relativos à segurança do “Explorador da Lua”, Vallance parecia estar escutando só com a metade do espírito concentrado no que ele dizia.
Ao que parece, naquele dia todo, houvera pesadas vendas de esterlino. Tinham começado em Tânger e espalharam-se, rapidamente, até Zurich e New York. A libra flutuara loucamente nos grandes mercados monetários do mundo, e os corretores obtiveram somas avultadas. O resultado total foi ter a libra baixado três xelins nesse dia, e as taxas de câmbio, para outras moedas, foram igualmente fracas. O assunto apareceu na primeira página dos vespertinos e, na hora de encerramento dos negócios, o Tesouro se comunicara com Vallance, contando-lhe a extraordinária novidade de que a onda de vendas fora iniciada pela Drax Metals Limited, em Tânger. A operação começara naquela manhã, e, ao terminar, a firma conseguira vender a moeda esterlina abaixo do custo, até um montante de vinte milhões de libras. Aquilo fora demais para o mercado, e o Banco de Inglaterra vira-se na obrigação de interferir, a fim de deter uma queda ainda mais violenta. Fora então que a Drax Metal entrara novamente em cena, como compradora.
Agora o Tesouro queria saber o que significava tudo aquilo — se era o próprio Drax quem vendia, ou uma das grandes empresas de serviços públicos que eram suas clientes. A primeira coisa que fizeram foi recorrerem a Vallance. Só ele podia pensar que, de um modo ou de outro, o “Explorador da Lua” ia ser um fracasso, e Drax, sabendo disso, desejava aproveitar-se desse conhecimento da melhor maneira. Telefonou imediatamente ao Ministério de Abastecimentos, mas aí, não tinham levado a sério tal ideia. Não havia motivos para pensar que o foguete pudesse resultar num fracasso, até porque, se seu voo experimental não fosse bem sucedido, o fato seria remediável pelas explicações que ele transmitiria sobre deficiências técnicas, etc. De qualquer modo, fosse ou não o foguete um completo êxito, não poderia haver reação possível no crédito financeiro britânico. Não, eles não cogitariam, em absoluto, de mencionar o assunto ao Primeiro-Ministro. Drax Metals Limitada era uma grande organização comercial. O mais provável é que estivessem agindo por conta de algum governo estrangeiro. Talvez a Argentina. Mesmo a União Soviética, quem saberia? Alguém com grandes reservas monetárias de esterlino. Enfim, não era nada que dissesse diretamente respeito ao Ministério ou ao “Explorador”, que seria lançado pontualmente às doze horas do dia seguinte.
Aquilo parecera razoável a Vallance, porém ele ainda estava preocupado. Não gostava de mistérios e alegrava-se por poder partilhar suas preocupações com Bond. Acima de tudo, desejava perguntar a Gala se ela vira algum cabograma de Tânger e, no caso afirmativo, se Drax fizera algum comentário sobre ele.
Bond estava certo de que Gala teria comentado qualquer coisa sobre isto com ele, e disse o mesmo a Vallance. Haviam conversado um pouco mais, e então Bond saíra para a sua repartição, onde M. o esperava.
M. se interessara por tudo, até pelas cabeças raspadas e pelos bigodes dos homens. Interrogou Bond minuciosamente, e quando este terminou sua história, com os pontos principais de sua conversação com Vallance, M. permaneceu muito tempo perdido em meditação.
Finalmente disse:
— 007, não me agrada nenhum pormenor dessa história. Há qualquer coisa que está acontecendo lá na base, mas eu não consigo de jeito nenhum chegar a uma conclusão. E nem vejo em que ponto possa interferir. Todos os fatos são conhecidos pela Seção Especial e pelo Ministério. Só Deus sabe que eu não posso acrescentar-lhes mais nada. Mesmo que eu trocasse ideias com o PM, coisa que seria muito injusta para com Vallance, que deveria dizer-lhe? Relatar-lhe que fatos? Que significa tudo isto? Não existe nada de concreto. Só o cheiro do negócio. E é um mau cheiro. Se não me engano, um cheiro que se estende até longe.
Olhou para Bond, e seus olhos refletiam um que de incomumente ansioso.
— Parece que tudo terá de depender de você. E dessa moça. Você está com sorte, se ela fôr boazinha. Deseja alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
— Não, muito obrigado — dissera Bond e se encaminhara pelos corredores familiares, descendo pelo elevador até o seu próprio escritório, onde aterrorizara Loelia Ponsoby, dando-lhe um beijo ao lhe desejar boa-noite. As únicas ocasiões em que fazia tal coisa eram no Natal, no dia do aniversário dela e pouco antes de ter de fazer uma coisa perigosa.
Bond tomou o resto do Martini e olhou o relógio. Já eram oito horas, e ele sentiu um súbito arrepio.
Levantou-se da mesa e foi direto ao telefone.
A mesa telefônica da Yard disse que o Comissário-Assistente havia tentado entrar em contato com ele. Tivera de comparecer a um jantar na Mansion House. O Comandante Bond poderia fazer o favor de esperar na linha? Bond esperou impaciente. Todos os seus receios o dominaram, provindos do objeto de baquelita preta. Via em imaginação as filas de rostos bem educados. O garçom uniformizado procurando lentamente abrir caminho até Vallance. A cadeira puxada para trás rapidamente. A saída discreta. Aquelas passagens de pedra ressoantes. A cabina discreta. O telefone gritou-lhe:
— É você, Bond? Aqui é o Vallance. Soube alguma coisa de Miss Brand?
O coração de Bond esfriou.
— Não. Ela está com meia hora de atraso para o jantar. Não apareceu às seis?
— Não, de modo que eu mandei uma “pista” investigar, e não se viu o menor sinal dela no endereço em que costuma ficar habitualmente, quando vem a Londres. Nenhum de seus amigos a viu. Se ela saiu do carro de Drax às duas e meia, deveria estar em Londres às quatro e meia. Não houve nenhum acidente na estrada de Dover esta tarde, e os AA e RCA são negativos. Houve uma pausa.
Agora, escute uma coisa.
Sentia-se um apelo ansioso na voz de Vallance:
— Ela é uma boa pequena, e eu não quero que nada lhe aconteça. Você quer cuidar disso para mim? Eu não posso espalhar um aviso geral a respeito. Aquelas mortes lá na base tornaram-na notícia, e nós teríamos toda a imprensa nos atormentando. Vai ser ainda pior depois das dez horas de hoje. Downing Street vai fazer um comunicado sobre o lançamento experimental, e os jornais de amanhã não vão tratar de outra coisa que não seja o “Explorador da Lua”. O PM vai irradiar. O desaparecimento da moça transformaria tudo numa história de crime. O dia de amanhã era muito importante para se cogitar disso e, além do mais, a moça podia ter tido um desmaio ou qualquer coisa assim. Mas eu desejo que seja encontrada. Então? Que me diz você? Pode tratar do caso? Pode contar com todo o auxílio que desejar. Avisarei o Oficial de Serviço que deve receber suas ordens.
— Não se preocupe. Está claro que vou tratar do assunto. — Fez uma pausa enquanto a mente galopava. — Diga-me só uma coisa. Que é que sabe a respeito dos movimentos de Drax?
— Não era esperado no Ministério senão às sete — disse Vallance. — Deixei dito.... — Houve um rumor confuso na linha, e Bond ouviu Vallance dizer “Obrigado”. Depois voltou para a linha:
— Acabo de ter uma notícia que me foi dada pela polícia metropolitana. A Yard não conseguiu comunicar-se comigo pelo telefone. Eu estava falando com você. Deixe-me ver. — Foi lendo: “Sir Hugo Drax chegou ao Ministério às 19 horas e saiu às 20. Deixou o recado que estaria jantando no Blades, caso desejassem encontrá-lo. Estaria de volta à base às 23 horas”. Vallance comentou:
— Isto significa que deixará Londres mais ou menos às nove. Um momento. — Continuou a ler:
“Sir Hugo avisou que Miss Brand não se sentiu bem ao chegar a Londres, mas que, a seu pedido, ele deixou-a no ponto do ônibus, em Victoria Station, às 16.45. Miss Brand declarou que descansaria em casa de alguns amigos, endereço ignorado, e entraria em contato com Sir Hugo, no Ministério, às 19 horas. Não o fez”. E é só — concluiu Vallance. — Ah, é verdade, nós procuramos informar-nos a respeito de Miss Brand em relação a você. Disse que você havia combinado encontrá-la às seis e que ela não tinha aparecido.
— Está bem — disse Bond, com os pensamentos longe. — Isto não parece elucidar coisa alguma. Terei de me mexer. Só mais uma coisa. Drax tem um lugar onde costuma ficar em Londres, apartamento ou coisa semelhante?
— Atualmente fica sempre no Ritz — informou Vallance. — Vendeu a casa de Grosvenor Square, quando se mudou para Dover. Mas sabemos que possui uma espécie de estabelecimento em Ebury Street. Verificamos ali. Contudo, não atenderam a campainha, e o meu funcionário disse que a casa parecia desocupada. Fica bem atrás do Palácio de Buckingham. É assim uma espécie de esconderijo dele. Conserva-o muito oculto. Provavelmente leva suas mulheres para lá. Mais alguma coisa? Tenho de voltar, do contrário esses figurões vão pensar que as joias da Coroa foram roubadas.
— Volte então. Eu farei o que estiver ao meu alcance, e, se ficar atrapalhado, chamarei seus homens para me socorrer. Não se preocupe se não tiver notícias minhas. Até logo.
— Até logo — disse Vallance com um tom de alívio na voz. — Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte.
Bond desligou. Depois pegou o telefone novamente e ligou para o Blades.
— Aqui é o Ministro do Abastecimento — falou. — Sir Hugo Drax se encontra no clube?
— Está aqui, sim senhor — respondeu a voz amistosa de Brevett. — Ele está na sala de jantar. Quer falar com ele?
— Não, não é preciso. Eu só queria certificar-me se ele ainda estava aí.
Sem reparar no que estava comendo, Bond engoliu qualquer coisa e saiu do restaurante às 8.45. Seu automóvel achava-se do lado de fora esperando e, depois de dar boa-noite ao chofer da repartição, dirigiu-se à St. James Street. Estacionou encoberto pela fuá central dos táxis do lado de fora do Boodle e acomodou-se atrás de um jornal da tarde, por cima do qual podia manter os olhos numa parte do Mercedes de Drax, verificando, aliviado, que o carro estava estacionado em Park Street, sem ninguém para vigiá-lo.
Não precisou esperar muito tempo. De repente, uma larga faixa de luz amarela brilhou na soleira da porta do Blades, e a figura volumosa e alta apareceu. Trajava um sobretudo longo e frouxo, cujas lapelas haviam sido erguidas até as orelhas, e um boné puxado para cima dos olhos. Encaminhou-se depressa para o Mercedes branco, bateu a porta e dirigiu-se para o lado esquerdo da St. James Street. Diminuiu a marcha em seguida, para virar defronte ao St. James Palace, enquanto Bond ainda manejava uma terceira.
Puxa, o homem se movimenta depressa, pensou Bond, executando uma volta rápida em torno da ilha no Mall, com Drax já ultrapassando a estátua em frente ao Palácio. Conservou o Bentley em prise e entregou-se a uma violenta perseguição. Portão do Buckingham Palace. Quer dizer que devia ser a Ebury Street. Sem perder de vista o carro branco, Bond elaborou planos rápidos. Os sinais luminosos da esquina de Lower Grosvenor Place estavam verdes, quando Drax passou, e mudaram para vermelho no momento em que Bond precisou seguir. Bond furou o sinal e chegou a tempo de ver Drax virar para a esquerda, no princípio da Ebury Street. Apostando em como ele iria parar à porta de sua casa, Bond acelerou até a esquina e freou pouco antes de atingi-la. Quando saltou do Bentley deixando o motor ligado e deu os poucos passos que o levariam à Ebury Street, ouviu duas breves buzinadas do Mercedes. Rodeando cautelosamente a esquina, ainda teve tempo de ver Krebs ajudando a transportar a figura de uma pequena embuçada para atravessarem a calçada. Em seguida, a porta do Mercedes foi batida, e Drax tornou a correr.
Bond correu para o seu carro, engrenou, passou a prise e seguiu no encalço de Drax.
Graças a Deus o Mercedes era branco. Lá ia ele, as luzes traseiras acendendo-se rapidamente nos cruzamentos, os faróis bem vivos e a buzina funcionando a qualquer momento em que parecia haver um impedimento do trânsito, calmo àquela hora.
Bond cerrou os dentes e tocou o carro como se fosse um Lipizaner na Escola de Corridas Espanhola em Viena. Não podia usar faróis ou buzina, com medo de trair sua presença para o carro que ia na frente. Tinha de contentar-se em lidar com as mudanças e freios, fazendo votos para tudo dar certo.
O som profundo do seu cano de descarga de duas polegadas voltava-lhe aos ouvidos, depois de bater nas casas de ambos os lados, e os pneumáticos guinchavam no asfalto. Ele dava graças aos céus pelo novo jogo de Michelins de corrida que comprara há uma semana apenas. Se ao menos os sinais luminosos lhe fossem propícios. Parecia-lhe que só encontrava amarelo e vermelho, enquanto que Drax ia sendo sempre favorecido pelos verdes. Chelsea Bridge. Então parecia que o caminho era mesmo o de Dover, pela South Circular! Poderia esperar manter-se junto ao Mercedes na A20? Drax levava dois passageiros. Seu carro poderia não estar em condições. Mas com aquela suspensão independente podia escapar melhor que Bond. O velho Bentley ficava um pouco elevado demais, em relação ao terreno, para esse tipo de trabalho. Bond apertou os freios e arriscou uma buzinada de seus tríplices klaxons, quando um táxi, de volta para o ponto, começou a atravessar para a direita. O táxi deu uma guinada para a esquerda, e Bond ouviu um palavrão, ao passar voando por ele.
Clapham Common e um carro branco vislumbrado por entre as árvores. Bond acelerou o Bentley para oitenta durante o pequeno trajeto seguro e viu as luzes mudarem para vermelho bem a tempo de fazer Drax parar.
Pôs então o Bentley em ponto morto e foi seguindo o outro silenciosamente. Cinquenta jardas mais distante. Quarenta, trinta, vinte. O sinal mudou, e Drax transpôs o cruzamento e tornou a se distanciar, mas não sem que Bond tivesse visto que Krebs estava ao seu lado e que não havia o menor sinal de Gala, exceto o monte envolto por um tapete em cima do estreito assento traseiro.
Quer dizer que não havia dúvida. Não se leva uma moça doente dentro de um carro como se ela fosse um saco de batatas. Nem tampouco nessa velocidade. Com que então ela era uma prisioneira. Por quê? Que tinha feito? Que havia descoberto? Que diabo, afinal, significava tudo aquilo?
Cada conjetura sombria chegava e, por um instante, pousava como um urubu no ombro de Bond e crocitava em seu ouvido que ele fora um rematado idiota e cego. Cego, cego, cego. Desde o momento em que se sentara em seu escritório depois daquela noite no Blades e chegara à conclusão de que Drax era um homem perigoso, deveria ter ficado de sobreaviso. Ao primeiro sintoma de irregularidade, as marcas no mapa, por exemplo, deveria ter entrada em ação. Mas que ação? Analisara cada um dos indícios, cada receio. Que poderia ter feito, exceto matar Drax? E ser enforcado como prêmio de todos os seus trabalhos? Muito bem, então. Que dizer do momento presente? Deveria parar e telefonar para a Yard? E deixar o carro escapar? Pelo que tinha visto, Gala ia sendo levada, e Drax planejava livrar-se dela no caminho de Dover. Isto Bond poderia evitar, se o seu carro desse conta do recado.
Como que fazendo eco aos seus pensamentos, os torturados pneus guincharam, quando ele deixou a estrada South Circular, entrando na A20, e fez a curva a quarenta. Não. Ele dissera a M. que trataria do assunto. Dissera o mesmo a Vallance. O caso fora atirado firmemente em seu colo, e ele teria de fazer o que pudesse. Pelo menos se conseguisse manter uma distância relativa do Mercedes, poderia atirar nos pneumáticos e depois pedir desculpas. Deixá-lo escapar seria um crime.
Pois então, que assim fosse, disse Bond de si para consigo.
Teve de diminuir a marcha por causa de alguns sinais e aproveitou a pausa para retirar um par de óculos do porta-luvas e cobrir os olhos com eles. Depois, inclinou-se para a esquerda e torceu o parafuso grande no para-brisa, afrouxando depois o outro à sua mão direita. Apertou o estreito para-brisa para baixo e tornou a apertar os parafusos.
A seguir, acelerou, afastando-se de Swanley Junction e, dentro em breve, fazia noventa, descendo por Farningham, o vento uivando-lhe nos ouvidos e o grito de seu escape livre correndo com ele à guisa de companheiros.
Após uma milha, os grandes olhos do Mercedes se ocultaram, ao subir o aclive de Wrotham Hill, e desapareceram dentro do panorama enluarado de Weald of Kent.