A um quilômetro da base, aproximadamente, Drax estacou.
— Eu explicarei a geografia — disse ele. — Walter, siga na frente. Já devem estar esperando por você, para dar outra olhada naquelas barbatanas... Mas não se preocupe demasiado com elas, meu caro amigo. O pessoal das ligas de alto teor sabe muito bem o que está fazendo. E agora — continuou Drax, olhando para Bond, enquanto fazia um gesto na direção da cúpula branca como leite — ali dentro está o “Explorador”. O que você vê é o topo de uma plataforma que foi escavada a mais de quarenta pés de profundidade, no terreno calcário. As duas metades da cúpula são abertas hidràulicamente e recolhidas para trás, ao nível do muro de vinte pés. Se agora estivessem abertas, você veria o cone final do “Explorador”, ao nível do muro. Ali — apontou para uma sombra retangular que estava já quase fora do campo visual de ambos, na direção de Deal — fica a casamata de controle, de onde se comanda o disparo. É um blocausse em concreto. Está cheio de dispositivos de radar de rastreio — tanto o radar de velocidade Doppler como o radar de rastreio de direção de voo, por exemplo. As informações são fornecidas por meio de vinte canais telemétricos, alojados no cone do foguete. Também existe ali dentro uma enorme tela de televisão, de modo que se pode acompanhar o comportamento do foguete no interior da cápsula, depois de iniciado o voo. Um outro conjunto de televisores serve para acompanhar o início da ascensão. Ao lado da casamata, há um elevador que desce ao longo do penhasco. Uma boa parte das peças e maquinismos foi trazida para a base por via marítima e transportada até cá em cima por meio desse monta-cargas. Aquele gemido que você escuta, vem da central elétrica, ali mais adiante — e Drax fez um gesto vago, em direção a Dover. — Os alojamentos dos homens e a casa são protegidos pelo muro à prova de deslocação de ar. Mas quando fizermos o lançamento, não deverá haver ninguém dentro de um raio de ação de um quilômetro e meio, a partir da base, exceto os técnicos do Ministério e a equipe da B.B.C., que estará colocada na casamata de comando. Espero que o muro aguente bem a deslocação de ar. Walter diz que a base e uma boa parte da faixa de concreto derreterão com o calor. E é tudo. Nada mais precisa saber, até entrarmos. Vamos.
Bond tornou a observar o tom rude de comando. Seguiu em silêncio, atravessando uma zona banhada de luar, até chegarem à parede de suporte da cúpula. Uma lâmpada vermelha brilhava na parede, por cima de uma porta de aço chapeado. Iluminava um grande letreiro que dizia em inglês e alemão:
PERIGO DE MORTE.
ENTRADA PROIBIDA QUANDO A LÂMPADA VERMELHA ESTIVER ACESA.
TOQUE A CAMPAINHA E ESPERE.
Drax apertou o botão por debaixo do letreiro, e ouviu-se o som abafado de uma campainha de alarma.
— Pode estar alguém trabalhando com o oxiacetileno, ou fazendo qualquer outro trabalho delicado — explicou Drax. — Basta que desvie sua atenção do serviço, pela fração de um segundo, caso alguém entre sem aviso, e isso poderia resultar num erro bastante caro. Todos largam os utensílios quando a campainha soa, e só recomeçam quando veem de que se trata.
— Drax afastou-se um pouco da porta e apontou para uma série de gradeados dispostos logo abaixo do remate da parede. — São os exaustores de ventilação — continuou ele explicando.
— O ar condicionado no interior da cúpula mantém-se constantemente a setenta graus Farenheit.
A porta foi aberta por um homem que empunhava um cassetete de policial e trazia um revólver no cinturão. Bond seguiu Drax até uma pequena antecâmara. Esta nada tinha senão um banco e uma fileira bem arrumada de chinelos de feltro.
— Terá de calçá-los — disse Drax, sentando-se e tirando os sapatos. — Poderia escorregar e esbarrar contra alguém. O melhor é deixar aqui também seu casaco. Setenta graus Farenheit é uma temperatura bastante elevada.
— Obrigado — disse Bond, lembrando-se da Beretta encaixada sob a axila. — A verdade é que não sinto calor algum.
Sentindo-se como um visitante num teatro em dia de ensaios, Bond seguiu Drax através de uma porta de comunicação, passando depois por um estreito corredor e desembocando numa série de projetores que, instintivamente, o fizeram levar a mão aos olhos, enquanto com a outra se agarrava ao gradeado do corrimão protetor, à sua frente.
Quando retirou a mão, foi brindado com uma cena de tal esplendor que, durante vários minutos, ficou sem fala, os olhos fascinados pela terrível beleza da mais poderosa arma existente sobre a Terra.
CAPITULO 12
O “EXPLORADOR DA LUA”
Era como se o tivessem metido no tambor polido de um gigantesco revólver. Partindo do chão, a mais de doze metros abaixo da varanda onde se encontravam, erguia-se uma parede circular, de metal polido, no topo da qual, ele e Drax se colavam como duas moscas. No centro desse imenso cilindro, que mediria pelo menos uns nove metros de diâmetro, estava colocado um gigantesco lápis de cromo, refulgente, cuja ponta, aguçando-se numa antena fina como agulha, parecia roçar o telhado, seis ou sete metros acima de suas cabeças.
O cintilante projétil descansava numa base cônica de aço, que se erguia do chão por entre as extremidades de três barbatanas em forma de delta, pronunciadamente puxadas para trás, e que parecia tão afiadas quanto bisturis de cirurgião. Mas, fora isso, nada mais empanava o brilho sedoso dos quinze metros de aço cromado e polido, exceto as duas garras que saíam das paredes e colhiam a cintura do foguete, por entre espessos acolchoados de espuma de borracha.
No ponto em que as garras tocavam o projétil, viam-se pequenas portas de acesso, abertas na superfície de aço e, quando Bond olhou para baixo, divisou um homem que saía agachado por uma delas, até alcançar a estreita plataforma do monta-cargas instalado paralelamente ao bojo do “Explorador”. Depois, fechou a porta com a mão enluvada. Encaminhou-se a passos miúdos, equilibrando-se pela estreita ponte, até alcançar a parede, e fez girar uma manivela. Ouviu-se um profundo gemido de maquinismo, e a garra retirou seu suporte acolchoado do bojo do foguete, ficando suspensa no ar, como as patas dianteiras de um louva-a-Deus. Os gemidos do mecanismo alteraram-se para um tom mais cavo, e a plataforma do monta-cargas, lentamente, foi-se retraindo, em movimento de telescópio. Depois, tornou a esticar-se e foi pegar o foguete, com a garra, três metros mais abaixo. Seu operador esgueirou-se de novo pelo braço e abriu outra pequena porta de acesso ao interior, desaparecendo dentro do foguete.
— Provavelmente está verificando o sistema de alimentação de combustível dos tanques posteriores — disse Drax. — A alimentação é feita por gravidade. Um sistema bastante complexo. Que acha você disto? — Observou com prazer a expressão de êxtase, estampada no rosto de Bond.
— Uma das coisas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida — respondeu Bond. Era fácil falar. Não se ouvia o menor som dentro do grande cilindro de aço, e as vozes dos homens apinhados lá embaixo, junto da cauda do foguete, não chegavam a eles senão como distante murmúrio. Drax apontou para cima e explicou:
— Veja o cone. O que está montado é apenas experimental, mas pode substituir-se, claro, por uma cápsula estratégica, com carga nuclear. Para este voo, irá cheia de instrumentos. Telêmetros e todas essas coisas. Depois, estão os giroscópios, bem defronte de nós. E, em seguida, quase exclusivamente, tanques de combustível até abaixo, quando temos então as turbinas, já próximas da cauda. Impulsionadas por vapor superaquecido, obtido na decomposição do peróxido de hidrogênio . O combustível, fluorina e hidrogênio... — olhou rapidamente para Bond. A propósito, isto é top secret, sabe?... pois o combustível, como dizia, baixa pelos tubos de alimentação e recebe a ignição logo que é introduzido no motor. Trata-se de uma espécie de explosão controlada, que impulsiona o foguete para o ar. Esse assoalho de aço onde o “Explorador” assenta agora, desliza então para fora, claro. Por baixo, há um enorme poço de exaustão. Tem saída para a base dos rochedos, do lado do mar. Amanhã você irá dar uma vista d’olhos. Parece uma gigantesca caverna, nada mais. Quando procedemos, há dias, a um teste estático, a substância calcária do terreno derreteu e correu para o mar como se fosse água. Espero que não acabemos por calcinar e destruir os famosos penhascos brancos de Dover, quando chegar a hora zero. Você gostaria de dar uma olhada nos trabalhos?
Bond seguiu em silêncio, quando Drax indicou o caminho, descendo por uma íngreme escada de ferro, que acompanhava a parede de aço em sua curvatura. Sentia agora invadir-se por uma onda de admiração e quase de reverência por esse homem e sua formidável realização. Como teria podido ele, Bond, deixar-se impressionar desfavoravelmente pela conduta infantil de Drax, à mesa de jogo? Mesmo os grandes homens têm suas fraquezas. E Drax necessitava dessa válvula de escape para a tensão a que o submetia a tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Tornava-se óbvio que Drax não podia confiar excessivamente em seus auxiliares direitos, de nervos à flor da pele. Dele sozinho devia partir a vitalidade e a confiança necessárias para manter elevado a moral de todos. Mesmo tratando-se de uma coisa tão insignificante quanto ganhar uma partida de bridge, devia ser importante para Drax estar-se assegurando constantemente da própria capacidade, procurando em tudo vaticínios de boa sorte e de êxito, chegando ao ponto de criar esses augúrios favoráveis por suas próprias mãos. Quem não suaria ou roeria as unhas, estando tanta coisa em jogo?
Enquanto contornavam a larga curva da escada, com suas figuras grotescamente refletidas na superfície cromada do foguete, como em um espelho mágico de feira, Bond sentia quase afeto pelo homem que, apenas há poucas horas, ele dissecara sem piedade e quase com ódio.
Quando chegaram à plataforma da base de aço do cilindro, Drax fez uma pausa e olhou para cima. Bond seguiu o olhar do outro. Visto naquela perspectiva, o “Explorador” dava-lhes a impressão de estar olhando para um fino cone vertical de luz, perdendo-se na abóbada cintilante, um feixe de luz que não era totalmente branco, mas de uma tonalidade acetinada de madrepérola. Havia nele alguns pontos vermelhos e brilhantes, refletidos por um gigantesco extintor de incêndios, de neve carbônica, colocado a pouca distância. Um homem em traje de amianto estava postado ao lado do extintor, que apontava seu bico de leque para a base do foguete. Havia também uma estria de cor violeta, cuja origem provinha de uma lâmpada fixada ao painel de instrumentos, na parede. Servia para controlar os movimentos da cobertura de aço em que se encontravam e que os separava do poço de exaustão. Finalmente, um tom verde-esmeralda vinha da luz difusa de uma lâmpada com abajur, colocada sobre uma mesa de pinho, à qual se sentava um homem que ia anotando números que lhe eram transmitidos, de viva voz, pelo grupo reunido logo abaixo da cauda do foguete.
Levantando os olhos para aquela coluna em tons pastel, tão incrivelmente esguia e graciosa, parecia impossível que uma coisa tão delicada pudesse aguentar as pressões a que teria de submeter-se na próxima sexta-feira: o jato tronitruante da mais poderosa explosão controlada que alguma vez fora tentada; o impacto da barreira do som; as pressões desconhecidas da estratosfera, a quinze mil milhas por hora; o choque terrível quando retornasse, num mergulho de milhares de milhas de altura, para ferir de novo o envelope atmosférico da Terra.
Drax pareceu ler seus pensamentos. Voltou-se para Bond:
— É como perpetrar um assassinato — disse ele. Em seguida, de maneira surpreendente, explodiu numa risada asinina. —Walter! — chamou, dirigindo-se ao grupo de homens. — Venha cá!
Walter destacou-se dos outros e aproximou-se.
— Walter — prosseguiu Drax — eu estava dizendo ao nosso amigo, o Comandante, que quando lançarmos o “Explorador da Lua” será como se cometêssemos um crime de assassinato .
Bond não ficou surpreendido, ao ver uma expressão de incredulidade intrigada estampar-se no rosto do doutor. Irritado, Drax exclamou:
— Assassinato de uma criança. Assassinato de nosso filho — repetiu com um gesto na direção do foguete. — Acorde, homem! Acorde! Que se passa com você?
A fisionomia de Walter clareou. De um modo velado, sorriu, mostrando seu apreço pela comparação.
— Assassinato, Ah, sim! Essa é muito boa. Ha! Ha! E agora, Sir Hugo, as folhas de grafita no exaustor. O Ministério está satisfeito com o ponto de fusão? Eles não acham que. ..
Ainda falando, Walter levou Drax para debaixo da cauda do foguete. Bond seguiu ambos.
Os rostos dos dez homens estavam voltados para eles, quando chegaram. Drax apresentou-o com um gesto da mão.
— Comandante Bond, o nosso novo agente de segurança, — disse, conciso.
O grupo olhou Bond em silêncio. Não houve o menor movimento para ir cumprimentá-lo, e os dez pares de olhos não refletiam curiosidade.
— Então, que negócio é esse de tanta história com a grafita? . ..
O grupo se fechou em torno de Drax e Walter. Bond foi deixado só, para trás.
Não estava surpreso com a frieza da recepção. Teria olhado a intromissão de um amador nos segredos de seu próprio departamento com a mesma indiferença mesclada de ressentimento. Além do mais, simpatizava com esses técnicos apanhados a dedo, que tinham vivido durante meses a fios nas mais altas regiões da astronáutica e se encontravam agora no limiar do julgamento final. Entretanto, lembrava-se, os inocentes entre si deviam saber que Bond tinha seu próprio dever a cumprir, sua própria participação vital nesse projeto. Suponhamos, por exemplo, que um desses pares de olhos, nada comunicativos, escondesse um homem dentro de outro homem, um inimigo que, talvez, naquele instante mesmo exultasse com a certeza de que a grafita que Walter parecia não confiar era realmente sub-resistente. É verdade que tinham o aspecto de uma equipe bem unida, quase de uma fraternidade, ao se colocarem assim em torno de Drax e Walter, pendendo de suas palavras, os olhos atentos aos movimentos das bocas dos dois homens. Mas seriam parte de um cérebro, movimentando-se dentro da intimidade de uma órbita secreta, registrando seus cálculos ocultos como o mecanismo clandestino de uma máquina infernal?
Bond caminhava a esmo, para cima e para baixo do triângulo formado pelas três pontas das barbatanas que repousavam em suas cavidades forradas de borracha no chão de aço, interessando-se em tudo em que seus olhos pousavam, mas, de quando em quando, focalizando-os no grupo de homens, em ângulo diferente.
Com exceção de Drax, todos usavam o mesmo macacão justo de nylon, preso por fecho-éclair de plástico. Não se via o menor vestígio de metal, e nenhum deles usava óculos. Como no caso de Walter e Krebs, suas cabeças estavam raspadas bem rente. Provavelmente, pensou Bond, para evitar que um fio solto de cabelo pudesse cair dentro do engenho. Entretanto, e isso chamou-lhe a atenção como característica muito estranha da equipe, todos exibiam exuberantes bigodes, cuja manutenção exigia, sem dúvida, grande dose de cuidados. Eram de todos os formatos e tonalidades: louros, cor de rato ou escuros, em guidões de bicicleta, de foca, à Kaiser ou à Hitler — cada rosto exibia seu distintivo capilar, entre os quais a pelagem ruiva de Drax brilhava como insígnia oficial do chefe supremo.
Por que motivo, conjeturava Bond, todos os homens da base usavam bigode? Nunca os apreciara, mas combinados com as cabeças raspadas, lembravam algo de positivamente obsceno. Teria sido apenas tolerável, se todos fossem cortados no mesmo modelo, mas a variedade de gêneros individuais, essa anarquia de formatos, tinha um que de particularmente horrível, destacando-se do fundo composto pelas cabeças nuas e redondas.
Nada mais havia para chamar a atenção. Os homens eram de estatura mediana, e todos de tipo mais sobre o esguio — talhados, supunha Bond, mais ou menos de acordo com as necessidades do trabalho. A agilidade seria imprescindível nas plataformas, nas passagens ao longo das garras laterais e dos monta-cargas, e solidez para executar as manobras através das portas de acesso e dentro dos minúsculos espaços disponíveis nos compartimentos do foguete. As mãos deles pareciam ter os músculos e nervos relaxados. Eram imaculadamente limpas, e seus pés, metidos em chinelos de feltro, estavam imóveis pela concentração no trabalho. Bond não surpreendeu nenhum deles, em ocasião alguma, olhando em sua direção, movido pela curiosidade, e quanto a penetrar em seus espíritos ou calcular suas doses de lealdade, confessava a si próprio que a tarefa de desmascarar os pensamentos de cinquenta desses homens-robôs alemães, em três dias, era absolutamente impraticável. E lembrou-se, então, de que já não eram cinquenta. Apenas quarenta e nove. Um desses robôs estourara o tampo dos miolos. E o que transparecera dos pensamentos secretos de Bartseh, afinal? Desejo por uma mulher e um “Heil Hitler”. Estaria muito enganado, cogitava Bond, se julgasse que, esquecendo o “Explorador da Lua”, fossem esses também os pensamentos dominantes dentro de mais quarenta e nove cabeças?
— Dr. Walter! Estou dando uma ordem!
A voz de Drax, cheia de uma ira controlada, interrompeu os pensamentos de Bond, enquanto permanecia tocando com os dedos a aresta condutora de uma das barbatanas de columbite da cauda do foguete.
— Voltem ao trabalho! Já perdemos tempo demais!
Os homens se espalharam, pressurosos, cada um absorvido em sua tarefa, e Drax aproximou-se de Bond, deixando Walter vagando, indeciso, sob a enorme bocarra do exaustor de jato do foguete.
Drax mostrava uma fisionomia tempestuosa.
— Maluco do inferno — praguejou ele. — Está sempre descobrindo complicações.
Depois, como se quisesse esquecer seu adjunto, acrescentou bruscamente para Bond:
— Venha até meu escritório. Vou-lhe mostrar o plano de voo. Depois iremos dormir.
Bond seguiu-o. Drax girou uma pequena maçaneta embutida na parede de aço, e uma porta estreita se abriu, com um silvo abafado. A um metro mais para dentro, havia outra porta também de aço, e Bond notou que ambas eram cercadas de borracha, tornando o cilindro estanque à entrada de ar. Antes de fechar a porta externa, Drax parou na soleira e apontou, na parede circular, um bom número de maçanetas, quase invisíveis e semelhantes à que ele utilizara.
— São as portas das oficinas: geradores elétricos, controle de combustível, lavatórios, armazéns de materiais... — Apontou a porta seguinte. — Aqui é a sala de minha secretária. — Fechou a porta externa, antes de abrir a segunda e, entrando em seu escritório, fechou a porta interna atrás de Bond.
Era um recinto severo, pintado de cinza-claro, onde se via uma ampla escrivaninha e diversas cadeiras de metal tubular, forradas de lona azul-marinho. O chão era atapetado em cinza. Havia ainda dois fichários verdes e um grande aparelho de rádio, metálico. Uma porta semiaberta deixava entrever parte de um banheiro ladrilhado. A escrivaninha estava disposta de frente para uma larga parede lisa, que parecia ser construída de vidro opaco. Drax encaminhou-se para a parede e baixou dois interruptores, na extremidade direita. A parede inteira ficou iluminada como tela de cinema, e Bond se defrontou com dois mapas, cada um de seis pés quadrados, ambos desenhados no próprio vidro.
O mapa da esquerda mostrava toda a região oriental da Inglaterra, desde Portsmouth até Hull, bem como as águas adjacentes, nas latitudes entre 50 e 55 graus. Do ponto vermelho, próximo a Dover, que representava a base de lançamento do “Explorador da Lua”, partia uma série de círculos concêntricos, representando, com intervalos de dez milhas, o raio de ação do projétil. Num ponto distante 80 milhas da base, entre as ilhas Fríseas e Hull, via-se um losango vermelho, desenhado em pleno oceano.
Drax fez um gesto para as intrincadas tábuas matemáticas e as colunas de leitura de bússolas, que enchiam o lado direito do mapa.
— Velocidades de vento, pressão atmosférica, cálculos de computador para os giroscópios — foi explicando ele. — Tudo calculado na base da velocidade e raio de ação do foguete, como constantes matemáticas. Recebemos diariamente as previsões meteorológicas fornecidas pelo Ministério da Aeronáutica, bem como as leituras efetuadas na atmosfera superior, cada vez que um jato da RAF alcança essa altitude. Todos os relatórios nos são transmitidos. Quando um avião atinge a altitude máxima, solta balões de hélio que podem subir ainda mais e nos fornecem novas leituras. A camada atmosférica chega até cinquenta milhas de altitude, aproximadamente. Depois das primeiras vinte, não existe já qualquer densidade que possa afetar o progresso do foguete. Voará quase em vácuo. Atravessar as primeiras vinte milhas é que constitui o principal problema. A atração da gravidade, claro, é outra preocupação. Walter poderá explicar-lhe todas essas coisas, se você estiver interessado. Haverá informações contínuas sobre o tempo, durante as últimas horas até sexta-feira. E então ajustaremos os giroscópios, pouco antes do lançamento. Por enquanto, Miss Brand colige as informações recebidas todas as manhãs e organiza um mapa de movimentos giroscópicos, para o caso de ser necessário.
Drax apontou para o segundo dos dois mapas. Era um diagrama do voo elíptico do foguete, desde o ponto de lançamento até seu alvo. Havia ainda mais colunas de números e cifras.
— Aí temos o registro de velocidade da Terra e seus efeitos na trajetória do foguete — explicou Drax. — A Terra estará girando para Leste, em relação ao voo do foguete. Esses fatores têm de ser conjugados com o outro mapa, e é da leitura final que sairão as instruções de voo. É um negócio bem complicado. Felizmente você não precisa compreender. Deixe isso para Miss Brand. E agora — disse, apagando as luzes da parede que ficou novamente lisa — deseja fazer alguma pergunta a respeito de seu trabalho? Não creio que haja muita coisa para você fazer. Já viu que tudo foi feito com a máxima segurança. O Ministério insistiu para que assim fosse, desde o início.
— Tudo me parece em ordem — disse Bond.
Examinou a fisionomia de Drax, em seguida. O olho bom fitava-o intensamente. Bond fez uma pausa.
— Acha que havia alguma coisa entre sua secretária e o Major Tallon?
Era uma pergunta clara, e o melhor seria fazê-la agora.
— É possível, — respondeu Drax sem constrangimento. — Ela é moça atraente. Eram forçados a conviver, constantemente, na companhia um do outro. De qualquer maneira, parece que Bartsch ficou alucinado por ela.
— Ouvi dizer que Bartsch fez continência e gritou: “Heil Hitler” antes de virar a arma contra a boca — disse Bond.
— Foi o que me contaram — confirmou Drax, sem o mínimo interesse. — E daí?
— Por que motivo todos os homens usam bigode? — indagou Bond, ignorando a pergunta de Drax.
Novamente teve a impressão de que sua pergunta exasperara o outro homem.
Drax soltou uma de suas risadinhas curtas e ladradas.
— Foi uma ideia que eu tive. Eles são difíceis de reconhecer nesses macacões brancos e com as cabeças raspadas. Por isto mandei que todos deixassem crescer os bigodes. A coisa se tornou quase um fetiche. Como na RAF, durante a guerra. Vê alguma coisa de inconveniente nisso?
— Claro que não. A princípio é um tanto.. . surpreendente. Eu teria pensado que números grandes colocados nas roupas, com uma cor diferente para cada turma, teria sido mais eficiente.
— Pois bem — replicou Drax, voltando-se em direção à porta como para finalizar a conversação. — Decidi-me pelos bigodes.
CAPITULO 13
DECISÃO FINAL
Na quarta-feira de manhã, Bond despertou cedo, na cama do homem morto.
Dormira pouco. Drax não dissera nada a caminho de volta para casa e lhe desejara um rápido boa-noite no fim da escada. Bond seguira pelo corredor atapetado até o ponto onde brilhava uma luz, vinda de uma porta aberta, e encontrara suas coisas ordenadamente arranjadas num confortável quarto.
O aposento era mobiliado com o mesmo gosto de tipo dispendioso que encontrara no andar térreo. Havia biscoitos e uma garrafa de Vichy (não era uma garrafa de Vichy com água da bica, verificou Bond) ao lado da cama.
Não se notavam sinais do ocupante precedente, a não ser uma pasta de couro contendo binóculos, na mesinha de cabeceira, e um arquivo de metal, trancado. Bond conhecia tudo sobre arquivos. Virou-o contra a parede, colocou a mão embaixo e encontrou a ponta do fecho que se projeta para baixo, quando a série de escaninhos de cima foi trancada. Uma pressão feita para cima soltou as gavetas uma por uma, e ele baixou suavemente a borda do arquivo para o chão, refletindo maldosamente que o Major Tallon não teria sobrevivido durante muito tempo no Serviço Secreto.
A gaveta de cima continha mapas de escala da base e seus edifícios, além de um mapa do Almirantado n° 1895, representando o Estreito de Dover. Bond colocou cada uma das folhas sobre o leito e examinou-as minuciosamente. Havia restos de cinza de um cigarro nas dobras do mapa do Almirantado.
Bond foi buscar sua caixa de ferramentas — uma caixa quadrada de couro que estava ao lado da cômoda. Examinou os números nas rodas da fechadura de segredo e, satisfeito por não terem sido mexidas, virou-as para o número de código. A caixa estava repleta de instrumentos. Bond escolheu um vaporizador de pó para impressões digitais e uma lente grande. Espalhou o pó fino e acinzentado, centímetro por centímetro, sobre toda a extensão da carta geográfica. Apareceu uma floresta de impressões digitais.
Examinando-as com a lente, chegou à conclusão de que pertenciam a duas pessoas. Isolou os dois melhores grupos, tirou uma Leica com um flash de dentro da pasta de couro e fotografou-os. Em seguida, examinou cuidadosamente com a lente os dois minúsculos sulcos no papel que o pó fizera aparecer .
Estes davam a impressão de serem duas linhas traçadas da costa para formar uma rota cruzando o mar. Sua direção era muito estreita, e as duas linhas pareciam originar-se da casa onde se encontrava Bond. De fato, poderiam indicar observações de algum objeto no mar, feitas de cada ala da casa.
As duas linhas não haviam sido traçadas com lápis, mas, presumivelmente, para evitar serem descobertas, com um estilete que mal sulcara o papel.
No ponto onde se encontravam, havia a sombra de uma interrogação, na linha correspondente à décima-segunda braça, cerca de cinquenta jardas distante do penhasco, numa direção reta da casa para o navio-farol South Goodwin.
Não havia mais nada para ser descoberto no mapa. Bond olhou o relógio. Vinte para a uma. Ouviu passos distantes no hall e o estalido de uma lâmpada sendo apagada. Num impulso, ergueu-se e, de mansinho, apagou as luzes do quarto, deixando apenas a de leitura, velada por um abajur e colocada à mesinha de cabeceira.
Ouviu os pesados passos de Drax aproximando-se da escada. Houve o estalido de outro interruptor e depois silêncio. Bond imaginava aquela cara grande, cabeluda, voltada para o corredor, olhando, escutando. Depois percebeu o rangido de uma porta, sendo aberta devagar e fechada da mesma forma. Esperou, visualizando os movimentos do homem que se preparava para dormir. Ouviu ainda o som abafado de uma janela que se abria, o ruído de trombeta, distante, de um nariz sendo assoado. Depois silêncio.
Bond concedeu mais cinco minutos a Drax e depois foi até o arquivo, abrindo suavemente as outras gavetas. Não havia nada na segunda e na terceira, mas a última estava repleta de arquivos arrumados em ordem alfabética. Eram os dossiês dos homens que trabalhavam na base. Bond puxou a série “A”, voltou para a cama e começou a ler.
Em cada um a fórmula era a mesma: nome por inteiro, endereço, data do nascimento, descrição, sinais particulares, profissão ou ofício depois da guerra, registro de tempo de guerra, sobre atitudes políticas e simpatias atuais, registro criminal, de saúde e sobre os parentes próximos. Alguns desses homens tinham mulher e filhos, cujas particularidades eram anotadas e, acompanhando cada dossiê, havia fotografias: de frente e de perfil, além das impressões digitais de ambas as mãos.
Duas horas e dez cigarros depois, Bond examinara todos eles e descobrira dois pontos de interesse geral. Primeiro, que todos os cinquenta homens pareciam ter levado uma vida sem mácula, sem o menor vestígio de ódio político ou criminoso. Aquilo lhe pareceu tão pouco verossímil, que resolveu encaminhar todos eles novamente à Estação D. para serem submetidos a um reexame completo na primeira oportunidade.
O segundo ponto era que nenhuma das caras das fotografias tinha bigode. Apesar da explicação de Drax, esse fato suscitou um segundo pequeno ponto de interrogação no espírito de Bond.
Ergueu-se da cama e trancou novamente tudo, colocando o mapa do Almirantado em um dos arquivos de sua pasta de couro. Girou a fechadura de segredo e enfiou a pasta bem para debaixo da cama, de modo que a mesma ficasse diretamente sob seu travesseiro no ângulo interno da parede. Depois, sem fazer barulho, lavou-se, escovou os dentes no banheiro anexo e escancarou a janela.
A lua ainda brilhava: como devia ter brilhado, pensou Bond, quando, despertado por algum ruído fora do comum, Tallon subira ao telhado, talvez somente há poucas noites, e vira, no meio do mar, o que tinha visto. Devia trazer os binóculos consigo, e Bond, lembrando-se, saiu da janela e apanhou-os. Eram binóculos muito possantes, de fabricação alemã, pilhagem da guerra, talvez, e o 7 X 50 nas chapas superiores revelaram que se tratava de binóculos para a noite. Depois então, o cauteloso Tallon devia ter caminhado de leve (mas não o suficiente) para a outra extremidade do telhado e novamente erguido os binóculos, calculando a distância da borda do penhasco até o objeto no mar, e do objeto até o Goodwin, navio-farol. Em seguida, devia ter voltado pelo mesmo caminho e, sem fazer ruído, tornado a entrar no quarto.
Bond viu Tallon, talvez pela primeira vez desde que estava na casa, trancar a porta cautelosamente, dirigir-se até o arquivo, retirar dali o mapa, ao qual mal lançara um olhar até então, e marcar sobre o mesmo, de leve, as linhas de sua direção, às pressas. Talvez tivesse olhado para ele durante longo tempo, antes de apor a pequenina interrogação ao seu lado.
E que teria sido então o objeto desconhecido? Impossível dizer. Um navio? Uma luz? Um ruído?
Fosse o que fosse, Tallon não devia ter visto. E alguém o tinha ouvido. Alguém havia adivinhado que ele vira, e esperara que Tallon saísse do quarto na manhã seguinte. Aí então aquele alguém viera ao seu quarto e dera uma busca. A carta marítima, provavelmente, nada revelara, mas vira os binóculos para noite em cima da janela.
Fora o bastante. E naquela noite, Tallon morrera.
Bond se controlou. Ia depressa demais, compondo um caso, baseado no mais tênue dos indícios. Bartsch matara Tallon, e Bartsch não fora o homem que ouvira o barulho, o homem que deixara as impressões digitais no mapa, o homem cujo dossiê Bond separara e guardara em sua pasta de couro.
O homem tinha sido o untuoso Krebs, a criatura do pescoço de minhoca. As impressões digitais eram suas. Durante um quarto de hora, Bond comparara as impressões do mapa com as impressas no dossiê de Krebs. Mas quem disse que Krebs ouvira um barulho, ou fizera qualquer coisa por causa disso? Bem, para começar, ele parecia mesmo um tipo intrometido. Tinha os olhos de um ladrão sem importância. Aquelas impressões no mapa haviam sido, positivamente, feitas depois que Tallon o estudara. Os dedos de Krebs cobriram os de Tallon em diversos pontos.
Entretanto, como poderia Krebs estar envolvido nessa história, com os olhos de Drax constantemente em cima dele? O assistente confidencial. Mas que dizer de Cícero, o empregado particular de toda confiança do Embaixador Britânico em Ankara, durante a guerra? A mão no bolso das calças pendendo por cima das costas da cadeira. As chaves do Embaixador. O cofre. Os segredos. O quadro era muito semelhante.
Bond sentiu um arrepio. Compreendeu então, de repente, que estivera de pé durante muito tempo em frente às janelas abertas e que já era tempo de dormir um pouco.
Antes de se deitar, pegou o coldre de ombro da cadeira, onde estava no meio das roupas despidas, e retirou a Beretta, colocando-a debaixo do travesseiro. Como defesa contra quem? Bond não sabia, mas sua intuição lhe dizia muito claramente que pairava o perigo no ar. O cheiro era insistente, apesar de ainda impreciso, e restringia-se apenas ao limiar de seu subconsciente. Na realidade, ele sabia que suas impressões se baseavam num determinado número de interrogações que se haviam materializado durante as últimas vinte e quatro horas: o enigma de Drax; o “Heil Hitler” de Bartsch; os estranhos bigodes; os cinquenta alemães de conduta impecável; a carta marítima; os binóculos de noite; Krebs.
Primeiro precisava comunicar suas suspeitas a Vallance. Depois explorar as possibilidades de Krebs. Em seguida, olhar as defesas do “Explorador da Lua” — o lado do mar, por exemplo. Finalmente, entrar em contato com essa pequena Brand e concordarem na elaboração de um plano para os próximos dois dias. Não havia muito tempo a perder.
Enquanto forçava o sono no cérebro transbordante de pensamentos, Bond imaginou o número sete no mostrador de um relógio e deixou a tarefa de acordar entregue às células ocultas de sua memória. Desejava estar fora de casa e no telefone com Vallance, o mais cedo possível. Se suas ações levantassem suspeitas, não ficaria desanimado. Um de seus objetivos era atrair para sua órbita as mesmas forças que envolveram Tallon, porque de uma coisa ele tinha quase certeza, o Major não morrera por amar Gala Brand.
O despertador extra-sensorial não falhou. Pontualmente, às sete horas, com a boca seca por causa dos muitos cigarros da noite anterior, esforçou-se por sair da cama e entrar num banho frio. Barbeara-se, gargarejara com um dentifrício forte e, agora, vestido num terno batido branco e preto, uma camisa azul-marinho de algodão, tipo Mares do Sul, gravata de tricô preto, caminhava levemente, mas não de modo furtivo, pelo corredor até as escadas, com a pasta de couro quadrada na mão esquerda.
Encontrou a garage no fundo da casa, e o motor do Bentley correspondeu à primeira pressão do arranque. Bond seguiu lentamente pela faixa de concreto sob o olhar indiferente das janelas encortinadas da casa e seguiu em frente, em prise, pelo caminho margeado de árvores. Seus olhos voltaram-se para a casa e confirmaram seu cálculo de que um homem de pé no telhado seria capaz de enxergar por cima do muro e ter uma visão da beira do penhasco e do mar mais adiante.
Não havia sinal de vida em torno do local onde se encontrava o “Explorador da Lua”. O concreto, já começando a brilhar ao primeiro sol da manhã, estirava-se vazio na direção de Deal. Tinha-se a impressão de um aeródromo recém-construído ou talvez, pensou, com suas três “coisas” diferentes de concreto, a cúpula de uma colmeia, a parede lisa de ferro e o cubo distante do ponto de disparo, cada qual lançando poços negros de sombra em sua direção, ali no sol matutino, como uma paisagem deserta de Dali, na qual três objets trouvés repousavam num acaso cuidadosamente calculado.
Lá fora, no mar, dentro do nevoeiro da manhã que prometia um dia quente, o navio-farol South Goodwin mal se delineava, difusa embarcação vermelha, casada para sempre com o mesmo ponto, e condenada, como um navio de cenário no palco de Drury Lane, a assistir ao diorama das ondas e nuvens navegarem atarefadamente para os bastidores, enquanto que ele, sem papéis, passageiros ou carga, continuava ancorado para sempre no ponto de partida que era também seu porto de destino.
Com intervalos de trinta segundos, buzinava sua triste queixa dentro do nevoeiro, uma prolongada nota dupla de trumpete, em cadência descendente. Um canto de sereia, pensou Bond, para repelir em vez de seduzir. Perguntava a si mesmo como os sete homens da tripulação suportariam agora o ruído, enquanto mastigavam carne de porco com feijão. Encolher-se-iam, quando marcava contracanto com a Housewife’s Choice, vindo a todo volume do rádio na hora do rancho? Mas era uma vida segura, foi a conclusão a que chegou Bond, apesar de ancorado nos portões de um cemitério.
Anotou mentalmente, para descobrir se esses sete homens tinham visto ou ouvido a coisa que Tallon marcara no mapa, em seguida saiu rápido por entre os postos de guarda.
Em Dover, parou diante do Café Royal, modesto restaurantezinho, com uma cozinha modesta porém capaz, como ele sabia há muito tempo, de preparar excelentes pratos de peixe e de ovos.
A dona, suíça-italiana, com o filho que a ajudava a dirigir a casa, recebeu-o como velho amigo, e ele pediu um prato de ovos mexidos com presunto e bastante café, recomendando que estivessem prontos em meia hora. Depois seguiu até o posto policial e fez uma chamada para Vallance, por meio da mesa de ligações da Scotland Yard. Vallance estava em casa, tomando o café da manhã. Ouviu sem comentários a conversa reservada de Bond, mas não expressou surpresa, quando este disse que não tinha tido oportunidade de falar mais intimamente com Gala Brand.
— Essa aí é uma garota inteligente. Se o Sr. K. anda tramando alguma coisa, com certeza ela tem uma ideia do que seja. E se T. ouviu um barulho no sábado à noite, ela pode ter ouvido também. Se bem que eu deva confessar que não se referiu a esse assunto.
Bond não disse nada sobre a recepção que tinha tido por parte do agente de Vallance.
— Vou falar com ela esta manhã e mandar-lhe-ei o mapa com o filme da Leica para que o senhor os examine. Vou dá-los ao Inspetor. Talvez um dos patrulheiros da estrada possa levar. É verdade, de onde T. telefonou quando chamou seu chefe na segunda-feira?
— Vou mandar verificar e depois lhe direi — disse Vallance. Mandarei também a Trinity House perguntar se a South Goodwin e os guardas-costeiros podem ajudar. Mais alguma coisa?
Bond respondeu:
— Não.
A linha passava por muitas mesas de ligação. Talvez, se tivesse sido M., ele tivesse insinuado mais alguma coisa. Pareceu-lhe ridículo falar com Vallance a respeito de bigodes e a atmosfera de perigo que ele sentira na noite anterior, e que a luz do dia dissipara. Aqueles policiais só queriam os fatos nus e crus. Eram melhores, refletiu, na solução de um crime, do que antecipá-los.
— Não, é só.
Desligou.
Sentiu-se mais alegre depois de uma excelente primeira refeição. Leu o Express e The Times e encontrou uma notícia sucinta sobre o inquérito do caso Tallon. O Express fizera muito escarcéu e muita exibição da fotografia da moça. Bond divertiu-se, ao verificar a neutra semelhança que Vallance conseguira apresentar. Decidiu que precisava tentar trabalhar com ela. Demonstraria toda confiança e lhe contaria tudo, fosse ela receptiva ou não. Talvez ela também tivesse suas suspeitas e intuições, porém tão vagas que as estava guardando consigo mesma.
Bond voltou rapidamente para a casa. Eram nove horas em ponto, e quando passou por entre as árvores na faixa de concreto, ouviu-se o lamento de uma sereia e, dos bosques por trás da casa, uma dupla fila de doze homens apareceu correndo num ritmo propositadamente igual, em direção à cúpula do foguete. Marcavam o tempo enquanto um deles tocava a campainha. A porta então se abriu, e eles entraram em fila, desaparecendo .
Raspe-se a superfície de um tedesco e encontrar-se-á a precisão — pensou Bond.
CAPITULO 14
DEDOS FORMIGANTES
Meia hora antes, Gala Brand esmagara a ponta do seu cigarro matutino, engolira o resto do café, saíra do quarto e se encaminhara para a base, com o aspecto perfeito de uma secretária particular. Trajava uma blusa branca imaculada e uma saia azul-marinho pregueada.
Pontualmente, às oito e meia, estava em seu escritório. Havia um monte de telimpressos do Ministério da Aeronáutica em cima da mesa, e sua primeira ação foi transferir um resumo de seus conteúdos para um mapa meteorológico, entrar pela porta de comunicação no escritório de Drax, e pregar o mapa num quadro pendente no ângulo da parede ao lado do vidro liso. Em seguida, apertou o interruptor que iluminava o mapa de parede, fez alguns cálculos, baseada nas colunas de números reveladas pela luz, e anotou o resultado no diagrama que prendera ao quadro.
Fizera isto com os dados do Ministério da Aeronáutica, que se tornavam cada vez mais exatos, à medida que a data do lançamento experimental se aproximava, todos os dias, desde que a base terminara, e a construção do foguete se iniciara dentro dela. Tornara-se tão perita, que agora sabia de cor as direções do giroscópio para quase todas as variações de temperatura em diferentes altitudes.
De modo que ainda ficava mais irritada quando Drax não demonstrava aceitar seus cálculos. Todos os dias quando, às nove horas, pontualmente, as campainhas de aviso soavam, e ele descia a íngreme escadaria de ferro para entrar em seu escritório, seu primeiro gesto era chamar o insuportável Dr. Walter, para que, juntos, estudassem novamente todas as suas anotações, transcrevendo os resultados no fino caderninho de notas que Drax trazia no bolso traseiro das calças. Sabia que aquilo era uma rotina invariável e se cansara de observá-la através de um orifício disfarçado que fizera, de forma a poder enviar a Vallance um relatório semanal dos visitantes de Drax. O orifício ficava na parede fina que separava os dois escritórios. O método era amadorista, porém eficiente, e ela lentamente formara um quadro completo da rotina diária, que acabara por achar demasiado irritante. Era irritante por duas razões. Significava que Drax não confiava em seus algarismos e solapava sua oportunidade de tomar parte, da maneira mais modesta que fosse, no lançamento final do foguete.
Era natural que, no decorrer dos meses, tivesse ficado tão integrada em seu disfarce quanto em sua verdadeira profissão. Era uma coisa fundamental para a exatidão absoluta dêsse disfarce que sua personalidade ficasse tão verdadeiramente oculta quanto possível. E agora, enquanto espionava, apalpava e farejava o vento em torno de Drax, para relatar ao seu Chefe em Londres, sentia-se profundamente interessada pelo sucesso do “Explorador da Lua” e tornara-se tão dedicada ao seu serviço quanto qualquer outro membro da base.
O resto de seus Ideveres como secretária particular de Drax era intoleràvelmente monótono. Todos os dias chegava um enorme volume de correspondência dirigida a Drax em Londres e enviada para lá pelo Ministério. Naquela manhã, encontrara o monte habitual de mais ou menos cinquenta cartas aguardando em cima da escrivaninha. Eram sempre de três tipos. Cartas de pedidos, de pessoas maníacas pelo foguete, cartas comerciais do corretor de Drax e de outros agentes comerciais. Para estas Drax ditava respostas breves, e o resto do dia ela se ocupava em datilografar e arquivar.
De sorte que era natural o fato de sua única obrigação relacionada com a operação do foguete destacar-se extraordinàriamente entre os monótonos deveres. Naquela manhã, ao conferir e reconferir seu plano de voo, estava mais que decidida a fazer aceitarem seus cálculos para O Dia. Entretanto, como muitas vezes lembrava a si mesma, talvez não houvesse razão para que não os aceitassem. Talvez os cálculos diários de Drax e Walter para anotação no caderninho preto não passassem de nova verificação de seus próprios números. Era bem verdade que Drax nunca tinha pedido seu boletim meteorológico ou as direções do giroscópio por onde os calculava. E quando um dia ela perguntara diretamente se seus cálculos sobre o tempo estavam corretos, ele respondera com evidente sinceridade:
— Excelentes, minha cara. Muito valiosos. Não poderíamos arranjar-nos sem eles.
Gala Brand voltou para sua sala e começou a abrir as cartas. Só mais dois planos de voo para quinta-feira e sexta, e então, baseados em seus cálculos ou noutros, nos guardados dentro do bolso de Drax, o giroscópio seria finalmente ajustado, e seria apertado no ponto de disparo.
Distraidamente, Gala olhou para as unhas e depois estendeu as duas mãos, com as costas voltadas em sua direção. Quantas vezes, durante seu adestramento na Escola da Polícia, fora mandada para fora com outras alunas e recomendada a não voltar sem um caderno de notas, um estojo de maquilagem, uma caneta-tinteiro ou mesmo um relógio de pulso? Quantas vezes, durante os cursos, o instrutor não se voltara, segurando-a pelo pulso e dizendo: “Vamos, vamos, senhorita. Isto assim não vai de jeito nenhum. Dá até a impressão de um elefante procurando açúcar no bolso do tratador. Tente novamente.”
Friamente, flexionou os dedos e depois, tomando uma resolução, voltou à pilha de cartas.
Quando faltavam poucos minutos para as nove, as campainhas de alarma soaram, e ela ouviu Drax chegar ao escritório. Pouco depois ouviu-o abrir as portas duplas novamente e chamar Walter. Em seguida, veio o habitual murmúrio de vozes cujas palavras eram abafadas pelo leve chiar do ventilador.
Gala arrumou as cartas em três pilhas e sentou-se inclinada para a frente, os nervos relaxados, os cotovelos descansando na escrivaninha e o queixo repousando na mão esquerda.
Comandante Bond. James Bond. Evidentemente, um jovem convencido, como tantos outros do Serviço Secreto. E porque tinha sido enviado em vez de alguém com quem pudesse trabalhar, um de seus amigos da Seção Especial ou mesmo uma pessoa do M15? A mensagem do Comissário-Assistente dizia que não havia mais ninguém disponível assim de repente, que ele era um dos astros do Serviço Secreto, que desfrutava da mais absoluta confiança da Seção Especial e tinha as bênçãos do M15. Até mesmo o Primeiro-Ministro lhe dera permissão para agir somente nesta missão dentro da Inglaterra. Mas de que poderia adiantar, em face do pouco tempo que restava? Ele, provavelmente, atirava bem e falava idiomas estrangeiros, além de executar uma série de truques que poderiam ser úteis no exterior. Entretanto, que poderia fazer de bom aqui, sem lindas espiãs para namorar. Porque bonitão ele era, incontestàvelmente. (Gala Brand procurou automaticamente o estojo de maquilagem e bateu a esponjinha de pó de arroz no nariz.) Bem no gênero de Hoagy Carmichael, sob certo aspecto. Aquele cabelo preto caindo em cima da sobrancelha direita. Mais ou menos o mesmo tipo ósseo. Mas havia um quê de crueldade na boca, e os olhos eram frios. Cinzentos ou azuis? Tinha sido difícil verificar a noite passada. Bem, de qualquer maneira, ela o pusera em seu lugar e lhe mostrara que não estava impressionada por rapazes atraentes do Serviço Secreto, por mais românticos que parecessem. Havia homens igualmente belos na Seção Especial, e estes eram detetives de verdade, não apenas pessoas que Phillips Oppenheim idealizara, donos de carros velozes com bandas douradas e coldres de ombro. Ah, isto ela descobrira com certeza, e até esbarrara nele para ter certeza.
Pois bem, supunha que devia demonstrar, de uma forma ou de outra, que trabalhava com ele, apesar de só Deus saber em quê. Se ela estivera ali desde quando o local fora construído sem descobrir coisa alguma, o que poderia esse homem, Bond, esperar descobrir em dois dias? E o que havia para ser descoberto? Naturalmente, existiam uma ou duas coisas que ela não conseguia compreender. Deveria falar-lhe em Krebs, por exemplo? A primeira coisa a fazer era providenciar para que ele não lhe estragasse o trabalho, fazendo qualquer tolice. Teria de ser fria, firme e extremamente cautelosa. Mas isto não queria dizer, chegou à conclusão no momento em que a cigarra tocava e ela apanhava as cartas e o caderno de taquigrafia, que não pudesse ser amistosa em suas relações. Estritamente dentro de suas próprias condições, é claro.
Havendo tomado esta segunda decisão, abriu a porta de comunicação e entrou no escritório de Sir Hugo Drax.
Ao voltar para sua sala, meia hora depois, encontrou Bond sentado em sua cadeira com o Almanaque Whitaker aberto na escrivaninha diante dele. Apertou os lábios, quando Bond se levantou e desejou-lhe um feliz bom dia. Gala baixou a cabeça rapidamente, rodeou a escrivaninha e sentou-se. Afastou cuidadosamente o Whitaker e colocou as cartas e o caderno em seu lugar.
— Devia ter mais uma cadeira para as visitas — disse Bond com um sorriso que ela definiu como impertinente. — E alguma coisa melhor para se ler do que livros de referências.
A moça ignorou as observações.
— Sir Hugo deseja vê-lo. Eu ia agora mesmo ver se já havia se levantado.
— Mentirosa. Você me ouviu passar às sete e meia. Eu a vi espiando entre as cortinas.
— Não fiz semelhante coisa — retrucou Miss Brand indignada. — Por que haveria de estar interessada num carro que passava?
— Eu disse que você ouviu o carro — disse Bond. Insistiu em sua vantagem. — E, por falar nisso, acho que não deve coçar a cabeça com o lápis quando está tomando ditado. Nenhuma das melhores secretárias particulares faz tal coisa.
Bond olhou de modo significativo para um ponto da porta de comunicação. Depois sacudiu os ombros.
As defesas de Gala caíram. Diabo de homem, pensou. Endereçou-lhe um sorriso relutante.
— Ora. Vamos parar com isto. Eu não posso passar a manhã inteira brincando de adivinhação. Ele quer nos ver e não gosta de esperar.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação, abrindo-a. Bond seguiu-a, fechando depois a porta.
Drax estava de pé, olhando o mapa de parede iluminado. Voltou-se, quando os dois entraram.
— Ah, você está aqui — disse com um olhar firme para Bond. — Pensei que talvez nos tivesse deixado. Os guardas anotaram sua saída às sete e meia da manhã de hoje.
— Precisei dar um telefonema — explicou Bond. — Espero não ter incomodado ninguém.
— Existe um telefone em meu estúdio — ajuntou Drax, conciso. — Tallon achava que servia muito bem.
— Ah, pobre Tallon — disse Bond sem nenhuma inflexão particular.
Notara um quê de autoritário na voz de Drax que o desagradara bastante, e isto fizera com que desejasse instintivamente desarmá-lo. Nessa vez foi bem sucedido.
Drax lançou-lhe um olhar duro, que disfarçou com um risinho curto, latido e um sacudir de ombros.
— Faça como melhor lhe agradar. Você tem seu trabalho para fazer. Contanto que não perturbe as rotinas daqui. Deve-se lembrar — acrescentou mais amável — de que todos os meus homens estão nervosos ao extremo agora, e eu não posso inquietá-los com misteriosas movimentações. Espero que não deseje fazer-lhes muitas perguntas hoje. Eu preferia que não tivessem mais nada com que se preocupar. Ainda não se recuperaram do que aconteceu segunda-feira. Miss Brand poderá informá-lo a respeito de tudo que diz respeito a eles, e creio que todos os dados arquivados acham-se no quarto de Tallon. Já os examinou?
O arquivo não tem chave — respondeu Bond, dizendo a verdade.
— Desculpe, a culpa é minha — disse Drax. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta da qual tirou um pequeno molho de chaves, e entregou-o a Bond.
— Devia ter-lhe entregado isto a noite passada. O Inspetor que tratou do caso pediu-me lhe entregasse. Desculpe.
— Muito obrigado — disse Bond por sua vez. Depois fez uma pausa.
— Diga-me uma coisa, há quanto tempo Krebs trabalha com o senhor?
Fez a pergunta obedecendo a um impulso. Houve um momento de silêncio na sala.
—Krebs? — repetiu Drax, pensativo.
Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se. Estendeu a mão para o bolso da calça e puxou um maço de cigarros de ponta de cortiça. Seus dedos grosseiros lutaram com o envólucro de celofane. Tirou um cigarro e meteu-o na boca, sob a franja do bigode avermelhado, acendendo-o depois.
Bond mostrou-se surpreso.
— Eu não sabia que se podia fumar aqui — observou, tirando sua própria carteira do bolso.
O cigarro de Drax, minúsculo tubo branco no meio da caraça vermelha, subia e descia enquanto ele respondia sem tirá-lo da boca.
— Aqui não há perigo. Estas salas são à prova de ar. As portas são forradas com borracha. A ventilação é separada . Precisei colocar as oficinas e geradores apartados da cúpula e, de qualquer maneira — seu lábios sorriram em torno do cigarro — preciso dar um jeito para fumar.
Drax tirou o cigarro da boca e olhou-o. Parecia estar tomando uma resolução.
— Você estava me interrogando a respeito de Krebs. Pois bem, cá entre nós, não confio inteiramente nesse camarada — declarou fitando Bond com uma expressão significativa.
Levantou a mão num gesto de quem se desculpa.
— Nada de definido, naturalmente, ou eu já o teria mandado embora, mas encontrei-o espionando pela casa, e uma vez apanhei-o em meu estúdio, remexendo meus papéis particulares . Ele apresentou uma explicação perfeita e deixei-o sair, prevenindo-o. Contudo, para ser franco, tenho minhas suspeitas a respeito do homem. Evidentemente, ele não pode fazer mal algum. Faz parte do pessoal da casa, e nenhum deles tem licença de entrar aqui, mas — Drax fitou Bond francamente, dentro dos olhos — eu devia ter-lhe dito que se concentrasse nele. Foi muita vivacidade sua, haver observado qualquer coisa no homem, tão depressa — acrescentou com respeito. — Que foi que o levou a isto?
— Nada de extraordinário. Ele tem um aspecto inquieto. Mas o que o senhor diz é interessante, e eu não deixarei de estar de olho nele.
Voltou-se para Gala Brand, que permanecera em silêncio desde o momento em que entraram na sala.
— Qual sua opinião a respeito de Krebs, Miss Brand? — perguntou, polidamente.
A moça respondeu, dirigindo-se a Drax.
— Não entendo muito dessas coisas, Sir Hugo, — disse com modéstia e um quê de impulsivo que Bond admirou.
— Porém não confio nele de jeito nenhum. Não tinha intenção de lhe contar, mas ele andou rondando meu quarto, entrou lá, abriu cartas etc. Tenho certeza disso.
Drax mostrou-se chocado.
— Foi mesmo?
Pôs o cigarro no cinzeiro e extinguiu os fragmentos acesos, um por um.
— Deixe-o comigo — falou sem levantar os olhos.
CAPÍTULO 15
JUSTIÇA RUDE
Houve um momento de silêncio na sala durante o qual Bond refletiu como era estranho que as suspeitas recaíssem tão de repente e unanimemente sobre o mesmo homem. Isto, por acaso, libertaria automaticamente os outros? Krebs não poderia ser membro de uma quadrilha? Ou trabalharia por conta própria e, nesse caso, com que objetivo? E que relação haveria entre suas espionagens e as mortes de Tallon e Bartsch?
Drax quebrou o silêncio.
— Bem, parece que chegamos a um ponto de acordo — disse, olhando Bond, à procura de confirmação. Este baixou a cabeça, num gesto cauteloso.
— Tenho mesmo de deixá-lo por sua conta. De qualquer forma, providenciaremos para que se conserve bem afastado da base. Aliás, vou levá-lo comigo amanhã para Londres. Pormenores de última hora deverão ser combinado com o Ministério, e Walter não pode sair daqui. Krebs é o único homem capaz de executar o serviço de um ajudante-de-ordens. Isto o conservará fora de qualquer complicação. Até lá temos todos de mantê-lo sob vigilância. A não ser, naturalmente, que você queira prendê-lo já, trancando-o à chave e cadeado. Eu preferia que não. Não desejo perturbar mais a equipe.
— Não será necessário — disse Bond. — Ele conta com alguns amigos particulares entre os outros homens?
— Nunca o vi falando com nenhum, exceto Walter e o pessoal de casa — disse Drax. — Calculo que se considera superior aos outros. Pessoalmente, não acredito que exista muita maldade nesse camarada, do contrário não o teria conservado. Ele fica sozinho em casa o dia inteiro, e com certeza é um desses sujeitos que gostam de bancar o detetive e meter o nariz nos negócios dos outros. Que diz você? Talvez pudéssemos deixar as coisas neste pé?
Bond fez que sim, guardando seus pensamentos para si mesmo.
— Pois então — continuou Drax, feliz por deixar de lado um assunto desagradável e voltar para os negócios. — Temos outras coisas para conversar. Ainda nos restam dois dias, e é melhor falar-lhe sobre o programa.
Ergueu-se da cadeira e mediu pesadamente a sala em largas passadas, por trás da escrivaninha:
— Hoje é quarta-feira. À uma hora a base será fechada para receber combustível. Isto será supervisionado pelo Dr. Walter, por mim e mais dois homens do Ministério. Para a eventualidade de qualquer coisa sair errada, uma câmara de televisão registrará tudo que fizermos. E então, se houver uma explosão, nossos sucessores saberão como agir melhor na próxima vez — finalizou com um curto riso ladrado. — Se o tempo permitir, o telhado será aberto hoje à noite para deixar a fumaça sair. Meus homens montarão guarda em vigias de dez jardas de intervalo, até a distância de cem jardas a partir da base. Haverá três homens armados na praia, do lado oposto ao túnel exaustor no penhasco. Amanhã de manhã a base será novamente aberta até o meio-dia para uma verificação final e, a partir desse instante, exceto a disposição do giroscópio, o “Explorador da Lua” estará pronto para partir. Os guardas ficarão permanentemente vigiando toda a base. Na sexta-feira pela manhã eu examinarei pessoalmente o ajustamento do giroscópio. Os homens do Ministério tomarão conta do ponto de disparo, e a RAF do radar. A BBC enviará seus caminhões, que ficarão atrás do ponto de disparo, e as irradiações começarão às onze e quarenta e cinco.
Ao meio-dia em ponto apertarei o pistão, um sinal de rádio passará por um circuito elétrico e — Drax sorriu abertamente — nós veremos o que vamos ver.
Fez uma pausa, mexendo no queixo:
— Vejamos agora o que mais? Ah, sim. A navegação será banida da área orbital desde a meia-noite de quinta-feira. A Marinha providenciará uma patrulha nos limites da área durante toda a manhã. Haverá um comentarista da BBC num dos navios. O Ministério do Abastecimento mandará técnicos que ficarão num navio de salvamento com um aparelho de televisão para a profundidade do mar, e depois que o foguete aterrissar, tentarão recuperar os restos. Talvez você se interesse em saber — continuou, esfregando as mãos numa alegria quase infantil, — que um mensageiro do Primeiro-Ministro trouxe a notícia muito alvissareira de que não só estará reunido o Gabinete para ouvir a irradiação, mas o Palácio também escutará o lançamento.
— Ótimo — disse Bond, satisfeito pelo outro.
— Obrigado. Agora quero ter absoluta certeza de que você está satisfeito com as medidas de segurança que tomei na própria base. Não creio que seja necessário nos preocuparmos com o que se passar do lado de fora. A RAF e a polícia parecem estar executando um serviço muito completo.
— Tudo parece ter sido providenciado — disse Bond.
— Não creio que me reste muita coisa para fazer no tempo que ainda falta.
— Nada que eu me lembre — concordou Drax. — Exceto nosso amigo Krebs. Esta tarde ele permanecerá na camioneta da televisão tomando notas, de modo que estará fora de qualquer trapalhada. Por que você não vai dar uma olhada na praia, na base do penhasco, enquanto ele está fora de ação? este é o único ponto fraco que eu posso lembrar. Muitas vezes pensei que se alguém quisesse penetrar na base, tentaria passar pela cavidade exaustora. Leve Miss Brand. Quatro olhos, etc, e ela não poderá mesmo usar seu escritório até amanhã de manhã.
— Está bem — concordou Bond.
— Eu gostaria de dar uma olhada no lado do mar, depois do almoço, e se Miss Brand não tiver nada de melhor para fazer...
Voltou-se para ela com as sobrancelhas erguidas. Gala Brand baixou os olhos.
— Claro, se Sir Hugo desejar — disse sem entusiasmo.
Drax esfregou as mãos.
— Então está combinado. E agora preciso voltar a trabalhar. Miss Brand, quer fazer o favor de pedir ao Dr. Walter que venha aqui, se estiver livre? Nós nos veremos na hora do almoço — disse a Bond, despedindo-o.
Este fez com a cabeça que sim.
— Acho que vou caminhar até a cúpula e dar uma olhadela no ponto de disparo — falou sem saber direito porque mentia. Virou-se e seguiu Gala Brand através das portas duplas e depois até a base do cilindro.
Enorme serpente negra de fios de borracha se retorcia sobre o brilhante chão de aço, e Bond observou a moça escolher o caminho por entre suas voltas até onde se encontrava Walter, sozinho. Olhava a boca do tubo do combustível ser levantada para onde um guindaste, esticado até a soleira de uma porta de acesso, na metade do foguete, indicava os principais tanques de combustível.
A moça disse qualquer coisa a Walter e depois ficou olhando para cima, enquanto o tubo ia sendo delicadamente manipulado para o interior do foguete.
Bond achou que ela parecia muito inocente, ali de pé, com os cabelos castanhos soltos e a curva da garganta cor de marfim imergindo na blusa branca e simples. Com as mãos cruzadas nas costas, contemplando embevecida os faiscantes cinquenta pés do “Explorador da Lua”, poderia ser tomada por uma colegial mirando uma árvore de Natal — exceto pelo impudente orgulho dos seios atrevidos, levantados pela cabeça e os ombros jogados para trás.
Bond sorriu consigo mesmo ao chegar ao pé da escada de ferro e começar a subir. Aquela moça inocente, desejável, lembrou a si próprio, é uma policial extremamente competente. Sabe como desferir pontapés e onde; pode quebrar meu braço, provavelmente mais depressa e com mais facilidade do que eu poderia quebrar o dela, e pelo menos metade de seu ser pertence à Seção Especial da Scotland Yard. Naturalmente, refletiu, baixando os olhos a tempo de vê-la seguir o Dr. Walter até o escritório de Drax, existe sempre a outra metade.
Lá fora, o brilhante sol de maio parecia particularmente dourado depois do branco azulado dos arcos, e Bond sentia-o quente nas costas ao caminhar deliberadamente pelo concreto em direção à casa. O apito de nevoeiro do Goodwin estava silencioso, e a manhã tão calma que ele podia ouvir as batidas rítmicas dos motores de um navio, quando este passava por Inner Leads, entre o Goodwin e a praia, a caminho do Norte.
Aproximou-se da casa, protegido pelo largo muro contra o vento, e então, rapidamente, atravessou as poucas jardas até a porta da frente, sem produzir o menor ruído com os sapatos de crepe-sola. Abriu a porta, deixou-a escancarada e caminhou de leve para o háll onde se pôs à escuta. Ouviu o rumor das manhãs de verão; uma abelha batendo de encontro à vidraça de uma das janelas e um bulício confuso e distante nas barracas atrás da casa. Fora isto, o silêncio era profundo, cálido e tranquilizante .
Bond caminhou cautelosamente através do hall e pelas escadas acima, assentando os pés inteiros no chão e usando as extremidades dos degraus onde havia menos probabilidade de a madeira estalar. Não se ouvia barulho no corredor, mas Bond viu que sua porta, lá no fim do mesmo, estava aberta. Retirou o revólver da axila e foi seguindo depressa pela passagem atapetada.
Krebs estava de costas para ele. Achava-se ajoelhado no meio do quarto com os cotovelos no chão. Suas mãos se encontravam nas rodas do fecho de segredo da pasta de couro de Bond. Toda sua atenção focalizava-se no estalido das linguetas do fecho.
O alvo era tentador, e Bond não hesitou. Seus dentes apareceram num sorriso cruel, deu dois passos rápidos para dentro do quarto e mandou o pé com violência.
Toda sua força se concentrava na ponta do sapato, e seu equilíbrio e tempo foram perfeitos.
Um grito de gralha partiu de Krebs quando, como a caricatura de um sapo pulando, saltou por cima da pasta de Bond mais ou menos um metro adiante, batendo na frente da cômoda de mogno. Sua cabeça foi de encontro ao centro com tanta fôrçia, que a pesada peça dançou na base. O grito foi abruptamente interrompido, e ele tombou esticado e inerte sobre o tapete, ali permanecendo.
Bond ficou olhando e esperando ouvir o som de passos apressados, mas o silêncio continuou a reinar dentro da casa. Passou por cima do corpo, curvou-se sobre ele e ajeitou-o de costas. O rosto em torno do borrão do bigode amarelo estava pálido e um pouco de sangue escorria de um corte no alto da fronte. Os olhos continuavam fechados, e a respiração normal.
Bond ajoelhou-se num lado só e começou a dar uma busca minuciosa em todos os bolsos do terno alinhado, cinzento, de listas fininhas, que o homem trajava, colocando desapontado o magro conteúdo no tapete ao lado do corpo. Não havia caderninhos de nota nem papéis. Os únicos objetos de interesse eram um molho de chaves-mestras, uma faca de mola com uma lâmina de estilete bem amolada e uma espécie de cassetete de couro preto em forma de trouxa. Bond guardou essas coisas no bolso, foi até a mesinha de cabeceira e pegou a garrafa intacta de água de Vichy.
Foram necessários cinco minutos para fazer Krebs voltar a si e fazê-lo sentar-se com as costas apoiadas na cômoda. Mais cinco para que recuperasse a voz. Pouco a pouco a cor foi voltando-lhe ao rosto e a astúcia aos olhos.
— Não respondo perguntas a não ser a Sir Hugo — declarou quando Bond começou o interrogatório. — Você não tem o direito de me fazer perguntas. Eu cumpria meu dever.
Sua voz era mal-humorada e segura de si.
Bond segurou a garrafa vazia de Vichy pelo gargalo.
— Refuta novamente. Do contrário, eu lhe bato com isto até quebrar, e depois usarei o gargalo para alguma cirurgia plástica. Quem lhe mandou revistar meu quarto?
— Leck mich am Arsch — Krebs cuspiu o insulto obsceno na cara de Bond.
Este curvou-se e vibrou-lhe violenta pancada nas canelas.
O corpo de Krebs dobrou-se mas, quando Bond tornou a levantar o braço, ergueu-se subitamente do chão e mergulhou por baixo da garrafa que descia. O golpe pegou-o rijo no ombro, porém não lhe cortou o ímpeto, e ele se encontrou do outro lado da porta, já no meio do corredor, antes de Bond partir em sua perseguição.
Bond parou então do lado de fora da porta e observou a figura ligeira desaparecer pelas escadas, fora de suas vistas. Em seguida, o rinchar das solas de borracha descendo às pressas as escadas se fez ouvir até atravessar o hall. Bond riu abruptamente para si mesmo, voltou para o quarto e fechou a porta. Além de quase arrebentar a cabeça do sujeito, tudo indicava que não arrancaria nada dele. Animal astucioso. Seus ferimentos não poderiam ter sido assim tão maus, no fim das contas. Bem, caberia a Drax castigá-lo. A não ser, naturalmente, que Krebs estivesse executando suas ordens.
Pondo em ordem a confusão do seu quarto, Bond sentou-se na cama e olhou a parede do lado oposto com olhos que nada viam. Não tinha sido apenas o instinto que o levara a dizer a Drax que iria até o ponto do tiro, em vez de voltar para a casa. Passara-lhe seriamente pela ideia o fato de que a espionagem de Krebs era feita por ordem de Drax e que este organizava seu próprio sistema de segurança. Entretanto, de que maneira isto se entrosava com as mortes de Tallon e Bartsch? Ou o duplo assassínio teria sido uma coincidência sem nenhuma relação com as marcas do mapa e as impressões digitais de Krebs?
Como que chamado pelos seus pensamentos, bateram à porta, e o mordomo entrou. Vinha seguido por um sargento da polícia, com o uniforme de patrulheiro de estrada, que fez continência e entregou um telegrama a Bond. Bond levou-o até a janela. Vinha assinado: Baxter, que queria dizer Vallance, e dizia:
PRIMEIRA CHAMADA VEIO DA CASA SEGUNDO LUGAR NEVOEIRO EXIGIU FUNCIONAMENTO BUZINA DE NEVOEIRO DE MODO QUE NAVIO FOI OUVIDO VÍRGULA NÃO OBSERVOU NADA TERCEIRO LUGAR SUA ÁREA SUSPEITA FICA MUITO PERTO PRAIA ASSIM FORA DAS VISTAS DOS ÚLTIMOS PONTOS DOS GUARDA-COSTAS DE SAINT MARGARET OU DEAL.
— Obrigado — disse Bond. — Não tem resposta.
Depois de fechar a porta, chegou o isqueiro aceso ao telegrama e depois deixou-o cair na lareira, reduzindo os restos queimados a pó com a sola do sapato.
Dali nada mais se aproveitava, exceto que a chamada de Tallon para o Ministério poderia realmente, ter sido ouvida por alguém da casa, o que teria resultado na busca em seu quarto, que, por sua vez, teve como consequência a morte do major. Mas que dizer de Bartsch? Se tudo aquilo fazia parte de uma coisa muito maior, como poderia ser ligada a um atentado de sabotagem ao foguete? Não seria muito mais simples supor que Krebs era um espião nato, ou ainda mais provável, que estivesse trabalhando para Drax, que parecia ser meticulosamente cônscio da necessidade de segurança e que podia também querer certificar-se da lealdade de seu secretário, de Tallon, e, sem dúvida, depois do encontro no Blades, de Bond? Não seria agir justamente como o chefe (e Bond conhecera alguns que se adaptariam perfeitamente ao tipo) de um projeto super-secreto durante a guerra, que reforçava a segurança oficial com seu próprio sistema de espionagem particular?
Se essa teoria fosse correta, restava apenas o duplo assassínio. Agora que Bond fora contagiado pela magia e tensão do “Explorador da Lua”, os fatos referentes aos tiros histéricos pareciam mais razoáveis. Quanto às marcas no mapa, poderiam ter sido feitas num dia qualquer do ano anterior; os binóculos para noite eram isto apenas: binóculos para noite, e os bigodes dos homens apenas uma quantidade de bigodes.
Bond sentou-se no quarto silencioso, remexendo as peças do quebra-cabeças, de modo que dois quadros inteiramente diversos se alternavam em sua mente. Num deles o sol brilhava, tudo estava límpido e inocente como o dia. O outro era uma confusão culposa de motivos, suspeitas obscuras e interrogações de pesadelo.
Quando o gongo soou para o almoço, ele ainda não sabia que quadro escolher. Para adiar a decisão, afastou do espírito tudo, menos as perspectivas da tarde que passaria sozinho com Gala Brand.
CAPITULO 16
UM DIA GLORIOSO
Era uma tarde maravilhosa, azul, verde e dourada. Quando deixaram a faixa de concreto passando pelo portão da guarda, perto do ponto de tiro, agora ligado à base de lançamento por um grosso cabo, pararam um momento à beira do grande penhasco calcário e ficaram olhando todo o trecho da Inglaterra onde César ancorara pela primeira vez dois mil anos atrás.
À esquerda, o tapete de grama verde, salpicado de pequeninas flores silvestres descia gradativamente para as longas praias de pedregulho de Walmer e Deal, que se curvavam para Sandwich e a baía. Mais além, os penhascos de Margate, surgindo brancos dentre a névoa distante que ocultava o North Foreland, guardavam a mancha cinzenta do aeródromo de Manston, acima do qual aviões a jato norte-americanos descreviam suas parábolas no céu. Em seguida, vinha a Ilha de Thanet e, fora do raio visual de ambos, a embocadura do Tâmisa.
A maré era baixa, e os Goodwins pareciam dourados e suaves dentro do azul cintilante do Canal mostrando apenas o conjunto de mastros e cordames que se esticavam para contar a verdadeira história. As letras brancas do navio-farol South Goodwin estavam fáceis de ler, e até o nome do navio irmão, mais para o norte, surgia branco contra o vermelho do casco.
Entre as areias da costa, ao longo do canal de doze braças do Inner Leads, havia meia dúzia de navios navegando pelo Downs. O som ritmado de seus motores destacava-se claramente dentro do mar calmo e, entre as areias cruéis e o contorno nítido da costa francesa, viam-se navios de todas as procedências rumando para seus destinos — navios de passageiros de linha regular, navios mercantes, rústicas chalupas holandesas e até uma esguia corveta correndo para o sul, talvez para Portsmouth. Até onde a vista alcançava, o lado oriental mais próximo da Inglaterra estava coalhado de embarcações, dirigindo-se para os horizontes distantes, para um porto nacional ou para o outro lado do mundo. Era um panorama cheio de colorido, excitação e romance, e as duas criaturas, ali na borda do penhasco, mantinham-se em silêncio enquanto permaneciam por algum tempo observando tudo.
A paz foi turbada por dois uivos de sirena, provenientes da casa, e eles se viraram, para olhar o mundo negro e feio de concreto, que haviam banido de seus espíritos. Enquanto olhavam, uma bandeira vermelha foi hasteada por cima da cúpula de lançamento, e duas ambulâncias da RAF, com as cruzes vermelhas nos lados, irromperam do renque de arvoredo, na direção do muro, e aí estacaram.
— Vai começar a operação combustível — disse Bond. — Vamos principiar nosso passeio. Nada haverá para ver e, se por acaso acontecesse alguma coisa, nós não sobreviveríamos, quase com certeza, no ponto em que nos encontramos.
A moça sorriu.
— É verdade. E eu já estou cheia de olhar para todo esse concreto.
Seguiram ambos pelo declive suave e, dentro em pouco, encontravam-se já longe do alcance de tiro e da alta cerca de arame.
O gelo da reserva de Gala derretia-se rapidamente ao sol.
A alegria exótica de sua toalete, uma blusa de algodão listrada de branco e preto, metida num cinto largo, pespontado à mão, também preto, encimava uma saia meio curta, rosa shocking, e o conjunto parecia contagiá-la. Era impossível, para Bond, reconhecer a mulher frígida e distante da noite anterior naquela que caminhava agora a seu lado, rindo e feliz de sua ignorância a respeito dos nomes de flores selvagens: a erva de S. Pedro, a fumaria e outras, em tons azuis, que rodeavam seus pés.
Triunfalmente, encontrou uma orquídea selvagem e colheu-a .
— Você não faria isso, se soubesse que as flores gritam quando são colhidas — disse Bond.
Gala olhou para ele.
— Que quer você dizer com isso? — perguntou, suspeitando um gracejo.
— Ah, você não sabia? — Bond sorriu, ao observar a reação de Gala. — Existe um professor hindu, chamado Bhose, que escreveu um tratado sobre o sistema nervoso das flores. Mediu a reação delas à dor. Chegou mesmo a registrar o grito de uma rosa, quando é colhida. Deve ser um dos sons mais lancinantes do mundo, não lhe parece? Pois eu ouvi algo de semelhante quando você colheu essa flor.
— Não acredito — disse Gala, olhando desconfiada para a raiz arrancada. — Mas, de qualquer maneira — acrescentou, maliciosa — eu jamais pensaria que você fosse capaz de sentimentalismos. As pessoas, no seu Serviço, não fazem de matar um ofício? E não são apenas flores. São pessoas.
— As flores não podem atirar em nós, também — disse Bond.
Gala olhou a flor.
— Agora você me fez sentir como se fosse uma criminosa. É muita maldade sua. Mas — confessou relutante — terei de descobrir essa história do hindu, e se você tiver dito a verdade, nunca mais apanharei uma flor enquanto viver. Que faço com esta? Você me fez sentir com as mãos sangrando completamente.
— Dê para mim. De acordo com você, minhas mãos já estão gotejando sangue. Um pouco mais não fará diferença.
A moça ofereceu-lhe a flor, e suas mãos se tocaram.
— Você poderá colocá-la no cano do revólver — falou, para disfarçar o instante do contato.
Bond riu:
— Quer dizer que os orifícios não servem só para decoração. Mas a minha é uma pistola automática, e eu deixei-a no quarto.
Enfiou o talo da flor numa das casas de sua camisa de algodão:
— Achei que um coldre de ombro chamaria um pouco a atenção sem o paletó para cobri-lo. Depois não acredito que ninguém vá mexer em meu quarto esta tarde.
Numa concordância tácita, eles se afastaram do momento de intimidade. Bond contou sua descoberta a respeito de Krebs e a cena do quarto.
— Foi bem feito para ele. Nunca confiei nesse homem. Mas o que é que diz Sir Hugo?
— Falei com ele antes do almoço — respondeu Bond.
—Entreguei-lhe a faca e as chaves de Krebs como prova. Ficou furioso e saiu imediatamente à procura do sujeito, resmungando de cólera. Quando voltou, me disse que Krebs parecia já se encontrar num estado deplorável e perguntou se eu não me dava por satisfeito ao saber que fora bem castigado. Repetiu toda aquela história de não querer perturbar sua equipe na última hora, etc. e tal. De modo que concordei em que fosse mandado de volta à Alemanha na próxima semana e que, enquanto isto, se considerasse preso sob palavra — sendo-lhe permitido apenas deixar o quarto vigiado.
Bond e sua companheira desceram um caminho íngreme do penhasco até a praia, virando à direita, para Royal Marine, em Deal. Caminharam em silêncio até chegarem a uma extensão de duas milhas de uma praia coberta de cascalho que, durante o tempo de maré baixa, corre entre os elevados penhascos brancos até a baía de Sta. Margarida.
Enquanto esmagavam lentamente as pedrinhas macias, Bond contou tudo que lhe passara pela cabeça desde o dia anterior. Não guardou nada. Relatou todos os passos tomados, as pistas falsas que seguira em cada um dos pontos de partida, não deixou nada por comentar, exceto uma tênue suspeita mal fundada e um amontoado de indícios que terminavam todos na mesma interrogação. . . onde estava o X da história? Onde achar um plano no qual os indícios se encaixassem? E sempre a mesma resposta: nada do que Bond sabia ou suspeitava parecia ter qualquer relação concebível com a segurança contra a sabotagem do “Explorador da Lua”. Isto, no entanto, quando tudo fora dito e feito, era a única coisa com que ele e a moça tinham que ver. Não com a morte de Tallon e Bartsch, ou com o ordinário Krebs, mas somente com a proteção de todo o projeto relacionado com o “Explorador da Lua” contra seus possíveis inimigos.
— Não é verdade? — finalizou Bond.
Gala parou e ficou um momento olhando por entre as rochas e algas a calma cintilação das ondas do mar. Estava suada e ofegante depois da caminhada difícil pelo caminho de cascalhos. Pensava como seria maravilhoso tomar um banho de mar — voltar por um momento aos dias da infância à beira-mar, antes de sua vida ter sido presa nesta estranha profissão, cheia de emoções decepcionantes e tensões nervosas. Olhou o rosto moreno e cruel do homem ao seu lado. Será que teria momentos de anseio pelas coisas simples e calmas da vida? Com certeza não. Gostava de Paris, Berlim e New York, trens, aviões, comida cara e, sim, certamente, de mulheres caras.
— Então? — perguntou Bond, conjeturando se ela ia apresentar algum indício que ele não percebera. — Que é que acha?
— Desculpe. Eu estava sonhando acordada. Não, eu acho que você tem razão. Estou aqui desde o princípio e, apesar de ter notado coisinhas estranhas de vez em quando, fora os tiros resultando em duas mortes, claro, não vi absolutamente nada de incorreto. Todos os componentes da equipe, de Sir Hugo para baixo, estão de corpo e alma dedicados ao foguete. Vivem unicamente para isso, e tem sido maravilhoso ver tudo se desenvolver. Os alemães são trabalhadores ao extremo — posso bem acreditar que Bartsch tenha perecido pela tensão exagerada dos nervos — gostam de ser dirigidos por Sir Hugo, e ele gosta de dirigi-los. Eles adoram-no. Quanto à segurança, o local está sólido e bem guarnecido. Tenho certeza de que se alguém quisesse se aproximar do “Explorador da Lua” seria feito em pedaços. Concordo com você a respeito de Krebs e que ele, provavelmente, estivesse agindo sob as ordens de Drax. Foi por isto que não me dei o trabalho de ir contar--lhe quando ele andou mexendo nas minhas coisas. Não havia nada para ele encontrar, naturalmente. Só cartas particulares e coisas assim. Seria típico de Sir Hugo procurar certificar-se com absoluta minúcia. Aliás, devo dizer que o admiro por isto — acrescentou com franqueza. — Ele é um homem cruel, com maneiras deploráveis, e não muito simpático debaixo de toda aquela cabelada vermelha, mas eu gosto de trabalhar para ele e estou ansiosa para que o “Explorador da Lua” seja um sucesso. Viver ao lado dele durante tanto tempo fez com que eu me sentisse exatamente como seus homens.
Gala levantou os olhos para ver a reação do companheiro. Este baixou a cabeça, assentindo.
— Depois de um dia apenas, eu posso compreender isto — disse. — Creio que concordo com você. Não há nada em que nos basearmos, exceto minha intuição, e isto é uma coisa que não conta. O principal é que o “Explorador da Lua” parece seguro, tão seguro quanto as joias da Coroa e, provavelmente, ainda mais.
Bond sacudiu os ombros impaciente, aborrecido consigo mesmo, por renegar as intuições que contavam tanto em seu trabalho.
— Vamos embora — convidou quase rude. — Estamos perdendo tempo.
Compreendendo, a moça sorriu e seguiu o companheiro.
Contornando a próxima inclinação do penhasco, chegaram à base do elevador, coberto de algas marinhas e crustáceos . . . Cinquenta jardas mais adiante alcançaram o dique, construção forte, tubular, de ferro, calçado de tiras de aço entrelaçadas, que avançava sobre as rochas e mais além.
Entre os dois, e talvez uns vinte pés acima da face do penhasco, escancarava-se a boca negra e larga do túnel de exaustão, que subia inclinada dentro do penhasco para o chão de aço sob a popa do foguete. Da borda inferior da cavidade, giz derretido caía como lava, e viam-se respigos da matéria por cima de todos os pedregulhos e rochas lá embaixo. Com os olhos da imaginação, Bond via um rastro ofuscante de flama branca surgir uivando da parede do penhasco e ouvia o sibilo e borbulhar, quando o giz líquido se derramava na água.
Levantou os olhos para a estreita faixa da cúpula de lançamento que aparecia acima da borda do penhasco, duzentos pés acima, imaginando os quatro homens com suas máscaras contra gases, vestidos com roupas de asbetos, observando os instrumentos medidores enquanto o terrível líquido explosivo pulsava pelo tubo negro de borracha até o estômago do foguete. De repente, percebeu que se encontravam dentro do raio de ação, se alguma coisa não desse certo no enchimento de combustível.
— Vamos sair daqui — disse à pequena.
Quando umas cem jardas se interpuseram entre eles e a cavidade, Bond parou e olhou para trás. Imaginou-se acompanhado de mais seis homens fortes e durões, com todos os instrumentos necessários — e conjeturou como daria início a um ataque à base, vindo do mar — embarcações presas ao cais, quando a maré estivesse baixa; uma escada na borda da cavidade? e depois o quê? Seria impossível galgar as paredes de aço polido do túnel exaustor. Seria uma questão de disparar uma arma antitanque através do chão de aço por baixo do foguete, seguida de algumas granadas de fósforo, e esperar que alguma coisa pegasse fogo. Negócio meio confuso, mas que talvez desse resultado. Sair depois seria complicado. Seriam alvos fáceis para quem estivesse no topo do penhasco. Mas isto não perturbaria um esquadrão suicida russo. Era tudo muito possível de realizar.
Gala estivera ao seu lado, observando os olhos que mediam e especulavam.
— Não é tão fácil como você pensa — disse, vendo-lhe a testa franzida. — Mesmo quando a maré é alta e o mar muito forte, colocam guardas ao longo do cimo do penhasco de noite. Eles têm holofotes, Brens e granadas. As ordens que recebem são de atirar, e fazerem as perguntas depois. Naturalmente seria melhor iluminar completamente o penhasco à noite. Mas isto só serviria para tomar a base um alvo certeiro. Estou convencida de que pensaram em tudo.
Bond continuava franzindo a testa.
— Se eles tivessem cobertura do ataque por um submarino ou uma embarcação, um grupo eficiente ainda conseguiria realizar o negócio. Vai ser o diabo, mas eu vou nadar. O mapa do Almirantado diz que existe um canal de doze braças ali adiante, mas eu gostaria de dar uma olhada. Deve ter muita água no final do dique, contudo eu me sentirei mais feliz quando verificar com meus próprios olhos.
Sorriu para a moça:
— Por que você não vem nadar também? A água deve estar bastante fria, mas lhe faria bem, depois de ter estado a cozinhar-se dentro daquela cúpula de concreto a manhã inteira .
Os olhos de Gala se iluminaram.
— Acha que eu posso? — perguntou, hesitante. — Estou com um calor tremendo. Mas que é que nós vamos vestir?
Corou ao lembrar-se de suas calcinhas e porta-seios minúsculos e de nylon quase transparentes.
— Deixe isto pra lá — disse Bond aèreamente.
— Você deve ter alguns trapinhos vestidos aí por baixo, e eu estou de short. Estaremos perfeitamente respeitáveis, e não há ninguém por aqui para ver. Depois, eu prometo não olhar — mentiu alegremente, seguindo na frente até a próxima inclinação do penhasco.
— Você se despe atrás dessa rocha, e eu desta outra.
— Vamos. Não seja tola. Tudo faz parte de nossas obrigações .
Sem esperar a resposta dela, encaminhou-se para trás de uma rocha elevada, tirando a camisa enquanto andava.
— Ora, muito bem — disse Gala, aliviada por ter a resolução sido tirada de suas mãos. Foi para trás de outra rocha e lentamente desabotoou a saia.
Quando espiou nervosamente para fora, Bond já ia na metade do trecho de áspera areia marrom que seguia por entre os pequenos lagos para onde a maré enchente rodopiava entre os verdes e negros detritos das rochas... O rapaz tinha uma aparência elástica e a pele bronzeada. O short azul era tranquilizador.
Pisando de leve, ela seguiu-o e, de repente, estava dentro d’água. Imediatamente nada mais teve importância, fora do gelo aveludado do mar, a beleza das manchas de areia por entre os cabelos ondulados das algas marinhas que via nas profundezas verdes e claras abaixo dela quando mergulhou a cabeça e nadou paralelamente à praia num rápido crawl.
Ao se encontrar ao nível do dique, parou um momento para tomar fôlego. Não se via sinal de Bond, que ela vira nadando vários metros à frente. Bateu com os pés fortemente dentro da água para manter viva a circulação e então recomeçou novamente, pensando nele sem querer, pensando no corpo rijo e moreno que devia estar ali por perto, entre as rochas, talvez, ou mergulhando para a areia, a fim de calcular a profundidade da água com que um inimigo podia contar.
Virou-se para procurá-lo de novo, e foi então que ele surgiu inesperadamente do mar, por baixo dela. Sentiu o abraço rápido e apertado e o contato breve mas forte dos lábios dele nos seus.
— Vá para o diabo — exclamou furiosa, mas o rapaz já bavia mergulhado novamente, e quando ela golfou uma porção de água do mar, conseguindo orientar-se, ele nadava alegremente a vários metros de distância.
Gala voltou-se e nadou displicente, sentindo-se bastante ridícula, porém resolvida a pô-lo no seu lugar. Era exatamente como tinha pensado. Esse pessoal do Serviço Secreto sempre encontrava tempo para o sexo, por mais importante que fosse a missão de que se encarregavam.
Mas seu corpo vibrava obstinadamente com o imprevisto do beijo, e o dia luminoso parecia ter adquirido nova beleza. Enquanto nadava mais para fora, virou-se e olhou os dentes brancos como leite, dentes da Inglaterra que rosnavam, olhou o braço distante de Dover, o confete branco e preto dos corvos e gaivotas, jogados contra o vivido pano de fundo dos campos verdes, e chegou à conclusão de que tudo seria permitido num dia assim e que, só por aquela vez, ela o perdoaria.
Meia hora depois estavam deitados, esperando que o sol viesse secá-los, separados pela respeitável distância de um metro de areia, ao pé do penhasco.
O beijo não fora mencionado, mas os esforços de Gala para manter uma atitude de alheamento haviam tombado com a excitação de examinar uma lagosta que Bond apanhara com as mãos, ao mergulhar. Relutantemente, tornaram a colocá-la numa das cavidades da rocha e ficaram observando seus movimentos de volta ao abrigo das algas marinhas. Agora, ali estavam, cansados e alegres com o banho gelado, rezando para que o sol não se escondesse atrás do penhasco acima de suas cabeças antes de estarem aquecidos e suficientemente secos para poder vestirem novamente as roupas.
No entanto, não eram só estes os pensamentos de Bond. O lindo corpo estirado da pequena ao seu lado, incrivelmente erótico na ênfase marcante das calcinhas e porta-seios agarrados à pele, interpunha-se entre ele e sua preocupação com o “Explorador da Lua”. Além do mais, não havia nada que ele pudesse fazer pelo foguete durante mais uma hora. Ainda não eram cinco, e a tomada de combustível não terminaria senão depois das seis.
Seria somente àquela hora que ele poderia aproximar-se de Drax para certificar-se de que nas duas próximas noites haveria um acréscimo de guardas no penhasco e que eles possuíam as armas adequadas. Pois verificara com os próprios olhos que havia muita água, mesmo com a maré vazante, possibilitando a chegada de um submarino.
De modo que contava pelo menos com um quarto de hora livre antes de poderem voltar.
No intervalo havia essa pequena. O corpo semidespido surgia acima dele na superfície, quando nadava em baixo dela; o beijo rápido, forte e suave ao mesmo tempo, com os braços em torno dele; as colinas pontudas de seus seios, tão próximas e o estômago macio e raso, descendo para o mistério das coxas fortemente cerradas.
Para o inferno, toda essa história.
Arrancou o espírito dessa febre e fitou diretamente o infindável azul do céu, forçando-se a observar a beleza das gaivotas esvoaçantes ao se alinharem sem nenhum esforço entre as correntes de ar que giravam sobre o alto topo dos penhascos acima deles. Mas a plumagem sedosa e branca do colo das aves desviou novamente seus pensamentos para ela, não lhe dando descanso.
— Por que você se chama Gala? — perguntou, para interromper a sequência de pensamentos cálidos e persistentes.
A moça riu.
— Durante todo meu tempo de escola mexiam comigo por causa disso — respondeu, e Bond se impacientou diante da voz clara, fácil. — Depois, quando pertenci às Wrens e ainda pela metade da força policial de Londres. Mas meu verdadeiro nome é ainda pior. É Galateia. Era o cruzador onde meu pai servia quando eu nasci. Creio que Gala não é tão ruim assim. Quase me esqueci do meu nome de verdade. Estou sempre precisando trocá-lo, agora que estou na Seção Especial.
— Na Seção Especial. Na Seção Especial. Na. . .
Quando a bomba cai. Quando o piloto calcula mal, e o avião bate antes de tocar a pista de aterrissagem. Quando o sangue deixa o coração, e a consciência foge, há pensamentos no cérebro, ou palavras, ou talvez uma frase musical que se repete durante os poucos segundos antes da morte, como o som moribundo de um sino.
Bond não estava morto, mas as palavras ainda estavam dentro de sua mente, vários segundos depois de tudo haver acontecido.
Desde o momento em que tinham-se deitado na areia, recostados no penhasco, enquanto seus pensamentos se concentravam em Gala, seus olhos haviam observado distraidamente duas gaivotas brincando em redor de uma ponta de palha que estava na beira do ninho, numa pequena saliência, cerca de uns trezentos metros abaixo do cume distante do penhasco. Inclinavam os pescoços e pareciam cumprimentar, em seu jogo amoroso, só com as cabeças, que Bond divisava contra o branco ofuscante do céu. Então o macho voava para longe e, imediatamente voltava à saliência da rocha, para recomeçar seu jogo de amor.
Bond observava-os sonhadoramente enquanto ouvia o que a moça dizia, quando, subitamente, as duas gaivotas fugiram da saliência da rocha com um só grito de pavor. No mesmo instante viu-se um rolo de fumaça negra e ouviu-se um estrondo amortecido vindo do alto do penhasco. Em seguida, uma grande quantidade de giz branco, bem acima das cabeças de Bond e Gala, pareceu desligar-se para fora, ziguezagueando fragmentos pela encosta.
Quando Bond se deu conta do que fazia, achou-se deitado em cima de Gala, o rosto apertado contra o dela, e percebeu que o ar estava cheio de trovões, que sua respiração estava abafada, e que o sol desaparecera. Sentia as costas dormentes e doendo sob um grande peso, e sua orelha esquerda, além do eco do trovão, guardava o som de um grito sufocado.
Mal teve consciência do se passava, e precisou esperar até que seus sentidos voltassem à vida.
A Seção Especial. O que foi que ela disse a respeito da Seção Especial?
Fez esforços inauditos para se mexer. Apenas no braço direito, o braço mais próximo do penhasco, ainda havia algum movimento, mas quando puxou o ombro, o braço ficou mais livre até que, finalmente, com um impulso grande para trás, a luz e o ar chegaram até eles. Lutando no nevoeiro de poeira de giz, alargou o buraco, até a cabeça poder retirar seu peso esmagador de cima de Gala. Sentiu o leve movimento, quando ela virou a cabeça para um lado, procurando a luz e o ar. Uma torrente de poeira e pedras no buraco que ele limpara fê-lo cavar ferozmente mais uma vez. Pouco a pouco, aumentou o espaço até conseguir firmar o cotovelo direito, e então, tossindo ao ponto de imaginar que os pulmões iam arrebentar, impulsionou o ombro direito para cima até que, de repente, livrou-o, bem como a cabeça.
Seu primeiro pensamento foi que tinha havido uma explosão no “Explorador da Lua”. Levantou os olhos para o penhasco e depois para a praia. Não. Estavam a cem metros da base. Foi apenas na linha do horizonte, diretamente acima deles, que um grande pedaço fora comido no penhasco.
Em seguida pensou no perigo imediato que corriam. Gala gemia, e ele sentia o frenético bater de seu coração contra o próprio peito, mas a máscara pavorosa e branca de seu rosto estava agora livre para respirar, e ele se pôs então a girar o corpo de um lado para o outro em cima dela, a fim de tentar aliviar a pressão de seus pulmões e do estômago. Lentamente, polegada por polegada, seus músculos partindo-se com o esforço, procurou caminho sob a pilha de poeira e detritos até o lado do penhasco, onde sabia que o peso seria menor.
Finalmente livrou o peito e pôde ajoelhar-se ao lado da companheira. O sangue pingava de suas costas e braços feridos, misturando-se com a poeira de giz que continuamente caía na parte lateral dos buracos que fizera mas verificou que não tinha ossos quebrados e, com a fúria do trabalho de salvamento, não sentiu dores.
Grunhindo e tossindo, sem uma pausa para respirar, ergueu-a e fê-la sentar-se e, com a mão sangrando, limpou um pouco do giz de seu rosto. Depois, livrando as pernas da tumba de giz, levantou-a e levou-a até uma elevação dos detritos, com as costas voltadas para o penhasco.
Ajoelhou-se e olhou aquele horrível espantalho branco que, minutos antes, fora uma das mais lindas moças que já vira. Enquanto olhava os filêtes de sangue escorrendo-lhe pelo rosto, rezou para que seus olhos se abrissem.
Quando, segundos mais tarde, eles se abriram, o alívio foi tão grande, que Bond se afastou e sofreu tremenda crise de náuseas.
CONTINUA
A um quilômetro da base, aproximadamente, Drax estacou.
— Eu explicarei a geografia — disse ele. — Walter, siga na frente. Já devem estar esperando por você, para dar outra olhada naquelas barbatanas... Mas não se preocupe demasiado com elas, meu caro amigo. O pessoal das ligas de alto teor sabe muito bem o que está fazendo. E agora — continuou Drax, olhando para Bond, enquanto fazia um gesto na direção da cúpula branca como leite — ali dentro está o “Explorador”. O que você vê é o topo de uma plataforma que foi escavada a mais de quarenta pés de profundidade, no terreno calcário. As duas metades da cúpula são abertas hidràulicamente e recolhidas para trás, ao nível do muro de vinte pés. Se agora estivessem abertas, você veria o cone final do “Explorador”, ao nível do muro. Ali — apontou para uma sombra retangular que estava já quase fora do campo visual de ambos, na direção de Deal — fica a casamata de controle, de onde se comanda o disparo. É um blocausse em concreto. Está cheio de dispositivos de radar de rastreio — tanto o radar de velocidade Doppler como o radar de rastreio de direção de voo, por exemplo. As informações são fornecidas por meio de vinte canais telemétricos, alojados no cone do foguete. Também existe ali dentro uma enorme tela de televisão, de modo que se pode acompanhar o comportamento do foguete no interior da cápsula, depois de iniciado o voo. Um outro conjunto de televisores serve para acompanhar o início da ascensão. Ao lado da casamata, há um elevador que desce ao longo do penhasco. Uma boa parte das peças e maquinismos foi trazida para a base por via marítima e transportada até cá em cima por meio desse monta-cargas. Aquele gemido que você escuta, vem da central elétrica, ali mais adiante — e Drax fez um gesto vago, em direção a Dover. — Os alojamentos dos homens e a casa são protegidos pelo muro à prova de deslocação de ar. Mas quando fizermos o lançamento, não deverá haver ninguém dentro de um raio de ação de um quilômetro e meio, a partir da base, exceto os técnicos do Ministério e a equipe da B.B.C., que estará colocada na casamata de comando. Espero que o muro aguente bem a deslocação de ar. Walter diz que a base e uma boa parte da faixa de concreto derreterão com o calor. E é tudo. Nada mais precisa saber, até entrarmos. Vamos.
Bond tornou a observar o tom rude de comando. Seguiu em silêncio, atravessando uma zona banhada de luar, até chegarem à parede de suporte da cúpula. Uma lâmpada vermelha brilhava na parede, por cima de uma porta de aço chapeado. Iluminava um grande letreiro que dizia em inglês e alemão:
PERIGO DE MORTE.
ENTRADA PROIBIDA QUANDO A LÂMPADA VERMELHA ESTIVER ACESA.
TOQUE A CAMPAINHA E ESPERE.
Drax apertou o botão por debaixo do letreiro, e ouviu-se o som abafado de uma campainha de alarma.
— Pode estar alguém trabalhando com o oxiacetileno, ou fazendo qualquer outro trabalho delicado — explicou Drax. — Basta que desvie sua atenção do serviço, pela fração de um segundo, caso alguém entre sem aviso, e isso poderia resultar num erro bastante caro. Todos largam os utensílios quando a campainha soa, e só recomeçam quando veem de que se trata.
— Drax afastou-se um pouco da porta e apontou para uma série de gradeados dispostos logo abaixo do remate da parede. — São os exaustores de ventilação — continuou ele explicando.
— O ar condicionado no interior da cúpula mantém-se constantemente a setenta graus Farenheit.
A porta foi aberta por um homem que empunhava um cassetete de policial e trazia um revólver no cinturão. Bond seguiu Drax até uma pequena antecâmara. Esta nada tinha senão um banco e uma fileira bem arrumada de chinelos de feltro.
— Terá de calçá-los — disse Drax, sentando-se e tirando os sapatos. — Poderia escorregar e esbarrar contra alguém. O melhor é deixar aqui também seu casaco. Setenta graus Farenheit é uma temperatura bastante elevada.
— Obrigado — disse Bond, lembrando-se da Beretta encaixada sob a axila. — A verdade é que não sinto calor algum.
Sentindo-se como um visitante num teatro em dia de ensaios, Bond seguiu Drax através de uma porta de comunicação, passando depois por um estreito corredor e desembocando numa série de projetores que, instintivamente, o fizeram levar a mão aos olhos, enquanto com a outra se agarrava ao gradeado do corrimão protetor, à sua frente.
Quando retirou a mão, foi brindado com uma cena de tal esplendor que, durante vários minutos, ficou sem fala, os olhos fascinados pela terrível beleza da mais poderosa arma existente sobre a Terra.
CAPITULO 12
O “EXPLORADOR DA LUA”
Era como se o tivessem metido no tambor polido de um gigantesco revólver. Partindo do chão, a mais de doze metros abaixo da varanda onde se encontravam, erguia-se uma parede circular, de metal polido, no topo da qual, ele e Drax se colavam como duas moscas. No centro desse imenso cilindro, que mediria pelo menos uns nove metros de diâmetro, estava colocado um gigantesco lápis de cromo, refulgente, cuja ponta, aguçando-se numa antena fina como agulha, parecia roçar o telhado, seis ou sete metros acima de suas cabeças.
O cintilante projétil descansava numa base cônica de aço, que se erguia do chão por entre as extremidades de três barbatanas em forma de delta, pronunciadamente puxadas para trás, e que parecia tão afiadas quanto bisturis de cirurgião. Mas, fora isso, nada mais empanava o brilho sedoso dos quinze metros de aço cromado e polido, exceto as duas garras que saíam das paredes e colhiam a cintura do foguete, por entre espessos acolchoados de espuma de borracha.
No ponto em que as garras tocavam o projétil, viam-se pequenas portas de acesso, abertas na superfície de aço e, quando Bond olhou para baixo, divisou um homem que saía agachado por uma delas, até alcançar a estreita plataforma do monta-cargas instalado paralelamente ao bojo do “Explorador”. Depois, fechou a porta com a mão enluvada. Encaminhou-se a passos miúdos, equilibrando-se pela estreita ponte, até alcançar a parede, e fez girar uma manivela. Ouviu-se um profundo gemido de maquinismo, e a garra retirou seu suporte acolchoado do bojo do foguete, ficando suspensa no ar, como as patas dianteiras de um louva-a-Deus. Os gemidos do mecanismo alteraram-se para um tom mais cavo, e a plataforma do monta-cargas, lentamente, foi-se retraindo, em movimento de telescópio. Depois, tornou a esticar-se e foi pegar o foguete, com a garra, três metros mais abaixo. Seu operador esgueirou-se de novo pelo braço e abriu outra pequena porta de acesso ao interior, desaparecendo dentro do foguete.
— Provavelmente está verificando o sistema de alimentação de combustível dos tanques posteriores — disse Drax. — A alimentação é feita por gravidade. Um sistema bastante complexo. Que acha você disto? — Observou com prazer a expressão de êxtase, estampada no rosto de Bond.
— Uma das coisas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida — respondeu Bond. Era fácil falar. Não se ouvia o menor som dentro do grande cilindro de aço, e as vozes dos homens apinhados lá embaixo, junto da cauda do foguete, não chegavam a eles senão como distante murmúrio. Drax apontou para cima e explicou:
— Veja o cone. O que está montado é apenas experimental, mas pode substituir-se, claro, por uma cápsula estratégica, com carga nuclear. Para este voo, irá cheia de instrumentos. Telêmetros e todas essas coisas. Depois, estão os giroscópios, bem defronte de nós. E, em seguida, quase exclusivamente, tanques de combustível até abaixo, quando temos então as turbinas, já próximas da cauda. Impulsionadas por vapor superaquecido, obtido na decomposição do peróxido de hidrogênio . O combustível, fluorina e hidrogênio... — olhou rapidamente para Bond. A propósito, isto é top secret, sabe?... pois o combustível, como dizia, baixa pelos tubos de alimentação e recebe a ignição logo que é introduzido no motor. Trata-se de uma espécie de explosão controlada, que impulsiona o foguete para o ar. Esse assoalho de aço onde o “Explorador” assenta agora, desliza então para fora, claro. Por baixo, há um enorme poço de exaustão. Tem saída para a base dos rochedos, do lado do mar. Amanhã você irá dar uma vista d’olhos. Parece uma gigantesca caverna, nada mais. Quando procedemos, há dias, a um teste estático, a substância calcária do terreno derreteu e correu para o mar como se fosse água. Espero que não acabemos por calcinar e destruir os famosos penhascos brancos de Dover, quando chegar a hora zero. Você gostaria de dar uma olhada nos trabalhos?
Bond seguiu em silêncio, quando Drax indicou o caminho, descendo por uma íngreme escada de ferro, que acompanhava a parede de aço em sua curvatura. Sentia agora invadir-se por uma onda de admiração e quase de reverência por esse homem e sua formidável realização. Como teria podido ele, Bond, deixar-se impressionar desfavoravelmente pela conduta infantil de Drax, à mesa de jogo? Mesmo os grandes homens têm suas fraquezas. E Drax necessitava dessa válvula de escape para a tensão a que o submetia a tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Tornava-se óbvio que Drax não podia confiar excessivamente em seus auxiliares direitos, de nervos à flor da pele. Dele sozinho devia partir a vitalidade e a confiança necessárias para manter elevado a moral de todos. Mesmo tratando-se de uma coisa tão insignificante quanto ganhar uma partida de bridge, devia ser importante para Drax estar-se assegurando constantemente da própria capacidade, procurando em tudo vaticínios de boa sorte e de êxito, chegando ao ponto de criar esses augúrios favoráveis por suas próprias mãos. Quem não suaria ou roeria as unhas, estando tanta coisa em jogo?
Enquanto contornavam a larga curva da escada, com suas figuras grotescamente refletidas na superfície cromada do foguete, como em um espelho mágico de feira, Bond sentia quase afeto pelo homem que, apenas há poucas horas, ele dissecara sem piedade e quase com ódio.
Quando chegaram à plataforma da base de aço do cilindro, Drax fez uma pausa e olhou para cima. Bond seguiu o olhar do outro. Visto naquela perspectiva, o “Explorador” dava-lhes a impressão de estar olhando para um fino cone vertical de luz, perdendo-se na abóbada cintilante, um feixe de luz que não era totalmente branco, mas de uma tonalidade acetinada de madrepérola. Havia nele alguns pontos vermelhos e brilhantes, refletidos por um gigantesco extintor de incêndios, de neve carbônica, colocado a pouca distância. Um homem em traje de amianto estava postado ao lado do extintor, que apontava seu bico de leque para a base do foguete. Havia também uma estria de cor violeta, cuja origem provinha de uma lâmpada fixada ao painel de instrumentos, na parede. Servia para controlar os movimentos da cobertura de aço em que se encontravam e que os separava do poço de exaustão. Finalmente, um tom verde-esmeralda vinha da luz difusa de uma lâmpada com abajur, colocada sobre uma mesa de pinho, à qual se sentava um homem que ia anotando números que lhe eram transmitidos, de viva voz, pelo grupo reunido logo abaixo da cauda do foguete.
Levantando os olhos para aquela coluna em tons pastel, tão incrivelmente esguia e graciosa, parecia impossível que uma coisa tão delicada pudesse aguentar as pressões a que teria de submeter-se na próxima sexta-feira: o jato tronitruante da mais poderosa explosão controlada que alguma vez fora tentada; o impacto da barreira do som; as pressões desconhecidas da estratosfera, a quinze mil milhas por hora; o choque terrível quando retornasse, num mergulho de milhares de milhas de altura, para ferir de novo o envelope atmosférico da Terra.
Drax pareceu ler seus pensamentos. Voltou-se para Bond:
— É como perpetrar um assassinato — disse ele. Em seguida, de maneira surpreendente, explodiu numa risada asinina. —Walter! — chamou, dirigindo-se ao grupo de homens. — Venha cá!
Walter destacou-se dos outros e aproximou-se.
— Walter — prosseguiu Drax — eu estava dizendo ao nosso amigo, o Comandante, que quando lançarmos o “Explorador da Lua” será como se cometêssemos um crime de assassinato .
Bond não ficou surpreendido, ao ver uma expressão de incredulidade intrigada estampar-se no rosto do doutor. Irritado, Drax exclamou:
— Assassinato de uma criança. Assassinato de nosso filho — repetiu com um gesto na direção do foguete. — Acorde, homem! Acorde! Que se passa com você?
A fisionomia de Walter clareou. De um modo velado, sorriu, mostrando seu apreço pela comparação.
— Assassinato, Ah, sim! Essa é muito boa. Ha! Ha! E agora, Sir Hugo, as folhas de grafita no exaustor. O Ministério está satisfeito com o ponto de fusão? Eles não acham que. ..
Ainda falando, Walter levou Drax para debaixo da cauda do foguete. Bond seguiu ambos.
Os rostos dos dez homens estavam voltados para eles, quando chegaram. Drax apresentou-o com um gesto da mão.
— Comandante Bond, o nosso novo agente de segurança, — disse, conciso.
O grupo olhou Bond em silêncio. Não houve o menor movimento para ir cumprimentá-lo, e os dez pares de olhos não refletiam curiosidade.
— Então, que negócio é esse de tanta história com a grafita? . ..
O grupo se fechou em torno de Drax e Walter. Bond foi deixado só, para trás.
Não estava surpreso com a frieza da recepção. Teria olhado a intromissão de um amador nos segredos de seu próprio departamento com a mesma indiferença mesclada de ressentimento. Além do mais, simpatizava com esses técnicos apanhados a dedo, que tinham vivido durante meses a fios nas mais altas regiões da astronáutica e se encontravam agora no limiar do julgamento final. Entretanto, lembrava-se, os inocentes entre si deviam saber que Bond tinha seu próprio dever a cumprir, sua própria participação vital nesse projeto. Suponhamos, por exemplo, que um desses pares de olhos, nada comunicativos, escondesse um homem dentro de outro homem, um inimigo que, talvez, naquele instante mesmo exultasse com a certeza de que a grafita que Walter parecia não confiar era realmente sub-resistente. É verdade que tinham o aspecto de uma equipe bem unida, quase de uma fraternidade, ao se colocarem assim em torno de Drax e Walter, pendendo de suas palavras, os olhos atentos aos movimentos das bocas dos dois homens. Mas seriam parte de um cérebro, movimentando-se dentro da intimidade de uma órbita secreta, registrando seus cálculos ocultos como o mecanismo clandestino de uma máquina infernal?
Bond caminhava a esmo, para cima e para baixo do triângulo formado pelas três pontas das barbatanas que repousavam em suas cavidades forradas de borracha no chão de aço, interessando-se em tudo em que seus olhos pousavam, mas, de quando em quando, focalizando-os no grupo de homens, em ângulo diferente.
Com exceção de Drax, todos usavam o mesmo macacão justo de nylon, preso por fecho-éclair de plástico. Não se via o menor vestígio de metal, e nenhum deles usava óculos. Como no caso de Walter e Krebs, suas cabeças estavam raspadas bem rente. Provavelmente, pensou Bond, para evitar que um fio solto de cabelo pudesse cair dentro do engenho. Entretanto, e isso chamou-lhe a atenção como característica muito estranha da equipe, todos exibiam exuberantes bigodes, cuja manutenção exigia, sem dúvida, grande dose de cuidados. Eram de todos os formatos e tonalidades: louros, cor de rato ou escuros, em guidões de bicicleta, de foca, à Kaiser ou à Hitler — cada rosto exibia seu distintivo capilar, entre os quais a pelagem ruiva de Drax brilhava como insígnia oficial do chefe supremo.
Por que motivo, conjeturava Bond, todos os homens da base usavam bigode? Nunca os apreciara, mas combinados com as cabeças raspadas, lembravam algo de positivamente obsceno. Teria sido apenas tolerável, se todos fossem cortados no mesmo modelo, mas a variedade de gêneros individuais, essa anarquia de formatos, tinha um que de particularmente horrível, destacando-se do fundo composto pelas cabeças nuas e redondas.
Nada mais havia para chamar a atenção. Os homens eram de estatura mediana, e todos de tipo mais sobre o esguio — talhados, supunha Bond, mais ou menos de acordo com as necessidades do trabalho. A agilidade seria imprescindível nas plataformas, nas passagens ao longo das garras laterais e dos monta-cargas, e solidez para executar as manobras através das portas de acesso e dentro dos minúsculos espaços disponíveis nos compartimentos do foguete. As mãos deles pareciam ter os músculos e nervos relaxados. Eram imaculadamente limpas, e seus pés, metidos em chinelos de feltro, estavam imóveis pela concentração no trabalho. Bond não surpreendeu nenhum deles, em ocasião alguma, olhando em sua direção, movido pela curiosidade, e quanto a penetrar em seus espíritos ou calcular suas doses de lealdade, confessava a si próprio que a tarefa de desmascarar os pensamentos de cinquenta desses homens-robôs alemães, em três dias, era absolutamente impraticável. E lembrou-se, então, de que já não eram cinquenta. Apenas quarenta e nove. Um desses robôs estourara o tampo dos miolos. E o que transparecera dos pensamentos secretos de Bartseh, afinal? Desejo por uma mulher e um “Heil Hitler”. Estaria muito enganado, cogitava Bond, se julgasse que, esquecendo o “Explorador da Lua”, fossem esses também os pensamentos dominantes dentro de mais quarenta e nove cabeças?
— Dr. Walter! Estou dando uma ordem!
A voz de Drax, cheia de uma ira controlada, interrompeu os pensamentos de Bond, enquanto permanecia tocando com os dedos a aresta condutora de uma das barbatanas de columbite da cauda do foguete.
— Voltem ao trabalho! Já perdemos tempo demais!
Os homens se espalharam, pressurosos, cada um absorvido em sua tarefa, e Drax aproximou-se de Bond, deixando Walter vagando, indeciso, sob a enorme bocarra do exaustor de jato do foguete.
Drax mostrava uma fisionomia tempestuosa.
— Maluco do inferno — praguejou ele. — Está sempre descobrindo complicações.
Depois, como se quisesse esquecer seu adjunto, acrescentou bruscamente para Bond:
— Venha até meu escritório. Vou-lhe mostrar o plano de voo. Depois iremos dormir.
Bond seguiu-o. Drax girou uma pequena maçaneta embutida na parede de aço, e uma porta estreita se abriu, com um silvo abafado. A um metro mais para dentro, havia outra porta também de aço, e Bond notou que ambas eram cercadas de borracha, tornando o cilindro estanque à entrada de ar. Antes de fechar a porta externa, Drax parou na soleira e apontou, na parede circular, um bom número de maçanetas, quase invisíveis e semelhantes à que ele utilizara.
— São as portas das oficinas: geradores elétricos, controle de combustível, lavatórios, armazéns de materiais... — Apontou a porta seguinte. — Aqui é a sala de minha secretária. — Fechou a porta externa, antes de abrir a segunda e, entrando em seu escritório, fechou a porta interna atrás de Bond.
Era um recinto severo, pintado de cinza-claro, onde se via uma ampla escrivaninha e diversas cadeiras de metal tubular, forradas de lona azul-marinho. O chão era atapetado em cinza. Havia ainda dois fichários verdes e um grande aparelho de rádio, metálico. Uma porta semiaberta deixava entrever parte de um banheiro ladrilhado. A escrivaninha estava disposta de frente para uma larga parede lisa, que parecia ser construída de vidro opaco. Drax encaminhou-se para a parede e baixou dois interruptores, na extremidade direita. A parede inteira ficou iluminada como tela de cinema, e Bond se defrontou com dois mapas, cada um de seis pés quadrados, ambos desenhados no próprio vidro.
O mapa da esquerda mostrava toda a região oriental da Inglaterra, desde Portsmouth até Hull, bem como as águas adjacentes, nas latitudes entre 50 e 55 graus. Do ponto vermelho, próximo a Dover, que representava a base de lançamento do “Explorador da Lua”, partia uma série de círculos concêntricos, representando, com intervalos de dez milhas, o raio de ação do projétil. Num ponto distante 80 milhas da base, entre as ilhas Fríseas e Hull, via-se um losango vermelho, desenhado em pleno oceano.
Drax fez um gesto para as intrincadas tábuas matemáticas e as colunas de leitura de bússolas, que enchiam o lado direito do mapa.
— Velocidades de vento, pressão atmosférica, cálculos de computador para os giroscópios — foi explicando ele. — Tudo calculado na base da velocidade e raio de ação do foguete, como constantes matemáticas. Recebemos diariamente as previsões meteorológicas fornecidas pelo Ministério da Aeronáutica, bem como as leituras efetuadas na atmosfera superior, cada vez que um jato da RAF alcança essa altitude. Todos os relatórios nos são transmitidos. Quando um avião atinge a altitude máxima, solta balões de hélio que podem subir ainda mais e nos fornecem novas leituras. A camada atmosférica chega até cinquenta milhas de altitude, aproximadamente. Depois das primeiras vinte, não existe já qualquer densidade que possa afetar o progresso do foguete. Voará quase em vácuo. Atravessar as primeiras vinte milhas é que constitui o principal problema. A atração da gravidade, claro, é outra preocupação. Walter poderá explicar-lhe todas essas coisas, se você estiver interessado. Haverá informações contínuas sobre o tempo, durante as últimas horas até sexta-feira. E então ajustaremos os giroscópios, pouco antes do lançamento. Por enquanto, Miss Brand colige as informações recebidas todas as manhãs e organiza um mapa de movimentos giroscópicos, para o caso de ser necessário.
Drax apontou para o segundo dos dois mapas. Era um diagrama do voo elíptico do foguete, desde o ponto de lançamento até seu alvo. Havia ainda mais colunas de números e cifras.
— Aí temos o registro de velocidade da Terra e seus efeitos na trajetória do foguete — explicou Drax. — A Terra estará girando para Leste, em relação ao voo do foguete. Esses fatores têm de ser conjugados com o outro mapa, e é da leitura final que sairão as instruções de voo. É um negócio bem complicado. Felizmente você não precisa compreender. Deixe isso para Miss Brand. E agora — disse, apagando as luzes da parede que ficou novamente lisa — deseja fazer alguma pergunta a respeito de seu trabalho? Não creio que haja muita coisa para você fazer. Já viu que tudo foi feito com a máxima segurança. O Ministério insistiu para que assim fosse, desde o início.
— Tudo me parece em ordem — disse Bond.
Examinou a fisionomia de Drax, em seguida. O olho bom fitava-o intensamente. Bond fez uma pausa.
— Acha que havia alguma coisa entre sua secretária e o Major Tallon?
Era uma pergunta clara, e o melhor seria fazê-la agora.
— É possível, — respondeu Drax sem constrangimento. — Ela é moça atraente. Eram forçados a conviver, constantemente, na companhia um do outro. De qualquer maneira, parece que Bartsch ficou alucinado por ela.
— Ouvi dizer que Bartsch fez continência e gritou: “Heil Hitler” antes de virar a arma contra a boca — disse Bond.
— Foi o que me contaram — confirmou Drax, sem o mínimo interesse. — E daí?
— Por que motivo todos os homens usam bigode? — indagou Bond, ignorando a pergunta de Drax.
Novamente teve a impressão de que sua pergunta exasperara o outro homem.
Drax soltou uma de suas risadinhas curtas e ladradas.
— Foi uma ideia que eu tive. Eles são difíceis de reconhecer nesses macacões brancos e com as cabeças raspadas. Por isto mandei que todos deixassem crescer os bigodes. A coisa se tornou quase um fetiche. Como na RAF, durante a guerra. Vê alguma coisa de inconveniente nisso?
— Claro que não. A princípio é um tanto.. . surpreendente. Eu teria pensado que números grandes colocados nas roupas, com uma cor diferente para cada turma, teria sido mais eficiente.
— Pois bem — replicou Drax, voltando-se em direção à porta como para finalizar a conversação. — Decidi-me pelos bigodes.
CAPITULO 13
DECISÃO FINAL
Na quarta-feira de manhã, Bond despertou cedo, na cama do homem morto.
Dormira pouco. Drax não dissera nada a caminho de volta para casa e lhe desejara um rápido boa-noite no fim da escada. Bond seguira pelo corredor atapetado até o ponto onde brilhava uma luz, vinda de uma porta aberta, e encontrara suas coisas ordenadamente arranjadas num confortável quarto.
O aposento era mobiliado com o mesmo gosto de tipo dispendioso que encontrara no andar térreo. Havia biscoitos e uma garrafa de Vichy (não era uma garrafa de Vichy com água da bica, verificou Bond) ao lado da cama.
Não se notavam sinais do ocupante precedente, a não ser uma pasta de couro contendo binóculos, na mesinha de cabeceira, e um arquivo de metal, trancado. Bond conhecia tudo sobre arquivos. Virou-o contra a parede, colocou a mão embaixo e encontrou a ponta do fecho que se projeta para baixo, quando a série de escaninhos de cima foi trancada. Uma pressão feita para cima soltou as gavetas uma por uma, e ele baixou suavemente a borda do arquivo para o chão, refletindo maldosamente que o Major Tallon não teria sobrevivido durante muito tempo no Serviço Secreto.
A gaveta de cima continha mapas de escala da base e seus edifícios, além de um mapa do Almirantado n° 1895, representando o Estreito de Dover. Bond colocou cada uma das folhas sobre o leito e examinou-as minuciosamente. Havia restos de cinza de um cigarro nas dobras do mapa do Almirantado.
Bond foi buscar sua caixa de ferramentas — uma caixa quadrada de couro que estava ao lado da cômoda. Examinou os números nas rodas da fechadura de segredo e, satisfeito por não terem sido mexidas, virou-as para o número de código. A caixa estava repleta de instrumentos. Bond escolheu um vaporizador de pó para impressões digitais e uma lente grande. Espalhou o pó fino e acinzentado, centímetro por centímetro, sobre toda a extensão da carta geográfica. Apareceu uma floresta de impressões digitais.
Examinando-as com a lente, chegou à conclusão de que pertenciam a duas pessoas. Isolou os dois melhores grupos, tirou uma Leica com um flash de dentro da pasta de couro e fotografou-os. Em seguida, examinou cuidadosamente com a lente os dois minúsculos sulcos no papel que o pó fizera aparecer .
Estes davam a impressão de serem duas linhas traçadas da costa para formar uma rota cruzando o mar. Sua direção era muito estreita, e as duas linhas pareciam originar-se da casa onde se encontrava Bond. De fato, poderiam indicar observações de algum objeto no mar, feitas de cada ala da casa.
As duas linhas não haviam sido traçadas com lápis, mas, presumivelmente, para evitar serem descobertas, com um estilete que mal sulcara o papel.
No ponto onde se encontravam, havia a sombra de uma interrogação, na linha correspondente à décima-segunda braça, cerca de cinquenta jardas distante do penhasco, numa direção reta da casa para o navio-farol South Goodwin.
Não havia mais nada para ser descoberto no mapa. Bond olhou o relógio. Vinte para a uma. Ouviu passos distantes no hall e o estalido de uma lâmpada sendo apagada. Num impulso, ergueu-se e, de mansinho, apagou as luzes do quarto, deixando apenas a de leitura, velada por um abajur e colocada à mesinha de cabeceira.
Ouviu os pesados passos de Drax aproximando-se da escada. Houve o estalido de outro interruptor e depois silêncio. Bond imaginava aquela cara grande, cabeluda, voltada para o corredor, olhando, escutando. Depois percebeu o rangido de uma porta, sendo aberta devagar e fechada da mesma forma. Esperou, visualizando os movimentos do homem que se preparava para dormir. Ouviu ainda o som abafado de uma janela que se abria, o ruído de trombeta, distante, de um nariz sendo assoado. Depois silêncio.
Bond concedeu mais cinco minutos a Drax e depois foi até o arquivo, abrindo suavemente as outras gavetas. Não havia nada na segunda e na terceira, mas a última estava repleta de arquivos arrumados em ordem alfabética. Eram os dossiês dos homens que trabalhavam na base. Bond puxou a série “A”, voltou para a cama e começou a ler.
Em cada um a fórmula era a mesma: nome por inteiro, endereço, data do nascimento, descrição, sinais particulares, profissão ou ofício depois da guerra, registro de tempo de guerra, sobre atitudes políticas e simpatias atuais, registro criminal, de saúde e sobre os parentes próximos. Alguns desses homens tinham mulher e filhos, cujas particularidades eram anotadas e, acompanhando cada dossiê, havia fotografias: de frente e de perfil, além das impressões digitais de ambas as mãos.
Duas horas e dez cigarros depois, Bond examinara todos eles e descobrira dois pontos de interesse geral. Primeiro, que todos os cinquenta homens pareciam ter levado uma vida sem mácula, sem o menor vestígio de ódio político ou criminoso. Aquilo lhe pareceu tão pouco verossímil, que resolveu encaminhar todos eles novamente à Estação D. para serem submetidos a um reexame completo na primeira oportunidade.
O segundo ponto era que nenhuma das caras das fotografias tinha bigode. Apesar da explicação de Drax, esse fato suscitou um segundo pequeno ponto de interrogação no espírito de Bond.
Ergueu-se da cama e trancou novamente tudo, colocando o mapa do Almirantado em um dos arquivos de sua pasta de couro. Girou a fechadura de segredo e enfiou a pasta bem para debaixo da cama, de modo que a mesma ficasse diretamente sob seu travesseiro no ângulo interno da parede. Depois, sem fazer barulho, lavou-se, escovou os dentes no banheiro anexo e escancarou a janela.
A lua ainda brilhava: como devia ter brilhado, pensou Bond, quando, despertado por algum ruído fora do comum, Tallon subira ao telhado, talvez somente há poucas noites, e vira, no meio do mar, o que tinha visto. Devia trazer os binóculos consigo, e Bond, lembrando-se, saiu da janela e apanhou-os. Eram binóculos muito possantes, de fabricação alemã, pilhagem da guerra, talvez, e o 7 X 50 nas chapas superiores revelaram que se tratava de binóculos para a noite. Depois então, o cauteloso Tallon devia ter caminhado de leve (mas não o suficiente) para a outra extremidade do telhado e novamente erguido os binóculos, calculando a distância da borda do penhasco até o objeto no mar, e do objeto até o Goodwin, navio-farol. Em seguida, devia ter voltado pelo mesmo caminho e, sem fazer ruído, tornado a entrar no quarto.
Bond viu Tallon, talvez pela primeira vez desde que estava na casa, trancar a porta cautelosamente, dirigir-se até o arquivo, retirar dali o mapa, ao qual mal lançara um olhar até então, e marcar sobre o mesmo, de leve, as linhas de sua direção, às pressas. Talvez tivesse olhado para ele durante longo tempo, antes de apor a pequenina interrogação ao seu lado.
E que teria sido então o objeto desconhecido? Impossível dizer. Um navio? Uma luz? Um ruído?
Fosse o que fosse, Tallon não devia ter visto. E alguém o tinha ouvido. Alguém havia adivinhado que ele vira, e esperara que Tallon saísse do quarto na manhã seguinte. Aí então aquele alguém viera ao seu quarto e dera uma busca. A carta marítima, provavelmente, nada revelara, mas vira os binóculos para noite em cima da janela.
Fora o bastante. E naquela noite, Tallon morrera.
Bond se controlou. Ia depressa demais, compondo um caso, baseado no mais tênue dos indícios. Bartsch matara Tallon, e Bartsch não fora o homem que ouvira o barulho, o homem que deixara as impressões digitais no mapa, o homem cujo dossiê Bond separara e guardara em sua pasta de couro.
O homem tinha sido o untuoso Krebs, a criatura do pescoço de minhoca. As impressões digitais eram suas. Durante um quarto de hora, Bond comparara as impressões do mapa com as impressas no dossiê de Krebs. Mas quem disse que Krebs ouvira um barulho, ou fizera qualquer coisa por causa disso? Bem, para começar, ele parecia mesmo um tipo intrometido. Tinha os olhos de um ladrão sem importância. Aquelas impressões no mapa haviam sido, positivamente, feitas depois que Tallon o estudara. Os dedos de Krebs cobriram os de Tallon em diversos pontos.
Entretanto, como poderia Krebs estar envolvido nessa história, com os olhos de Drax constantemente em cima dele? O assistente confidencial. Mas que dizer de Cícero, o empregado particular de toda confiança do Embaixador Britânico em Ankara, durante a guerra? A mão no bolso das calças pendendo por cima das costas da cadeira. As chaves do Embaixador. O cofre. Os segredos. O quadro era muito semelhante.
Bond sentiu um arrepio. Compreendeu então, de repente, que estivera de pé durante muito tempo em frente às janelas abertas e que já era tempo de dormir um pouco.
Antes de se deitar, pegou o coldre de ombro da cadeira, onde estava no meio das roupas despidas, e retirou a Beretta, colocando-a debaixo do travesseiro. Como defesa contra quem? Bond não sabia, mas sua intuição lhe dizia muito claramente que pairava o perigo no ar. O cheiro era insistente, apesar de ainda impreciso, e restringia-se apenas ao limiar de seu subconsciente. Na realidade, ele sabia que suas impressões se baseavam num determinado número de interrogações que se haviam materializado durante as últimas vinte e quatro horas: o enigma de Drax; o “Heil Hitler” de Bartsch; os estranhos bigodes; os cinquenta alemães de conduta impecável; a carta marítima; os binóculos de noite; Krebs.
Primeiro precisava comunicar suas suspeitas a Vallance. Depois explorar as possibilidades de Krebs. Em seguida, olhar as defesas do “Explorador da Lua” — o lado do mar, por exemplo. Finalmente, entrar em contato com essa pequena Brand e concordarem na elaboração de um plano para os próximos dois dias. Não havia muito tempo a perder.
Enquanto forçava o sono no cérebro transbordante de pensamentos, Bond imaginou o número sete no mostrador de um relógio e deixou a tarefa de acordar entregue às células ocultas de sua memória. Desejava estar fora de casa e no telefone com Vallance, o mais cedo possível. Se suas ações levantassem suspeitas, não ficaria desanimado. Um de seus objetivos era atrair para sua órbita as mesmas forças que envolveram Tallon, porque de uma coisa ele tinha quase certeza, o Major não morrera por amar Gala Brand.
O despertador extra-sensorial não falhou. Pontualmente, às sete horas, com a boca seca por causa dos muitos cigarros da noite anterior, esforçou-se por sair da cama e entrar num banho frio. Barbeara-se, gargarejara com um dentifrício forte e, agora, vestido num terno batido branco e preto, uma camisa azul-marinho de algodão, tipo Mares do Sul, gravata de tricô preto, caminhava levemente, mas não de modo furtivo, pelo corredor até as escadas, com a pasta de couro quadrada na mão esquerda.
Encontrou a garage no fundo da casa, e o motor do Bentley correspondeu à primeira pressão do arranque. Bond seguiu lentamente pela faixa de concreto sob o olhar indiferente das janelas encortinadas da casa e seguiu em frente, em prise, pelo caminho margeado de árvores. Seus olhos voltaram-se para a casa e confirmaram seu cálculo de que um homem de pé no telhado seria capaz de enxergar por cima do muro e ter uma visão da beira do penhasco e do mar mais adiante.
Não havia sinal de vida em torno do local onde se encontrava o “Explorador da Lua”. O concreto, já começando a brilhar ao primeiro sol da manhã, estirava-se vazio na direção de Deal. Tinha-se a impressão de um aeródromo recém-construído ou talvez, pensou, com suas três “coisas” diferentes de concreto, a cúpula de uma colmeia, a parede lisa de ferro e o cubo distante do ponto de disparo, cada qual lançando poços negros de sombra em sua direção, ali no sol matutino, como uma paisagem deserta de Dali, na qual três objets trouvés repousavam num acaso cuidadosamente calculado.
Lá fora, no mar, dentro do nevoeiro da manhã que prometia um dia quente, o navio-farol South Goodwin mal se delineava, difusa embarcação vermelha, casada para sempre com o mesmo ponto, e condenada, como um navio de cenário no palco de Drury Lane, a assistir ao diorama das ondas e nuvens navegarem atarefadamente para os bastidores, enquanto que ele, sem papéis, passageiros ou carga, continuava ancorado para sempre no ponto de partida que era também seu porto de destino.
Com intervalos de trinta segundos, buzinava sua triste queixa dentro do nevoeiro, uma prolongada nota dupla de trumpete, em cadência descendente. Um canto de sereia, pensou Bond, para repelir em vez de seduzir. Perguntava a si mesmo como os sete homens da tripulação suportariam agora o ruído, enquanto mastigavam carne de porco com feijão. Encolher-se-iam, quando marcava contracanto com a Housewife’s Choice, vindo a todo volume do rádio na hora do rancho? Mas era uma vida segura, foi a conclusão a que chegou Bond, apesar de ancorado nos portões de um cemitério.
Anotou mentalmente, para descobrir se esses sete homens tinham visto ou ouvido a coisa que Tallon marcara no mapa, em seguida saiu rápido por entre os postos de guarda.
Em Dover, parou diante do Café Royal, modesto restaurantezinho, com uma cozinha modesta porém capaz, como ele sabia há muito tempo, de preparar excelentes pratos de peixe e de ovos.
A dona, suíça-italiana, com o filho que a ajudava a dirigir a casa, recebeu-o como velho amigo, e ele pediu um prato de ovos mexidos com presunto e bastante café, recomendando que estivessem prontos em meia hora. Depois seguiu até o posto policial e fez uma chamada para Vallance, por meio da mesa de ligações da Scotland Yard. Vallance estava em casa, tomando o café da manhã. Ouviu sem comentários a conversa reservada de Bond, mas não expressou surpresa, quando este disse que não tinha tido oportunidade de falar mais intimamente com Gala Brand.
— Essa aí é uma garota inteligente. Se o Sr. K. anda tramando alguma coisa, com certeza ela tem uma ideia do que seja. E se T. ouviu um barulho no sábado à noite, ela pode ter ouvido também. Se bem que eu deva confessar que não se referiu a esse assunto.
Bond não disse nada sobre a recepção que tinha tido por parte do agente de Vallance.
— Vou falar com ela esta manhã e mandar-lhe-ei o mapa com o filme da Leica para que o senhor os examine. Vou dá-los ao Inspetor. Talvez um dos patrulheiros da estrada possa levar. É verdade, de onde T. telefonou quando chamou seu chefe na segunda-feira?
— Vou mandar verificar e depois lhe direi — disse Vallance. Mandarei também a Trinity House perguntar se a South Goodwin e os guardas-costeiros podem ajudar. Mais alguma coisa?
Bond respondeu:
— Não.
A linha passava por muitas mesas de ligação. Talvez, se tivesse sido M., ele tivesse insinuado mais alguma coisa. Pareceu-lhe ridículo falar com Vallance a respeito de bigodes e a atmosfera de perigo que ele sentira na noite anterior, e que a luz do dia dissipara. Aqueles policiais só queriam os fatos nus e crus. Eram melhores, refletiu, na solução de um crime, do que antecipá-los.
— Não, é só.
Desligou.
Sentiu-se mais alegre depois de uma excelente primeira refeição. Leu o Express e The Times e encontrou uma notícia sucinta sobre o inquérito do caso Tallon. O Express fizera muito escarcéu e muita exibição da fotografia da moça. Bond divertiu-se, ao verificar a neutra semelhança que Vallance conseguira apresentar. Decidiu que precisava tentar trabalhar com ela. Demonstraria toda confiança e lhe contaria tudo, fosse ela receptiva ou não. Talvez ela também tivesse suas suspeitas e intuições, porém tão vagas que as estava guardando consigo mesma.
Bond voltou rapidamente para a casa. Eram nove horas em ponto, e quando passou por entre as árvores na faixa de concreto, ouviu-se o lamento de uma sereia e, dos bosques por trás da casa, uma dupla fila de doze homens apareceu correndo num ritmo propositadamente igual, em direção à cúpula do foguete. Marcavam o tempo enquanto um deles tocava a campainha. A porta então se abriu, e eles entraram em fila, desaparecendo .
Raspe-se a superfície de um tedesco e encontrar-se-á a precisão — pensou Bond.
CAPITULO 14
DEDOS FORMIGANTES
Meia hora antes, Gala Brand esmagara a ponta do seu cigarro matutino, engolira o resto do café, saíra do quarto e se encaminhara para a base, com o aspecto perfeito de uma secretária particular. Trajava uma blusa branca imaculada e uma saia azul-marinho pregueada.
Pontualmente, às oito e meia, estava em seu escritório. Havia um monte de telimpressos do Ministério da Aeronáutica em cima da mesa, e sua primeira ação foi transferir um resumo de seus conteúdos para um mapa meteorológico, entrar pela porta de comunicação no escritório de Drax, e pregar o mapa num quadro pendente no ângulo da parede ao lado do vidro liso. Em seguida, apertou o interruptor que iluminava o mapa de parede, fez alguns cálculos, baseada nas colunas de números reveladas pela luz, e anotou o resultado no diagrama que prendera ao quadro.
Fizera isto com os dados do Ministério da Aeronáutica, que se tornavam cada vez mais exatos, à medida que a data do lançamento experimental se aproximava, todos os dias, desde que a base terminara, e a construção do foguete se iniciara dentro dela. Tornara-se tão perita, que agora sabia de cor as direções do giroscópio para quase todas as variações de temperatura em diferentes altitudes.
De modo que ainda ficava mais irritada quando Drax não demonstrava aceitar seus cálculos. Todos os dias quando, às nove horas, pontualmente, as campainhas de aviso soavam, e ele descia a íngreme escadaria de ferro para entrar em seu escritório, seu primeiro gesto era chamar o insuportável Dr. Walter, para que, juntos, estudassem novamente todas as suas anotações, transcrevendo os resultados no fino caderninho de notas que Drax trazia no bolso traseiro das calças. Sabia que aquilo era uma rotina invariável e se cansara de observá-la através de um orifício disfarçado que fizera, de forma a poder enviar a Vallance um relatório semanal dos visitantes de Drax. O orifício ficava na parede fina que separava os dois escritórios. O método era amadorista, porém eficiente, e ela lentamente formara um quadro completo da rotina diária, que acabara por achar demasiado irritante. Era irritante por duas razões. Significava que Drax não confiava em seus algarismos e solapava sua oportunidade de tomar parte, da maneira mais modesta que fosse, no lançamento final do foguete.
Era natural que, no decorrer dos meses, tivesse ficado tão integrada em seu disfarce quanto em sua verdadeira profissão. Era uma coisa fundamental para a exatidão absoluta dêsse disfarce que sua personalidade ficasse tão verdadeiramente oculta quanto possível. E agora, enquanto espionava, apalpava e farejava o vento em torno de Drax, para relatar ao seu Chefe em Londres, sentia-se profundamente interessada pelo sucesso do “Explorador da Lua” e tornara-se tão dedicada ao seu serviço quanto qualquer outro membro da base.
O resto de seus Ideveres como secretária particular de Drax era intoleràvelmente monótono. Todos os dias chegava um enorme volume de correspondência dirigida a Drax em Londres e enviada para lá pelo Ministério. Naquela manhã, encontrara o monte habitual de mais ou menos cinquenta cartas aguardando em cima da escrivaninha. Eram sempre de três tipos. Cartas de pedidos, de pessoas maníacas pelo foguete, cartas comerciais do corretor de Drax e de outros agentes comerciais. Para estas Drax ditava respostas breves, e o resto do dia ela se ocupava em datilografar e arquivar.
De sorte que era natural o fato de sua única obrigação relacionada com a operação do foguete destacar-se extraordinàriamente entre os monótonos deveres. Naquela manhã, ao conferir e reconferir seu plano de voo, estava mais que decidida a fazer aceitarem seus cálculos para O Dia. Entretanto, como muitas vezes lembrava a si mesma, talvez não houvesse razão para que não os aceitassem. Talvez os cálculos diários de Drax e Walter para anotação no caderninho preto não passassem de nova verificação de seus próprios números. Era bem verdade que Drax nunca tinha pedido seu boletim meteorológico ou as direções do giroscópio por onde os calculava. E quando um dia ela perguntara diretamente se seus cálculos sobre o tempo estavam corretos, ele respondera com evidente sinceridade:
— Excelentes, minha cara. Muito valiosos. Não poderíamos arranjar-nos sem eles.
Gala Brand voltou para sua sala e começou a abrir as cartas. Só mais dois planos de voo para quinta-feira e sexta, e então, baseados em seus cálculos ou noutros, nos guardados dentro do bolso de Drax, o giroscópio seria finalmente ajustado, e seria apertado no ponto de disparo.
Distraidamente, Gala olhou para as unhas e depois estendeu as duas mãos, com as costas voltadas em sua direção. Quantas vezes, durante seu adestramento na Escola da Polícia, fora mandada para fora com outras alunas e recomendada a não voltar sem um caderno de notas, um estojo de maquilagem, uma caneta-tinteiro ou mesmo um relógio de pulso? Quantas vezes, durante os cursos, o instrutor não se voltara, segurando-a pelo pulso e dizendo: “Vamos, vamos, senhorita. Isto assim não vai de jeito nenhum. Dá até a impressão de um elefante procurando açúcar no bolso do tratador. Tente novamente.”
Friamente, flexionou os dedos e depois, tomando uma resolução, voltou à pilha de cartas.
Quando faltavam poucos minutos para as nove, as campainhas de alarma soaram, e ela ouviu Drax chegar ao escritório. Pouco depois ouviu-o abrir as portas duplas novamente e chamar Walter. Em seguida, veio o habitual murmúrio de vozes cujas palavras eram abafadas pelo leve chiar do ventilador.
Gala arrumou as cartas em três pilhas e sentou-se inclinada para a frente, os nervos relaxados, os cotovelos descansando na escrivaninha e o queixo repousando na mão esquerda.
Comandante Bond. James Bond. Evidentemente, um jovem convencido, como tantos outros do Serviço Secreto. E porque tinha sido enviado em vez de alguém com quem pudesse trabalhar, um de seus amigos da Seção Especial ou mesmo uma pessoa do M15? A mensagem do Comissário-Assistente dizia que não havia mais ninguém disponível assim de repente, que ele era um dos astros do Serviço Secreto, que desfrutava da mais absoluta confiança da Seção Especial e tinha as bênçãos do M15. Até mesmo o Primeiro-Ministro lhe dera permissão para agir somente nesta missão dentro da Inglaterra. Mas de que poderia adiantar, em face do pouco tempo que restava? Ele, provavelmente, atirava bem e falava idiomas estrangeiros, além de executar uma série de truques que poderiam ser úteis no exterior. Entretanto, que poderia fazer de bom aqui, sem lindas espiãs para namorar. Porque bonitão ele era, incontestàvelmente. (Gala Brand procurou automaticamente o estojo de maquilagem e bateu a esponjinha de pó de arroz no nariz.) Bem no gênero de Hoagy Carmichael, sob certo aspecto. Aquele cabelo preto caindo em cima da sobrancelha direita. Mais ou menos o mesmo tipo ósseo. Mas havia um quê de crueldade na boca, e os olhos eram frios. Cinzentos ou azuis? Tinha sido difícil verificar a noite passada. Bem, de qualquer maneira, ela o pusera em seu lugar e lhe mostrara que não estava impressionada por rapazes atraentes do Serviço Secreto, por mais românticos que parecessem. Havia homens igualmente belos na Seção Especial, e estes eram detetives de verdade, não apenas pessoas que Phillips Oppenheim idealizara, donos de carros velozes com bandas douradas e coldres de ombro. Ah, isto ela descobrira com certeza, e até esbarrara nele para ter certeza.
Pois bem, supunha que devia demonstrar, de uma forma ou de outra, que trabalhava com ele, apesar de só Deus saber em quê. Se ela estivera ali desde quando o local fora construído sem descobrir coisa alguma, o que poderia esse homem, Bond, esperar descobrir em dois dias? E o que havia para ser descoberto? Naturalmente, existiam uma ou duas coisas que ela não conseguia compreender. Deveria falar-lhe em Krebs, por exemplo? A primeira coisa a fazer era providenciar para que ele não lhe estragasse o trabalho, fazendo qualquer tolice. Teria de ser fria, firme e extremamente cautelosa. Mas isto não queria dizer, chegou à conclusão no momento em que a cigarra tocava e ela apanhava as cartas e o caderno de taquigrafia, que não pudesse ser amistosa em suas relações. Estritamente dentro de suas próprias condições, é claro.
Havendo tomado esta segunda decisão, abriu a porta de comunicação e entrou no escritório de Sir Hugo Drax.
Ao voltar para sua sala, meia hora depois, encontrou Bond sentado em sua cadeira com o Almanaque Whitaker aberto na escrivaninha diante dele. Apertou os lábios, quando Bond se levantou e desejou-lhe um feliz bom dia. Gala baixou a cabeça rapidamente, rodeou a escrivaninha e sentou-se. Afastou cuidadosamente o Whitaker e colocou as cartas e o caderno em seu lugar.
— Devia ter mais uma cadeira para as visitas — disse Bond com um sorriso que ela definiu como impertinente. — E alguma coisa melhor para se ler do que livros de referências.
A moça ignorou as observações.
— Sir Hugo deseja vê-lo. Eu ia agora mesmo ver se já havia se levantado.
— Mentirosa. Você me ouviu passar às sete e meia. Eu a vi espiando entre as cortinas.
— Não fiz semelhante coisa — retrucou Miss Brand indignada. — Por que haveria de estar interessada num carro que passava?
— Eu disse que você ouviu o carro — disse Bond. Insistiu em sua vantagem. — E, por falar nisso, acho que não deve coçar a cabeça com o lápis quando está tomando ditado. Nenhuma das melhores secretárias particulares faz tal coisa.
Bond olhou de modo significativo para um ponto da porta de comunicação. Depois sacudiu os ombros.
As defesas de Gala caíram. Diabo de homem, pensou. Endereçou-lhe um sorriso relutante.
— Ora. Vamos parar com isto. Eu não posso passar a manhã inteira brincando de adivinhação. Ele quer nos ver e não gosta de esperar.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação, abrindo-a. Bond seguiu-a, fechando depois a porta.
Drax estava de pé, olhando o mapa de parede iluminado. Voltou-se, quando os dois entraram.
— Ah, você está aqui — disse com um olhar firme para Bond. — Pensei que talvez nos tivesse deixado. Os guardas anotaram sua saída às sete e meia da manhã de hoje.
— Precisei dar um telefonema — explicou Bond. — Espero não ter incomodado ninguém.
— Existe um telefone em meu estúdio — ajuntou Drax, conciso. — Tallon achava que servia muito bem.
— Ah, pobre Tallon — disse Bond sem nenhuma inflexão particular.
Notara um quê de autoritário na voz de Drax que o desagradara bastante, e isto fizera com que desejasse instintivamente desarmá-lo. Nessa vez foi bem sucedido.
Drax lançou-lhe um olhar duro, que disfarçou com um risinho curto, latido e um sacudir de ombros.
— Faça como melhor lhe agradar. Você tem seu trabalho para fazer. Contanto que não perturbe as rotinas daqui. Deve-se lembrar — acrescentou mais amável — de que todos os meus homens estão nervosos ao extremo agora, e eu não posso inquietá-los com misteriosas movimentações. Espero que não deseje fazer-lhes muitas perguntas hoje. Eu preferia que não tivessem mais nada com que se preocupar. Ainda não se recuperaram do que aconteceu segunda-feira. Miss Brand poderá informá-lo a respeito de tudo que diz respeito a eles, e creio que todos os dados arquivados acham-se no quarto de Tallon. Já os examinou?
O arquivo não tem chave — respondeu Bond, dizendo a verdade.
— Desculpe, a culpa é minha — disse Drax. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta da qual tirou um pequeno molho de chaves, e entregou-o a Bond.
— Devia ter-lhe entregado isto a noite passada. O Inspetor que tratou do caso pediu-me lhe entregasse. Desculpe.
— Muito obrigado — disse Bond por sua vez. Depois fez uma pausa.
— Diga-me uma coisa, há quanto tempo Krebs trabalha com o senhor?
Fez a pergunta obedecendo a um impulso. Houve um momento de silêncio na sala.
—Krebs? — repetiu Drax, pensativo.
Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se. Estendeu a mão para o bolso da calça e puxou um maço de cigarros de ponta de cortiça. Seus dedos grosseiros lutaram com o envólucro de celofane. Tirou um cigarro e meteu-o na boca, sob a franja do bigode avermelhado, acendendo-o depois.
Bond mostrou-se surpreso.
— Eu não sabia que se podia fumar aqui — observou, tirando sua própria carteira do bolso.
O cigarro de Drax, minúsculo tubo branco no meio da caraça vermelha, subia e descia enquanto ele respondia sem tirá-lo da boca.
— Aqui não há perigo. Estas salas são à prova de ar. As portas são forradas com borracha. A ventilação é separada . Precisei colocar as oficinas e geradores apartados da cúpula e, de qualquer maneira — seu lábios sorriram em torno do cigarro — preciso dar um jeito para fumar.
Drax tirou o cigarro da boca e olhou-o. Parecia estar tomando uma resolução.
— Você estava me interrogando a respeito de Krebs. Pois bem, cá entre nós, não confio inteiramente nesse camarada — declarou fitando Bond com uma expressão significativa.
Levantou a mão num gesto de quem se desculpa.
— Nada de definido, naturalmente, ou eu já o teria mandado embora, mas encontrei-o espionando pela casa, e uma vez apanhei-o em meu estúdio, remexendo meus papéis particulares . Ele apresentou uma explicação perfeita e deixei-o sair, prevenindo-o. Contudo, para ser franco, tenho minhas suspeitas a respeito do homem. Evidentemente, ele não pode fazer mal algum. Faz parte do pessoal da casa, e nenhum deles tem licença de entrar aqui, mas — Drax fitou Bond francamente, dentro dos olhos — eu devia ter-lhe dito que se concentrasse nele. Foi muita vivacidade sua, haver observado qualquer coisa no homem, tão depressa — acrescentou com respeito. — Que foi que o levou a isto?
— Nada de extraordinário. Ele tem um aspecto inquieto. Mas o que o senhor diz é interessante, e eu não deixarei de estar de olho nele.
Voltou-se para Gala Brand, que permanecera em silêncio desde o momento em que entraram na sala.
— Qual sua opinião a respeito de Krebs, Miss Brand? — perguntou, polidamente.
A moça respondeu, dirigindo-se a Drax.
— Não entendo muito dessas coisas, Sir Hugo, — disse com modéstia e um quê de impulsivo que Bond admirou.
— Porém não confio nele de jeito nenhum. Não tinha intenção de lhe contar, mas ele andou rondando meu quarto, entrou lá, abriu cartas etc. Tenho certeza disso.
Drax mostrou-se chocado.
— Foi mesmo?
Pôs o cigarro no cinzeiro e extinguiu os fragmentos acesos, um por um.
— Deixe-o comigo — falou sem levantar os olhos.
CAPÍTULO 15
JUSTIÇA RUDE
Houve um momento de silêncio na sala durante o qual Bond refletiu como era estranho que as suspeitas recaíssem tão de repente e unanimemente sobre o mesmo homem. Isto, por acaso, libertaria automaticamente os outros? Krebs não poderia ser membro de uma quadrilha? Ou trabalharia por conta própria e, nesse caso, com que objetivo? E que relação haveria entre suas espionagens e as mortes de Tallon e Bartsch?
Drax quebrou o silêncio.
— Bem, parece que chegamos a um ponto de acordo — disse, olhando Bond, à procura de confirmação. Este baixou a cabeça, num gesto cauteloso.
— Tenho mesmo de deixá-lo por sua conta. De qualquer forma, providenciaremos para que se conserve bem afastado da base. Aliás, vou levá-lo comigo amanhã para Londres. Pormenores de última hora deverão ser combinado com o Ministério, e Walter não pode sair daqui. Krebs é o único homem capaz de executar o serviço de um ajudante-de-ordens. Isto o conservará fora de qualquer complicação. Até lá temos todos de mantê-lo sob vigilância. A não ser, naturalmente, que você queira prendê-lo já, trancando-o à chave e cadeado. Eu preferia que não. Não desejo perturbar mais a equipe.
— Não será necessário — disse Bond. — Ele conta com alguns amigos particulares entre os outros homens?
— Nunca o vi falando com nenhum, exceto Walter e o pessoal de casa — disse Drax. — Calculo que se considera superior aos outros. Pessoalmente, não acredito que exista muita maldade nesse camarada, do contrário não o teria conservado. Ele fica sozinho em casa o dia inteiro, e com certeza é um desses sujeitos que gostam de bancar o detetive e meter o nariz nos negócios dos outros. Que diz você? Talvez pudéssemos deixar as coisas neste pé?
Bond fez que sim, guardando seus pensamentos para si mesmo.
— Pois então — continuou Drax, feliz por deixar de lado um assunto desagradável e voltar para os negócios. — Temos outras coisas para conversar. Ainda nos restam dois dias, e é melhor falar-lhe sobre o programa.
Ergueu-se da cadeira e mediu pesadamente a sala em largas passadas, por trás da escrivaninha:
— Hoje é quarta-feira. À uma hora a base será fechada para receber combustível. Isto será supervisionado pelo Dr. Walter, por mim e mais dois homens do Ministério. Para a eventualidade de qualquer coisa sair errada, uma câmara de televisão registrará tudo que fizermos. E então, se houver uma explosão, nossos sucessores saberão como agir melhor na próxima vez — finalizou com um curto riso ladrado. — Se o tempo permitir, o telhado será aberto hoje à noite para deixar a fumaça sair. Meus homens montarão guarda em vigias de dez jardas de intervalo, até a distância de cem jardas a partir da base. Haverá três homens armados na praia, do lado oposto ao túnel exaustor no penhasco. Amanhã de manhã a base será novamente aberta até o meio-dia para uma verificação final e, a partir desse instante, exceto a disposição do giroscópio, o “Explorador da Lua” estará pronto para partir. Os guardas ficarão permanentemente vigiando toda a base. Na sexta-feira pela manhã eu examinarei pessoalmente o ajustamento do giroscópio. Os homens do Ministério tomarão conta do ponto de disparo, e a RAF do radar. A BBC enviará seus caminhões, que ficarão atrás do ponto de disparo, e as irradiações começarão às onze e quarenta e cinco.
Ao meio-dia em ponto apertarei o pistão, um sinal de rádio passará por um circuito elétrico e — Drax sorriu abertamente — nós veremos o que vamos ver.
Fez uma pausa, mexendo no queixo:
— Vejamos agora o que mais? Ah, sim. A navegação será banida da área orbital desde a meia-noite de quinta-feira. A Marinha providenciará uma patrulha nos limites da área durante toda a manhã. Haverá um comentarista da BBC num dos navios. O Ministério do Abastecimento mandará técnicos que ficarão num navio de salvamento com um aparelho de televisão para a profundidade do mar, e depois que o foguete aterrissar, tentarão recuperar os restos. Talvez você se interesse em saber — continuou, esfregando as mãos numa alegria quase infantil, — que um mensageiro do Primeiro-Ministro trouxe a notícia muito alvissareira de que não só estará reunido o Gabinete para ouvir a irradiação, mas o Palácio também escutará o lançamento.
— Ótimo — disse Bond, satisfeito pelo outro.
— Obrigado. Agora quero ter absoluta certeza de que você está satisfeito com as medidas de segurança que tomei na própria base. Não creio que seja necessário nos preocuparmos com o que se passar do lado de fora. A RAF e a polícia parecem estar executando um serviço muito completo.
— Tudo parece ter sido providenciado — disse Bond.
— Não creio que me reste muita coisa para fazer no tempo que ainda falta.
— Nada que eu me lembre — concordou Drax. — Exceto nosso amigo Krebs. Esta tarde ele permanecerá na camioneta da televisão tomando notas, de modo que estará fora de qualquer trapalhada. Por que você não vai dar uma olhada na praia, na base do penhasco, enquanto ele está fora de ação? este é o único ponto fraco que eu posso lembrar. Muitas vezes pensei que se alguém quisesse penetrar na base, tentaria passar pela cavidade exaustora. Leve Miss Brand. Quatro olhos, etc, e ela não poderá mesmo usar seu escritório até amanhã de manhã.
— Está bem — concordou Bond.
— Eu gostaria de dar uma olhada no lado do mar, depois do almoço, e se Miss Brand não tiver nada de melhor para fazer...
Voltou-se para ela com as sobrancelhas erguidas. Gala Brand baixou os olhos.
— Claro, se Sir Hugo desejar — disse sem entusiasmo.
Drax esfregou as mãos.
— Então está combinado. E agora preciso voltar a trabalhar. Miss Brand, quer fazer o favor de pedir ao Dr. Walter que venha aqui, se estiver livre? Nós nos veremos na hora do almoço — disse a Bond, despedindo-o.
Este fez com a cabeça que sim.
— Acho que vou caminhar até a cúpula e dar uma olhadela no ponto de disparo — falou sem saber direito porque mentia. Virou-se e seguiu Gala Brand através das portas duplas e depois até a base do cilindro.
Enorme serpente negra de fios de borracha se retorcia sobre o brilhante chão de aço, e Bond observou a moça escolher o caminho por entre suas voltas até onde se encontrava Walter, sozinho. Olhava a boca do tubo do combustível ser levantada para onde um guindaste, esticado até a soleira de uma porta de acesso, na metade do foguete, indicava os principais tanques de combustível.
A moça disse qualquer coisa a Walter e depois ficou olhando para cima, enquanto o tubo ia sendo delicadamente manipulado para o interior do foguete.
Bond achou que ela parecia muito inocente, ali de pé, com os cabelos castanhos soltos e a curva da garganta cor de marfim imergindo na blusa branca e simples. Com as mãos cruzadas nas costas, contemplando embevecida os faiscantes cinquenta pés do “Explorador da Lua”, poderia ser tomada por uma colegial mirando uma árvore de Natal — exceto pelo impudente orgulho dos seios atrevidos, levantados pela cabeça e os ombros jogados para trás.
Bond sorriu consigo mesmo ao chegar ao pé da escada de ferro e começar a subir. Aquela moça inocente, desejável, lembrou a si próprio, é uma policial extremamente competente. Sabe como desferir pontapés e onde; pode quebrar meu braço, provavelmente mais depressa e com mais facilidade do que eu poderia quebrar o dela, e pelo menos metade de seu ser pertence à Seção Especial da Scotland Yard. Naturalmente, refletiu, baixando os olhos a tempo de vê-la seguir o Dr. Walter até o escritório de Drax, existe sempre a outra metade.
Lá fora, o brilhante sol de maio parecia particularmente dourado depois do branco azulado dos arcos, e Bond sentia-o quente nas costas ao caminhar deliberadamente pelo concreto em direção à casa. O apito de nevoeiro do Goodwin estava silencioso, e a manhã tão calma que ele podia ouvir as batidas rítmicas dos motores de um navio, quando este passava por Inner Leads, entre o Goodwin e a praia, a caminho do Norte.
Aproximou-se da casa, protegido pelo largo muro contra o vento, e então, rapidamente, atravessou as poucas jardas até a porta da frente, sem produzir o menor ruído com os sapatos de crepe-sola. Abriu a porta, deixou-a escancarada e caminhou de leve para o háll onde se pôs à escuta. Ouviu o rumor das manhãs de verão; uma abelha batendo de encontro à vidraça de uma das janelas e um bulício confuso e distante nas barracas atrás da casa. Fora isto, o silêncio era profundo, cálido e tranquilizante .
Bond caminhou cautelosamente através do hall e pelas escadas acima, assentando os pés inteiros no chão e usando as extremidades dos degraus onde havia menos probabilidade de a madeira estalar. Não se ouvia barulho no corredor, mas Bond viu que sua porta, lá no fim do mesmo, estava aberta. Retirou o revólver da axila e foi seguindo depressa pela passagem atapetada.
Krebs estava de costas para ele. Achava-se ajoelhado no meio do quarto com os cotovelos no chão. Suas mãos se encontravam nas rodas do fecho de segredo da pasta de couro de Bond. Toda sua atenção focalizava-se no estalido das linguetas do fecho.
O alvo era tentador, e Bond não hesitou. Seus dentes apareceram num sorriso cruel, deu dois passos rápidos para dentro do quarto e mandou o pé com violência.
Toda sua força se concentrava na ponta do sapato, e seu equilíbrio e tempo foram perfeitos.
Um grito de gralha partiu de Krebs quando, como a caricatura de um sapo pulando, saltou por cima da pasta de Bond mais ou menos um metro adiante, batendo na frente da cômoda de mogno. Sua cabeça foi de encontro ao centro com tanta fôrçia, que a pesada peça dançou na base. O grito foi abruptamente interrompido, e ele tombou esticado e inerte sobre o tapete, ali permanecendo.
Bond ficou olhando e esperando ouvir o som de passos apressados, mas o silêncio continuou a reinar dentro da casa. Passou por cima do corpo, curvou-se sobre ele e ajeitou-o de costas. O rosto em torno do borrão do bigode amarelo estava pálido e um pouco de sangue escorria de um corte no alto da fronte. Os olhos continuavam fechados, e a respiração normal.
Bond ajoelhou-se num lado só e começou a dar uma busca minuciosa em todos os bolsos do terno alinhado, cinzento, de listas fininhas, que o homem trajava, colocando desapontado o magro conteúdo no tapete ao lado do corpo. Não havia caderninhos de nota nem papéis. Os únicos objetos de interesse eram um molho de chaves-mestras, uma faca de mola com uma lâmina de estilete bem amolada e uma espécie de cassetete de couro preto em forma de trouxa. Bond guardou essas coisas no bolso, foi até a mesinha de cabeceira e pegou a garrafa intacta de água de Vichy.
Foram necessários cinco minutos para fazer Krebs voltar a si e fazê-lo sentar-se com as costas apoiadas na cômoda. Mais cinco para que recuperasse a voz. Pouco a pouco a cor foi voltando-lhe ao rosto e a astúcia aos olhos.
— Não respondo perguntas a não ser a Sir Hugo — declarou quando Bond começou o interrogatório. — Você não tem o direito de me fazer perguntas. Eu cumpria meu dever.
Sua voz era mal-humorada e segura de si.
Bond segurou a garrafa vazia de Vichy pelo gargalo.
— Refuta novamente. Do contrário, eu lhe bato com isto até quebrar, e depois usarei o gargalo para alguma cirurgia plástica. Quem lhe mandou revistar meu quarto?
— Leck mich am Arsch — Krebs cuspiu o insulto obsceno na cara de Bond.
Este curvou-se e vibrou-lhe violenta pancada nas canelas.
O corpo de Krebs dobrou-se mas, quando Bond tornou a levantar o braço, ergueu-se subitamente do chão e mergulhou por baixo da garrafa que descia. O golpe pegou-o rijo no ombro, porém não lhe cortou o ímpeto, e ele se encontrou do outro lado da porta, já no meio do corredor, antes de Bond partir em sua perseguição.
Bond parou então do lado de fora da porta e observou a figura ligeira desaparecer pelas escadas, fora de suas vistas. Em seguida, o rinchar das solas de borracha descendo às pressas as escadas se fez ouvir até atravessar o hall. Bond riu abruptamente para si mesmo, voltou para o quarto e fechou a porta. Além de quase arrebentar a cabeça do sujeito, tudo indicava que não arrancaria nada dele. Animal astucioso. Seus ferimentos não poderiam ter sido assim tão maus, no fim das contas. Bem, caberia a Drax castigá-lo. A não ser, naturalmente, que Krebs estivesse executando suas ordens.
Pondo em ordem a confusão do seu quarto, Bond sentou-se na cama e olhou a parede do lado oposto com olhos que nada viam. Não tinha sido apenas o instinto que o levara a dizer a Drax que iria até o ponto do tiro, em vez de voltar para a casa. Passara-lhe seriamente pela ideia o fato de que a espionagem de Krebs era feita por ordem de Drax e que este organizava seu próprio sistema de segurança. Entretanto, de que maneira isto se entrosava com as mortes de Tallon e Bartsch? Ou o duplo assassínio teria sido uma coincidência sem nenhuma relação com as marcas do mapa e as impressões digitais de Krebs?
Como que chamado pelos seus pensamentos, bateram à porta, e o mordomo entrou. Vinha seguido por um sargento da polícia, com o uniforme de patrulheiro de estrada, que fez continência e entregou um telegrama a Bond. Bond levou-o até a janela. Vinha assinado: Baxter, que queria dizer Vallance, e dizia:
PRIMEIRA CHAMADA VEIO DA CASA SEGUNDO LUGAR NEVOEIRO EXIGIU FUNCIONAMENTO BUZINA DE NEVOEIRO DE MODO QUE NAVIO FOI OUVIDO VÍRGULA NÃO OBSERVOU NADA TERCEIRO LUGAR SUA ÁREA SUSPEITA FICA MUITO PERTO PRAIA ASSIM FORA DAS VISTAS DOS ÚLTIMOS PONTOS DOS GUARDA-COSTAS DE SAINT MARGARET OU DEAL.
— Obrigado — disse Bond. — Não tem resposta.
Depois de fechar a porta, chegou o isqueiro aceso ao telegrama e depois deixou-o cair na lareira, reduzindo os restos queimados a pó com a sola do sapato.
Dali nada mais se aproveitava, exceto que a chamada de Tallon para o Ministério poderia realmente, ter sido ouvida por alguém da casa, o que teria resultado na busca em seu quarto, que, por sua vez, teve como consequência a morte do major. Mas que dizer de Bartsch? Se tudo aquilo fazia parte de uma coisa muito maior, como poderia ser ligada a um atentado de sabotagem ao foguete? Não seria muito mais simples supor que Krebs era um espião nato, ou ainda mais provável, que estivesse trabalhando para Drax, que parecia ser meticulosamente cônscio da necessidade de segurança e que podia também querer certificar-se da lealdade de seu secretário, de Tallon, e, sem dúvida, depois do encontro no Blades, de Bond? Não seria agir justamente como o chefe (e Bond conhecera alguns que se adaptariam perfeitamente ao tipo) de um projeto super-secreto durante a guerra, que reforçava a segurança oficial com seu próprio sistema de espionagem particular?
Se essa teoria fosse correta, restava apenas o duplo assassínio. Agora que Bond fora contagiado pela magia e tensão do “Explorador da Lua”, os fatos referentes aos tiros histéricos pareciam mais razoáveis. Quanto às marcas no mapa, poderiam ter sido feitas num dia qualquer do ano anterior; os binóculos para noite eram isto apenas: binóculos para noite, e os bigodes dos homens apenas uma quantidade de bigodes.
Bond sentou-se no quarto silencioso, remexendo as peças do quebra-cabeças, de modo que dois quadros inteiramente diversos se alternavam em sua mente. Num deles o sol brilhava, tudo estava límpido e inocente como o dia. O outro era uma confusão culposa de motivos, suspeitas obscuras e interrogações de pesadelo.
Quando o gongo soou para o almoço, ele ainda não sabia que quadro escolher. Para adiar a decisão, afastou do espírito tudo, menos as perspectivas da tarde que passaria sozinho com Gala Brand.
CAPITULO 16
UM DIA GLORIOSO
Era uma tarde maravilhosa, azul, verde e dourada. Quando deixaram a faixa de concreto passando pelo portão da guarda, perto do ponto de tiro, agora ligado à base de lançamento por um grosso cabo, pararam um momento à beira do grande penhasco calcário e ficaram olhando todo o trecho da Inglaterra onde César ancorara pela primeira vez dois mil anos atrás.
À esquerda, o tapete de grama verde, salpicado de pequeninas flores silvestres descia gradativamente para as longas praias de pedregulho de Walmer e Deal, que se curvavam para Sandwich e a baía. Mais além, os penhascos de Margate, surgindo brancos dentre a névoa distante que ocultava o North Foreland, guardavam a mancha cinzenta do aeródromo de Manston, acima do qual aviões a jato norte-americanos descreviam suas parábolas no céu. Em seguida, vinha a Ilha de Thanet e, fora do raio visual de ambos, a embocadura do Tâmisa.
A maré era baixa, e os Goodwins pareciam dourados e suaves dentro do azul cintilante do Canal mostrando apenas o conjunto de mastros e cordames que se esticavam para contar a verdadeira história. As letras brancas do navio-farol South Goodwin estavam fáceis de ler, e até o nome do navio irmão, mais para o norte, surgia branco contra o vermelho do casco.
Entre as areias da costa, ao longo do canal de doze braças do Inner Leads, havia meia dúzia de navios navegando pelo Downs. O som ritmado de seus motores destacava-se claramente dentro do mar calmo e, entre as areias cruéis e o contorno nítido da costa francesa, viam-se navios de todas as procedências rumando para seus destinos — navios de passageiros de linha regular, navios mercantes, rústicas chalupas holandesas e até uma esguia corveta correndo para o sul, talvez para Portsmouth. Até onde a vista alcançava, o lado oriental mais próximo da Inglaterra estava coalhado de embarcações, dirigindo-se para os horizontes distantes, para um porto nacional ou para o outro lado do mundo. Era um panorama cheio de colorido, excitação e romance, e as duas criaturas, ali na borda do penhasco, mantinham-se em silêncio enquanto permaneciam por algum tempo observando tudo.
A paz foi turbada por dois uivos de sirena, provenientes da casa, e eles se viraram, para olhar o mundo negro e feio de concreto, que haviam banido de seus espíritos. Enquanto olhavam, uma bandeira vermelha foi hasteada por cima da cúpula de lançamento, e duas ambulâncias da RAF, com as cruzes vermelhas nos lados, irromperam do renque de arvoredo, na direção do muro, e aí estacaram.
— Vai começar a operação combustível — disse Bond. — Vamos principiar nosso passeio. Nada haverá para ver e, se por acaso acontecesse alguma coisa, nós não sobreviveríamos, quase com certeza, no ponto em que nos encontramos.
A moça sorriu.
— É verdade. E eu já estou cheia de olhar para todo esse concreto.
Seguiram ambos pelo declive suave e, dentro em pouco, encontravam-se já longe do alcance de tiro e da alta cerca de arame.
O gelo da reserva de Gala derretia-se rapidamente ao sol.
A alegria exótica de sua toalete, uma blusa de algodão listrada de branco e preto, metida num cinto largo, pespontado à mão, também preto, encimava uma saia meio curta, rosa shocking, e o conjunto parecia contagiá-la. Era impossível, para Bond, reconhecer a mulher frígida e distante da noite anterior naquela que caminhava agora a seu lado, rindo e feliz de sua ignorância a respeito dos nomes de flores selvagens: a erva de S. Pedro, a fumaria e outras, em tons azuis, que rodeavam seus pés.
Triunfalmente, encontrou uma orquídea selvagem e colheu-a .
— Você não faria isso, se soubesse que as flores gritam quando são colhidas — disse Bond.
Gala olhou para ele.
— Que quer você dizer com isso? — perguntou, suspeitando um gracejo.
— Ah, você não sabia? — Bond sorriu, ao observar a reação de Gala. — Existe um professor hindu, chamado Bhose, que escreveu um tratado sobre o sistema nervoso das flores. Mediu a reação delas à dor. Chegou mesmo a registrar o grito de uma rosa, quando é colhida. Deve ser um dos sons mais lancinantes do mundo, não lhe parece? Pois eu ouvi algo de semelhante quando você colheu essa flor.
— Não acredito — disse Gala, olhando desconfiada para a raiz arrancada. — Mas, de qualquer maneira — acrescentou, maliciosa — eu jamais pensaria que você fosse capaz de sentimentalismos. As pessoas, no seu Serviço, não fazem de matar um ofício? E não são apenas flores. São pessoas.
— As flores não podem atirar em nós, também — disse Bond.
Gala olhou a flor.
— Agora você me fez sentir como se fosse uma criminosa. É muita maldade sua. Mas — confessou relutante — terei de descobrir essa história do hindu, e se você tiver dito a verdade, nunca mais apanharei uma flor enquanto viver. Que faço com esta? Você me fez sentir com as mãos sangrando completamente.
— Dê para mim. De acordo com você, minhas mãos já estão gotejando sangue. Um pouco mais não fará diferença.
A moça ofereceu-lhe a flor, e suas mãos se tocaram.
— Você poderá colocá-la no cano do revólver — falou, para disfarçar o instante do contato.
Bond riu:
— Quer dizer que os orifícios não servem só para decoração. Mas a minha é uma pistola automática, e eu deixei-a no quarto.
Enfiou o talo da flor numa das casas de sua camisa de algodão:
— Achei que um coldre de ombro chamaria um pouco a atenção sem o paletó para cobri-lo. Depois não acredito que ninguém vá mexer em meu quarto esta tarde.
Numa concordância tácita, eles se afastaram do momento de intimidade. Bond contou sua descoberta a respeito de Krebs e a cena do quarto.
— Foi bem feito para ele. Nunca confiei nesse homem. Mas o que é que diz Sir Hugo?
— Falei com ele antes do almoço — respondeu Bond.
—Entreguei-lhe a faca e as chaves de Krebs como prova. Ficou furioso e saiu imediatamente à procura do sujeito, resmungando de cólera. Quando voltou, me disse que Krebs parecia já se encontrar num estado deplorável e perguntou se eu não me dava por satisfeito ao saber que fora bem castigado. Repetiu toda aquela história de não querer perturbar sua equipe na última hora, etc. e tal. De modo que concordei em que fosse mandado de volta à Alemanha na próxima semana e que, enquanto isto, se considerasse preso sob palavra — sendo-lhe permitido apenas deixar o quarto vigiado.
Bond e sua companheira desceram um caminho íngreme do penhasco até a praia, virando à direita, para Royal Marine, em Deal. Caminharam em silêncio até chegarem a uma extensão de duas milhas de uma praia coberta de cascalho que, durante o tempo de maré baixa, corre entre os elevados penhascos brancos até a baía de Sta. Margarida.
Enquanto esmagavam lentamente as pedrinhas macias, Bond contou tudo que lhe passara pela cabeça desde o dia anterior. Não guardou nada. Relatou todos os passos tomados, as pistas falsas que seguira em cada um dos pontos de partida, não deixou nada por comentar, exceto uma tênue suspeita mal fundada e um amontoado de indícios que terminavam todos na mesma interrogação. . . onde estava o X da história? Onde achar um plano no qual os indícios se encaixassem? E sempre a mesma resposta: nada do que Bond sabia ou suspeitava parecia ter qualquer relação concebível com a segurança contra a sabotagem do “Explorador da Lua”. Isto, no entanto, quando tudo fora dito e feito, era a única coisa com que ele e a moça tinham que ver. Não com a morte de Tallon e Bartsch, ou com o ordinário Krebs, mas somente com a proteção de todo o projeto relacionado com o “Explorador da Lua” contra seus possíveis inimigos.
— Não é verdade? — finalizou Bond.
Gala parou e ficou um momento olhando por entre as rochas e algas a calma cintilação das ondas do mar. Estava suada e ofegante depois da caminhada difícil pelo caminho de cascalhos. Pensava como seria maravilhoso tomar um banho de mar — voltar por um momento aos dias da infância à beira-mar, antes de sua vida ter sido presa nesta estranha profissão, cheia de emoções decepcionantes e tensões nervosas. Olhou o rosto moreno e cruel do homem ao seu lado. Será que teria momentos de anseio pelas coisas simples e calmas da vida? Com certeza não. Gostava de Paris, Berlim e New York, trens, aviões, comida cara e, sim, certamente, de mulheres caras.
— Então? — perguntou Bond, conjeturando se ela ia apresentar algum indício que ele não percebera. — Que é que acha?
— Desculpe. Eu estava sonhando acordada. Não, eu acho que você tem razão. Estou aqui desde o princípio e, apesar de ter notado coisinhas estranhas de vez em quando, fora os tiros resultando em duas mortes, claro, não vi absolutamente nada de incorreto. Todos os componentes da equipe, de Sir Hugo para baixo, estão de corpo e alma dedicados ao foguete. Vivem unicamente para isso, e tem sido maravilhoso ver tudo se desenvolver. Os alemães são trabalhadores ao extremo — posso bem acreditar que Bartsch tenha perecido pela tensão exagerada dos nervos — gostam de ser dirigidos por Sir Hugo, e ele gosta de dirigi-los. Eles adoram-no. Quanto à segurança, o local está sólido e bem guarnecido. Tenho certeza de que se alguém quisesse se aproximar do “Explorador da Lua” seria feito em pedaços. Concordo com você a respeito de Krebs e que ele, provavelmente, estivesse agindo sob as ordens de Drax. Foi por isto que não me dei o trabalho de ir contar--lhe quando ele andou mexendo nas minhas coisas. Não havia nada para ele encontrar, naturalmente. Só cartas particulares e coisas assim. Seria típico de Sir Hugo procurar certificar-se com absoluta minúcia. Aliás, devo dizer que o admiro por isto — acrescentou com franqueza. — Ele é um homem cruel, com maneiras deploráveis, e não muito simpático debaixo de toda aquela cabelada vermelha, mas eu gosto de trabalhar para ele e estou ansiosa para que o “Explorador da Lua” seja um sucesso. Viver ao lado dele durante tanto tempo fez com que eu me sentisse exatamente como seus homens.
Gala levantou os olhos para ver a reação do companheiro. Este baixou a cabeça, assentindo.
— Depois de um dia apenas, eu posso compreender isto — disse. — Creio que concordo com você. Não há nada em que nos basearmos, exceto minha intuição, e isto é uma coisa que não conta. O principal é que o “Explorador da Lua” parece seguro, tão seguro quanto as joias da Coroa e, provavelmente, ainda mais.
Bond sacudiu os ombros impaciente, aborrecido consigo mesmo, por renegar as intuições que contavam tanto em seu trabalho.
— Vamos embora — convidou quase rude. — Estamos perdendo tempo.
Compreendendo, a moça sorriu e seguiu o companheiro.
Contornando a próxima inclinação do penhasco, chegaram à base do elevador, coberto de algas marinhas e crustáceos . . . Cinquenta jardas mais adiante alcançaram o dique, construção forte, tubular, de ferro, calçado de tiras de aço entrelaçadas, que avançava sobre as rochas e mais além.
Entre os dois, e talvez uns vinte pés acima da face do penhasco, escancarava-se a boca negra e larga do túnel de exaustão, que subia inclinada dentro do penhasco para o chão de aço sob a popa do foguete. Da borda inferior da cavidade, giz derretido caía como lava, e viam-se respigos da matéria por cima de todos os pedregulhos e rochas lá embaixo. Com os olhos da imaginação, Bond via um rastro ofuscante de flama branca surgir uivando da parede do penhasco e ouvia o sibilo e borbulhar, quando o giz líquido se derramava na água.
Levantou os olhos para a estreita faixa da cúpula de lançamento que aparecia acima da borda do penhasco, duzentos pés acima, imaginando os quatro homens com suas máscaras contra gases, vestidos com roupas de asbetos, observando os instrumentos medidores enquanto o terrível líquido explosivo pulsava pelo tubo negro de borracha até o estômago do foguete. De repente, percebeu que se encontravam dentro do raio de ação, se alguma coisa não desse certo no enchimento de combustível.
— Vamos sair daqui — disse à pequena.
Quando umas cem jardas se interpuseram entre eles e a cavidade, Bond parou e olhou para trás. Imaginou-se acompanhado de mais seis homens fortes e durões, com todos os instrumentos necessários — e conjeturou como daria início a um ataque à base, vindo do mar — embarcações presas ao cais, quando a maré estivesse baixa; uma escada na borda da cavidade? e depois o quê? Seria impossível galgar as paredes de aço polido do túnel exaustor. Seria uma questão de disparar uma arma antitanque através do chão de aço por baixo do foguete, seguida de algumas granadas de fósforo, e esperar que alguma coisa pegasse fogo. Negócio meio confuso, mas que talvez desse resultado. Sair depois seria complicado. Seriam alvos fáceis para quem estivesse no topo do penhasco. Mas isto não perturbaria um esquadrão suicida russo. Era tudo muito possível de realizar.
Gala estivera ao seu lado, observando os olhos que mediam e especulavam.
— Não é tão fácil como você pensa — disse, vendo-lhe a testa franzida. — Mesmo quando a maré é alta e o mar muito forte, colocam guardas ao longo do cimo do penhasco de noite. Eles têm holofotes, Brens e granadas. As ordens que recebem são de atirar, e fazerem as perguntas depois. Naturalmente seria melhor iluminar completamente o penhasco à noite. Mas isto só serviria para tomar a base um alvo certeiro. Estou convencida de que pensaram em tudo.
Bond continuava franzindo a testa.
— Se eles tivessem cobertura do ataque por um submarino ou uma embarcação, um grupo eficiente ainda conseguiria realizar o negócio. Vai ser o diabo, mas eu vou nadar. O mapa do Almirantado diz que existe um canal de doze braças ali adiante, mas eu gostaria de dar uma olhada. Deve ter muita água no final do dique, contudo eu me sentirei mais feliz quando verificar com meus próprios olhos.
Sorriu para a moça:
— Por que você não vem nadar também? A água deve estar bastante fria, mas lhe faria bem, depois de ter estado a cozinhar-se dentro daquela cúpula de concreto a manhã inteira .
Os olhos de Gala se iluminaram.
— Acha que eu posso? — perguntou, hesitante. — Estou com um calor tremendo. Mas que é que nós vamos vestir?
Corou ao lembrar-se de suas calcinhas e porta-seios minúsculos e de nylon quase transparentes.
— Deixe isto pra lá — disse Bond aèreamente.
— Você deve ter alguns trapinhos vestidos aí por baixo, e eu estou de short. Estaremos perfeitamente respeitáveis, e não há ninguém por aqui para ver. Depois, eu prometo não olhar — mentiu alegremente, seguindo na frente até a próxima inclinação do penhasco.
— Você se despe atrás dessa rocha, e eu desta outra.
— Vamos. Não seja tola. Tudo faz parte de nossas obrigações .
Sem esperar a resposta dela, encaminhou-se para trás de uma rocha elevada, tirando a camisa enquanto andava.
— Ora, muito bem — disse Gala, aliviada por ter a resolução sido tirada de suas mãos. Foi para trás de outra rocha e lentamente desabotoou a saia.
Quando espiou nervosamente para fora, Bond já ia na metade do trecho de áspera areia marrom que seguia por entre os pequenos lagos para onde a maré enchente rodopiava entre os verdes e negros detritos das rochas... O rapaz tinha uma aparência elástica e a pele bronzeada. O short azul era tranquilizador.
Pisando de leve, ela seguiu-o e, de repente, estava dentro d’água. Imediatamente nada mais teve importância, fora do gelo aveludado do mar, a beleza das manchas de areia por entre os cabelos ondulados das algas marinhas que via nas profundezas verdes e claras abaixo dela quando mergulhou a cabeça e nadou paralelamente à praia num rápido crawl.
Ao se encontrar ao nível do dique, parou um momento para tomar fôlego. Não se via sinal de Bond, que ela vira nadando vários metros à frente. Bateu com os pés fortemente dentro da água para manter viva a circulação e então recomeçou novamente, pensando nele sem querer, pensando no corpo rijo e moreno que devia estar ali por perto, entre as rochas, talvez, ou mergulhando para a areia, a fim de calcular a profundidade da água com que um inimigo podia contar.
Virou-se para procurá-lo de novo, e foi então que ele surgiu inesperadamente do mar, por baixo dela. Sentiu o abraço rápido e apertado e o contato breve mas forte dos lábios dele nos seus.
— Vá para o diabo — exclamou furiosa, mas o rapaz já bavia mergulhado novamente, e quando ela golfou uma porção de água do mar, conseguindo orientar-se, ele nadava alegremente a vários metros de distância.
Gala voltou-se e nadou displicente, sentindo-se bastante ridícula, porém resolvida a pô-lo no seu lugar. Era exatamente como tinha pensado. Esse pessoal do Serviço Secreto sempre encontrava tempo para o sexo, por mais importante que fosse a missão de que se encarregavam.
Mas seu corpo vibrava obstinadamente com o imprevisto do beijo, e o dia luminoso parecia ter adquirido nova beleza. Enquanto nadava mais para fora, virou-se e olhou os dentes brancos como leite, dentes da Inglaterra que rosnavam, olhou o braço distante de Dover, o confete branco e preto dos corvos e gaivotas, jogados contra o vivido pano de fundo dos campos verdes, e chegou à conclusão de que tudo seria permitido num dia assim e que, só por aquela vez, ela o perdoaria.
Meia hora depois estavam deitados, esperando que o sol viesse secá-los, separados pela respeitável distância de um metro de areia, ao pé do penhasco.
O beijo não fora mencionado, mas os esforços de Gala para manter uma atitude de alheamento haviam tombado com a excitação de examinar uma lagosta que Bond apanhara com as mãos, ao mergulhar. Relutantemente, tornaram a colocá-la numa das cavidades da rocha e ficaram observando seus movimentos de volta ao abrigo das algas marinhas. Agora, ali estavam, cansados e alegres com o banho gelado, rezando para que o sol não se escondesse atrás do penhasco acima de suas cabeças antes de estarem aquecidos e suficientemente secos para poder vestirem novamente as roupas.
No entanto, não eram só estes os pensamentos de Bond. O lindo corpo estirado da pequena ao seu lado, incrivelmente erótico na ênfase marcante das calcinhas e porta-seios agarrados à pele, interpunha-se entre ele e sua preocupação com o “Explorador da Lua”. Além do mais, não havia nada que ele pudesse fazer pelo foguete durante mais uma hora. Ainda não eram cinco, e a tomada de combustível não terminaria senão depois das seis.
Seria somente àquela hora que ele poderia aproximar-se de Drax para certificar-se de que nas duas próximas noites haveria um acréscimo de guardas no penhasco e que eles possuíam as armas adequadas. Pois verificara com os próprios olhos que havia muita água, mesmo com a maré vazante, possibilitando a chegada de um submarino.
De modo que contava pelo menos com um quarto de hora livre antes de poderem voltar.
No intervalo havia essa pequena. O corpo semidespido surgia acima dele na superfície, quando nadava em baixo dela; o beijo rápido, forte e suave ao mesmo tempo, com os braços em torno dele; as colinas pontudas de seus seios, tão próximas e o estômago macio e raso, descendo para o mistério das coxas fortemente cerradas.
Para o inferno, toda essa história.
Arrancou o espírito dessa febre e fitou diretamente o infindável azul do céu, forçando-se a observar a beleza das gaivotas esvoaçantes ao se alinharem sem nenhum esforço entre as correntes de ar que giravam sobre o alto topo dos penhascos acima deles. Mas a plumagem sedosa e branca do colo das aves desviou novamente seus pensamentos para ela, não lhe dando descanso.
— Por que você se chama Gala? — perguntou, para interromper a sequência de pensamentos cálidos e persistentes.
A moça riu.
— Durante todo meu tempo de escola mexiam comigo por causa disso — respondeu, e Bond se impacientou diante da voz clara, fácil. — Depois, quando pertenci às Wrens e ainda pela metade da força policial de Londres. Mas meu verdadeiro nome é ainda pior. É Galateia. Era o cruzador onde meu pai servia quando eu nasci. Creio que Gala não é tão ruim assim. Quase me esqueci do meu nome de verdade. Estou sempre precisando trocá-lo, agora que estou na Seção Especial.
— Na Seção Especial. Na Seção Especial. Na. . .
Quando a bomba cai. Quando o piloto calcula mal, e o avião bate antes de tocar a pista de aterrissagem. Quando o sangue deixa o coração, e a consciência foge, há pensamentos no cérebro, ou palavras, ou talvez uma frase musical que se repete durante os poucos segundos antes da morte, como o som moribundo de um sino.
Bond não estava morto, mas as palavras ainda estavam dentro de sua mente, vários segundos depois de tudo haver acontecido.
Desde o momento em que tinham-se deitado na areia, recostados no penhasco, enquanto seus pensamentos se concentravam em Gala, seus olhos haviam observado distraidamente duas gaivotas brincando em redor de uma ponta de palha que estava na beira do ninho, numa pequena saliência, cerca de uns trezentos metros abaixo do cume distante do penhasco. Inclinavam os pescoços e pareciam cumprimentar, em seu jogo amoroso, só com as cabeças, que Bond divisava contra o branco ofuscante do céu. Então o macho voava para longe e, imediatamente voltava à saliência da rocha, para recomeçar seu jogo de amor.
Bond observava-os sonhadoramente enquanto ouvia o que a moça dizia, quando, subitamente, as duas gaivotas fugiram da saliência da rocha com um só grito de pavor. No mesmo instante viu-se um rolo de fumaça negra e ouviu-se um estrondo amortecido vindo do alto do penhasco. Em seguida, uma grande quantidade de giz branco, bem acima das cabeças de Bond e Gala, pareceu desligar-se para fora, ziguezagueando fragmentos pela encosta.
Quando Bond se deu conta do que fazia, achou-se deitado em cima de Gala, o rosto apertado contra o dela, e percebeu que o ar estava cheio de trovões, que sua respiração estava abafada, e que o sol desaparecera. Sentia as costas dormentes e doendo sob um grande peso, e sua orelha esquerda, além do eco do trovão, guardava o som de um grito sufocado.
Mal teve consciência do se passava, e precisou esperar até que seus sentidos voltassem à vida.
A Seção Especial. O que foi que ela disse a respeito da Seção Especial?
Fez esforços inauditos para se mexer. Apenas no braço direito, o braço mais próximo do penhasco, ainda havia algum movimento, mas quando puxou o ombro, o braço ficou mais livre até que, finalmente, com um impulso grande para trás, a luz e o ar chegaram até eles. Lutando no nevoeiro de poeira de giz, alargou o buraco, até a cabeça poder retirar seu peso esmagador de cima de Gala. Sentiu o leve movimento, quando ela virou a cabeça para um lado, procurando a luz e o ar. Uma torrente de poeira e pedras no buraco que ele limpara fê-lo cavar ferozmente mais uma vez. Pouco a pouco, aumentou o espaço até conseguir firmar o cotovelo direito, e então, tossindo ao ponto de imaginar que os pulmões iam arrebentar, impulsionou o ombro direito para cima até que, de repente, livrou-o, bem como a cabeça.
Seu primeiro pensamento foi que tinha havido uma explosão no “Explorador da Lua”. Levantou os olhos para o penhasco e depois para a praia. Não. Estavam a cem metros da base. Foi apenas na linha do horizonte, diretamente acima deles, que um grande pedaço fora comido no penhasco.
Em seguida pensou no perigo imediato que corriam. Gala gemia, e ele sentia o frenético bater de seu coração contra o próprio peito, mas a máscara pavorosa e branca de seu rosto estava agora livre para respirar, e ele se pôs então a girar o corpo de um lado para o outro em cima dela, a fim de tentar aliviar a pressão de seus pulmões e do estômago. Lentamente, polegada por polegada, seus músculos partindo-se com o esforço, procurou caminho sob a pilha de poeira e detritos até o lado do penhasco, onde sabia que o peso seria menor.
Finalmente livrou o peito e pôde ajoelhar-se ao lado da companheira. O sangue pingava de suas costas e braços feridos, misturando-se com a poeira de giz que continuamente caía na parte lateral dos buracos que fizera mas verificou que não tinha ossos quebrados e, com a fúria do trabalho de salvamento, não sentiu dores.
Grunhindo e tossindo, sem uma pausa para respirar, ergueu-a e fê-la sentar-se e, com a mão sangrando, limpou um pouco do giz de seu rosto. Depois, livrando as pernas da tumba de giz, levantou-a e levou-a até uma elevação dos detritos, com as costas voltadas para o penhasco.
Ajoelhou-se e olhou aquele horrível espantalho branco que, minutos antes, fora uma das mais lindas moças que já vira. Enquanto olhava os filêtes de sangue escorrendo-lhe pelo rosto, rezou para que seus olhos se abrissem.
Quando, segundos mais tarde, eles se abriram, o alívio foi tão grande, que Bond se afastou e sofreu tremenda crise de náuseas.
CONTINUA
A um quilômetro da base, aproximadamente, Drax estacou.
— Eu explicarei a geografia — disse ele. — Walter, siga na frente. Já devem estar esperando por você, para dar outra olhada naquelas barbatanas... Mas não se preocupe demasiado com elas, meu caro amigo. O pessoal das ligas de alto teor sabe muito bem o que está fazendo. E agora — continuou Drax, olhando para Bond, enquanto fazia um gesto na direção da cúpula branca como leite — ali dentro está o “Explorador”. O que você vê é o topo de uma plataforma que foi escavada a mais de quarenta pés de profundidade, no terreno calcário. As duas metades da cúpula são abertas hidràulicamente e recolhidas para trás, ao nível do muro de vinte pés. Se agora estivessem abertas, você veria o cone final do “Explorador”, ao nível do muro. Ali — apontou para uma sombra retangular que estava já quase fora do campo visual de ambos, na direção de Deal — fica a casamata de controle, de onde se comanda o disparo. É um blocausse em concreto. Está cheio de dispositivos de radar de rastreio — tanto o radar de velocidade Doppler como o radar de rastreio de direção de voo, por exemplo. As informações são fornecidas por meio de vinte canais telemétricos, alojados no cone do foguete. Também existe ali dentro uma enorme tela de televisão, de modo que se pode acompanhar o comportamento do foguete no interior da cápsula, depois de iniciado o voo. Um outro conjunto de televisores serve para acompanhar o início da ascensão. Ao lado da casamata, há um elevador que desce ao longo do penhasco. Uma boa parte das peças e maquinismos foi trazida para a base por via marítima e transportada até cá em cima por meio desse monta-cargas. Aquele gemido que você escuta, vem da central elétrica, ali mais adiante — e Drax fez um gesto vago, em direção a Dover. — Os alojamentos dos homens e a casa são protegidos pelo muro à prova de deslocação de ar. Mas quando fizermos o lançamento, não deverá haver ninguém dentro de um raio de ação de um quilômetro e meio, a partir da base, exceto os técnicos do Ministério e a equipe da B.B.C., que estará colocada na casamata de comando. Espero que o muro aguente bem a deslocação de ar. Walter diz que a base e uma boa parte da faixa de concreto derreterão com o calor. E é tudo. Nada mais precisa saber, até entrarmos. Vamos.
Bond tornou a observar o tom rude de comando. Seguiu em silêncio, atravessando uma zona banhada de luar, até chegarem à parede de suporte da cúpula. Uma lâmpada vermelha brilhava na parede, por cima de uma porta de aço chapeado. Iluminava um grande letreiro que dizia em inglês e alemão:
PERIGO DE MORTE.
ENTRADA PROIBIDA QUANDO A LÂMPADA VERMELHA ESTIVER ACESA.
TOQUE A CAMPAINHA E ESPERE.
Drax apertou o botão por debaixo do letreiro, e ouviu-se o som abafado de uma campainha de alarma.
— Pode estar alguém trabalhando com o oxiacetileno, ou fazendo qualquer outro trabalho delicado — explicou Drax. — Basta que desvie sua atenção do serviço, pela fração de um segundo, caso alguém entre sem aviso, e isso poderia resultar num erro bastante caro. Todos largam os utensílios quando a campainha soa, e só recomeçam quando veem de que se trata.
— Drax afastou-se um pouco da porta e apontou para uma série de gradeados dispostos logo abaixo do remate da parede. — São os exaustores de ventilação — continuou ele explicando.
— O ar condicionado no interior da cúpula mantém-se constantemente a setenta graus Farenheit.
A porta foi aberta por um homem que empunhava um cassetete de policial e trazia um revólver no cinturão. Bond seguiu Drax até uma pequena antecâmara. Esta nada tinha senão um banco e uma fileira bem arrumada de chinelos de feltro.
— Terá de calçá-los — disse Drax, sentando-se e tirando os sapatos. — Poderia escorregar e esbarrar contra alguém. O melhor é deixar aqui também seu casaco. Setenta graus Farenheit é uma temperatura bastante elevada.
— Obrigado — disse Bond, lembrando-se da Beretta encaixada sob a axila. — A verdade é que não sinto calor algum.
Sentindo-se como um visitante num teatro em dia de ensaios, Bond seguiu Drax através de uma porta de comunicação, passando depois por um estreito corredor e desembocando numa série de projetores que, instintivamente, o fizeram levar a mão aos olhos, enquanto com a outra se agarrava ao gradeado do corrimão protetor, à sua frente.
Quando retirou a mão, foi brindado com uma cena de tal esplendor que, durante vários minutos, ficou sem fala, os olhos fascinados pela terrível beleza da mais poderosa arma existente sobre a Terra.
CAPITULO 12
O “EXPLORADOR DA LUA”
Era como se o tivessem metido no tambor polido de um gigantesco revólver. Partindo do chão, a mais de doze metros abaixo da varanda onde se encontravam, erguia-se uma parede circular, de metal polido, no topo da qual, ele e Drax se colavam como duas moscas. No centro desse imenso cilindro, que mediria pelo menos uns nove metros de diâmetro, estava colocado um gigantesco lápis de cromo, refulgente, cuja ponta, aguçando-se numa antena fina como agulha, parecia roçar o telhado, seis ou sete metros acima de suas cabeças.
O cintilante projétil descansava numa base cônica de aço, que se erguia do chão por entre as extremidades de três barbatanas em forma de delta, pronunciadamente puxadas para trás, e que parecia tão afiadas quanto bisturis de cirurgião. Mas, fora isso, nada mais empanava o brilho sedoso dos quinze metros de aço cromado e polido, exceto as duas garras que saíam das paredes e colhiam a cintura do foguete, por entre espessos acolchoados de espuma de borracha.
No ponto em que as garras tocavam o projétil, viam-se pequenas portas de acesso, abertas na superfície de aço e, quando Bond olhou para baixo, divisou um homem que saía agachado por uma delas, até alcançar a estreita plataforma do monta-cargas instalado paralelamente ao bojo do “Explorador”. Depois, fechou a porta com a mão enluvada. Encaminhou-se a passos miúdos, equilibrando-se pela estreita ponte, até alcançar a parede, e fez girar uma manivela. Ouviu-se um profundo gemido de maquinismo, e a garra retirou seu suporte acolchoado do bojo do foguete, ficando suspensa no ar, como as patas dianteiras de um louva-a-Deus. Os gemidos do mecanismo alteraram-se para um tom mais cavo, e a plataforma do monta-cargas, lentamente, foi-se retraindo, em movimento de telescópio. Depois, tornou a esticar-se e foi pegar o foguete, com a garra, três metros mais abaixo. Seu operador esgueirou-se de novo pelo braço e abriu outra pequena porta de acesso ao interior, desaparecendo dentro do foguete.
— Provavelmente está verificando o sistema de alimentação de combustível dos tanques posteriores — disse Drax. — A alimentação é feita por gravidade. Um sistema bastante complexo. Que acha você disto? — Observou com prazer a expressão de êxtase, estampada no rosto de Bond.
— Uma das coisas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida — respondeu Bond. Era fácil falar. Não se ouvia o menor som dentro do grande cilindro de aço, e as vozes dos homens apinhados lá embaixo, junto da cauda do foguete, não chegavam a eles senão como distante murmúrio. Drax apontou para cima e explicou:
— Veja o cone. O que está montado é apenas experimental, mas pode substituir-se, claro, por uma cápsula estratégica, com carga nuclear. Para este voo, irá cheia de instrumentos. Telêmetros e todas essas coisas. Depois, estão os giroscópios, bem defronte de nós. E, em seguida, quase exclusivamente, tanques de combustível até abaixo, quando temos então as turbinas, já próximas da cauda. Impulsionadas por vapor superaquecido, obtido na decomposição do peróxido de hidrogênio . O combustível, fluorina e hidrogênio... — olhou rapidamente para Bond. A propósito, isto é top secret, sabe?... pois o combustível, como dizia, baixa pelos tubos de alimentação e recebe a ignição logo que é introduzido no motor. Trata-se de uma espécie de explosão controlada, que impulsiona o foguete para o ar. Esse assoalho de aço onde o “Explorador” assenta agora, desliza então para fora, claro. Por baixo, há um enorme poço de exaustão. Tem saída para a base dos rochedos, do lado do mar. Amanhã você irá dar uma vista d’olhos. Parece uma gigantesca caverna, nada mais. Quando procedemos, há dias, a um teste estático, a substância calcária do terreno derreteu e correu para o mar como se fosse água. Espero que não acabemos por calcinar e destruir os famosos penhascos brancos de Dover, quando chegar a hora zero. Você gostaria de dar uma olhada nos trabalhos?
Bond seguiu em silêncio, quando Drax indicou o caminho, descendo por uma íngreme escada de ferro, que acompanhava a parede de aço em sua curvatura. Sentia agora invadir-se por uma onda de admiração e quase de reverência por esse homem e sua formidável realização. Como teria podido ele, Bond, deixar-se impressionar desfavoravelmente pela conduta infantil de Drax, à mesa de jogo? Mesmo os grandes homens têm suas fraquezas. E Drax necessitava dessa válvula de escape para a tensão a que o submetia a tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Tornava-se óbvio que Drax não podia confiar excessivamente em seus auxiliares direitos, de nervos à flor da pele. Dele sozinho devia partir a vitalidade e a confiança necessárias para manter elevado a moral de todos. Mesmo tratando-se de uma coisa tão insignificante quanto ganhar uma partida de bridge, devia ser importante para Drax estar-se assegurando constantemente da própria capacidade, procurando em tudo vaticínios de boa sorte e de êxito, chegando ao ponto de criar esses augúrios favoráveis por suas próprias mãos. Quem não suaria ou roeria as unhas, estando tanta coisa em jogo?
Enquanto contornavam a larga curva da escada, com suas figuras grotescamente refletidas na superfície cromada do foguete, como em um espelho mágico de feira, Bond sentia quase afeto pelo homem que, apenas há poucas horas, ele dissecara sem piedade e quase com ódio.
Quando chegaram à plataforma da base de aço do cilindro, Drax fez uma pausa e olhou para cima. Bond seguiu o olhar do outro. Visto naquela perspectiva, o “Explorador” dava-lhes a impressão de estar olhando para um fino cone vertical de luz, perdendo-se na abóbada cintilante, um feixe de luz que não era totalmente branco, mas de uma tonalidade acetinada de madrepérola. Havia nele alguns pontos vermelhos e brilhantes, refletidos por um gigantesco extintor de incêndios, de neve carbônica, colocado a pouca distância. Um homem em traje de amianto estava postado ao lado do extintor, que apontava seu bico de leque para a base do foguete. Havia também uma estria de cor violeta, cuja origem provinha de uma lâmpada fixada ao painel de instrumentos, na parede. Servia para controlar os movimentos da cobertura de aço em que se encontravam e que os separava do poço de exaustão. Finalmente, um tom verde-esmeralda vinha da luz difusa de uma lâmpada com abajur, colocada sobre uma mesa de pinho, à qual se sentava um homem que ia anotando números que lhe eram transmitidos, de viva voz, pelo grupo reunido logo abaixo da cauda do foguete.
Levantando os olhos para aquela coluna em tons pastel, tão incrivelmente esguia e graciosa, parecia impossível que uma coisa tão delicada pudesse aguentar as pressões a que teria de submeter-se na próxima sexta-feira: o jato tronitruante da mais poderosa explosão controlada que alguma vez fora tentada; o impacto da barreira do som; as pressões desconhecidas da estratosfera, a quinze mil milhas por hora; o choque terrível quando retornasse, num mergulho de milhares de milhas de altura, para ferir de novo o envelope atmosférico da Terra.
Drax pareceu ler seus pensamentos. Voltou-se para Bond:
— É como perpetrar um assassinato — disse ele. Em seguida, de maneira surpreendente, explodiu numa risada asinina. —Walter! — chamou, dirigindo-se ao grupo de homens. — Venha cá!
Walter destacou-se dos outros e aproximou-se.
— Walter — prosseguiu Drax — eu estava dizendo ao nosso amigo, o Comandante, que quando lançarmos o “Explorador da Lua” será como se cometêssemos um crime de assassinato .
Bond não ficou surpreendido, ao ver uma expressão de incredulidade intrigada estampar-se no rosto do doutor. Irritado, Drax exclamou:
— Assassinato de uma criança. Assassinato de nosso filho — repetiu com um gesto na direção do foguete. — Acorde, homem! Acorde! Que se passa com você?
A fisionomia de Walter clareou. De um modo velado, sorriu, mostrando seu apreço pela comparação.
— Assassinato, Ah, sim! Essa é muito boa. Ha! Ha! E agora, Sir Hugo, as folhas de grafita no exaustor. O Ministério está satisfeito com o ponto de fusão? Eles não acham que. ..
Ainda falando, Walter levou Drax para debaixo da cauda do foguete. Bond seguiu ambos.
Os rostos dos dez homens estavam voltados para eles, quando chegaram. Drax apresentou-o com um gesto da mão.
— Comandante Bond, o nosso novo agente de segurança, — disse, conciso.
O grupo olhou Bond em silêncio. Não houve o menor movimento para ir cumprimentá-lo, e os dez pares de olhos não refletiam curiosidade.
— Então, que negócio é esse de tanta história com a grafita? . ..
O grupo se fechou em torno de Drax e Walter. Bond foi deixado só, para trás.
Não estava surpreso com a frieza da recepção. Teria olhado a intromissão de um amador nos segredos de seu próprio departamento com a mesma indiferença mesclada de ressentimento. Além do mais, simpatizava com esses técnicos apanhados a dedo, que tinham vivido durante meses a fios nas mais altas regiões da astronáutica e se encontravam agora no limiar do julgamento final. Entretanto, lembrava-se, os inocentes entre si deviam saber que Bond tinha seu próprio dever a cumprir, sua própria participação vital nesse projeto. Suponhamos, por exemplo, que um desses pares de olhos, nada comunicativos, escondesse um homem dentro de outro homem, um inimigo que, talvez, naquele instante mesmo exultasse com a certeza de que a grafita que Walter parecia não confiar era realmente sub-resistente. É verdade que tinham o aspecto de uma equipe bem unida, quase de uma fraternidade, ao se colocarem assim em torno de Drax e Walter, pendendo de suas palavras, os olhos atentos aos movimentos das bocas dos dois homens. Mas seriam parte de um cérebro, movimentando-se dentro da intimidade de uma órbita secreta, registrando seus cálculos ocultos como o mecanismo clandestino de uma máquina infernal?
Bond caminhava a esmo, para cima e para baixo do triângulo formado pelas três pontas das barbatanas que repousavam em suas cavidades forradas de borracha no chão de aço, interessando-se em tudo em que seus olhos pousavam, mas, de quando em quando, focalizando-os no grupo de homens, em ângulo diferente.
Com exceção de Drax, todos usavam o mesmo macacão justo de nylon, preso por fecho-éclair de plástico. Não se via o menor vestígio de metal, e nenhum deles usava óculos. Como no caso de Walter e Krebs, suas cabeças estavam raspadas bem rente. Provavelmente, pensou Bond, para evitar que um fio solto de cabelo pudesse cair dentro do engenho. Entretanto, e isso chamou-lhe a atenção como característica muito estranha da equipe, todos exibiam exuberantes bigodes, cuja manutenção exigia, sem dúvida, grande dose de cuidados. Eram de todos os formatos e tonalidades: louros, cor de rato ou escuros, em guidões de bicicleta, de foca, à Kaiser ou à Hitler — cada rosto exibia seu distintivo capilar, entre os quais a pelagem ruiva de Drax brilhava como insígnia oficial do chefe supremo.
Por que motivo, conjeturava Bond, todos os homens da base usavam bigode? Nunca os apreciara, mas combinados com as cabeças raspadas, lembravam algo de positivamente obsceno. Teria sido apenas tolerável, se todos fossem cortados no mesmo modelo, mas a variedade de gêneros individuais, essa anarquia de formatos, tinha um que de particularmente horrível, destacando-se do fundo composto pelas cabeças nuas e redondas.
Nada mais havia para chamar a atenção. Os homens eram de estatura mediana, e todos de tipo mais sobre o esguio — talhados, supunha Bond, mais ou menos de acordo com as necessidades do trabalho. A agilidade seria imprescindível nas plataformas, nas passagens ao longo das garras laterais e dos monta-cargas, e solidez para executar as manobras através das portas de acesso e dentro dos minúsculos espaços disponíveis nos compartimentos do foguete. As mãos deles pareciam ter os músculos e nervos relaxados. Eram imaculadamente limpas, e seus pés, metidos em chinelos de feltro, estavam imóveis pela concentração no trabalho. Bond não surpreendeu nenhum deles, em ocasião alguma, olhando em sua direção, movido pela curiosidade, e quanto a penetrar em seus espíritos ou calcular suas doses de lealdade, confessava a si próprio que a tarefa de desmascarar os pensamentos de cinquenta desses homens-robôs alemães, em três dias, era absolutamente impraticável. E lembrou-se, então, de que já não eram cinquenta. Apenas quarenta e nove. Um desses robôs estourara o tampo dos miolos. E o que transparecera dos pensamentos secretos de Bartseh, afinal? Desejo por uma mulher e um “Heil Hitler”. Estaria muito enganado, cogitava Bond, se julgasse que, esquecendo o “Explorador da Lua”, fossem esses também os pensamentos dominantes dentro de mais quarenta e nove cabeças?
— Dr. Walter! Estou dando uma ordem!
A voz de Drax, cheia de uma ira controlada, interrompeu os pensamentos de Bond, enquanto permanecia tocando com os dedos a aresta condutora de uma das barbatanas de columbite da cauda do foguete.
— Voltem ao trabalho! Já perdemos tempo demais!
Os homens se espalharam, pressurosos, cada um absorvido em sua tarefa, e Drax aproximou-se de Bond, deixando Walter vagando, indeciso, sob a enorme bocarra do exaustor de jato do foguete.
Drax mostrava uma fisionomia tempestuosa.
— Maluco do inferno — praguejou ele. — Está sempre descobrindo complicações.
Depois, como se quisesse esquecer seu adjunto, acrescentou bruscamente para Bond:
— Venha até meu escritório. Vou-lhe mostrar o plano de voo. Depois iremos dormir.
Bond seguiu-o. Drax girou uma pequena maçaneta embutida na parede de aço, e uma porta estreita se abriu, com um silvo abafado. A um metro mais para dentro, havia outra porta também de aço, e Bond notou que ambas eram cercadas de borracha, tornando o cilindro estanque à entrada de ar. Antes de fechar a porta externa, Drax parou na soleira e apontou, na parede circular, um bom número de maçanetas, quase invisíveis e semelhantes à que ele utilizara.
— São as portas das oficinas: geradores elétricos, controle de combustível, lavatórios, armazéns de materiais... — Apontou a porta seguinte. — Aqui é a sala de minha secretária. — Fechou a porta externa, antes de abrir a segunda e, entrando em seu escritório, fechou a porta interna atrás de Bond.
Era um recinto severo, pintado de cinza-claro, onde se via uma ampla escrivaninha e diversas cadeiras de metal tubular, forradas de lona azul-marinho. O chão era atapetado em cinza. Havia ainda dois fichários verdes e um grande aparelho de rádio, metálico. Uma porta semiaberta deixava entrever parte de um banheiro ladrilhado. A escrivaninha estava disposta de frente para uma larga parede lisa, que parecia ser construída de vidro opaco. Drax encaminhou-se para a parede e baixou dois interruptores, na extremidade direita. A parede inteira ficou iluminada como tela de cinema, e Bond se defrontou com dois mapas, cada um de seis pés quadrados, ambos desenhados no próprio vidro.
O mapa da esquerda mostrava toda a região oriental da Inglaterra, desde Portsmouth até Hull, bem como as águas adjacentes, nas latitudes entre 50 e 55 graus. Do ponto vermelho, próximo a Dover, que representava a base de lançamento do “Explorador da Lua”, partia uma série de círculos concêntricos, representando, com intervalos de dez milhas, o raio de ação do projétil. Num ponto distante 80 milhas da base, entre as ilhas Fríseas e Hull, via-se um losango vermelho, desenhado em pleno oceano.
Drax fez um gesto para as intrincadas tábuas matemáticas e as colunas de leitura de bússolas, que enchiam o lado direito do mapa.
— Velocidades de vento, pressão atmosférica, cálculos de computador para os giroscópios — foi explicando ele. — Tudo calculado na base da velocidade e raio de ação do foguete, como constantes matemáticas. Recebemos diariamente as previsões meteorológicas fornecidas pelo Ministério da Aeronáutica, bem como as leituras efetuadas na atmosfera superior, cada vez que um jato da RAF alcança essa altitude. Todos os relatórios nos são transmitidos. Quando um avião atinge a altitude máxima, solta balões de hélio que podem subir ainda mais e nos fornecem novas leituras. A camada atmosférica chega até cinquenta milhas de altitude, aproximadamente. Depois das primeiras vinte, não existe já qualquer densidade que possa afetar o progresso do foguete. Voará quase em vácuo. Atravessar as primeiras vinte milhas é que constitui o principal problema. A atração da gravidade, claro, é outra preocupação. Walter poderá explicar-lhe todas essas coisas, se você estiver interessado. Haverá informações contínuas sobre o tempo, durante as últimas horas até sexta-feira. E então ajustaremos os giroscópios, pouco antes do lançamento. Por enquanto, Miss Brand colige as informações recebidas todas as manhãs e organiza um mapa de movimentos giroscópicos, para o caso de ser necessário.
Drax apontou para o segundo dos dois mapas. Era um diagrama do voo elíptico do foguete, desde o ponto de lançamento até seu alvo. Havia ainda mais colunas de números e cifras.
— Aí temos o registro de velocidade da Terra e seus efeitos na trajetória do foguete — explicou Drax. — A Terra estará girando para Leste, em relação ao voo do foguete. Esses fatores têm de ser conjugados com o outro mapa, e é da leitura final que sairão as instruções de voo. É um negócio bem complicado. Felizmente você não precisa compreender. Deixe isso para Miss Brand. E agora — disse, apagando as luzes da parede que ficou novamente lisa — deseja fazer alguma pergunta a respeito de seu trabalho? Não creio que haja muita coisa para você fazer. Já viu que tudo foi feito com a máxima segurança. O Ministério insistiu para que assim fosse, desde o início.
— Tudo me parece em ordem — disse Bond.
Examinou a fisionomia de Drax, em seguida. O olho bom fitava-o intensamente. Bond fez uma pausa.
— Acha que havia alguma coisa entre sua secretária e o Major Tallon?
Era uma pergunta clara, e o melhor seria fazê-la agora.
— É possível, — respondeu Drax sem constrangimento. — Ela é moça atraente. Eram forçados a conviver, constantemente, na companhia um do outro. De qualquer maneira, parece que Bartsch ficou alucinado por ela.
— Ouvi dizer que Bartsch fez continência e gritou: “Heil Hitler” antes de virar a arma contra a boca — disse Bond.
— Foi o que me contaram — confirmou Drax, sem o mínimo interesse. — E daí?
— Por que motivo todos os homens usam bigode? — indagou Bond, ignorando a pergunta de Drax.
Novamente teve a impressão de que sua pergunta exasperara o outro homem.
Drax soltou uma de suas risadinhas curtas e ladradas.
— Foi uma ideia que eu tive. Eles são difíceis de reconhecer nesses macacões brancos e com as cabeças raspadas. Por isto mandei que todos deixassem crescer os bigodes. A coisa se tornou quase um fetiche. Como na RAF, durante a guerra. Vê alguma coisa de inconveniente nisso?
— Claro que não. A princípio é um tanto.. . surpreendente. Eu teria pensado que números grandes colocados nas roupas, com uma cor diferente para cada turma, teria sido mais eficiente.
— Pois bem — replicou Drax, voltando-se em direção à porta como para finalizar a conversação. — Decidi-me pelos bigodes.
CAPITULO 13
DECISÃO FINAL
Na quarta-feira de manhã, Bond despertou cedo, na cama do homem morto.
Dormira pouco. Drax não dissera nada a caminho de volta para casa e lhe desejara um rápido boa-noite no fim da escada. Bond seguira pelo corredor atapetado até o ponto onde brilhava uma luz, vinda de uma porta aberta, e encontrara suas coisas ordenadamente arranjadas num confortável quarto.
O aposento era mobiliado com o mesmo gosto de tipo dispendioso que encontrara no andar térreo. Havia biscoitos e uma garrafa de Vichy (não era uma garrafa de Vichy com água da bica, verificou Bond) ao lado da cama.
Não se notavam sinais do ocupante precedente, a não ser uma pasta de couro contendo binóculos, na mesinha de cabeceira, e um arquivo de metal, trancado. Bond conhecia tudo sobre arquivos. Virou-o contra a parede, colocou a mão embaixo e encontrou a ponta do fecho que se projeta para baixo, quando a série de escaninhos de cima foi trancada. Uma pressão feita para cima soltou as gavetas uma por uma, e ele baixou suavemente a borda do arquivo para o chão, refletindo maldosamente que o Major Tallon não teria sobrevivido durante muito tempo no Serviço Secreto.
A gaveta de cima continha mapas de escala da base e seus edifícios, além de um mapa do Almirantado n° 1895, representando o Estreito de Dover. Bond colocou cada uma das folhas sobre o leito e examinou-as minuciosamente. Havia restos de cinza de um cigarro nas dobras do mapa do Almirantado.
Bond foi buscar sua caixa de ferramentas — uma caixa quadrada de couro que estava ao lado da cômoda. Examinou os números nas rodas da fechadura de segredo e, satisfeito por não terem sido mexidas, virou-as para o número de código. A caixa estava repleta de instrumentos. Bond escolheu um vaporizador de pó para impressões digitais e uma lente grande. Espalhou o pó fino e acinzentado, centímetro por centímetro, sobre toda a extensão da carta geográfica. Apareceu uma floresta de impressões digitais.
Examinando-as com a lente, chegou à conclusão de que pertenciam a duas pessoas. Isolou os dois melhores grupos, tirou uma Leica com um flash de dentro da pasta de couro e fotografou-os. Em seguida, examinou cuidadosamente com a lente os dois minúsculos sulcos no papel que o pó fizera aparecer .
Estes davam a impressão de serem duas linhas traçadas da costa para formar uma rota cruzando o mar. Sua direção era muito estreita, e as duas linhas pareciam originar-se da casa onde se encontrava Bond. De fato, poderiam indicar observações de algum objeto no mar, feitas de cada ala da casa.
As duas linhas não haviam sido traçadas com lápis, mas, presumivelmente, para evitar serem descobertas, com um estilete que mal sulcara o papel.
No ponto onde se encontravam, havia a sombra de uma interrogação, na linha correspondente à décima-segunda braça, cerca de cinquenta jardas distante do penhasco, numa direção reta da casa para o navio-farol South Goodwin.
Não havia mais nada para ser descoberto no mapa. Bond olhou o relógio. Vinte para a uma. Ouviu passos distantes no hall e o estalido de uma lâmpada sendo apagada. Num impulso, ergueu-se e, de mansinho, apagou as luzes do quarto, deixando apenas a de leitura, velada por um abajur e colocada à mesinha de cabeceira.
Ouviu os pesados passos de Drax aproximando-se da escada. Houve o estalido de outro interruptor e depois silêncio. Bond imaginava aquela cara grande, cabeluda, voltada para o corredor, olhando, escutando. Depois percebeu o rangido de uma porta, sendo aberta devagar e fechada da mesma forma. Esperou, visualizando os movimentos do homem que se preparava para dormir. Ouviu ainda o som abafado de uma janela que se abria, o ruído de trombeta, distante, de um nariz sendo assoado. Depois silêncio.
Bond concedeu mais cinco minutos a Drax e depois foi até o arquivo, abrindo suavemente as outras gavetas. Não havia nada na segunda e na terceira, mas a última estava repleta de arquivos arrumados em ordem alfabética. Eram os dossiês dos homens que trabalhavam na base. Bond puxou a série “A”, voltou para a cama e começou a ler.
Em cada um a fórmula era a mesma: nome por inteiro, endereço, data do nascimento, descrição, sinais particulares, profissão ou ofício depois da guerra, registro de tempo de guerra, sobre atitudes políticas e simpatias atuais, registro criminal, de saúde e sobre os parentes próximos. Alguns desses homens tinham mulher e filhos, cujas particularidades eram anotadas e, acompanhando cada dossiê, havia fotografias: de frente e de perfil, além das impressões digitais de ambas as mãos.
Duas horas e dez cigarros depois, Bond examinara todos eles e descobrira dois pontos de interesse geral. Primeiro, que todos os cinquenta homens pareciam ter levado uma vida sem mácula, sem o menor vestígio de ódio político ou criminoso. Aquilo lhe pareceu tão pouco verossímil, que resolveu encaminhar todos eles novamente à Estação D. para serem submetidos a um reexame completo na primeira oportunidade.
O segundo ponto era que nenhuma das caras das fotografias tinha bigode. Apesar da explicação de Drax, esse fato suscitou um segundo pequeno ponto de interrogação no espírito de Bond.
Ergueu-se da cama e trancou novamente tudo, colocando o mapa do Almirantado em um dos arquivos de sua pasta de couro. Girou a fechadura de segredo e enfiou a pasta bem para debaixo da cama, de modo que a mesma ficasse diretamente sob seu travesseiro no ângulo interno da parede. Depois, sem fazer barulho, lavou-se, escovou os dentes no banheiro anexo e escancarou a janela.
A lua ainda brilhava: como devia ter brilhado, pensou Bond, quando, despertado por algum ruído fora do comum, Tallon subira ao telhado, talvez somente há poucas noites, e vira, no meio do mar, o que tinha visto. Devia trazer os binóculos consigo, e Bond, lembrando-se, saiu da janela e apanhou-os. Eram binóculos muito possantes, de fabricação alemã, pilhagem da guerra, talvez, e o 7 X 50 nas chapas superiores revelaram que se tratava de binóculos para a noite. Depois então, o cauteloso Tallon devia ter caminhado de leve (mas não o suficiente) para a outra extremidade do telhado e novamente erguido os binóculos, calculando a distância da borda do penhasco até o objeto no mar, e do objeto até o Goodwin, navio-farol. Em seguida, devia ter voltado pelo mesmo caminho e, sem fazer ruído, tornado a entrar no quarto.
Bond viu Tallon, talvez pela primeira vez desde que estava na casa, trancar a porta cautelosamente, dirigir-se até o arquivo, retirar dali o mapa, ao qual mal lançara um olhar até então, e marcar sobre o mesmo, de leve, as linhas de sua direção, às pressas. Talvez tivesse olhado para ele durante longo tempo, antes de apor a pequenina interrogação ao seu lado.
E que teria sido então o objeto desconhecido? Impossível dizer. Um navio? Uma luz? Um ruído?
Fosse o que fosse, Tallon não devia ter visto. E alguém o tinha ouvido. Alguém havia adivinhado que ele vira, e esperara que Tallon saísse do quarto na manhã seguinte. Aí então aquele alguém viera ao seu quarto e dera uma busca. A carta marítima, provavelmente, nada revelara, mas vira os binóculos para noite em cima da janela.
Fora o bastante. E naquela noite, Tallon morrera.
Bond se controlou. Ia depressa demais, compondo um caso, baseado no mais tênue dos indícios. Bartsch matara Tallon, e Bartsch não fora o homem que ouvira o barulho, o homem que deixara as impressões digitais no mapa, o homem cujo dossiê Bond separara e guardara em sua pasta de couro.
O homem tinha sido o untuoso Krebs, a criatura do pescoço de minhoca. As impressões digitais eram suas. Durante um quarto de hora, Bond comparara as impressões do mapa com as impressas no dossiê de Krebs. Mas quem disse que Krebs ouvira um barulho, ou fizera qualquer coisa por causa disso? Bem, para começar, ele parecia mesmo um tipo intrometido. Tinha os olhos de um ladrão sem importância. Aquelas impressões no mapa haviam sido, positivamente, feitas depois que Tallon o estudara. Os dedos de Krebs cobriram os de Tallon em diversos pontos.
Entretanto, como poderia Krebs estar envolvido nessa história, com os olhos de Drax constantemente em cima dele? O assistente confidencial. Mas que dizer de Cícero, o empregado particular de toda confiança do Embaixador Britânico em Ankara, durante a guerra? A mão no bolso das calças pendendo por cima das costas da cadeira. As chaves do Embaixador. O cofre. Os segredos. O quadro era muito semelhante.
Bond sentiu um arrepio. Compreendeu então, de repente, que estivera de pé durante muito tempo em frente às janelas abertas e que já era tempo de dormir um pouco.
Antes de se deitar, pegou o coldre de ombro da cadeira, onde estava no meio das roupas despidas, e retirou a Beretta, colocando-a debaixo do travesseiro. Como defesa contra quem? Bond não sabia, mas sua intuição lhe dizia muito claramente que pairava o perigo no ar. O cheiro era insistente, apesar de ainda impreciso, e restringia-se apenas ao limiar de seu subconsciente. Na realidade, ele sabia que suas impressões se baseavam num determinado número de interrogações que se haviam materializado durante as últimas vinte e quatro horas: o enigma de Drax; o “Heil Hitler” de Bartsch; os estranhos bigodes; os cinquenta alemães de conduta impecável; a carta marítima; os binóculos de noite; Krebs.
Primeiro precisava comunicar suas suspeitas a Vallance. Depois explorar as possibilidades de Krebs. Em seguida, olhar as defesas do “Explorador da Lua” — o lado do mar, por exemplo. Finalmente, entrar em contato com essa pequena Brand e concordarem na elaboração de um plano para os próximos dois dias. Não havia muito tempo a perder.
Enquanto forçava o sono no cérebro transbordante de pensamentos, Bond imaginou o número sete no mostrador de um relógio e deixou a tarefa de acordar entregue às células ocultas de sua memória. Desejava estar fora de casa e no telefone com Vallance, o mais cedo possível. Se suas ações levantassem suspeitas, não ficaria desanimado. Um de seus objetivos era atrair para sua órbita as mesmas forças que envolveram Tallon, porque de uma coisa ele tinha quase certeza, o Major não morrera por amar Gala Brand.
O despertador extra-sensorial não falhou. Pontualmente, às sete horas, com a boca seca por causa dos muitos cigarros da noite anterior, esforçou-se por sair da cama e entrar num banho frio. Barbeara-se, gargarejara com um dentifrício forte e, agora, vestido num terno batido branco e preto, uma camisa azul-marinho de algodão, tipo Mares do Sul, gravata de tricô preto, caminhava levemente, mas não de modo furtivo, pelo corredor até as escadas, com a pasta de couro quadrada na mão esquerda.
Encontrou a garage no fundo da casa, e o motor do Bentley correspondeu à primeira pressão do arranque. Bond seguiu lentamente pela faixa de concreto sob o olhar indiferente das janelas encortinadas da casa e seguiu em frente, em prise, pelo caminho margeado de árvores. Seus olhos voltaram-se para a casa e confirmaram seu cálculo de que um homem de pé no telhado seria capaz de enxergar por cima do muro e ter uma visão da beira do penhasco e do mar mais adiante.
Não havia sinal de vida em torno do local onde se encontrava o “Explorador da Lua”. O concreto, já começando a brilhar ao primeiro sol da manhã, estirava-se vazio na direção de Deal. Tinha-se a impressão de um aeródromo recém-construído ou talvez, pensou, com suas três “coisas” diferentes de concreto, a cúpula de uma colmeia, a parede lisa de ferro e o cubo distante do ponto de disparo, cada qual lançando poços negros de sombra em sua direção, ali no sol matutino, como uma paisagem deserta de Dali, na qual três objets trouvés repousavam num acaso cuidadosamente calculado.
Lá fora, no mar, dentro do nevoeiro da manhã que prometia um dia quente, o navio-farol South Goodwin mal se delineava, difusa embarcação vermelha, casada para sempre com o mesmo ponto, e condenada, como um navio de cenário no palco de Drury Lane, a assistir ao diorama das ondas e nuvens navegarem atarefadamente para os bastidores, enquanto que ele, sem papéis, passageiros ou carga, continuava ancorado para sempre no ponto de partida que era também seu porto de destino.
Com intervalos de trinta segundos, buzinava sua triste queixa dentro do nevoeiro, uma prolongada nota dupla de trumpete, em cadência descendente. Um canto de sereia, pensou Bond, para repelir em vez de seduzir. Perguntava a si mesmo como os sete homens da tripulação suportariam agora o ruído, enquanto mastigavam carne de porco com feijão. Encolher-se-iam, quando marcava contracanto com a Housewife’s Choice, vindo a todo volume do rádio na hora do rancho? Mas era uma vida segura, foi a conclusão a que chegou Bond, apesar de ancorado nos portões de um cemitério.
Anotou mentalmente, para descobrir se esses sete homens tinham visto ou ouvido a coisa que Tallon marcara no mapa, em seguida saiu rápido por entre os postos de guarda.
Em Dover, parou diante do Café Royal, modesto restaurantezinho, com uma cozinha modesta porém capaz, como ele sabia há muito tempo, de preparar excelentes pratos de peixe e de ovos.
A dona, suíça-italiana, com o filho que a ajudava a dirigir a casa, recebeu-o como velho amigo, e ele pediu um prato de ovos mexidos com presunto e bastante café, recomendando que estivessem prontos em meia hora. Depois seguiu até o posto policial e fez uma chamada para Vallance, por meio da mesa de ligações da Scotland Yard. Vallance estava em casa, tomando o café da manhã. Ouviu sem comentários a conversa reservada de Bond, mas não expressou surpresa, quando este disse que não tinha tido oportunidade de falar mais intimamente com Gala Brand.
— Essa aí é uma garota inteligente. Se o Sr. K. anda tramando alguma coisa, com certeza ela tem uma ideia do que seja. E se T. ouviu um barulho no sábado à noite, ela pode ter ouvido também. Se bem que eu deva confessar que não se referiu a esse assunto.
Bond não disse nada sobre a recepção que tinha tido por parte do agente de Vallance.
— Vou falar com ela esta manhã e mandar-lhe-ei o mapa com o filme da Leica para que o senhor os examine. Vou dá-los ao Inspetor. Talvez um dos patrulheiros da estrada possa levar. É verdade, de onde T. telefonou quando chamou seu chefe na segunda-feira?
— Vou mandar verificar e depois lhe direi — disse Vallance. Mandarei também a Trinity House perguntar se a South Goodwin e os guardas-costeiros podem ajudar. Mais alguma coisa?
Bond respondeu:
— Não.
A linha passava por muitas mesas de ligação. Talvez, se tivesse sido M., ele tivesse insinuado mais alguma coisa. Pareceu-lhe ridículo falar com Vallance a respeito de bigodes e a atmosfera de perigo que ele sentira na noite anterior, e que a luz do dia dissipara. Aqueles policiais só queriam os fatos nus e crus. Eram melhores, refletiu, na solução de um crime, do que antecipá-los.
— Não, é só.
Desligou.
Sentiu-se mais alegre depois de uma excelente primeira refeição. Leu o Express e The Times e encontrou uma notícia sucinta sobre o inquérito do caso Tallon. O Express fizera muito escarcéu e muita exibição da fotografia da moça. Bond divertiu-se, ao verificar a neutra semelhança que Vallance conseguira apresentar. Decidiu que precisava tentar trabalhar com ela. Demonstraria toda confiança e lhe contaria tudo, fosse ela receptiva ou não. Talvez ela também tivesse suas suspeitas e intuições, porém tão vagas que as estava guardando consigo mesma.
Bond voltou rapidamente para a casa. Eram nove horas em ponto, e quando passou por entre as árvores na faixa de concreto, ouviu-se o lamento de uma sereia e, dos bosques por trás da casa, uma dupla fila de doze homens apareceu correndo num ritmo propositadamente igual, em direção à cúpula do foguete. Marcavam o tempo enquanto um deles tocava a campainha. A porta então se abriu, e eles entraram em fila, desaparecendo .
Raspe-se a superfície de um tedesco e encontrar-se-á a precisão — pensou Bond.
CAPITULO 14
DEDOS FORMIGANTES
Meia hora antes, Gala Brand esmagara a ponta do seu cigarro matutino, engolira o resto do café, saíra do quarto e se encaminhara para a base, com o aspecto perfeito de uma secretária particular. Trajava uma blusa branca imaculada e uma saia azul-marinho pregueada.
Pontualmente, às oito e meia, estava em seu escritório. Havia um monte de telimpressos do Ministério da Aeronáutica em cima da mesa, e sua primeira ação foi transferir um resumo de seus conteúdos para um mapa meteorológico, entrar pela porta de comunicação no escritório de Drax, e pregar o mapa num quadro pendente no ângulo da parede ao lado do vidro liso. Em seguida, apertou o interruptor que iluminava o mapa de parede, fez alguns cálculos, baseada nas colunas de números reveladas pela luz, e anotou o resultado no diagrama que prendera ao quadro.
Fizera isto com os dados do Ministério da Aeronáutica, que se tornavam cada vez mais exatos, à medida que a data do lançamento experimental se aproximava, todos os dias, desde que a base terminara, e a construção do foguete se iniciara dentro dela. Tornara-se tão perita, que agora sabia de cor as direções do giroscópio para quase todas as variações de temperatura em diferentes altitudes.
De modo que ainda ficava mais irritada quando Drax não demonstrava aceitar seus cálculos. Todos os dias quando, às nove horas, pontualmente, as campainhas de aviso soavam, e ele descia a íngreme escadaria de ferro para entrar em seu escritório, seu primeiro gesto era chamar o insuportável Dr. Walter, para que, juntos, estudassem novamente todas as suas anotações, transcrevendo os resultados no fino caderninho de notas que Drax trazia no bolso traseiro das calças. Sabia que aquilo era uma rotina invariável e se cansara de observá-la através de um orifício disfarçado que fizera, de forma a poder enviar a Vallance um relatório semanal dos visitantes de Drax. O orifício ficava na parede fina que separava os dois escritórios. O método era amadorista, porém eficiente, e ela lentamente formara um quadro completo da rotina diária, que acabara por achar demasiado irritante. Era irritante por duas razões. Significava que Drax não confiava em seus algarismos e solapava sua oportunidade de tomar parte, da maneira mais modesta que fosse, no lançamento final do foguete.
Era natural que, no decorrer dos meses, tivesse ficado tão integrada em seu disfarce quanto em sua verdadeira profissão. Era uma coisa fundamental para a exatidão absoluta dêsse disfarce que sua personalidade ficasse tão verdadeiramente oculta quanto possível. E agora, enquanto espionava, apalpava e farejava o vento em torno de Drax, para relatar ao seu Chefe em Londres, sentia-se profundamente interessada pelo sucesso do “Explorador da Lua” e tornara-se tão dedicada ao seu serviço quanto qualquer outro membro da base.
O resto de seus Ideveres como secretária particular de Drax era intoleràvelmente monótono. Todos os dias chegava um enorme volume de correspondência dirigida a Drax em Londres e enviada para lá pelo Ministério. Naquela manhã, encontrara o monte habitual de mais ou menos cinquenta cartas aguardando em cima da escrivaninha. Eram sempre de três tipos. Cartas de pedidos, de pessoas maníacas pelo foguete, cartas comerciais do corretor de Drax e de outros agentes comerciais. Para estas Drax ditava respostas breves, e o resto do dia ela se ocupava em datilografar e arquivar.
De sorte que era natural o fato de sua única obrigação relacionada com a operação do foguete destacar-se extraordinàriamente entre os monótonos deveres. Naquela manhã, ao conferir e reconferir seu plano de voo, estava mais que decidida a fazer aceitarem seus cálculos para O Dia. Entretanto, como muitas vezes lembrava a si mesma, talvez não houvesse razão para que não os aceitassem. Talvez os cálculos diários de Drax e Walter para anotação no caderninho preto não passassem de nova verificação de seus próprios números. Era bem verdade que Drax nunca tinha pedido seu boletim meteorológico ou as direções do giroscópio por onde os calculava. E quando um dia ela perguntara diretamente se seus cálculos sobre o tempo estavam corretos, ele respondera com evidente sinceridade:
— Excelentes, minha cara. Muito valiosos. Não poderíamos arranjar-nos sem eles.
Gala Brand voltou para sua sala e começou a abrir as cartas. Só mais dois planos de voo para quinta-feira e sexta, e então, baseados em seus cálculos ou noutros, nos guardados dentro do bolso de Drax, o giroscópio seria finalmente ajustado, e seria apertado no ponto de disparo.
Distraidamente, Gala olhou para as unhas e depois estendeu as duas mãos, com as costas voltadas em sua direção. Quantas vezes, durante seu adestramento na Escola da Polícia, fora mandada para fora com outras alunas e recomendada a não voltar sem um caderno de notas, um estojo de maquilagem, uma caneta-tinteiro ou mesmo um relógio de pulso? Quantas vezes, durante os cursos, o instrutor não se voltara, segurando-a pelo pulso e dizendo: “Vamos, vamos, senhorita. Isto assim não vai de jeito nenhum. Dá até a impressão de um elefante procurando açúcar no bolso do tratador. Tente novamente.”
Friamente, flexionou os dedos e depois, tomando uma resolução, voltou à pilha de cartas.
Quando faltavam poucos minutos para as nove, as campainhas de alarma soaram, e ela ouviu Drax chegar ao escritório. Pouco depois ouviu-o abrir as portas duplas novamente e chamar Walter. Em seguida, veio o habitual murmúrio de vozes cujas palavras eram abafadas pelo leve chiar do ventilador.
Gala arrumou as cartas em três pilhas e sentou-se inclinada para a frente, os nervos relaxados, os cotovelos descansando na escrivaninha e o queixo repousando na mão esquerda.
Comandante Bond. James Bond. Evidentemente, um jovem convencido, como tantos outros do Serviço Secreto. E porque tinha sido enviado em vez de alguém com quem pudesse trabalhar, um de seus amigos da Seção Especial ou mesmo uma pessoa do M15? A mensagem do Comissário-Assistente dizia que não havia mais ninguém disponível assim de repente, que ele era um dos astros do Serviço Secreto, que desfrutava da mais absoluta confiança da Seção Especial e tinha as bênçãos do M15. Até mesmo o Primeiro-Ministro lhe dera permissão para agir somente nesta missão dentro da Inglaterra. Mas de que poderia adiantar, em face do pouco tempo que restava? Ele, provavelmente, atirava bem e falava idiomas estrangeiros, além de executar uma série de truques que poderiam ser úteis no exterior. Entretanto, que poderia fazer de bom aqui, sem lindas espiãs para namorar. Porque bonitão ele era, incontestàvelmente. (Gala Brand procurou automaticamente o estojo de maquilagem e bateu a esponjinha de pó de arroz no nariz.) Bem no gênero de Hoagy Carmichael, sob certo aspecto. Aquele cabelo preto caindo em cima da sobrancelha direita. Mais ou menos o mesmo tipo ósseo. Mas havia um quê de crueldade na boca, e os olhos eram frios. Cinzentos ou azuis? Tinha sido difícil verificar a noite passada. Bem, de qualquer maneira, ela o pusera em seu lugar e lhe mostrara que não estava impressionada por rapazes atraentes do Serviço Secreto, por mais românticos que parecessem. Havia homens igualmente belos na Seção Especial, e estes eram detetives de verdade, não apenas pessoas que Phillips Oppenheim idealizara, donos de carros velozes com bandas douradas e coldres de ombro. Ah, isto ela descobrira com certeza, e até esbarrara nele para ter certeza.
Pois bem, supunha que devia demonstrar, de uma forma ou de outra, que trabalhava com ele, apesar de só Deus saber em quê. Se ela estivera ali desde quando o local fora construído sem descobrir coisa alguma, o que poderia esse homem, Bond, esperar descobrir em dois dias? E o que havia para ser descoberto? Naturalmente, existiam uma ou duas coisas que ela não conseguia compreender. Deveria falar-lhe em Krebs, por exemplo? A primeira coisa a fazer era providenciar para que ele não lhe estragasse o trabalho, fazendo qualquer tolice. Teria de ser fria, firme e extremamente cautelosa. Mas isto não queria dizer, chegou à conclusão no momento em que a cigarra tocava e ela apanhava as cartas e o caderno de taquigrafia, que não pudesse ser amistosa em suas relações. Estritamente dentro de suas próprias condições, é claro.
Havendo tomado esta segunda decisão, abriu a porta de comunicação e entrou no escritório de Sir Hugo Drax.
Ao voltar para sua sala, meia hora depois, encontrou Bond sentado em sua cadeira com o Almanaque Whitaker aberto na escrivaninha diante dele. Apertou os lábios, quando Bond se levantou e desejou-lhe um feliz bom dia. Gala baixou a cabeça rapidamente, rodeou a escrivaninha e sentou-se. Afastou cuidadosamente o Whitaker e colocou as cartas e o caderno em seu lugar.
— Devia ter mais uma cadeira para as visitas — disse Bond com um sorriso que ela definiu como impertinente. — E alguma coisa melhor para se ler do que livros de referências.
A moça ignorou as observações.
— Sir Hugo deseja vê-lo. Eu ia agora mesmo ver se já havia se levantado.
— Mentirosa. Você me ouviu passar às sete e meia. Eu a vi espiando entre as cortinas.
— Não fiz semelhante coisa — retrucou Miss Brand indignada. — Por que haveria de estar interessada num carro que passava?
— Eu disse que você ouviu o carro — disse Bond. Insistiu em sua vantagem. — E, por falar nisso, acho que não deve coçar a cabeça com o lápis quando está tomando ditado. Nenhuma das melhores secretárias particulares faz tal coisa.
Bond olhou de modo significativo para um ponto da porta de comunicação. Depois sacudiu os ombros.
As defesas de Gala caíram. Diabo de homem, pensou. Endereçou-lhe um sorriso relutante.
— Ora. Vamos parar com isto. Eu não posso passar a manhã inteira brincando de adivinhação. Ele quer nos ver e não gosta de esperar.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação, abrindo-a. Bond seguiu-a, fechando depois a porta.
Drax estava de pé, olhando o mapa de parede iluminado. Voltou-se, quando os dois entraram.
— Ah, você está aqui — disse com um olhar firme para Bond. — Pensei que talvez nos tivesse deixado. Os guardas anotaram sua saída às sete e meia da manhã de hoje.
— Precisei dar um telefonema — explicou Bond. — Espero não ter incomodado ninguém.
— Existe um telefone em meu estúdio — ajuntou Drax, conciso. — Tallon achava que servia muito bem.
— Ah, pobre Tallon — disse Bond sem nenhuma inflexão particular.
Notara um quê de autoritário na voz de Drax que o desagradara bastante, e isto fizera com que desejasse instintivamente desarmá-lo. Nessa vez foi bem sucedido.
Drax lançou-lhe um olhar duro, que disfarçou com um risinho curto, latido e um sacudir de ombros.
— Faça como melhor lhe agradar. Você tem seu trabalho para fazer. Contanto que não perturbe as rotinas daqui. Deve-se lembrar — acrescentou mais amável — de que todos os meus homens estão nervosos ao extremo agora, e eu não posso inquietá-los com misteriosas movimentações. Espero que não deseje fazer-lhes muitas perguntas hoje. Eu preferia que não tivessem mais nada com que se preocupar. Ainda não se recuperaram do que aconteceu segunda-feira. Miss Brand poderá informá-lo a respeito de tudo que diz respeito a eles, e creio que todos os dados arquivados acham-se no quarto de Tallon. Já os examinou?
O arquivo não tem chave — respondeu Bond, dizendo a verdade.
— Desculpe, a culpa é minha — disse Drax. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta da qual tirou um pequeno molho de chaves, e entregou-o a Bond.
— Devia ter-lhe entregado isto a noite passada. O Inspetor que tratou do caso pediu-me lhe entregasse. Desculpe.
— Muito obrigado — disse Bond por sua vez. Depois fez uma pausa.
— Diga-me uma coisa, há quanto tempo Krebs trabalha com o senhor?
Fez a pergunta obedecendo a um impulso. Houve um momento de silêncio na sala.
—Krebs? — repetiu Drax, pensativo.
Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se. Estendeu a mão para o bolso da calça e puxou um maço de cigarros de ponta de cortiça. Seus dedos grosseiros lutaram com o envólucro de celofane. Tirou um cigarro e meteu-o na boca, sob a franja do bigode avermelhado, acendendo-o depois.
Bond mostrou-se surpreso.
— Eu não sabia que se podia fumar aqui — observou, tirando sua própria carteira do bolso.
O cigarro de Drax, minúsculo tubo branco no meio da caraça vermelha, subia e descia enquanto ele respondia sem tirá-lo da boca.
— Aqui não há perigo. Estas salas são à prova de ar. As portas são forradas com borracha. A ventilação é separada . Precisei colocar as oficinas e geradores apartados da cúpula e, de qualquer maneira — seu lábios sorriram em torno do cigarro — preciso dar um jeito para fumar.
Drax tirou o cigarro da boca e olhou-o. Parecia estar tomando uma resolução.
— Você estava me interrogando a respeito de Krebs. Pois bem, cá entre nós, não confio inteiramente nesse camarada — declarou fitando Bond com uma expressão significativa.
Levantou a mão num gesto de quem se desculpa.
— Nada de definido, naturalmente, ou eu já o teria mandado embora, mas encontrei-o espionando pela casa, e uma vez apanhei-o em meu estúdio, remexendo meus papéis particulares . Ele apresentou uma explicação perfeita e deixei-o sair, prevenindo-o. Contudo, para ser franco, tenho minhas suspeitas a respeito do homem. Evidentemente, ele não pode fazer mal algum. Faz parte do pessoal da casa, e nenhum deles tem licença de entrar aqui, mas — Drax fitou Bond francamente, dentro dos olhos — eu devia ter-lhe dito que se concentrasse nele. Foi muita vivacidade sua, haver observado qualquer coisa no homem, tão depressa — acrescentou com respeito. — Que foi que o levou a isto?
— Nada de extraordinário. Ele tem um aspecto inquieto. Mas o que o senhor diz é interessante, e eu não deixarei de estar de olho nele.
Voltou-se para Gala Brand, que permanecera em silêncio desde o momento em que entraram na sala.
— Qual sua opinião a respeito de Krebs, Miss Brand? — perguntou, polidamente.
A moça respondeu, dirigindo-se a Drax.
— Não entendo muito dessas coisas, Sir Hugo, — disse com modéstia e um quê de impulsivo que Bond admirou.
— Porém não confio nele de jeito nenhum. Não tinha intenção de lhe contar, mas ele andou rondando meu quarto, entrou lá, abriu cartas etc. Tenho certeza disso.
Drax mostrou-se chocado.
— Foi mesmo?
Pôs o cigarro no cinzeiro e extinguiu os fragmentos acesos, um por um.
— Deixe-o comigo — falou sem levantar os olhos.
CAPÍTULO 15
JUSTIÇA RUDE
Houve um momento de silêncio na sala durante o qual Bond refletiu como era estranho que as suspeitas recaíssem tão de repente e unanimemente sobre o mesmo homem. Isto, por acaso, libertaria automaticamente os outros? Krebs não poderia ser membro de uma quadrilha? Ou trabalharia por conta própria e, nesse caso, com que objetivo? E que relação haveria entre suas espionagens e as mortes de Tallon e Bartsch?
Drax quebrou o silêncio.
— Bem, parece que chegamos a um ponto de acordo — disse, olhando Bond, à procura de confirmação. Este baixou a cabeça, num gesto cauteloso.
— Tenho mesmo de deixá-lo por sua conta. De qualquer forma, providenciaremos para que se conserve bem afastado da base. Aliás, vou levá-lo comigo amanhã para Londres. Pormenores de última hora deverão ser combinado com o Ministério, e Walter não pode sair daqui. Krebs é o único homem capaz de executar o serviço de um ajudante-de-ordens. Isto o conservará fora de qualquer complicação. Até lá temos todos de mantê-lo sob vigilância. A não ser, naturalmente, que você queira prendê-lo já, trancando-o à chave e cadeado. Eu preferia que não. Não desejo perturbar mais a equipe.
— Não será necessário — disse Bond. — Ele conta com alguns amigos particulares entre os outros homens?
— Nunca o vi falando com nenhum, exceto Walter e o pessoal de casa — disse Drax. — Calculo que se considera superior aos outros. Pessoalmente, não acredito que exista muita maldade nesse camarada, do contrário não o teria conservado. Ele fica sozinho em casa o dia inteiro, e com certeza é um desses sujeitos que gostam de bancar o detetive e meter o nariz nos negócios dos outros. Que diz você? Talvez pudéssemos deixar as coisas neste pé?
Bond fez que sim, guardando seus pensamentos para si mesmo.
— Pois então — continuou Drax, feliz por deixar de lado um assunto desagradável e voltar para os negócios. — Temos outras coisas para conversar. Ainda nos restam dois dias, e é melhor falar-lhe sobre o programa.
Ergueu-se da cadeira e mediu pesadamente a sala em largas passadas, por trás da escrivaninha:
— Hoje é quarta-feira. À uma hora a base será fechada para receber combustível. Isto será supervisionado pelo Dr. Walter, por mim e mais dois homens do Ministério. Para a eventualidade de qualquer coisa sair errada, uma câmara de televisão registrará tudo que fizermos. E então, se houver uma explosão, nossos sucessores saberão como agir melhor na próxima vez — finalizou com um curto riso ladrado. — Se o tempo permitir, o telhado será aberto hoje à noite para deixar a fumaça sair. Meus homens montarão guarda em vigias de dez jardas de intervalo, até a distância de cem jardas a partir da base. Haverá três homens armados na praia, do lado oposto ao túnel exaustor no penhasco. Amanhã de manhã a base será novamente aberta até o meio-dia para uma verificação final e, a partir desse instante, exceto a disposição do giroscópio, o “Explorador da Lua” estará pronto para partir. Os guardas ficarão permanentemente vigiando toda a base. Na sexta-feira pela manhã eu examinarei pessoalmente o ajustamento do giroscópio. Os homens do Ministério tomarão conta do ponto de disparo, e a RAF do radar. A BBC enviará seus caminhões, que ficarão atrás do ponto de disparo, e as irradiações começarão às onze e quarenta e cinco.
Ao meio-dia em ponto apertarei o pistão, um sinal de rádio passará por um circuito elétrico e — Drax sorriu abertamente — nós veremos o que vamos ver.
Fez uma pausa, mexendo no queixo:
— Vejamos agora o que mais? Ah, sim. A navegação será banida da área orbital desde a meia-noite de quinta-feira. A Marinha providenciará uma patrulha nos limites da área durante toda a manhã. Haverá um comentarista da BBC num dos navios. O Ministério do Abastecimento mandará técnicos que ficarão num navio de salvamento com um aparelho de televisão para a profundidade do mar, e depois que o foguete aterrissar, tentarão recuperar os restos. Talvez você se interesse em saber — continuou, esfregando as mãos numa alegria quase infantil, — que um mensageiro do Primeiro-Ministro trouxe a notícia muito alvissareira de que não só estará reunido o Gabinete para ouvir a irradiação, mas o Palácio também escutará o lançamento.
— Ótimo — disse Bond, satisfeito pelo outro.
— Obrigado. Agora quero ter absoluta certeza de que você está satisfeito com as medidas de segurança que tomei na própria base. Não creio que seja necessário nos preocuparmos com o que se passar do lado de fora. A RAF e a polícia parecem estar executando um serviço muito completo.
— Tudo parece ter sido providenciado — disse Bond.
— Não creio que me reste muita coisa para fazer no tempo que ainda falta.
— Nada que eu me lembre — concordou Drax. — Exceto nosso amigo Krebs. Esta tarde ele permanecerá na camioneta da televisão tomando notas, de modo que estará fora de qualquer trapalhada. Por que você não vai dar uma olhada na praia, na base do penhasco, enquanto ele está fora de ação? este é o único ponto fraco que eu posso lembrar. Muitas vezes pensei que se alguém quisesse penetrar na base, tentaria passar pela cavidade exaustora. Leve Miss Brand. Quatro olhos, etc, e ela não poderá mesmo usar seu escritório até amanhã de manhã.
— Está bem — concordou Bond.
— Eu gostaria de dar uma olhada no lado do mar, depois do almoço, e se Miss Brand não tiver nada de melhor para fazer...
Voltou-se para ela com as sobrancelhas erguidas. Gala Brand baixou os olhos.
— Claro, se Sir Hugo desejar — disse sem entusiasmo.
Drax esfregou as mãos.
— Então está combinado. E agora preciso voltar a trabalhar. Miss Brand, quer fazer o favor de pedir ao Dr. Walter que venha aqui, se estiver livre? Nós nos veremos na hora do almoço — disse a Bond, despedindo-o.
Este fez com a cabeça que sim.
— Acho que vou caminhar até a cúpula e dar uma olhadela no ponto de disparo — falou sem saber direito porque mentia. Virou-se e seguiu Gala Brand através das portas duplas e depois até a base do cilindro.
Enorme serpente negra de fios de borracha se retorcia sobre o brilhante chão de aço, e Bond observou a moça escolher o caminho por entre suas voltas até onde se encontrava Walter, sozinho. Olhava a boca do tubo do combustível ser levantada para onde um guindaste, esticado até a soleira de uma porta de acesso, na metade do foguete, indicava os principais tanques de combustível.
A moça disse qualquer coisa a Walter e depois ficou olhando para cima, enquanto o tubo ia sendo delicadamente manipulado para o interior do foguete.
Bond achou que ela parecia muito inocente, ali de pé, com os cabelos castanhos soltos e a curva da garganta cor de marfim imergindo na blusa branca e simples. Com as mãos cruzadas nas costas, contemplando embevecida os faiscantes cinquenta pés do “Explorador da Lua”, poderia ser tomada por uma colegial mirando uma árvore de Natal — exceto pelo impudente orgulho dos seios atrevidos, levantados pela cabeça e os ombros jogados para trás.
Bond sorriu consigo mesmo ao chegar ao pé da escada de ferro e começar a subir. Aquela moça inocente, desejável, lembrou a si próprio, é uma policial extremamente competente. Sabe como desferir pontapés e onde; pode quebrar meu braço, provavelmente mais depressa e com mais facilidade do que eu poderia quebrar o dela, e pelo menos metade de seu ser pertence à Seção Especial da Scotland Yard. Naturalmente, refletiu, baixando os olhos a tempo de vê-la seguir o Dr. Walter até o escritório de Drax, existe sempre a outra metade.
Lá fora, o brilhante sol de maio parecia particularmente dourado depois do branco azulado dos arcos, e Bond sentia-o quente nas costas ao caminhar deliberadamente pelo concreto em direção à casa. O apito de nevoeiro do Goodwin estava silencioso, e a manhã tão calma que ele podia ouvir as batidas rítmicas dos motores de um navio, quando este passava por Inner Leads, entre o Goodwin e a praia, a caminho do Norte.
Aproximou-se da casa, protegido pelo largo muro contra o vento, e então, rapidamente, atravessou as poucas jardas até a porta da frente, sem produzir o menor ruído com os sapatos de crepe-sola. Abriu a porta, deixou-a escancarada e caminhou de leve para o háll onde se pôs à escuta. Ouviu o rumor das manhãs de verão; uma abelha batendo de encontro à vidraça de uma das janelas e um bulício confuso e distante nas barracas atrás da casa. Fora isto, o silêncio era profundo, cálido e tranquilizante .
Bond caminhou cautelosamente através do hall e pelas escadas acima, assentando os pés inteiros no chão e usando as extremidades dos degraus onde havia menos probabilidade de a madeira estalar. Não se ouvia barulho no corredor, mas Bond viu que sua porta, lá no fim do mesmo, estava aberta. Retirou o revólver da axila e foi seguindo depressa pela passagem atapetada.
Krebs estava de costas para ele. Achava-se ajoelhado no meio do quarto com os cotovelos no chão. Suas mãos se encontravam nas rodas do fecho de segredo da pasta de couro de Bond. Toda sua atenção focalizava-se no estalido das linguetas do fecho.
O alvo era tentador, e Bond não hesitou. Seus dentes apareceram num sorriso cruel, deu dois passos rápidos para dentro do quarto e mandou o pé com violência.
Toda sua força se concentrava na ponta do sapato, e seu equilíbrio e tempo foram perfeitos.
Um grito de gralha partiu de Krebs quando, como a caricatura de um sapo pulando, saltou por cima da pasta de Bond mais ou menos um metro adiante, batendo na frente da cômoda de mogno. Sua cabeça foi de encontro ao centro com tanta fôrçia, que a pesada peça dançou na base. O grito foi abruptamente interrompido, e ele tombou esticado e inerte sobre o tapete, ali permanecendo.
Bond ficou olhando e esperando ouvir o som de passos apressados, mas o silêncio continuou a reinar dentro da casa. Passou por cima do corpo, curvou-se sobre ele e ajeitou-o de costas. O rosto em torno do borrão do bigode amarelo estava pálido e um pouco de sangue escorria de um corte no alto da fronte. Os olhos continuavam fechados, e a respiração normal.
Bond ajoelhou-se num lado só e começou a dar uma busca minuciosa em todos os bolsos do terno alinhado, cinzento, de listas fininhas, que o homem trajava, colocando desapontado o magro conteúdo no tapete ao lado do corpo. Não havia caderninhos de nota nem papéis. Os únicos objetos de interesse eram um molho de chaves-mestras, uma faca de mola com uma lâmina de estilete bem amolada e uma espécie de cassetete de couro preto em forma de trouxa. Bond guardou essas coisas no bolso, foi até a mesinha de cabeceira e pegou a garrafa intacta de água de Vichy.
Foram necessários cinco minutos para fazer Krebs voltar a si e fazê-lo sentar-se com as costas apoiadas na cômoda. Mais cinco para que recuperasse a voz. Pouco a pouco a cor foi voltando-lhe ao rosto e a astúcia aos olhos.
— Não respondo perguntas a não ser a Sir Hugo — declarou quando Bond começou o interrogatório. — Você não tem o direito de me fazer perguntas. Eu cumpria meu dever.
Sua voz era mal-humorada e segura de si.
Bond segurou a garrafa vazia de Vichy pelo gargalo.
— Refuta novamente. Do contrário, eu lhe bato com isto até quebrar, e depois usarei o gargalo para alguma cirurgia plástica. Quem lhe mandou revistar meu quarto?
— Leck mich am Arsch — Krebs cuspiu o insulto obsceno na cara de Bond.
Este curvou-se e vibrou-lhe violenta pancada nas canelas.
O corpo de Krebs dobrou-se mas, quando Bond tornou a levantar o braço, ergueu-se subitamente do chão e mergulhou por baixo da garrafa que descia. O golpe pegou-o rijo no ombro, porém não lhe cortou o ímpeto, e ele se encontrou do outro lado da porta, já no meio do corredor, antes de Bond partir em sua perseguição.
Bond parou então do lado de fora da porta e observou a figura ligeira desaparecer pelas escadas, fora de suas vistas. Em seguida, o rinchar das solas de borracha descendo às pressas as escadas se fez ouvir até atravessar o hall. Bond riu abruptamente para si mesmo, voltou para o quarto e fechou a porta. Além de quase arrebentar a cabeça do sujeito, tudo indicava que não arrancaria nada dele. Animal astucioso. Seus ferimentos não poderiam ter sido assim tão maus, no fim das contas. Bem, caberia a Drax castigá-lo. A não ser, naturalmente, que Krebs estivesse executando suas ordens.
Pondo em ordem a confusão do seu quarto, Bond sentou-se na cama e olhou a parede do lado oposto com olhos que nada viam. Não tinha sido apenas o instinto que o levara a dizer a Drax que iria até o ponto do tiro, em vez de voltar para a casa. Passara-lhe seriamente pela ideia o fato de que a espionagem de Krebs era feita por ordem de Drax e que este organizava seu próprio sistema de segurança. Entretanto, de que maneira isto se entrosava com as mortes de Tallon e Bartsch? Ou o duplo assassínio teria sido uma coincidência sem nenhuma relação com as marcas do mapa e as impressões digitais de Krebs?
Como que chamado pelos seus pensamentos, bateram à porta, e o mordomo entrou. Vinha seguido por um sargento da polícia, com o uniforme de patrulheiro de estrada, que fez continência e entregou um telegrama a Bond. Bond levou-o até a janela. Vinha assinado: Baxter, que queria dizer Vallance, e dizia:
PRIMEIRA CHAMADA VEIO DA CASA SEGUNDO LUGAR NEVOEIRO EXIGIU FUNCIONAMENTO BUZINA DE NEVOEIRO DE MODO QUE NAVIO FOI OUVIDO VÍRGULA NÃO OBSERVOU NADA TERCEIRO LUGAR SUA ÁREA SUSPEITA FICA MUITO PERTO PRAIA ASSIM FORA DAS VISTAS DOS ÚLTIMOS PONTOS DOS GUARDA-COSTAS DE SAINT MARGARET OU DEAL.
— Obrigado — disse Bond. — Não tem resposta.
Depois de fechar a porta, chegou o isqueiro aceso ao telegrama e depois deixou-o cair na lareira, reduzindo os restos queimados a pó com a sola do sapato.
Dali nada mais se aproveitava, exceto que a chamada de Tallon para o Ministério poderia realmente, ter sido ouvida por alguém da casa, o que teria resultado na busca em seu quarto, que, por sua vez, teve como consequência a morte do major. Mas que dizer de Bartsch? Se tudo aquilo fazia parte de uma coisa muito maior, como poderia ser ligada a um atentado de sabotagem ao foguete? Não seria muito mais simples supor que Krebs era um espião nato, ou ainda mais provável, que estivesse trabalhando para Drax, que parecia ser meticulosamente cônscio da necessidade de segurança e que podia também querer certificar-se da lealdade de seu secretário, de Tallon, e, sem dúvida, depois do encontro no Blades, de Bond? Não seria agir justamente como o chefe (e Bond conhecera alguns que se adaptariam perfeitamente ao tipo) de um projeto super-secreto durante a guerra, que reforçava a segurança oficial com seu próprio sistema de espionagem particular?
Se essa teoria fosse correta, restava apenas o duplo assassínio. Agora que Bond fora contagiado pela magia e tensão do “Explorador da Lua”, os fatos referentes aos tiros histéricos pareciam mais razoáveis. Quanto às marcas no mapa, poderiam ter sido feitas num dia qualquer do ano anterior; os binóculos para noite eram isto apenas: binóculos para noite, e os bigodes dos homens apenas uma quantidade de bigodes.
Bond sentou-se no quarto silencioso, remexendo as peças do quebra-cabeças, de modo que dois quadros inteiramente diversos se alternavam em sua mente. Num deles o sol brilhava, tudo estava límpido e inocente como o dia. O outro era uma confusão culposa de motivos, suspeitas obscuras e interrogações de pesadelo.
Quando o gongo soou para o almoço, ele ainda não sabia que quadro escolher. Para adiar a decisão, afastou do espírito tudo, menos as perspectivas da tarde que passaria sozinho com Gala Brand.
CAPITULO 16
UM DIA GLORIOSO
Era uma tarde maravilhosa, azul, verde e dourada. Quando deixaram a faixa de concreto passando pelo portão da guarda, perto do ponto de tiro, agora ligado à base de lançamento por um grosso cabo, pararam um momento à beira do grande penhasco calcário e ficaram olhando todo o trecho da Inglaterra onde César ancorara pela primeira vez dois mil anos atrás.
À esquerda, o tapete de grama verde, salpicado de pequeninas flores silvestres descia gradativamente para as longas praias de pedregulho de Walmer e Deal, que se curvavam para Sandwich e a baía. Mais além, os penhascos de Margate, surgindo brancos dentre a névoa distante que ocultava o North Foreland, guardavam a mancha cinzenta do aeródromo de Manston, acima do qual aviões a jato norte-americanos descreviam suas parábolas no céu. Em seguida, vinha a Ilha de Thanet e, fora do raio visual de ambos, a embocadura do Tâmisa.
A maré era baixa, e os Goodwins pareciam dourados e suaves dentro do azul cintilante do Canal mostrando apenas o conjunto de mastros e cordames que se esticavam para contar a verdadeira história. As letras brancas do navio-farol South Goodwin estavam fáceis de ler, e até o nome do navio irmão, mais para o norte, surgia branco contra o vermelho do casco.
Entre as areias da costa, ao longo do canal de doze braças do Inner Leads, havia meia dúzia de navios navegando pelo Downs. O som ritmado de seus motores destacava-se claramente dentro do mar calmo e, entre as areias cruéis e o contorno nítido da costa francesa, viam-se navios de todas as procedências rumando para seus destinos — navios de passageiros de linha regular, navios mercantes, rústicas chalupas holandesas e até uma esguia corveta correndo para o sul, talvez para Portsmouth. Até onde a vista alcançava, o lado oriental mais próximo da Inglaterra estava coalhado de embarcações, dirigindo-se para os horizontes distantes, para um porto nacional ou para o outro lado do mundo. Era um panorama cheio de colorido, excitação e romance, e as duas criaturas, ali na borda do penhasco, mantinham-se em silêncio enquanto permaneciam por algum tempo observando tudo.
A paz foi turbada por dois uivos de sirena, provenientes da casa, e eles se viraram, para olhar o mundo negro e feio de concreto, que haviam banido de seus espíritos. Enquanto olhavam, uma bandeira vermelha foi hasteada por cima da cúpula de lançamento, e duas ambulâncias da RAF, com as cruzes vermelhas nos lados, irromperam do renque de arvoredo, na direção do muro, e aí estacaram.
— Vai começar a operação combustível — disse Bond. — Vamos principiar nosso passeio. Nada haverá para ver e, se por acaso acontecesse alguma coisa, nós não sobreviveríamos, quase com certeza, no ponto em que nos encontramos.
A moça sorriu.
— É verdade. E eu já estou cheia de olhar para todo esse concreto.
Seguiram ambos pelo declive suave e, dentro em pouco, encontravam-se já longe do alcance de tiro e da alta cerca de arame.
O gelo da reserva de Gala derretia-se rapidamente ao sol.
A alegria exótica de sua toalete, uma blusa de algodão listrada de branco e preto, metida num cinto largo, pespontado à mão, também preto, encimava uma saia meio curta, rosa shocking, e o conjunto parecia contagiá-la. Era impossível, para Bond, reconhecer a mulher frígida e distante da noite anterior naquela que caminhava agora a seu lado, rindo e feliz de sua ignorância a respeito dos nomes de flores selvagens: a erva de S. Pedro, a fumaria e outras, em tons azuis, que rodeavam seus pés.
Triunfalmente, encontrou uma orquídea selvagem e colheu-a .
— Você não faria isso, se soubesse que as flores gritam quando são colhidas — disse Bond.
Gala olhou para ele.
— Que quer você dizer com isso? — perguntou, suspeitando um gracejo.
— Ah, você não sabia? — Bond sorriu, ao observar a reação de Gala. — Existe um professor hindu, chamado Bhose, que escreveu um tratado sobre o sistema nervoso das flores. Mediu a reação delas à dor. Chegou mesmo a registrar o grito de uma rosa, quando é colhida. Deve ser um dos sons mais lancinantes do mundo, não lhe parece? Pois eu ouvi algo de semelhante quando você colheu essa flor.
— Não acredito — disse Gala, olhando desconfiada para a raiz arrancada. — Mas, de qualquer maneira — acrescentou, maliciosa — eu jamais pensaria que você fosse capaz de sentimentalismos. As pessoas, no seu Serviço, não fazem de matar um ofício? E não são apenas flores. São pessoas.
— As flores não podem atirar em nós, também — disse Bond.
Gala olhou a flor.
— Agora você me fez sentir como se fosse uma criminosa. É muita maldade sua. Mas — confessou relutante — terei de descobrir essa história do hindu, e se você tiver dito a verdade, nunca mais apanharei uma flor enquanto viver. Que faço com esta? Você me fez sentir com as mãos sangrando completamente.
— Dê para mim. De acordo com você, minhas mãos já estão gotejando sangue. Um pouco mais não fará diferença.
A moça ofereceu-lhe a flor, e suas mãos se tocaram.
— Você poderá colocá-la no cano do revólver — falou, para disfarçar o instante do contato.
Bond riu:
— Quer dizer que os orifícios não servem só para decoração. Mas a minha é uma pistola automática, e eu deixei-a no quarto.
Enfiou o talo da flor numa das casas de sua camisa de algodão:
— Achei que um coldre de ombro chamaria um pouco a atenção sem o paletó para cobri-lo. Depois não acredito que ninguém vá mexer em meu quarto esta tarde.
Numa concordância tácita, eles se afastaram do momento de intimidade. Bond contou sua descoberta a respeito de Krebs e a cena do quarto.
— Foi bem feito para ele. Nunca confiei nesse homem. Mas o que é que diz Sir Hugo?
— Falei com ele antes do almoço — respondeu Bond.
—Entreguei-lhe a faca e as chaves de Krebs como prova. Ficou furioso e saiu imediatamente à procura do sujeito, resmungando de cólera. Quando voltou, me disse que Krebs parecia já se encontrar num estado deplorável e perguntou se eu não me dava por satisfeito ao saber que fora bem castigado. Repetiu toda aquela história de não querer perturbar sua equipe na última hora, etc. e tal. De modo que concordei em que fosse mandado de volta à Alemanha na próxima semana e que, enquanto isto, se considerasse preso sob palavra — sendo-lhe permitido apenas deixar o quarto vigiado.
Bond e sua companheira desceram um caminho íngreme do penhasco até a praia, virando à direita, para Royal Marine, em Deal. Caminharam em silêncio até chegarem a uma extensão de duas milhas de uma praia coberta de cascalho que, durante o tempo de maré baixa, corre entre os elevados penhascos brancos até a baía de Sta. Margarida.
Enquanto esmagavam lentamente as pedrinhas macias, Bond contou tudo que lhe passara pela cabeça desde o dia anterior. Não guardou nada. Relatou todos os passos tomados, as pistas falsas que seguira em cada um dos pontos de partida, não deixou nada por comentar, exceto uma tênue suspeita mal fundada e um amontoado de indícios que terminavam todos na mesma interrogação. . . onde estava o X da história? Onde achar um plano no qual os indícios se encaixassem? E sempre a mesma resposta: nada do que Bond sabia ou suspeitava parecia ter qualquer relação concebível com a segurança contra a sabotagem do “Explorador da Lua”. Isto, no entanto, quando tudo fora dito e feito, era a única coisa com que ele e a moça tinham que ver. Não com a morte de Tallon e Bartsch, ou com o ordinário Krebs, mas somente com a proteção de todo o projeto relacionado com o “Explorador da Lua” contra seus possíveis inimigos.
— Não é verdade? — finalizou Bond.
Gala parou e ficou um momento olhando por entre as rochas e algas a calma cintilação das ondas do mar. Estava suada e ofegante depois da caminhada difícil pelo caminho de cascalhos. Pensava como seria maravilhoso tomar um banho de mar — voltar por um momento aos dias da infância à beira-mar, antes de sua vida ter sido presa nesta estranha profissão, cheia de emoções decepcionantes e tensões nervosas. Olhou o rosto moreno e cruel do homem ao seu lado. Será que teria momentos de anseio pelas coisas simples e calmas da vida? Com certeza não. Gostava de Paris, Berlim e New York, trens, aviões, comida cara e, sim, certamente, de mulheres caras.
— Então? — perguntou Bond, conjeturando se ela ia apresentar algum indício que ele não percebera. — Que é que acha?
— Desculpe. Eu estava sonhando acordada. Não, eu acho que você tem razão. Estou aqui desde o princípio e, apesar de ter notado coisinhas estranhas de vez em quando, fora os tiros resultando em duas mortes, claro, não vi absolutamente nada de incorreto. Todos os componentes da equipe, de Sir Hugo para baixo, estão de corpo e alma dedicados ao foguete. Vivem unicamente para isso, e tem sido maravilhoso ver tudo se desenvolver. Os alemães são trabalhadores ao extremo — posso bem acreditar que Bartsch tenha perecido pela tensão exagerada dos nervos — gostam de ser dirigidos por Sir Hugo, e ele gosta de dirigi-los. Eles adoram-no. Quanto à segurança, o local está sólido e bem guarnecido. Tenho certeza de que se alguém quisesse se aproximar do “Explorador da Lua” seria feito em pedaços. Concordo com você a respeito de Krebs e que ele, provavelmente, estivesse agindo sob as ordens de Drax. Foi por isto que não me dei o trabalho de ir contar--lhe quando ele andou mexendo nas minhas coisas. Não havia nada para ele encontrar, naturalmente. Só cartas particulares e coisas assim. Seria típico de Sir Hugo procurar certificar-se com absoluta minúcia. Aliás, devo dizer que o admiro por isto — acrescentou com franqueza. — Ele é um homem cruel, com maneiras deploráveis, e não muito simpático debaixo de toda aquela cabelada vermelha, mas eu gosto de trabalhar para ele e estou ansiosa para que o “Explorador da Lua” seja um sucesso. Viver ao lado dele durante tanto tempo fez com que eu me sentisse exatamente como seus homens.
Gala levantou os olhos para ver a reação do companheiro. Este baixou a cabeça, assentindo.
— Depois de um dia apenas, eu posso compreender isto — disse. — Creio que concordo com você. Não há nada em que nos basearmos, exceto minha intuição, e isto é uma coisa que não conta. O principal é que o “Explorador da Lua” parece seguro, tão seguro quanto as joias da Coroa e, provavelmente, ainda mais.
Bond sacudiu os ombros impaciente, aborrecido consigo mesmo, por renegar as intuições que contavam tanto em seu trabalho.
— Vamos embora — convidou quase rude. — Estamos perdendo tempo.
Compreendendo, a moça sorriu e seguiu o companheiro.
Contornando a próxima inclinação do penhasco, chegaram à base do elevador, coberto de algas marinhas e crustáceos . . . Cinquenta jardas mais adiante alcançaram o dique, construção forte, tubular, de ferro, calçado de tiras de aço entrelaçadas, que avançava sobre as rochas e mais além.
Entre os dois, e talvez uns vinte pés acima da face do penhasco, escancarava-se a boca negra e larga do túnel de exaustão, que subia inclinada dentro do penhasco para o chão de aço sob a popa do foguete. Da borda inferior da cavidade, giz derretido caía como lava, e viam-se respigos da matéria por cima de todos os pedregulhos e rochas lá embaixo. Com os olhos da imaginação, Bond via um rastro ofuscante de flama branca surgir uivando da parede do penhasco e ouvia o sibilo e borbulhar, quando o giz líquido se derramava na água.
Levantou os olhos para a estreita faixa da cúpula de lançamento que aparecia acima da borda do penhasco, duzentos pés acima, imaginando os quatro homens com suas máscaras contra gases, vestidos com roupas de asbetos, observando os instrumentos medidores enquanto o terrível líquido explosivo pulsava pelo tubo negro de borracha até o estômago do foguete. De repente, percebeu que se encontravam dentro do raio de ação, se alguma coisa não desse certo no enchimento de combustível.
— Vamos sair daqui — disse à pequena.
Quando umas cem jardas se interpuseram entre eles e a cavidade, Bond parou e olhou para trás. Imaginou-se acompanhado de mais seis homens fortes e durões, com todos os instrumentos necessários — e conjeturou como daria início a um ataque à base, vindo do mar — embarcações presas ao cais, quando a maré estivesse baixa; uma escada na borda da cavidade? e depois o quê? Seria impossível galgar as paredes de aço polido do túnel exaustor. Seria uma questão de disparar uma arma antitanque através do chão de aço por baixo do foguete, seguida de algumas granadas de fósforo, e esperar que alguma coisa pegasse fogo. Negócio meio confuso, mas que talvez desse resultado. Sair depois seria complicado. Seriam alvos fáceis para quem estivesse no topo do penhasco. Mas isto não perturbaria um esquadrão suicida russo. Era tudo muito possível de realizar.
Gala estivera ao seu lado, observando os olhos que mediam e especulavam.
— Não é tão fácil como você pensa — disse, vendo-lhe a testa franzida. — Mesmo quando a maré é alta e o mar muito forte, colocam guardas ao longo do cimo do penhasco de noite. Eles têm holofotes, Brens e granadas. As ordens que recebem são de atirar, e fazerem as perguntas depois. Naturalmente seria melhor iluminar completamente o penhasco à noite. Mas isto só serviria para tomar a base um alvo certeiro. Estou convencida de que pensaram em tudo.
Bond continuava franzindo a testa.
— Se eles tivessem cobertura do ataque por um submarino ou uma embarcação, um grupo eficiente ainda conseguiria realizar o negócio. Vai ser o diabo, mas eu vou nadar. O mapa do Almirantado diz que existe um canal de doze braças ali adiante, mas eu gostaria de dar uma olhada. Deve ter muita água no final do dique, contudo eu me sentirei mais feliz quando verificar com meus próprios olhos.
Sorriu para a moça:
— Por que você não vem nadar também? A água deve estar bastante fria, mas lhe faria bem, depois de ter estado a cozinhar-se dentro daquela cúpula de concreto a manhã inteira .
Os olhos de Gala se iluminaram.
— Acha que eu posso? — perguntou, hesitante. — Estou com um calor tremendo. Mas que é que nós vamos vestir?
Corou ao lembrar-se de suas calcinhas e porta-seios minúsculos e de nylon quase transparentes.
— Deixe isto pra lá — disse Bond aèreamente.
— Você deve ter alguns trapinhos vestidos aí por baixo, e eu estou de short. Estaremos perfeitamente respeitáveis, e não há ninguém por aqui para ver. Depois, eu prometo não olhar — mentiu alegremente, seguindo na frente até a próxima inclinação do penhasco.
— Você se despe atrás dessa rocha, e eu desta outra.
— Vamos. Não seja tola. Tudo faz parte de nossas obrigações .
Sem esperar a resposta dela, encaminhou-se para trás de uma rocha elevada, tirando a camisa enquanto andava.
— Ora, muito bem — disse Gala, aliviada por ter a resolução sido tirada de suas mãos. Foi para trás de outra rocha e lentamente desabotoou a saia.
Quando espiou nervosamente para fora, Bond já ia na metade do trecho de áspera areia marrom que seguia por entre os pequenos lagos para onde a maré enchente rodopiava entre os verdes e negros detritos das rochas... O rapaz tinha uma aparência elástica e a pele bronzeada. O short azul era tranquilizador.
Pisando de leve, ela seguiu-o e, de repente, estava dentro d’água. Imediatamente nada mais teve importância, fora do gelo aveludado do mar, a beleza das manchas de areia por entre os cabelos ondulados das algas marinhas que via nas profundezas verdes e claras abaixo dela quando mergulhou a cabeça e nadou paralelamente à praia num rápido crawl.
Ao se encontrar ao nível do dique, parou um momento para tomar fôlego. Não se via sinal de Bond, que ela vira nadando vários metros à frente. Bateu com os pés fortemente dentro da água para manter viva a circulação e então recomeçou novamente, pensando nele sem querer, pensando no corpo rijo e moreno que devia estar ali por perto, entre as rochas, talvez, ou mergulhando para a areia, a fim de calcular a profundidade da água com que um inimigo podia contar.
Virou-se para procurá-lo de novo, e foi então que ele surgiu inesperadamente do mar, por baixo dela. Sentiu o abraço rápido e apertado e o contato breve mas forte dos lábios dele nos seus.
— Vá para o diabo — exclamou furiosa, mas o rapaz já bavia mergulhado novamente, e quando ela golfou uma porção de água do mar, conseguindo orientar-se, ele nadava alegremente a vários metros de distância.
Gala voltou-se e nadou displicente, sentindo-se bastante ridícula, porém resolvida a pô-lo no seu lugar. Era exatamente como tinha pensado. Esse pessoal do Serviço Secreto sempre encontrava tempo para o sexo, por mais importante que fosse a missão de que se encarregavam.
Mas seu corpo vibrava obstinadamente com o imprevisto do beijo, e o dia luminoso parecia ter adquirido nova beleza. Enquanto nadava mais para fora, virou-se e olhou os dentes brancos como leite, dentes da Inglaterra que rosnavam, olhou o braço distante de Dover, o confete branco e preto dos corvos e gaivotas, jogados contra o vivido pano de fundo dos campos verdes, e chegou à conclusão de que tudo seria permitido num dia assim e que, só por aquela vez, ela o perdoaria.
Meia hora depois estavam deitados, esperando que o sol viesse secá-los, separados pela respeitável distância de um metro de areia, ao pé do penhasco.
O beijo não fora mencionado, mas os esforços de Gala para manter uma atitude de alheamento haviam tombado com a excitação de examinar uma lagosta que Bond apanhara com as mãos, ao mergulhar. Relutantemente, tornaram a colocá-la numa das cavidades da rocha e ficaram observando seus movimentos de volta ao abrigo das algas marinhas. Agora, ali estavam, cansados e alegres com o banho gelado, rezando para que o sol não se escondesse atrás do penhasco acima de suas cabeças antes de estarem aquecidos e suficientemente secos para poder vestirem novamente as roupas.
No entanto, não eram só estes os pensamentos de Bond. O lindo corpo estirado da pequena ao seu lado, incrivelmente erótico na ênfase marcante das calcinhas e porta-seios agarrados à pele, interpunha-se entre ele e sua preocupação com o “Explorador da Lua”. Além do mais, não havia nada que ele pudesse fazer pelo foguete durante mais uma hora. Ainda não eram cinco, e a tomada de combustível não terminaria senão depois das seis.
Seria somente àquela hora que ele poderia aproximar-se de Drax para certificar-se de que nas duas próximas noites haveria um acréscimo de guardas no penhasco e que eles possuíam as armas adequadas. Pois verificara com os próprios olhos que havia muita água, mesmo com a maré vazante, possibilitando a chegada de um submarino.
De modo que contava pelo menos com um quarto de hora livre antes de poderem voltar.
No intervalo havia essa pequena. O corpo semidespido surgia acima dele na superfície, quando nadava em baixo dela; o beijo rápido, forte e suave ao mesmo tempo, com os braços em torno dele; as colinas pontudas de seus seios, tão próximas e o estômago macio e raso, descendo para o mistério das coxas fortemente cerradas.
Para o inferno, toda essa história.
Arrancou o espírito dessa febre e fitou diretamente o infindável azul do céu, forçando-se a observar a beleza das gaivotas esvoaçantes ao se alinharem sem nenhum esforço entre as correntes de ar que giravam sobre o alto topo dos penhascos acima deles. Mas a plumagem sedosa e branca do colo das aves desviou novamente seus pensamentos para ela, não lhe dando descanso.
— Por que você se chama Gala? — perguntou, para interromper a sequência de pensamentos cálidos e persistentes.
A moça riu.
— Durante todo meu tempo de escola mexiam comigo por causa disso — respondeu, e Bond se impacientou diante da voz clara, fácil. — Depois, quando pertenci às Wrens e ainda pela metade da força policial de Londres. Mas meu verdadeiro nome é ainda pior. É Galateia. Era o cruzador onde meu pai servia quando eu nasci. Creio que Gala não é tão ruim assim. Quase me esqueci do meu nome de verdade. Estou sempre precisando trocá-lo, agora que estou na Seção Especial.
— Na Seção Especial. Na Seção Especial. Na. . .
Quando a bomba cai. Quando o piloto calcula mal, e o avião bate antes de tocar a pista de aterrissagem. Quando o sangue deixa o coração, e a consciência foge, há pensamentos no cérebro, ou palavras, ou talvez uma frase musical que se repete durante os poucos segundos antes da morte, como o som moribundo de um sino.
Bond não estava morto, mas as palavras ainda estavam dentro de sua mente, vários segundos depois de tudo haver acontecido.
Desde o momento em que tinham-se deitado na areia, recostados no penhasco, enquanto seus pensamentos se concentravam em Gala, seus olhos haviam observado distraidamente duas gaivotas brincando em redor de uma ponta de palha que estava na beira do ninho, numa pequena saliência, cerca de uns trezentos metros abaixo do cume distante do penhasco. Inclinavam os pescoços e pareciam cumprimentar, em seu jogo amoroso, só com as cabeças, que Bond divisava contra o branco ofuscante do céu. Então o macho voava para longe e, imediatamente voltava à saliência da rocha, para recomeçar seu jogo de amor.
Bond observava-os sonhadoramente enquanto ouvia o que a moça dizia, quando, subitamente, as duas gaivotas fugiram da saliência da rocha com um só grito de pavor. No mesmo instante viu-se um rolo de fumaça negra e ouviu-se um estrondo amortecido vindo do alto do penhasco. Em seguida, uma grande quantidade de giz branco, bem acima das cabeças de Bond e Gala, pareceu desligar-se para fora, ziguezagueando fragmentos pela encosta.
Quando Bond se deu conta do que fazia, achou-se deitado em cima de Gala, o rosto apertado contra o dela, e percebeu que o ar estava cheio de trovões, que sua respiração estava abafada, e que o sol desaparecera. Sentia as costas dormentes e doendo sob um grande peso, e sua orelha esquerda, além do eco do trovão, guardava o som de um grito sufocado.
Mal teve consciência do se passava, e precisou esperar até que seus sentidos voltassem à vida.
A Seção Especial. O que foi que ela disse a respeito da Seção Especial?
Fez esforços inauditos para se mexer. Apenas no braço direito, o braço mais próximo do penhasco, ainda havia algum movimento, mas quando puxou o ombro, o braço ficou mais livre até que, finalmente, com um impulso grande para trás, a luz e o ar chegaram até eles. Lutando no nevoeiro de poeira de giz, alargou o buraco, até a cabeça poder retirar seu peso esmagador de cima de Gala. Sentiu o leve movimento, quando ela virou a cabeça para um lado, procurando a luz e o ar. Uma torrente de poeira e pedras no buraco que ele limpara fê-lo cavar ferozmente mais uma vez. Pouco a pouco, aumentou o espaço até conseguir firmar o cotovelo direito, e então, tossindo ao ponto de imaginar que os pulmões iam arrebentar, impulsionou o ombro direito para cima até que, de repente, livrou-o, bem como a cabeça.
Seu primeiro pensamento foi que tinha havido uma explosão no “Explorador da Lua”. Levantou os olhos para o penhasco e depois para a praia. Não. Estavam a cem metros da base. Foi apenas na linha do horizonte, diretamente acima deles, que um grande pedaço fora comido no penhasco.
Em seguida pensou no perigo imediato que corriam. Gala gemia, e ele sentia o frenético bater de seu coração contra o próprio peito, mas a máscara pavorosa e branca de seu rosto estava agora livre para respirar, e ele se pôs então a girar o corpo de um lado para o outro em cima dela, a fim de tentar aliviar a pressão de seus pulmões e do estômago. Lentamente, polegada por polegada, seus músculos partindo-se com o esforço, procurou caminho sob a pilha de poeira e detritos até o lado do penhasco, onde sabia que o peso seria menor.
Finalmente livrou o peito e pôde ajoelhar-se ao lado da companheira. O sangue pingava de suas costas e braços feridos, misturando-se com a poeira de giz que continuamente caía na parte lateral dos buracos que fizera mas verificou que não tinha ossos quebrados e, com a fúria do trabalho de salvamento, não sentiu dores.
Grunhindo e tossindo, sem uma pausa para respirar, ergueu-a e fê-la sentar-se e, com a mão sangrando, limpou um pouco do giz de seu rosto. Depois, livrando as pernas da tumba de giz, levantou-a e levou-a até uma elevação dos detritos, com as costas voltadas para o penhasco.
Ajoelhou-se e olhou aquele horrível espantalho branco que, minutos antes, fora uma das mais lindas moças que já vira. Enquanto olhava os filêtes de sangue escorrendo-lhe pelo rosto, rezou para que seus olhos se abrissem.
Quando, segundos mais tarde, eles se abriram, o alívio foi tão grande, que Bond se afastou e sofreu tremenda crise de náuseas.
CONTINUA
A um quilômetro da base, aproximadamente, Drax estacou.
— Eu explicarei a geografia — disse ele. — Walter, siga na frente. Já devem estar esperando por você, para dar outra olhada naquelas barbatanas... Mas não se preocupe demasiado com elas, meu caro amigo. O pessoal das ligas de alto teor sabe muito bem o que está fazendo. E agora — continuou Drax, olhando para Bond, enquanto fazia um gesto na direção da cúpula branca como leite — ali dentro está o “Explorador”. O que você vê é o topo de uma plataforma que foi escavada a mais de quarenta pés de profundidade, no terreno calcário. As duas metades da cúpula são abertas hidràulicamente e recolhidas para trás, ao nível do muro de vinte pés. Se agora estivessem abertas, você veria o cone final do “Explorador”, ao nível do muro. Ali — apontou para uma sombra retangular que estava já quase fora do campo visual de ambos, na direção de Deal — fica a casamata de controle, de onde se comanda o disparo. É um blocausse em concreto. Está cheio de dispositivos de radar de rastreio — tanto o radar de velocidade Doppler como o radar de rastreio de direção de voo, por exemplo. As informações são fornecidas por meio de vinte canais telemétricos, alojados no cone do foguete. Também existe ali dentro uma enorme tela de televisão, de modo que se pode acompanhar o comportamento do foguete no interior da cápsula, depois de iniciado o voo. Um outro conjunto de televisores serve para acompanhar o início da ascensão. Ao lado da casamata, há um elevador que desce ao longo do penhasco. Uma boa parte das peças e maquinismos foi trazida para a base por via marítima e transportada até cá em cima por meio desse monta-cargas. Aquele gemido que você escuta, vem da central elétrica, ali mais adiante — e Drax fez um gesto vago, em direção a Dover. — Os alojamentos dos homens e a casa são protegidos pelo muro à prova de deslocação de ar. Mas quando fizermos o lançamento, não deverá haver ninguém dentro de um raio de ação de um quilômetro e meio, a partir da base, exceto os técnicos do Ministério e a equipe da B.B.C., que estará colocada na casamata de comando. Espero que o muro aguente bem a deslocação de ar. Walter diz que a base e uma boa parte da faixa de concreto derreterão com o calor. E é tudo. Nada mais precisa saber, até entrarmos. Vamos.
Bond tornou a observar o tom rude de comando. Seguiu em silêncio, atravessando uma zona banhada de luar, até chegarem à parede de suporte da cúpula. Uma lâmpada vermelha brilhava na parede, por cima de uma porta de aço chapeado. Iluminava um grande letreiro que dizia em inglês e alemão:
PERIGO DE MORTE.
ENTRADA PROIBIDA QUANDO A LÂMPADA VERMELHA ESTIVER ACESA.
TOQUE A CAMPAINHA E ESPERE.
Drax apertou o botão por debaixo do letreiro, e ouviu-se o som abafado de uma campainha de alarma.
— Pode estar alguém trabalhando com o oxiacetileno, ou fazendo qualquer outro trabalho delicado — explicou Drax. — Basta que desvie sua atenção do serviço, pela fração de um segundo, caso alguém entre sem aviso, e isso poderia resultar num erro bastante caro. Todos largam os utensílios quando a campainha soa, e só recomeçam quando veem de que se trata.
— Drax afastou-se um pouco da porta e apontou para uma série de gradeados dispostos logo abaixo do remate da parede. — São os exaustores de ventilação — continuou ele explicando.
— O ar condicionado no interior da cúpula mantém-se constantemente a setenta graus Farenheit.
A porta foi aberta por um homem que empunhava um cassetete de policial e trazia um revólver no cinturão. Bond seguiu Drax até uma pequena antecâmara. Esta nada tinha senão um banco e uma fileira bem arrumada de chinelos de feltro.
— Terá de calçá-los — disse Drax, sentando-se e tirando os sapatos. — Poderia escorregar e esbarrar contra alguém. O melhor é deixar aqui também seu casaco. Setenta graus Farenheit é uma temperatura bastante elevada.
— Obrigado — disse Bond, lembrando-se da Beretta encaixada sob a axila. — A verdade é que não sinto calor algum.
Sentindo-se como um visitante num teatro em dia de ensaios, Bond seguiu Drax através de uma porta de comunicação, passando depois por um estreito corredor e desembocando numa série de projetores que, instintivamente, o fizeram levar a mão aos olhos, enquanto com a outra se agarrava ao gradeado do corrimão protetor, à sua frente.
Quando retirou a mão, foi brindado com uma cena de tal esplendor que, durante vários minutos, ficou sem fala, os olhos fascinados pela terrível beleza da mais poderosa arma existente sobre a Terra.
CAPITULO 12
O “EXPLORADOR DA LUA”
Era como se o tivessem metido no tambor polido de um gigantesco revólver. Partindo do chão, a mais de doze metros abaixo da varanda onde se encontravam, erguia-se uma parede circular, de metal polido, no topo da qual, ele e Drax se colavam como duas moscas. No centro desse imenso cilindro, que mediria pelo menos uns nove metros de diâmetro, estava colocado um gigantesco lápis de cromo, refulgente, cuja ponta, aguçando-se numa antena fina como agulha, parecia roçar o telhado, seis ou sete metros acima de suas cabeças.
O cintilante projétil descansava numa base cônica de aço, que se erguia do chão por entre as extremidades de três barbatanas em forma de delta, pronunciadamente puxadas para trás, e que parecia tão afiadas quanto bisturis de cirurgião. Mas, fora isso, nada mais empanava o brilho sedoso dos quinze metros de aço cromado e polido, exceto as duas garras que saíam das paredes e colhiam a cintura do foguete, por entre espessos acolchoados de espuma de borracha.
No ponto em que as garras tocavam o projétil, viam-se pequenas portas de acesso, abertas na superfície de aço e, quando Bond olhou para baixo, divisou um homem que saía agachado por uma delas, até alcançar a estreita plataforma do monta-cargas instalado paralelamente ao bojo do “Explorador”. Depois, fechou a porta com a mão enluvada. Encaminhou-se a passos miúdos, equilibrando-se pela estreita ponte, até alcançar a parede, e fez girar uma manivela. Ouviu-se um profundo gemido de maquinismo, e a garra retirou seu suporte acolchoado do bojo do foguete, ficando suspensa no ar, como as patas dianteiras de um louva-a-Deus. Os gemidos do mecanismo alteraram-se para um tom mais cavo, e a plataforma do monta-cargas, lentamente, foi-se retraindo, em movimento de telescópio. Depois, tornou a esticar-se e foi pegar o foguete, com a garra, três metros mais abaixo. Seu operador esgueirou-se de novo pelo braço e abriu outra pequena porta de acesso ao interior, desaparecendo dentro do foguete.
— Provavelmente está verificando o sistema de alimentação de combustível dos tanques posteriores — disse Drax. — A alimentação é feita por gravidade. Um sistema bastante complexo. Que acha você disto? — Observou com prazer a expressão de êxtase, estampada no rosto de Bond.
— Uma das coisas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida — respondeu Bond. Era fácil falar. Não se ouvia o menor som dentro do grande cilindro de aço, e as vozes dos homens apinhados lá embaixo, junto da cauda do foguete, não chegavam a eles senão como distante murmúrio. Drax apontou para cima e explicou:
— Veja o cone. O que está montado é apenas experimental, mas pode substituir-se, claro, por uma cápsula estratégica, com carga nuclear. Para este voo, irá cheia de instrumentos. Telêmetros e todas essas coisas. Depois, estão os giroscópios, bem defronte de nós. E, em seguida, quase exclusivamente, tanques de combustível até abaixo, quando temos então as turbinas, já próximas da cauda. Impulsionadas por vapor superaquecido, obtido na decomposição do peróxido de hidrogênio . O combustível, fluorina e hidrogênio... — olhou rapidamente para Bond. A propósito, isto é top secret, sabe?... pois o combustível, como dizia, baixa pelos tubos de alimentação e recebe a ignição logo que é introduzido no motor. Trata-se de uma espécie de explosão controlada, que impulsiona o foguete para o ar. Esse assoalho de aço onde o “Explorador” assenta agora, desliza então para fora, claro. Por baixo, há um enorme poço de exaustão. Tem saída para a base dos rochedos, do lado do mar. Amanhã você irá dar uma vista d’olhos. Parece uma gigantesca caverna, nada mais. Quando procedemos, há dias, a um teste estático, a substância calcária do terreno derreteu e correu para o mar como se fosse água. Espero que não acabemos por calcinar e destruir os famosos penhascos brancos de Dover, quando chegar a hora zero. Você gostaria de dar uma olhada nos trabalhos?
Bond seguiu em silêncio, quando Drax indicou o caminho, descendo por uma íngreme escada de ferro, que acompanhava a parede de aço em sua curvatura. Sentia agora invadir-se por uma onda de admiração e quase de reverência por esse homem e sua formidável realização. Como teria podido ele, Bond, deixar-se impressionar desfavoravelmente pela conduta infantil de Drax, à mesa de jogo? Mesmo os grandes homens têm suas fraquezas. E Drax necessitava dessa válvula de escape para a tensão a que o submetia a tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Tornava-se óbvio que Drax não podia confiar excessivamente em seus auxiliares direitos, de nervos à flor da pele. Dele sozinho devia partir a vitalidade e a confiança necessárias para manter elevado a moral de todos. Mesmo tratando-se de uma coisa tão insignificante quanto ganhar uma partida de bridge, devia ser importante para Drax estar-se assegurando constantemente da própria capacidade, procurando em tudo vaticínios de boa sorte e de êxito, chegando ao ponto de criar esses augúrios favoráveis por suas próprias mãos. Quem não suaria ou roeria as unhas, estando tanta coisa em jogo?
Enquanto contornavam a larga curva da escada, com suas figuras grotescamente refletidas na superfície cromada do foguete, como em um espelho mágico de feira, Bond sentia quase afeto pelo homem que, apenas há poucas horas, ele dissecara sem piedade e quase com ódio.
Quando chegaram à plataforma da base de aço do cilindro, Drax fez uma pausa e olhou para cima. Bond seguiu o olhar do outro. Visto naquela perspectiva, o “Explorador” dava-lhes a impressão de estar olhando para um fino cone vertical de luz, perdendo-se na abóbada cintilante, um feixe de luz que não era totalmente branco, mas de uma tonalidade acetinada de madrepérola. Havia nele alguns pontos vermelhos e brilhantes, refletidos por um gigantesco extintor de incêndios, de neve carbônica, colocado a pouca distância. Um homem em traje de amianto estava postado ao lado do extintor, que apontava seu bico de leque para a base do foguete. Havia também uma estria de cor violeta, cuja origem provinha de uma lâmpada fixada ao painel de instrumentos, na parede. Servia para controlar os movimentos da cobertura de aço em que se encontravam e que os separava do poço de exaustão. Finalmente, um tom verde-esmeralda vinha da luz difusa de uma lâmpada com abajur, colocada sobre uma mesa de pinho, à qual se sentava um homem que ia anotando números que lhe eram transmitidos, de viva voz, pelo grupo reunido logo abaixo da cauda do foguete.
Levantando os olhos para aquela coluna em tons pastel, tão incrivelmente esguia e graciosa, parecia impossível que uma coisa tão delicada pudesse aguentar as pressões a que teria de submeter-se na próxima sexta-feira: o jato tronitruante da mais poderosa explosão controlada que alguma vez fora tentada; o impacto da barreira do som; as pressões desconhecidas da estratosfera, a quinze mil milhas por hora; o choque terrível quando retornasse, num mergulho de milhares de milhas de altura, para ferir de novo o envelope atmosférico da Terra.
Drax pareceu ler seus pensamentos. Voltou-se para Bond:
— É como perpetrar um assassinato — disse ele. Em seguida, de maneira surpreendente, explodiu numa risada asinina. —Walter! — chamou, dirigindo-se ao grupo de homens. — Venha cá!
Walter destacou-se dos outros e aproximou-se.
— Walter — prosseguiu Drax — eu estava dizendo ao nosso amigo, o Comandante, que quando lançarmos o “Explorador da Lua” será como se cometêssemos um crime de assassinato .
Bond não ficou surpreendido, ao ver uma expressão de incredulidade intrigada estampar-se no rosto do doutor. Irritado, Drax exclamou:
— Assassinato de uma criança. Assassinato de nosso filho — repetiu com um gesto na direção do foguete. — Acorde, homem! Acorde! Que se passa com você?
A fisionomia de Walter clareou. De um modo velado, sorriu, mostrando seu apreço pela comparação.
— Assassinato, Ah, sim! Essa é muito boa. Ha! Ha! E agora, Sir Hugo, as folhas de grafita no exaustor. O Ministério está satisfeito com o ponto de fusão? Eles não acham que. ..
Ainda falando, Walter levou Drax para debaixo da cauda do foguete. Bond seguiu ambos.
Os rostos dos dez homens estavam voltados para eles, quando chegaram. Drax apresentou-o com um gesto da mão.
— Comandante Bond, o nosso novo agente de segurança, — disse, conciso.
O grupo olhou Bond em silêncio. Não houve o menor movimento para ir cumprimentá-lo, e os dez pares de olhos não refletiam curiosidade.
— Então, que negócio é esse de tanta história com a grafita? . ..
O grupo se fechou em torno de Drax e Walter. Bond foi deixado só, para trás.
Não estava surpreso com a frieza da recepção. Teria olhado a intromissão de um amador nos segredos de seu próprio departamento com a mesma indiferença mesclada de ressentimento. Além do mais, simpatizava com esses técnicos apanhados a dedo, que tinham vivido durante meses a fios nas mais altas regiões da astronáutica e se encontravam agora no limiar do julgamento final. Entretanto, lembrava-se, os inocentes entre si deviam saber que Bond tinha seu próprio dever a cumprir, sua própria participação vital nesse projeto. Suponhamos, por exemplo, que um desses pares de olhos, nada comunicativos, escondesse um homem dentro de outro homem, um inimigo que, talvez, naquele instante mesmo exultasse com a certeza de que a grafita que Walter parecia não confiar era realmente sub-resistente. É verdade que tinham o aspecto de uma equipe bem unida, quase de uma fraternidade, ao se colocarem assim em torno de Drax e Walter, pendendo de suas palavras, os olhos atentos aos movimentos das bocas dos dois homens. Mas seriam parte de um cérebro, movimentando-se dentro da intimidade de uma órbita secreta, registrando seus cálculos ocultos como o mecanismo clandestino de uma máquina infernal?
Bond caminhava a esmo, para cima e para baixo do triângulo formado pelas três pontas das barbatanas que repousavam em suas cavidades forradas de borracha no chão de aço, interessando-se em tudo em que seus olhos pousavam, mas, de quando em quando, focalizando-os no grupo de homens, em ângulo diferente.
Com exceção de Drax, todos usavam o mesmo macacão justo de nylon, preso por fecho-éclair de plástico. Não se via o menor vestígio de metal, e nenhum deles usava óculos. Como no caso de Walter e Krebs, suas cabeças estavam raspadas bem rente. Provavelmente, pensou Bond, para evitar que um fio solto de cabelo pudesse cair dentro do engenho. Entretanto, e isso chamou-lhe a atenção como característica muito estranha da equipe, todos exibiam exuberantes bigodes, cuja manutenção exigia, sem dúvida, grande dose de cuidados. Eram de todos os formatos e tonalidades: louros, cor de rato ou escuros, em guidões de bicicleta, de foca, à Kaiser ou à Hitler — cada rosto exibia seu distintivo capilar, entre os quais a pelagem ruiva de Drax brilhava como insígnia oficial do chefe supremo.
Por que motivo, conjeturava Bond, todos os homens da base usavam bigode? Nunca os apreciara, mas combinados com as cabeças raspadas, lembravam algo de positivamente obsceno. Teria sido apenas tolerável, se todos fossem cortados no mesmo modelo, mas a variedade de gêneros individuais, essa anarquia de formatos, tinha um que de particularmente horrível, destacando-se do fundo composto pelas cabeças nuas e redondas.
Nada mais havia para chamar a atenção. Os homens eram de estatura mediana, e todos de tipo mais sobre o esguio — talhados, supunha Bond, mais ou menos de acordo com as necessidades do trabalho. A agilidade seria imprescindível nas plataformas, nas passagens ao longo das garras laterais e dos monta-cargas, e solidez para executar as manobras através das portas de acesso e dentro dos minúsculos espaços disponíveis nos compartimentos do foguete. As mãos deles pareciam ter os músculos e nervos relaxados. Eram imaculadamente limpas, e seus pés, metidos em chinelos de feltro, estavam imóveis pela concentração no trabalho. Bond não surpreendeu nenhum deles, em ocasião alguma, olhando em sua direção, movido pela curiosidade, e quanto a penetrar em seus espíritos ou calcular suas doses de lealdade, confessava a si próprio que a tarefa de desmascarar os pensamentos de cinquenta desses homens-robôs alemães, em três dias, era absolutamente impraticável. E lembrou-se, então, de que já não eram cinquenta. Apenas quarenta e nove. Um desses robôs estourara o tampo dos miolos. E o que transparecera dos pensamentos secretos de Bartseh, afinal? Desejo por uma mulher e um “Heil Hitler”. Estaria muito enganado, cogitava Bond, se julgasse que, esquecendo o “Explorador da Lua”, fossem esses também os pensamentos dominantes dentro de mais quarenta e nove cabeças?
— Dr. Walter! Estou dando uma ordem!
A voz de Drax, cheia de uma ira controlada, interrompeu os pensamentos de Bond, enquanto permanecia tocando com os dedos a aresta condutora de uma das barbatanas de columbite da cauda do foguete.
— Voltem ao trabalho! Já perdemos tempo demais!
Os homens se espalharam, pressurosos, cada um absorvido em sua tarefa, e Drax aproximou-se de Bond, deixando Walter vagando, indeciso, sob a enorme bocarra do exaustor de jato do foguete.
Drax mostrava uma fisionomia tempestuosa.
— Maluco do inferno — praguejou ele. — Está sempre descobrindo complicações.
Depois, como se quisesse esquecer seu adjunto, acrescentou bruscamente para Bond:
— Venha até meu escritório. Vou-lhe mostrar o plano de voo. Depois iremos dormir.
Bond seguiu-o. Drax girou uma pequena maçaneta embutida na parede de aço, e uma porta estreita se abriu, com um silvo abafado. A um metro mais para dentro, havia outra porta também de aço, e Bond notou que ambas eram cercadas de borracha, tornando o cilindro estanque à entrada de ar. Antes de fechar a porta externa, Drax parou na soleira e apontou, na parede circular, um bom número de maçanetas, quase invisíveis e semelhantes à que ele utilizara.
— São as portas das oficinas: geradores elétricos, controle de combustível, lavatórios, armazéns de materiais... — Apontou a porta seguinte. — Aqui é a sala de minha secretária. — Fechou a porta externa, antes de abrir a segunda e, entrando em seu escritório, fechou a porta interna atrás de Bond.
Era um recinto severo, pintado de cinza-claro, onde se via uma ampla escrivaninha e diversas cadeiras de metal tubular, forradas de lona azul-marinho. O chão era atapetado em cinza. Havia ainda dois fichários verdes e um grande aparelho de rádio, metálico. Uma porta semiaberta deixava entrever parte de um banheiro ladrilhado. A escrivaninha estava disposta de frente para uma larga parede lisa, que parecia ser construída de vidro opaco. Drax encaminhou-se para a parede e baixou dois interruptores, na extremidade direita. A parede inteira ficou iluminada como tela de cinema, e Bond se defrontou com dois mapas, cada um de seis pés quadrados, ambos desenhados no próprio vidro.
O mapa da esquerda mostrava toda a região oriental da Inglaterra, desde Portsmouth até Hull, bem como as águas adjacentes, nas latitudes entre 50 e 55 graus. Do ponto vermelho, próximo a Dover, que representava a base de lançamento do “Explorador da Lua”, partia uma série de círculos concêntricos, representando, com intervalos de dez milhas, o raio de ação do projétil. Num ponto distante 80 milhas da base, entre as ilhas Fríseas e Hull, via-se um losango vermelho, desenhado em pleno oceano.
Drax fez um gesto para as intrincadas tábuas matemáticas e as colunas de leitura de bússolas, que enchiam o lado direito do mapa.
— Velocidades de vento, pressão atmosférica, cálculos de computador para os giroscópios — foi explicando ele. — Tudo calculado na base da velocidade e raio de ação do foguete, como constantes matemáticas. Recebemos diariamente as previsões meteorológicas fornecidas pelo Ministério da Aeronáutica, bem como as leituras efetuadas na atmosfera superior, cada vez que um jato da RAF alcança essa altitude. Todos os relatórios nos são transmitidos. Quando um avião atinge a altitude máxima, solta balões de hélio que podem subir ainda mais e nos fornecem novas leituras. A camada atmosférica chega até cinquenta milhas de altitude, aproximadamente. Depois das primeiras vinte, não existe já qualquer densidade que possa afetar o progresso do foguete. Voará quase em vácuo. Atravessar as primeiras vinte milhas é que constitui o principal problema. A atração da gravidade, claro, é outra preocupação. Walter poderá explicar-lhe todas essas coisas, se você estiver interessado. Haverá informações contínuas sobre o tempo, durante as últimas horas até sexta-feira. E então ajustaremos os giroscópios, pouco antes do lançamento. Por enquanto, Miss Brand colige as informações recebidas todas as manhãs e organiza um mapa de movimentos giroscópicos, para o caso de ser necessário.
Drax apontou para o segundo dos dois mapas. Era um diagrama do voo elíptico do foguete, desde o ponto de lançamento até seu alvo. Havia ainda mais colunas de números e cifras.
— Aí temos o registro de velocidade da Terra e seus efeitos na trajetória do foguete — explicou Drax. — A Terra estará girando para Leste, em relação ao voo do foguete. Esses fatores têm de ser conjugados com o outro mapa, e é da leitura final que sairão as instruções de voo. É um negócio bem complicado. Felizmente você não precisa compreender. Deixe isso para Miss Brand. E agora — disse, apagando as luzes da parede que ficou novamente lisa — deseja fazer alguma pergunta a respeito de seu trabalho? Não creio que haja muita coisa para você fazer. Já viu que tudo foi feito com a máxima segurança. O Ministério insistiu para que assim fosse, desde o início.
— Tudo me parece em ordem — disse Bond.
Examinou a fisionomia de Drax, em seguida. O olho bom fitava-o intensamente. Bond fez uma pausa.
— Acha que havia alguma coisa entre sua secretária e o Major Tallon?
Era uma pergunta clara, e o melhor seria fazê-la agora.
— É possível, — respondeu Drax sem constrangimento. — Ela é moça atraente. Eram forçados a conviver, constantemente, na companhia um do outro. De qualquer maneira, parece que Bartsch ficou alucinado por ela.
— Ouvi dizer que Bartsch fez continência e gritou: “Heil Hitler” antes de virar a arma contra a boca — disse Bond.
— Foi o que me contaram — confirmou Drax, sem o mínimo interesse. — E daí?
— Por que motivo todos os homens usam bigode? — indagou Bond, ignorando a pergunta de Drax.
Novamente teve a impressão de que sua pergunta exasperara o outro homem.
Drax soltou uma de suas risadinhas curtas e ladradas.
— Foi uma ideia que eu tive. Eles são difíceis de reconhecer nesses macacões brancos e com as cabeças raspadas. Por isto mandei que todos deixassem crescer os bigodes. A coisa se tornou quase um fetiche. Como na RAF, durante a guerra. Vê alguma coisa de inconveniente nisso?
— Claro que não. A princípio é um tanto.. . surpreendente. Eu teria pensado que números grandes colocados nas roupas, com uma cor diferente para cada turma, teria sido mais eficiente.
— Pois bem — replicou Drax, voltando-se em direção à porta como para finalizar a conversação. — Decidi-me pelos bigodes.
CAPITULO 13
DECISÃO FINAL
Na quarta-feira de manhã, Bond despertou cedo, na cama do homem morto.
Dormira pouco. Drax não dissera nada a caminho de volta para casa e lhe desejara um rápido boa-noite no fim da escada. Bond seguira pelo corredor atapetado até o ponto onde brilhava uma luz, vinda de uma porta aberta, e encontrara suas coisas ordenadamente arranjadas num confortável quarto.
O aposento era mobiliado com o mesmo gosto de tipo dispendioso que encontrara no andar térreo. Havia biscoitos e uma garrafa de Vichy (não era uma garrafa de Vichy com água da bica, verificou Bond) ao lado da cama.
Não se notavam sinais do ocupante precedente, a não ser uma pasta de couro contendo binóculos, na mesinha de cabeceira, e um arquivo de metal, trancado. Bond conhecia tudo sobre arquivos. Virou-o contra a parede, colocou a mão embaixo e encontrou a ponta do fecho que se projeta para baixo, quando a série de escaninhos de cima foi trancada. Uma pressão feita para cima soltou as gavetas uma por uma, e ele baixou suavemente a borda do arquivo para o chão, refletindo maldosamente que o Major Tallon não teria sobrevivido durante muito tempo no Serviço Secreto.
A gaveta de cima continha mapas de escala da base e seus edifícios, além de um mapa do Almirantado n° 1895, representando o Estreito de Dover. Bond colocou cada uma das folhas sobre o leito e examinou-as minuciosamente. Havia restos de cinza de um cigarro nas dobras do mapa do Almirantado.
Bond foi buscar sua caixa de ferramentas — uma caixa quadrada de couro que estava ao lado da cômoda. Examinou os números nas rodas da fechadura de segredo e, satisfeito por não terem sido mexidas, virou-as para o número de código. A caixa estava repleta de instrumentos. Bond escolheu um vaporizador de pó para impressões digitais e uma lente grande. Espalhou o pó fino e acinzentado, centímetro por centímetro, sobre toda a extensão da carta geográfica. Apareceu uma floresta de impressões digitais.
Examinando-as com a lente, chegou à conclusão de que pertenciam a duas pessoas. Isolou os dois melhores grupos, tirou uma Leica com um flash de dentro da pasta de couro e fotografou-os. Em seguida, examinou cuidadosamente com a lente os dois minúsculos sulcos no papel que o pó fizera aparecer .
Estes davam a impressão de serem duas linhas traçadas da costa para formar uma rota cruzando o mar. Sua direção era muito estreita, e as duas linhas pareciam originar-se da casa onde se encontrava Bond. De fato, poderiam indicar observações de algum objeto no mar, feitas de cada ala da casa.
As duas linhas não haviam sido traçadas com lápis, mas, presumivelmente, para evitar serem descobertas, com um estilete que mal sulcara o papel.
No ponto onde se encontravam, havia a sombra de uma interrogação, na linha correspondente à décima-segunda braça, cerca de cinquenta jardas distante do penhasco, numa direção reta da casa para o navio-farol South Goodwin.
Não havia mais nada para ser descoberto no mapa. Bond olhou o relógio. Vinte para a uma. Ouviu passos distantes no hall e o estalido de uma lâmpada sendo apagada. Num impulso, ergueu-se e, de mansinho, apagou as luzes do quarto, deixando apenas a de leitura, velada por um abajur e colocada à mesinha de cabeceira.
Ouviu os pesados passos de Drax aproximando-se da escada. Houve o estalido de outro interruptor e depois silêncio. Bond imaginava aquela cara grande, cabeluda, voltada para o corredor, olhando, escutando. Depois percebeu o rangido de uma porta, sendo aberta devagar e fechada da mesma forma. Esperou, visualizando os movimentos do homem que se preparava para dormir. Ouviu ainda o som abafado de uma janela que se abria, o ruído de trombeta, distante, de um nariz sendo assoado. Depois silêncio.
Bond concedeu mais cinco minutos a Drax e depois foi até o arquivo, abrindo suavemente as outras gavetas. Não havia nada na segunda e na terceira, mas a última estava repleta de arquivos arrumados em ordem alfabética. Eram os dossiês dos homens que trabalhavam na base. Bond puxou a série “A”, voltou para a cama e começou a ler.
Em cada um a fórmula era a mesma: nome por inteiro, endereço, data do nascimento, descrição, sinais particulares, profissão ou ofício depois da guerra, registro de tempo de guerra, sobre atitudes políticas e simpatias atuais, registro criminal, de saúde e sobre os parentes próximos. Alguns desses homens tinham mulher e filhos, cujas particularidades eram anotadas e, acompanhando cada dossiê, havia fotografias: de frente e de perfil, além das impressões digitais de ambas as mãos.
Duas horas e dez cigarros depois, Bond examinara todos eles e descobrira dois pontos de interesse geral. Primeiro, que todos os cinquenta homens pareciam ter levado uma vida sem mácula, sem o menor vestígio de ódio político ou criminoso. Aquilo lhe pareceu tão pouco verossímil, que resolveu encaminhar todos eles novamente à Estação D. para serem submetidos a um reexame completo na primeira oportunidade.
O segundo ponto era que nenhuma das caras das fotografias tinha bigode. Apesar da explicação de Drax, esse fato suscitou um segundo pequeno ponto de interrogação no espírito de Bond.
Ergueu-se da cama e trancou novamente tudo, colocando o mapa do Almirantado em um dos arquivos de sua pasta de couro. Girou a fechadura de segredo e enfiou a pasta bem para debaixo da cama, de modo que a mesma ficasse diretamente sob seu travesseiro no ângulo interno da parede. Depois, sem fazer barulho, lavou-se, escovou os dentes no banheiro anexo e escancarou a janela.
A lua ainda brilhava: como devia ter brilhado, pensou Bond, quando, despertado por algum ruído fora do comum, Tallon subira ao telhado, talvez somente há poucas noites, e vira, no meio do mar, o que tinha visto. Devia trazer os binóculos consigo, e Bond, lembrando-se, saiu da janela e apanhou-os. Eram binóculos muito possantes, de fabricação alemã, pilhagem da guerra, talvez, e o 7 X 50 nas chapas superiores revelaram que se tratava de binóculos para a noite. Depois então, o cauteloso Tallon devia ter caminhado de leve (mas não o suficiente) para a outra extremidade do telhado e novamente erguido os binóculos, calculando a distância da borda do penhasco até o objeto no mar, e do objeto até o Goodwin, navio-farol. Em seguida, devia ter voltado pelo mesmo caminho e, sem fazer ruído, tornado a entrar no quarto.
Bond viu Tallon, talvez pela primeira vez desde que estava na casa, trancar a porta cautelosamente, dirigir-se até o arquivo, retirar dali o mapa, ao qual mal lançara um olhar até então, e marcar sobre o mesmo, de leve, as linhas de sua direção, às pressas. Talvez tivesse olhado para ele durante longo tempo, antes de apor a pequenina interrogação ao seu lado.
E que teria sido então o objeto desconhecido? Impossível dizer. Um navio? Uma luz? Um ruído?
Fosse o que fosse, Tallon não devia ter visto. E alguém o tinha ouvido. Alguém havia adivinhado que ele vira, e esperara que Tallon saísse do quarto na manhã seguinte. Aí então aquele alguém viera ao seu quarto e dera uma busca. A carta marítima, provavelmente, nada revelara, mas vira os binóculos para noite em cima da janela.
Fora o bastante. E naquela noite, Tallon morrera.
Bond se controlou. Ia depressa demais, compondo um caso, baseado no mais tênue dos indícios. Bartsch matara Tallon, e Bartsch não fora o homem que ouvira o barulho, o homem que deixara as impressões digitais no mapa, o homem cujo dossiê Bond separara e guardara em sua pasta de couro.
O homem tinha sido o untuoso Krebs, a criatura do pescoço de minhoca. As impressões digitais eram suas. Durante um quarto de hora, Bond comparara as impressões do mapa com as impressas no dossiê de Krebs. Mas quem disse que Krebs ouvira um barulho, ou fizera qualquer coisa por causa disso? Bem, para começar, ele parecia mesmo um tipo intrometido. Tinha os olhos de um ladrão sem importância. Aquelas impressões no mapa haviam sido, positivamente, feitas depois que Tallon o estudara. Os dedos de Krebs cobriram os de Tallon em diversos pontos.
Entretanto, como poderia Krebs estar envolvido nessa história, com os olhos de Drax constantemente em cima dele? O assistente confidencial. Mas que dizer de Cícero, o empregado particular de toda confiança do Embaixador Britânico em Ankara, durante a guerra? A mão no bolso das calças pendendo por cima das costas da cadeira. As chaves do Embaixador. O cofre. Os segredos. O quadro era muito semelhante.
Bond sentiu um arrepio. Compreendeu então, de repente, que estivera de pé durante muito tempo em frente às janelas abertas e que já era tempo de dormir um pouco.
Antes de se deitar, pegou o coldre de ombro da cadeira, onde estava no meio das roupas despidas, e retirou a Beretta, colocando-a debaixo do travesseiro. Como defesa contra quem? Bond não sabia, mas sua intuição lhe dizia muito claramente que pairava o perigo no ar. O cheiro era insistente, apesar de ainda impreciso, e restringia-se apenas ao limiar de seu subconsciente. Na realidade, ele sabia que suas impressões se baseavam num determinado número de interrogações que se haviam materializado durante as últimas vinte e quatro horas: o enigma de Drax; o “Heil Hitler” de Bartsch; os estranhos bigodes; os cinquenta alemães de conduta impecável; a carta marítima; os binóculos de noite; Krebs.
Primeiro precisava comunicar suas suspeitas a Vallance. Depois explorar as possibilidades de Krebs. Em seguida, olhar as defesas do “Explorador da Lua” — o lado do mar, por exemplo. Finalmente, entrar em contato com essa pequena Brand e concordarem na elaboração de um plano para os próximos dois dias. Não havia muito tempo a perder.
Enquanto forçava o sono no cérebro transbordante de pensamentos, Bond imaginou o número sete no mostrador de um relógio e deixou a tarefa de acordar entregue às células ocultas de sua memória. Desejava estar fora de casa e no telefone com Vallance, o mais cedo possível. Se suas ações levantassem suspeitas, não ficaria desanimado. Um de seus objetivos era atrair para sua órbita as mesmas forças que envolveram Tallon, porque de uma coisa ele tinha quase certeza, o Major não morrera por amar Gala Brand.
O despertador extra-sensorial não falhou. Pontualmente, às sete horas, com a boca seca por causa dos muitos cigarros da noite anterior, esforçou-se por sair da cama e entrar num banho frio. Barbeara-se, gargarejara com um dentifrício forte e, agora, vestido num terno batido branco e preto, uma camisa azul-marinho de algodão, tipo Mares do Sul, gravata de tricô preto, caminhava levemente, mas não de modo furtivo, pelo corredor até as escadas, com a pasta de couro quadrada na mão esquerda.
Encontrou a garage no fundo da casa, e o motor do Bentley correspondeu à primeira pressão do arranque. Bond seguiu lentamente pela faixa de concreto sob o olhar indiferente das janelas encortinadas da casa e seguiu em frente, em prise, pelo caminho margeado de árvores. Seus olhos voltaram-se para a casa e confirmaram seu cálculo de que um homem de pé no telhado seria capaz de enxergar por cima do muro e ter uma visão da beira do penhasco e do mar mais adiante.
Não havia sinal de vida em torno do local onde se encontrava o “Explorador da Lua”. O concreto, já começando a brilhar ao primeiro sol da manhã, estirava-se vazio na direção de Deal. Tinha-se a impressão de um aeródromo recém-construído ou talvez, pensou, com suas três “coisas” diferentes de concreto, a cúpula de uma colmeia, a parede lisa de ferro e o cubo distante do ponto de disparo, cada qual lançando poços negros de sombra em sua direção, ali no sol matutino, como uma paisagem deserta de Dali, na qual três objets trouvés repousavam num acaso cuidadosamente calculado.
Lá fora, no mar, dentro do nevoeiro da manhã que prometia um dia quente, o navio-farol South Goodwin mal se delineava, difusa embarcação vermelha, casada para sempre com o mesmo ponto, e condenada, como um navio de cenário no palco de Drury Lane, a assistir ao diorama das ondas e nuvens navegarem atarefadamente para os bastidores, enquanto que ele, sem papéis, passageiros ou carga, continuava ancorado para sempre no ponto de partida que era também seu porto de destino.
Com intervalos de trinta segundos, buzinava sua triste queixa dentro do nevoeiro, uma prolongada nota dupla de trumpete, em cadência descendente. Um canto de sereia, pensou Bond, para repelir em vez de seduzir. Perguntava a si mesmo como os sete homens da tripulação suportariam agora o ruído, enquanto mastigavam carne de porco com feijão. Encolher-se-iam, quando marcava contracanto com a Housewife’s Choice, vindo a todo volume do rádio na hora do rancho? Mas era uma vida segura, foi a conclusão a que chegou Bond, apesar de ancorado nos portões de um cemitério.
Anotou mentalmente, para descobrir se esses sete homens tinham visto ou ouvido a coisa que Tallon marcara no mapa, em seguida saiu rápido por entre os postos de guarda.
Em Dover, parou diante do Café Royal, modesto restaurantezinho, com uma cozinha modesta porém capaz, como ele sabia há muito tempo, de preparar excelentes pratos de peixe e de ovos.
A dona, suíça-italiana, com o filho que a ajudava a dirigir a casa, recebeu-o como velho amigo, e ele pediu um prato de ovos mexidos com presunto e bastante café, recomendando que estivessem prontos em meia hora. Depois seguiu até o posto policial e fez uma chamada para Vallance, por meio da mesa de ligações da Scotland Yard. Vallance estava em casa, tomando o café da manhã. Ouviu sem comentários a conversa reservada de Bond, mas não expressou surpresa, quando este disse que não tinha tido oportunidade de falar mais intimamente com Gala Brand.
— Essa aí é uma garota inteligente. Se o Sr. K. anda tramando alguma coisa, com certeza ela tem uma ideia do que seja. E se T. ouviu um barulho no sábado à noite, ela pode ter ouvido também. Se bem que eu deva confessar que não se referiu a esse assunto.
Bond não disse nada sobre a recepção que tinha tido por parte do agente de Vallance.
— Vou falar com ela esta manhã e mandar-lhe-ei o mapa com o filme da Leica para que o senhor os examine. Vou dá-los ao Inspetor. Talvez um dos patrulheiros da estrada possa levar. É verdade, de onde T. telefonou quando chamou seu chefe na segunda-feira?
— Vou mandar verificar e depois lhe direi — disse Vallance. Mandarei também a Trinity House perguntar se a South Goodwin e os guardas-costeiros podem ajudar. Mais alguma coisa?
Bond respondeu:
— Não.
A linha passava por muitas mesas de ligação. Talvez, se tivesse sido M., ele tivesse insinuado mais alguma coisa. Pareceu-lhe ridículo falar com Vallance a respeito de bigodes e a atmosfera de perigo que ele sentira na noite anterior, e que a luz do dia dissipara. Aqueles policiais só queriam os fatos nus e crus. Eram melhores, refletiu, na solução de um crime, do que antecipá-los.
— Não, é só.
Desligou.
Sentiu-se mais alegre depois de uma excelente primeira refeição. Leu o Express e The Times e encontrou uma notícia sucinta sobre o inquérito do caso Tallon. O Express fizera muito escarcéu e muita exibição da fotografia da moça. Bond divertiu-se, ao verificar a neutra semelhança que Vallance conseguira apresentar. Decidiu que precisava tentar trabalhar com ela. Demonstraria toda confiança e lhe contaria tudo, fosse ela receptiva ou não. Talvez ela também tivesse suas suspeitas e intuições, porém tão vagas que as estava guardando consigo mesma.
Bond voltou rapidamente para a casa. Eram nove horas em ponto, e quando passou por entre as árvores na faixa de concreto, ouviu-se o lamento de uma sereia e, dos bosques por trás da casa, uma dupla fila de doze homens apareceu correndo num ritmo propositadamente igual, em direção à cúpula do foguete. Marcavam o tempo enquanto um deles tocava a campainha. A porta então se abriu, e eles entraram em fila, desaparecendo .
Raspe-se a superfície de um tedesco e encontrar-se-á a precisão — pensou Bond.
CAPITULO 14
DEDOS FORMIGANTES
Meia hora antes, Gala Brand esmagara a ponta do seu cigarro matutino, engolira o resto do café, saíra do quarto e se encaminhara para a base, com o aspecto perfeito de uma secretária particular. Trajava uma blusa branca imaculada e uma saia azul-marinho pregueada.
Pontualmente, às oito e meia, estava em seu escritório. Havia um monte de telimpressos do Ministério da Aeronáutica em cima da mesa, e sua primeira ação foi transferir um resumo de seus conteúdos para um mapa meteorológico, entrar pela porta de comunicação no escritório de Drax, e pregar o mapa num quadro pendente no ângulo da parede ao lado do vidro liso. Em seguida, apertou o interruptor que iluminava o mapa de parede, fez alguns cálculos, baseada nas colunas de números reveladas pela luz, e anotou o resultado no diagrama que prendera ao quadro.
Fizera isto com os dados do Ministério da Aeronáutica, que se tornavam cada vez mais exatos, à medida que a data do lançamento experimental se aproximava, todos os dias, desde que a base terminara, e a construção do foguete se iniciara dentro dela. Tornara-se tão perita, que agora sabia de cor as direções do giroscópio para quase todas as variações de temperatura em diferentes altitudes.
De modo que ainda ficava mais irritada quando Drax não demonstrava aceitar seus cálculos. Todos os dias quando, às nove horas, pontualmente, as campainhas de aviso soavam, e ele descia a íngreme escadaria de ferro para entrar em seu escritório, seu primeiro gesto era chamar o insuportável Dr. Walter, para que, juntos, estudassem novamente todas as suas anotações, transcrevendo os resultados no fino caderninho de notas que Drax trazia no bolso traseiro das calças. Sabia que aquilo era uma rotina invariável e se cansara de observá-la através de um orifício disfarçado que fizera, de forma a poder enviar a Vallance um relatório semanal dos visitantes de Drax. O orifício ficava na parede fina que separava os dois escritórios. O método era amadorista, porém eficiente, e ela lentamente formara um quadro completo da rotina diária, que acabara por achar demasiado irritante. Era irritante por duas razões. Significava que Drax não confiava em seus algarismos e solapava sua oportunidade de tomar parte, da maneira mais modesta que fosse, no lançamento final do foguete.
Era natural que, no decorrer dos meses, tivesse ficado tão integrada em seu disfarce quanto em sua verdadeira profissão. Era uma coisa fundamental para a exatidão absoluta dêsse disfarce que sua personalidade ficasse tão verdadeiramente oculta quanto possível. E agora, enquanto espionava, apalpava e farejava o vento em torno de Drax, para relatar ao seu Chefe em Londres, sentia-se profundamente interessada pelo sucesso do “Explorador da Lua” e tornara-se tão dedicada ao seu serviço quanto qualquer outro membro da base.
O resto de seus Ideveres como secretária particular de Drax era intoleràvelmente monótono. Todos os dias chegava um enorme volume de correspondência dirigida a Drax em Londres e enviada para lá pelo Ministério. Naquela manhã, encontrara o monte habitual de mais ou menos cinquenta cartas aguardando em cima da escrivaninha. Eram sempre de três tipos. Cartas de pedidos, de pessoas maníacas pelo foguete, cartas comerciais do corretor de Drax e de outros agentes comerciais. Para estas Drax ditava respostas breves, e o resto do dia ela se ocupava em datilografar e arquivar.
De sorte que era natural o fato de sua única obrigação relacionada com a operação do foguete destacar-se extraordinàriamente entre os monótonos deveres. Naquela manhã, ao conferir e reconferir seu plano de voo, estava mais que decidida a fazer aceitarem seus cálculos para O Dia. Entretanto, como muitas vezes lembrava a si mesma, talvez não houvesse razão para que não os aceitassem. Talvez os cálculos diários de Drax e Walter para anotação no caderninho preto não passassem de nova verificação de seus próprios números. Era bem verdade que Drax nunca tinha pedido seu boletim meteorológico ou as direções do giroscópio por onde os calculava. E quando um dia ela perguntara diretamente se seus cálculos sobre o tempo estavam corretos, ele respondera com evidente sinceridade:
— Excelentes, minha cara. Muito valiosos. Não poderíamos arranjar-nos sem eles.
Gala Brand voltou para sua sala e começou a abrir as cartas. Só mais dois planos de voo para quinta-feira e sexta, e então, baseados em seus cálculos ou noutros, nos guardados dentro do bolso de Drax, o giroscópio seria finalmente ajustado, e seria apertado no ponto de disparo.
Distraidamente, Gala olhou para as unhas e depois estendeu as duas mãos, com as costas voltadas em sua direção. Quantas vezes, durante seu adestramento na Escola da Polícia, fora mandada para fora com outras alunas e recomendada a não voltar sem um caderno de notas, um estojo de maquilagem, uma caneta-tinteiro ou mesmo um relógio de pulso? Quantas vezes, durante os cursos, o instrutor não se voltara, segurando-a pelo pulso e dizendo: “Vamos, vamos, senhorita. Isto assim não vai de jeito nenhum. Dá até a impressão de um elefante procurando açúcar no bolso do tratador. Tente novamente.”
Friamente, flexionou os dedos e depois, tomando uma resolução, voltou à pilha de cartas.
Quando faltavam poucos minutos para as nove, as campainhas de alarma soaram, e ela ouviu Drax chegar ao escritório. Pouco depois ouviu-o abrir as portas duplas novamente e chamar Walter. Em seguida, veio o habitual murmúrio de vozes cujas palavras eram abafadas pelo leve chiar do ventilador.
Gala arrumou as cartas em três pilhas e sentou-se inclinada para a frente, os nervos relaxados, os cotovelos descansando na escrivaninha e o queixo repousando na mão esquerda.
Comandante Bond. James Bond. Evidentemente, um jovem convencido, como tantos outros do Serviço Secreto. E porque tinha sido enviado em vez de alguém com quem pudesse trabalhar, um de seus amigos da Seção Especial ou mesmo uma pessoa do M15? A mensagem do Comissário-Assistente dizia que não havia mais ninguém disponível assim de repente, que ele era um dos astros do Serviço Secreto, que desfrutava da mais absoluta confiança da Seção Especial e tinha as bênçãos do M15. Até mesmo o Primeiro-Ministro lhe dera permissão para agir somente nesta missão dentro da Inglaterra. Mas de que poderia adiantar, em face do pouco tempo que restava? Ele, provavelmente, atirava bem e falava idiomas estrangeiros, além de executar uma série de truques que poderiam ser úteis no exterior. Entretanto, que poderia fazer de bom aqui, sem lindas espiãs para namorar. Porque bonitão ele era, incontestàvelmente. (Gala Brand procurou automaticamente o estojo de maquilagem e bateu a esponjinha de pó de arroz no nariz.) Bem no gênero de Hoagy Carmichael, sob certo aspecto. Aquele cabelo preto caindo em cima da sobrancelha direita. Mais ou menos o mesmo tipo ósseo. Mas havia um quê de crueldade na boca, e os olhos eram frios. Cinzentos ou azuis? Tinha sido difícil verificar a noite passada. Bem, de qualquer maneira, ela o pusera em seu lugar e lhe mostrara que não estava impressionada por rapazes atraentes do Serviço Secreto, por mais românticos que parecessem. Havia homens igualmente belos na Seção Especial, e estes eram detetives de verdade, não apenas pessoas que Phillips Oppenheim idealizara, donos de carros velozes com bandas douradas e coldres de ombro. Ah, isto ela descobrira com certeza, e até esbarrara nele para ter certeza.
Pois bem, supunha que devia demonstrar, de uma forma ou de outra, que trabalhava com ele, apesar de só Deus saber em quê. Se ela estivera ali desde quando o local fora construído sem descobrir coisa alguma, o que poderia esse homem, Bond, esperar descobrir em dois dias? E o que havia para ser descoberto? Naturalmente, existiam uma ou duas coisas que ela não conseguia compreender. Deveria falar-lhe em Krebs, por exemplo? A primeira coisa a fazer era providenciar para que ele não lhe estragasse o trabalho, fazendo qualquer tolice. Teria de ser fria, firme e extremamente cautelosa. Mas isto não queria dizer, chegou à conclusão no momento em que a cigarra tocava e ela apanhava as cartas e o caderno de taquigrafia, que não pudesse ser amistosa em suas relações. Estritamente dentro de suas próprias condições, é claro.
Havendo tomado esta segunda decisão, abriu a porta de comunicação e entrou no escritório de Sir Hugo Drax.
Ao voltar para sua sala, meia hora depois, encontrou Bond sentado em sua cadeira com o Almanaque Whitaker aberto na escrivaninha diante dele. Apertou os lábios, quando Bond se levantou e desejou-lhe um feliz bom dia. Gala baixou a cabeça rapidamente, rodeou a escrivaninha e sentou-se. Afastou cuidadosamente o Whitaker e colocou as cartas e o caderno em seu lugar.
— Devia ter mais uma cadeira para as visitas — disse Bond com um sorriso que ela definiu como impertinente. — E alguma coisa melhor para se ler do que livros de referências.
A moça ignorou as observações.
— Sir Hugo deseja vê-lo. Eu ia agora mesmo ver se já havia se levantado.
— Mentirosa. Você me ouviu passar às sete e meia. Eu a vi espiando entre as cortinas.
— Não fiz semelhante coisa — retrucou Miss Brand indignada. — Por que haveria de estar interessada num carro que passava?
— Eu disse que você ouviu o carro — disse Bond. Insistiu em sua vantagem. — E, por falar nisso, acho que não deve coçar a cabeça com o lápis quando está tomando ditado. Nenhuma das melhores secretárias particulares faz tal coisa.
Bond olhou de modo significativo para um ponto da porta de comunicação. Depois sacudiu os ombros.
As defesas de Gala caíram. Diabo de homem, pensou. Endereçou-lhe um sorriso relutante.
— Ora. Vamos parar com isto. Eu não posso passar a manhã inteira brincando de adivinhação. Ele quer nos ver e não gosta de esperar.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação, abrindo-a. Bond seguiu-a, fechando depois a porta.
Drax estava de pé, olhando o mapa de parede iluminado. Voltou-se, quando os dois entraram.
— Ah, você está aqui — disse com um olhar firme para Bond. — Pensei que talvez nos tivesse deixado. Os guardas anotaram sua saída às sete e meia da manhã de hoje.
— Precisei dar um telefonema — explicou Bond. — Espero não ter incomodado ninguém.
— Existe um telefone em meu estúdio — ajuntou Drax, conciso. — Tallon achava que servia muito bem.
— Ah, pobre Tallon — disse Bond sem nenhuma inflexão particular.
Notara um quê de autoritário na voz de Drax que o desagradara bastante, e isto fizera com que desejasse instintivamente desarmá-lo. Nessa vez foi bem sucedido.
Drax lançou-lhe um olhar duro, que disfarçou com um risinho curto, latido e um sacudir de ombros.
— Faça como melhor lhe agradar. Você tem seu trabalho para fazer. Contanto que não perturbe as rotinas daqui. Deve-se lembrar — acrescentou mais amável — de que todos os meus homens estão nervosos ao extremo agora, e eu não posso inquietá-los com misteriosas movimentações. Espero que não deseje fazer-lhes muitas perguntas hoje. Eu preferia que não tivessem mais nada com que se preocupar. Ainda não se recuperaram do que aconteceu segunda-feira. Miss Brand poderá informá-lo a respeito de tudo que diz respeito a eles, e creio que todos os dados arquivados acham-se no quarto de Tallon. Já os examinou?
O arquivo não tem chave — respondeu Bond, dizendo a verdade.
— Desculpe, a culpa é minha — disse Drax. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta da qual tirou um pequeno molho de chaves, e entregou-o a Bond.
— Devia ter-lhe entregado isto a noite passada. O Inspetor que tratou do caso pediu-me lhe entregasse. Desculpe.
— Muito obrigado — disse Bond por sua vez. Depois fez uma pausa.
— Diga-me uma coisa, há quanto tempo Krebs trabalha com o senhor?
Fez a pergunta obedecendo a um impulso. Houve um momento de silêncio na sala.
—Krebs? — repetiu Drax, pensativo.
Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se. Estendeu a mão para o bolso da calça e puxou um maço de cigarros de ponta de cortiça. Seus dedos grosseiros lutaram com o envólucro de celofane. Tirou um cigarro e meteu-o na boca, sob a franja do bigode avermelhado, acendendo-o depois.
Bond mostrou-se surpreso.
— Eu não sabia que se podia fumar aqui — observou, tirando sua própria carteira do bolso.
O cigarro de Drax, minúsculo tubo branco no meio da caraça vermelha, subia e descia enquanto ele respondia sem tirá-lo da boca.
— Aqui não há perigo. Estas salas são à prova de ar. As portas são forradas com borracha. A ventilação é separada . Precisei colocar as oficinas e geradores apartados da cúpula e, de qualquer maneira — seu lábios sorriram em torno do cigarro — preciso dar um jeito para fumar.
Drax tirou o cigarro da boca e olhou-o. Parecia estar tomando uma resolução.
— Você estava me interrogando a respeito de Krebs. Pois bem, cá entre nós, não confio inteiramente nesse camarada — declarou fitando Bond com uma expressão significativa.
Levantou a mão num gesto de quem se desculpa.
— Nada de definido, naturalmente, ou eu já o teria mandado embora, mas encontrei-o espionando pela casa, e uma vez apanhei-o em meu estúdio, remexendo meus papéis particulares . Ele apresentou uma explicação perfeita e deixei-o sair, prevenindo-o. Contudo, para ser franco, tenho minhas suspeitas a respeito do homem. Evidentemente, ele não pode fazer mal algum. Faz parte do pessoal da casa, e nenhum deles tem licença de entrar aqui, mas — Drax fitou Bond francamente, dentro dos olhos — eu devia ter-lhe dito que se concentrasse nele. Foi muita vivacidade sua, haver observado qualquer coisa no homem, tão depressa — acrescentou com respeito. — Que foi que o levou a isto?
— Nada de extraordinário. Ele tem um aspecto inquieto. Mas o que o senhor diz é interessante, e eu não deixarei de estar de olho nele.
Voltou-se para Gala Brand, que permanecera em silêncio desde o momento em que entraram na sala.
— Qual sua opinião a respeito de Krebs, Miss Brand? — perguntou, polidamente.
A moça respondeu, dirigindo-se a Drax.
— Não entendo muito dessas coisas, Sir Hugo, — disse com modéstia e um quê de impulsivo que Bond admirou.
— Porém não confio nele de jeito nenhum. Não tinha intenção de lhe contar, mas ele andou rondando meu quarto, entrou lá, abriu cartas etc. Tenho certeza disso.
Drax mostrou-se chocado.
— Foi mesmo?
Pôs o cigarro no cinzeiro e extinguiu os fragmentos acesos, um por um.
— Deixe-o comigo — falou sem levantar os olhos.
CAPÍTULO 15
JUSTIÇA RUDE
Houve um momento de silêncio na sala durante o qual Bond refletiu como era estranho que as suspeitas recaíssem tão de repente e unanimemente sobre o mesmo homem. Isto, por acaso, libertaria automaticamente os outros? Krebs não poderia ser membro de uma quadrilha? Ou trabalharia por conta própria e, nesse caso, com que objetivo? E que relação haveria entre suas espionagens e as mortes de Tallon e Bartsch?
Drax quebrou o silêncio.
— Bem, parece que chegamos a um ponto de acordo — disse, olhando Bond, à procura de confirmação. Este baixou a cabeça, num gesto cauteloso.
— Tenho mesmo de deixá-lo por sua conta. De qualquer forma, providenciaremos para que se conserve bem afastado da base. Aliás, vou levá-lo comigo amanhã para Londres. Pormenores de última hora deverão ser combinado com o Ministério, e Walter não pode sair daqui. Krebs é o único homem capaz de executar o serviço de um ajudante-de-ordens. Isto o conservará fora de qualquer complicação. Até lá temos todos de mantê-lo sob vigilância. A não ser, naturalmente, que você queira prendê-lo já, trancando-o à chave e cadeado. Eu preferia que não. Não desejo perturbar mais a equipe.
— Não será necessário — disse Bond. — Ele conta com alguns amigos particulares entre os outros homens?
— Nunca o vi falando com nenhum, exceto Walter e o pessoal de casa — disse Drax. — Calculo que se considera superior aos outros. Pessoalmente, não acredito que exista muita maldade nesse camarada, do contrário não o teria conservado. Ele fica sozinho em casa o dia inteiro, e com certeza é um desses sujeitos que gostam de bancar o detetive e meter o nariz nos negócios dos outros. Que diz você? Talvez pudéssemos deixar as coisas neste pé?
Bond fez que sim, guardando seus pensamentos para si mesmo.
— Pois então — continuou Drax, feliz por deixar de lado um assunto desagradável e voltar para os negócios. — Temos outras coisas para conversar. Ainda nos restam dois dias, e é melhor falar-lhe sobre o programa.
Ergueu-se da cadeira e mediu pesadamente a sala em largas passadas, por trás da escrivaninha:
— Hoje é quarta-feira. À uma hora a base será fechada para receber combustível. Isto será supervisionado pelo Dr. Walter, por mim e mais dois homens do Ministério. Para a eventualidade de qualquer coisa sair errada, uma câmara de televisão registrará tudo que fizermos. E então, se houver uma explosão, nossos sucessores saberão como agir melhor na próxima vez — finalizou com um curto riso ladrado. — Se o tempo permitir, o telhado será aberto hoje à noite para deixar a fumaça sair. Meus homens montarão guarda em vigias de dez jardas de intervalo, até a distância de cem jardas a partir da base. Haverá três homens armados na praia, do lado oposto ao túnel exaustor no penhasco. Amanhã de manhã a base será novamente aberta até o meio-dia para uma verificação final e, a partir desse instante, exceto a disposição do giroscópio, o “Explorador da Lua” estará pronto para partir. Os guardas ficarão permanentemente vigiando toda a base. Na sexta-feira pela manhã eu examinarei pessoalmente o ajustamento do giroscópio. Os homens do Ministério tomarão conta do ponto de disparo, e a RAF do radar. A BBC enviará seus caminhões, que ficarão atrás do ponto de disparo, e as irradiações começarão às onze e quarenta e cinco.
Ao meio-dia em ponto apertarei o pistão, um sinal de rádio passará por um circuito elétrico e — Drax sorriu abertamente — nós veremos o que vamos ver.
Fez uma pausa, mexendo no queixo:
— Vejamos agora o que mais? Ah, sim. A navegação será banida da área orbital desde a meia-noite de quinta-feira. A Marinha providenciará uma patrulha nos limites da área durante toda a manhã. Haverá um comentarista da BBC num dos navios. O Ministério do Abastecimento mandará técnicos que ficarão num navio de salvamento com um aparelho de televisão para a profundidade do mar, e depois que o foguete aterrissar, tentarão recuperar os restos. Talvez você se interesse em saber — continuou, esfregando as mãos numa alegria quase infantil, — que um mensageiro do Primeiro-Ministro trouxe a notícia muito alvissareira de que não só estará reunido o Gabinete para ouvir a irradiação, mas o Palácio também escutará o lançamento.
— Ótimo — disse Bond, satisfeito pelo outro.
— Obrigado. Agora quero ter absoluta certeza de que você está satisfeito com as medidas de segurança que tomei na própria base. Não creio que seja necessário nos preocuparmos com o que se passar do lado de fora. A RAF e a polícia parecem estar executando um serviço muito completo.
— Tudo parece ter sido providenciado — disse Bond.
— Não creio que me reste muita coisa para fazer no tempo que ainda falta.
— Nada que eu me lembre — concordou Drax. — Exceto nosso amigo Krebs. Esta tarde ele permanecerá na camioneta da televisão tomando notas, de modo que estará fora de qualquer trapalhada. Por que você não vai dar uma olhada na praia, na base do penhasco, enquanto ele está fora de ação? este é o único ponto fraco que eu posso lembrar. Muitas vezes pensei que se alguém quisesse penetrar na base, tentaria passar pela cavidade exaustora. Leve Miss Brand. Quatro olhos, etc, e ela não poderá mesmo usar seu escritório até amanhã de manhã.
— Está bem — concordou Bond.
— Eu gostaria de dar uma olhada no lado do mar, depois do almoço, e se Miss Brand não tiver nada de melhor para fazer...
Voltou-se para ela com as sobrancelhas erguidas. Gala Brand baixou os olhos.
— Claro, se Sir Hugo desejar — disse sem entusiasmo.
Drax esfregou as mãos.
— Então está combinado. E agora preciso voltar a trabalhar. Miss Brand, quer fazer o favor de pedir ao Dr. Walter que venha aqui, se estiver livre? Nós nos veremos na hora do almoço — disse a Bond, despedindo-o.
Este fez com a cabeça que sim.
— Acho que vou caminhar até a cúpula e dar uma olhadela no ponto de disparo — falou sem saber direito porque mentia. Virou-se e seguiu Gala Brand através das portas duplas e depois até a base do cilindro.
Enorme serpente negra de fios de borracha se retorcia sobre o brilhante chão de aço, e Bond observou a moça escolher o caminho por entre suas voltas até onde se encontrava Walter, sozinho. Olhava a boca do tubo do combustível ser levantada para onde um guindaste, esticado até a soleira de uma porta de acesso, na metade do foguete, indicava os principais tanques de combustível.
A moça disse qualquer coisa a Walter e depois ficou olhando para cima, enquanto o tubo ia sendo delicadamente manipulado para o interior do foguete.
Bond achou que ela parecia muito inocente, ali de pé, com os cabelos castanhos soltos e a curva da garganta cor de marfim imergindo na blusa branca e simples. Com as mãos cruzadas nas costas, contemplando embevecida os faiscantes cinquenta pés do “Explorador da Lua”, poderia ser tomada por uma colegial mirando uma árvore de Natal — exceto pelo impudente orgulho dos seios atrevidos, levantados pela cabeça e os ombros jogados para trás.
Bond sorriu consigo mesmo ao chegar ao pé da escada de ferro e começar a subir. Aquela moça inocente, desejável, lembrou a si próprio, é uma policial extremamente competente. Sabe como desferir pontapés e onde; pode quebrar meu braço, provavelmente mais depressa e com mais facilidade do que eu poderia quebrar o dela, e pelo menos metade de seu ser pertence à Seção Especial da Scotland Yard. Naturalmente, refletiu, baixando os olhos a tempo de vê-la seguir o Dr. Walter até o escritório de Drax, existe sempre a outra metade.
Lá fora, o brilhante sol de maio parecia particularmente dourado depois do branco azulado dos arcos, e Bond sentia-o quente nas costas ao caminhar deliberadamente pelo concreto em direção à casa. O apito de nevoeiro do Goodwin estava silencioso, e a manhã tão calma que ele podia ouvir as batidas rítmicas dos motores de um navio, quando este passava por Inner Leads, entre o Goodwin e a praia, a caminho do Norte.
Aproximou-se da casa, protegido pelo largo muro contra o vento, e então, rapidamente, atravessou as poucas jardas até a porta da frente, sem produzir o menor ruído com os sapatos de crepe-sola. Abriu a porta, deixou-a escancarada e caminhou de leve para o háll onde se pôs à escuta. Ouviu o rumor das manhãs de verão; uma abelha batendo de encontro à vidraça de uma das janelas e um bulício confuso e distante nas barracas atrás da casa. Fora isto, o silêncio era profundo, cálido e tranquilizante .
Bond caminhou cautelosamente através do hall e pelas escadas acima, assentando os pés inteiros no chão e usando as extremidades dos degraus onde havia menos probabilidade de a madeira estalar. Não se ouvia barulho no corredor, mas Bond viu que sua porta, lá no fim do mesmo, estava aberta. Retirou o revólver da axila e foi seguindo depressa pela passagem atapetada.
Krebs estava de costas para ele. Achava-se ajoelhado no meio do quarto com os cotovelos no chão. Suas mãos se encontravam nas rodas do fecho de segredo da pasta de couro de Bond. Toda sua atenção focalizava-se no estalido das linguetas do fecho.
O alvo era tentador, e Bond não hesitou. Seus dentes apareceram num sorriso cruel, deu dois passos rápidos para dentro do quarto e mandou o pé com violência.
Toda sua força se concentrava na ponta do sapato, e seu equilíbrio e tempo foram perfeitos.
Um grito de gralha partiu de Krebs quando, como a caricatura de um sapo pulando, saltou por cima da pasta de Bond mais ou menos um metro adiante, batendo na frente da cômoda de mogno. Sua cabeça foi de encontro ao centro com tanta fôrçia, que a pesada peça dançou na base. O grito foi abruptamente interrompido, e ele tombou esticado e inerte sobre o tapete, ali permanecendo.
Bond ficou olhando e esperando ouvir o som de passos apressados, mas o silêncio continuou a reinar dentro da casa. Passou por cima do corpo, curvou-se sobre ele e ajeitou-o de costas. O rosto em torno do borrão do bigode amarelo estava pálido e um pouco de sangue escorria de um corte no alto da fronte. Os olhos continuavam fechados, e a respiração normal.
Bond ajoelhou-se num lado só e começou a dar uma busca minuciosa em todos os bolsos do terno alinhado, cinzento, de listas fininhas, que o homem trajava, colocando desapontado o magro conteúdo no tapete ao lado do corpo. Não havia caderninhos de nota nem papéis. Os únicos objetos de interesse eram um molho de chaves-mestras, uma faca de mola com uma lâmina de estilete bem amolada e uma espécie de cassetete de couro preto em forma de trouxa. Bond guardou essas coisas no bolso, foi até a mesinha de cabeceira e pegou a garrafa intacta de água de Vichy.
Foram necessários cinco minutos para fazer Krebs voltar a si e fazê-lo sentar-se com as costas apoiadas na cômoda. Mais cinco para que recuperasse a voz. Pouco a pouco a cor foi voltando-lhe ao rosto e a astúcia aos olhos.
— Não respondo perguntas a não ser a Sir Hugo — declarou quando Bond começou o interrogatório. — Você não tem o direito de me fazer perguntas. Eu cumpria meu dever.
Sua voz era mal-humorada e segura de si.
Bond segurou a garrafa vazia de Vichy pelo gargalo.
— Refuta novamente. Do contrário, eu lhe bato com isto até quebrar, e depois usarei o gargalo para alguma cirurgia plástica. Quem lhe mandou revistar meu quarto?
— Leck mich am Arsch — Krebs cuspiu o insulto obsceno na cara de Bond.
Este curvou-se e vibrou-lhe violenta pancada nas canelas.
O corpo de Krebs dobrou-se mas, quando Bond tornou a levantar o braço, ergueu-se subitamente do chão e mergulhou por baixo da garrafa que descia. O golpe pegou-o rijo no ombro, porém não lhe cortou o ímpeto, e ele se encontrou do outro lado da porta, já no meio do corredor, antes de Bond partir em sua perseguição.
Bond parou então do lado de fora da porta e observou a figura ligeira desaparecer pelas escadas, fora de suas vistas. Em seguida, o rinchar das solas de borracha descendo às pressas as escadas se fez ouvir até atravessar o hall. Bond riu abruptamente para si mesmo, voltou para o quarto e fechou a porta. Além de quase arrebentar a cabeça do sujeito, tudo indicava que não arrancaria nada dele. Animal astucioso. Seus ferimentos não poderiam ter sido assim tão maus, no fim das contas. Bem, caberia a Drax castigá-lo. A não ser, naturalmente, que Krebs estivesse executando suas ordens.
Pondo em ordem a confusão do seu quarto, Bond sentou-se na cama e olhou a parede do lado oposto com olhos que nada viam. Não tinha sido apenas o instinto que o levara a dizer a Drax que iria até o ponto do tiro, em vez de voltar para a casa. Passara-lhe seriamente pela ideia o fato de que a espionagem de Krebs era feita por ordem de Drax e que este organizava seu próprio sistema de segurança. Entretanto, de que maneira isto se entrosava com as mortes de Tallon e Bartsch? Ou o duplo assassínio teria sido uma coincidência sem nenhuma relação com as marcas do mapa e as impressões digitais de Krebs?
Como que chamado pelos seus pensamentos, bateram à porta, e o mordomo entrou. Vinha seguido por um sargento da polícia, com o uniforme de patrulheiro de estrada, que fez continência e entregou um telegrama a Bond. Bond levou-o até a janela. Vinha assinado: Baxter, que queria dizer Vallance, e dizia:
PRIMEIRA CHAMADA VEIO DA CASA SEGUNDO LUGAR NEVOEIRO EXIGIU FUNCIONAMENTO BUZINA DE NEVOEIRO DE MODO QUE NAVIO FOI OUVIDO VÍRGULA NÃO OBSERVOU NADA TERCEIRO LUGAR SUA ÁREA SUSPEITA FICA MUITO PERTO PRAIA ASSIM FORA DAS VISTAS DOS ÚLTIMOS PONTOS DOS GUARDA-COSTAS DE SAINT MARGARET OU DEAL.
— Obrigado — disse Bond. — Não tem resposta.
Depois de fechar a porta, chegou o isqueiro aceso ao telegrama e depois deixou-o cair na lareira, reduzindo os restos queimados a pó com a sola do sapato.
Dali nada mais se aproveitava, exceto que a chamada de Tallon para o Ministério poderia realmente, ter sido ouvida por alguém da casa, o que teria resultado na busca em seu quarto, que, por sua vez, teve como consequência a morte do major. Mas que dizer de Bartsch? Se tudo aquilo fazia parte de uma coisa muito maior, como poderia ser ligada a um atentado de sabotagem ao foguete? Não seria muito mais simples supor que Krebs era um espião nato, ou ainda mais provável, que estivesse trabalhando para Drax, que parecia ser meticulosamente cônscio da necessidade de segurança e que podia também querer certificar-se da lealdade de seu secretário, de Tallon, e, sem dúvida, depois do encontro no Blades, de Bond? Não seria agir justamente como o chefe (e Bond conhecera alguns que se adaptariam perfeitamente ao tipo) de um projeto super-secreto durante a guerra, que reforçava a segurança oficial com seu próprio sistema de espionagem particular?
Se essa teoria fosse correta, restava apenas o duplo assassínio. Agora que Bond fora contagiado pela magia e tensão do “Explorador da Lua”, os fatos referentes aos tiros histéricos pareciam mais razoáveis. Quanto às marcas no mapa, poderiam ter sido feitas num dia qualquer do ano anterior; os binóculos para noite eram isto apenas: binóculos para noite, e os bigodes dos homens apenas uma quantidade de bigodes.
Bond sentou-se no quarto silencioso, remexendo as peças do quebra-cabeças, de modo que dois quadros inteiramente diversos se alternavam em sua mente. Num deles o sol brilhava, tudo estava límpido e inocente como o dia. O outro era uma confusão culposa de motivos, suspeitas obscuras e interrogações de pesadelo.
Quando o gongo soou para o almoço, ele ainda não sabia que quadro escolher. Para adiar a decisão, afastou do espírito tudo, menos as perspectivas da tarde que passaria sozinho com Gala Brand.
CAPITULO 16
UM DIA GLORIOSO
Era uma tarde maravilhosa, azul, verde e dourada. Quando deixaram a faixa de concreto passando pelo portão da guarda, perto do ponto de tiro, agora ligado à base de lançamento por um grosso cabo, pararam um momento à beira do grande penhasco calcário e ficaram olhando todo o trecho da Inglaterra onde César ancorara pela primeira vez dois mil anos atrás.
À esquerda, o tapete de grama verde, salpicado de pequeninas flores silvestres descia gradativamente para as longas praias de pedregulho de Walmer e Deal, que se curvavam para Sandwich e a baía. Mais além, os penhascos de Margate, surgindo brancos dentre a névoa distante que ocultava o North Foreland, guardavam a mancha cinzenta do aeródromo de Manston, acima do qual aviões a jato norte-americanos descreviam suas parábolas no céu. Em seguida, vinha a Ilha de Thanet e, fora do raio visual de ambos, a embocadura do Tâmisa.
A maré era baixa, e os Goodwins pareciam dourados e suaves dentro do azul cintilante do Canal mostrando apenas o conjunto de mastros e cordames que se esticavam para contar a verdadeira história. As letras brancas do navio-farol South Goodwin estavam fáceis de ler, e até o nome do navio irmão, mais para o norte, surgia branco contra o vermelho do casco.
Entre as areias da costa, ao longo do canal de doze braças do Inner Leads, havia meia dúzia de navios navegando pelo Downs. O som ritmado de seus motores destacava-se claramente dentro do mar calmo e, entre as areias cruéis e o contorno nítido da costa francesa, viam-se navios de todas as procedências rumando para seus destinos — navios de passageiros de linha regular, navios mercantes, rústicas chalupas holandesas e até uma esguia corveta correndo para o sul, talvez para Portsmouth. Até onde a vista alcançava, o lado oriental mais próximo da Inglaterra estava coalhado de embarcações, dirigindo-se para os horizontes distantes, para um porto nacional ou para o outro lado do mundo. Era um panorama cheio de colorido, excitação e romance, e as duas criaturas, ali na borda do penhasco, mantinham-se em silêncio enquanto permaneciam por algum tempo observando tudo.
A paz foi turbada por dois uivos de sirena, provenientes da casa, e eles se viraram, para olhar o mundo negro e feio de concreto, que haviam banido de seus espíritos. Enquanto olhavam, uma bandeira vermelha foi hasteada por cima da cúpula de lançamento, e duas ambulâncias da RAF, com as cruzes vermelhas nos lados, irromperam do renque de arvoredo, na direção do muro, e aí estacaram.
— Vai começar a operação combustível — disse Bond. — Vamos principiar nosso passeio. Nada haverá para ver e, se por acaso acontecesse alguma coisa, nós não sobreviveríamos, quase com certeza, no ponto em que nos encontramos.
A moça sorriu.
— É verdade. E eu já estou cheia de olhar para todo esse concreto.
Seguiram ambos pelo declive suave e, dentro em pouco, encontravam-se já longe do alcance de tiro e da alta cerca de arame.
O gelo da reserva de Gala derretia-se rapidamente ao sol.
A alegria exótica de sua toalete, uma blusa de algodão listrada de branco e preto, metida num cinto largo, pespontado à mão, também preto, encimava uma saia meio curta, rosa shocking, e o conjunto parecia contagiá-la. Era impossível, para Bond, reconhecer a mulher frígida e distante da noite anterior naquela que caminhava agora a seu lado, rindo e feliz de sua ignorância a respeito dos nomes de flores selvagens: a erva de S. Pedro, a fumaria e outras, em tons azuis, que rodeavam seus pés.
Triunfalmente, encontrou uma orquídea selvagem e colheu-a .
— Você não faria isso, se soubesse que as flores gritam quando são colhidas — disse Bond.
Gala olhou para ele.
— Que quer você dizer com isso? — perguntou, suspeitando um gracejo.
— Ah, você não sabia? — Bond sorriu, ao observar a reação de Gala. — Existe um professor hindu, chamado Bhose, que escreveu um tratado sobre o sistema nervoso das flores. Mediu a reação delas à dor. Chegou mesmo a registrar o grito de uma rosa, quando é colhida. Deve ser um dos sons mais lancinantes do mundo, não lhe parece? Pois eu ouvi algo de semelhante quando você colheu essa flor.
— Não acredito — disse Gala, olhando desconfiada para a raiz arrancada. — Mas, de qualquer maneira — acrescentou, maliciosa — eu jamais pensaria que você fosse capaz de sentimentalismos. As pessoas, no seu Serviço, não fazem de matar um ofício? E não são apenas flores. São pessoas.
— As flores não podem atirar em nós, também — disse Bond.
Gala olhou a flor.
— Agora você me fez sentir como se fosse uma criminosa. É muita maldade sua. Mas — confessou relutante — terei de descobrir essa história do hindu, e se você tiver dito a verdade, nunca mais apanharei uma flor enquanto viver. Que faço com esta? Você me fez sentir com as mãos sangrando completamente.
— Dê para mim. De acordo com você, minhas mãos já estão gotejando sangue. Um pouco mais não fará diferença.
A moça ofereceu-lhe a flor, e suas mãos se tocaram.
— Você poderá colocá-la no cano do revólver — falou, para disfarçar o instante do contato.
Bond riu:
— Quer dizer que os orifícios não servem só para decoração. Mas a minha é uma pistola automática, e eu deixei-a no quarto.
Enfiou o talo da flor numa das casas de sua camisa de algodão:
— Achei que um coldre de ombro chamaria um pouco a atenção sem o paletó para cobri-lo. Depois não acredito que ninguém vá mexer em meu quarto esta tarde.
Numa concordância tácita, eles se afastaram do momento de intimidade. Bond contou sua descoberta a respeito de Krebs e a cena do quarto.
— Foi bem feito para ele. Nunca confiei nesse homem. Mas o que é que diz Sir Hugo?
— Falei com ele antes do almoço — respondeu Bond.
—Entreguei-lhe a faca e as chaves de Krebs como prova. Ficou furioso e saiu imediatamente à procura do sujeito, resmungando de cólera. Quando voltou, me disse que Krebs parecia já se encontrar num estado deplorável e perguntou se eu não me dava por satisfeito ao saber que fora bem castigado. Repetiu toda aquela história de não querer perturbar sua equipe na última hora, etc. e tal. De modo que concordei em que fosse mandado de volta à Alemanha na próxima semana e que, enquanto isto, se considerasse preso sob palavra — sendo-lhe permitido apenas deixar o quarto vigiado.
Bond e sua companheira desceram um caminho íngreme do penhasco até a praia, virando à direita, para Royal Marine, em Deal. Caminharam em silêncio até chegarem a uma extensão de duas milhas de uma praia coberta de cascalho que, durante o tempo de maré baixa, corre entre os elevados penhascos brancos até a baía de Sta. Margarida.
Enquanto esmagavam lentamente as pedrinhas macias, Bond contou tudo que lhe passara pela cabeça desde o dia anterior. Não guardou nada. Relatou todos os passos tomados, as pistas falsas que seguira em cada um dos pontos de partida, não deixou nada por comentar, exceto uma tênue suspeita mal fundada e um amontoado de indícios que terminavam todos na mesma interrogação. . . onde estava o X da história? Onde achar um plano no qual os indícios se encaixassem? E sempre a mesma resposta: nada do que Bond sabia ou suspeitava parecia ter qualquer relação concebível com a segurança contra a sabotagem do “Explorador da Lua”. Isto, no entanto, quando tudo fora dito e feito, era a única coisa com que ele e a moça tinham que ver. Não com a morte de Tallon e Bartsch, ou com o ordinário Krebs, mas somente com a proteção de todo o projeto relacionado com o “Explorador da Lua” contra seus possíveis inimigos.
— Não é verdade? — finalizou Bond.
Gala parou e ficou um momento olhando por entre as rochas e algas a calma cintilação das ondas do mar. Estava suada e ofegante depois da caminhada difícil pelo caminho de cascalhos. Pensava como seria maravilhoso tomar um banho de mar — voltar por um momento aos dias da infância à beira-mar, antes de sua vida ter sido presa nesta estranha profissão, cheia de emoções decepcionantes e tensões nervosas. Olhou o rosto moreno e cruel do homem ao seu lado. Será que teria momentos de anseio pelas coisas simples e calmas da vida? Com certeza não. Gostava de Paris, Berlim e New York, trens, aviões, comida cara e, sim, certamente, de mulheres caras.
— Então? — perguntou Bond, conjeturando se ela ia apresentar algum indício que ele não percebera. — Que é que acha?
— Desculpe. Eu estava sonhando acordada. Não, eu acho que você tem razão. Estou aqui desde o princípio e, apesar de ter notado coisinhas estranhas de vez em quando, fora os tiros resultando em duas mortes, claro, não vi absolutamente nada de incorreto. Todos os componentes da equipe, de Sir Hugo para baixo, estão de corpo e alma dedicados ao foguete. Vivem unicamente para isso, e tem sido maravilhoso ver tudo se desenvolver. Os alemães são trabalhadores ao extremo — posso bem acreditar que Bartsch tenha perecido pela tensão exagerada dos nervos — gostam de ser dirigidos por Sir Hugo, e ele gosta de dirigi-los. Eles adoram-no. Quanto à segurança, o local está sólido e bem guarnecido. Tenho certeza de que se alguém quisesse se aproximar do “Explorador da Lua” seria feito em pedaços. Concordo com você a respeito de Krebs e que ele, provavelmente, estivesse agindo sob as ordens de Drax. Foi por isto que não me dei o trabalho de ir contar--lhe quando ele andou mexendo nas minhas coisas. Não havia nada para ele encontrar, naturalmente. Só cartas particulares e coisas assim. Seria típico de Sir Hugo procurar certificar-se com absoluta minúcia. Aliás, devo dizer que o admiro por isto — acrescentou com franqueza. — Ele é um homem cruel, com maneiras deploráveis, e não muito simpático debaixo de toda aquela cabelada vermelha, mas eu gosto de trabalhar para ele e estou ansiosa para que o “Explorador da Lua” seja um sucesso. Viver ao lado dele durante tanto tempo fez com que eu me sentisse exatamente como seus homens.
Gala levantou os olhos para ver a reação do companheiro. Este baixou a cabeça, assentindo.
— Depois de um dia apenas, eu posso compreender isto — disse. — Creio que concordo com você. Não há nada em que nos basearmos, exceto minha intuição, e isto é uma coisa que não conta. O principal é que o “Explorador da Lua” parece seguro, tão seguro quanto as joias da Coroa e, provavelmente, ainda mais.
Bond sacudiu os ombros impaciente, aborrecido consigo mesmo, por renegar as intuições que contavam tanto em seu trabalho.
— Vamos embora — convidou quase rude. — Estamos perdendo tempo.
Compreendendo, a moça sorriu e seguiu o companheiro.
Contornando a próxima inclinação do penhasco, chegaram à base do elevador, coberto de algas marinhas e crustáceos . . . Cinquenta jardas mais adiante alcançaram o dique, construção forte, tubular, de ferro, calçado de tiras de aço entrelaçadas, que avançava sobre as rochas e mais além.
Entre os dois, e talvez uns vinte pés acima da face do penhasco, escancarava-se a boca negra e larga do túnel de exaustão, que subia inclinada dentro do penhasco para o chão de aço sob a popa do foguete. Da borda inferior da cavidade, giz derretido caía como lava, e viam-se respigos da matéria por cima de todos os pedregulhos e rochas lá embaixo. Com os olhos da imaginação, Bond via um rastro ofuscante de flama branca surgir uivando da parede do penhasco e ouvia o sibilo e borbulhar, quando o giz líquido se derramava na água.
Levantou os olhos para a estreita faixa da cúpula de lançamento que aparecia acima da borda do penhasco, duzentos pés acima, imaginando os quatro homens com suas máscaras contra gases, vestidos com roupas de asbetos, observando os instrumentos medidores enquanto o terrível líquido explosivo pulsava pelo tubo negro de borracha até o estômago do foguete. De repente, percebeu que se encontravam dentro do raio de ação, se alguma coisa não desse certo no enchimento de combustível.
— Vamos sair daqui — disse à pequena.
Quando umas cem jardas se interpuseram entre eles e a cavidade, Bond parou e olhou para trás. Imaginou-se acompanhado de mais seis homens fortes e durões, com todos os instrumentos necessários — e conjeturou como daria início a um ataque à base, vindo do mar — embarcações presas ao cais, quando a maré estivesse baixa; uma escada na borda da cavidade? e depois o quê? Seria impossível galgar as paredes de aço polido do túnel exaustor. Seria uma questão de disparar uma arma antitanque através do chão de aço por baixo do foguete, seguida de algumas granadas de fósforo, e esperar que alguma coisa pegasse fogo. Negócio meio confuso, mas que talvez desse resultado. Sair depois seria complicado. Seriam alvos fáceis para quem estivesse no topo do penhasco. Mas isto não perturbaria um esquadrão suicida russo. Era tudo muito possível de realizar.
Gala estivera ao seu lado, observando os olhos que mediam e especulavam.
— Não é tão fácil como você pensa — disse, vendo-lhe a testa franzida. — Mesmo quando a maré é alta e o mar muito forte, colocam guardas ao longo do cimo do penhasco de noite. Eles têm holofotes, Brens e granadas. As ordens que recebem são de atirar, e fazerem as perguntas depois. Naturalmente seria melhor iluminar completamente o penhasco à noite. Mas isto só serviria para tomar a base um alvo certeiro. Estou convencida de que pensaram em tudo.
Bond continuava franzindo a testa.
— Se eles tivessem cobertura do ataque por um submarino ou uma embarcação, um grupo eficiente ainda conseguiria realizar o negócio. Vai ser o diabo, mas eu vou nadar. O mapa do Almirantado diz que existe um canal de doze braças ali adiante, mas eu gostaria de dar uma olhada. Deve ter muita água no final do dique, contudo eu me sentirei mais feliz quando verificar com meus próprios olhos.
Sorriu para a moça:
— Por que você não vem nadar também? A água deve estar bastante fria, mas lhe faria bem, depois de ter estado a cozinhar-se dentro daquela cúpula de concreto a manhã inteira .
Os olhos de Gala se iluminaram.
— Acha que eu posso? — perguntou, hesitante. — Estou com um calor tremendo. Mas que é que nós vamos vestir?
Corou ao lembrar-se de suas calcinhas e porta-seios minúsculos e de nylon quase transparentes.
— Deixe isto pra lá — disse Bond aèreamente.
— Você deve ter alguns trapinhos vestidos aí por baixo, e eu estou de short. Estaremos perfeitamente respeitáveis, e não há ninguém por aqui para ver. Depois, eu prometo não olhar — mentiu alegremente, seguindo na frente até a próxima inclinação do penhasco.
— Você se despe atrás dessa rocha, e eu desta outra.
— Vamos. Não seja tola. Tudo faz parte de nossas obrigações .
Sem esperar a resposta dela, encaminhou-se para trás de uma rocha elevada, tirando a camisa enquanto andava.
— Ora, muito bem — disse Gala, aliviada por ter a resolução sido tirada de suas mãos. Foi para trás de outra rocha e lentamente desabotoou a saia.
Quando espiou nervosamente para fora, Bond já ia na metade do trecho de áspera areia marrom que seguia por entre os pequenos lagos para onde a maré enchente rodopiava entre os verdes e negros detritos das rochas... O rapaz tinha uma aparência elástica e a pele bronzeada. O short azul era tranquilizador.
Pisando de leve, ela seguiu-o e, de repente, estava dentro d’água. Imediatamente nada mais teve importância, fora do gelo aveludado do mar, a beleza das manchas de areia por entre os cabelos ondulados das algas marinhas que via nas profundezas verdes e claras abaixo dela quando mergulhou a cabeça e nadou paralelamente à praia num rápido crawl.
Ao se encontrar ao nível do dique, parou um momento para tomar fôlego. Não se via sinal de Bond, que ela vira nadando vários metros à frente. Bateu com os pés fortemente dentro da água para manter viva a circulação e então recomeçou novamente, pensando nele sem querer, pensando no corpo rijo e moreno que devia estar ali por perto, entre as rochas, talvez, ou mergulhando para a areia, a fim de calcular a profundidade da água com que um inimigo podia contar.
Virou-se para procurá-lo de novo, e foi então que ele surgiu inesperadamente do mar, por baixo dela. Sentiu o abraço rápido e apertado e o contato breve mas forte dos lábios dele nos seus.
— Vá para o diabo — exclamou furiosa, mas o rapaz já bavia mergulhado novamente, e quando ela golfou uma porção de água do mar, conseguindo orientar-se, ele nadava alegremente a vários metros de distância.
Gala voltou-se e nadou displicente, sentindo-se bastante ridícula, porém resolvida a pô-lo no seu lugar. Era exatamente como tinha pensado. Esse pessoal do Serviço Secreto sempre encontrava tempo para o sexo, por mais importante que fosse a missão de que se encarregavam.
Mas seu corpo vibrava obstinadamente com o imprevisto do beijo, e o dia luminoso parecia ter adquirido nova beleza. Enquanto nadava mais para fora, virou-se e olhou os dentes brancos como leite, dentes da Inglaterra que rosnavam, olhou o braço distante de Dover, o confete branco e preto dos corvos e gaivotas, jogados contra o vivido pano de fundo dos campos verdes, e chegou à conclusão de que tudo seria permitido num dia assim e que, só por aquela vez, ela o perdoaria.
Meia hora depois estavam deitados, esperando que o sol viesse secá-los, separados pela respeitável distância de um metro de areia, ao pé do penhasco.
O beijo não fora mencionado, mas os esforços de Gala para manter uma atitude de alheamento haviam tombado com a excitação de examinar uma lagosta que Bond apanhara com as mãos, ao mergulhar. Relutantemente, tornaram a colocá-la numa das cavidades da rocha e ficaram observando seus movimentos de volta ao abrigo das algas marinhas. Agora, ali estavam, cansados e alegres com o banho gelado, rezando para que o sol não se escondesse atrás do penhasco acima de suas cabeças antes de estarem aquecidos e suficientemente secos para poder vestirem novamente as roupas.
No entanto, não eram só estes os pensamentos de Bond. O lindo corpo estirado da pequena ao seu lado, incrivelmente erótico na ênfase marcante das calcinhas e porta-seios agarrados à pele, interpunha-se entre ele e sua preocupação com o “Explorador da Lua”. Além do mais, não havia nada que ele pudesse fazer pelo foguete durante mais uma hora. Ainda não eram cinco, e a tomada de combustível não terminaria senão depois das seis.
Seria somente àquela hora que ele poderia aproximar-se de Drax para certificar-se de que nas duas próximas noites haveria um acréscimo de guardas no penhasco e que eles possuíam as armas adequadas. Pois verificara com os próprios olhos que havia muita água, mesmo com a maré vazante, possibilitando a chegada de um submarino.
De modo que contava pelo menos com um quarto de hora livre antes de poderem voltar.
No intervalo havia essa pequena. O corpo semidespido surgia acima dele na superfície, quando nadava em baixo dela; o beijo rápido, forte e suave ao mesmo tempo, com os braços em torno dele; as colinas pontudas de seus seios, tão próximas e o estômago macio e raso, descendo para o mistério das coxas fortemente cerradas.
Para o inferno, toda essa história.
Arrancou o espírito dessa febre e fitou diretamente o infindável azul do céu, forçando-se a observar a beleza das gaivotas esvoaçantes ao se alinharem sem nenhum esforço entre as correntes de ar que giravam sobre o alto topo dos penhascos acima deles. Mas a plumagem sedosa e branca do colo das aves desviou novamente seus pensamentos para ela, não lhe dando descanso.
— Por que você se chama Gala? — perguntou, para interromper a sequência de pensamentos cálidos e persistentes.
A moça riu.
— Durante todo meu tempo de escola mexiam comigo por causa disso — respondeu, e Bond se impacientou diante da voz clara, fácil. — Depois, quando pertenci às Wrens e ainda pela metade da força policial de Londres. Mas meu verdadeiro nome é ainda pior. É Galateia. Era o cruzador onde meu pai servia quando eu nasci. Creio que Gala não é tão ruim assim. Quase me esqueci do meu nome de verdade. Estou sempre precisando trocá-lo, agora que estou na Seção Especial.
— Na Seção Especial. Na Seção Especial. Na. . .
Quando a bomba cai. Quando o piloto calcula mal, e o avião bate antes de tocar a pista de aterrissagem. Quando o sangue deixa o coração, e a consciência foge, há pensamentos no cérebro, ou palavras, ou talvez uma frase musical que se repete durante os poucos segundos antes da morte, como o som moribundo de um sino.
Bond não estava morto, mas as palavras ainda estavam dentro de sua mente, vários segundos depois de tudo haver acontecido.
Desde o momento em que tinham-se deitado na areia, recostados no penhasco, enquanto seus pensamentos se concentravam em Gala, seus olhos haviam observado distraidamente duas gaivotas brincando em redor de uma ponta de palha que estava na beira do ninho, numa pequena saliência, cerca de uns trezentos metros abaixo do cume distante do penhasco. Inclinavam os pescoços e pareciam cumprimentar, em seu jogo amoroso, só com as cabeças, que Bond divisava contra o branco ofuscante do céu. Então o macho voava para longe e, imediatamente voltava à saliência da rocha, para recomeçar seu jogo de amor.
Bond observava-os sonhadoramente enquanto ouvia o que a moça dizia, quando, subitamente, as duas gaivotas fugiram da saliência da rocha com um só grito de pavor. No mesmo instante viu-se um rolo de fumaça negra e ouviu-se um estrondo amortecido vindo do alto do penhasco. Em seguida, uma grande quantidade de giz branco, bem acima das cabeças de Bond e Gala, pareceu desligar-se para fora, ziguezagueando fragmentos pela encosta.
Quando Bond se deu conta do que fazia, achou-se deitado em cima de Gala, o rosto apertado contra o dela, e percebeu que o ar estava cheio de trovões, que sua respiração estava abafada, e que o sol desaparecera. Sentia as costas dormentes e doendo sob um grande peso, e sua orelha esquerda, além do eco do trovão, guardava o som de um grito sufocado.
Mal teve consciência do se passava, e precisou esperar até que seus sentidos voltassem à vida.
A Seção Especial. O que foi que ela disse a respeito da Seção Especial?
Fez esforços inauditos para se mexer. Apenas no braço direito, o braço mais próximo do penhasco, ainda havia algum movimento, mas quando puxou o ombro, o braço ficou mais livre até que, finalmente, com um impulso grande para trás, a luz e o ar chegaram até eles. Lutando no nevoeiro de poeira de giz, alargou o buraco, até a cabeça poder retirar seu peso esmagador de cima de Gala. Sentiu o leve movimento, quando ela virou a cabeça para um lado, procurando a luz e o ar. Uma torrente de poeira e pedras no buraco que ele limpara fê-lo cavar ferozmente mais uma vez. Pouco a pouco, aumentou o espaço até conseguir firmar o cotovelo direito, e então, tossindo ao ponto de imaginar que os pulmões iam arrebentar, impulsionou o ombro direito para cima até que, de repente, livrou-o, bem como a cabeça.
Seu primeiro pensamento foi que tinha havido uma explosão no “Explorador da Lua”. Levantou os olhos para o penhasco e depois para a praia. Não. Estavam a cem metros da base. Foi apenas na linha do horizonte, diretamente acima deles, que um grande pedaço fora comido no penhasco.
Em seguida pensou no perigo imediato que corriam. Gala gemia, e ele sentia o frenético bater de seu coração contra o próprio peito, mas a máscara pavorosa e branca de seu rosto estava agora livre para respirar, e ele se pôs então a girar o corpo de um lado para o outro em cima dela, a fim de tentar aliviar a pressão de seus pulmões e do estômago. Lentamente, polegada por polegada, seus músculos partindo-se com o esforço, procurou caminho sob a pilha de poeira e detritos até o lado do penhasco, onde sabia que o peso seria menor.
Finalmente livrou o peito e pôde ajoelhar-se ao lado da companheira. O sangue pingava de suas costas e braços feridos, misturando-se com a poeira de giz que continuamente caía na parte lateral dos buracos que fizera mas verificou que não tinha ossos quebrados e, com a fúria do trabalho de salvamento, não sentiu dores.
Grunhindo e tossindo, sem uma pausa para respirar, ergueu-a e fê-la sentar-se e, com a mão sangrando, limpou um pouco do giz de seu rosto. Depois, livrando as pernas da tumba de giz, levantou-a e levou-a até uma elevação dos detritos, com as costas voltadas para o penhasco.
Ajoelhou-se e olhou aquele horrível espantalho branco que, minutos antes, fora uma das mais lindas moças que já vira. Enquanto olhava os filêtes de sangue escorrendo-lhe pelo rosto, rezou para que seus olhos se abrissem.
Quando, segundos mais tarde, eles se abriram, o alívio foi tão grande, que Bond se afastou e sofreu tremenda crise de náuseas.
CONTINUA
A um quilômetro da base, aproximadamente, Drax estacou.
— Eu explicarei a geografia — disse ele. — Walter, siga na frente. Já devem estar esperando por você, para dar outra olhada naquelas barbatanas... Mas não se preocupe demasiado com elas, meu caro amigo. O pessoal das ligas de alto teor sabe muito bem o que está fazendo. E agora — continuou Drax, olhando para Bond, enquanto fazia um gesto na direção da cúpula branca como leite — ali dentro está o “Explorador”. O que você vê é o topo de uma plataforma que foi escavada a mais de quarenta pés de profundidade, no terreno calcário. As duas metades da cúpula são abertas hidràulicamente e recolhidas para trás, ao nível do muro de vinte pés. Se agora estivessem abertas, você veria o cone final do “Explorador”, ao nível do muro. Ali — apontou para uma sombra retangular que estava já quase fora do campo visual de ambos, na direção de Deal — fica a casamata de controle, de onde se comanda o disparo. É um blocausse em concreto. Está cheio de dispositivos de radar de rastreio — tanto o radar de velocidade Doppler como o radar de rastreio de direção de voo, por exemplo. As informações são fornecidas por meio de vinte canais telemétricos, alojados no cone do foguete. Também existe ali dentro uma enorme tela de televisão, de modo que se pode acompanhar o comportamento do foguete no interior da cápsula, depois de iniciado o voo. Um outro conjunto de televisores serve para acompanhar o início da ascensão. Ao lado da casamata, há um elevador que desce ao longo do penhasco. Uma boa parte das peças e maquinismos foi trazida para a base por via marítima e transportada até cá em cima por meio desse monta-cargas. Aquele gemido que você escuta, vem da central elétrica, ali mais adiante — e Drax fez um gesto vago, em direção a Dover. — Os alojamentos dos homens e a casa são protegidos pelo muro à prova de deslocação de ar. Mas quando fizermos o lançamento, não deverá haver ninguém dentro de um raio de ação de um quilômetro e meio, a partir da base, exceto os técnicos do Ministério e a equipe da B.B.C., que estará colocada na casamata de comando. Espero que o muro aguente bem a deslocação de ar. Walter diz que a base e uma boa parte da faixa de concreto derreterão com o calor. E é tudo. Nada mais precisa saber, até entrarmos. Vamos.
Bond tornou a observar o tom rude de comando. Seguiu em silêncio, atravessando uma zona banhada de luar, até chegarem à parede de suporte da cúpula. Uma lâmpada vermelha brilhava na parede, por cima de uma porta de aço chapeado. Iluminava um grande letreiro que dizia em inglês e alemão:
PERIGO DE MORTE.
ENTRADA PROIBIDA QUANDO A LÂMPADA VERMELHA ESTIVER ACESA.
TOQUE A CAMPAINHA E ESPERE.
Drax apertou o botão por debaixo do letreiro, e ouviu-se o som abafado de uma campainha de alarma.
— Pode estar alguém trabalhando com o oxiacetileno, ou fazendo qualquer outro trabalho delicado — explicou Drax. — Basta que desvie sua atenção do serviço, pela fração de um segundo, caso alguém entre sem aviso, e isso poderia resultar num erro bastante caro. Todos largam os utensílios quando a campainha soa, e só recomeçam quando veem de que se trata.
— Drax afastou-se um pouco da porta e apontou para uma série de gradeados dispostos logo abaixo do remate da parede. — São os exaustores de ventilação — continuou ele explicando.
— O ar condicionado no interior da cúpula mantém-se constantemente a setenta graus Farenheit.
A porta foi aberta por um homem que empunhava um cassetete de policial e trazia um revólver no cinturão. Bond seguiu Drax até uma pequena antecâmara. Esta nada tinha senão um banco e uma fileira bem arrumada de chinelos de feltro.
— Terá de calçá-los — disse Drax, sentando-se e tirando os sapatos. — Poderia escorregar e esbarrar contra alguém. O melhor é deixar aqui também seu casaco. Setenta graus Farenheit é uma temperatura bastante elevada.
— Obrigado — disse Bond, lembrando-se da Beretta encaixada sob a axila. — A verdade é que não sinto calor algum.
Sentindo-se como um visitante num teatro em dia de ensaios, Bond seguiu Drax através de uma porta de comunicação, passando depois por um estreito corredor e desembocando numa série de projetores que, instintivamente, o fizeram levar a mão aos olhos, enquanto com a outra se agarrava ao gradeado do corrimão protetor, à sua frente.
Quando retirou a mão, foi brindado com uma cena de tal esplendor que, durante vários minutos, ficou sem fala, os olhos fascinados pela terrível beleza da mais poderosa arma existente sobre a Terra.
CAPITULO 12
O “EXPLORADOR DA LUA”
Era como se o tivessem metido no tambor polido de um gigantesco revólver. Partindo do chão, a mais de doze metros abaixo da varanda onde se encontravam, erguia-se uma parede circular, de metal polido, no topo da qual, ele e Drax se colavam como duas moscas. No centro desse imenso cilindro, que mediria pelo menos uns nove metros de diâmetro, estava colocado um gigantesco lápis de cromo, refulgente, cuja ponta, aguçando-se numa antena fina como agulha, parecia roçar o telhado, seis ou sete metros acima de suas cabeças.
O cintilante projétil descansava numa base cônica de aço, que se erguia do chão por entre as extremidades de três barbatanas em forma de delta, pronunciadamente puxadas para trás, e que parecia tão afiadas quanto bisturis de cirurgião. Mas, fora isso, nada mais empanava o brilho sedoso dos quinze metros de aço cromado e polido, exceto as duas garras que saíam das paredes e colhiam a cintura do foguete, por entre espessos acolchoados de espuma de borracha.
No ponto em que as garras tocavam o projétil, viam-se pequenas portas de acesso, abertas na superfície de aço e, quando Bond olhou para baixo, divisou um homem que saía agachado por uma delas, até alcançar a estreita plataforma do monta-cargas instalado paralelamente ao bojo do “Explorador”. Depois, fechou a porta com a mão enluvada. Encaminhou-se a passos miúdos, equilibrando-se pela estreita ponte, até alcançar a parede, e fez girar uma manivela. Ouviu-se um profundo gemido de maquinismo, e a garra retirou seu suporte acolchoado do bojo do foguete, ficando suspensa no ar, como as patas dianteiras de um louva-a-Deus. Os gemidos do mecanismo alteraram-se para um tom mais cavo, e a plataforma do monta-cargas, lentamente, foi-se retraindo, em movimento de telescópio. Depois, tornou a esticar-se e foi pegar o foguete, com a garra, três metros mais abaixo. Seu operador esgueirou-se de novo pelo braço e abriu outra pequena porta de acesso ao interior, desaparecendo dentro do foguete.
— Provavelmente está verificando o sistema de alimentação de combustível dos tanques posteriores — disse Drax. — A alimentação é feita por gravidade. Um sistema bastante complexo. Que acha você disto? — Observou com prazer a expressão de êxtase, estampada no rosto de Bond.
— Uma das coisas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida — respondeu Bond. Era fácil falar. Não se ouvia o menor som dentro do grande cilindro de aço, e as vozes dos homens apinhados lá embaixo, junto da cauda do foguete, não chegavam a eles senão como distante murmúrio. Drax apontou para cima e explicou:
— Veja o cone. O que está montado é apenas experimental, mas pode substituir-se, claro, por uma cápsula estratégica, com carga nuclear. Para este voo, irá cheia de instrumentos. Telêmetros e todas essas coisas. Depois, estão os giroscópios, bem defronte de nós. E, em seguida, quase exclusivamente, tanques de combustível até abaixo, quando temos então as turbinas, já próximas da cauda. Impulsionadas por vapor superaquecido, obtido na decomposição do peróxido de hidrogênio . O combustível, fluorina e hidrogênio... — olhou rapidamente para Bond. A propósito, isto é top secret, sabe?... pois o combustível, como dizia, baixa pelos tubos de alimentação e recebe a ignição logo que é introduzido no motor. Trata-se de uma espécie de explosão controlada, que impulsiona o foguete para o ar. Esse assoalho de aço onde o “Explorador” assenta agora, desliza então para fora, claro. Por baixo, há um enorme poço de exaustão. Tem saída para a base dos rochedos, do lado do mar. Amanhã você irá dar uma vista d’olhos. Parece uma gigantesca caverna, nada mais. Quando procedemos, há dias, a um teste estático, a substância calcária do terreno derreteu e correu para o mar como se fosse água. Espero que não acabemos por calcinar e destruir os famosos penhascos brancos de Dover, quando chegar a hora zero. Você gostaria de dar uma olhada nos trabalhos?
Bond seguiu em silêncio, quando Drax indicou o caminho, descendo por uma íngreme escada de ferro, que acompanhava a parede de aço em sua curvatura. Sentia agora invadir-se por uma onda de admiração e quase de reverência por esse homem e sua formidável realização. Como teria podido ele, Bond, deixar-se impressionar desfavoravelmente pela conduta infantil de Drax, à mesa de jogo? Mesmo os grandes homens têm suas fraquezas. E Drax necessitava dessa válvula de escape para a tensão a que o submetia a tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Tornava-se óbvio que Drax não podia confiar excessivamente em seus auxiliares direitos, de nervos à flor da pele. Dele sozinho devia partir a vitalidade e a confiança necessárias para manter elevado a moral de todos. Mesmo tratando-se de uma coisa tão insignificante quanto ganhar uma partida de bridge, devia ser importante para Drax estar-se assegurando constantemente da própria capacidade, procurando em tudo vaticínios de boa sorte e de êxito, chegando ao ponto de criar esses augúrios favoráveis por suas próprias mãos. Quem não suaria ou roeria as unhas, estando tanta coisa em jogo?
Enquanto contornavam a larga curva da escada, com suas figuras grotescamente refletidas na superfície cromada do foguete, como em um espelho mágico de feira, Bond sentia quase afeto pelo homem que, apenas há poucas horas, ele dissecara sem piedade e quase com ódio.
Quando chegaram à plataforma da base de aço do cilindro, Drax fez uma pausa e olhou para cima. Bond seguiu o olhar do outro. Visto naquela perspectiva, o “Explorador” dava-lhes a impressão de estar olhando para um fino cone vertical de luz, perdendo-se na abóbada cintilante, um feixe de luz que não era totalmente branco, mas de uma tonalidade acetinada de madrepérola. Havia nele alguns pontos vermelhos e brilhantes, refletidos por um gigantesco extintor de incêndios, de neve carbônica, colocado a pouca distância. Um homem em traje de amianto estava postado ao lado do extintor, que apontava seu bico de leque para a base do foguete. Havia também uma estria de cor violeta, cuja origem provinha de uma lâmpada fixada ao painel de instrumentos, na parede. Servia para controlar os movimentos da cobertura de aço em que se encontravam e que os separava do poço de exaustão. Finalmente, um tom verde-esmeralda vinha da luz difusa de uma lâmpada com abajur, colocada sobre uma mesa de pinho, à qual se sentava um homem que ia anotando números que lhe eram transmitidos, de viva voz, pelo grupo reunido logo abaixo da cauda do foguete.
Levantando os olhos para aquela coluna em tons pastel, tão incrivelmente esguia e graciosa, parecia impossível que uma coisa tão delicada pudesse aguentar as pressões a que teria de submeter-se na próxima sexta-feira: o jato tronitruante da mais poderosa explosão controlada que alguma vez fora tentada; o impacto da barreira do som; as pressões desconhecidas da estratosfera, a quinze mil milhas por hora; o choque terrível quando retornasse, num mergulho de milhares de milhas de altura, para ferir de novo o envelope atmosférico da Terra.
Drax pareceu ler seus pensamentos. Voltou-se para Bond:
— É como perpetrar um assassinato — disse ele. Em seguida, de maneira surpreendente, explodiu numa risada asinina. —Walter! — chamou, dirigindo-se ao grupo de homens. — Venha cá!
Walter destacou-se dos outros e aproximou-se.
— Walter — prosseguiu Drax — eu estava dizendo ao nosso amigo, o Comandante, que quando lançarmos o “Explorador da Lua” será como se cometêssemos um crime de assassinato .
Bond não ficou surpreendido, ao ver uma expressão de incredulidade intrigada estampar-se no rosto do doutor. Irritado, Drax exclamou:
— Assassinato de uma criança. Assassinato de nosso filho — repetiu com um gesto na direção do foguete. — Acorde, homem! Acorde! Que se passa com você?
A fisionomia de Walter clareou. De um modo velado, sorriu, mostrando seu apreço pela comparação.
— Assassinato, Ah, sim! Essa é muito boa. Ha! Ha! E agora, Sir Hugo, as folhas de grafita no exaustor. O Ministério está satisfeito com o ponto de fusão? Eles não acham que. ..
Ainda falando, Walter levou Drax para debaixo da cauda do foguete. Bond seguiu ambos.
Os rostos dos dez homens estavam voltados para eles, quando chegaram. Drax apresentou-o com um gesto da mão.
— Comandante Bond, o nosso novo agente de segurança, — disse, conciso.
O grupo olhou Bond em silêncio. Não houve o menor movimento para ir cumprimentá-lo, e os dez pares de olhos não refletiam curiosidade.
— Então, que negócio é esse de tanta história com a grafita? . ..
O grupo se fechou em torno de Drax e Walter. Bond foi deixado só, para trás.
Não estava surpreso com a frieza da recepção. Teria olhado a intromissão de um amador nos segredos de seu próprio departamento com a mesma indiferença mesclada de ressentimento. Além do mais, simpatizava com esses técnicos apanhados a dedo, que tinham vivido durante meses a fios nas mais altas regiões da astronáutica e se encontravam agora no limiar do julgamento final. Entretanto, lembrava-se, os inocentes entre si deviam saber que Bond tinha seu próprio dever a cumprir, sua própria participação vital nesse projeto. Suponhamos, por exemplo, que um desses pares de olhos, nada comunicativos, escondesse um homem dentro de outro homem, um inimigo que, talvez, naquele instante mesmo exultasse com a certeza de que a grafita que Walter parecia não confiar era realmente sub-resistente. É verdade que tinham o aspecto de uma equipe bem unida, quase de uma fraternidade, ao se colocarem assim em torno de Drax e Walter, pendendo de suas palavras, os olhos atentos aos movimentos das bocas dos dois homens. Mas seriam parte de um cérebro, movimentando-se dentro da intimidade de uma órbita secreta, registrando seus cálculos ocultos como o mecanismo clandestino de uma máquina infernal?
Bond caminhava a esmo, para cima e para baixo do triângulo formado pelas três pontas das barbatanas que repousavam em suas cavidades forradas de borracha no chão de aço, interessando-se em tudo em que seus olhos pousavam, mas, de quando em quando, focalizando-os no grupo de homens, em ângulo diferente.
Com exceção de Drax, todos usavam o mesmo macacão justo de nylon, preso por fecho-éclair de plástico. Não se via o menor vestígio de metal, e nenhum deles usava óculos. Como no caso de Walter e Krebs, suas cabeças estavam raspadas bem rente. Provavelmente, pensou Bond, para evitar que um fio solto de cabelo pudesse cair dentro do engenho. Entretanto, e isso chamou-lhe a atenção como característica muito estranha da equipe, todos exibiam exuberantes bigodes, cuja manutenção exigia, sem dúvida, grande dose de cuidados. Eram de todos os formatos e tonalidades: louros, cor de rato ou escuros, em guidões de bicicleta, de foca, à Kaiser ou à Hitler — cada rosto exibia seu distintivo capilar, entre os quais a pelagem ruiva de Drax brilhava como insígnia oficial do chefe supremo.
Por que motivo, conjeturava Bond, todos os homens da base usavam bigode? Nunca os apreciara, mas combinados com as cabeças raspadas, lembravam algo de positivamente obsceno. Teria sido apenas tolerável, se todos fossem cortados no mesmo modelo, mas a variedade de gêneros individuais, essa anarquia de formatos, tinha um que de particularmente horrível, destacando-se do fundo composto pelas cabeças nuas e redondas.
Nada mais havia para chamar a atenção. Os homens eram de estatura mediana, e todos de tipo mais sobre o esguio — talhados, supunha Bond, mais ou menos de acordo com as necessidades do trabalho. A agilidade seria imprescindível nas plataformas, nas passagens ao longo das garras laterais e dos monta-cargas, e solidez para executar as manobras através das portas de acesso e dentro dos minúsculos espaços disponíveis nos compartimentos do foguete. As mãos deles pareciam ter os músculos e nervos relaxados. Eram imaculadamente limpas, e seus pés, metidos em chinelos de feltro, estavam imóveis pela concentração no trabalho. Bond não surpreendeu nenhum deles, em ocasião alguma, olhando em sua direção, movido pela curiosidade, e quanto a penetrar em seus espíritos ou calcular suas doses de lealdade, confessava a si próprio que a tarefa de desmascarar os pensamentos de cinquenta desses homens-robôs alemães, em três dias, era absolutamente impraticável. E lembrou-se, então, de que já não eram cinquenta. Apenas quarenta e nove. Um desses robôs estourara o tampo dos miolos. E o que transparecera dos pensamentos secretos de Bartseh, afinal? Desejo por uma mulher e um “Heil Hitler”. Estaria muito enganado, cogitava Bond, se julgasse que, esquecendo o “Explorador da Lua”, fossem esses também os pensamentos dominantes dentro de mais quarenta e nove cabeças?
— Dr. Walter! Estou dando uma ordem!
A voz de Drax, cheia de uma ira controlada, interrompeu os pensamentos de Bond, enquanto permanecia tocando com os dedos a aresta condutora de uma das barbatanas de columbite da cauda do foguete.
— Voltem ao trabalho! Já perdemos tempo demais!
Os homens se espalharam, pressurosos, cada um absorvido em sua tarefa, e Drax aproximou-se de Bond, deixando Walter vagando, indeciso, sob a enorme bocarra do exaustor de jato do foguete.
Drax mostrava uma fisionomia tempestuosa.
— Maluco do inferno — praguejou ele. — Está sempre descobrindo complicações.
Depois, como se quisesse esquecer seu adjunto, acrescentou bruscamente para Bond:
— Venha até meu escritório. Vou-lhe mostrar o plano de voo. Depois iremos dormir.
Bond seguiu-o. Drax girou uma pequena maçaneta embutida na parede de aço, e uma porta estreita se abriu, com um silvo abafado. A um metro mais para dentro, havia outra porta também de aço, e Bond notou que ambas eram cercadas de borracha, tornando o cilindro estanque à entrada de ar. Antes de fechar a porta externa, Drax parou na soleira e apontou, na parede circular, um bom número de maçanetas, quase invisíveis e semelhantes à que ele utilizara.
— São as portas das oficinas: geradores elétricos, controle de combustível, lavatórios, armazéns de materiais... — Apontou a porta seguinte. — Aqui é a sala de minha secretária. — Fechou a porta externa, antes de abrir a segunda e, entrando em seu escritório, fechou a porta interna atrás de Bond.
Era um recinto severo, pintado de cinza-claro, onde se via uma ampla escrivaninha e diversas cadeiras de metal tubular, forradas de lona azul-marinho. O chão era atapetado em cinza. Havia ainda dois fichários verdes e um grande aparelho de rádio, metálico. Uma porta semiaberta deixava entrever parte de um banheiro ladrilhado. A escrivaninha estava disposta de frente para uma larga parede lisa, que parecia ser construída de vidro opaco. Drax encaminhou-se para a parede e baixou dois interruptores, na extremidade direita. A parede inteira ficou iluminada como tela de cinema, e Bond se defrontou com dois mapas, cada um de seis pés quadrados, ambos desenhados no próprio vidro.
O mapa da esquerda mostrava toda a região oriental da Inglaterra, desde Portsmouth até Hull, bem como as águas adjacentes, nas latitudes entre 50 e 55 graus. Do ponto vermelho, próximo a Dover, que representava a base de lançamento do “Explorador da Lua”, partia uma série de círculos concêntricos, representando, com intervalos de dez milhas, o raio de ação do projétil. Num ponto distante 80 milhas da base, entre as ilhas Fríseas e Hull, via-se um losango vermelho, desenhado em pleno oceano.
Drax fez um gesto para as intrincadas tábuas matemáticas e as colunas de leitura de bússolas, que enchiam o lado direito do mapa.
— Velocidades de vento, pressão atmosférica, cálculos de computador para os giroscópios — foi explicando ele. — Tudo calculado na base da velocidade e raio de ação do foguete, como constantes matemáticas. Recebemos diariamente as previsões meteorológicas fornecidas pelo Ministério da Aeronáutica, bem como as leituras efetuadas na atmosfera superior, cada vez que um jato da RAF alcança essa altitude. Todos os relatórios nos são transmitidos. Quando um avião atinge a altitude máxima, solta balões de hélio que podem subir ainda mais e nos fornecem novas leituras. A camada atmosférica chega até cinquenta milhas de altitude, aproximadamente. Depois das primeiras vinte, não existe já qualquer densidade que possa afetar o progresso do foguete. Voará quase em vácuo. Atravessar as primeiras vinte milhas é que constitui o principal problema. A atração da gravidade, claro, é outra preocupação. Walter poderá explicar-lhe todas essas coisas, se você estiver interessado. Haverá informações contínuas sobre o tempo, durante as últimas horas até sexta-feira. E então ajustaremos os giroscópios, pouco antes do lançamento. Por enquanto, Miss Brand colige as informações recebidas todas as manhãs e organiza um mapa de movimentos giroscópicos, para o caso de ser necessário.
Drax apontou para o segundo dos dois mapas. Era um diagrama do voo elíptico do foguete, desde o ponto de lançamento até seu alvo. Havia ainda mais colunas de números e cifras.
— Aí temos o registro de velocidade da Terra e seus efeitos na trajetória do foguete — explicou Drax. — A Terra estará girando para Leste, em relação ao voo do foguete. Esses fatores têm de ser conjugados com o outro mapa, e é da leitura final que sairão as instruções de voo. É um negócio bem complicado. Felizmente você não precisa compreender. Deixe isso para Miss Brand. E agora — disse, apagando as luzes da parede que ficou novamente lisa — deseja fazer alguma pergunta a respeito de seu trabalho? Não creio que haja muita coisa para você fazer. Já viu que tudo foi feito com a máxima segurança. O Ministério insistiu para que assim fosse, desde o início.
— Tudo me parece em ordem — disse Bond.
Examinou a fisionomia de Drax, em seguida. O olho bom fitava-o intensamente. Bond fez uma pausa.
— Acha que havia alguma coisa entre sua secretária e o Major Tallon?
Era uma pergunta clara, e o melhor seria fazê-la agora.
— É possível, — respondeu Drax sem constrangimento. — Ela é moça atraente. Eram forçados a conviver, constantemente, na companhia um do outro. De qualquer maneira, parece que Bartsch ficou alucinado por ela.
— Ouvi dizer que Bartsch fez continência e gritou: “Heil Hitler” antes de virar a arma contra a boca — disse Bond.
— Foi o que me contaram — confirmou Drax, sem o mínimo interesse. — E daí?
— Por que motivo todos os homens usam bigode? — indagou Bond, ignorando a pergunta de Drax.
Novamente teve a impressão de que sua pergunta exasperara o outro homem.
Drax soltou uma de suas risadinhas curtas e ladradas.
— Foi uma ideia que eu tive. Eles são difíceis de reconhecer nesses macacões brancos e com as cabeças raspadas. Por isto mandei que todos deixassem crescer os bigodes. A coisa se tornou quase um fetiche. Como na RAF, durante a guerra. Vê alguma coisa de inconveniente nisso?
— Claro que não. A princípio é um tanto.. . surpreendente. Eu teria pensado que números grandes colocados nas roupas, com uma cor diferente para cada turma, teria sido mais eficiente.
— Pois bem — replicou Drax, voltando-se em direção à porta como para finalizar a conversação. — Decidi-me pelos bigodes.
CAPITULO 13
DECISÃO FINAL
Na quarta-feira de manhã, Bond despertou cedo, na cama do homem morto.
Dormira pouco. Drax não dissera nada a caminho de volta para casa e lhe desejara um rápido boa-noite no fim da escada. Bond seguira pelo corredor atapetado até o ponto onde brilhava uma luz, vinda de uma porta aberta, e encontrara suas coisas ordenadamente arranjadas num confortável quarto.
O aposento era mobiliado com o mesmo gosto de tipo dispendioso que encontrara no andar térreo. Havia biscoitos e uma garrafa de Vichy (não era uma garrafa de Vichy com água da bica, verificou Bond) ao lado da cama.
Não se notavam sinais do ocupante precedente, a não ser uma pasta de couro contendo binóculos, na mesinha de cabeceira, e um arquivo de metal, trancado. Bond conhecia tudo sobre arquivos. Virou-o contra a parede, colocou a mão embaixo e encontrou a ponta do fecho que se projeta para baixo, quando a série de escaninhos de cima foi trancada. Uma pressão feita para cima soltou as gavetas uma por uma, e ele baixou suavemente a borda do arquivo para o chão, refletindo maldosamente que o Major Tallon não teria sobrevivido durante muito tempo no Serviço Secreto.
A gaveta de cima continha mapas de escala da base e seus edifícios, além de um mapa do Almirantado n° 1895, representando o Estreito de Dover. Bond colocou cada uma das folhas sobre o leito e examinou-as minuciosamente. Havia restos de cinza de um cigarro nas dobras do mapa do Almirantado.
Bond foi buscar sua caixa de ferramentas — uma caixa quadrada de couro que estava ao lado da cômoda. Examinou os números nas rodas da fechadura de segredo e, satisfeito por não terem sido mexidas, virou-as para o número de código. A caixa estava repleta de instrumentos. Bond escolheu um vaporizador de pó para impressões digitais e uma lente grande. Espalhou o pó fino e acinzentado, centímetro por centímetro, sobre toda a extensão da carta geográfica. Apareceu uma floresta de impressões digitais.
Examinando-as com a lente, chegou à conclusão de que pertenciam a duas pessoas. Isolou os dois melhores grupos, tirou uma Leica com um flash de dentro da pasta de couro e fotografou-os. Em seguida, examinou cuidadosamente com a lente os dois minúsculos sulcos no papel que o pó fizera aparecer .
Estes davam a impressão de serem duas linhas traçadas da costa para formar uma rota cruzando o mar. Sua direção era muito estreita, e as duas linhas pareciam originar-se da casa onde se encontrava Bond. De fato, poderiam indicar observações de algum objeto no mar, feitas de cada ala da casa.
As duas linhas não haviam sido traçadas com lápis, mas, presumivelmente, para evitar serem descobertas, com um estilete que mal sulcara o papel.
No ponto onde se encontravam, havia a sombra de uma interrogação, na linha correspondente à décima-segunda braça, cerca de cinquenta jardas distante do penhasco, numa direção reta da casa para o navio-farol South Goodwin.
Não havia mais nada para ser descoberto no mapa. Bond olhou o relógio. Vinte para a uma. Ouviu passos distantes no hall e o estalido de uma lâmpada sendo apagada. Num impulso, ergueu-se e, de mansinho, apagou as luzes do quarto, deixando apenas a de leitura, velada por um abajur e colocada à mesinha de cabeceira.
Ouviu os pesados passos de Drax aproximando-se da escada. Houve o estalido de outro interruptor e depois silêncio. Bond imaginava aquela cara grande, cabeluda, voltada para o corredor, olhando, escutando. Depois percebeu o rangido de uma porta, sendo aberta devagar e fechada da mesma forma. Esperou, visualizando os movimentos do homem que se preparava para dormir. Ouviu ainda o som abafado de uma janela que se abria, o ruído de trombeta, distante, de um nariz sendo assoado. Depois silêncio.
Bond concedeu mais cinco minutos a Drax e depois foi até o arquivo, abrindo suavemente as outras gavetas. Não havia nada na segunda e na terceira, mas a última estava repleta de arquivos arrumados em ordem alfabética. Eram os dossiês dos homens que trabalhavam na base. Bond puxou a série “A”, voltou para a cama e começou a ler.
Em cada um a fórmula era a mesma: nome por inteiro, endereço, data do nascimento, descrição, sinais particulares, profissão ou ofício depois da guerra, registro de tempo de guerra, sobre atitudes políticas e simpatias atuais, registro criminal, de saúde e sobre os parentes próximos. Alguns desses homens tinham mulher e filhos, cujas particularidades eram anotadas e, acompanhando cada dossiê, havia fotografias: de frente e de perfil, além das impressões digitais de ambas as mãos.
Duas horas e dez cigarros depois, Bond examinara todos eles e descobrira dois pontos de interesse geral. Primeiro, que todos os cinquenta homens pareciam ter levado uma vida sem mácula, sem o menor vestígio de ódio político ou criminoso. Aquilo lhe pareceu tão pouco verossímil, que resolveu encaminhar todos eles novamente à Estação D. para serem submetidos a um reexame completo na primeira oportunidade.
O segundo ponto era que nenhuma das caras das fotografias tinha bigode. Apesar da explicação de Drax, esse fato suscitou um segundo pequeno ponto de interrogação no espírito de Bond.
Ergueu-se da cama e trancou novamente tudo, colocando o mapa do Almirantado em um dos arquivos de sua pasta de couro. Girou a fechadura de segredo e enfiou a pasta bem para debaixo da cama, de modo que a mesma ficasse diretamente sob seu travesseiro no ângulo interno da parede. Depois, sem fazer barulho, lavou-se, escovou os dentes no banheiro anexo e escancarou a janela.
A lua ainda brilhava: como devia ter brilhado, pensou Bond, quando, despertado por algum ruído fora do comum, Tallon subira ao telhado, talvez somente há poucas noites, e vira, no meio do mar, o que tinha visto. Devia trazer os binóculos consigo, e Bond, lembrando-se, saiu da janela e apanhou-os. Eram binóculos muito possantes, de fabricação alemã, pilhagem da guerra, talvez, e o 7 X 50 nas chapas superiores revelaram que se tratava de binóculos para a noite. Depois então, o cauteloso Tallon devia ter caminhado de leve (mas não o suficiente) para a outra extremidade do telhado e novamente erguido os binóculos, calculando a distância da borda do penhasco até o objeto no mar, e do objeto até o Goodwin, navio-farol. Em seguida, devia ter voltado pelo mesmo caminho e, sem fazer ruído, tornado a entrar no quarto.
Bond viu Tallon, talvez pela primeira vez desde que estava na casa, trancar a porta cautelosamente, dirigir-se até o arquivo, retirar dali o mapa, ao qual mal lançara um olhar até então, e marcar sobre o mesmo, de leve, as linhas de sua direção, às pressas. Talvez tivesse olhado para ele durante longo tempo, antes de apor a pequenina interrogação ao seu lado.
E que teria sido então o objeto desconhecido? Impossível dizer. Um navio? Uma luz? Um ruído?
Fosse o que fosse, Tallon não devia ter visto. E alguém o tinha ouvido. Alguém havia adivinhado que ele vira, e esperara que Tallon saísse do quarto na manhã seguinte. Aí então aquele alguém viera ao seu quarto e dera uma busca. A carta marítima, provavelmente, nada revelara, mas vira os binóculos para noite em cima da janela.
Fora o bastante. E naquela noite, Tallon morrera.
Bond se controlou. Ia depressa demais, compondo um caso, baseado no mais tênue dos indícios. Bartsch matara Tallon, e Bartsch não fora o homem que ouvira o barulho, o homem que deixara as impressões digitais no mapa, o homem cujo dossiê Bond separara e guardara em sua pasta de couro.
O homem tinha sido o untuoso Krebs, a criatura do pescoço de minhoca. As impressões digitais eram suas. Durante um quarto de hora, Bond comparara as impressões do mapa com as impressas no dossiê de Krebs. Mas quem disse que Krebs ouvira um barulho, ou fizera qualquer coisa por causa disso? Bem, para começar, ele parecia mesmo um tipo intrometido. Tinha os olhos de um ladrão sem importância. Aquelas impressões no mapa haviam sido, positivamente, feitas depois que Tallon o estudara. Os dedos de Krebs cobriram os de Tallon em diversos pontos.
Entretanto, como poderia Krebs estar envolvido nessa história, com os olhos de Drax constantemente em cima dele? O assistente confidencial. Mas que dizer de Cícero, o empregado particular de toda confiança do Embaixador Britânico em Ankara, durante a guerra? A mão no bolso das calças pendendo por cima das costas da cadeira. As chaves do Embaixador. O cofre. Os segredos. O quadro era muito semelhante.
Bond sentiu um arrepio. Compreendeu então, de repente, que estivera de pé durante muito tempo em frente às janelas abertas e que já era tempo de dormir um pouco.
Antes de se deitar, pegou o coldre de ombro da cadeira, onde estava no meio das roupas despidas, e retirou a Beretta, colocando-a debaixo do travesseiro. Como defesa contra quem? Bond não sabia, mas sua intuição lhe dizia muito claramente que pairava o perigo no ar. O cheiro era insistente, apesar de ainda impreciso, e restringia-se apenas ao limiar de seu subconsciente. Na realidade, ele sabia que suas impressões se baseavam num determinado número de interrogações que se haviam materializado durante as últimas vinte e quatro horas: o enigma de Drax; o “Heil Hitler” de Bartsch; os estranhos bigodes; os cinquenta alemães de conduta impecável; a carta marítima; os binóculos de noite; Krebs.
Primeiro precisava comunicar suas suspeitas a Vallance. Depois explorar as possibilidades de Krebs. Em seguida, olhar as defesas do “Explorador da Lua” — o lado do mar, por exemplo. Finalmente, entrar em contato com essa pequena Brand e concordarem na elaboração de um plano para os próximos dois dias. Não havia muito tempo a perder.
Enquanto forçava o sono no cérebro transbordante de pensamentos, Bond imaginou o número sete no mostrador de um relógio e deixou a tarefa de acordar entregue às células ocultas de sua memória. Desejava estar fora de casa e no telefone com Vallance, o mais cedo possível. Se suas ações levantassem suspeitas, não ficaria desanimado. Um de seus objetivos era atrair para sua órbita as mesmas forças que envolveram Tallon, porque de uma coisa ele tinha quase certeza, o Major não morrera por amar Gala Brand.
O despertador extra-sensorial não falhou. Pontualmente, às sete horas, com a boca seca por causa dos muitos cigarros da noite anterior, esforçou-se por sair da cama e entrar num banho frio. Barbeara-se, gargarejara com um dentifrício forte e, agora, vestido num terno batido branco e preto, uma camisa azul-marinho de algodão, tipo Mares do Sul, gravata de tricô preto, caminhava levemente, mas não de modo furtivo, pelo corredor até as escadas, com a pasta de couro quadrada na mão esquerda.
Encontrou a garage no fundo da casa, e o motor do Bentley correspondeu à primeira pressão do arranque. Bond seguiu lentamente pela faixa de concreto sob o olhar indiferente das janelas encortinadas da casa e seguiu em frente, em prise, pelo caminho margeado de árvores. Seus olhos voltaram-se para a casa e confirmaram seu cálculo de que um homem de pé no telhado seria capaz de enxergar por cima do muro e ter uma visão da beira do penhasco e do mar mais adiante.
Não havia sinal de vida em torno do local onde se encontrava o “Explorador da Lua”. O concreto, já começando a brilhar ao primeiro sol da manhã, estirava-se vazio na direção de Deal. Tinha-se a impressão de um aeródromo recém-construído ou talvez, pensou, com suas três “coisas” diferentes de concreto, a cúpula de uma colmeia, a parede lisa de ferro e o cubo distante do ponto de disparo, cada qual lançando poços negros de sombra em sua direção, ali no sol matutino, como uma paisagem deserta de Dali, na qual três objets trouvés repousavam num acaso cuidadosamente calculado.
Lá fora, no mar, dentro do nevoeiro da manhã que prometia um dia quente, o navio-farol South Goodwin mal se delineava, difusa embarcação vermelha, casada para sempre com o mesmo ponto, e condenada, como um navio de cenário no palco de Drury Lane, a assistir ao diorama das ondas e nuvens navegarem atarefadamente para os bastidores, enquanto que ele, sem papéis, passageiros ou carga, continuava ancorado para sempre no ponto de partida que era também seu porto de destino.
Com intervalos de trinta segundos, buzinava sua triste queixa dentro do nevoeiro, uma prolongada nota dupla de trumpete, em cadência descendente. Um canto de sereia, pensou Bond, para repelir em vez de seduzir. Perguntava a si mesmo como os sete homens da tripulação suportariam agora o ruído, enquanto mastigavam carne de porco com feijão. Encolher-se-iam, quando marcava contracanto com a Housewife’s Choice, vindo a todo volume do rádio na hora do rancho? Mas era uma vida segura, foi a conclusão a que chegou Bond, apesar de ancorado nos portões de um cemitério.
Anotou mentalmente, para descobrir se esses sete homens tinham visto ou ouvido a coisa que Tallon marcara no mapa, em seguida saiu rápido por entre os postos de guarda.
Em Dover, parou diante do Café Royal, modesto restaurantezinho, com uma cozinha modesta porém capaz, como ele sabia há muito tempo, de preparar excelentes pratos de peixe e de ovos.
A dona, suíça-italiana, com o filho que a ajudava a dirigir a casa, recebeu-o como velho amigo, e ele pediu um prato de ovos mexidos com presunto e bastante café, recomendando que estivessem prontos em meia hora. Depois seguiu até o posto policial e fez uma chamada para Vallance, por meio da mesa de ligações da Scotland Yard. Vallance estava em casa, tomando o café da manhã. Ouviu sem comentários a conversa reservada de Bond, mas não expressou surpresa, quando este disse que não tinha tido oportunidade de falar mais intimamente com Gala Brand.
— Essa aí é uma garota inteligente. Se o Sr. K. anda tramando alguma coisa, com certeza ela tem uma ideia do que seja. E se T. ouviu um barulho no sábado à noite, ela pode ter ouvido também. Se bem que eu deva confessar que não se referiu a esse assunto.
Bond não disse nada sobre a recepção que tinha tido por parte do agente de Vallance.
— Vou falar com ela esta manhã e mandar-lhe-ei o mapa com o filme da Leica para que o senhor os examine. Vou dá-los ao Inspetor. Talvez um dos patrulheiros da estrada possa levar. É verdade, de onde T. telefonou quando chamou seu chefe na segunda-feira?
— Vou mandar verificar e depois lhe direi — disse Vallance. Mandarei também a Trinity House perguntar se a South Goodwin e os guardas-costeiros podem ajudar. Mais alguma coisa?
Bond respondeu:
— Não.
A linha passava por muitas mesas de ligação. Talvez, se tivesse sido M., ele tivesse insinuado mais alguma coisa. Pareceu-lhe ridículo falar com Vallance a respeito de bigodes e a atmosfera de perigo que ele sentira na noite anterior, e que a luz do dia dissipara. Aqueles policiais só queriam os fatos nus e crus. Eram melhores, refletiu, na solução de um crime, do que antecipá-los.
— Não, é só.
Desligou.
Sentiu-se mais alegre depois de uma excelente primeira refeição. Leu o Express e The Times e encontrou uma notícia sucinta sobre o inquérito do caso Tallon. O Express fizera muito escarcéu e muita exibição da fotografia da moça. Bond divertiu-se, ao verificar a neutra semelhança que Vallance conseguira apresentar. Decidiu que precisava tentar trabalhar com ela. Demonstraria toda confiança e lhe contaria tudo, fosse ela receptiva ou não. Talvez ela também tivesse suas suspeitas e intuições, porém tão vagas que as estava guardando consigo mesma.
Bond voltou rapidamente para a casa. Eram nove horas em ponto, e quando passou por entre as árvores na faixa de concreto, ouviu-se o lamento de uma sereia e, dos bosques por trás da casa, uma dupla fila de doze homens apareceu correndo num ritmo propositadamente igual, em direção à cúpula do foguete. Marcavam o tempo enquanto um deles tocava a campainha. A porta então se abriu, e eles entraram em fila, desaparecendo .
Raspe-se a superfície de um tedesco e encontrar-se-á a precisão — pensou Bond.
CAPITULO 14
DEDOS FORMIGANTES
Meia hora antes, Gala Brand esmagara a ponta do seu cigarro matutino, engolira o resto do café, saíra do quarto e se encaminhara para a base, com o aspecto perfeito de uma secretária particular. Trajava uma blusa branca imaculada e uma saia azul-marinho pregueada.
Pontualmente, às oito e meia, estava em seu escritório. Havia um monte de telimpressos do Ministério da Aeronáutica em cima da mesa, e sua primeira ação foi transferir um resumo de seus conteúdos para um mapa meteorológico, entrar pela porta de comunicação no escritório de Drax, e pregar o mapa num quadro pendente no ângulo da parede ao lado do vidro liso. Em seguida, apertou o interruptor que iluminava o mapa de parede, fez alguns cálculos, baseada nas colunas de números reveladas pela luz, e anotou o resultado no diagrama que prendera ao quadro.
Fizera isto com os dados do Ministério da Aeronáutica, que se tornavam cada vez mais exatos, à medida que a data do lançamento experimental se aproximava, todos os dias, desde que a base terminara, e a construção do foguete se iniciara dentro dela. Tornara-se tão perita, que agora sabia de cor as direções do giroscópio para quase todas as variações de temperatura em diferentes altitudes.
De modo que ainda ficava mais irritada quando Drax não demonstrava aceitar seus cálculos. Todos os dias quando, às nove horas, pontualmente, as campainhas de aviso soavam, e ele descia a íngreme escadaria de ferro para entrar em seu escritório, seu primeiro gesto era chamar o insuportável Dr. Walter, para que, juntos, estudassem novamente todas as suas anotações, transcrevendo os resultados no fino caderninho de notas que Drax trazia no bolso traseiro das calças. Sabia que aquilo era uma rotina invariável e se cansara de observá-la através de um orifício disfarçado que fizera, de forma a poder enviar a Vallance um relatório semanal dos visitantes de Drax. O orifício ficava na parede fina que separava os dois escritórios. O método era amadorista, porém eficiente, e ela lentamente formara um quadro completo da rotina diária, que acabara por achar demasiado irritante. Era irritante por duas razões. Significava que Drax não confiava em seus algarismos e solapava sua oportunidade de tomar parte, da maneira mais modesta que fosse, no lançamento final do foguete.
Era natural que, no decorrer dos meses, tivesse ficado tão integrada em seu disfarce quanto em sua verdadeira profissão. Era uma coisa fundamental para a exatidão absoluta dêsse disfarce que sua personalidade ficasse tão verdadeiramente oculta quanto possível. E agora, enquanto espionava, apalpava e farejava o vento em torno de Drax, para relatar ao seu Chefe em Londres, sentia-se profundamente interessada pelo sucesso do “Explorador da Lua” e tornara-se tão dedicada ao seu serviço quanto qualquer outro membro da base.
O resto de seus Ideveres como secretária particular de Drax era intoleràvelmente monótono. Todos os dias chegava um enorme volume de correspondência dirigida a Drax em Londres e enviada para lá pelo Ministério. Naquela manhã, encontrara o monte habitual de mais ou menos cinquenta cartas aguardando em cima da escrivaninha. Eram sempre de três tipos. Cartas de pedidos, de pessoas maníacas pelo foguete, cartas comerciais do corretor de Drax e de outros agentes comerciais. Para estas Drax ditava respostas breves, e o resto do dia ela se ocupava em datilografar e arquivar.
De sorte que era natural o fato de sua única obrigação relacionada com a operação do foguete destacar-se extraordinàriamente entre os monótonos deveres. Naquela manhã, ao conferir e reconferir seu plano de voo, estava mais que decidida a fazer aceitarem seus cálculos para O Dia. Entretanto, como muitas vezes lembrava a si mesma, talvez não houvesse razão para que não os aceitassem. Talvez os cálculos diários de Drax e Walter para anotação no caderninho preto não passassem de nova verificação de seus próprios números. Era bem verdade que Drax nunca tinha pedido seu boletim meteorológico ou as direções do giroscópio por onde os calculava. E quando um dia ela perguntara diretamente se seus cálculos sobre o tempo estavam corretos, ele respondera com evidente sinceridade:
— Excelentes, minha cara. Muito valiosos. Não poderíamos arranjar-nos sem eles.
Gala Brand voltou para sua sala e começou a abrir as cartas. Só mais dois planos de voo para quinta-feira e sexta, e então, baseados em seus cálculos ou noutros, nos guardados dentro do bolso de Drax, o giroscópio seria finalmente ajustado, e seria apertado no ponto de disparo.
Distraidamente, Gala olhou para as unhas e depois estendeu as duas mãos, com as costas voltadas em sua direção. Quantas vezes, durante seu adestramento na Escola da Polícia, fora mandada para fora com outras alunas e recomendada a não voltar sem um caderno de notas, um estojo de maquilagem, uma caneta-tinteiro ou mesmo um relógio de pulso? Quantas vezes, durante os cursos, o instrutor não se voltara, segurando-a pelo pulso e dizendo: “Vamos, vamos, senhorita. Isto assim não vai de jeito nenhum. Dá até a impressão de um elefante procurando açúcar no bolso do tratador. Tente novamente.”
Friamente, flexionou os dedos e depois, tomando uma resolução, voltou à pilha de cartas.
Quando faltavam poucos minutos para as nove, as campainhas de alarma soaram, e ela ouviu Drax chegar ao escritório. Pouco depois ouviu-o abrir as portas duplas novamente e chamar Walter. Em seguida, veio o habitual murmúrio de vozes cujas palavras eram abafadas pelo leve chiar do ventilador.
Gala arrumou as cartas em três pilhas e sentou-se inclinada para a frente, os nervos relaxados, os cotovelos descansando na escrivaninha e o queixo repousando na mão esquerda.
Comandante Bond. James Bond. Evidentemente, um jovem convencido, como tantos outros do Serviço Secreto. E porque tinha sido enviado em vez de alguém com quem pudesse trabalhar, um de seus amigos da Seção Especial ou mesmo uma pessoa do M15? A mensagem do Comissário-Assistente dizia que não havia mais ninguém disponível assim de repente, que ele era um dos astros do Serviço Secreto, que desfrutava da mais absoluta confiança da Seção Especial e tinha as bênçãos do M15. Até mesmo o Primeiro-Ministro lhe dera permissão para agir somente nesta missão dentro da Inglaterra. Mas de que poderia adiantar, em face do pouco tempo que restava? Ele, provavelmente, atirava bem e falava idiomas estrangeiros, além de executar uma série de truques que poderiam ser úteis no exterior. Entretanto, que poderia fazer de bom aqui, sem lindas espiãs para namorar. Porque bonitão ele era, incontestàvelmente. (Gala Brand procurou automaticamente o estojo de maquilagem e bateu a esponjinha de pó de arroz no nariz.) Bem no gênero de Hoagy Carmichael, sob certo aspecto. Aquele cabelo preto caindo em cima da sobrancelha direita. Mais ou menos o mesmo tipo ósseo. Mas havia um quê de crueldade na boca, e os olhos eram frios. Cinzentos ou azuis? Tinha sido difícil verificar a noite passada. Bem, de qualquer maneira, ela o pusera em seu lugar e lhe mostrara que não estava impressionada por rapazes atraentes do Serviço Secreto, por mais românticos que parecessem. Havia homens igualmente belos na Seção Especial, e estes eram detetives de verdade, não apenas pessoas que Phillips Oppenheim idealizara, donos de carros velozes com bandas douradas e coldres de ombro. Ah, isto ela descobrira com certeza, e até esbarrara nele para ter certeza.
Pois bem, supunha que devia demonstrar, de uma forma ou de outra, que trabalhava com ele, apesar de só Deus saber em quê. Se ela estivera ali desde quando o local fora construído sem descobrir coisa alguma, o que poderia esse homem, Bond, esperar descobrir em dois dias? E o que havia para ser descoberto? Naturalmente, existiam uma ou duas coisas que ela não conseguia compreender. Deveria falar-lhe em Krebs, por exemplo? A primeira coisa a fazer era providenciar para que ele não lhe estragasse o trabalho, fazendo qualquer tolice. Teria de ser fria, firme e extremamente cautelosa. Mas isto não queria dizer, chegou à conclusão no momento em que a cigarra tocava e ela apanhava as cartas e o caderno de taquigrafia, que não pudesse ser amistosa em suas relações. Estritamente dentro de suas próprias condições, é claro.
Havendo tomado esta segunda decisão, abriu a porta de comunicação e entrou no escritório de Sir Hugo Drax.
Ao voltar para sua sala, meia hora depois, encontrou Bond sentado em sua cadeira com o Almanaque Whitaker aberto na escrivaninha diante dele. Apertou os lábios, quando Bond se levantou e desejou-lhe um feliz bom dia. Gala baixou a cabeça rapidamente, rodeou a escrivaninha e sentou-se. Afastou cuidadosamente o Whitaker e colocou as cartas e o caderno em seu lugar.
— Devia ter mais uma cadeira para as visitas — disse Bond com um sorriso que ela definiu como impertinente. — E alguma coisa melhor para se ler do que livros de referências.
A moça ignorou as observações.
— Sir Hugo deseja vê-lo. Eu ia agora mesmo ver se já havia se levantado.
— Mentirosa. Você me ouviu passar às sete e meia. Eu a vi espiando entre as cortinas.
— Não fiz semelhante coisa — retrucou Miss Brand indignada. — Por que haveria de estar interessada num carro que passava?
— Eu disse que você ouviu o carro — disse Bond. Insistiu em sua vantagem. — E, por falar nisso, acho que não deve coçar a cabeça com o lápis quando está tomando ditado. Nenhuma das melhores secretárias particulares faz tal coisa.
Bond olhou de modo significativo para um ponto da porta de comunicação. Depois sacudiu os ombros.
As defesas de Gala caíram. Diabo de homem, pensou. Endereçou-lhe um sorriso relutante.
— Ora. Vamos parar com isto. Eu não posso passar a manhã inteira brincando de adivinhação. Ele quer nos ver e não gosta de esperar.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação, abrindo-a. Bond seguiu-a, fechando depois a porta.
Drax estava de pé, olhando o mapa de parede iluminado. Voltou-se, quando os dois entraram.
— Ah, você está aqui — disse com um olhar firme para Bond. — Pensei que talvez nos tivesse deixado. Os guardas anotaram sua saída às sete e meia da manhã de hoje.
— Precisei dar um telefonema — explicou Bond. — Espero não ter incomodado ninguém.
— Existe um telefone em meu estúdio — ajuntou Drax, conciso. — Tallon achava que servia muito bem.
— Ah, pobre Tallon — disse Bond sem nenhuma inflexão particular.
Notara um quê de autoritário na voz de Drax que o desagradara bastante, e isto fizera com que desejasse instintivamente desarmá-lo. Nessa vez foi bem sucedido.
Drax lançou-lhe um olhar duro, que disfarçou com um risinho curto, latido e um sacudir de ombros.
— Faça como melhor lhe agradar. Você tem seu trabalho para fazer. Contanto que não perturbe as rotinas daqui. Deve-se lembrar — acrescentou mais amável — de que todos os meus homens estão nervosos ao extremo agora, e eu não posso inquietá-los com misteriosas movimentações. Espero que não deseje fazer-lhes muitas perguntas hoje. Eu preferia que não tivessem mais nada com que se preocupar. Ainda não se recuperaram do que aconteceu segunda-feira. Miss Brand poderá informá-lo a respeito de tudo que diz respeito a eles, e creio que todos os dados arquivados acham-se no quarto de Tallon. Já os examinou?
O arquivo não tem chave — respondeu Bond, dizendo a verdade.
— Desculpe, a culpa é minha — disse Drax. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta da qual tirou um pequeno molho de chaves, e entregou-o a Bond.
— Devia ter-lhe entregado isto a noite passada. O Inspetor que tratou do caso pediu-me lhe entregasse. Desculpe.
— Muito obrigado — disse Bond por sua vez. Depois fez uma pausa.
— Diga-me uma coisa, há quanto tempo Krebs trabalha com o senhor?
Fez a pergunta obedecendo a um impulso. Houve um momento de silêncio na sala.
—Krebs? — repetiu Drax, pensativo.
Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se. Estendeu a mão para o bolso da calça e puxou um maço de cigarros de ponta de cortiça. Seus dedos grosseiros lutaram com o envólucro de celofane. Tirou um cigarro e meteu-o na boca, sob a franja do bigode avermelhado, acendendo-o depois.
Bond mostrou-se surpreso.
— Eu não sabia que se podia fumar aqui — observou, tirando sua própria carteira do bolso.
O cigarro de Drax, minúsculo tubo branco no meio da caraça vermelha, subia e descia enquanto ele respondia sem tirá-lo da boca.
— Aqui não há perigo. Estas salas são à prova de ar. As portas são forradas com borracha. A ventilação é separada . Precisei colocar as oficinas e geradores apartados da cúpula e, de qualquer maneira — seu lábios sorriram em torno do cigarro — preciso dar um jeito para fumar.
Drax tirou o cigarro da boca e olhou-o. Parecia estar tomando uma resolução.
— Você estava me interrogando a respeito de Krebs. Pois bem, cá entre nós, não confio inteiramente nesse camarada — declarou fitando Bond com uma expressão significativa.
Levantou a mão num gesto de quem se desculpa.
— Nada de definido, naturalmente, ou eu já o teria mandado embora, mas encontrei-o espionando pela casa, e uma vez apanhei-o em meu estúdio, remexendo meus papéis particulares . Ele apresentou uma explicação perfeita e deixei-o sair, prevenindo-o. Contudo, para ser franco, tenho minhas suspeitas a respeito do homem. Evidentemente, ele não pode fazer mal algum. Faz parte do pessoal da casa, e nenhum deles tem licença de entrar aqui, mas — Drax fitou Bond francamente, dentro dos olhos — eu devia ter-lhe dito que se concentrasse nele. Foi muita vivacidade sua, haver observado qualquer coisa no homem, tão depressa — acrescentou com respeito. — Que foi que o levou a isto?
— Nada de extraordinário. Ele tem um aspecto inquieto. Mas o que o senhor diz é interessante, e eu não deixarei de estar de olho nele.
Voltou-se para Gala Brand, que permanecera em silêncio desde o momento em que entraram na sala.
— Qual sua opinião a respeito de Krebs, Miss Brand? — perguntou, polidamente.
A moça respondeu, dirigindo-se a Drax.
— Não entendo muito dessas coisas, Sir Hugo, — disse com modéstia e um quê de impulsivo que Bond admirou.
— Porém não confio nele de jeito nenhum. Não tinha intenção de lhe contar, mas ele andou rondando meu quarto, entrou lá, abriu cartas etc. Tenho certeza disso.
Drax mostrou-se chocado.
— Foi mesmo?
Pôs o cigarro no cinzeiro e extinguiu os fragmentos acesos, um por um.
— Deixe-o comigo — falou sem levantar os olhos.
CAPÍTULO 15
JUSTIÇA RUDE
Houve um momento de silêncio na sala durante o qual Bond refletiu como era estranho que as suspeitas recaíssem tão de repente e unanimemente sobre o mesmo homem. Isto, por acaso, libertaria automaticamente os outros? Krebs não poderia ser membro de uma quadrilha? Ou trabalharia por conta própria e, nesse caso, com que objetivo? E que relação haveria entre suas espionagens e as mortes de Tallon e Bartsch?
Drax quebrou o silêncio.
— Bem, parece que chegamos a um ponto de acordo — disse, olhando Bond, à procura de confirmação. Este baixou a cabeça, num gesto cauteloso.
— Tenho mesmo de deixá-lo por sua conta. De qualquer forma, providenciaremos para que se conserve bem afastado da base. Aliás, vou levá-lo comigo amanhã para Londres. Pormenores de última hora deverão ser combinado com o Ministério, e Walter não pode sair daqui. Krebs é o único homem capaz de executar o serviço de um ajudante-de-ordens. Isto o conservará fora de qualquer complicação. Até lá temos todos de mantê-lo sob vigilância. A não ser, naturalmente, que você queira prendê-lo já, trancando-o à chave e cadeado. Eu preferia que não. Não desejo perturbar mais a equipe.
— Não será necessário — disse Bond. — Ele conta com alguns amigos particulares entre os outros homens?
— Nunca o vi falando com nenhum, exceto Walter e o pessoal de casa — disse Drax. — Calculo que se considera superior aos outros. Pessoalmente, não acredito que exista muita maldade nesse camarada, do contrário não o teria conservado. Ele fica sozinho em casa o dia inteiro, e com certeza é um desses sujeitos que gostam de bancar o detetive e meter o nariz nos negócios dos outros. Que diz você? Talvez pudéssemos deixar as coisas neste pé?
Bond fez que sim, guardando seus pensamentos para si mesmo.
— Pois então — continuou Drax, feliz por deixar de lado um assunto desagradável e voltar para os negócios. — Temos outras coisas para conversar. Ainda nos restam dois dias, e é melhor falar-lhe sobre o programa.
Ergueu-se da cadeira e mediu pesadamente a sala em largas passadas, por trás da escrivaninha:
— Hoje é quarta-feira. À uma hora a base será fechada para receber combustível. Isto será supervisionado pelo Dr. Walter, por mim e mais dois homens do Ministério. Para a eventualidade de qualquer coisa sair errada, uma câmara de televisão registrará tudo que fizermos. E então, se houver uma explosão, nossos sucessores saberão como agir melhor na próxima vez — finalizou com um curto riso ladrado. — Se o tempo permitir, o telhado será aberto hoje à noite para deixar a fumaça sair. Meus homens montarão guarda em vigias de dez jardas de intervalo, até a distância de cem jardas a partir da base. Haverá três homens armados na praia, do lado oposto ao túnel exaustor no penhasco. Amanhã de manhã a base será novamente aberta até o meio-dia para uma verificação final e, a partir desse instante, exceto a disposição do giroscópio, o “Explorador da Lua” estará pronto para partir. Os guardas ficarão permanentemente vigiando toda a base. Na sexta-feira pela manhã eu examinarei pessoalmente o ajustamento do giroscópio. Os homens do Ministério tomarão conta do ponto de disparo, e a RAF do radar. A BBC enviará seus caminhões, que ficarão atrás do ponto de disparo, e as irradiações começarão às onze e quarenta e cinco.
Ao meio-dia em ponto apertarei o pistão, um sinal de rádio passará por um circuito elétrico e — Drax sorriu abertamente — nós veremos o que vamos ver.
Fez uma pausa, mexendo no queixo:
— Vejamos agora o que mais? Ah, sim. A navegação será banida da área orbital desde a meia-noite de quinta-feira. A Marinha providenciará uma patrulha nos limites da área durante toda a manhã. Haverá um comentarista da BBC num dos navios. O Ministério do Abastecimento mandará técnicos que ficarão num navio de salvamento com um aparelho de televisão para a profundidade do mar, e depois que o foguete aterrissar, tentarão recuperar os restos. Talvez você se interesse em saber — continuou, esfregando as mãos numa alegria quase infantil, — que um mensageiro do Primeiro-Ministro trouxe a notícia muito alvissareira de que não só estará reunido o Gabinete para ouvir a irradiação, mas o Palácio também escutará o lançamento.
— Ótimo — disse Bond, satisfeito pelo outro.
— Obrigado. Agora quero ter absoluta certeza de que você está satisfeito com as medidas de segurança que tomei na própria base. Não creio que seja necessário nos preocuparmos com o que se passar do lado de fora. A RAF e a polícia parecem estar executando um serviço muito completo.
— Tudo parece ter sido providenciado — disse Bond.
— Não creio que me reste muita coisa para fazer no tempo que ainda falta.
— Nada que eu me lembre — concordou Drax. — Exceto nosso amigo Krebs. Esta tarde ele permanecerá na camioneta da televisão tomando notas, de modo que estará fora de qualquer trapalhada. Por que você não vai dar uma olhada na praia, na base do penhasco, enquanto ele está fora de ação? este é o único ponto fraco que eu posso lembrar. Muitas vezes pensei que se alguém quisesse penetrar na base, tentaria passar pela cavidade exaustora. Leve Miss Brand. Quatro olhos, etc, e ela não poderá mesmo usar seu escritório até amanhã de manhã.
— Está bem — concordou Bond.
— Eu gostaria de dar uma olhada no lado do mar, depois do almoço, e se Miss Brand não tiver nada de melhor para fazer...
Voltou-se para ela com as sobrancelhas erguidas. Gala Brand baixou os olhos.
— Claro, se Sir Hugo desejar — disse sem entusiasmo.
Drax esfregou as mãos.
— Então está combinado. E agora preciso voltar a trabalhar. Miss Brand, quer fazer o favor de pedir ao Dr. Walter que venha aqui, se estiver livre? Nós nos veremos na hora do almoço — disse a Bond, despedindo-o.
Este fez com a cabeça que sim.
— Acho que vou caminhar até a cúpula e dar uma olhadela no ponto de disparo — falou sem saber direito porque mentia. Virou-se e seguiu Gala Brand através das portas duplas e depois até a base do cilindro.
Enorme serpente negra de fios de borracha se retorcia sobre o brilhante chão de aço, e Bond observou a moça escolher o caminho por entre suas voltas até onde se encontrava Walter, sozinho. Olhava a boca do tubo do combustível ser levantada para onde um guindaste, esticado até a soleira de uma porta de acesso, na metade do foguete, indicava os principais tanques de combustível.
A moça disse qualquer coisa a Walter e depois ficou olhando para cima, enquanto o tubo ia sendo delicadamente manipulado para o interior do foguete.
Bond achou que ela parecia muito inocente, ali de pé, com os cabelos castanhos soltos e a curva da garganta cor de marfim imergindo na blusa branca e simples. Com as mãos cruzadas nas costas, contemplando embevecida os faiscantes cinquenta pés do “Explorador da Lua”, poderia ser tomada por uma colegial mirando uma árvore de Natal — exceto pelo impudente orgulho dos seios atrevidos, levantados pela cabeça e os ombros jogados para trás.
Bond sorriu consigo mesmo ao chegar ao pé da escada de ferro e começar a subir. Aquela moça inocente, desejável, lembrou a si próprio, é uma policial extremamente competente. Sabe como desferir pontapés e onde; pode quebrar meu braço, provavelmente mais depressa e com mais facilidade do que eu poderia quebrar o dela, e pelo menos metade de seu ser pertence à Seção Especial da Scotland Yard. Naturalmente, refletiu, baixando os olhos a tempo de vê-la seguir o Dr. Walter até o escritório de Drax, existe sempre a outra metade.
Lá fora, o brilhante sol de maio parecia particularmente dourado depois do branco azulado dos arcos, e Bond sentia-o quente nas costas ao caminhar deliberadamente pelo concreto em direção à casa. O apito de nevoeiro do Goodwin estava silencioso, e a manhã tão calma que ele podia ouvir as batidas rítmicas dos motores de um navio, quando este passava por Inner Leads, entre o Goodwin e a praia, a caminho do Norte.
Aproximou-se da casa, protegido pelo largo muro contra o vento, e então, rapidamente, atravessou as poucas jardas até a porta da frente, sem produzir o menor ruído com os sapatos de crepe-sola. Abriu a porta, deixou-a escancarada e caminhou de leve para o háll onde se pôs à escuta. Ouviu o rumor das manhãs de verão; uma abelha batendo de encontro à vidraça de uma das janelas e um bulício confuso e distante nas barracas atrás da casa. Fora isto, o silêncio era profundo, cálido e tranquilizante .
Bond caminhou cautelosamente através do hall e pelas escadas acima, assentando os pés inteiros no chão e usando as extremidades dos degraus onde havia menos probabilidade de a madeira estalar. Não se ouvia barulho no corredor, mas Bond viu que sua porta, lá no fim do mesmo, estava aberta. Retirou o revólver da axila e foi seguindo depressa pela passagem atapetada.
Krebs estava de costas para ele. Achava-se ajoelhado no meio do quarto com os cotovelos no chão. Suas mãos se encontravam nas rodas do fecho de segredo da pasta de couro de Bond. Toda sua atenção focalizava-se no estalido das linguetas do fecho.
O alvo era tentador, e Bond não hesitou. Seus dentes apareceram num sorriso cruel, deu dois passos rápidos para dentro do quarto e mandou o pé com violência.
Toda sua força se concentrava na ponta do sapato, e seu equilíbrio e tempo foram perfeitos.
Um grito de gralha partiu de Krebs quando, como a caricatura de um sapo pulando, saltou por cima da pasta de Bond mais ou menos um metro adiante, batendo na frente da cômoda de mogno. Sua cabeça foi de encontro ao centro com tanta fôrçia, que a pesada peça dançou na base. O grito foi abruptamente interrompido, e ele tombou esticado e inerte sobre o tapete, ali permanecendo.
Bond ficou olhando e esperando ouvir o som de passos apressados, mas o silêncio continuou a reinar dentro da casa. Passou por cima do corpo, curvou-se sobre ele e ajeitou-o de costas. O rosto em torno do borrão do bigode amarelo estava pálido e um pouco de sangue escorria de um corte no alto da fronte. Os olhos continuavam fechados, e a respiração normal.
Bond ajoelhou-se num lado só e começou a dar uma busca minuciosa em todos os bolsos do terno alinhado, cinzento, de listas fininhas, que o homem trajava, colocando desapontado o magro conteúdo no tapete ao lado do corpo. Não havia caderninhos de nota nem papéis. Os únicos objetos de interesse eram um molho de chaves-mestras, uma faca de mola com uma lâmina de estilete bem amolada e uma espécie de cassetete de couro preto em forma de trouxa. Bond guardou essas coisas no bolso, foi até a mesinha de cabeceira e pegou a garrafa intacta de água de Vichy.
Foram necessários cinco minutos para fazer Krebs voltar a si e fazê-lo sentar-se com as costas apoiadas na cômoda. Mais cinco para que recuperasse a voz. Pouco a pouco a cor foi voltando-lhe ao rosto e a astúcia aos olhos.
— Não respondo perguntas a não ser a Sir Hugo — declarou quando Bond começou o interrogatório. — Você não tem o direito de me fazer perguntas. Eu cumpria meu dever.
Sua voz era mal-humorada e segura de si.
Bond segurou a garrafa vazia de Vichy pelo gargalo.
— Refuta novamente. Do contrário, eu lhe bato com isto até quebrar, e depois usarei o gargalo para alguma cirurgia plástica. Quem lhe mandou revistar meu quarto?
— Leck mich am Arsch — Krebs cuspiu o insulto obsceno na cara de Bond.
Este curvou-se e vibrou-lhe violenta pancada nas canelas.
O corpo de Krebs dobrou-se mas, quando Bond tornou a levantar o braço, ergueu-se subitamente do chão e mergulhou por baixo da garrafa que descia. O golpe pegou-o rijo no ombro, porém não lhe cortou o ímpeto, e ele se encontrou do outro lado da porta, já no meio do corredor, antes de Bond partir em sua perseguição.
Bond parou então do lado de fora da porta e observou a figura ligeira desaparecer pelas escadas, fora de suas vistas. Em seguida, o rinchar das solas de borracha descendo às pressas as escadas se fez ouvir até atravessar o hall. Bond riu abruptamente para si mesmo, voltou para o quarto e fechou a porta. Além de quase arrebentar a cabeça do sujeito, tudo indicava que não arrancaria nada dele. Animal astucioso. Seus ferimentos não poderiam ter sido assim tão maus, no fim das contas. Bem, caberia a Drax castigá-lo. A não ser, naturalmente, que Krebs estivesse executando suas ordens.
Pondo em ordem a confusão do seu quarto, Bond sentou-se na cama e olhou a parede do lado oposto com olhos que nada viam. Não tinha sido apenas o instinto que o levara a dizer a Drax que iria até o ponto do tiro, em vez de voltar para a casa. Passara-lhe seriamente pela ideia o fato de que a espionagem de Krebs era feita por ordem de Drax e que este organizava seu próprio sistema de segurança. Entretanto, de que maneira isto se entrosava com as mortes de Tallon e Bartsch? Ou o duplo assassínio teria sido uma coincidência sem nenhuma relação com as marcas do mapa e as impressões digitais de Krebs?
Como que chamado pelos seus pensamentos, bateram à porta, e o mordomo entrou. Vinha seguido por um sargento da polícia, com o uniforme de patrulheiro de estrada, que fez continência e entregou um telegrama a Bond. Bond levou-o até a janela. Vinha assinado: Baxter, que queria dizer Vallance, e dizia:
PRIMEIRA CHAMADA VEIO DA CASA SEGUNDO LUGAR NEVOEIRO EXIGIU FUNCIONAMENTO BUZINA DE NEVOEIRO DE MODO QUE NAVIO FOI OUVIDO VÍRGULA NÃO OBSERVOU NADA TERCEIRO LUGAR SUA ÁREA SUSPEITA FICA MUITO PERTO PRAIA ASSIM FORA DAS VISTAS DOS ÚLTIMOS PONTOS DOS GUARDA-COSTAS DE SAINT MARGARET OU DEAL.
— Obrigado — disse Bond. — Não tem resposta.
Depois de fechar a porta, chegou o isqueiro aceso ao telegrama e depois deixou-o cair na lareira, reduzindo os restos queimados a pó com a sola do sapato.
Dali nada mais se aproveitava, exceto que a chamada de Tallon para o Ministério poderia realmente, ter sido ouvida por alguém da casa, o que teria resultado na busca em seu quarto, que, por sua vez, teve como consequência a morte do major. Mas que dizer de Bartsch? Se tudo aquilo fazia parte de uma coisa muito maior, como poderia ser ligada a um atentado de sabotagem ao foguete? Não seria muito mais simples supor que Krebs era um espião nato, ou ainda mais provável, que estivesse trabalhando para Drax, que parecia ser meticulosamente cônscio da necessidade de segurança e que podia também querer certificar-se da lealdade de seu secretário, de Tallon, e, sem dúvida, depois do encontro no Blades, de Bond? Não seria agir justamente como o chefe (e Bond conhecera alguns que se adaptariam perfeitamente ao tipo) de um projeto super-secreto durante a guerra, que reforçava a segurança oficial com seu próprio sistema de espionagem particular?
Se essa teoria fosse correta, restava apenas o duplo assassínio. Agora que Bond fora contagiado pela magia e tensão do “Explorador da Lua”, os fatos referentes aos tiros histéricos pareciam mais razoáveis. Quanto às marcas no mapa, poderiam ter sido feitas num dia qualquer do ano anterior; os binóculos para noite eram isto apenas: binóculos para noite, e os bigodes dos homens apenas uma quantidade de bigodes.
Bond sentou-se no quarto silencioso, remexendo as peças do quebra-cabeças, de modo que dois quadros inteiramente diversos se alternavam em sua mente. Num deles o sol brilhava, tudo estava límpido e inocente como o dia. O outro era uma confusão culposa de motivos, suspeitas obscuras e interrogações de pesadelo.
Quando o gongo soou para o almoço, ele ainda não sabia que quadro escolher. Para adiar a decisão, afastou do espírito tudo, menos as perspectivas da tarde que passaria sozinho com Gala Brand.
CAPITULO 16
UM DIA GLORIOSO
Era uma tarde maravilhosa, azul, verde e dourada. Quando deixaram a faixa de concreto passando pelo portão da guarda, perto do ponto de tiro, agora ligado à base de lançamento por um grosso cabo, pararam um momento à beira do grande penhasco calcário e ficaram olhando todo o trecho da Inglaterra onde César ancorara pela primeira vez dois mil anos atrás.
À esquerda, o tapete de grama verde, salpicado de pequeninas flores silvestres descia gradativamente para as longas praias de pedregulho de Walmer e Deal, que se curvavam para Sandwich e a baía. Mais além, os penhascos de Margate, surgindo brancos dentre a névoa distante que ocultava o North Foreland, guardavam a mancha cinzenta do aeródromo de Manston, acima do qual aviões a jato norte-americanos descreviam suas parábolas no céu. Em seguida, vinha a Ilha de Thanet e, fora do raio visual de ambos, a embocadura do Tâmisa.
A maré era baixa, e os Goodwins pareciam dourados e suaves dentro do azul cintilante do Canal mostrando apenas o conjunto de mastros e cordames que se esticavam para contar a verdadeira história. As letras brancas do navio-farol South Goodwin estavam fáceis de ler, e até o nome do navio irmão, mais para o norte, surgia branco contra o vermelho do casco.
Entre as areias da costa, ao longo do canal de doze braças do Inner Leads, havia meia dúzia de navios navegando pelo Downs. O som ritmado de seus motores destacava-se claramente dentro do mar calmo e, entre as areias cruéis e o contorno nítido da costa francesa, viam-se navios de todas as procedências rumando para seus destinos — navios de passageiros de linha regular, navios mercantes, rústicas chalupas holandesas e até uma esguia corveta correndo para o sul, talvez para Portsmouth. Até onde a vista alcançava, o lado oriental mais próximo da Inglaterra estava coalhado de embarcações, dirigindo-se para os horizontes distantes, para um porto nacional ou para o outro lado do mundo. Era um panorama cheio de colorido, excitação e romance, e as duas criaturas, ali na borda do penhasco, mantinham-se em silêncio enquanto permaneciam por algum tempo observando tudo.
A paz foi turbada por dois uivos de sirena, provenientes da casa, e eles se viraram, para olhar o mundo negro e feio de concreto, que haviam banido de seus espíritos. Enquanto olhavam, uma bandeira vermelha foi hasteada por cima da cúpula de lançamento, e duas ambulâncias da RAF, com as cruzes vermelhas nos lados, irromperam do renque de arvoredo, na direção do muro, e aí estacaram.
— Vai começar a operação combustível — disse Bond. — Vamos principiar nosso passeio. Nada haverá para ver e, se por acaso acontecesse alguma coisa, nós não sobreviveríamos, quase com certeza, no ponto em que nos encontramos.
A moça sorriu.
— É verdade. E eu já estou cheia de olhar para todo esse concreto.
Seguiram ambos pelo declive suave e, dentro em pouco, encontravam-se já longe do alcance de tiro e da alta cerca de arame.
O gelo da reserva de Gala derretia-se rapidamente ao sol.
A alegria exótica de sua toalete, uma blusa de algodão listrada de branco e preto, metida num cinto largo, pespontado à mão, também preto, encimava uma saia meio curta, rosa shocking, e o conjunto parecia contagiá-la. Era impossível, para Bond, reconhecer a mulher frígida e distante da noite anterior naquela que caminhava agora a seu lado, rindo e feliz de sua ignorância a respeito dos nomes de flores selvagens: a erva de S. Pedro, a fumaria e outras, em tons azuis, que rodeavam seus pés.
Triunfalmente, encontrou uma orquídea selvagem e colheu-a .
— Você não faria isso, se soubesse que as flores gritam quando são colhidas — disse Bond.
Gala olhou para ele.
— Que quer você dizer com isso? — perguntou, suspeitando um gracejo.
— Ah, você não sabia? — Bond sorriu, ao observar a reação de Gala. — Existe um professor hindu, chamado Bhose, que escreveu um tratado sobre o sistema nervoso das flores. Mediu a reação delas à dor. Chegou mesmo a registrar o grito de uma rosa, quando é colhida. Deve ser um dos sons mais lancinantes do mundo, não lhe parece? Pois eu ouvi algo de semelhante quando você colheu essa flor.
— Não acredito — disse Gala, olhando desconfiada para a raiz arrancada. — Mas, de qualquer maneira — acrescentou, maliciosa — eu jamais pensaria que você fosse capaz de sentimentalismos. As pessoas, no seu Serviço, não fazem de matar um ofício? E não são apenas flores. São pessoas.
— As flores não podem atirar em nós, também — disse Bond.
Gala olhou a flor.
— Agora você me fez sentir como se fosse uma criminosa. É muita maldade sua. Mas — confessou relutante — terei de descobrir essa história do hindu, e se você tiver dito a verdade, nunca mais apanharei uma flor enquanto viver. Que faço com esta? Você me fez sentir com as mãos sangrando completamente.
— Dê para mim. De acordo com você, minhas mãos já estão gotejando sangue. Um pouco mais não fará diferença.
A moça ofereceu-lhe a flor, e suas mãos se tocaram.
— Você poderá colocá-la no cano do revólver — falou, para disfarçar o instante do contato.
Bond riu:
— Quer dizer que os orifícios não servem só para decoração. Mas a minha é uma pistola automática, e eu deixei-a no quarto.
Enfiou o talo da flor numa das casas de sua camisa de algodão:
— Achei que um coldre de ombro chamaria um pouco a atenção sem o paletó para cobri-lo. Depois não acredito que ninguém vá mexer em meu quarto esta tarde.
Numa concordância tácita, eles se afastaram do momento de intimidade. Bond contou sua descoberta a respeito de Krebs e a cena do quarto.
— Foi bem feito para ele. Nunca confiei nesse homem. Mas o que é que diz Sir Hugo?
— Falei com ele antes do almoço — respondeu Bond.
—Entreguei-lhe a faca e as chaves de Krebs como prova. Ficou furioso e saiu imediatamente à procura do sujeito, resmungando de cólera. Quando voltou, me disse que Krebs parecia já se encontrar num estado deplorável e perguntou se eu não me dava por satisfeito ao saber que fora bem castigado. Repetiu toda aquela história de não querer perturbar sua equipe na última hora, etc. e tal. De modo que concordei em que fosse mandado de volta à Alemanha na próxima semana e que, enquanto isto, se considerasse preso sob palavra — sendo-lhe permitido apenas deixar o quarto vigiado.
Bond e sua companheira desceram um caminho íngreme do penhasco até a praia, virando à direita, para Royal Marine, em Deal. Caminharam em silêncio até chegarem a uma extensão de duas milhas de uma praia coberta de cascalho que, durante o tempo de maré baixa, corre entre os elevados penhascos brancos até a baía de Sta. Margarida.
Enquanto esmagavam lentamente as pedrinhas macias, Bond contou tudo que lhe passara pela cabeça desde o dia anterior. Não guardou nada. Relatou todos os passos tomados, as pistas falsas que seguira em cada um dos pontos de partida, não deixou nada por comentar, exceto uma tênue suspeita mal fundada e um amontoado de indícios que terminavam todos na mesma interrogação. . . onde estava o X da história? Onde achar um plano no qual os indícios se encaixassem? E sempre a mesma resposta: nada do que Bond sabia ou suspeitava parecia ter qualquer relação concebível com a segurança contra a sabotagem do “Explorador da Lua”. Isto, no entanto, quando tudo fora dito e feito, era a única coisa com que ele e a moça tinham que ver. Não com a morte de Tallon e Bartsch, ou com o ordinário Krebs, mas somente com a proteção de todo o projeto relacionado com o “Explorador da Lua” contra seus possíveis inimigos.
— Não é verdade? — finalizou Bond.
Gala parou e ficou um momento olhando por entre as rochas e algas a calma cintilação das ondas do mar. Estava suada e ofegante depois da caminhada difícil pelo caminho de cascalhos. Pensava como seria maravilhoso tomar um banho de mar — voltar por um momento aos dias da infância à beira-mar, antes de sua vida ter sido presa nesta estranha profissão, cheia de emoções decepcionantes e tensões nervosas. Olhou o rosto moreno e cruel do homem ao seu lado. Será que teria momentos de anseio pelas coisas simples e calmas da vida? Com certeza não. Gostava de Paris, Berlim e New York, trens, aviões, comida cara e, sim, certamente, de mulheres caras.
— Então? — perguntou Bond, conjeturando se ela ia apresentar algum indício que ele não percebera. — Que é que acha?
— Desculpe. Eu estava sonhando acordada. Não, eu acho que você tem razão. Estou aqui desde o princípio e, apesar de ter notado coisinhas estranhas de vez em quando, fora os tiros resultando em duas mortes, claro, não vi absolutamente nada de incorreto. Todos os componentes da equipe, de Sir Hugo para baixo, estão de corpo e alma dedicados ao foguete. Vivem unicamente para isso, e tem sido maravilhoso ver tudo se desenvolver. Os alemães são trabalhadores ao extremo — posso bem acreditar que Bartsch tenha perecido pela tensão exagerada dos nervos — gostam de ser dirigidos por Sir Hugo, e ele gosta de dirigi-los. Eles adoram-no. Quanto à segurança, o local está sólido e bem guarnecido. Tenho certeza de que se alguém quisesse se aproximar do “Explorador da Lua” seria feito em pedaços. Concordo com você a respeito de Krebs e que ele, provavelmente, estivesse agindo sob as ordens de Drax. Foi por isto que não me dei o trabalho de ir contar--lhe quando ele andou mexendo nas minhas coisas. Não havia nada para ele encontrar, naturalmente. Só cartas particulares e coisas assim. Seria típico de Sir Hugo procurar certificar-se com absoluta minúcia. Aliás, devo dizer que o admiro por isto — acrescentou com franqueza. — Ele é um homem cruel, com maneiras deploráveis, e não muito simpático debaixo de toda aquela cabelada vermelha, mas eu gosto de trabalhar para ele e estou ansiosa para que o “Explorador da Lua” seja um sucesso. Viver ao lado dele durante tanto tempo fez com que eu me sentisse exatamente como seus homens.
Gala levantou os olhos para ver a reação do companheiro. Este baixou a cabeça, assentindo.
— Depois de um dia apenas, eu posso compreender isto — disse. — Creio que concordo com você. Não há nada em que nos basearmos, exceto minha intuição, e isto é uma coisa que não conta. O principal é que o “Explorador da Lua” parece seguro, tão seguro quanto as joias da Coroa e, provavelmente, ainda mais.
Bond sacudiu os ombros impaciente, aborrecido consigo mesmo, por renegar as intuições que contavam tanto em seu trabalho.
— Vamos embora — convidou quase rude. — Estamos perdendo tempo.
Compreendendo, a moça sorriu e seguiu o companheiro.
Contornando a próxima inclinação do penhasco, chegaram à base do elevador, coberto de algas marinhas e crustáceos . . . Cinquenta jardas mais adiante alcançaram o dique, construção forte, tubular, de ferro, calçado de tiras de aço entrelaçadas, que avançava sobre as rochas e mais além.
Entre os dois, e talvez uns vinte pés acima da face do penhasco, escancarava-se a boca negra e larga do túnel de exaustão, que subia inclinada dentro do penhasco para o chão de aço sob a popa do foguete. Da borda inferior da cavidade, giz derretido caía como lava, e viam-se respigos da matéria por cima de todos os pedregulhos e rochas lá embaixo. Com os olhos da imaginação, Bond via um rastro ofuscante de flama branca surgir uivando da parede do penhasco e ouvia o sibilo e borbulhar, quando o giz líquido se derramava na água.
Levantou os olhos para a estreita faixa da cúpula de lançamento que aparecia acima da borda do penhasco, duzentos pés acima, imaginando os quatro homens com suas máscaras contra gases, vestidos com roupas de asbetos, observando os instrumentos medidores enquanto o terrível líquido explosivo pulsava pelo tubo negro de borracha até o estômago do foguete. De repente, percebeu que se encontravam dentro do raio de ação, se alguma coisa não desse certo no enchimento de combustível.
— Vamos sair daqui — disse à pequena.
Quando umas cem jardas se interpuseram entre eles e a cavidade, Bond parou e olhou para trás. Imaginou-se acompanhado de mais seis homens fortes e durões, com todos os instrumentos necessários — e conjeturou como daria início a um ataque à base, vindo do mar — embarcações presas ao cais, quando a maré estivesse baixa; uma escada na borda da cavidade? e depois o quê? Seria impossível galgar as paredes de aço polido do túnel exaustor. Seria uma questão de disparar uma arma antitanque através do chão de aço por baixo do foguete, seguida de algumas granadas de fósforo, e esperar que alguma coisa pegasse fogo. Negócio meio confuso, mas que talvez desse resultado. Sair depois seria complicado. Seriam alvos fáceis para quem estivesse no topo do penhasco. Mas isto não perturbaria um esquadrão suicida russo. Era tudo muito possível de realizar.
Gala estivera ao seu lado, observando os olhos que mediam e especulavam.
— Não é tão fácil como você pensa — disse, vendo-lhe a testa franzida. — Mesmo quando a maré é alta e o mar muito forte, colocam guardas ao longo do cimo do penhasco de noite. Eles têm holofotes, Brens e granadas. As ordens que recebem são de atirar, e fazerem as perguntas depois. Naturalmente seria melhor iluminar completamente o penhasco à noite. Mas isto só serviria para tomar a base um alvo certeiro. Estou convencida de que pensaram em tudo.
Bond continuava franzindo a testa.
— Se eles tivessem cobertura do ataque por um submarino ou uma embarcação, um grupo eficiente ainda conseguiria realizar o negócio. Vai ser o diabo, mas eu vou nadar. O mapa do Almirantado diz que existe um canal de doze braças ali adiante, mas eu gostaria de dar uma olhada. Deve ter muita água no final do dique, contudo eu me sentirei mais feliz quando verificar com meus próprios olhos.
Sorriu para a moça:
— Por que você não vem nadar também? A água deve estar bastante fria, mas lhe faria bem, depois de ter estado a cozinhar-se dentro daquela cúpula de concreto a manhã inteira .
Os olhos de Gala se iluminaram.
— Acha que eu posso? — perguntou, hesitante. — Estou com um calor tremendo. Mas que é que nós vamos vestir?
Corou ao lembrar-se de suas calcinhas e porta-seios minúsculos e de nylon quase transparentes.
— Deixe isto pra lá — disse Bond aèreamente.
— Você deve ter alguns trapinhos vestidos aí por baixo, e eu estou de short. Estaremos perfeitamente respeitáveis, e não há ninguém por aqui para ver. Depois, eu prometo não olhar — mentiu alegremente, seguindo na frente até a próxima inclinação do penhasco.
— Você se despe atrás dessa rocha, e eu desta outra.
— Vamos. Não seja tola. Tudo faz parte de nossas obrigações .
Sem esperar a resposta dela, encaminhou-se para trás de uma rocha elevada, tirando a camisa enquanto andava.
— Ora, muito bem — disse Gala, aliviada por ter a resolução sido tirada de suas mãos. Foi para trás de outra rocha e lentamente desabotoou a saia.
Quando espiou nervosamente para fora, Bond já ia na metade do trecho de áspera areia marrom que seguia por entre os pequenos lagos para onde a maré enchente rodopiava entre os verdes e negros detritos das rochas... O rapaz tinha uma aparência elástica e a pele bronzeada. O short azul era tranquilizador.
Pisando de leve, ela seguiu-o e, de repente, estava dentro d’água. Imediatamente nada mais teve importância, fora do gelo aveludado do mar, a beleza das manchas de areia por entre os cabelos ondulados das algas marinhas que via nas profundezas verdes e claras abaixo dela quando mergulhou a cabeça e nadou paralelamente à praia num rápido crawl.
Ao se encontrar ao nível do dique, parou um momento para tomar fôlego. Não se via sinal de Bond, que ela vira nadando vários metros à frente. Bateu com os pés fortemente dentro da água para manter viva a circulação e então recomeçou novamente, pensando nele sem querer, pensando no corpo rijo e moreno que devia estar ali por perto, entre as rochas, talvez, ou mergulhando para a areia, a fim de calcular a profundidade da água com que um inimigo podia contar.
Virou-se para procurá-lo de novo, e foi então que ele surgiu inesperadamente do mar, por baixo dela. Sentiu o abraço rápido e apertado e o contato breve mas forte dos lábios dele nos seus.
— Vá para o diabo — exclamou furiosa, mas o rapaz já bavia mergulhado novamente, e quando ela golfou uma porção de água do mar, conseguindo orientar-se, ele nadava alegremente a vários metros de distância.
Gala voltou-se e nadou displicente, sentindo-se bastante ridícula, porém resolvida a pô-lo no seu lugar. Era exatamente como tinha pensado. Esse pessoal do Serviço Secreto sempre encontrava tempo para o sexo, por mais importante que fosse a missão de que se encarregavam.
Mas seu corpo vibrava obstinadamente com o imprevisto do beijo, e o dia luminoso parecia ter adquirido nova beleza. Enquanto nadava mais para fora, virou-se e olhou os dentes brancos como leite, dentes da Inglaterra que rosnavam, olhou o braço distante de Dover, o confete branco e preto dos corvos e gaivotas, jogados contra o vivido pano de fundo dos campos verdes, e chegou à conclusão de que tudo seria permitido num dia assim e que, só por aquela vez, ela o perdoaria.
Meia hora depois estavam deitados, esperando que o sol viesse secá-los, separados pela respeitável distância de um metro de areia, ao pé do penhasco.
O beijo não fora mencionado, mas os esforços de Gala para manter uma atitude de alheamento haviam tombado com a excitação de examinar uma lagosta que Bond apanhara com as mãos, ao mergulhar. Relutantemente, tornaram a colocá-la numa das cavidades da rocha e ficaram observando seus movimentos de volta ao abrigo das algas marinhas. Agora, ali estavam, cansados e alegres com o banho gelado, rezando para que o sol não se escondesse atrás do penhasco acima de suas cabeças antes de estarem aquecidos e suficientemente secos para poder vestirem novamente as roupas.
No entanto, não eram só estes os pensamentos de Bond. O lindo corpo estirado da pequena ao seu lado, incrivelmente erótico na ênfase marcante das calcinhas e porta-seios agarrados à pele, interpunha-se entre ele e sua preocupação com o “Explorador da Lua”. Além do mais, não havia nada que ele pudesse fazer pelo foguete durante mais uma hora. Ainda não eram cinco, e a tomada de combustível não terminaria senão depois das seis.
Seria somente àquela hora que ele poderia aproximar-se de Drax para certificar-se de que nas duas próximas noites haveria um acréscimo de guardas no penhasco e que eles possuíam as armas adequadas. Pois verificara com os próprios olhos que havia muita água, mesmo com a maré vazante, possibilitando a chegada de um submarino.
De modo que contava pelo menos com um quarto de hora livre antes de poderem voltar.
No intervalo havia essa pequena. O corpo semidespido surgia acima dele na superfície, quando nadava em baixo dela; o beijo rápido, forte e suave ao mesmo tempo, com os braços em torno dele; as colinas pontudas de seus seios, tão próximas e o estômago macio e raso, descendo para o mistério das coxas fortemente cerradas.
Para o inferno, toda essa história.
Arrancou o espírito dessa febre e fitou diretamente o infindável azul do céu, forçando-se a observar a beleza das gaivotas esvoaçantes ao se alinharem sem nenhum esforço entre as correntes de ar que giravam sobre o alto topo dos penhascos acima deles. Mas a plumagem sedosa e branca do colo das aves desviou novamente seus pensamentos para ela, não lhe dando descanso.
— Por que você se chama Gala? — perguntou, para interromper a sequência de pensamentos cálidos e persistentes.
A moça riu.
— Durante todo meu tempo de escola mexiam comigo por causa disso — respondeu, e Bond se impacientou diante da voz clara, fácil. — Depois, quando pertenci às Wrens e ainda pela metade da força policial de Londres. Mas meu verdadeiro nome é ainda pior. É Galateia. Era o cruzador onde meu pai servia quando eu nasci. Creio que Gala não é tão ruim assim. Quase me esqueci do meu nome de verdade. Estou sempre precisando trocá-lo, agora que estou na Seção Especial.
— Na Seção Especial. Na Seção Especial. Na. . .
Quando a bomba cai. Quando o piloto calcula mal, e o avião bate antes de tocar a pista de aterrissagem. Quando o sangue deixa o coração, e a consciência foge, há pensamentos no cérebro, ou palavras, ou talvez uma frase musical que se repete durante os poucos segundos antes da morte, como o som moribundo de um sino.
Bond não estava morto, mas as palavras ainda estavam dentro de sua mente, vários segundos depois de tudo haver acontecido.
Desde o momento em que tinham-se deitado na areia, recostados no penhasco, enquanto seus pensamentos se concentravam em Gala, seus olhos haviam observado distraidamente duas gaivotas brincando em redor de uma ponta de palha que estava na beira do ninho, numa pequena saliência, cerca de uns trezentos metros abaixo do cume distante do penhasco. Inclinavam os pescoços e pareciam cumprimentar, em seu jogo amoroso, só com as cabeças, que Bond divisava contra o branco ofuscante do céu. Então o macho voava para longe e, imediatamente voltava à saliência da rocha, para recomeçar seu jogo de amor.
Bond observava-os sonhadoramente enquanto ouvia o que a moça dizia, quando, subitamente, as duas gaivotas fugiram da saliência da rocha com um só grito de pavor. No mesmo instante viu-se um rolo de fumaça negra e ouviu-se um estrondo amortecido vindo do alto do penhasco. Em seguida, uma grande quantidade de giz branco, bem acima das cabeças de Bond e Gala, pareceu desligar-se para fora, ziguezagueando fragmentos pela encosta.
Quando Bond se deu conta do que fazia, achou-se deitado em cima de Gala, o rosto apertado contra o dela, e percebeu que o ar estava cheio de trovões, que sua respiração estava abafada, e que o sol desaparecera. Sentia as costas dormentes e doendo sob um grande peso, e sua orelha esquerda, além do eco do trovão, guardava o som de um grito sufocado.
Mal teve consciência do se passava, e precisou esperar até que seus sentidos voltassem à vida.
A Seção Especial. O que foi que ela disse a respeito da Seção Especial?
Fez esforços inauditos para se mexer. Apenas no braço direito, o braço mais próximo do penhasco, ainda havia algum movimento, mas quando puxou o ombro, o braço ficou mais livre até que, finalmente, com um impulso grande para trás, a luz e o ar chegaram até eles. Lutando no nevoeiro de poeira de giz, alargou o buraco, até a cabeça poder retirar seu peso esmagador de cima de Gala. Sentiu o leve movimento, quando ela virou a cabeça para um lado, procurando a luz e o ar. Uma torrente de poeira e pedras no buraco que ele limpara fê-lo cavar ferozmente mais uma vez. Pouco a pouco, aumentou o espaço até conseguir firmar o cotovelo direito, e então, tossindo ao ponto de imaginar que os pulmões iam arrebentar, impulsionou o ombro direito para cima até que, de repente, livrou-o, bem como a cabeça.
Seu primeiro pensamento foi que tinha havido uma explosão no “Explorador da Lua”. Levantou os olhos para o penhasco e depois para a praia. Não. Estavam a cem metros da base. Foi apenas na linha do horizonte, diretamente acima deles, que um grande pedaço fora comido no penhasco.
Em seguida pensou no perigo imediato que corriam. Gala gemia, e ele sentia o frenético bater de seu coração contra o próprio peito, mas a máscara pavorosa e branca de seu rosto estava agora livre para respirar, e ele se pôs então a girar o corpo de um lado para o outro em cima dela, a fim de tentar aliviar a pressão de seus pulmões e do estômago. Lentamente, polegada por polegada, seus músculos partindo-se com o esforço, procurou caminho sob a pilha de poeira e detritos até o lado do penhasco, onde sabia que o peso seria menor.
Finalmente livrou o peito e pôde ajoelhar-se ao lado da companheira. O sangue pingava de suas costas e braços feridos, misturando-se com a poeira de giz que continuamente caía na parte lateral dos buracos que fizera mas verificou que não tinha ossos quebrados e, com a fúria do trabalho de salvamento, não sentiu dores.
Grunhindo e tossindo, sem uma pausa para respirar, ergueu-a e fê-la sentar-se e, com a mão sangrando, limpou um pouco do giz de seu rosto. Depois, livrando as pernas da tumba de giz, levantou-a e levou-a até uma elevação dos detritos, com as costas voltadas para o penhasco.
Ajoelhou-se e olhou aquele horrível espantalho branco que, minutos antes, fora uma das mais lindas moças que já vira. Enquanto olhava os filêtes de sangue escorrendo-lhe pelo rosto, rezou para que seus olhos se abrissem.
Quando, segundos mais tarde, eles se abriram, o alívio foi tão grande, que Bond se afastou e sofreu tremenda crise de náuseas.
CONTINUA
A um quilômetro da base, aproximadamente, Drax estacou.
— Eu explicarei a geografia — disse ele. — Walter, siga na frente. Já devem estar esperando por você, para dar outra olhada naquelas barbatanas... Mas não se preocupe demasiado com elas, meu caro amigo. O pessoal das ligas de alto teor sabe muito bem o que está fazendo. E agora — continuou Drax, olhando para Bond, enquanto fazia um gesto na direção da cúpula branca como leite — ali dentro está o “Explorador”. O que você vê é o topo de uma plataforma que foi escavada a mais de quarenta pés de profundidade, no terreno calcário. As duas metades da cúpula são abertas hidràulicamente e recolhidas para trás, ao nível do muro de vinte pés. Se agora estivessem abertas, você veria o cone final do “Explorador”, ao nível do muro. Ali — apontou para uma sombra retangular que estava já quase fora do campo visual de ambos, na direção de Deal — fica a casamata de controle, de onde se comanda o disparo. É um blocausse em concreto. Está cheio de dispositivos de radar de rastreio — tanto o radar de velocidade Doppler como o radar de rastreio de direção de voo, por exemplo. As informações são fornecidas por meio de vinte canais telemétricos, alojados no cone do foguete. Também existe ali dentro uma enorme tela de televisão, de modo que se pode acompanhar o comportamento do foguete no interior da cápsula, depois de iniciado o voo. Um outro conjunto de televisores serve para acompanhar o início da ascensão. Ao lado da casamata, há um elevador que desce ao longo do penhasco. Uma boa parte das peças e maquinismos foi trazida para a base por via marítima e transportada até cá em cima por meio desse monta-cargas. Aquele gemido que você escuta, vem da central elétrica, ali mais adiante — e Drax fez um gesto vago, em direção a Dover. — Os alojamentos dos homens e a casa são protegidos pelo muro à prova de deslocação de ar. Mas quando fizermos o lançamento, não deverá haver ninguém dentro de um raio de ação de um quilômetro e meio, a partir da base, exceto os técnicos do Ministério e a equipe da B.B.C., que estará colocada na casamata de comando. Espero que o muro aguente bem a deslocação de ar. Walter diz que a base e uma boa parte da faixa de concreto derreterão com o calor. E é tudo. Nada mais precisa saber, até entrarmos. Vamos.
Bond tornou a observar o tom rude de comando. Seguiu em silêncio, atravessando uma zona banhada de luar, até chegarem à parede de suporte da cúpula. Uma lâmpada vermelha brilhava na parede, por cima de uma porta de aço chapeado. Iluminava um grande letreiro que dizia em inglês e alemão:
PERIGO DE MORTE.
ENTRADA PROIBIDA QUANDO A LÂMPADA VERMELHA ESTIVER ACESA.
TOQUE A CAMPAINHA E ESPERE.
Drax apertou o botão por debaixo do letreiro, e ouviu-se o som abafado de uma campainha de alarma.
— Pode estar alguém trabalhando com o oxiacetileno, ou fazendo qualquer outro trabalho delicado — explicou Drax. — Basta que desvie sua atenção do serviço, pela fração de um segundo, caso alguém entre sem aviso, e isso poderia resultar num erro bastante caro. Todos largam os utensílios quando a campainha soa, e só recomeçam quando veem de que se trata.
— Drax afastou-se um pouco da porta e apontou para uma série de gradeados dispostos logo abaixo do remate da parede. — São os exaustores de ventilação — continuou ele explicando.
— O ar condicionado no interior da cúpula mantém-se constantemente a setenta graus Farenheit.
A porta foi aberta por um homem que empunhava um cassetete de policial e trazia um revólver no cinturão. Bond seguiu Drax até uma pequena antecâmara. Esta nada tinha senão um banco e uma fileira bem arrumada de chinelos de feltro.
— Terá de calçá-los — disse Drax, sentando-se e tirando os sapatos. — Poderia escorregar e esbarrar contra alguém. O melhor é deixar aqui também seu casaco. Setenta graus Farenheit é uma temperatura bastante elevada.
— Obrigado — disse Bond, lembrando-se da Beretta encaixada sob a axila. — A verdade é que não sinto calor algum.
Sentindo-se como um visitante num teatro em dia de ensaios, Bond seguiu Drax através de uma porta de comunicação, passando depois por um estreito corredor e desembocando numa série de projetores que, instintivamente, o fizeram levar a mão aos olhos, enquanto com a outra se agarrava ao gradeado do corrimão protetor, à sua frente.
Quando retirou a mão, foi brindado com uma cena de tal esplendor que, durante vários minutos, ficou sem fala, os olhos fascinados pela terrível beleza da mais poderosa arma existente sobre a Terra.
CAPITULO 12
O “EXPLORADOR DA LUA”
Era como se o tivessem metido no tambor polido de um gigantesco revólver. Partindo do chão, a mais de doze metros abaixo da varanda onde se encontravam, erguia-se uma parede circular, de metal polido, no topo da qual, ele e Drax se colavam como duas moscas. No centro desse imenso cilindro, que mediria pelo menos uns nove metros de diâmetro, estava colocado um gigantesco lápis de cromo, refulgente, cuja ponta, aguçando-se numa antena fina como agulha, parecia roçar o telhado, seis ou sete metros acima de suas cabeças.
O cintilante projétil descansava numa base cônica de aço, que se erguia do chão por entre as extremidades de três barbatanas em forma de delta, pronunciadamente puxadas para trás, e que parecia tão afiadas quanto bisturis de cirurgião. Mas, fora isso, nada mais empanava o brilho sedoso dos quinze metros de aço cromado e polido, exceto as duas garras que saíam das paredes e colhiam a cintura do foguete, por entre espessos acolchoados de espuma de borracha.
No ponto em que as garras tocavam o projétil, viam-se pequenas portas de acesso, abertas na superfície de aço e, quando Bond olhou para baixo, divisou um homem que saía agachado por uma delas, até alcançar a estreita plataforma do monta-cargas instalado paralelamente ao bojo do “Explorador”. Depois, fechou a porta com a mão enluvada. Encaminhou-se a passos miúdos, equilibrando-se pela estreita ponte, até alcançar a parede, e fez girar uma manivela. Ouviu-se um profundo gemido de maquinismo, e a garra retirou seu suporte acolchoado do bojo do foguete, ficando suspensa no ar, como as patas dianteiras de um louva-a-Deus. Os gemidos do mecanismo alteraram-se para um tom mais cavo, e a plataforma do monta-cargas, lentamente, foi-se retraindo, em movimento de telescópio. Depois, tornou a esticar-se e foi pegar o foguete, com a garra, três metros mais abaixo. Seu operador esgueirou-se de novo pelo braço e abriu outra pequena porta de acesso ao interior, desaparecendo dentro do foguete.
— Provavelmente está verificando o sistema de alimentação de combustível dos tanques posteriores — disse Drax. — A alimentação é feita por gravidade. Um sistema bastante complexo. Que acha você disto? — Observou com prazer a expressão de êxtase, estampada no rosto de Bond.
— Uma das coisas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida — respondeu Bond. Era fácil falar. Não se ouvia o menor som dentro do grande cilindro de aço, e as vozes dos homens apinhados lá embaixo, junto da cauda do foguete, não chegavam a eles senão como distante murmúrio. Drax apontou para cima e explicou:
— Veja o cone. O que está montado é apenas experimental, mas pode substituir-se, claro, por uma cápsula estratégica, com carga nuclear. Para este voo, irá cheia de instrumentos. Telêmetros e todas essas coisas. Depois, estão os giroscópios, bem defronte de nós. E, em seguida, quase exclusivamente, tanques de combustível até abaixo, quando temos então as turbinas, já próximas da cauda. Impulsionadas por vapor superaquecido, obtido na decomposição do peróxido de hidrogênio . O combustível, fluorina e hidrogênio... — olhou rapidamente para Bond. A propósito, isto é top secret, sabe?... pois o combustível, como dizia, baixa pelos tubos de alimentação e recebe a ignição logo que é introduzido no motor. Trata-se de uma espécie de explosão controlada, que impulsiona o foguete para o ar. Esse assoalho de aço onde o “Explorador” assenta agora, desliza então para fora, claro. Por baixo, há um enorme poço de exaustão. Tem saída para a base dos rochedos, do lado do mar. Amanhã você irá dar uma vista d’olhos. Parece uma gigantesca caverna, nada mais. Quando procedemos, há dias, a um teste estático, a substância calcária do terreno derreteu e correu para o mar como se fosse água. Espero que não acabemos por calcinar e destruir os famosos penhascos brancos de Dover, quando chegar a hora zero. Você gostaria de dar uma olhada nos trabalhos?
Bond seguiu em silêncio, quando Drax indicou o caminho, descendo por uma íngreme escada de ferro, que acompanhava a parede de aço em sua curvatura. Sentia agora invadir-se por uma onda de admiração e quase de reverência por esse homem e sua formidável realização. Como teria podido ele, Bond, deixar-se impressionar desfavoravelmente pela conduta infantil de Drax, à mesa de jogo? Mesmo os grandes homens têm suas fraquezas. E Drax necessitava dessa válvula de escape para a tensão a que o submetia a tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Tornava-se óbvio que Drax não podia confiar excessivamente em seus auxiliares direitos, de nervos à flor da pele. Dele sozinho devia partir a vitalidade e a confiança necessárias para manter elevado a moral de todos. Mesmo tratando-se de uma coisa tão insignificante quanto ganhar uma partida de bridge, devia ser importante para Drax estar-se assegurando constantemente da própria capacidade, procurando em tudo vaticínios de boa sorte e de êxito, chegando ao ponto de criar esses augúrios favoráveis por suas próprias mãos. Quem não suaria ou roeria as unhas, estando tanta coisa em jogo?
Enquanto contornavam a larga curva da escada, com suas figuras grotescamente refletidas na superfície cromada do foguete, como em um espelho mágico de feira, Bond sentia quase afeto pelo homem que, apenas há poucas horas, ele dissecara sem piedade e quase com ódio.
Quando chegaram à plataforma da base de aço do cilindro, Drax fez uma pausa e olhou para cima. Bond seguiu o olhar do outro. Visto naquela perspectiva, o “Explorador” dava-lhes a impressão de estar olhando para um fino cone vertical de luz, perdendo-se na abóbada cintilante, um feixe de luz que não era totalmente branco, mas de uma tonalidade acetinada de madrepérola. Havia nele alguns pontos vermelhos e brilhantes, refletidos por um gigantesco extintor de incêndios, de neve carbônica, colocado a pouca distância. Um homem em traje de amianto estava postado ao lado do extintor, que apontava seu bico de leque para a base do foguete. Havia também uma estria de cor violeta, cuja origem provinha de uma lâmpada fixada ao painel de instrumentos, na parede. Servia para controlar os movimentos da cobertura de aço em que se encontravam e que os separava do poço de exaustão. Finalmente, um tom verde-esmeralda vinha da luz difusa de uma lâmpada com abajur, colocada sobre uma mesa de pinho, à qual se sentava um homem que ia anotando números que lhe eram transmitidos, de viva voz, pelo grupo reunido logo abaixo da cauda do foguete.
Levantando os olhos para aquela coluna em tons pastel, tão incrivelmente esguia e graciosa, parecia impossível que uma coisa tão delicada pudesse aguentar as pressões a que teria de submeter-se na próxima sexta-feira: o jato tronitruante da mais poderosa explosão controlada que alguma vez fora tentada; o impacto da barreira do som; as pressões desconhecidas da estratosfera, a quinze mil milhas por hora; o choque terrível quando retornasse, num mergulho de milhares de milhas de altura, para ferir de novo o envelope atmosférico da Terra.
Drax pareceu ler seus pensamentos. Voltou-se para Bond:
— É como perpetrar um assassinato — disse ele. Em seguida, de maneira surpreendente, explodiu numa risada asinina. —Walter! — chamou, dirigindo-se ao grupo de homens. — Venha cá!
Walter destacou-se dos outros e aproximou-se.
— Walter — prosseguiu Drax — eu estava dizendo ao nosso amigo, o Comandante, que quando lançarmos o “Explorador da Lua” será como se cometêssemos um crime de assassinato .
Bond não ficou surpreendido, ao ver uma expressão de incredulidade intrigada estampar-se no rosto do doutor. Irritado, Drax exclamou:
— Assassinato de uma criança. Assassinato de nosso filho — repetiu com um gesto na direção do foguete. — Acorde, homem! Acorde! Que se passa com você?
A fisionomia de Walter clareou. De um modo velado, sorriu, mostrando seu apreço pela comparação.
— Assassinato, Ah, sim! Essa é muito boa. Ha! Ha! E agora, Sir Hugo, as folhas de grafita no exaustor. O Ministério está satisfeito com o ponto de fusão? Eles não acham que. ..
Ainda falando, Walter levou Drax para debaixo da cauda do foguete. Bond seguiu ambos.
Os rostos dos dez homens estavam voltados para eles, quando chegaram. Drax apresentou-o com um gesto da mão.
— Comandante Bond, o nosso novo agente de segurança, — disse, conciso.
O grupo olhou Bond em silêncio. Não houve o menor movimento para ir cumprimentá-lo, e os dez pares de olhos não refletiam curiosidade.
— Então, que negócio é esse de tanta história com a grafita? . ..
O grupo se fechou em torno de Drax e Walter. Bond foi deixado só, para trás.
Não estava surpreso com a frieza da recepção. Teria olhado a intromissão de um amador nos segredos de seu próprio departamento com a mesma indiferença mesclada de ressentimento. Além do mais, simpatizava com esses técnicos apanhados a dedo, que tinham vivido durante meses a fios nas mais altas regiões da astronáutica e se encontravam agora no limiar do julgamento final. Entretanto, lembrava-se, os inocentes entre si deviam saber que Bond tinha seu próprio dever a cumprir, sua própria participação vital nesse projeto. Suponhamos, por exemplo, que um desses pares de olhos, nada comunicativos, escondesse um homem dentro de outro homem, um inimigo que, talvez, naquele instante mesmo exultasse com a certeza de que a grafita que Walter parecia não confiar era realmente sub-resistente. É verdade que tinham o aspecto de uma equipe bem unida, quase de uma fraternidade, ao se colocarem assim em torno de Drax e Walter, pendendo de suas palavras, os olhos atentos aos movimentos das bocas dos dois homens. Mas seriam parte de um cérebro, movimentando-se dentro da intimidade de uma órbita secreta, registrando seus cálculos ocultos como o mecanismo clandestino de uma máquina infernal?
Bond caminhava a esmo, para cima e para baixo do triângulo formado pelas três pontas das barbatanas que repousavam em suas cavidades forradas de borracha no chão de aço, interessando-se em tudo em que seus olhos pousavam, mas, de quando em quando, focalizando-os no grupo de homens, em ângulo diferente.
Com exceção de Drax, todos usavam o mesmo macacão justo de nylon, preso por fecho-éclair de plástico. Não se via o menor vestígio de metal, e nenhum deles usava óculos. Como no caso de Walter e Krebs, suas cabeças estavam raspadas bem rente. Provavelmente, pensou Bond, para evitar que um fio solto de cabelo pudesse cair dentro do engenho. Entretanto, e isso chamou-lhe a atenção como característica muito estranha da equipe, todos exibiam exuberantes bigodes, cuja manutenção exigia, sem dúvida, grande dose de cuidados. Eram de todos os formatos e tonalidades: louros, cor de rato ou escuros, em guidões de bicicleta, de foca, à Kaiser ou à Hitler — cada rosto exibia seu distintivo capilar, entre os quais a pelagem ruiva de Drax brilhava como insígnia oficial do chefe supremo.
Por que motivo, conjeturava Bond, todos os homens da base usavam bigode? Nunca os apreciara, mas combinados com as cabeças raspadas, lembravam algo de positivamente obsceno. Teria sido apenas tolerável, se todos fossem cortados no mesmo modelo, mas a variedade de gêneros individuais, essa anarquia de formatos, tinha um que de particularmente horrível, destacando-se do fundo composto pelas cabeças nuas e redondas.
Nada mais havia para chamar a atenção. Os homens eram de estatura mediana, e todos de tipo mais sobre o esguio — talhados, supunha Bond, mais ou menos de acordo com as necessidades do trabalho. A agilidade seria imprescindível nas plataformas, nas passagens ao longo das garras laterais e dos monta-cargas, e solidez para executar as manobras através das portas de acesso e dentro dos minúsculos espaços disponíveis nos compartimentos do foguete. As mãos deles pareciam ter os músculos e nervos relaxados. Eram imaculadamente limpas, e seus pés, metidos em chinelos de feltro, estavam imóveis pela concentração no trabalho. Bond não surpreendeu nenhum deles, em ocasião alguma, olhando em sua direção, movido pela curiosidade, e quanto a penetrar em seus espíritos ou calcular suas doses de lealdade, confessava a si próprio que a tarefa de desmascarar os pensamentos de cinquenta desses homens-robôs alemães, em três dias, era absolutamente impraticável. E lembrou-se, então, de que já não eram cinquenta. Apenas quarenta e nove. Um desses robôs estourara o tampo dos miolos. E o que transparecera dos pensamentos secretos de Bartseh, afinal? Desejo por uma mulher e um “Heil Hitler”. Estaria muito enganado, cogitava Bond, se julgasse que, esquecendo o “Explorador da Lua”, fossem esses também os pensamentos dominantes dentro de mais quarenta e nove cabeças?
— Dr. Walter! Estou dando uma ordem!
A voz de Drax, cheia de uma ira controlada, interrompeu os pensamentos de Bond, enquanto permanecia tocando com os dedos a aresta condutora de uma das barbatanas de columbite da cauda do foguete.
— Voltem ao trabalho! Já perdemos tempo demais!
Os homens se espalharam, pressurosos, cada um absorvido em sua tarefa, e Drax aproximou-se de Bond, deixando Walter vagando, indeciso, sob a enorme bocarra do exaustor de jato do foguete.
Drax mostrava uma fisionomia tempestuosa.
— Maluco do inferno — praguejou ele. — Está sempre descobrindo complicações.
Depois, como se quisesse esquecer seu adjunto, acrescentou bruscamente para Bond:
— Venha até meu escritório. Vou-lhe mostrar o plano de voo. Depois iremos dormir.
Bond seguiu-o. Drax girou uma pequena maçaneta embutida na parede de aço, e uma porta estreita se abriu, com um silvo abafado. A um metro mais para dentro, havia outra porta também de aço, e Bond notou que ambas eram cercadas de borracha, tornando o cilindro estanque à entrada de ar. Antes de fechar a porta externa, Drax parou na soleira e apontou, na parede circular, um bom número de maçanetas, quase invisíveis e semelhantes à que ele utilizara.
— São as portas das oficinas: geradores elétricos, controle de combustível, lavatórios, armazéns de materiais... — Apontou a porta seguinte. — Aqui é a sala de minha secretária. — Fechou a porta externa, antes de abrir a segunda e, entrando em seu escritório, fechou a porta interna atrás de Bond.
Era um recinto severo, pintado de cinza-claro, onde se via uma ampla escrivaninha e diversas cadeiras de metal tubular, forradas de lona azul-marinho. O chão era atapetado em cinza. Havia ainda dois fichários verdes e um grande aparelho de rádio, metálico. Uma porta semiaberta deixava entrever parte de um banheiro ladrilhado. A escrivaninha estava disposta de frente para uma larga parede lisa, que parecia ser construída de vidro opaco. Drax encaminhou-se para a parede e baixou dois interruptores, na extremidade direita. A parede inteira ficou iluminada como tela de cinema, e Bond se defrontou com dois mapas, cada um de seis pés quadrados, ambos desenhados no próprio vidro.
O mapa da esquerda mostrava toda a região oriental da Inglaterra, desde Portsmouth até Hull, bem como as águas adjacentes, nas latitudes entre 50 e 55 graus. Do ponto vermelho, próximo a Dover, que representava a base de lançamento do “Explorador da Lua”, partia uma série de círculos concêntricos, representando, com intervalos de dez milhas, o raio de ação do projétil. Num ponto distante 80 milhas da base, entre as ilhas Fríseas e Hull, via-se um losango vermelho, desenhado em pleno oceano.
Drax fez um gesto para as intrincadas tábuas matemáticas e as colunas de leitura de bússolas, que enchiam o lado direito do mapa.
— Velocidades de vento, pressão atmosférica, cálculos de computador para os giroscópios — foi explicando ele. — Tudo calculado na base da velocidade e raio de ação do foguete, como constantes matemáticas. Recebemos diariamente as previsões meteorológicas fornecidas pelo Ministério da Aeronáutica, bem como as leituras efetuadas na atmosfera superior, cada vez que um jato da RAF alcança essa altitude. Todos os relatórios nos são transmitidos. Quando um avião atinge a altitude máxima, solta balões de hélio que podem subir ainda mais e nos fornecem novas leituras. A camada atmosférica chega até cinquenta milhas de altitude, aproximadamente. Depois das primeiras vinte, não existe já qualquer densidade que possa afetar o progresso do foguete. Voará quase em vácuo. Atravessar as primeiras vinte milhas é que constitui o principal problema. A atração da gravidade, claro, é outra preocupação. Walter poderá explicar-lhe todas essas coisas, se você estiver interessado. Haverá informações contínuas sobre o tempo, durante as últimas horas até sexta-feira. E então ajustaremos os giroscópios, pouco antes do lançamento. Por enquanto, Miss Brand colige as informações recebidas todas as manhãs e organiza um mapa de movimentos giroscópicos, para o caso de ser necessário.
Drax apontou para o segundo dos dois mapas. Era um diagrama do voo elíptico do foguete, desde o ponto de lançamento até seu alvo. Havia ainda mais colunas de números e cifras.
— Aí temos o registro de velocidade da Terra e seus efeitos na trajetória do foguete — explicou Drax. — A Terra estará girando para Leste, em relação ao voo do foguete. Esses fatores têm de ser conjugados com o outro mapa, e é da leitura final que sairão as instruções de voo. É um negócio bem complicado. Felizmente você não precisa compreender. Deixe isso para Miss Brand. E agora — disse, apagando as luzes da parede que ficou novamente lisa — deseja fazer alguma pergunta a respeito de seu trabalho? Não creio que haja muita coisa para você fazer. Já viu que tudo foi feito com a máxima segurança. O Ministério insistiu para que assim fosse, desde o início.
— Tudo me parece em ordem — disse Bond.
Examinou a fisionomia de Drax, em seguida. O olho bom fitava-o intensamente. Bond fez uma pausa.
— Acha que havia alguma coisa entre sua secretária e o Major Tallon?
Era uma pergunta clara, e o melhor seria fazê-la agora.
— É possível, — respondeu Drax sem constrangimento. — Ela é moça atraente. Eram forçados a conviver, constantemente, na companhia um do outro. De qualquer maneira, parece que Bartsch ficou alucinado por ela.
— Ouvi dizer que Bartsch fez continência e gritou: “Heil Hitler” antes de virar a arma contra a boca — disse Bond.
— Foi o que me contaram — confirmou Drax, sem o mínimo interesse. — E daí?
— Por que motivo todos os homens usam bigode? — indagou Bond, ignorando a pergunta de Drax.
Novamente teve a impressão de que sua pergunta exasperara o outro homem.
Drax soltou uma de suas risadinhas curtas e ladradas.
— Foi uma ideia que eu tive. Eles são difíceis de reconhecer nesses macacões brancos e com as cabeças raspadas. Por isto mandei que todos deixassem crescer os bigodes. A coisa se tornou quase um fetiche. Como na RAF, durante a guerra. Vê alguma coisa de inconveniente nisso?
— Claro que não. A princípio é um tanto.. . surpreendente. Eu teria pensado que números grandes colocados nas roupas, com uma cor diferente para cada turma, teria sido mais eficiente.
— Pois bem — replicou Drax, voltando-se em direção à porta como para finalizar a conversação. — Decidi-me pelos bigodes.
CAPITULO 13
DECISÃO FINAL
Na quarta-feira de manhã, Bond despertou cedo, na cama do homem morto.
Dormira pouco. Drax não dissera nada a caminho de volta para casa e lhe desejara um rápido boa-noite no fim da escada. Bond seguira pelo corredor atapetado até o ponto onde brilhava uma luz, vinda de uma porta aberta, e encontrara suas coisas ordenadamente arranjadas num confortável quarto.
O aposento era mobiliado com o mesmo gosto de tipo dispendioso que encontrara no andar térreo. Havia biscoitos e uma garrafa de Vichy (não era uma garrafa de Vichy com água da bica, verificou Bond) ao lado da cama.
Não se notavam sinais do ocupante precedente, a não ser uma pasta de couro contendo binóculos, na mesinha de cabeceira, e um arquivo de metal, trancado. Bond conhecia tudo sobre arquivos. Virou-o contra a parede, colocou a mão embaixo e encontrou a ponta do fecho que se projeta para baixo, quando a série de escaninhos de cima foi trancada. Uma pressão feita para cima soltou as gavetas uma por uma, e ele baixou suavemente a borda do arquivo para o chão, refletindo maldosamente que o Major Tallon não teria sobrevivido durante muito tempo no Serviço Secreto.
A gaveta de cima continha mapas de escala da base e seus edifícios, além de um mapa do Almirantado n° 1895, representando o Estreito de Dover. Bond colocou cada uma das folhas sobre o leito e examinou-as minuciosamente. Havia restos de cinza de um cigarro nas dobras do mapa do Almirantado.
Bond foi buscar sua caixa de ferramentas — uma caixa quadrada de couro que estava ao lado da cômoda. Examinou os números nas rodas da fechadura de segredo e, satisfeito por não terem sido mexidas, virou-as para o número de código. A caixa estava repleta de instrumentos. Bond escolheu um vaporizador de pó para impressões digitais e uma lente grande. Espalhou o pó fino e acinzentado, centímetro por centímetro, sobre toda a extensão da carta geográfica. Apareceu uma floresta de impressões digitais.
Examinando-as com a lente, chegou à conclusão de que pertenciam a duas pessoas. Isolou os dois melhores grupos, tirou uma Leica com um flash de dentro da pasta de couro e fotografou-os. Em seguida, examinou cuidadosamente com a lente os dois minúsculos sulcos no papel que o pó fizera aparecer .
Estes davam a impressão de serem duas linhas traçadas da costa para formar uma rota cruzando o mar. Sua direção era muito estreita, e as duas linhas pareciam originar-se da casa onde se encontrava Bond. De fato, poderiam indicar observações de algum objeto no mar, feitas de cada ala da casa.
As duas linhas não haviam sido traçadas com lápis, mas, presumivelmente, para evitar serem descobertas, com um estilete que mal sulcara o papel.
No ponto onde se encontravam, havia a sombra de uma interrogação, na linha correspondente à décima-segunda braça, cerca de cinquenta jardas distante do penhasco, numa direção reta da casa para o navio-farol South Goodwin.
Não havia mais nada para ser descoberto no mapa. Bond olhou o relógio. Vinte para a uma. Ouviu passos distantes no hall e o estalido de uma lâmpada sendo apagada. Num impulso, ergueu-se e, de mansinho, apagou as luzes do quarto, deixando apenas a de leitura, velada por um abajur e colocada à mesinha de cabeceira.
Ouviu os pesados passos de Drax aproximando-se da escada. Houve o estalido de outro interruptor e depois silêncio. Bond imaginava aquela cara grande, cabeluda, voltada para o corredor, olhando, escutando. Depois percebeu o rangido de uma porta, sendo aberta devagar e fechada da mesma forma. Esperou, visualizando os movimentos do homem que se preparava para dormir. Ouviu ainda o som abafado de uma janela que se abria, o ruído de trombeta, distante, de um nariz sendo assoado. Depois silêncio.
Bond concedeu mais cinco minutos a Drax e depois foi até o arquivo, abrindo suavemente as outras gavetas. Não havia nada na segunda e na terceira, mas a última estava repleta de arquivos arrumados em ordem alfabética. Eram os dossiês dos homens que trabalhavam na base. Bond puxou a série “A”, voltou para a cama e começou a ler.
Em cada um a fórmula era a mesma: nome por inteiro, endereço, data do nascimento, descrição, sinais particulares, profissão ou ofício depois da guerra, registro de tempo de guerra, sobre atitudes políticas e simpatias atuais, registro criminal, de saúde e sobre os parentes próximos. Alguns desses homens tinham mulher e filhos, cujas particularidades eram anotadas e, acompanhando cada dossiê, havia fotografias: de frente e de perfil, além das impressões digitais de ambas as mãos.
Duas horas e dez cigarros depois, Bond examinara todos eles e descobrira dois pontos de interesse geral. Primeiro, que todos os cinquenta homens pareciam ter levado uma vida sem mácula, sem o menor vestígio de ódio político ou criminoso. Aquilo lhe pareceu tão pouco verossímil, que resolveu encaminhar todos eles novamente à Estação D. para serem submetidos a um reexame completo na primeira oportunidade.
O segundo ponto era que nenhuma das caras das fotografias tinha bigode. Apesar da explicação de Drax, esse fato suscitou um segundo pequeno ponto de interrogação no espírito de Bond.
Ergueu-se da cama e trancou novamente tudo, colocando o mapa do Almirantado em um dos arquivos de sua pasta de couro. Girou a fechadura de segredo e enfiou a pasta bem para debaixo da cama, de modo que a mesma ficasse diretamente sob seu travesseiro no ângulo interno da parede. Depois, sem fazer barulho, lavou-se, escovou os dentes no banheiro anexo e escancarou a janela.
A lua ainda brilhava: como devia ter brilhado, pensou Bond, quando, despertado por algum ruído fora do comum, Tallon subira ao telhado, talvez somente há poucas noites, e vira, no meio do mar, o que tinha visto. Devia trazer os binóculos consigo, e Bond, lembrando-se, saiu da janela e apanhou-os. Eram binóculos muito possantes, de fabricação alemã, pilhagem da guerra, talvez, e o 7 X 50 nas chapas superiores revelaram que se tratava de binóculos para a noite. Depois então, o cauteloso Tallon devia ter caminhado de leve (mas não o suficiente) para a outra extremidade do telhado e novamente erguido os binóculos, calculando a distância da borda do penhasco até o objeto no mar, e do objeto até o Goodwin, navio-farol. Em seguida, devia ter voltado pelo mesmo caminho e, sem fazer ruído, tornado a entrar no quarto.
Bond viu Tallon, talvez pela primeira vez desde que estava na casa, trancar a porta cautelosamente, dirigir-se até o arquivo, retirar dali o mapa, ao qual mal lançara um olhar até então, e marcar sobre o mesmo, de leve, as linhas de sua direção, às pressas. Talvez tivesse olhado para ele durante longo tempo, antes de apor a pequenina interrogação ao seu lado.
E que teria sido então o objeto desconhecido? Impossível dizer. Um navio? Uma luz? Um ruído?
Fosse o que fosse, Tallon não devia ter visto. E alguém o tinha ouvido. Alguém havia adivinhado que ele vira, e esperara que Tallon saísse do quarto na manhã seguinte. Aí então aquele alguém viera ao seu quarto e dera uma busca. A carta marítima, provavelmente, nada revelara, mas vira os binóculos para noite em cima da janela.
Fora o bastante. E naquela noite, Tallon morrera.
Bond se controlou. Ia depressa demais, compondo um caso, baseado no mais tênue dos indícios. Bartsch matara Tallon, e Bartsch não fora o homem que ouvira o barulho, o homem que deixara as impressões digitais no mapa, o homem cujo dossiê Bond separara e guardara em sua pasta de couro.
O homem tinha sido o untuoso Krebs, a criatura do pescoço de minhoca. As impressões digitais eram suas. Durante um quarto de hora, Bond comparara as impressões do mapa com as impressas no dossiê de Krebs. Mas quem disse que Krebs ouvira um barulho, ou fizera qualquer coisa por causa disso? Bem, para começar, ele parecia mesmo um tipo intrometido. Tinha os olhos de um ladrão sem importância. Aquelas impressões no mapa haviam sido, positivamente, feitas depois que Tallon o estudara. Os dedos de Krebs cobriram os de Tallon em diversos pontos.
Entretanto, como poderia Krebs estar envolvido nessa história, com os olhos de Drax constantemente em cima dele? O assistente confidencial. Mas que dizer de Cícero, o empregado particular de toda confiança do Embaixador Britânico em Ankara, durante a guerra? A mão no bolso das calças pendendo por cima das costas da cadeira. As chaves do Embaixador. O cofre. Os segredos. O quadro era muito semelhante.
Bond sentiu um arrepio. Compreendeu então, de repente, que estivera de pé durante muito tempo em frente às janelas abertas e que já era tempo de dormir um pouco.
Antes de se deitar, pegou o coldre de ombro da cadeira, onde estava no meio das roupas despidas, e retirou a Beretta, colocando-a debaixo do travesseiro. Como defesa contra quem? Bond não sabia, mas sua intuição lhe dizia muito claramente que pairava o perigo no ar. O cheiro era insistente, apesar de ainda impreciso, e restringia-se apenas ao limiar de seu subconsciente. Na realidade, ele sabia que suas impressões se baseavam num determinado número de interrogações que se haviam materializado durante as últimas vinte e quatro horas: o enigma de Drax; o “Heil Hitler” de Bartsch; os estranhos bigodes; os cinquenta alemães de conduta impecável; a carta marítima; os binóculos de noite; Krebs.
Primeiro precisava comunicar suas suspeitas a Vallance. Depois explorar as possibilidades de Krebs. Em seguida, olhar as defesas do “Explorador da Lua” — o lado do mar, por exemplo. Finalmente, entrar em contato com essa pequena Brand e concordarem na elaboração de um plano para os próximos dois dias. Não havia muito tempo a perder.
Enquanto forçava o sono no cérebro transbordante de pensamentos, Bond imaginou o número sete no mostrador de um relógio e deixou a tarefa de acordar entregue às células ocultas de sua memória. Desejava estar fora de casa e no telefone com Vallance, o mais cedo possível. Se suas ações levantassem suspeitas, não ficaria desanimado. Um de seus objetivos era atrair para sua órbita as mesmas forças que envolveram Tallon, porque de uma coisa ele tinha quase certeza, o Major não morrera por amar Gala Brand.
O despertador extra-sensorial não falhou. Pontualmente, às sete horas, com a boca seca por causa dos muitos cigarros da noite anterior, esforçou-se por sair da cama e entrar num banho frio. Barbeara-se, gargarejara com um dentifrício forte e, agora, vestido num terno batido branco e preto, uma camisa azul-marinho de algodão, tipo Mares do Sul, gravata de tricô preto, caminhava levemente, mas não de modo furtivo, pelo corredor até as escadas, com a pasta de couro quadrada na mão esquerda.
Encontrou a garage no fundo da casa, e o motor do Bentley correspondeu à primeira pressão do arranque. Bond seguiu lentamente pela faixa de concreto sob o olhar indiferente das janelas encortinadas da casa e seguiu em frente, em prise, pelo caminho margeado de árvores. Seus olhos voltaram-se para a casa e confirmaram seu cálculo de que um homem de pé no telhado seria capaz de enxergar por cima do muro e ter uma visão da beira do penhasco e do mar mais adiante.
Não havia sinal de vida em torno do local onde se encontrava o “Explorador da Lua”. O concreto, já começando a brilhar ao primeiro sol da manhã, estirava-se vazio na direção de Deal. Tinha-se a impressão de um aeródromo recém-construído ou talvez, pensou, com suas três “coisas” diferentes de concreto, a cúpula de uma colmeia, a parede lisa de ferro e o cubo distante do ponto de disparo, cada qual lançando poços negros de sombra em sua direção, ali no sol matutino, como uma paisagem deserta de Dali, na qual três objets trouvés repousavam num acaso cuidadosamente calculado.
Lá fora, no mar, dentro do nevoeiro da manhã que prometia um dia quente, o navio-farol South Goodwin mal se delineava, difusa embarcação vermelha, casada para sempre com o mesmo ponto, e condenada, como um navio de cenário no palco de Drury Lane, a assistir ao diorama das ondas e nuvens navegarem atarefadamente para os bastidores, enquanto que ele, sem papéis, passageiros ou carga, continuava ancorado para sempre no ponto de partida que era também seu porto de destino.
Com intervalos de trinta segundos, buzinava sua triste queixa dentro do nevoeiro, uma prolongada nota dupla de trumpete, em cadência descendente. Um canto de sereia, pensou Bond, para repelir em vez de seduzir. Perguntava a si mesmo como os sete homens da tripulação suportariam agora o ruído, enquanto mastigavam carne de porco com feijão. Encolher-se-iam, quando marcava contracanto com a Housewife’s Choice, vindo a todo volume do rádio na hora do rancho? Mas era uma vida segura, foi a conclusão a que chegou Bond, apesar de ancorado nos portões de um cemitério.
Anotou mentalmente, para descobrir se esses sete homens tinham visto ou ouvido a coisa que Tallon marcara no mapa, em seguida saiu rápido por entre os postos de guarda.
Em Dover, parou diante do Café Royal, modesto restaurantezinho, com uma cozinha modesta porém capaz, como ele sabia há muito tempo, de preparar excelentes pratos de peixe e de ovos.
A dona, suíça-italiana, com o filho que a ajudava a dirigir a casa, recebeu-o como velho amigo, e ele pediu um prato de ovos mexidos com presunto e bastante café, recomendando que estivessem prontos em meia hora. Depois seguiu até o posto policial e fez uma chamada para Vallance, por meio da mesa de ligações da Scotland Yard. Vallance estava em casa, tomando o café da manhã. Ouviu sem comentários a conversa reservada de Bond, mas não expressou surpresa, quando este disse que não tinha tido oportunidade de falar mais intimamente com Gala Brand.
— Essa aí é uma garota inteligente. Se o Sr. K. anda tramando alguma coisa, com certeza ela tem uma ideia do que seja. E se T. ouviu um barulho no sábado à noite, ela pode ter ouvido também. Se bem que eu deva confessar que não se referiu a esse assunto.
Bond não disse nada sobre a recepção que tinha tido por parte do agente de Vallance.
— Vou falar com ela esta manhã e mandar-lhe-ei o mapa com o filme da Leica para que o senhor os examine. Vou dá-los ao Inspetor. Talvez um dos patrulheiros da estrada possa levar. É verdade, de onde T. telefonou quando chamou seu chefe na segunda-feira?
— Vou mandar verificar e depois lhe direi — disse Vallance. Mandarei também a Trinity House perguntar se a South Goodwin e os guardas-costeiros podem ajudar. Mais alguma coisa?
Bond respondeu:
— Não.
A linha passava por muitas mesas de ligação. Talvez, se tivesse sido M., ele tivesse insinuado mais alguma coisa. Pareceu-lhe ridículo falar com Vallance a respeito de bigodes e a atmosfera de perigo que ele sentira na noite anterior, e que a luz do dia dissipara. Aqueles policiais só queriam os fatos nus e crus. Eram melhores, refletiu, na solução de um crime, do que antecipá-los.
— Não, é só.
Desligou.
Sentiu-se mais alegre depois de uma excelente primeira refeição. Leu o Express e The Times e encontrou uma notícia sucinta sobre o inquérito do caso Tallon. O Express fizera muito escarcéu e muita exibição da fotografia da moça. Bond divertiu-se, ao verificar a neutra semelhança que Vallance conseguira apresentar. Decidiu que precisava tentar trabalhar com ela. Demonstraria toda confiança e lhe contaria tudo, fosse ela receptiva ou não. Talvez ela também tivesse suas suspeitas e intuições, porém tão vagas que as estava guardando consigo mesma.
Bond voltou rapidamente para a casa. Eram nove horas em ponto, e quando passou por entre as árvores na faixa de concreto, ouviu-se o lamento de uma sereia e, dos bosques por trás da casa, uma dupla fila de doze homens apareceu correndo num ritmo propositadamente igual, em direção à cúpula do foguete. Marcavam o tempo enquanto um deles tocava a campainha. A porta então se abriu, e eles entraram em fila, desaparecendo .
Raspe-se a superfície de um tedesco e encontrar-se-á a precisão — pensou Bond.
CAPITULO 14
DEDOS FORMIGANTES
Meia hora antes, Gala Brand esmagara a ponta do seu cigarro matutino, engolira o resto do café, saíra do quarto e se encaminhara para a base, com o aspecto perfeito de uma secretária particular. Trajava uma blusa branca imaculada e uma saia azul-marinho pregueada.
Pontualmente, às oito e meia, estava em seu escritório. Havia um monte de telimpressos do Ministério da Aeronáutica em cima da mesa, e sua primeira ação foi transferir um resumo de seus conteúdos para um mapa meteorológico, entrar pela porta de comunicação no escritório de Drax, e pregar o mapa num quadro pendente no ângulo da parede ao lado do vidro liso. Em seguida, apertou o interruptor que iluminava o mapa de parede, fez alguns cálculos, baseada nas colunas de números reveladas pela luz, e anotou o resultado no diagrama que prendera ao quadro.
Fizera isto com os dados do Ministério da Aeronáutica, que se tornavam cada vez mais exatos, à medida que a data do lançamento experimental se aproximava, todos os dias, desde que a base terminara, e a construção do foguete se iniciara dentro dela. Tornara-se tão perita, que agora sabia de cor as direções do giroscópio para quase todas as variações de temperatura em diferentes altitudes.
De modo que ainda ficava mais irritada quando Drax não demonstrava aceitar seus cálculos. Todos os dias quando, às nove horas, pontualmente, as campainhas de aviso soavam, e ele descia a íngreme escadaria de ferro para entrar em seu escritório, seu primeiro gesto era chamar o insuportável Dr. Walter, para que, juntos, estudassem novamente todas as suas anotações, transcrevendo os resultados no fino caderninho de notas que Drax trazia no bolso traseiro das calças. Sabia que aquilo era uma rotina invariável e se cansara de observá-la através de um orifício disfarçado que fizera, de forma a poder enviar a Vallance um relatório semanal dos visitantes de Drax. O orifício ficava na parede fina que separava os dois escritórios. O método era amadorista, porém eficiente, e ela lentamente formara um quadro completo da rotina diária, que acabara por achar demasiado irritante. Era irritante por duas razões. Significava que Drax não confiava em seus algarismos e solapava sua oportunidade de tomar parte, da maneira mais modesta que fosse, no lançamento final do foguete.
Era natural que, no decorrer dos meses, tivesse ficado tão integrada em seu disfarce quanto em sua verdadeira profissão. Era uma coisa fundamental para a exatidão absoluta dêsse disfarce que sua personalidade ficasse tão verdadeiramente oculta quanto possível. E agora, enquanto espionava, apalpava e farejava o vento em torno de Drax, para relatar ao seu Chefe em Londres, sentia-se profundamente interessada pelo sucesso do “Explorador da Lua” e tornara-se tão dedicada ao seu serviço quanto qualquer outro membro da base.
O resto de seus Ideveres como secretária particular de Drax era intoleràvelmente monótono. Todos os dias chegava um enorme volume de correspondência dirigida a Drax em Londres e enviada para lá pelo Ministério. Naquela manhã, encontrara o monte habitual de mais ou menos cinquenta cartas aguardando em cima da escrivaninha. Eram sempre de três tipos. Cartas de pedidos, de pessoas maníacas pelo foguete, cartas comerciais do corretor de Drax e de outros agentes comerciais. Para estas Drax ditava respostas breves, e o resto do dia ela se ocupava em datilografar e arquivar.
De sorte que era natural o fato de sua única obrigação relacionada com a operação do foguete destacar-se extraordinàriamente entre os monótonos deveres. Naquela manhã, ao conferir e reconferir seu plano de voo, estava mais que decidida a fazer aceitarem seus cálculos para O Dia. Entretanto, como muitas vezes lembrava a si mesma, talvez não houvesse razão para que não os aceitassem. Talvez os cálculos diários de Drax e Walter para anotação no caderninho preto não passassem de nova verificação de seus próprios números. Era bem verdade que Drax nunca tinha pedido seu boletim meteorológico ou as direções do giroscópio por onde os calculava. E quando um dia ela perguntara diretamente se seus cálculos sobre o tempo estavam corretos, ele respondera com evidente sinceridade:
— Excelentes, minha cara. Muito valiosos. Não poderíamos arranjar-nos sem eles.
Gala Brand voltou para sua sala e começou a abrir as cartas. Só mais dois planos de voo para quinta-feira e sexta, e então, baseados em seus cálculos ou noutros, nos guardados dentro do bolso de Drax, o giroscópio seria finalmente ajustado, e seria apertado no ponto de disparo.
Distraidamente, Gala olhou para as unhas e depois estendeu as duas mãos, com as costas voltadas em sua direção. Quantas vezes, durante seu adestramento na Escola da Polícia, fora mandada para fora com outras alunas e recomendada a não voltar sem um caderno de notas, um estojo de maquilagem, uma caneta-tinteiro ou mesmo um relógio de pulso? Quantas vezes, durante os cursos, o instrutor não se voltara, segurando-a pelo pulso e dizendo: “Vamos, vamos, senhorita. Isto assim não vai de jeito nenhum. Dá até a impressão de um elefante procurando açúcar no bolso do tratador. Tente novamente.”
Friamente, flexionou os dedos e depois, tomando uma resolução, voltou à pilha de cartas.
Quando faltavam poucos minutos para as nove, as campainhas de alarma soaram, e ela ouviu Drax chegar ao escritório. Pouco depois ouviu-o abrir as portas duplas novamente e chamar Walter. Em seguida, veio o habitual murmúrio de vozes cujas palavras eram abafadas pelo leve chiar do ventilador.
Gala arrumou as cartas em três pilhas e sentou-se inclinada para a frente, os nervos relaxados, os cotovelos descansando na escrivaninha e o queixo repousando na mão esquerda.
Comandante Bond. James Bond. Evidentemente, um jovem convencido, como tantos outros do Serviço Secreto. E porque tinha sido enviado em vez de alguém com quem pudesse trabalhar, um de seus amigos da Seção Especial ou mesmo uma pessoa do M15? A mensagem do Comissário-Assistente dizia que não havia mais ninguém disponível assim de repente, que ele era um dos astros do Serviço Secreto, que desfrutava da mais absoluta confiança da Seção Especial e tinha as bênçãos do M15. Até mesmo o Primeiro-Ministro lhe dera permissão para agir somente nesta missão dentro da Inglaterra. Mas de que poderia adiantar, em face do pouco tempo que restava? Ele, provavelmente, atirava bem e falava idiomas estrangeiros, além de executar uma série de truques que poderiam ser úteis no exterior. Entretanto, que poderia fazer de bom aqui, sem lindas espiãs para namorar. Porque bonitão ele era, incontestàvelmente. (Gala Brand procurou automaticamente o estojo de maquilagem e bateu a esponjinha de pó de arroz no nariz.) Bem no gênero de Hoagy Carmichael, sob certo aspecto. Aquele cabelo preto caindo em cima da sobrancelha direita. Mais ou menos o mesmo tipo ósseo. Mas havia um quê de crueldade na boca, e os olhos eram frios. Cinzentos ou azuis? Tinha sido difícil verificar a noite passada. Bem, de qualquer maneira, ela o pusera em seu lugar e lhe mostrara que não estava impressionada por rapazes atraentes do Serviço Secreto, por mais românticos que parecessem. Havia homens igualmente belos na Seção Especial, e estes eram detetives de verdade, não apenas pessoas que Phillips Oppenheim idealizara, donos de carros velozes com bandas douradas e coldres de ombro. Ah, isto ela descobrira com certeza, e até esbarrara nele para ter certeza.
Pois bem, supunha que devia demonstrar, de uma forma ou de outra, que trabalhava com ele, apesar de só Deus saber em quê. Se ela estivera ali desde quando o local fora construído sem descobrir coisa alguma, o que poderia esse homem, Bond, esperar descobrir em dois dias? E o que havia para ser descoberto? Naturalmente, existiam uma ou duas coisas que ela não conseguia compreender. Deveria falar-lhe em Krebs, por exemplo? A primeira coisa a fazer era providenciar para que ele não lhe estragasse o trabalho, fazendo qualquer tolice. Teria de ser fria, firme e extremamente cautelosa. Mas isto não queria dizer, chegou à conclusão no momento em que a cigarra tocava e ela apanhava as cartas e o caderno de taquigrafia, que não pudesse ser amistosa em suas relações. Estritamente dentro de suas próprias condições, é claro.
Havendo tomado esta segunda decisão, abriu a porta de comunicação e entrou no escritório de Sir Hugo Drax.
Ao voltar para sua sala, meia hora depois, encontrou Bond sentado em sua cadeira com o Almanaque Whitaker aberto na escrivaninha diante dele. Apertou os lábios, quando Bond se levantou e desejou-lhe um feliz bom dia. Gala baixou a cabeça rapidamente, rodeou a escrivaninha e sentou-se. Afastou cuidadosamente o Whitaker e colocou as cartas e o caderno em seu lugar.
— Devia ter mais uma cadeira para as visitas — disse Bond com um sorriso que ela definiu como impertinente. — E alguma coisa melhor para se ler do que livros de referências.
A moça ignorou as observações.
— Sir Hugo deseja vê-lo. Eu ia agora mesmo ver se já havia se levantado.
— Mentirosa. Você me ouviu passar às sete e meia. Eu a vi espiando entre as cortinas.
— Não fiz semelhante coisa — retrucou Miss Brand indignada. — Por que haveria de estar interessada num carro que passava?
— Eu disse que você ouviu o carro — disse Bond. Insistiu em sua vantagem. — E, por falar nisso, acho que não deve coçar a cabeça com o lápis quando está tomando ditado. Nenhuma das melhores secretárias particulares faz tal coisa.
Bond olhou de modo significativo para um ponto da porta de comunicação. Depois sacudiu os ombros.
As defesas de Gala caíram. Diabo de homem, pensou. Endereçou-lhe um sorriso relutante.
— Ora. Vamos parar com isto. Eu não posso passar a manhã inteira brincando de adivinhação. Ele quer nos ver e não gosta de esperar.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação, abrindo-a. Bond seguiu-a, fechando depois a porta.
Drax estava de pé, olhando o mapa de parede iluminado. Voltou-se, quando os dois entraram.
— Ah, você está aqui — disse com um olhar firme para Bond. — Pensei que talvez nos tivesse deixado. Os guardas anotaram sua saída às sete e meia da manhã de hoje.
— Precisei dar um telefonema — explicou Bond. — Espero não ter incomodado ninguém.
— Existe um telefone em meu estúdio — ajuntou Drax, conciso. — Tallon achava que servia muito bem.
— Ah, pobre Tallon — disse Bond sem nenhuma inflexão particular.
Notara um quê de autoritário na voz de Drax que o desagradara bastante, e isto fizera com que desejasse instintivamente desarmá-lo. Nessa vez foi bem sucedido.
Drax lançou-lhe um olhar duro, que disfarçou com um risinho curto, latido e um sacudir de ombros.
— Faça como melhor lhe agradar. Você tem seu trabalho para fazer. Contanto que não perturbe as rotinas daqui. Deve-se lembrar — acrescentou mais amável — de que todos os meus homens estão nervosos ao extremo agora, e eu não posso inquietá-los com misteriosas movimentações. Espero que não deseje fazer-lhes muitas perguntas hoje. Eu preferia que não tivessem mais nada com que se preocupar. Ainda não se recuperaram do que aconteceu segunda-feira. Miss Brand poderá informá-lo a respeito de tudo que diz respeito a eles, e creio que todos os dados arquivados acham-se no quarto de Tallon. Já os examinou?
O arquivo não tem chave — respondeu Bond, dizendo a verdade.
— Desculpe, a culpa é minha — disse Drax. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta da qual tirou um pequeno molho de chaves, e entregou-o a Bond.
— Devia ter-lhe entregado isto a noite passada. O Inspetor que tratou do caso pediu-me lhe entregasse. Desculpe.
— Muito obrigado — disse Bond por sua vez. Depois fez uma pausa.
— Diga-me uma coisa, há quanto tempo Krebs trabalha com o senhor?
Fez a pergunta obedecendo a um impulso. Houve um momento de silêncio na sala.
—Krebs? — repetiu Drax, pensativo.
Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se. Estendeu a mão para o bolso da calça e puxou um maço de cigarros de ponta de cortiça. Seus dedos grosseiros lutaram com o envólucro de celofane. Tirou um cigarro e meteu-o na boca, sob a franja do bigode avermelhado, acendendo-o depois.
Bond mostrou-se surpreso.
— Eu não sabia que se podia fumar aqui — observou, tirando sua própria carteira do bolso.
O cigarro de Drax, minúsculo tubo branco no meio da caraça vermelha, subia e descia enquanto ele respondia sem tirá-lo da boca.
— Aqui não há perigo. Estas salas são à prova de ar. As portas são forradas com borracha. A ventilação é separada . Precisei colocar as oficinas e geradores apartados da cúpula e, de qualquer maneira — seu lábios sorriram em torno do cigarro — preciso dar um jeito para fumar.
Drax tirou o cigarro da boca e olhou-o. Parecia estar tomando uma resolução.
— Você estava me interrogando a respeito de Krebs. Pois bem, cá entre nós, não confio inteiramente nesse camarada — declarou fitando Bond com uma expressão significativa.
Levantou a mão num gesto de quem se desculpa.
— Nada de definido, naturalmente, ou eu já o teria mandado embora, mas encontrei-o espionando pela casa, e uma vez apanhei-o em meu estúdio, remexendo meus papéis particulares . Ele apresentou uma explicação perfeita e deixei-o sair, prevenindo-o. Contudo, para ser franco, tenho minhas suspeitas a respeito do homem. Evidentemente, ele não pode fazer mal algum. Faz parte do pessoal da casa, e nenhum deles tem licença de entrar aqui, mas — Drax fitou Bond francamente, dentro dos olhos — eu devia ter-lhe dito que se concentrasse nele. Foi muita vivacidade sua, haver observado qualquer coisa no homem, tão depressa — acrescentou com respeito. — Que foi que o levou a isto?
— Nada de extraordinário. Ele tem um aspecto inquieto. Mas o que o senhor diz é interessante, e eu não deixarei de estar de olho nele.
Voltou-se para Gala Brand, que permanecera em silêncio desde o momento em que entraram na sala.
— Qual sua opinião a respeito de Krebs, Miss Brand? — perguntou, polidamente.
A moça respondeu, dirigindo-se a Drax.
— Não entendo muito dessas coisas, Sir Hugo, — disse com modéstia e um quê de impulsivo que Bond admirou.
— Porém não confio nele de jeito nenhum. Não tinha intenção de lhe contar, mas ele andou rondando meu quarto, entrou lá, abriu cartas etc. Tenho certeza disso.
Drax mostrou-se chocado.
— Foi mesmo?
Pôs o cigarro no cinzeiro e extinguiu os fragmentos acesos, um por um.
— Deixe-o comigo — falou sem levantar os olhos.
CAPÍTULO 15
JUSTIÇA RUDE
Houve um momento de silêncio na sala durante o qual Bond refletiu como era estranho que as suspeitas recaíssem tão de repente e unanimemente sobre o mesmo homem. Isto, por acaso, libertaria automaticamente os outros? Krebs não poderia ser membro de uma quadrilha? Ou trabalharia por conta própria e, nesse caso, com que objetivo? E que relação haveria entre suas espionagens e as mortes de Tallon e Bartsch?
Drax quebrou o silêncio.
— Bem, parece que chegamos a um ponto de acordo — disse, olhando Bond, à procura de confirmação. Este baixou a cabeça, num gesto cauteloso.
— Tenho mesmo de deixá-lo por sua conta. De qualquer forma, providenciaremos para que se conserve bem afastado da base. Aliás, vou levá-lo comigo amanhã para Londres. Pormenores de última hora deverão ser combinado com o Ministério, e Walter não pode sair daqui. Krebs é o único homem capaz de executar o serviço de um ajudante-de-ordens. Isto o conservará fora de qualquer complicação. Até lá temos todos de mantê-lo sob vigilância. A não ser, naturalmente, que você queira prendê-lo já, trancando-o à chave e cadeado. Eu preferia que não. Não desejo perturbar mais a equipe.
— Não será necessário — disse Bond. — Ele conta com alguns amigos particulares entre os outros homens?
— Nunca o vi falando com nenhum, exceto Walter e o pessoal de casa — disse Drax. — Calculo que se considera superior aos outros. Pessoalmente, não acredito que exista muita maldade nesse camarada, do contrário não o teria conservado. Ele fica sozinho em casa o dia inteiro, e com certeza é um desses sujeitos que gostam de bancar o detetive e meter o nariz nos negócios dos outros. Que diz você? Talvez pudéssemos deixar as coisas neste pé?
Bond fez que sim, guardando seus pensamentos para si mesmo.
— Pois então — continuou Drax, feliz por deixar de lado um assunto desagradável e voltar para os negócios. — Temos outras coisas para conversar. Ainda nos restam dois dias, e é melhor falar-lhe sobre o programa.
Ergueu-se da cadeira e mediu pesadamente a sala em largas passadas, por trás da escrivaninha:
— Hoje é quarta-feira. À uma hora a base será fechada para receber combustível. Isto será supervisionado pelo Dr. Walter, por mim e mais dois homens do Ministério. Para a eventualidade de qualquer coisa sair errada, uma câmara de televisão registrará tudo que fizermos. E então, se houver uma explosão, nossos sucessores saberão como agir melhor na próxima vez — finalizou com um curto riso ladrado. — Se o tempo permitir, o telhado será aberto hoje à noite para deixar a fumaça sair. Meus homens montarão guarda em vigias de dez jardas de intervalo, até a distância de cem jardas a partir da base. Haverá três homens armados na praia, do lado oposto ao túnel exaustor no penhasco. Amanhã de manhã a base será novamente aberta até o meio-dia para uma verificação final e, a partir desse instante, exceto a disposição do giroscópio, o “Explorador da Lua” estará pronto para partir. Os guardas ficarão permanentemente vigiando toda a base. Na sexta-feira pela manhã eu examinarei pessoalmente o ajustamento do giroscópio. Os homens do Ministério tomarão conta do ponto de disparo, e a RAF do radar. A BBC enviará seus caminhões, que ficarão atrás do ponto de disparo, e as irradiações começarão às onze e quarenta e cinco.
Ao meio-dia em ponto apertarei o pistão, um sinal de rádio passará por um circuito elétrico e — Drax sorriu abertamente — nós veremos o que vamos ver.
Fez uma pausa, mexendo no queixo:
— Vejamos agora o que mais? Ah, sim. A navegação será banida da área orbital desde a meia-noite de quinta-feira. A Marinha providenciará uma patrulha nos limites da área durante toda a manhã. Haverá um comentarista da BBC num dos navios. O Ministério do Abastecimento mandará técnicos que ficarão num navio de salvamento com um aparelho de televisão para a profundidade do mar, e depois que o foguete aterrissar, tentarão recuperar os restos. Talvez você se interesse em saber — continuou, esfregando as mãos numa alegria quase infantil, — que um mensageiro do Primeiro-Ministro trouxe a notícia muito alvissareira de que não só estará reunido o Gabinete para ouvir a irradiação, mas o Palácio também escutará o lançamento.
— Ótimo — disse Bond, satisfeito pelo outro.
— Obrigado. Agora quero ter absoluta certeza de que você está satisfeito com as medidas de segurança que tomei na própria base. Não creio que seja necessário nos preocuparmos com o que se passar do lado de fora. A RAF e a polícia parecem estar executando um serviço muito completo.
— Tudo parece ter sido providenciado — disse Bond.
— Não creio que me reste muita coisa para fazer no tempo que ainda falta.
— Nada que eu me lembre — concordou Drax. — Exceto nosso amigo Krebs. Esta tarde ele permanecerá na camioneta da televisão tomando notas, de modo que estará fora de qualquer trapalhada. Por que você não vai dar uma olhada na praia, na base do penhasco, enquanto ele está fora de ação? este é o único ponto fraco que eu posso lembrar. Muitas vezes pensei que se alguém quisesse penetrar na base, tentaria passar pela cavidade exaustora. Leve Miss Brand. Quatro olhos, etc, e ela não poderá mesmo usar seu escritório até amanhã de manhã.
— Está bem — concordou Bond.
— Eu gostaria de dar uma olhada no lado do mar, depois do almoço, e se Miss Brand não tiver nada de melhor para fazer...
Voltou-se para ela com as sobrancelhas erguidas. Gala Brand baixou os olhos.
— Claro, se Sir Hugo desejar — disse sem entusiasmo.
Drax esfregou as mãos.
— Então está combinado. E agora preciso voltar a trabalhar. Miss Brand, quer fazer o favor de pedir ao Dr. Walter que venha aqui, se estiver livre? Nós nos veremos na hora do almoço — disse a Bond, despedindo-o.
Este fez com a cabeça que sim.
— Acho que vou caminhar até a cúpula e dar uma olhadela no ponto de disparo — falou sem saber direito porque mentia. Virou-se e seguiu Gala Brand através das portas duplas e depois até a base do cilindro.
Enorme serpente negra de fios de borracha se retorcia sobre o brilhante chão de aço, e Bond observou a moça escolher o caminho por entre suas voltas até onde se encontrava Walter, sozinho. Olhava a boca do tubo do combustível ser levantada para onde um guindaste, esticado até a soleira de uma porta de acesso, na metade do foguete, indicava os principais tanques de combustível.
A moça disse qualquer coisa a Walter e depois ficou olhando para cima, enquanto o tubo ia sendo delicadamente manipulado para o interior do foguete.
Bond achou que ela parecia muito inocente, ali de pé, com os cabelos castanhos soltos e a curva da garganta cor de marfim imergindo na blusa branca e simples. Com as mãos cruzadas nas costas, contemplando embevecida os faiscantes cinquenta pés do “Explorador da Lua”, poderia ser tomada por uma colegial mirando uma árvore de Natal — exceto pelo impudente orgulho dos seios atrevidos, levantados pela cabeça e os ombros jogados para trás.
Bond sorriu consigo mesmo ao chegar ao pé da escada de ferro e começar a subir. Aquela moça inocente, desejável, lembrou a si próprio, é uma policial extremamente competente. Sabe como desferir pontapés e onde; pode quebrar meu braço, provavelmente mais depressa e com mais facilidade do que eu poderia quebrar o dela, e pelo menos metade de seu ser pertence à Seção Especial da Scotland Yard. Naturalmente, refletiu, baixando os olhos a tempo de vê-la seguir o Dr. Walter até o escritório de Drax, existe sempre a outra metade.
Lá fora, o brilhante sol de maio parecia particularmente dourado depois do branco azulado dos arcos, e Bond sentia-o quente nas costas ao caminhar deliberadamente pelo concreto em direção à casa. O apito de nevoeiro do Goodwin estava silencioso, e a manhã tão calma que ele podia ouvir as batidas rítmicas dos motores de um navio, quando este passava por Inner Leads, entre o Goodwin e a praia, a caminho do Norte.
Aproximou-se da casa, protegido pelo largo muro contra o vento, e então, rapidamente, atravessou as poucas jardas até a porta da frente, sem produzir o menor ruído com os sapatos de crepe-sola. Abriu a porta, deixou-a escancarada e caminhou de leve para o háll onde se pôs à escuta. Ouviu o rumor das manhãs de verão; uma abelha batendo de encontro à vidraça de uma das janelas e um bulício confuso e distante nas barracas atrás da casa. Fora isto, o silêncio era profundo, cálido e tranquilizante .
Bond caminhou cautelosamente através do hall e pelas escadas acima, assentando os pés inteiros no chão e usando as extremidades dos degraus onde havia menos probabilidade de a madeira estalar. Não se ouvia barulho no corredor, mas Bond viu que sua porta, lá no fim do mesmo, estava aberta. Retirou o revólver da axila e foi seguindo depressa pela passagem atapetada.
Krebs estava de costas para ele. Achava-se ajoelhado no meio do quarto com os cotovelos no chão. Suas mãos se encontravam nas rodas do fecho de segredo da pasta de couro de Bond. Toda sua atenção focalizava-se no estalido das linguetas do fecho.
O alvo era tentador, e Bond não hesitou. Seus dentes apareceram num sorriso cruel, deu dois passos rápidos para dentro do quarto e mandou o pé com violência.
Toda sua força se concentrava na ponta do sapato, e seu equilíbrio e tempo foram perfeitos.
Um grito de gralha partiu de Krebs quando, como a caricatura de um sapo pulando, saltou por cima da pasta de Bond mais ou menos um metro adiante, batendo na frente da cômoda de mogno. Sua cabeça foi de encontro ao centro com tanta fôrçia, que a pesada peça dançou na base. O grito foi abruptamente interrompido, e ele tombou esticado e inerte sobre o tapete, ali permanecendo.
Bond ficou olhando e esperando ouvir o som de passos apressados, mas o silêncio continuou a reinar dentro da casa. Passou por cima do corpo, curvou-se sobre ele e ajeitou-o de costas. O rosto em torno do borrão do bigode amarelo estava pálido e um pouco de sangue escorria de um corte no alto da fronte. Os olhos continuavam fechados, e a respiração normal.
Bond ajoelhou-se num lado só e começou a dar uma busca minuciosa em todos os bolsos do terno alinhado, cinzento, de listas fininhas, que o homem trajava, colocando desapontado o magro conteúdo no tapete ao lado do corpo. Não havia caderninhos de nota nem papéis. Os únicos objetos de interesse eram um molho de chaves-mestras, uma faca de mola com uma lâmina de estilete bem amolada e uma espécie de cassetete de couro preto em forma de trouxa. Bond guardou essas coisas no bolso, foi até a mesinha de cabeceira e pegou a garrafa intacta de água de Vichy.
Foram necessários cinco minutos para fazer Krebs voltar a si e fazê-lo sentar-se com as costas apoiadas na cômoda. Mais cinco para que recuperasse a voz. Pouco a pouco a cor foi voltando-lhe ao rosto e a astúcia aos olhos.
— Não respondo perguntas a não ser a Sir Hugo — declarou quando Bond começou o interrogatório. — Você não tem o direito de me fazer perguntas. Eu cumpria meu dever.
Sua voz era mal-humorada e segura de si.
Bond segurou a garrafa vazia de Vichy pelo gargalo.
— Refuta novamente. Do contrário, eu lhe bato com isto até quebrar, e depois usarei o gargalo para alguma cirurgia plástica. Quem lhe mandou revistar meu quarto?
— Leck mich am Arsch — Krebs cuspiu o insulto obsceno na cara de Bond.
Este curvou-se e vibrou-lhe violenta pancada nas canelas.
O corpo de Krebs dobrou-se mas, quando Bond tornou a levantar o braço, ergueu-se subitamente do chão e mergulhou por baixo da garrafa que descia. O golpe pegou-o rijo no ombro, porém não lhe cortou o ímpeto, e ele se encontrou do outro lado da porta, já no meio do corredor, antes de Bond partir em sua perseguição.
Bond parou então do lado de fora da porta e observou a figura ligeira desaparecer pelas escadas, fora de suas vistas. Em seguida, o rinchar das solas de borracha descendo às pressas as escadas se fez ouvir até atravessar o hall. Bond riu abruptamente para si mesmo, voltou para o quarto e fechou a porta. Além de quase arrebentar a cabeça do sujeito, tudo indicava que não arrancaria nada dele. Animal astucioso. Seus ferimentos não poderiam ter sido assim tão maus, no fim das contas. Bem, caberia a Drax castigá-lo. A não ser, naturalmente, que Krebs estivesse executando suas ordens.
Pondo em ordem a confusão do seu quarto, Bond sentou-se na cama e olhou a parede do lado oposto com olhos que nada viam. Não tinha sido apenas o instinto que o levara a dizer a Drax que iria até o ponto do tiro, em vez de voltar para a casa. Passara-lhe seriamente pela ideia o fato de que a espionagem de Krebs era feita por ordem de Drax e que este organizava seu próprio sistema de segurança. Entretanto, de que maneira isto se entrosava com as mortes de Tallon e Bartsch? Ou o duplo assassínio teria sido uma coincidência sem nenhuma relação com as marcas do mapa e as impressões digitais de Krebs?
Como que chamado pelos seus pensamentos, bateram à porta, e o mordomo entrou. Vinha seguido por um sargento da polícia, com o uniforme de patrulheiro de estrada, que fez continência e entregou um telegrama a Bond. Bond levou-o até a janela. Vinha assinado: Baxter, que queria dizer Vallance, e dizia:
PRIMEIRA CHAMADA VEIO DA CASA SEGUNDO LUGAR NEVOEIRO EXIGIU FUNCIONAMENTO BUZINA DE NEVOEIRO DE MODO QUE NAVIO FOI OUVIDO VÍRGULA NÃO OBSERVOU NADA TERCEIRO LUGAR SUA ÁREA SUSPEITA FICA MUITO PERTO PRAIA ASSIM FORA DAS VISTAS DOS ÚLTIMOS PONTOS DOS GUARDA-COSTAS DE SAINT MARGARET OU DEAL.
— Obrigado — disse Bond. — Não tem resposta.
Depois de fechar a porta, chegou o isqueiro aceso ao telegrama e depois deixou-o cair na lareira, reduzindo os restos queimados a pó com a sola do sapato.
Dali nada mais se aproveitava, exceto que a chamada de Tallon para o Ministério poderia realmente, ter sido ouvida por alguém da casa, o que teria resultado na busca em seu quarto, que, por sua vez, teve como consequência a morte do major. Mas que dizer de Bartsch? Se tudo aquilo fazia parte de uma coisa muito maior, como poderia ser ligada a um atentado de sabotagem ao foguete? Não seria muito mais simples supor que Krebs era um espião nato, ou ainda mais provável, que estivesse trabalhando para Drax, que parecia ser meticulosamente cônscio da necessidade de segurança e que podia também querer certificar-se da lealdade de seu secretário, de Tallon, e, sem dúvida, depois do encontro no Blades, de Bond? Não seria agir justamente como o chefe (e Bond conhecera alguns que se adaptariam perfeitamente ao tipo) de um projeto super-secreto durante a guerra, que reforçava a segurança oficial com seu próprio sistema de espionagem particular?
Se essa teoria fosse correta, restava apenas o duplo assassínio. Agora que Bond fora contagiado pela magia e tensão do “Explorador da Lua”, os fatos referentes aos tiros histéricos pareciam mais razoáveis. Quanto às marcas no mapa, poderiam ter sido feitas num dia qualquer do ano anterior; os binóculos para noite eram isto apenas: binóculos para noite, e os bigodes dos homens apenas uma quantidade de bigodes.
Bond sentou-se no quarto silencioso, remexendo as peças do quebra-cabeças, de modo que dois quadros inteiramente diversos se alternavam em sua mente. Num deles o sol brilhava, tudo estava límpido e inocente como o dia. O outro era uma confusão culposa de motivos, suspeitas obscuras e interrogações de pesadelo.
Quando o gongo soou para o almoço, ele ainda não sabia que quadro escolher. Para adiar a decisão, afastou do espírito tudo, menos as perspectivas da tarde que passaria sozinho com Gala Brand.
CAPITULO 16
UM DIA GLORIOSO
Era uma tarde maravilhosa, azul, verde e dourada. Quando deixaram a faixa de concreto passando pelo portão da guarda, perto do ponto de tiro, agora ligado à base de lançamento por um grosso cabo, pararam um momento à beira do grande penhasco calcário e ficaram olhando todo o trecho da Inglaterra onde César ancorara pela primeira vez dois mil anos atrás.
À esquerda, o tapete de grama verde, salpicado de pequeninas flores silvestres descia gradativamente para as longas praias de pedregulho de Walmer e Deal, que se curvavam para Sandwich e a baía. Mais além, os penhascos de Margate, surgindo brancos dentre a névoa distante que ocultava o North Foreland, guardavam a mancha cinzenta do aeródromo de Manston, acima do qual aviões a jato norte-americanos descreviam suas parábolas no céu. Em seguida, vinha a Ilha de Thanet e, fora do raio visual de ambos, a embocadura do Tâmisa.
A maré era baixa, e os Goodwins pareciam dourados e suaves dentro do azul cintilante do Canal mostrando apenas o conjunto de mastros e cordames que se esticavam para contar a verdadeira história. As letras brancas do navio-farol South Goodwin estavam fáceis de ler, e até o nome do navio irmão, mais para o norte, surgia branco contra o vermelho do casco.
Entre as areias da costa, ao longo do canal de doze braças do Inner Leads, havia meia dúzia de navios navegando pelo Downs. O som ritmado de seus motores destacava-se claramente dentro do mar calmo e, entre as areias cruéis e o contorno nítido da costa francesa, viam-se navios de todas as procedências rumando para seus destinos — navios de passageiros de linha regular, navios mercantes, rústicas chalupas holandesas e até uma esguia corveta correndo para o sul, talvez para Portsmouth. Até onde a vista alcançava, o lado oriental mais próximo da Inglaterra estava coalhado de embarcações, dirigindo-se para os horizontes distantes, para um porto nacional ou para o outro lado do mundo. Era um panorama cheio de colorido, excitação e romance, e as duas criaturas, ali na borda do penhasco, mantinham-se em silêncio enquanto permaneciam por algum tempo observando tudo.
A paz foi turbada por dois uivos de sirena, provenientes da casa, e eles se viraram, para olhar o mundo negro e feio de concreto, que haviam banido de seus espíritos. Enquanto olhavam, uma bandeira vermelha foi hasteada por cima da cúpula de lançamento, e duas ambulâncias da RAF, com as cruzes vermelhas nos lados, irromperam do renque de arvoredo, na direção do muro, e aí estacaram.
— Vai começar a operação combustível — disse Bond. — Vamos principiar nosso passeio. Nada haverá para ver e, se por acaso acontecesse alguma coisa, nós não sobreviveríamos, quase com certeza, no ponto em que nos encontramos.
A moça sorriu.
— É verdade. E eu já estou cheia de olhar para todo esse concreto.
Seguiram ambos pelo declive suave e, dentro em pouco, encontravam-se já longe do alcance de tiro e da alta cerca de arame.
O gelo da reserva de Gala derretia-se rapidamente ao sol.
A alegria exótica de sua toalete, uma blusa de algodão listrada de branco e preto, metida num cinto largo, pespontado à mão, também preto, encimava uma saia meio curta, rosa shocking, e o conjunto parecia contagiá-la. Era impossível, para Bond, reconhecer a mulher frígida e distante da noite anterior naquela que caminhava agora a seu lado, rindo e feliz de sua ignorância a respeito dos nomes de flores selvagens: a erva de S. Pedro, a fumaria e outras, em tons azuis, que rodeavam seus pés.
Triunfalmente, encontrou uma orquídea selvagem e colheu-a .
— Você não faria isso, se soubesse que as flores gritam quando são colhidas — disse Bond.
Gala olhou para ele.
— Que quer você dizer com isso? — perguntou, suspeitando um gracejo.
— Ah, você não sabia? — Bond sorriu, ao observar a reação de Gala. — Existe um professor hindu, chamado Bhose, que escreveu um tratado sobre o sistema nervoso das flores. Mediu a reação delas à dor. Chegou mesmo a registrar o grito de uma rosa, quando é colhida. Deve ser um dos sons mais lancinantes do mundo, não lhe parece? Pois eu ouvi algo de semelhante quando você colheu essa flor.
— Não acredito — disse Gala, olhando desconfiada para a raiz arrancada. — Mas, de qualquer maneira — acrescentou, maliciosa — eu jamais pensaria que você fosse capaz de sentimentalismos. As pessoas, no seu Serviço, não fazem de matar um ofício? E não são apenas flores. São pessoas.
— As flores não podem atirar em nós, também — disse Bond.
Gala olhou a flor.
— Agora você me fez sentir como se fosse uma criminosa. É muita maldade sua. Mas — confessou relutante — terei de descobrir essa história do hindu, e se você tiver dito a verdade, nunca mais apanharei uma flor enquanto viver. Que faço com esta? Você me fez sentir com as mãos sangrando completamente.
— Dê para mim. De acordo com você, minhas mãos já estão gotejando sangue. Um pouco mais não fará diferença.
A moça ofereceu-lhe a flor, e suas mãos se tocaram.
— Você poderá colocá-la no cano do revólver — falou, para disfarçar o instante do contato.
Bond riu:
— Quer dizer que os orifícios não servem só para decoração. Mas a minha é uma pistola automática, e eu deixei-a no quarto.
Enfiou o talo da flor numa das casas de sua camisa de algodão:
— Achei que um coldre de ombro chamaria um pouco a atenção sem o paletó para cobri-lo. Depois não acredito que ninguém vá mexer em meu quarto esta tarde.
Numa concordância tácita, eles se afastaram do momento de intimidade. Bond contou sua descoberta a respeito de Krebs e a cena do quarto.
— Foi bem feito para ele. Nunca confiei nesse homem. Mas o que é que diz Sir Hugo?
— Falei com ele antes do almoço — respondeu Bond.
—Entreguei-lhe a faca e as chaves de Krebs como prova. Ficou furioso e saiu imediatamente à procura do sujeito, resmungando de cólera. Quando voltou, me disse que Krebs parecia já se encontrar num estado deplorável e perguntou se eu não me dava por satisfeito ao saber que fora bem castigado. Repetiu toda aquela história de não querer perturbar sua equipe na última hora, etc. e tal. De modo que concordei em que fosse mandado de volta à Alemanha na próxima semana e que, enquanto isto, se considerasse preso sob palavra — sendo-lhe permitido apenas deixar o quarto vigiado.
Bond e sua companheira desceram um caminho íngreme do penhasco até a praia, virando à direita, para Royal Marine, em Deal. Caminharam em silêncio até chegarem a uma extensão de duas milhas de uma praia coberta de cascalho que, durante o tempo de maré baixa, corre entre os elevados penhascos brancos até a baía de Sta. Margarida.
Enquanto esmagavam lentamente as pedrinhas macias, Bond contou tudo que lhe passara pela cabeça desde o dia anterior. Não guardou nada. Relatou todos os passos tomados, as pistas falsas que seguira em cada um dos pontos de partida, não deixou nada por comentar, exceto uma tênue suspeita mal fundada e um amontoado de indícios que terminavam todos na mesma interrogação. . . onde estava o X da história? Onde achar um plano no qual os indícios se encaixassem? E sempre a mesma resposta: nada do que Bond sabia ou suspeitava parecia ter qualquer relação concebível com a segurança contra a sabotagem do “Explorador da Lua”. Isto, no entanto, quando tudo fora dito e feito, era a única coisa com que ele e a moça tinham que ver. Não com a morte de Tallon e Bartsch, ou com o ordinário Krebs, mas somente com a proteção de todo o projeto relacionado com o “Explorador da Lua” contra seus possíveis inimigos.
— Não é verdade? — finalizou Bond.
Gala parou e ficou um momento olhando por entre as rochas e algas a calma cintilação das ondas do mar. Estava suada e ofegante depois da caminhada difícil pelo caminho de cascalhos. Pensava como seria maravilhoso tomar um banho de mar — voltar por um momento aos dias da infância à beira-mar, antes de sua vida ter sido presa nesta estranha profissão, cheia de emoções decepcionantes e tensões nervosas. Olhou o rosto moreno e cruel do homem ao seu lado. Será que teria momentos de anseio pelas coisas simples e calmas da vida? Com certeza não. Gostava de Paris, Berlim e New York, trens, aviões, comida cara e, sim, certamente, de mulheres caras.
— Então? — perguntou Bond, conjeturando se ela ia apresentar algum indício que ele não percebera. — Que é que acha?
— Desculpe. Eu estava sonhando acordada. Não, eu acho que você tem razão. Estou aqui desde o princípio e, apesar de ter notado coisinhas estranhas de vez em quando, fora os tiros resultando em duas mortes, claro, não vi absolutamente nada de incorreto. Todos os componentes da equipe, de Sir Hugo para baixo, estão de corpo e alma dedicados ao foguete. Vivem unicamente para isso, e tem sido maravilhoso ver tudo se desenvolver. Os alemães são trabalhadores ao extremo — posso bem acreditar que Bartsch tenha perecido pela tensão exagerada dos nervos — gostam de ser dirigidos por Sir Hugo, e ele gosta de dirigi-los. Eles adoram-no. Quanto à segurança, o local está sólido e bem guarnecido. Tenho certeza de que se alguém quisesse se aproximar do “Explorador da Lua” seria feito em pedaços. Concordo com você a respeito de Krebs e que ele, provavelmente, estivesse agindo sob as ordens de Drax. Foi por isto que não me dei o trabalho de ir contar--lhe quando ele andou mexendo nas minhas coisas. Não havia nada para ele encontrar, naturalmente. Só cartas particulares e coisas assim. Seria típico de Sir Hugo procurar certificar-se com absoluta minúcia. Aliás, devo dizer que o admiro por isto — acrescentou com franqueza. — Ele é um homem cruel, com maneiras deploráveis, e não muito simpático debaixo de toda aquela cabelada vermelha, mas eu gosto de trabalhar para ele e estou ansiosa para que o “Explorador da Lua” seja um sucesso. Viver ao lado dele durante tanto tempo fez com que eu me sentisse exatamente como seus homens.
Gala levantou os olhos para ver a reação do companheiro. Este baixou a cabeça, assentindo.
— Depois de um dia apenas, eu posso compreender isto — disse. — Creio que concordo com você. Não há nada em que nos basearmos, exceto minha intuição, e isto é uma coisa que não conta. O principal é que o “Explorador da Lua” parece seguro, tão seguro quanto as joias da Coroa e, provavelmente, ainda mais.
Bond sacudiu os ombros impaciente, aborrecido consigo mesmo, por renegar as intuições que contavam tanto em seu trabalho.
— Vamos embora — convidou quase rude. — Estamos perdendo tempo.
Compreendendo, a moça sorriu e seguiu o companheiro.
Contornando a próxima inclinação do penhasco, chegaram à base do elevador, coberto de algas marinhas e crustáceos . . . Cinquenta jardas mais adiante alcançaram o dique, construção forte, tubular, de ferro, calçado de tiras de aço entrelaçadas, que avançava sobre as rochas e mais além.
Entre os dois, e talvez uns vinte pés acima da face do penhasco, escancarava-se a boca negra e larga do túnel de exaustão, que subia inclinada dentro do penhasco para o chão de aço sob a popa do foguete. Da borda inferior da cavidade, giz derretido caía como lava, e viam-se respigos da matéria por cima de todos os pedregulhos e rochas lá embaixo. Com os olhos da imaginação, Bond via um rastro ofuscante de flama branca surgir uivando da parede do penhasco e ouvia o sibilo e borbulhar, quando o giz líquido se derramava na água.
Levantou os olhos para a estreita faixa da cúpula de lançamento que aparecia acima da borda do penhasco, duzentos pés acima, imaginando os quatro homens com suas máscaras contra gases, vestidos com roupas de asbetos, observando os instrumentos medidores enquanto o terrível líquido explosivo pulsava pelo tubo negro de borracha até o estômago do foguete. De repente, percebeu que se encontravam dentro do raio de ação, se alguma coisa não desse certo no enchimento de combustível.
— Vamos sair daqui — disse à pequena.
Quando umas cem jardas se interpuseram entre eles e a cavidade, Bond parou e olhou para trás. Imaginou-se acompanhado de mais seis homens fortes e durões, com todos os instrumentos necessários — e conjeturou como daria início a um ataque à base, vindo do mar — embarcações presas ao cais, quando a maré estivesse baixa; uma escada na borda da cavidade? e depois o quê? Seria impossível galgar as paredes de aço polido do túnel exaustor. Seria uma questão de disparar uma arma antitanque através do chão de aço por baixo do foguete, seguida de algumas granadas de fósforo, e esperar que alguma coisa pegasse fogo. Negócio meio confuso, mas que talvez desse resultado. Sair depois seria complicado. Seriam alvos fáceis para quem estivesse no topo do penhasco. Mas isto não perturbaria um esquadrão suicida russo. Era tudo muito possível de realizar.
Gala estivera ao seu lado, observando os olhos que mediam e especulavam.
— Não é tão fácil como você pensa — disse, vendo-lhe a testa franzida. — Mesmo quando a maré é alta e o mar muito forte, colocam guardas ao longo do cimo do penhasco de noite. Eles têm holofotes, Brens e granadas. As ordens que recebem são de atirar, e fazerem as perguntas depois. Naturalmente seria melhor iluminar completamente o penhasco à noite. Mas isto só serviria para tomar a base um alvo certeiro. Estou convencida de que pensaram em tudo.
Bond continuava franzindo a testa.
— Se eles tivessem cobertura do ataque por um submarino ou uma embarcação, um grupo eficiente ainda conseguiria realizar o negócio. Vai ser o diabo, mas eu vou nadar. O mapa do Almirantado diz que existe um canal de doze braças ali adiante, mas eu gostaria de dar uma olhada. Deve ter muita água no final do dique, contudo eu me sentirei mais feliz quando verificar com meus próprios olhos.
Sorriu para a moça:
— Por que você não vem nadar também? A água deve estar bastante fria, mas lhe faria bem, depois de ter estado a cozinhar-se dentro daquela cúpula de concreto a manhã inteira .
Os olhos de Gala se iluminaram.
— Acha que eu posso? — perguntou, hesitante. — Estou com um calor tremendo. Mas que é que nós vamos vestir?
Corou ao lembrar-se de suas calcinhas e porta-seios minúsculos e de nylon quase transparentes.
— Deixe isto pra lá — disse Bond aèreamente.
— Você deve ter alguns trapinhos vestidos aí por baixo, e eu estou de short. Estaremos perfeitamente respeitáveis, e não há ninguém por aqui para ver. Depois, eu prometo não olhar — mentiu alegremente, seguindo na frente até a próxima inclinação do penhasco.
— Você se despe atrás dessa rocha, e eu desta outra.
— Vamos. Não seja tola. Tudo faz parte de nossas obrigações .
Sem esperar a resposta dela, encaminhou-se para trás de uma rocha elevada, tirando a camisa enquanto andava.
— Ora, muito bem — disse Gala, aliviada por ter a resolução sido tirada de suas mãos. Foi para trás de outra rocha e lentamente desabotoou a saia.
Quando espiou nervosamente para fora, Bond já ia na metade do trecho de áspera areia marrom que seguia por entre os pequenos lagos para onde a maré enchente rodopiava entre os verdes e negros detritos das rochas... O rapaz tinha uma aparência elástica e a pele bronzeada. O short azul era tranquilizador.
Pisando de leve, ela seguiu-o e, de repente, estava dentro d’água. Imediatamente nada mais teve importância, fora do gelo aveludado do mar, a beleza das manchas de areia por entre os cabelos ondulados das algas marinhas que via nas profundezas verdes e claras abaixo dela quando mergulhou a cabeça e nadou paralelamente à praia num rápido crawl.
Ao se encontrar ao nível do dique, parou um momento para tomar fôlego. Não se via sinal de Bond, que ela vira nadando vários metros à frente. Bateu com os pés fortemente dentro da água para manter viva a circulação e então recomeçou novamente, pensando nele sem querer, pensando no corpo rijo e moreno que devia estar ali por perto, entre as rochas, talvez, ou mergulhando para a areia, a fim de calcular a profundidade da água com que um inimigo podia contar.
Virou-se para procurá-lo de novo, e foi então que ele surgiu inesperadamente do mar, por baixo dela. Sentiu o abraço rápido e apertado e o contato breve mas forte dos lábios dele nos seus.
— Vá para o diabo — exclamou furiosa, mas o rapaz já bavia mergulhado novamente, e quando ela golfou uma porção de água do mar, conseguindo orientar-se, ele nadava alegremente a vários metros de distância.
Gala voltou-se e nadou displicente, sentindo-se bastante ridícula, porém resolvida a pô-lo no seu lugar. Era exatamente como tinha pensado. Esse pessoal do Serviço Secreto sempre encontrava tempo para o sexo, por mais importante que fosse a missão de que se encarregavam.
Mas seu corpo vibrava obstinadamente com o imprevisto do beijo, e o dia luminoso parecia ter adquirido nova beleza. Enquanto nadava mais para fora, virou-se e olhou os dentes brancos como leite, dentes da Inglaterra que rosnavam, olhou o braço distante de Dover, o confete branco e preto dos corvos e gaivotas, jogados contra o vivido pano de fundo dos campos verdes, e chegou à conclusão de que tudo seria permitido num dia assim e que, só por aquela vez, ela o perdoaria.
Meia hora depois estavam deitados, esperando que o sol viesse secá-los, separados pela respeitável distância de um metro de areia, ao pé do penhasco.
O beijo não fora mencionado, mas os esforços de Gala para manter uma atitude de alheamento haviam tombado com a excitação de examinar uma lagosta que Bond apanhara com as mãos, ao mergulhar. Relutantemente, tornaram a colocá-la numa das cavidades da rocha e ficaram observando seus movimentos de volta ao abrigo das algas marinhas. Agora, ali estavam, cansados e alegres com o banho gelado, rezando para que o sol não se escondesse atrás do penhasco acima de suas cabeças antes de estarem aquecidos e suficientemente secos para poder vestirem novamente as roupas.
No entanto, não eram só estes os pensamentos de Bond. O lindo corpo estirado da pequena ao seu lado, incrivelmente erótico na ênfase marcante das calcinhas e porta-seios agarrados à pele, interpunha-se entre ele e sua preocupação com o “Explorador da Lua”. Além do mais, não havia nada que ele pudesse fazer pelo foguete durante mais uma hora. Ainda não eram cinco, e a tomada de combustível não terminaria senão depois das seis.
Seria somente àquela hora que ele poderia aproximar-se de Drax para certificar-se de que nas duas próximas noites haveria um acréscimo de guardas no penhasco e que eles possuíam as armas adequadas. Pois verificara com os próprios olhos que havia muita água, mesmo com a maré vazante, possibilitando a chegada de um submarino.
De modo que contava pelo menos com um quarto de hora livre antes de poderem voltar.
No intervalo havia essa pequena. O corpo semidespido surgia acima dele na superfície, quando nadava em baixo dela; o beijo rápido, forte e suave ao mesmo tempo, com os braços em torno dele; as colinas pontudas de seus seios, tão próximas e o estômago macio e raso, descendo para o mistério das coxas fortemente cerradas.
Para o inferno, toda essa história.
Arrancou o espírito dessa febre e fitou diretamente o infindável azul do céu, forçando-se a observar a beleza das gaivotas esvoaçantes ao se alinharem sem nenhum esforço entre as correntes de ar que giravam sobre o alto topo dos penhascos acima deles. Mas a plumagem sedosa e branca do colo das aves desviou novamente seus pensamentos para ela, não lhe dando descanso.
— Por que você se chama Gala? — perguntou, para interromper a sequência de pensamentos cálidos e persistentes.
A moça riu.
— Durante todo meu tempo de escola mexiam comigo por causa disso — respondeu, e Bond se impacientou diante da voz clara, fácil. — Depois, quando pertenci às Wrens e ainda pela metade da força policial de Londres. Mas meu verdadeiro nome é ainda pior. É Galateia. Era o cruzador onde meu pai servia quando eu nasci. Creio que Gala não é tão ruim assim. Quase me esqueci do meu nome de verdade. Estou sempre precisando trocá-lo, agora que estou na Seção Especial.
— Na Seção Especial. Na Seção Especial. Na. . .
Quando a bomba cai. Quando o piloto calcula mal, e o avião bate antes de tocar a pista de aterrissagem. Quando o sangue deixa o coração, e a consciência foge, há pensamentos no cérebro, ou palavras, ou talvez uma frase musical que se repete durante os poucos segundos antes da morte, como o som moribundo de um sino.
Bond não estava morto, mas as palavras ainda estavam dentro de sua mente, vários segundos depois de tudo haver acontecido.
Desde o momento em que tinham-se deitado na areia, recostados no penhasco, enquanto seus pensamentos se concentravam em Gala, seus olhos haviam observado distraidamente duas gaivotas brincando em redor de uma ponta de palha que estava na beira do ninho, numa pequena saliência, cerca de uns trezentos metros abaixo do cume distante do penhasco. Inclinavam os pescoços e pareciam cumprimentar, em seu jogo amoroso, só com as cabeças, que Bond divisava contra o branco ofuscante do céu. Então o macho voava para longe e, imediatamente voltava à saliência da rocha, para recomeçar seu jogo de amor.
Bond observava-os sonhadoramente enquanto ouvia o que a moça dizia, quando, subitamente, as duas gaivotas fugiram da saliência da rocha com um só grito de pavor. No mesmo instante viu-se um rolo de fumaça negra e ouviu-se um estrondo amortecido vindo do alto do penhasco. Em seguida, uma grande quantidade de giz branco, bem acima das cabeças de Bond e Gala, pareceu desligar-se para fora, ziguezagueando fragmentos pela encosta.
Quando Bond se deu conta do que fazia, achou-se deitado em cima de Gala, o rosto apertado contra o dela, e percebeu que o ar estava cheio de trovões, que sua respiração estava abafada, e que o sol desaparecera. Sentia as costas dormentes e doendo sob um grande peso, e sua orelha esquerda, além do eco do trovão, guardava o som de um grito sufocado.
Mal teve consciência do se passava, e precisou esperar até que seus sentidos voltassem à vida.
A Seção Especial. O que foi que ela disse a respeito da Seção Especial?
Fez esforços inauditos para se mexer. Apenas no braço direito, o braço mais próximo do penhasco, ainda havia algum movimento, mas quando puxou o ombro, o braço ficou mais livre até que, finalmente, com um impulso grande para trás, a luz e o ar chegaram até eles. Lutando no nevoeiro de poeira de giz, alargou o buraco, até a cabeça poder retirar seu peso esmagador de cima de Gala. Sentiu o leve movimento, quando ela virou a cabeça para um lado, procurando a luz e o ar. Uma torrente de poeira e pedras no buraco que ele limpara fê-lo cavar ferozmente mais uma vez. Pouco a pouco, aumentou o espaço até conseguir firmar o cotovelo direito, e então, tossindo ao ponto de imaginar que os pulmões iam arrebentar, impulsionou o ombro direito para cima até que, de repente, livrou-o, bem como a cabeça.
Seu primeiro pensamento foi que tinha havido uma explosão no “Explorador da Lua”. Levantou os olhos para o penhasco e depois para a praia. Não. Estavam a cem metros da base. Foi apenas na linha do horizonte, diretamente acima deles, que um grande pedaço fora comido no penhasco.
Em seguida pensou no perigo imediato que corriam. Gala gemia, e ele sentia o frenético bater de seu coração contra o próprio peito, mas a máscara pavorosa e branca de seu rosto estava agora livre para respirar, e ele se pôs então a girar o corpo de um lado para o outro em cima dela, a fim de tentar aliviar a pressão de seus pulmões e do estômago. Lentamente, polegada por polegada, seus músculos partindo-se com o esforço, procurou caminho sob a pilha de poeira e detritos até o lado do penhasco, onde sabia que o peso seria menor.
Finalmente livrou o peito e pôde ajoelhar-se ao lado da companheira. O sangue pingava de suas costas e braços feridos, misturando-se com a poeira de giz que continuamente caía na parte lateral dos buracos que fizera mas verificou que não tinha ossos quebrados e, com a fúria do trabalho de salvamento, não sentiu dores.
Grunhindo e tossindo, sem uma pausa para respirar, ergueu-a e fê-la sentar-se e, com a mão sangrando, limpou um pouco do giz de seu rosto. Depois, livrando as pernas da tumba de giz, levantou-a e levou-a até uma elevação dos detritos, com as costas voltadas para o penhasco.
Ajoelhou-se e olhou aquele horrível espantalho branco que, minutos antes, fora uma das mais lindas moças que já vira. Enquanto olhava os filêtes de sangue escorrendo-lhe pelo rosto, rezou para que seus olhos se abrissem.
Quando, segundos mais tarde, eles se abriram, o alívio foi tão grande, que Bond se afastou e sofreu tremenda crise de náuseas.
CONTINUA
A um quilômetro da base, aproximadamente, Drax estacou.
— Eu explicarei a geografia — disse ele. — Walter, siga na frente. Já devem estar esperando por você, para dar outra olhada naquelas barbatanas... Mas não se preocupe demasiado com elas, meu caro amigo. O pessoal das ligas de alto teor sabe muito bem o que está fazendo. E agora — continuou Drax, olhando para Bond, enquanto fazia um gesto na direção da cúpula branca como leite — ali dentro está o “Explorador”. O que você vê é o topo de uma plataforma que foi escavada a mais de quarenta pés de profundidade, no terreno calcário. As duas metades da cúpula são abertas hidràulicamente e recolhidas para trás, ao nível do muro de vinte pés. Se agora estivessem abertas, você veria o cone final do “Explorador”, ao nível do muro. Ali — apontou para uma sombra retangular que estava já quase fora do campo visual de ambos, na direção de Deal — fica a casamata de controle, de onde se comanda o disparo. É um blocausse em concreto. Está cheio de dispositivos de radar de rastreio — tanto o radar de velocidade Doppler como o radar de rastreio de direção de voo, por exemplo. As informações são fornecidas por meio de vinte canais telemétricos, alojados no cone do foguete. Também existe ali dentro uma enorme tela de televisão, de modo que se pode acompanhar o comportamento do foguete no interior da cápsula, depois de iniciado o voo. Um outro conjunto de televisores serve para acompanhar o início da ascensão. Ao lado da casamata, há um elevador que desce ao longo do penhasco. Uma boa parte das peças e maquinismos foi trazida para a base por via marítima e transportada até cá em cima por meio desse monta-cargas. Aquele gemido que você escuta, vem da central elétrica, ali mais adiante — e Drax fez um gesto vago, em direção a Dover. — Os alojamentos dos homens e a casa são protegidos pelo muro à prova de deslocação de ar. Mas quando fizermos o lançamento, não deverá haver ninguém dentro de um raio de ação de um quilômetro e meio, a partir da base, exceto os técnicos do Ministério e a equipe da B.B.C., que estará colocada na casamata de comando. Espero que o muro aguente bem a deslocação de ar. Walter diz que a base e uma boa parte da faixa de concreto derreterão com o calor. E é tudo. Nada mais precisa saber, até entrarmos. Vamos.
Bond tornou a observar o tom rude de comando. Seguiu em silêncio, atravessando uma zona banhada de luar, até chegarem à parede de suporte da cúpula. Uma lâmpada vermelha brilhava na parede, por cima de uma porta de aço chapeado. Iluminava um grande letreiro que dizia em inglês e alemão:
PERIGO DE MORTE.
ENTRADA PROIBIDA QUANDO A LÂMPADA VERMELHA ESTIVER ACESA.
TOQUE A CAMPAINHA E ESPERE.
Drax apertou o botão por debaixo do letreiro, e ouviu-se o som abafado de uma campainha de alarma.
— Pode estar alguém trabalhando com o oxiacetileno, ou fazendo qualquer outro trabalho delicado — explicou Drax. — Basta que desvie sua atenção do serviço, pela fração de um segundo, caso alguém entre sem aviso, e isso poderia resultar num erro bastante caro. Todos largam os utensílios quando a campainha soa, e só recomeçam quando veem de que se trata.
— Drax afastou-se um pouco da porta e apontou para uma série de gradeados dispostos logo abaixo do remate da parede. — São os exaustores de ventilação — continuou ele explicando.
— O ar condicionado no interior da cúpula mantém-se constantemente a setenta graus Farenheit.
A porta foi aberta por um homem que empunhava um cassetete de policial e trazia um revólver no cinturão. Bond seguiu Drax até uma pequena antecâmara. Esta nada tinha senão um banco e uma fileira bem arrumada de chinelos de feltro.
— Terá de calçá-los — disse Drax, sentando-se e tirando os sapatos. — Poderia escorregar e esbarrar contra alguém. O melhor é deixar aqui também seu casaco. Setenta graus Farenheit é uma temperatura bastante elevada.
— Obrigado — disse Bond, lembrando-se da Beretta encaixada sob a axila. — A verdade é que não sinto calor algum.
Sentindo-se como um visitante num teatro em dia de ensaios, Bond seguiu Drax através de uma porta de comunicação, passando depois por um estreito corredor e desembocando numa série de projetores que, instintivamente, o fizeram levar a mão aos olhos, enquanto com a outra se agarrava ao gradeado do corrimão protetor, à sua frente.
Quando retirou a mão, foi brindado com uma cena de tal esplendor que, durante vários minutos, ficou sem fala, os olhos fascinados pela terrível beleza da mais poderosa arma existente sobre a Terra.
CAPITULO 12
O “EXPLORADOR DA LUA”
Era como se o tivessem metido no tambor polido de um gigantesco revólver. Partindo do chão, a mais de doze metros abaixo da varanda onde se encontravam, erguia-se uma parede circular, de metal polido, no topo da qual, ele e Drax se colavam como duas moscas. No centro desse imenso cilindro, que mediria pelo menos uns nove metros de diâmetro, estava colocado um gigantesco lápis de cromo, refulgente, cuja ponta, aguçando-se numa antena fina como agulha, parecia roçar o telhado, seis ou sete metros acima de suas cabeças.
O cintilante projétil descansava numa base cônica de aço, que se erguia do chão por entre as extremidades de três barbatanas em forma de delta, pronunciadamente puxadas para trás, e que parecia tão afiadas quanto bisturis de cirurgião. Mas, fora isso, nada mais empanava o brilho sedoso dos quinze metros de aço cromado e polido, exceto as duas garras que saíam das paredes e colhiam a cintura do foguete, por entre espessos acolchoados de espuma de borracha.
No ponto em que as garras tocavam o projétil, viam-se pequenas portas de acesso, abertas na superfície de aço e, quando Bond olhou para baixo, divisou um homem que saía agachado por uma delas, até alcançar a estreita plataforma do monta-cargas instalado paralelamente ao bojo do “Explorador”. Depois, fechou a porta com a mão enluvada. Encaminhou-se a passos miúdos, equilibrando-se pela estreita ponte, até alcançar a parede, e fez girar uma manivela. Ouviu-se um profundo gemido de maquinismo, e a garra retirou seu suporte acolchoado do bojo do foguete, ficando suspensa no ar, como as patas dianteiras de um louva-a-Deus. Os gemidos do mecanismo alteraram-se para um tom mais cavo, e a plataforma do monta-cargas, lentamente, foi-se retraindo, em movimento de telescópio. Depois, tornou a esticar-se e foi pegar o foguete, com a garra, três metros mais abaixo. Seu operador esgueirou-se de novo pelo braço e abriu outra pequena porta de acesso ao interior, desaparecendo dentro do foguete.
— Provavelmente está verificando o sistema de alimentação de combustível dos tanques posteriores — disse Drax. — A alimentação é feita por gravidade. Um sistema bastante complexo. Que acha você disto? — Observou com prazer a expressão de êxtase, estampada no rosto de Bond.
— Uma das coisas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida — respondeu Bond. Era fácil falar. Não se ouvia o menor som dentro do grande cilindro de aço, e as vozes dos homens apinhados lá embaixo, junto da cauda do foguete, não chegavam a eles senão como distante murmúrio. Drax apontou para cima e explicou:
— Veja o cone. O que está montado é apenas experimental, mas pode substituir-se, claro, por uma cápsula estratégica, com carga nuclear. Para este voo, irá cheia de instrumentos. Telêmetros e todas essas coisas. Depois, estão os giroscópios, bem defronte de nós. E, em seguida, quase exclusivamente, tanques de combustível até abaixo, quando temos então as turbinas, já próximas da cauda. Impulsionadas por vapor superaquecido, obtido na decomposição do peróxido de hidrogênio . O combustível, fluorina e hidrogênio... — olhou rapidamente para Bond. A propósito, isto é top secret, sabe?... pois o combustível, como dizia, baixa pelos tubos de alimentação e recebe a ignição logo que é introduzido no motor. Trata-se de uma espécie de explosão controlada, que impulsiona o foguete para o ar. Esse assoalho de aço onde o “Explorador” assenta agora, desliza então para fora, claro. Por baixo, há um enorme poço de exaustão. Tem saída para a base dos rochedos, do lado do mar. Amanhã você irá dar uma vista d’olhos. Parece uma gigantesca caverna, nada mais. Quando procedemos, há dias, a um teste estático, a substância calcária do terreno derreteu e correu para o mar como se fosse água. Espero que não acabemos por calcinar e destruir os famosos penhascos brancos de Dover, quando chegar a hora zero. Você gostaria de dar uma olhada nos trabalhos?
Bond seguiu em silêncio, quando Drax indicou o caminho, descendo por uma íngreme escada de ferro, que acompanhava a parede de aço em sua curvatura. Sentia agora invadir-se por uma onda de admiração e quase de reverência por esse homem e sua formidável realização. Como teria podido ele, Bond, deixar-se impressionar desfavoravelmente pela conduta infantil de Drax, à mesa de jogo? Mesmo os grandes homens têm suas fraquezas. E Drax necessitava dessa válvula de escape para a tensão a que o submetia a tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Tornava-se óbvio que Drax não podia confiar excessivamente em seus auxiliares direitos, de nervos à flor da pele. Dele sozinho devia partir a vitalidade e a confiança necessárias para manter elevado a moral de todos. Mesmo tratando-se de uma coisa tão insignificante quanto ganhar uma partida de bridge, devia ser importante para Drax estar-se assegurando constantemente da própria capacidade, procurando em tudo vaticínios de boa sorte e de êxito, chegando ao ponto de criar esses augúrios favoráveis por suas próprias mãos. Quem não suaria ou roeria as unhas, estando tanta coisa em jogo?
Enquanto contornavam a larga curva da escada, com suas figuras grotescamente refletidas na superfície cromada do foguete, como em um espelho mágico de feira, Bond sentia quase afeto pelo homem que, apenas há poucas horas, ele dissecara sem piedade e quase com ódio.
Quando chegaram à plataforma da base de aço do cilindro, Drax fez uma pausa e olhou para cima. Bond seguiu o olhar do outro. Visto naquela perspectiva, o “Explorador” dava-lhes a impressão de estar olhando para um fino cone vertical de luz, perdendo-se na abóbada cintilante, um feixe de luz que não era totalmente branco, mas de uma tonalidade acetinada de madrepérola. Havia nele alguns pontos vermelhos e brilhantes, refletidos por um gigantesco extintor de incêndios, de neve carbônica, colocado a pouca distância. Um homem em traje de amianto estava postado ao lado do extintor, que apontava seu bico de leque para a base do foguete. Havia também uma estria de cor violeta, cuja origem provinha de uma lâmpada fixada ao painel de instrumentos, na parede. Servia para controlar os movimentos da cobertura de aço em que se encontravam e que os separava do poço de exaustão. Finalmente, um tom verde-esmeralda vinha da luz difusa de uma lâmpada com abajur, colocada sobre uma mesa de pinho, à qual se sentava um homem que ia anotando números que lhe eram transmitidos, de viva voz, pelo grupo reunido logo abaixo da cauda do foguete.
Levantando os olhos para aquela coluna em tons pastel, tão incrivelmente esguia e graciosa, parecia impossível que uma coisa tão delicada pudesse aguentar as pressões a que teria de submeter-se na próxima sexta-feira: o jato tronitruante da mais poderosa explosão controlada que alguma vez fora tentada; o impacto da barreira do som; as pressões desconhecidas da estratosfera, a quinze mil milhas por hora; o choque terrível quando retornasse, num mergulho de milhares de milhas de altura, para ferir de novo o envelope atmosférico da Terra.
Drax pareceu ler seus pensamentos. Voltou-se para Bond:
— É como perpetrar um assassinato — disse ele. Em seguida, de maneira surpreendente, explodiu numa risada asinina. —Walter! — chamou, dirigindo-se ao grupo de homens. — Venha cá!
Walter destacou-se dos outros e aproximou-se.
— Walter — prosseguiu Drax — eu estava dizendo ao nosso amigo, o Comandante, que quando lançarmos o “Explorador da Lua” será como se cometêssemos um crime de assassinato .
Bond não ficou surpreendido, ao ver uma expressão de incredulidade intrigada estampar-se no rosto do doutor. Irritado, Drax exclamou:
— Assassinato de uma criança. Assassinato de nosso filho — repetiu com um gesto na direção do foguete. — Acorde, homem! Acorde! Que se passa com você?
A fisionomia de Walter clareou. De um modo velado, sorriu, mostrando seu apreço pela comparação.
— Assassinato, Ah, sim! Essa é muito boa. Ha! Ha! E agora, Sir Hugo, as folhas de grafita no exaustor. O Ministério está satisfeito com o ponto de fusão? Eles não acham que. ..
Ainda falando, Walter levou Drax para debaixo da cauda do foguete. Bond seguiu ambos.
Os rostos dos dez homens estavam voltados para eles, quando chegaram. Drax apresentou-o com um gesto da mão.
— Comandante Bond, o nosso novo agente de segurança, — disse, conciso.
O grupo olhou Bond em silêncio. Não houve o menor movimento para ir cumprimentá-lo, e os dez pares de olhos não refletiam curiosidade.
— Então, que negócio é esse de tanta história com a grafita? . ..
O grupo se fechou em torno de Drax e Walter. Bond foi deixado só, para trás.
Não estava surpreso com a frieza da recepção. Teria olhado a intromissão de um amador nos segredos de seu próprio departamento com a mesma indiferença mesclada de ressentimento. Além do mais, simpatizava com esses técnicos apanhados a dedo, que tinham vivido durante meses a fios nas mais altas regiões da astronáutica e se encontravam agora no limiar do julgamento final. Entretanto, lembrava-se, os inocentes entre si deviam saber que Bond tinha seu próprio dever a cumprir, sua própria participação vital nesse projeto. Suponhamos, por exemplo, que um desses pares de olhos, nada comunicativos, escondesse um homem dentro de outro homem, um inimigo que, talvez, naquele instante mesmo exultasse com a certeza de que a grafita que Walter parecia não confiar era realmente sub-resistente. É verdade que tinham o aspecto de uma equipe bem unida, quase de uma fraternidade, ao se colocarem assim em torno de Drax e Walter, pendendo de suas palavras, os olhos atentos aos movimentos das bocas dos dois homens. Mas seriam parte de um cérebro, movimentando-se dentro da intimidade de uma órbita secreta, registrando seus cálculos ocultos como o mecanismo clandestino de uma máquina infernal?
Bond caminhava a esmo, para cima e para baixo do triângulo formado pelas três pontas das barbatanas que repousavam em suas cavidades forradas de borracha no chão de aço, interessando-se em tudo em que seus olhos pousavam, mas, de quando em quando, focalizando-os no grupo de homens, em ângulo diferente.
Com exceção de Drax, todos usavam o mesmo macacão justo de nylon, preso por fecho-éclair de plástico. Não se via o menor vestígio de metal, e nenhum deles usava óculos. Como no caso de Walter e Krebs, suas cabeças estavam raspadas bem rente. Provavelmente, pensou Bond, para evitar que um fio solto de cabelo pudesse cair dentro do engenho. Entretanto, e isso chamou-lhe a atenção como característica muito estranha da equipe, todos exibiam exuberantes bigodes, cuja manutenção exigia, sem dúvida, grande dose de cuidados. Eram de todos os formatos e tonalidades: louros, cor de rato ou escuros, em guidões de bicicleta, de foca, à Kaiser ou à Hitler — cada rosto exibia seu distintivo capilar, entre os quais a pelagem ruiva de Drax brilhava como insígnia oficial do chefe supremo.
Por que motivo, conjeturava Bond, todos os homens da base usavam bigode? Nunca os apreciara, mas combinados com as cabeças raspadas, lembravam algo de positivamente obsceno. Teria sido apenas tolerável, se todos fossem cortados no mesmo modelo, mas a variedade de gêneros individuais, essa anarquia de formatos, tinha um que de particularmente horrível, destacando-se do fundo composto pelas cabeças nuas e redondas.
Nada mais havia para chamar a atenção. Os homens eram de estatura mediana, e todos de tipo mais sobre o esguio — talhados, supunha Bond, mais ou menos de acordo com as necessidades do trabalho. A agilidade seria imprescindível nas plataformas, nas passagens ao longo das garras laterais e dos monta-cargas, e solidez para executar as manobras através das portas de acesso e dentro dos minúsculos espaços disponíveis nos compartimentos do foguete. As mãos deles pareciam ter os músculos e nervos relaxados. Eram imaculadamente limpas, e seus pés, metidos em chinelos de feltro, estavam imóveis pela concentração no trabalho. Bond não surpreendeu nenhum deles, em ocasião alguma, olhando em sua direção, movido pela curiosidade, e quanto a penetrar em seus espíritos ou calcular suas doses de lealdade, confessava a si próprio que a tarefa de desmascarar os pensamentos de cinquenta desses homens-robôs alemães, em três dias, era absolutamente impraticável. E lembrou-se, então, de que já não eram cinquenta. Apenas quarenta e nove. Um desses robôs estourara o tampo dos miolos. E o que transparecera dos pensamentos secretos de Bartseh, afinal? Desejo por uma mulher e um “Heil Hitler”. Estaria muito enganado, cogitava Bond, se julgasse que, esquecendo o “Explorador da Lua”, fossem esses também os pensamentos dominantes dentro de mais quarenta e nove cabeças?
— Dr. Walter! Estou dando uma ordem!
A voz de Drax, cheia de uma ira controlada, interrompeu os pensamentos de Bond, enquanto permanecia tocando com os dedos a aresta condutora de uma das barbatanas de columbite da cauda do foguete.
— Voltem ao trabalho! Já perdemos tempo demais!
Os homens se espalharam, pressurosos, cada um absorvido em sua tarefa, e Drax aproximou-se de Bond, deixando Walter vagando, indeciso, sob a enorme bocarra do exaustor de jato do foguete.
Drax mostrava uma fisionomia tempestuosa.
— Maluco do inferno — praguejou ele. — Está sempre descobrindo complicações.
Depois, como se quisesse esquecer seu adjunto, acrescentou bruscamente para Bond:
— Venha até meu escritório. Vou-lhe mostrar o plano de voo. Depois iremos dormir.
Bond seguiu-o. Drax girou uma pequena maçaneta embutida na parede de aço, e uma porta estreita se abriu, com um silvo abafado. A um metro mais para dentro, havia outra porta também de aço, e Bond notou que ambas eram cercadas de borracha, tornando o cilindro estanque à entrada de ar. Antes de fechar a porta externa, Drax parou na soleira e apontou, na parede circular, um bom número de maçanetas, quase invisíveis e semelhantes à que ele utilizara.
— São as portas das oficinas: geradores elétricos, controle de combustível, lavatórios, armazéns de materiais... — Apontou a porta seguinte. — Aqui é a sala de minha secretária. — Fechou a porta externa, antes de abrir a segunda e, entrando em seu escritório, fechou a porta interna atrás de Bond.
Era um recinto severo, pintado de cinza-claro, onde se via uma ampla escrivaninha e diversas cadeiras de metal tubular, forradas de lona azul-marinho. O chão era atapetado em cinza. Havia ainda dois fichários verdes e um grande aparelho de rádio, metálico. Uma porta semiaberta deixava entrever parte de um banheiro ladrilhado. A escrivaninha estava disposta de frente para uma larga parede lisa, que parecia ser construída de vidro opaco. Drax encaminhou-se para a parede e baixou dois interruptores, na extremidade direita. A parede inteira ficou iluminada como tela de cinema, e Bond se defrontou com dois mapas, cada um de seis pés quadrados, ambos desenhados no próprio vidro.
O mapa da esquerda mostrava toda a região oriental da Inglaterra, desde Portsmouth até Hull, bem como as águas adjacentes, nas latitudes entre 50 e 55 graus. Do ponto vermelho, próximo a Dover, que representava a base de lançamento do “Explorador da Lua”, partia uma série de círculos concêntricos, representando, com intervalos de dez milhas, o raio de ação do projétil. Num ponto distante 80 milhas da base, entre as ilhas Fríseas e Hull, via-se um losango vermelho, desenhado em pleno oceano.
Drax fez um gesto para as intrincadas tábuas matemáticas e as colunas de leitura de bússolas, que enchiam o lado direito do mapa.
— Velocidades de vento, pressão atmosférica, cálculos de computador para os giroscópios — foi explicando ele. — Tudo calculado na base da velocidade e raio de ação do foguete, como constantes matemáticas. Recebemos diariamente as previsões meteorológicas fornecidas pelo Ministério da Aeronáutica, bem como as leituras efetuadas na atmosfera superior, cada vez que um jato da RAF alcança essa altitude. Todos os relatórios nos são transmitidos. Quando um avião atinge a altitude máxima, solta balões de hélio que podem subir ainda mais e nos fornecem novas leituras. A camada atmosférica chega até cinquenta milhas de altitude, aproximadamente. Depois das primeiras vinte, não existe já qualquer densidade que possa afetar o progresso do foguete. Voará quase em vácuo. Atravessar as primeiras vinte milhas é que constitui o principal problema. A atração da gravidade, claro, é outra preocupação. Walter poderá explicar-lhe todas essas coisas, se você estiver interessado. Haverá informações contínuas sobre o tempo, durante as últimas horas até sexta-feira. E então ajustaremos os giroscópios, pouco antes do lançamento. Por enquanto, Miss Brand colige as informações recebidas todas as manhãs e organiza um mapa de movimentos giroscópicos, para o caso de ser necessário.
Drax apontou para o segundo dos dois mapas. Era um diagrama do voo elíptico do foguete, desde o ponto de lançamento até seu alvo. Havia ainda mais colunas de números e cifras.
— Aí temos o registro de velocidade da Terra e seus efeitos na trajetória do foguete — explicou Drax. — A Terra estará girando para Leste, em relação ao voo do foguete. Esses fatores têm de ser conjugados com o outro mapa, e é da leitura final que sairão as instruções de voo. É um negócio bem complicado. Felizmente você não precisa compreender. Deixe isso para Miss Brand. E agora — disse, apagando as luzes da parede que ficou novamente lisa — deseja fazer alguma pergunta a respeito de seu trabalho? Não creio que haja muita coisa para você fazer. Já viu que tudo foi feito com a máxima segurança. O Ministério insistiu para que assim fosse, desde o início.
— Tudo me parece em ordem — disse Bond.
Examinou a fisionomia de Drax, em seguida. O olho bom fitava-o intensamente. Bond fez uma pausa.
— Acha que havia alguma coisa entre sua secretária e o Major Tallon?
Era uma pergunta clara, e o melhor seria fazê-la agora.
— É possível, — respondeu Drax sem constrangimento. — Ela é moça atraente. Eram forçados a conviver, constantemente, na companhia um do outro. De qualquer maneira, parece que Bartsch ficou alucinado por ela.
— Ouvi dizer que Bartsch fez continência e gritou: “Heil Hitler” antes de virar a arma contra a boca — disse Bond.
— Foi o que me contaram — confirmou Drax, sem o mínimo interesse. — E daí?
— Por que motivo todos os homens usam bigode? — indagou Bond, ignorando a pergunta de Drax.
Novamente teve a impressão de que sua pergunta exasperara o outro homem.
Drax soltou uma de suas risadinhas curtas e ladradas.
— Foi uma ideia que eu tive. Eles são difíceis de reconhecer nesses macacões brancos e com as cabeças raspadas. Por isto mandei que todos deixassem crescer os bigodes. A coisa se tornou quase um fetiche. Como na RAF, durante a guerra. Vê alguma coisa de inconveniente nisso?
— Claro que não. A princípio é um tanto.. . surpreendente. Eu teria pensado que números grandes colocados nas roupas, com uma cor diferente para cada turma, teria sido mais eficiente.
— Pois bem — replicou Drax, voltando-se em direção à porta como para finalizar a conversação. — Decidi-me pelos bigodes.
CAPITULO 13
DECISÃO FINAL
Na quarta-feira de manhã, Bond despertou cedo, na cama do homem morto.
Dormira pouco. Drax não dissera nada a caminho de volta para casa e lhe desejara um rápido boa-noite no fim da escada. Bond seguira pelo corredor atapetado até o ponto onde brilhava uma luz, vinda de uma porta aberta, e encontrara suas coisas ordenadamente arranjadas num confortável quarto.
O aposento era mobiliado com o mesmo gosto de tipo dispendioso que encontrara no andar térreo. Havia biscoitos e uma garrafa de Vichy (não era uma garrafa de Vichy com água da bica, verificou Bond) ao lado da cama.
Não se notavam sinais do ocupante precedente, a não ser uma pasta de couro contendo binóculos, na mesinha de cabeceira, e um arquivo de metal, trancado. Bond conhecia tudo sobre arquivos. Virou-o contra a parede, colocou a mão embaixo e encontrou a ponta do fecho que se projeta para baixo, quando a série de escaninhos de cima foi trancada. Uma pressão feita para cima soltou as gavetas uma por uma, e ele baixou suavemente a borda do arquivo para o chão, refletindo maldosamente que o Major Tallon não teria sobrevivido durante muito tempo no Serviço Secreto.
A gaveta de cima continha mapas de escala da base e seus edifícios, além de um mapa do Almirantado n° 1895, representando o Estreito de Dover. Bond colocou cada uma das folhas sobre o leito e examinou-as minuciosamente. Havia restos de cinza de um cigarro nas dobras do mapa do Almirantado.
Bond foi buscar sua caixa de ferramentas — uma caixa quadrada de couro que estava ao lado da cômoda. Examinou os números nas rodas da fechadura de segredo e, satisfeito por não terem sido mexidas, virou-as para o número de código. A caixa estava repleta de instrumentos. Bond escolheu um vaporizador de pó para impressões digitais e uma lente grande. Espalhou o pó fino e acinzentado, centímetro por centímetro, sobre toda a extensão da carta geográfica. Apareceu uma floresta de impressões digitais.
Examinando-as com a lente, chegou à conclusão de que pertenciam a duas pessoas. Isolou os dois melhores grupos, tirou uma Leica com um flash de dentro da pasta de couro e fotografou-os. Em seguida, examinou cuidadosamente com a lente os dois minúsculos sulcos no papel que o pó fizera aparecer .
Estes davam a impressão de serem duas linhas traçadas da costa para formar uma rota cruzando o mar. Sua direção era muito estreita, e as duas linhas pareciam originar-se da casa onde se encontrava Bond. De fato, poderiam indicar observações de algum objeto no mar, feitas de cada ala da casa.
As duas linhas não haviam sido traçadas com lápis, mas, presumivelmente, para evitar serem descobertas, com um estilete que mal sulcara o papel.
No ponto onde se encontravam, havia a sombra de uma interrogação, na linha correspondente à décima-segunda braça, cerca de cinquenta jardas distante do penhasco, numa direção reta da casa para o navio-farol South Goodwin.
Não havia mais nada para ser descoberto no mapa. Bond olhou o relógio. Vinte para a uma. Ouviu passos distantes no hall e o estalido de uma lâmpada sendo apagada. Num impulso, ergueu-se e, de mansinho, apagou as luzes do quarto, deixando apenas a de leitura, velada por um abajur e colocada à mesinha de cabeceira.
Ouviu os pesados passos de Drax aproximando-se da escada. Houve o estalido de outro interruptor e depois silêncio. Bond imaginava aquela cara grande, cabeluda, voltada para o corredor, olhando, escutando. Depois percebeu o rangido de uma porta, sendo aberta devagar e fechada da mesma forma. Esperou, visualizando os movimentos do homem que se preparava para dormir. Ouviu ainda o som abafado de uma janela que se abria, o ruído de trombeta, distante, de um nariz sendo assoado. Depois silêncio.
Bond concedeu mais cinco minutos a Drax e depois foi até o arquivo, abrindo suavemente as outras gavetas. Não havia nada na segunda e na terceira, mas a última estava repleta de arquivos arrumados em ordem alfabética. Eram os dossiês dos homens que trabalhavam na base. Bond puxou a série “A”, voltou para a cama e começou a ler.
Em cada um a fórmula era a mesma: nome por inteiro, endereço, data do nascimento, descrição, sinais particulares, profissão ou ofício depois da guerra, registro de tempo de guerra, sobre atitudes políticas e simpatias atuais, registro criminal, de saúde e sobre os parentes próximos. Alguns desses homens tinham mulher e filhos, cujas particularidades eram anotadas e, acompanhando cada dossiê, havia fotografias: de frente e de perfil, além das impressões digitais de ambas as mãos.
Duas horas e dez cigarros depois, Bond examinara todos eles e descobrira dois pontos de interesse geral. Primeiro, que todos os cinquenta homens pareciam ter levado uma vida sem mácula, sem o menor vestígio de ódio político ou criminoso. Aquilo lhe pareceu tão pouco verossímil, que resolveu encaminhar todos eles novamente à Estação D. para serem submetidos a um reexame completo na primeira oportunidade.
O segundo ponto era que nenhuma das caras das fotografias tinha bigode. Apesar da explicação de Drax, esse fato suscitou um segundo pequeno ponto de interrogação no espírito de Bond.
Ergueu-se da cama e trancou novamente tudo, colocando o mapa do Almirantado em um dos arquivos de sua pasta de couro. Girou a fechadura de segredo e enfiou a pasta bem para debaixo da cama, de modo que a mesma ficasse diretamente sob seu travesseiro no ângulo interno da parede. Depois, sem fazer barulho, lavou-se, escovou os dentes no banheiro anexo e escancarou a janela.
A lua ainda brilhava: como devia ter brilhado, pensou Bond, quando, despertado por algum ruído fora do comum, Tallon subira ao telhado, talvez somente há poucas noites, e vira, no meio do mar, o que tinha visto. Devia trazer os binóculos consigo, e Bond, lembrando-se, saiu da janela e apanhou-os. Eram binóculos muito possantes, de fabricação alemã, pilhagem da guerra, talvez, e o 7 X 50 nas chapas superiores revelaram que se tratava de binóculos para a noite. Depois então, o cauteloso Tallon devia ter caminhado de leve (mas não o suficiente) para a outra extremidade do telhado e novamente erguido os binóculos, calculando a distância da borda do penhasco até o objeto no mar, e do objeto até o Goodwin, navio-farol. Em seguida, devia ter voltado pelo mesmo caminho e, sem fazer ruído, tornado a entrar no quarto.
Bond viu Tallon, talvez pela primeira vez desde que estava na casa, trancar a porta cautelosamente, dirigir-se até o arquivo, retirar dali o mapa, ao qual mal lançara um olhar até então, e marcar sobre o mesmo, de leve, as linhas de sua direção, às pressas. Talvez tivesse olhado para ele durante longo tempo, antes de apor a pequenina interrogação ao seu lado.
E que teria sido então o objeto desconhecido? Impossível dizer. Um navio? Uma luz? Um ruído?
Fosse o que fosse, Tallon não devia ter visto. E alguém o tinha ouvido. Alguém havia adivinhado que ele vira, e esperara que Tallon saísse do quarto na manhã seguinte. Aí então aquele alguém viera ao seu quarto e dera uma busca. A carta marítima, provavelmente, nada revelara, mas vira os binóculos para noite em cima da janela.
Fora o bastante. E naquela noite, Tallon morrera.
Bond se controlou. Ia depressa demais, compondo um caso, baseado no mais tênue dos indícios. Bartsch matara Tallon, e Bartsch não fora o homem que ouvira o barulho, o homem que deixara as impressões digitais no mapa, o homem cujo dossiê Bond separara e guardara em sua pasta de couro.
O homem tinha sido o untuoso Krebs, a criatura do pescoço de minhoca. As impressões digitais eram suas. Durante um quarto de hora, Bond comparara as impressões do mapa com as impressas no dossiê de Krebs. Mas quem disse que Krebs ouvira um barulho, ou fizera qualquer coisa por causa disso? Bem, para começar, ele parecia mesmo um tipo intrometido. Tinha os olhos de um ladrão sem importância. Aquelas impressões no mapa haviam sido, positivamente, feitas depois que Tallon o estudara. Os dedos de Krebs cobriram os de Tallon em diversos pontos.
Entretanto, como poderia Krebs estar envolvido nessa história, com os olhos de Drax constantemente em cima dele? O assistente confidencial. Mas que dizer de Cícero, o empregado particular de toda confiança do Embaixador Britânico em Ankara, durante a guerra? A mão no bolso das calças pendendo por cima das costas da cadeira. As chaves do Embaixador. O cofre. Os segredos. O quadro era muito semelhante.
Bond sentiu um arrepio. Compreendeu então, de repente, que estivera de pé durante muito tempo em frente às janelas abertas e que já era tempo de dormir um pouco.
Antes de se deitar, pegou o coldre de ombro da cadeira, onde estava no meio das roupas despidas, e retirou a Beretta, colocando-a debaixo do travesseiro. Como defesa contra quem? Bond não sabia, mas sua intuição lhe dizia muito claramente que pairava o perigo no ar. O cheiro era insistente, apesar de ainda impreciso, e restringia-se apenas ao limiar de seu subconsciente. Na realidade, ele sabia que suas impressões se baseavam num determinado número de interrogações que se haviam materializado durante as últimas vinte e quatro horas: o enigma de Drax; o “Heil Hitler” de Bartsch; os estranhos bigodes; os cinquenta alemães de conduta impecável; a carta marítima; os binóculos de noite; Krebs.
Primeiro precisava comunicar suas suspeitas a Vallance. Depois explorar as possibilidades de Krebs. Em seguida, olhar as defesas do “Explorador da Lua” — o lado do mar, por exemplo. Finalmente, entrar em contato com essa pequena Brand e concordarem na elaboração de um plano para os próximos dois dias. Não havia muito tempo a perder.
Enquanto forçava o sono no cérebro transbordante de pensamentos, Bond imaginou o número sete no mostrador de um relógio e deixou a tarefa de acordar entregue às células ocultas de sua memória. Desejava estar fora de casa e no telefone com Vallance, o mais cedo possível. Se suas ações levantassem suspeitas, não ficaria desanimado. Um de seus objetivos era atrair para sua órbita as mesmas forças que envolveram Tallon, porque de uma coisa ele tinha quase certeza, o Major não morrera por amar Gala Brand.
O despertador extra-sensorial não falhou. Pontualmente, às sete horas, com a boca seca por causa dos muitos cigarros da noite anterior, esforçou-se por sair da cama e entrar num banho frio. Barbeara-se, gargarejara com um dentifrício forte e, agora, vestido num terno batido branco e preto, uma camisa azul-marinho de algodão, tipo Mares do Sul, gravata de tricô preto, caminhava levemente, mas não de modo furtivo, pelo corredor até as escadas, com a pasta de couro quadrada na mão esquerda.
Encontrou a garage no fundo da casa, e o motor do Bentley correspondeu à primeira pressão do arranque. Bond seguiu lentamente pela faixa de concreto sob o olhar indiferente das janelas encortinadas da casa e seguiu em frente, em prise, pelo caminho margeado de árvores. Seus olhos voltaram-se para a casa e confirmaram seu cálculo de que um homem de pé no telhado seria capaz de enxergar por cima do muro e ter uma visão da beira do penhasco e do mar mais adiante.
Não havia sinal de vida em torno do local onde se encontrava o “Explorador da Lua”. O concreto, já começando a brilhar ao primeiro sol da manhã, estirava-se vazio na direção de Deal. Tinha-se a impressão de um aeródromo recém-construído ou talvez, pensou, com suas três “coisas” diferentes de concreto, a cúpula de uma colmeia, a parede lisa de ferro e o cubo distante do ponto de disparo, cada qual lançando poços negros de sombra em sua direção, ali no sol matutino, como uma paisagem deserta de Dali, na qual três objets trouvés repousavam num acaso cuidadosamente calculado.
Lá fora, no mar, dentro do nevoeiro da manhã que prometia um dia quente, o navio-farol South Goodwin mal se delineava, difusa embarcação vermelha, casada para sempre com o mesmo ponto, e condenada, como um navio de cenário no palco de Drury Lane, a assistir ao diorama das ondas e nuvens navegarem atarefadamente para os bastidores, enquanto que ele, sem papéis, passageiros ou carga, continuava ancorado para sempre no ponto de partida que era também seu porto de destino.
Com intervalos de trinta segundos, buzinava sua triste queixa dentro do nevoeiro, uma prolongada nota dupla de trumpete, em cadência descendente. Um canto de sereia, pensou Bond, para repelir em vez de seduzir. Perguntava a si mesmo como os sete homens da tripulação suportariam agora o ruído, enquanto mastigavam carne de porco com feijão. Encolher-se-iam, quando marcava contracanto com a Housewife’s Choice, vindo a todo volume do rádio na hora do rancho? Mas era uma vida segura, foi a conclusão a que chegou Bond, apesar de ancorado nos portões de um cemitério.
Anotou mentalmente, para descobrir se esses sete homens tinham visto ou ouvido a coisa que Tallon marcara no mapa, em seguida saiu rápido por entre os postos de guarda.
Em Dover, parou diante do Café Royal, modesto restaurantezinho, com uma cozinha modesta porém capaz, como ele sabia há muito tempo, de preparar excelentes pratos de peixe e de ovos.
A dona, suíça-italiana, com o filho que a ajudava a dirigir a casa, recebeu-o como velho amigo, e ele pediu um prato de ovos mexidos com presunto e bastante café, recomendando que estivessem prontos em meia hora. Depois seguiu até o posto policial e fez uma chamada para Vallance, por meio da mesa de ligações da Scotland Yard. Vallance estava em casa, tomando o café da manhã. Ouviu sem comentários a conversa reservada de Bond, mas não expressou surpresa, quando este disse que não tinha tido oportunidade de falar mais intimamente com Gala Brand.
— Essa aí é uma garota inteligente. Se o Sr. K. anda tramando alguma coisa, com certeza ela tem uma ideia do que seja. E se T. ouviu um barulho no sábado à noite, ela pode ter ouvido também. Se bem que eu deva confessar que não se referiu a esse assunto.
Bond não disse nada sobre a recepção que tinha tido por parte do agente de Vallance.
— Vou falar com ela esta manhã e mandar-lhe-ei o mapa com o filme da Leica para que o senhor os examine. Vou dá-los ao Inspetor. Talvez um dos patrulheiros da estrada possa levar. É verdade, de onde T. telefonou quando chamou seu chefe na segunda-feira?
— Vou mandar verificar e depois lhe direi — disse Vallance. Mandarei também a Trinity House perguntar se a South Goodwin e os guardas-costeiros podem ajudar. Mais alguma coisa?
Bond respondeu:
— Não.
A linha passava por muitas mesas de ligação. Talvez, se tivesse sido M., ele tivesse insinuado mais alguma coisa. Pareceu-lhe ridículo falar com Vallance a respeito de bigodes e a atmosfera de perigo que ele sentira na noite anterior, e que a luz do dia dissipara. Aqueles policiais só queriam os fatos nus e crus. Eram melhores, refletiu, na solução de um crime, do que antecipá-los.
— Não, é só.
Desligou.
Sentiu-se mais alegre depois de uma excelente primeira refeição. Leu o Express e The Times e encontrou uma notícia sucinta sobre o inquérito do caso Tallon. O Express fizera muito escarcéu e muita exibição da fotografia da moça. Bond divertiu-se, ao verificar a neutra semelhança que Vallance conseguira apresentar. Decidiu que precisava tentar trabalhar com ela. Demonstraria toda confiança e lhe contaria tudo, fosse ela receptiva ou não. Talvez ela também tivesse suas suspeitas e intuições, porém tão vagas que as estava guardando consigo mesma.
Bond voltou rapidamente para a casa. Eram nove horas em ponto, e quando passou por entre as árvores na faixa de concreto, ouviu-se o lamento de uma sereia e, dos bosques por trás da casa, uma dupla fila de doze homens apareceu correndo num ritmo propositadamente igual, em direção à cúpula do foguete. Marcavam o tempo enquanto um deles tocava a campainha. A porta então se abriu, e eles entraram em fila, desaparecendo .
Raspe-se a superfície de um tedesco e encontrar-se-á a precisão — pensou Bond.
CAPITULO 14
DEDOS FORMIGANTES
Meia hora antes, Gala Brand esmagara a ponta do seu cigarro matutino, engolira o resto do café, saíra do quarto e se encaminhara para a base, com o aspecto perfeito de uma secretária particular. Trajava uma blusa branca imaculada e uma saia azul-marinho pregueada.
Pontualmente, às oito e meia, estava em seu escritório. Havia um monte de telimpressos do Ministério da Aeronáutica em cima da mesa, e sua primeira ação foi transferir um resumo de seus conteúdos para um mapa meteorológico, entrar pela porta de comunicação no escritório de Drax, e pregar o mapa num quadro pendente no ângulo da parede ao lado do vidro liso. Em seguida, apertou o interruptor que iluminava o mapa de parede, fez alguns cálculos, baseada nas colunas de números reveladas pela luz, e anotou o resultado no diagrama que prendera ao quadro.
Fizera isto com os dados do Ministério da Aeronáutica, que se tornavam cada vez mais exatos, à medida que a data do lançamento experimental se aproximava, todos os dias, desde que a base terminara, e a construção do foguete se iniciara dentro dela. Tornara-se tão perita, que agora sabia de cor as direções do giroscópio para quase todas as variações de temperatura em diferentes altitudes.
De modo que ainda ficava mais irritada quando Drax não demonstrava aceitar seus cálculos. Todos os dias quando, às nove horas, pontualmente, as campainhas de aviso soavam, e ele descia a íngreme escadaria de ferro para entrar em seu escritório, seu primeiro gesto era chamar o insuportável Dr. Walter, para que, juntos, estudassem novamente todas as suas anotações, transcrevendo os resultados no fino caderninho de notas que Drax trazia no bolso traseiro das calças. Sabia que aquilo era uma rotina invariável e se cansara de observá-la através de um orifício disfarçado que fizera, de forma a poder enviar a Vallance um relatório semanal dos visitantes de Drax. O orifício ficava na parede fina que separava os dois escritórios. O método era amadorista, porém eficiente, e ela lentamente formara um quadro completo da rotina diária, que acabara por achar demasiado irritante. Era irritante por duas razões. Significava que Drax não confiava em seus algarismos e solapava sua oportunidade de tomar parte, da maneira mais modesta que fosse, no lançamento final do foguete.
Era natural que, no decorrer dos meses, tivesse ficado tão integrada em seu disfarce quanto em sua verdadeira profissão. Era uma coisa fundamental para a exatidão absoluta dêsse disfarce que sua personalidade ficasse tão verdadeiramente oculta quanto possível. E agora, enquanto espionava, apalpava e farejava o vento em torno de Drax, para relatar ao seu Chefe em Londres, sentia-se profundamente interessada pelo sucesso do “Explorador da Lua” e tornara-se tão dedicada ao seu serviço quanto qualquer outro membro da base.
O resto de seus Ideveres como secretária particular de Drax era intoleràvelmente monótono. Todos os dias chegava um enorme volume de correspondência dirigida a Drax em Londres e enviada para lá pelo Ministério. Naquela manhã, encontrara o monte habitual de mais ou menos cinquenta cartas aguardando em cima da escrivaninha. Eram sempre de três tipos. Cartas de pedidos, de pessoas maníacas pelo foguete, cartas comerciais do corretor de Drax e de outros agentes comerciais. Para estas Drax ditava respostas breves, e o resto do dia ela se ocupava em datilografar e arquivar.
De sorte que era natural o fato de sua única obrigação relacionada com a operação do foguete destacar-se extraordinàriamente entre os monótonos deveres. Naquela manhã, ao conferir e reconferir seu plano de voo, estava mais que decidida a fazer aceitarem seus cálculos para O Dia. Entretanto, como muitas vezes lembrava a si mesma, talvez não houvesse razão para que não os aceitassem. Talvez os cálculos diários de Drax e Walter para anotação no caderninho preto não passassem de nova verificação de seus próprios números. Era bem verdade que Drax nunca tinha pedido seu boletim meteorológico ou as direções do giroscópio por onde os calculava. E quando um dia ela perguntara diretamente se seus cálculos sobre o tempo estavam corretos, ele respondera com evidente sinceridade:
— Excelentes, minha cara. Muito valiosos. Não poderíamos arranjar-nos sem eles.
Gala Brand voltou para sua sala e começou a abrir as cartas. Só mais dois planos de voo para quinta-feira e sexta, e então, baseados em seus cálculos ou noutros, nos guardados dentro do bolso de Drax, o giroscópio seria finalmente ajustado, e seria apertado no ponto de disparo.
Distraidamente, Gala olhou para as unhas e depois estendeu as duas mãos, com as costas voltadas em sua direção. Quantas vezes, durante seu adestramento na Escola da Polícia, fora mandada para fora com outras alunas e recomendada a não voltar sem um caderno de notas, um estojo de maquilagem, uma caneta-tinteiro ou mesmo um relógio de pulso? Quantas vezes, durante os cursos, o instrutor não se voltara, segurando-a pelo pulso e dizendo: “Vamos, vamos, senhorita. Isto assim não vai de jeito nenhum. Dá até a impressão de um elefante procurando açúcar no bolso do tratador. Tente novamente.”
Friamente, flexionou os dedos e depois, tomando uma resolução, voltou à pilha de cartas.
Quando faltavam poucos minutos para as nove, as campainhas de alarma soaram, e ela ouviu Drax chegar ao escritório. Pouco depois ouviu-o abrir as portas duplas novamente e chamar Walter. Em seguida, veio o habitual murmúrio de vozes cujas palavras eram abafadas pelo leve chiar do ventilador.
Gala arrumou as cartas em três pilhas e sentou-se inclinada para a frente, os nervos relaxados, os cotovelos descansando na escrivaninha e o queixo repousando na mão esquerda.
Comandante Bond. James Bond. Evidentemente, um jovem convencido, como tantos outros do Serviço Secreto. E porque tinha sido enviado em vez de alguém com quem pudesse trabalhar, um de seus amigos da Seção Especial ou mesmo uma pessoa do M15? A mensagem do Comissário-Assistente dizia que não havia mais ninguém disponível assim de repente, que ele era um dos astros do Serviço Secreto, que desfrutava da mais absoluta confiança da Seção Especial e tinha as bênçãos do M15. Até mesmo o Primeiro-Ministro lhe dera permissão para agir somente nesta missão dentro da Inglaterra. Mas de que poderia adiantar, em face do pouco tempo que restava? Ele, provavelmente, atirava bem e falava idiomas estrangeiros, além de executar uma série de truques que poderiam ser úteis no exterior. Entretanto, que poderia fazer de bom aqui, sem lindas espiãs para namorar. Porque bonitão ele era, incontestàvelmente. (Gala Brand procurou automaticamente o estojo de maquilagem e bateu a esponjinha de pó de arroz no nariz.) Bem no gênero de Hoagy Carmichael, sob certo aspecto. Aquele cabelo preto caindo em cima da sobrancelha direita. Mais ou menos o mesmo tipo ósseo. Mas havia um quê de crueldade na boca, e os olhos eram frios. Cinzentos ou azuis? Tinha sido difícil verificar a noite passada. Bem, de qualquer maneira, ela o pusera em seu lugar e lhe mostrara que não estava impressionada por rapazes atraentes do Serviço Secreto, por mais românticos que parecessem. Havia homens igualmente belos na Seção Especial, e estes eram detetives de verdade, não apenas pessoas que Phillips Oppenheim idealizara, donos de carros velozes com bandas douradas e coldres de ombro. Ah, isto ela descobrira com certeza, e até esbarrara nele para ter certeza.
Pois bem, supunha que devia demonstrar, de uma forma ou de outra, que trabalhava com ele, apesar de só Deus saber em quê. Se ela estivera ali desde quando o local fora construído sem descobrir coisa alguma, o que poderia esse homem, Bond, esperar descobrir em dois dias? E o que havia para ser descoberto? Naturalmente, existiam uma ou duas coisas que ela não conseguia compreender. Deveria falar-lhe em Krebs, por exemplo? A primeira coisa a fazer era providenciar para que ele não lhe estragasse o trabalho, fazendo qualquer tolice. Teria de ser fria, firme e extremamente cautelosa. Mas isto não queria dizer, chegou à conclusão no momento em que a cigarra tocava e ela apanhava as cartas e o caderno de taquigrafia, que não pudesse ser amistosa em suas relações. Estritamente dentro de suas próprias condições, é claro.
Havendo tomado esta segunda decisão, abriu a porta de comunicação e entrou no escritório de Sir Hugo Drax.
Ao voltar para sua sala, meia hora depois, encontrou Bond sentado em sua cadeira com o Almanaque Whitaker aberto na escrivaninha diante dele. Apertou os lábios, quando Bond se levantou e desejou-lhe um feliz bom dia. Gala baixou a cabeça rapidamente, rodeou a escrivaninha e sentou-se. Afastou cuidadosamente o Whitaker e colocou as cartas e o caderno em seu lugar.
— Devia ter mais uma cadeira para as visitas — disse Bond com um sorriso que ela definiu como impertinente. — E alguma coisa melhor para se ler do que livros de referências.
A moça ignorou as observações.
— Sir Hugo deseja vê-lo. Eu ia agora mesmo ver se já havia se levantado.
— Mentirosa. Você me ouviu passar às sete e meia. Eu a vi espiando entre as cortinas.
— Não fiz semelhante coisa — retrucou Miss Brand indignada. — Por que haveria de estar interessada num carro que passava?
— Eu disse que você ouviu o carro — disse Bond. Insistiu em sua vantagem. — E, por falar nisso, acho que não deve coçar a cabeça com o lápis quando está tomando ditado. Nenhuma das melhores secretárias particulares faz tal coisa.
Bond olhou de modo significativo para um ponto da porta de comunicação. Depois sacudiu os ombros.
As defesas de Gala caíram. Diabo de homem, pensou. Endereçou-lhe um sorriso relutante.
— Ora. Vamos parar com isto. Eu não posso passar a manhã inteira brincando de adivinhação. Ele quer nos ver e não gosta de esperar.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação, abrindo-a. Bond seguiu-a, fechando depois a porta.
Drax estava de pé, olhando o mapa de parede iluminado. Voltou-se, quando os dois entraram.
— Ah, você está aqui — disse com um olhar firme para Bond. — Pensei que talvez nos tivesse deixado. Os guardas anotaram sua saída às sete e meia da manhã de hoje.
— Precisei dar um telefonema — explicou Bond. — Espero não ter incomodado ninguém.
— Existe um telefone em meu estúdio — ajuntou Drax, conciso. — Tallon achava que servia muito bem.
— Ah, pobre Tallon — disse Bond sem nenhuma inflexão particular.
Notara um quê de autoritário na voz de Drax que o desagradara bastante, e isto fizera com que desejasse instintivamente desarmá-lo. Nessa vez foi bem sucedido.
Drax lançou-lhe um olhar duro, que disfarçou com um risinho curto, latido e um sacudir de ombros.
— Faça como melhor lhe agradar. Você tem seu trabalho para fazer. Contanto que não perturbe as rotinas daqui. Deve-se lembrar — acrescentou mais amável — de que todos os meus homens estão nervosos ao extremo agora, e eu não posso inquietá-los com misteriosas movimentações. Espero que não deseje fazer-lhes muitas perguntas hoje. Eu preferia que não tivessem mais nada com que se preocupar. Ainda não se recuperaram do que aconteceu segunda-feira. Miss Brand poderá informá-lo a respeito de tudo que diz respeito a eles, e creio que todos os dados arquivados acham-se no quarto de Tallon. Já os examinou?
O arquivo não tem chave — respondeu Bond, dizendo a verdade.
— Desculpe, a culpa é minha — disse Drax. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta da qual tirou um pequeno molho de chaves, e entregou-o a Bond.
— Devia ter-lhe entregado isto a noite passada. O Inspetor que tratou do caso pediu-me lhe entregasse. Desculpe.
— Muito obrigado — disse Bond por sua vez. Depois fez uma pausa.
— Diga-me uma coisa, há quanto tempo Krebs trabalha com o senhor?
Fez a pergunta obedecendo a um impulso. Houve um momento de silêncio na sala.
—Krebs? — repetiu Drax, pensativo.
Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se. Estendeu a mão para o bolso da calça e puxou um maço de cigarros de ponta de cortiça. Seus dedos grosseiros lutaram com o envólucro de celofane. Tirou um cigarro e meteu-o na boca, sob a franja do bigode avermelhado, acendendo-o depois.
Bond mostrou-se surpreso.
— Eu não sabia que se podia fumar aqui — observou, tirando sua própria carteira do bolso.
O cigarro de Drax, minúsculo tubo branco no meio da caraça vermelha, subia e descia enquanto ele respondia sem tirá-lo da boca.
— Aqui não há perigo. Estas salas são à prova de ar. As portas são forradas com borracha. A ventilação é separada . Precisei colocar as oficinas e geradores apartados da cúpula e, de qualquer maneira — seu lábios sorriram em torno do cigarro — preciso dar um jeito para fumar.
Drax tirou o cigarro da boca e olhou-o. Parecia estar tomando uma resolução.
— Você estava me interrogando a respeito de Krebs. Pois bem, cá entre nós, não confio inteiramente nesse camarada — declarou fitando Bond com uma expressão significativa.
Levantou a mão num gesto de quem se desculpa.
— Nada de definido, naturalmente, ou eu já o teria mandado embora, mas encontrei-o espionando pela casa, e uma vez apanhei-o em meu estúdio, remexendo meus papéis particulares . Ele apresentou uma explicação perfeita e deixei-o sair, prevenindo-o. Contudo, para ser franco, tenho minhas suspeitas a respeito do homem. Evidentemente, ele não pode fazer mal algum. Faz parte do pessoal da casa, e nenhum deles tem licença de entrar aqui, mas — Drax fitou Bond francamente, dentro dos olhos — eu devia ter-lhe dito que se concentrasse nele. Foi muita vivacidade sua, haver observado qualquer coisa no homem, tão depressa — acrescentou com respeito. — Que foi que o levou a isto?
— Nada de extraordinário. Ele tem um aspecto inquieto. Mas o que o senhor diz é interessante, e eu não deixarei de estar de olho nele.
Voltou-se para Gala Brand, que permanecera em silêncio desde o momento em que entraram na sala.
— Qual sua opinião a respeito de Krebs, Miss Brand? — perguntou, polidamente.
A moça respondeu, dirigindo-se a Drax.
— Não entendo muito dessas coisas, Sir Hugo, — disse com modéstia e um quê de impulsivo que Bond admirou.
— Porém não confio nele de jeito nenhum. Não tinha intenção de lhe contar, mas ele andou rondando meu quarto, entrou lá, abriu cartas etc. Tenho certeza disso.
Drax mostrou-se chocado.
— Foi mesmo?
Pôs o cigarro no cinzeiro e extinguiu os fragmentos acesos, um por um.
— Deixe-o comigo — falou sem levantar os olhos.
CAPÍTULO 15
JUSTIÇA RUDE
Houve um momento de silêncio na sala durante o qual Bond refletiu como era estranho que as suspeitas recaíssem tão de repente e unanimemente sobre o mesmo homem. Isto, por acaso, libertaria automaticamente os outros? Krebs não poderia ser membro de uma quadrilha? Ou trabalharia por conta própria e, nesse caso, com que objetivo? E que relação haveria entre suas espionagens e as mortes de Tallon e Bartsch?
Drax quebrou o silêncio.
— Bem, parece que chegamos a um ponto de acordo — disse, olhando Bond, à procura de confirmação. Este baixou a cabeça, num gesto cauteloso.
— Tenho mesmo de deixá-lo por sua conta. De qualquer forma, providenciaremos para que se conserve bem afastado da base. Aliás, vou levá-lo comigo amanhã para Londres. Pormenores de última hora deverão ser combinado com o Ministério, e Walter não pode sair daqui. Krebs é o único homem capaz de executar o serviço de um ajudante-de-ordens. Isto o conservará fora de qualquer complicação. Até lá temos todos de mantê-lo sob vigilância. A não ser, naturalmente, que você queira prendê-lo já, trancando-o à chave e cadeado. Eu preferia que não. Não desejo perturbar mais a equipe.
— Não será necessário — disse Bond. — Ele conta com alguns amigos particulares entre os outros homens?
— Nunca o vi falando com nenhum, exceto Walter e o pessoal de casa — disse Drax. — Calculo que se considera superior aos outros. Pessoalmente, não acredito que exista muita maldade nesse camarada, do contrário não o teria conservado. Ele fica sozinho em casa o dia inteiro, e com certeza é um desses sujeitos que gostam de bancar o detetive e meter o nariz nos negócios dos outros. Que diz você? Talvez pudéssemos deixar as coisas neste pé?
Bond fez que sim, guardando seus pensamentos para si mesmo.
— Pois então — continuou Drax, feliz por deixar de lado um assunto desagradável e voltar para os negócios. — Temos outras coisas para conversar. Ainda nos restam dois dias, e é melhor falar-lhe sobre o programa.
Ergueu-se da cadeira e mediu pesadamente a sala em largas passadas, por trás da escrivaninha:
— Hoje é quarta-feira. À uma hora a base será fechada para receber combustível. Isto será supervisionado pelo Dr. Walter, por mim e mais dois homens do Ministério. Para a eventualidade de qualquer coisa sair errada, uma câmara de televisão registrará tudo que fizermos. E então, se houver uma explosão, nossos sucessores saberão como agir melhor na próxima vez — finalizou com um curto riso ladrado. — Se o tempo permitir, o telhado será aberto hoje à noite para deixar a fumaça sair. Meus homens montarão guarda em vigias de dez jardas de intervalo, até a distância de cem jardas a partir da base. Haverá três homens armados na praia, do lado oposto ao túnel exaustor no penhasco. Amanhã de manhã a base será novamente aberta até o meio-dia para uma verificação final e, a partir desse instante, exceto a disposição do giroscópio, o “Explorador da Lua” estará pronto para partir. Os guardas ficarão permanentemente vigiando toda a base. Na sexta-feira pela manhã eu examinarei pessoalmente o ajustamento do giroscópio. Os homens do Ministério tomarão conta do ponto de disparo, e a RAF do radar. A BBC enviará seus caminhões, que ficarão atrás do ponto de disparo, e as irradiações começarão às onze e quarenta e cinco.
Ao meio-dia em ponto apertarei o pistão, um sinal de rádio passará por um circuito elétrico e — Drax sorriu abertamente — nós veremos o que vamos ver.
Fez uma pausa, mexendo no queixo:
— Vejamos agora o que mais? Ah, sim. A navegação será banida da área orbital desde a meia-noite de quinta-feira. A Marinha providenciará uma patrulha nos limites da área durante toda a manhã. Haverá um comentarista da BBC num dos navios. O Ministério do Abastecimento mandará técnicos que ficarão num navio de salvamento com um aparelho de televisão para a profundidade do mar, e depois que o foguete aterrissar, tentarão recuperar os restos. Talvez você se interesse em saber — continuou, esfregando as mãos numa alegria quase infantil, — que um mensageiro do Primeiro-Ministro trouxe a notícia muito alvissareira de que não só estará reunido o Gabinete para ouvir a irradiação, mas o Palácio também escutará o lançamento.
— Ótimo — disse Bond, satisfeito pelo outro.
— Obrigado. Agora quero ter absoluta certeza de que você está satisfeito com as medidas de segurança que tomei na própria base. Não creio que seja necessário nos preocuparmos com o que se passar do lado de fora. A RAF e a polícia parecem estar executando um serviço muito completo.
— Tudo parece ter sido providenciado — disse Bond.
— Não creio que me reste muita coisa para fazer no tempo que ainda falta.
— Nada que eu me lembre — concordou Drax. — Exceto nosso amigo Krebs. Esta tarde ele permanecerá na camioneta da televisão tomando notas, de modo que estará fora de qualquer trapalhada. Por que você não vai dar uma olhada na praia, na base do penhasco, enquanto ele está fora de ação? este é o único ponto fraco que eu posso lembrar. Muitas vezes pensei que se alguém quisesse penetrar na base, tentaria passar pela cavidade exaustora. Leve Miss Brand. Quatro olhos, etc, e ela não poderá mesmo usar seu escritório até amanhã de manhã.
— Está bem — concordou Bond.
— Eu gostaria de dar uma olhada no lado do mar, depois do almoço, e se Miss Brand não tiver nada de melhor para fazer...
Voltou-se para ela com as sobrancelhas erguidas. Gala Brand baixou os olhos.
— Claro, se Sir Hugo desejar — disse sem entusiasmo.
Drax esfregou as mãos.
— Então está combinado. E agora preciso voltar a trabalhar. Miss Brand, quer fazer o favor de pedir ao Dr. Walter que venha aqui, se estiver livre? Nós nos veremos na hora do almoço — disse a Bond, despedindo-o.
Este fez com a cabeça que sim.
— Acho que vou caminhar até a cúpula e dar uma olhadela no ponto de disparo — falou sem saber direito porque mentia. Virou-se e seguiu Gala Brand através das portas duplas e depois até a base do cilindro.
Enorme serpente negra de fios de borracha se retorcia sobre o brilhante chão de aço, e Bond observou a moça escolher o caminho por entre suas voltas até onde se encontrava Walter, sozinho. Olhava a boca do tubo do combustível ser levantada para onde um guindaste, esticado até a soleira de uma porta de acesso, na metade do foguete, indicava os principais tanques de combustível.
A moça disse qualquer coisa a Walter e depois ficou olhando para cima, enquanto o tubo ia sendo delicadamente manipulado para o interior do foguete.
Bond achou que ela parecia muito inocente, ali de pé, com os cabelos castanhos soltos e a curva da garganta cor de marfim imergindo na blusa branca e simples. Com as mãos cruzadas nas costas, contemplando embevecida os faiscantes cinquenta pés do “Explorador da Lua”, poderia ser tomada por uma colegial mirando uma árvore de Natal — exceto pelo impudente orgulho dos seios atrevidos, levantados pela cabeça e os ombros jogados para trás.
Bond sorriu consigo mesmo ao chegar ao pé da escada de ferro e começar a subir. Aquela moça inocente, desejável, lembrou a si próprio, é uma policial extremamente competente. Sabe como desferir pontapés e onde; pode quebrar meu braço, provavelmente mais depressa e com mais facilidade do que eu poderia quebrar o dela, e pelo menos metade de seu ser pertence à Seção Especial da Scotland Yard. Naturalmente, refletiu, baixando os olhos a tempo de vê-la seguir o Dr. Walter até o escritório de Drax, existe sempre a outra metade.
Lá fora, o brilhante sol de maio parecia particularmente dourado depois do branco azulado dos arcos, e Bond sentia-o quente nas costas ao caminhar deliberadamente pelo concreto em direção à casa. O apito de nevoeiro do Goodwin estava silencioso, e a manhã tão calma que ele podia ouvir as batidas rítmicas dos motores de um navio, quando este passava por Inner Leads, entre o Goodwin e a praia, a caminho do Norte.
Aproximou-se da casa, protegido pelo largo muro contra o vento, e então, rapidamente, atravessou as poucas jardas até a porta da frente, sem produzir o menor ruído com os sapatos de crepe-sola. Abriu a porta, deixou-a escancarada e caminhou de leve para o háll onde se pôs à escuta. Ouviu o rumor das manhãs de verão; uma abelha batendo de encontro à vidraça de uma das janelas e um bulício confuso e distante nas barracas atrás da casa. Fora isto, o silêncio era profundo, cálido e tranquilizante .
Bond caminhou cautelosamente através do hall e pelas escadas acima, assentando os pés inteiros no chão e usando as extremidades dos degraus onde havia menos probabilidade de a madeira estalar. Não se ouvia barulho no corredor, mas Bond viu que sua porta, lá no fim do mesmo, estava aberta. Retirou o revólver da axila e foi seguindo depressa pela passagem atapetada.
Krebs estava de costas para ele. Achava-se ajoelhado no meio do quarto com os cotovelos no chão. Suas mãos se encontravam nas rodas do fecho de segredo da pasta de couro de Bond. Toda sua atenção focalizava-se no estalido das linguetas do fecho.
O alvo era tentador, e Bond não hesitou. Seus dentes apareceram num sorriso cruel, deu dois passos rápidos para dentro do quarto e mandou o pé com violência.
Toda sua força se concentrava na ponta do sapato, e seu equilíbrio e tempo foram perfeitos.
Um grito de gralha partiu de Krebs quando, como a caricatura de um sapo pulando, saltou por cima da pasta de Bond mais ou menos um metro adiante, batendo na frente da cômoda de mogno. Sua cabeça foi de encontro ao centro com tanta fôrçia, que a pesada peça dançou na base. O grito foi abruptamente interrompido, e ele tombou esticado e inerte sobre o tapete, ali permanecendo.
Bond ficou olhando e esperando ouvir o som de passos apressados, mas o silêncio continuou a reinar dentro da casa. Passou por cima do corpo, curvou-se sobre ele e ajeitou-o de costas. O rosto em torno do borrão do bigode amarelo estava pálido e um pouco de sangue escorria de um corte no alto da fronte. Os olhos continuavam fechados, e a respiração normal.
Bond ajoelhou-se num lado só e começou a dar uma busca minuciosa em todos os bolsos do terno alinhado, cinzento, de listas fininhas, que o homem trajava, colocando desapontado o magro conteúdo no tapete ao lado do corpo. Não havia caderninhos de nota nem papéis. Os únicos objetos de interesse eram um molho de chaves-mestras, uma faca de mola com uma lâmina de estilete bem amolada e uma espécie de cassetete de couro preto em forma de trouxa. Bond guardou essas coisas no bolso, foi até a mesinha de cabeceira e pegou a garrafa intacta de água de Vichy.
Foram necessários cinco minutos para fazer Krebs voltar a si e fazê-lo sentar-se com as costas apoiadas na cômoda. Mais cinco para que recuperasse a voz. Pouco a pouco a cor foi voltando-lhe ao rosto e a astúcia aos olhos.
— Não respondo perguntas a não ser a Sir Hugo — declarou quando Bond começou o interrogatório. — Você não tem o direito de me fazer perguntas. Eu cumpria meu dever.
Sua voz era mal-humorada e segura de si.
Bond segurou a garrafa vazia de Vichy pelo gargalo.
— Refuta novamente. Do contrário, eu lhe bato com isto até quebrar, e depois usarei o gargalo para alguma cirurgia plástica. Quem lhe mandou revistar meu quarto?
— Leck mich am Arsch — Krebs cuspiu o insulto obsceno na cara de Bond.
Este curvou-se e vibrou-lhe violenta pancada nas canelas.
O corpo de Krebs dobrou-se mas, quando Bond tornou a levantar o braço, ergueu-se subitamente do chão e mergulhou por baixo da garrafa que descia. O golpe pegou-o rijo no ombro, porém não lhe cortou o ímpeto, e ele se encontrou do outro lado da porta, já no meio do corredor, antes de Bond partir em sua perseguição.
Bond parou então do lado de fora da porta e observou a figura ligeira desaparecer pelas escadas, fora de suas vistas. Em seguida, o rinchar das solas de borracha descendo às pressas as escadas se fez ouvir até atravessar o hall. Bond riu abruptamente para si mesmo, voltou para o quarto e fechou a porta. Além de quase arrebentar a cabeça do sujeito, tudo indicava que não arrancaria nada dele. Animal astucioso. Seus ferimentos não poderiam ter sido assim tão maus, no fim das contas. Bem, caberia a Drax castigá-lo. A não ser, naturalmente, que Krebs estivesse executando suas ordens.
Pondo em ordem a confusão do seu quarto, Bond sentou-se na cama e olhou a parede do lado oposto com olhos que nada viam. Não tinha sido apenas o instinto que o levara a dizer a Drax que iria até o ponto do tiro, em vez de voltar para a casa. Passara-lhe seriamente pela ideia o fato de que a espionagem de Krebs era feita por ordem de Drax e que este organizava seu próprio sistema de segurança. Entretanto, de que maneira isto se entrosava com as mortes de Tallon e Bartsch? Ou o duplo assassínio teria sido uma coincidência sem nenhuma relação com as marcas do mapa e as impressões digitais de Krebs?
Como que chamado pelos seus pensamentos, bateram à porta, e o mordomo entrou. Vinha seguido por um sargento da polícia, com o uniforme de patrulheiro de estrada, que fez continência e entregou um telegrama a Bond. Bond levou-o até a janela. Vinha assinado: Baxter, que queria dizer Vallance, e dizia:
PRIMEIRA CHAMADA VEIO DA CASA SEGUNDO LUGAR NEVOEIRO EXIGIU FUNCIONAMENTO BUZINA DE NEVOEIRO DE MODO QUE NAVIO FOI OUVIDO VÍRGULA NÃO OBSERVOU NADA TERCEIRO LUGAR SUA ÁREA SUSPEITA FICA MUITO PERTO PRAIA ASSIM FORA DAS VISTAS DOS ÚLTIMOS PONTOS DOS GUARDA-COSTAS DE SAINT MARGARET OU DEAL.
— Obrigado — disse Bond. — Não tem resposta.
Depois de fechar a porta, chegou o isqueiro aceso ao telegrama e depois deixou-o cair na lareira, reduzindo os restos queimados a pó com a sola do sapato.
Dali nada mais se aproveitava, exceto que a chamada de Tallon para o Ministério poderia realmente, ter sido ouvida por alguém da casa, o que teria resultado na busca em seu quarto, que, por sua vez, teve como consequência a morte do major. Mas que dizer de Bartsch? Se tudo aquilo fazia parte de uma coisa muito maior, como poderia ser ligada a um atentado de sabotagem ao foguete? Não seria muito mais simples supor que Krebs era um espião nato, ou ainda mais provável, que estivesse trabalhando para Drax, que parecia ser meticulosamente cônscio da necessidade de segurança e que podia também querer certificar-se da lealdade de seu secretário, de Tallon, e, sem dúvida, depois do encontro no Blades, de Bond? Não seria agir justamente como o chefe (e Bond conhecera alguns que se adaptariam perfeitamente ao tipo) de um projeto super-secreto durante a guerra, que reforçava a segurança oficial com seu próprio sistema de espionagem particular?
Se essa teoria fosse correta, restava apenas o duplo assassínio. Agora que Bond fora contagiado pela magia e tensão do “Explorador da Lua”, os fatos referentes aos tiros histéricos pareciam mais razoáveis. Quanto às marcas no mapa, poderiam ter sido feitas num dia qualquer do ano anterior; os binóculos para noite eram isto apenas: binóculos para noite, e os bigodes dos homens apenas uma quantidade de bigodes.
Bond sentou-se no quarto silencioso, remexendo as peças do quebra-cabeças, de modo que dois quadros inteiramente diversos se alternavam em sua mente. Num deles o sol brilhava, tudo estava límpido e inocente como o dia. O outro era uma confusão culposa de motivos, suspeitas obscuras e interrogações de pesadelo.
Quando o gongo soou para o almoço, ele ainda não sabia que quadro escolher. Para adiar a decisão, afastou do espírito tudo, menos as perspectivas da tarde que passaria sozinho com Gala Brand.
CAPITULO 16
UM DIA GLORIOSO
Era uma tarde maravilhosa, azul, verde e dourada. Quando deixaram a faixa de concreto passando pelo portão da guarda, perto do ponto de tiro, agora ligado à base de lançamento por um grosso cabo, pararam um momento à beira do grande penhasco calcário e ficaram olhando todo o trecho da Inglaterra onde César ancorara pela primeira vez dois mil anos atrás.
À esquerda, o tapete de grama verde, salpicado de pequeninas flores silvestres descia gradativamente para as longas praias de pedregulho de Walmer e Deal, que se curvavam para Sandwich e a baía. Mais além, os penhascos de Margate, surgindo brancos dentre a névoa distante que ocultava o North Foreland, guardavam a mancha cinzenta do aeródromo de Manston, acima do qual aviões a jato norte-americanos descreviam suas parábolas no céu. Em seguida, vinha a Ilha de Thanet e, fora do raio visual de ambos, a embocadura do Tâmisa.
A maré era baixa, e os Goodwins pareciam dourados e suaves dentro do azul cintilante do Canal mostrando apenas o conjunto de mastros e cordames que se esticavam para contar a verdadeira história. As letras brancas do navio-farol South Goodwin estavam fáceis de ler, e até o nome do navio irmão, mais para o norte, surgia branco contra o vermelho do casco.
Entre as areias da costa, ao longo do canal de doze braças do Inner Leads, havia meia dúzia de navios navegando pelo Downs. O som ritmado de seus motores destacava-se claramente dentro do mar calmo e, entre as areias cruéis e o contorno nítido da costa francesa, viam-se navios de todas as procedências rumando para seus destinos — navios de passageiros de linha regular, navios mercantes, rústicas chalupas holandesas e até uma esguia corveta correndo para o sul, talvez para Portsmouth. Até onde a vista alcançava, o lado oriental mais próximo da Inglaterra estava coalhado de embarcações, dirigindo-se para os horizontes distantes, para um porto nacional ou para o outro lado do mundo. Era um panorama cheio de colorido, excitação e romance, e as duas criaturas, ali na borda do penhasco, mantinham-se em silêncio enquanto permaneciam por algum tempo observando tudo.
A paz foi turbada por dois uivos de sirena, provenientes da casa, e eles se viraram, para olhar o mundo negro e feio de concreto, que haviam banido de seus espíritos. Enquanto olhavam, uma bandeira vermelha foi hasteada por cima da cúpula de lançamento, e duas ambulâncias da RAF, com as cruzes vermelhas nos lados, irromperam do renque de arvoredo, na direção do muro, e aí estacaram.
— Vai começar a operação combustível — disse Bond. — Vamos principiar nosso passeio. Nada haverá para ver e, se por acaso acontecesse alguma coisa, nós não sobreviveríamos, quase com certeza, no ponto em que nos encontramos.
A moça sorriu.
— É verdade. E eu já estou cheia de olhar para todo esse concreto.
Seguiram ambos pelo declive suave e, dentro em pouco, encontravam-se já longe do alcance de tiro e da alta cerca de arame.
O gelo da reserva de Gala derretia-se rapidamente ao sol.
A alegria exótica de sua toalete, uma blusa de algodão listrada de branco e preto, metida num cinto largo, pespontado à mão, também preto, encimava uma saia meio curta, rosa shocking, e o conjunto parecia contagiá-la. Era impossível, para Bond, reconhecer a mulher frígida e distante da noite anterior naquela que caminhava agora a seu lado, rindo e feliz de sua ignorância a respeito dos nomes de flores selvagens: a erva de S. Pedro, a fumaria e outras, em tons azuis, que rodeavam seus pés.
Triunfalmente, encontrou uma orquídea selvagem e colheu-a .
— Você não faria isso, se soubesse que as flores gritam quando são colhidas — disse Bond.
Gala olhou para ele.
— Que quer você dizer com isso? — perguntou, suspeitando um gracejo.
— Ah, você não sabia? — Bond sorriu, ao observar a reação de Gala. — Existe um professor hindu, chamado Bhose, que escreveu um tratado sobre o sistema nervoso das flores. Mediu a reação delas à dor. Chegou mesmo a registrar o grito de uma rosa, quando é colhida. Deve ser um dos sons mais lancinantes do mundo, não lhe parece? Pois eu ouvi algo de semelhante quando você colheu essa flor.
— Não acredito — disse Gala, olhando desconfiada para a raiz arrancada. — Mas, de qualquer maneira — acrescentou, maliciosa — eu jamais pensaria que você fosse capaz de sentimentalismos. As pessoas, no seu Serviço, não fazem de matar um ofício? E não são apenas flores. São pessoas.
— As flores não podem atirar em nós, também — disse Bond.
Gala olhou a flor.
— Agora você me fez sentir como se fosse uma criminosa. É muita maldade sua. Mas — confessou relutante — terei de descobrir essa história do hindu, e se você tiver dito a verdade, nunca mais apanharei uma flor enquanto viver. Que faço com esta? Você me fez sentir com as mãos sangrando completamente.
— Dê para mim. De acordo com você, minhas mãos já estão gotejando sangue. Um pouco mais não fará diferença.
A moça ofereceu-lhe a flor, e suas mãos se tocaram.
— Você poderá colocá-la no cano do revólver — falou, para disfarçar o instante do contato.
Bond riu:
— Quer dizer que os orifícios não servem só para decoração. Mas a minha é uma pistola automática, e eu deixei-a no quarto.
Enfiou o talo da flor numa das casas de sua camisa de algodão:
— Achei que um coldre de ombro chamaria um pouco a atenção sem o paletó para cobri-lo. Depois não acredito que ninguém vá mexer em meu quarto esta tarde.
Numa concordância tácita, eles se afastaram do momento de intimidade. Bond contou sua descoberta a respeito de Krebs e a cena do quarto.
— Foi bem feito para ele. Nunca confiei nesse homem. Mas o que é que diz Sir Hugo?
— Falei com ele antes do almoço — respondeu Bond.
—Entreguei-lhe a faca e as chaves de Krebs como prova. Ficou furioso e saiu imediatamente à procura do sujeito, resmungando de cólera. Quando voltou, me disse que Krebs parecia já se encontrar num estado deplorável e perguntou se eu não me dava por satisfeito ao saber que fora bem castigado. Repetiu toda aquela história de não querer perturbar sua equipe na última hora, etc. e tal. De modo que concordei em que fosse mandado de volta à Alemanha na próxima semana e que, enquanto isto, se considerasse preso sob palavra — sendo-lhe permitido apenas deixar o quarto vigiado.
Bond e sua companheira desceram um caminho íngreme do penhasco até a praia, virando à direita, para Royal Marine, em Deal. Caminharam em silêncio até chegarem a uma extensão de duas milhas de uma praia coberta de cascalho que, durante o tempo de maré baixa, corre entre os elevados penhascos brancos até a baía de Sta. Margarida.
Enquanto esmagavam lentamente as pedrinhas macias, Bond contou tudo que lhe passara pela cabeça desde o dia anterior. Não guardou nada. Relatou todos os passos tomados, as pistas falsas que seguira em cada um dos pontos de partida, não deixou nada por comentar, exceto uma tênue suspeita mal fundada e um amontoado de indícios que terminavam todos na mesma interrogação. . . onde estava o X da história? Onde achar um plano no qual os indícios se encaixassem? E sempre a mesma resposta: nada do que Bond sabia ou suspeitava parecia ter qualquer relação concebível com a segurança contra a sabotagem do “Explorador da Lua”. Isto, no entanto, quando tudo fora dito e feito, era a única coisa com que ele e a moça tinham que ver. Não com a morte de Tallon e Bartsch, ou com o ordinário Krebs, mas somente com a proteção de todo o projeto relacionado com o “Explorador da Lua” contra seus possíveis inimigos.
— Não é verdade? — finalizou Bond.
Gala parou e ficou um momento olhando por entre as rochas e algas a calma cintilação das ondas do mar. Estava suada e ofegante depois da caminhada difícil pelo caminho de cascalhos. Pensava como seria maravilhoso tomar um banho de mar — voltar por um momento aos dias da infância à beira-mar, antes de sua vida ter sido presa nesta estranha profissão, cheia de emoções decepcionantes e tensões nervosas. Olhou o rosto moreno e cruel do homem ao seu lado. Será que teria momentos de anseio pelas coisas simples e calmas da vida? Com certeza não. Gostava de Paris, Berlim e New York, trens, aviões, comida cara e, sim, certamente, de mulheres caras.
— Então? — perguntou Bond, conjeturando se ela ia apresentar algum indício que ele não percebera. — Que é que acha?
— Desculpe. Eu estava sonhando acordada. Não, eu acho que você tem razão. Estou aqui desde o princípio e, apesar de ter notado coisinhas estranhas de vez em quando, fora os tiros resultando em duas mortes, claro, não vi absolutamente nada de incorreto. Todos os componentes da equipe, de Sir Hugo para baixo, estão de corpo e alma dedicados ao foguete. Vivem unicamente para isso, e tem sido maravilhoso ver tudo se desenvolver. Os alemães são trabalhadores ao extremo — posso bem acreditar que Bartsch tenha perecido pela tensão exagerada dos nervos — gostam de ser dirigidos por Sir Hugo, e ele gosta de dirigi-los. Eles adoram-no. Quanto à segurança, o local está sólido e bem guarnecido. Tenho certeza de que se alguém quisesse se aproximar do “Explorador da Lua” seria feito em pedaços. Concordo com você a respeito de Krebs e que ele, provavelmente, estivesse agindo sob as ordens de Drax. Foi por isto que não me dei o trabalho de ir contar--lhe quando ele andou mexendo nas minhas coisas. Não havia nada para ele encontrar, naturalmente. Só cartas particulares e coisas assim. Seria típico de Sir Hugo procurar certificar-se com absoluta minúcia. Aliás, devo dizer que o admiro por isto — acrescentou com franqueza. — Ele é um homem cruel, com maneiras deploráveis, e não muito simpático debaixo de toda aquela cabelada vermelha, mas eu gosto de trabalhar para ele e estou ansiosa para que o “Explorador da Lua” seja um sucesso. Viver ao lado dele durante tanto tempo fez com que eu me sentisse exatamente como seus homens.
Gala levantou os olhos para ver a reação do companheiro. Este baixou a cabeça, assentindo.
— Depois de um dia apenas, eu posso compreender isto — disse. — Creio que concordo com você. Não há nada em que nos basearmos, exceto minha intuição, e isto é uma coisa que não conta. O principal é que o “Explorador da Lua” parece seguro, tão seguro quanto as joias da Coroa e, provavelmente, ainda mais.
Bond sacudiu os ombros impaciente, aborrecido consigo mesmo, por renegar as intuições que contavam tanto em seu trabalho.
— Vamos embora — convidou quase rude. — Estamos perdendo tempo.
Compreendendo, a moça sorriu e seguiu o companheiro.
Contornando a próxima inclinação do penhasco, chegaram à base do elevador, coberto de algas marinhas e crustáceos . . . Cinquenta jardas mais adiante alcançaram o dique, construção forte, tubular, de ferro, calçado de tiras de aço entrelaçadas, que avançava sobre as rochas e mais além.
Entre os dois, e talvez uns vinte pés acima da face do penhasco, escancarava-se a boca negra e larga do túnel de exaustão, que subia inclinada dentro do penhasco para o chão de aço sob a popa do foguete. Da borda inferior da cavidade, giz derretido caía como lava, e viam-se respigos da matéria por cima de todos os pedregulhos e rochas lá embaixo. Com os olhos da imaginação, Bond via um rastro ofuscante de flama branca surgir uivando da parede do penhasco e ouvia o sibilo e borbulhar, quando o giz líquido se derramava na água.
Levantou os olhos para a estreita faixa da cúpula de lançamento que aparecia acima da borda do penhasco, duzentos pés acima, imaginando os quatro homens com suas máscaras contra gases, vestidos com roupas de asbetos, observando os instrumentos medidores enquanto o terrível líquido explosivo pulsava pelo tubo negro de borracha até o estômago do foguete. De repente, percebeu que se encontravam dentro do raio de ação, se alguma coisa não desse certo no enchimento de combustível.
— Vamos sair daqui — disse à pequena.
Quando umas cem jardas se interpuseram entre eles e a cavidade, Bond parou e olhou para trás. Imaginou-se acompanhado de mais seis homens fortes e durões, com todos os instrumentos necessários — e conjeturou como daria início a um ataque à base, vindo do mar — embarcações presas ao cais, quando a maré estivesse baixa; uma escada na borda da cavidade? e depois o quê? Seria impossível galgar as paredes de aço polido do túnel exaustor. Seria uma questão de disparar uma arma antitanque através do chão de aço por baixo do foguete, seguida de algumas granadas de fósforo, e esperar que alguma coisa pegasse fogo. Negócio meio confuso, mas que talvez desse resultado. Sair depois seria complicado. Seriam alvos fáceis para quem estivesse no topo do penhasco. Mas isto não perturbaria um esquadrão suicida russo. Era tudo muito possível de realizar.
Gala estivera ao seu lado, observando os olhos que mediam e especulavam.
— Não é tão fácil como você pensa — disse, vendo-lhe a testa franzida. — Mesmo quando a maré é alta e o mar muito forte, colocam guardas ao longo do cimo do penhasco de noite. Eles têm holofotes, Brens e granadas. As ordens que recebem são de atirar, e fazerem as perguntas depois. Naturalmente seria melhor iluminar completamente o penhasco à noite. Mas isto só serviria para tomar a base um alvo certeiro. Estou convencida de que pensaram em tudo.
Bond continuava franzindo a testa.
— Se eles tivessem cobertura do ataque por um submarino ou uma embarcação, um grupo eficiente ainda conseguiria realizar o negócio. Vai ser o diabo, mas eu vou nadar. O mapa do Almirantado diz que existe um canal de doze braças ali adiante, mas eu gostaria de dar uma olhada. Deve ter muita água no final do dique, contudo eu me sentirei mais feliz quando verificar com meus próprios olhos.
Sorriu para a moça:
— Por que você não vem nadar também? A água deve estar bastante fria, mas lhe faria bem, depois de ter estado a cozinhar-se dentro daquela cúpula de concreto a manhã inteira .
Os olhos de Gala se iluminaram.
— Acha que eu posso? — perguntou, hesitante. — Estou com um calor tremendo. Mas que é que nós vamos vestir?
Corou ao lembrar-se de suas calcinhas e porta-seios minúsculos e de nylon quase transparentes.
— Deixe isto pra lá — disse Bond aèreamente.
— Você deve ter alguns trapinhos vestidos aí por baixo, e eu estou de short. Estaremos perfeitamente respeitáveis, e não há ninguém por aqui para ver. Depois, eu prometo não olhar — mentiu alegremente, seguindo na frente até a próxima inclinação do penhasco.
— Você se despe atrás dessa rocha, e eu desta outra.
— Vamos. Não seja tola. Tudo faz parte de nossas obrigações .
Sem esperar a resposta dela, encaminhou-se para trás de uma rocha elevada, tirando a camisa enquanto andava.
— Ora, muito bem — disse Gala, aliviada por ter a resolução sido tirada de suas mãos. Foi para trás de outra rocha e lentamente desabotoou a saia.
Quando espiou nervosamente para fora, Bond já ia na metade do trecho de áspera areia marrom que seguia por entre os pequenos lagos para onde a maré enchente rodopiava entre os verdes e negros detritos das rochas... O rapaz tinha uma aparência elástica e a pele bronzeada. O short azul era tranquilizador.
Pisando de leve, ela seguiu-o e, de repente, estava dentro d’água. Imediatamente nada mais teve importância, fora do gelo aveludado do mar, a beleza das manchas de areia por entre os cabelos ondulados das algas marinhas que via nas profundezas verdes e claras abaixo dela quando mergulhou a cabeça e nadou paralelamente à praia num rápido crawl.
Ao se encontrar ao nível do dique, parou um momento para tomar fôlego. Não se via sinal de Bond, que ela vira nadando vários metros à frente. Bateu com os pés fortemente dentro da água para manter viva a circulação e então recomeçou novamente, pensando nele sem querer, pensando no corpo rijo e moreno que devia estar ali por perto, entre as rochas, talvez, ou mergulhando para a areia, a fim de calcular a profundidade da água com que um inimigo podia contar.
Virou-se para procurá-lo de novo, e foi então que ele surgiu inesperadamente do mar, por baixo dela. Sentiu o abraço rápido e apertado e o contato breve mas forte dos lábios dele nos seus.
— Vá para o diabo — exclamou furiosa, mas o rapaz já bavia mergulhado novamente, e quando ela golfou uma porção de água do mar, conseguindo orientar-se, ele nadava alegremente a vários metros de distância.
Gala voltou-se e nadou displicente, sentindo-se bastante ridícula, porém resolvida a pô-lo no seu lugar. Era exatamente como tinha pensado. Esse pessoal do Serviço Secreto sempre encontrava tempo para o sexo, por mais importante que fosse a missão de que se encarregavam.
Mas seu corpo vibrava obstinadamente com o imprevisto do beijo, e o dia luminoso parecia ter adquirido nova beleza. Enquanto nadava mais para fora, virou-se e olhou os dentes brancos como leite, dentes da Inglaterra que rosnavam, olhou o braço distante de Dover, o confete branco e preto dos corvos e gaivotas, jogados contra o vivido pano de fundo dos campos verdes, e chegou à conclusão de que tudo seria permitido num dia assim e que, só por aquela vez, ela o perdoaria.
Meia hora depois estavam deitados, esperando que o sol viesse secá-los, separados pela respeitável distância de um metro de areia, ao pé do penhasco.
O beijo não fora mencionado, mas os esforços de Gala para manter uma atitude de alheamento haviam tombado com a excitação de examinar uma lagosta que Bond apanhara com as mãos, ao mergulhar. Relutantemente, tornaram a colocá-la numa das cavidades da rocha e ficaram observando seus movimentos de volta ao abrigo das algas marinhas. Agora, ali estavam, cansados e alegres com o banho gelado, rezando para que o sol não se escondesse atrás do penhasco acima de suas cabeças antes de estarem aquecidos e suficientemente secos para poder vestirem novamente as roupas.
No entanto, não eram só estes os pensamentos de Bond. O lindo corpo estirado da pequena ao seu lado, incrivelmente erótico na ênfase marcante das calcinhas e porta-seios agarrados à pele, interpunha-se entre ele e sua preocupação com o “Explorador da Lua”. Além do mais, não havia nada que ele pudesse fazer pelo foguete durante mais uma hora. Ainda não eram cinco, e a tomada de combustível não terminaria senão depois das seis.
Seria somente àquela hora que ele poderia aproximar-se de Drax para certificar-se de que nas duas próximas noites haveria um acréscimo de guardas no penhasco e que eles possuíam as armas adequadas. Pois verificara com os próprios olhos que havia muita água, mesmo com a maré vazante, possibilitando a chegada de um submarino.
De modo que contava pelo menos com um quarto de hora livre antes de poderem voltar.
No intervalo havia essa pequena. O corpo semidespido surgia acima dele na superfície, quando nadava em baixo dela; o beijo rápido, forte e suave ao mesmo tempo, com os braços em torno dele; as colinas pontudas de seus seios, tão próximas e o estômago macio e raso, descendo para o mistério das coxas fortemente cerradas.
Para o inferno, toda essa história.
Arrancou o espírito dessa febre e fitou diretamente o infindável azul do céu, forçando-se a observar a beleza das gaivotas esvoaçantes ao se alinharem sem nenhum esforço entre as correntes de ar que giravam sobre o alto topo dos penhascos acima deles. Mas a plumagem sedosa e branca do colo das aves desviou novamente seus pensamentos para ela, não lhe dando descanso.
— Por que você se chama Gala? — perguntou, para interromper a sequência de pensamentos cálidos e persistentes.
A moça riu.
— Durante todo meu tempo de escola mexiam comigo por causa disso — respondeu, e Bond se impacientou diante da voz clara, fácil. — Depois, quando pertenci às Wrens e ainda pela metade da força policial de Londres. Mas meu verdadeiro nome é ainda pior. É Galateia. Era o cruzador onde meu pai servia quando eu nasci. Creio que Gala não é tão ruim assim. Quase me esqueci do meu nome de verdade. Estou sempre precisando trocá-lo, agora que estou na Seção Especial.
— Na Seção Especial. Na Seção Especial. Na. . .
Quando a bomba cai. Quando o piloto calcula mal, e o avião bate antes de tocar a pista de aterrissagem. Quando o sangue deixa o coração, e a consciência foge, há pensamentos no cérebro, ou palavras, ou talvez uma frase musical que se repete durante os poucos segundos antes da morte, como o som moribundo de um sino.
Bond não estava morto, mas as palavras ainda estavam dentro de sua mente, vários segundos depois de tudo haver acontecido.
Desde o momento em que tinham-se deitado na areia, recostados no penhasco, enquanto seus pensamentos se concentravam em Gala, seus olhos haviam observado distraidamente duas gaivotas brincando em redor de uma ponta de palha que estava na beira do ninho, numa pequena saliência, cerca de uns trezentos metros abaixo do cume distante do penhasco. Inclinavam os pescoços e pareciam cumprimentar, em seu jogo amoroso, só com as cabeças, que Bond divisava contra o branco ofuscante do céu. Então o macho voava para longe e, imediatamente voltava à saliência da rocha, para recomeçar seu jogo de amor.
Bond observava-os sonhadoramente enquanto ouvia o que a moça dizia, quando, subitamente, as duas gaivotas fugiram da saliência da rocha com um só grito de pavor. No mesmo instante viu-se um rolo de fumaça negra e ouviu-se um estrondo amortecido vindo do alto do penhasco. Em seguida, uma grande quantidade de giz branco, bem acima das cabeças de Bond e Gala, pareceu desligar-se para fora, ziguezagueando fragmentos pela encosta.
Quando Bond se deu conta do que fazia, achou-se deitado em cima de Gala, o rosto apertado contra o dela, e percebeu que o ar estava cheio de trovões, que sua respiração estava abafada, e que o sol desaparecera. Sentia as costas dormentes e doendo sob um grande peso, e sua orelha esquerda, além do eco do trovão, guardava o som de um grito sufocado.
Mal teve consciência do se passava, e precisou esperar até que seus sentidos voltassem à vida.
A Seção Especial. O que foi que ela disse a respeito da Seção Especial?
Fez esforços inauditos para se mexer. Apenas no braço direito, o braço mais próximo do penhasco, ainda havia algum movimento, mas quando puxou o ombro, o braço ficou mais livre até que, finalmente, com um impulso grande para trás, a luz e o ar chegaram até eles. Lutando no nevoeiro de poeira de giz, alargou o buraco, até a cabeça poder retirar seu peso esmagador de cima de Gala. Sentiu o leve movimento, quando ela virou a cabeça para um lado, procurando a luz e o ar. Uma torrente de poeira e pedras no buraco que ele limpara fê-lo cavar ferozmente mais uma vez. Pouco a pouco, aumentou o espaço até conseguir firmar o cotovelo direito, e então, tossindo ao ponto de imaginar que os pulmões iam arrebentar, impulsionou o ombro direito para cima até que, de repente, livrou-o, bem como a cabeça.
Seu primeiro pensamento foi que tinha havido uma explosão no “Explorador da Lua”. Levantou os olhos para o penhasco e depois para a praia. Não. Estavam a cem metros da base. Foi apenas na linha do horizonte, diretamente acima deles, que um grande pedaço fora comido no penhasco.
Em seguida pensou no perigo imediato que corriam. Gala gemia, e ele sentia o frenético bater de seu coração contra o próprio peito, mas a máscara pavorosa e branca de seu rosto estava agora livre para respirar, e ele se pôs então a girar o corpo de um lado para o outro em cima dela, a fim de tentar aliviar a pressão de seus pulmões e do estômago. Lentamente, polegada por polegada, seus músculos partindo-se com o esforço, procurou caminho sob a pilha de poeira e detritos até o lado do penhasco, onde sabia que o peso seria menor.
Finalmente livrou o peito e pôde ajoelhar-se ao lado da companheira. O sangue pingava de suas costas e braços feridos, misturando-se com a poeira de giz que continuamente caía na parte lateral dos buracos que fizera mas verificou que não tinha ossos quebrados e, com a fúria do trabalho de salvamento, não sentiu dores.
Grunhindo e tossindo, sem uma pausa para respirar, ergueu-a e fê-la sentar-se e, com a mão sangrando, limpou um pouco do giz de seu rosto. Depois, livrando as pernas da tumba de giz, levantou-a e levou-a até uma elevação dos detritos, com as costas voltadas para o penhasco.
Ajoelhou-se e olhou aquele horrível espantalho branco que, minutos antes, fora uma das mais lindas moças que já vira. Enquanto olhava os filêtes de sangue escorrendo-lhe pelo rosto, rezou para que seus olhos se abrissem.
Quando, segundos mais tarde, eles se abriram, o alívio foi tão grande, que Bond se afastou e sofreu tremenda crise de náuseas.
CONTINUA
A um quilômetro da base, aproximadamente, Drax estacou.
— Eu explicarei a geografia — disse ele. — Walter, siga na frente. Já devem estar esperando por você, para dar outra olhada naquelas barbatanas... Mas não se preocupe demasiado com elas, meu caro amigo. O pessoal das ligas de alto teor sabe muito bem o que está fazendo. E agora — continuou Drax, olhando para Bond, enquanto fazia um gesto na direção da cúpula branca como leite — ali dentro está o “Explorador”. O que você vê é o topo de uma plataforma que foi escavada a mais de quarenta pés de profundidade, no terreno calcário. As duas metades da cúpula são abertas hidràulicamente e recolhidas para trás, ao nível do muro de vinte pés. Se agora estivessem abertas, você veria o cone final do “Explorador”, ao nível do muro. Ali — apontou para uma sombra retangular que estava já quase fora do campo visual de ambos, na direção de Deal — fica a casamata de controle, de onde se comanda o disparo. É um blocausse em concreto. Está cheio de dispositivos de radar de rastreio — tanto o radar de velocidade Doppler como o radar de rastreio de direção de voo, por exemplo. As informações são fornecidas por meio de vinte canais telemétricos, alojados no cone do foguete. Também existe ali dentro uma enorme tela de televisão, de modo que se pode acompanhar o comportamento do foguete no interior da cápsula, depois de iniciado o voo. Um outro conjunto de televisores serve para acompanhar o início da ascensão. Ao lado da casamata, há um elevador que desce ao longo do penhasco. Uma boa parte das peças e maquinismos foi trazida para a base por via marítima e transportada até cá em cima por meio desse monta-cargas. Aquele gemido que você escuta, vem da central elétrica, ali mais adiante — e Drax fez um gesto vago, em direção a Dover. — Os alojamentos dos homens e a casa são protegidos pelo muro à prova de deslocação de ar. Mas quando fizermos o lançamento, não deverá haver ninguém dentro de um raio de ação de um quilômetro e meio, a partir da base, exceto os técnicos do Ministério e a equipe da B.B.C., que estará colocada na casamata de comando. Espero que o muro aguente bem a deslocação de ar. Walter diz que a base e uma boa parte da faixa de concreto derreterão com o calor. E é tudo. Nada mais precisa saber, até entrarmos. Vamos.
Bond tornou a observar o tom rude de comando. Seguiu em silêncio, atravessando uma zona banhada de luar, até chegarem à parede de suporte da cúpula. Uma lâmpada vermelha brilhava na parede, por cima de uma porta de aço chapeado. Iluminava um grande letreiro que dizia em inglês e alemão:
PERIGO DE MORTE.
ENTRADA PROIBIDA QUANDO A LÂMPADA VERMELHA ESTIVER ACESA.
TOQUE A CAMPAINHA E ESPERE.
Drax apertou o botão por debaixo do letreiro, e ouviu-se o som abafado de uma campainha de alarma.
— Pode estar alguém trabalhando com o oxiacetileno, ou fazendo qualquer outro trabalho delicado — explicou Drax. — Basta que desvie sua atenção do serviço, pela fração de um segundo, caso alguém entre sem aviso, e isso poderia resultar num erro bastante caro. Todos largam os utensílios quando a campainha soa, e só recomeçam quando veem de que se trata.
— Drax afastou-se um pouco da porta e apontou para uma série de gradeados dispostos logo abaixo do remate da parede. — São os exaustores de ventilação — continuou ele explicando.
— O ar condicionado no interior da cúpula mantém-se constantemente a setenta graus Farenheit.
A porta foi aberta por um homem que empunhava um cassetete de policial e trazia um revólver no cinturão. Bond seguiu Drax até uma pequena antecâmara. Esta nada tinha senão um banco e uma fileira bem arrumada de chinelos de feltro.
— Terá de calçá-los — disse Drax, sentando-se e tirando os sapatos. — Poderia escorregar e esbarrar contra alguém. O melhor é deixar aqui também seu casaco. Setenta graus Farenheit é uma temperatura bastante elevada.
— Obrigado — disse Bond, lembrando-se da Beretta encaixada sob a axila. — A verdade é que não sinto calor algum.
Sentindo-se como um visitante num teatro em dia de ensaios, Bond seguiu Drax através de uma porta de comunicação, passando depois por um estreito corredor e desembocando numa série de projetores que, instintivamente, o fizeram levar a mão aos olhos, enquanto com a outra se agarrava ao gradeado do corrimão protetor, à sua frente.
Quando retirou a mão, foi brindado com uma cena de tal esplendor que, durante vários minutos, ficou sem fala, os olhos fascinados pela terrível beleza da mais poderosa arma existente sobre a Terra.
CAPITULO 12
O “EXPLORADOR DA LUA”
Era como se o tivessem metido no tambor polido de um gigantesco revólver. Partindo do chão, a mais de doze metros abaixo da varanda onde se encontravam, erguia-se uma parede circular, de metal polido, no topo da qual, ele e Drax se colavam como duas moscas. No centro desse imenso cilindro, que mediria pelo menos uns nove metros de diâmetro, estava colocado um gigantesco lápis de cromo, refulgente, cuja ponta, aguçando-se numa antena fina como agulha, parecia roçar o telhado, seis ou sete metros acima de suas cabeças.
O cintilante projétil descansava numa base cônica de aço, que se erguia do chão por entre as extremidades de três barbatanas em forma de delta, pronunciadamente puxadas para trás, e que parecia tão afiadas quanto bisturis de cirurgião. Mas, fora isso, nada mais empanava o brilho sedoso dos quinze metros de aço cromado e polido, exceto as duas garras que saíam das paredes e colhiam a cintura do foguete, por entre espessos acolchoados de espuma de borracha.
No ponto em que as garras tocavam o projétil, viam-se pequenas portas de acesso, abertas na superfície de aço e, quando Bond olhou para baixo, divisou um homem que saía agachado por uma delas, até alcançar a estreita plataforma do monta-cargas instalado paralelamente ao bojo do “Explorador”. Depois, fechou a porta com a mão enluvada. Encaminhou-se a passos miúdos, equilibrando-se pela estreita ponte, até alcançar a parede, e fez girar uma manivela. Ouviu-se um profundo gemido de maquinismo, e a garra retirou seu suporte acolchoado do bojo do foguete, ficando suspensa no ar, como as patas dianteiras de um louva-a-Deus. Os gemidos do mecanismo alteraram-se para um tom mais cavo, e a plataforma do monta-cargas, lentamente, foi-se retraindo, em movimento de telescópio. Depois, tornou a esticar-se e foi pegar o foguete, com a garra, três metros mais abaixo. Seu operador esgueirou-se de novo pelo braço e abriu outra pequena porta de acesso ao interior, desaparecendo dentro do foguete.
— Provavelmente está verificando o sistema de alimentação de combustível dos tanques posteriores — disse Drax. — A alimentação é feita por gravidade. Um sistema bastante complexo. Que acha você disto? — Observou com prazer a expressão de êxtase, estampada no rosto de Bond.
— Uma das coisas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida — respondeu Bond. Era fácil falar. Não se ouvia o menor som dentro do grande cilindro de aço, e as vozes dos homens apinhados lá embaixo, junto da cauda do foguete, não chegavam a eles senão como distante murmúrio. Drax apontou para cima e explicou:
— Veja o cone. O que está montado é apenas experimental, mas pode substituir-se, claro, por uma cápsula estratégica, com carga nuclear. Para este voo, irá cheia de instrumentos. Telêmetros e todas essas coisas. Depois, estão os giroscópios, bem defronte de nós. E, em seguida, quase exclusivamente, tanques de combustível até abaixo, quando temos então as turbinas, já próximas da cauda. Impulsionadas por vapor superaquecido, obtido na decomposição do peróxido de hidrogênio . O combustível, fluorina e hidrogênio... — olhou rapidamente para Bond. A propósito, isto é top secret, sabe?... pois o combustível, como dizia, baixa pelos tubos de alimentação e recebe a ignição logo que é introduzido no motor. Trata-se de uma espécie de explosão controlada, que impulsiona o foguete para o ar. Esse assoalho de aço onde o “Explorador” assenta agora, desliza então para fora, claro. Por baixo, há um enorme poço de exaustão. Tem saída para a base dos rochedos, do lado do mar. Amanhã você irá dar uma vista d’olhos. Parece uma gigantesca caverna, nada mais. Quando procedemos, há dias, a um teste estático, a substância calcária do terreno derreteu e correu para o mar como se fosse água. Espero que não acabemos por calcinar e destruir os famosos penhascos brancos de Dover, quando chegar a hora zero. Você gostaria de dar uma olhada nos trabalhos?
Bond seguiu em silêncio, quando Drax indicou o caminho, descendo por uma íngreme escada de ferro, que acompanhava a parede de aço em sua curvatura. Sentia agora invadir-se por uma onda de admiração e quase de reverência por esse homem e sua formidável realização. Como teria podido ele, Bond, deixar-se impressionar desfavoravelmente pela conduta infantil de Drax, à mesa de jogo? Mesmo os grandes homens têm suas fraquezas. E Drax necessitava dessa válvula de escape para a tensão a que o submetia a tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Tornava-se óbvio que Drax não podia confiar excessivamente em seus auxiliares direitos, de nervos à flor da pele. Dele sozinho devia partir a vitalidade e a confiança necessárias para manter elevado a moral de todos. Mesmo tratando-se de uma coisa tão insignificante quanto ganhar uma partida de bridge, devia ser importante para Drax estar-se assegurando constantemente da própria capacidade, procurando em tudo vaticínios de boa sorte e de êxito, chegando ao ponto de criar esses augúrios favoráveis por suas próprias mãos. Quem não suaria ou roeria as unhas, estando tanta coisa em jogo?
Enquanto contornavam a larga curva da escada, com suas figuras grotescamente refletidas na superfície cromada do foguete, como em um espelho mágico de feira, Bond sentia quase afeto pelo homem que, apenas há poucas horas, ele dissecara sem piedade e quase com ódio.
Quando chegaram à plataforma da base de aço do cilindro, Drax fez uma pausa e olhou para cima. Bond seguiu o olhar do outro. Visto naquela perspectiva, o “Explorador” dava-lhes a impressão de estar olhando para um fino cone vertical de luz, perdendo-se na abóbada cintilante, um feixe de luz que não era totalmente branco, mas de uma tonalidade acetinada de madrepérola. Havia nele alguns pontos vermelhos e brilhantes, refletidos por um gigantesco extintor de incêndios, de neve carbônica, colocado a pouca distância. Um homem em traje de amianto estava postado ao lado do extintor, que apontava seu bico de leque para a base do foguete. Havia também uma estria de cor violeta, cuja origem provinha de uma lâmpada fixada ao painel de instrumentos, na parede. Servia para controlar os movimentos da cobertura de aço em que se encontravam e que os separava do poço de exaustão. Finalmente, um tom verde-esmeralda vinha da luz difusa de uma lâmpada com abajur, colocada sobre uma mesa de pinho, à qual se sentava um homem que ia anotando números que lhe eram transmitidos, de viva voz, pelo grupo reunido logo abaixo da cauda do foguete.
Levantando os olhos para aquela coluna em tons pastel, tão incrivelmente esguia e graciosa, parecia impossível que uma coisa tão delicada pudesse aguentar as pressões a que teria de submeter-se na próxima sexta-feira: o jato tronitruante da mais poderosa explosão controlada que alguma vez fora tentada; o impacto da barreira do som; as pressões desconhecidas da estratosfera, a quinze mil milhas por hora; o choque terrível quando retornasse, num mergulho de milhares de milhas de altura, para ferir de novo o envelope atmosférico da Terra.
Drax pareceu ler seus pensamentos. Voltou-se para Bond:
— É como perpetrar um assassinato — disse ele. Em seguida, de maneira surpreendente, explodiu numa risada asinina. —Walter! — chamou, dirigindo-se ao grupo de homens. — Venha cá!
Walter destacou-se dos outros e aproximou-se.
— Walter — prosseguiu Drax — eu estava dizendo ao nosso amigo, o Comandante, que quando lançarmos o “Explorador da Lua” será como se cometêssemos um crime de assassinato .
Bond não ficou surpreendido, ao ver uma expressão de incredulidade intrigada estampar-se no rosto do doutor. Irritado, Drax exclamou:
— Assassinato de uma criança. Assassinato de nosso filho — repetiu com um gesto na direção do foguete. — Acorde, homem! Acorde! Que se passa com você?
A fisionomia de Walter clareou. De um modo velado, sorriu, mostrando seu apreço pela comparação.
— Assassinato, Ah, sim! Essa é muito boa. Ha! Ha! E agora, Sir Hugo, as folhas de grafita no exaustor. O Ministério está satisfeito com o ponto de fusão? Eles não acham que. ..
Ainda falando, Walter levou Drax para debaixo da cauda do foguete. Bond seguiu ambos.
Os rostos dos dez homens estavam voltados para eles, quando chegaram. Drax apresentou-o com um gesto da mão.
— Comandante Bond, o nosso novo agente de segurança, — disse, conciso.
O grupo olhou Bond em silêncio. Não houve o menor movimento para ir cumprimentá-lo, e os dez pares de olhos não refletiam curiosidade.
— Então, que negócio é esse de tanta história com a grafita? . ..
O grupo se fechou em torno de Drax e Walter. Bond foi deixado só, para trás.
Não estava surpreso com a frieza da recepção. Teria olhado a intromissão de um amador nos segredos de seu próprio departamento com a mesma indiferença mesclada de ressentimento. Além do mais, simpatizava com esses técnicos apanhados a dedo, que tinham vivido durante meses a fios nas mais altas regiões da astronáutica e se encontravam agora no limiar do julgamento final. Entretanto, lembrava-se, os inocentes entre si deviam saber que Bond tinha seu próprio dever a cumprir, sua própria participação vital nesse projeto. Suponhamos, por exemplo, que um desses pares de olhos, nada comunicativos, escondesse um homem dentro de outro homem, um inimigo que, talvez, naquele instante mesmo exultasse com a certeza de que a grafita que Walter parecia não confiar era realmente sub-resistente. É verdade que tinham o aspecto de uma equipe bem unida, quase de uma fraternidade, ao se colocarem assim em torno de Drax e Walter, pendendo de suas palavras, os olhos atentos aos movimentos das bocas dos dois homens. Mas seriam parte de um cérebro, movimentando-se dentro da intimidade de uma órbita secreta, registrando seus cálculos ocultos como o mecanismo clandestino de uma máquina infernal?
Bond caminhava a esmo, para cima e para baixo do triângulo formado pelas três pontas das barbatanas que repousavam em suas cavidades forradas de borracha no chão de aço, interessando-se em tudo em que seus olhos pousavam, mas, de quando em quando, focalizando-os no grupo de homens, em ângulo diferente.
Com exceção de Drax, todos usavam o mesmo macacão justo de nylon, preso por fecho-éclair de plástico. Não se via o menor vestígio de metal, e nenhum deles usava óculos. Como no caso de Walter e Krebs, suas cabeças estavam raspadas bem rente. Provavelmente, pensou Bond, para evitar que um fio solto de cabelo pudesse cair dentro do engenho. Entretanto, e isso chamou-lhe a atenção como característica muito estranha da equipe, todos exibiam exuberantes bigodes, cuja manutenção exigia, sem dúvida, grande dose de cuidados. Eram de todos os formatos e tonalidades: louros, cor de rato ou escuros, em guidões de bicicleta, de foca, à Kaiser ou à Hitler — cada rosto exibia seu distintivo capilar, entre os quais a pelagem ruiva de Drax brilhava como insígnia oficial do chefe supremo.
Por que motivo, conjeturava Bond, todos os homens da base usavam bigode? Nunca os apreciara, mas combinados com as cabeças raspadas, lembravam algo de positivamente obsceno. Teria sido apenas tolerável, se todos fossem cortados no mesmo modelo, mas a variedade de gêneros individuais, essa anarquia de formatos, tinha um que de particularmente horrível, destacando-se do fundo composto pelas cabeças nuas e redondas.
Nada mais havia para chamar a atenção. Os homens eram de estatura mediana, e todos de tipo mais sobre o esguio — talhados, supunha Bond, mais ou menos de acordo com as necessidades do trabalho. A agilidade seria imprescindível nas plataformas, nas passagens ao longo das garras laterais e dos monta-cargas, e solidez para executar as manobras através das portas de acesso e dentro dos minúsculos espaços disponíveis nos compartimentos do foguete. As mãos deles pareciam ter os músculos e nervos relaxados. Eram imaculadamente limpas, e seus pés, metidos em chinelos de feltro, estavam imóveis pela concentração no trabalho. Bond não surpreendeu nenhum deles, em ocasião alguma, olhando em sua direção, movido pela curiosidade, e quanto a penetrar em seus espíritos ou calcular suas doses de lealdade, confessava a si próprio que a tarefa de desmascarar os pensamentos de cinquenta desses homens-robôs alemães, em três dias, era absolutamente impraticável. E lembrou-se, então, de que já não eram cinquenta. Apenas quarenta e nove. Um desses robôs estourara o tampo dos miolos. E o que transparecera dos pensamentos secretos de Bartseh, afinal? Desejo por uma mulher e um “Heil Hitler”. Estaria muito enganado, cogitava Bond, se julgasse que, esquecendo o “Explorador da Lua”, fossem esses também os pensamentos dominantes dentro de mais quarenta e nove cabeças?
— Dr. Walter! Estou dando uma ordem!
A voz de Drax, cheia de uma ira controlada, interrompeu os pensamentos de Bond, enquanto permanecia tocando com os dedos a aresta condutora de uma das barbatanas de columbite da cauda do foguete.
— Voltem ao trabalho! Já perdemos tempo demais!
Os homens se espalharam, pressurosos, cada um absorvido em sua tarefa, e Drax aproximou-se de Bond, deixando Walter vagando, indeciso, sob a enorme bocarra do exaustor de jato do foguete.
Drax mostrava uma fisionomia tempestuosa.
— Maluco do inferno — praguejou ele. — Está sempre descobrindo complicações.
Depois, como se quisesse esquecer seu adjunto, acrescentou bruscamente para Bond:
— Venha até meu escritório. Vou-lhe mostrar o plano de voo. Depois iremos dormir.
Bond seguiu-o. Drax girou uma pequena maçaneta embutida na parede de aço, e uma porta estreita se abriu, com um silvo abafado. A um metro mais para dentro, havia outra porta também de aço, e Bond notou que ambas eram cercadas de borracha, tornando o cilindro estanque à entrada de ar. Antes de fechar a porta externa, Drax parou na soleira e apontou, na parede circular, um bom número de maçanetas, quase invisíveis e semelhantes à que ele utilizara.
— São as portas das oficinas: geradores elétricos, controle de combustível, lavatórios, armazéns de materiais... — Apontou a porta seguinte. — Aqui é a sala de minha secretária. — Fechou a porta externa, antes de abrir a segunda e, entrando em seu escritório, fechou a porta interna atrás de Bond.
Era um recinto severo, pintado de cinza-claro, onde se via uma ampla escrivaninha e diversas cadeiras de metal tubular, forradas de lona azul-marinho. O chão era atapetado em cinza. Havia ainda dois fichários verdes e um grande aparelho de rádio, metálico. Uma porta semiaberta deixava entrever parte de um banheiro ladrilhado. A escrivaninha estava disposta de frente para uma larga parede lisa, que parecia ser construída de vidro opaco. Drax encaminhou-se para a parede e baixou dois interruptores, na extremidade direita. A parede inteira ficou iluminada como tela de cinema, e Bond se defrontou com dois mapas, cada um de seis pés quadrados, ambos desenhados no próprio vidro.
O mapa da esquerda mostrava toda a região oriental da Inglaterra, desde Portsmouth até Hull, bem como as águas adjacentes, nas latitudes entre 50 e 55 graus. Do ponto vermelho, próximo a Dover, que representava a base de lançamento do “Explorador da Lua”, partia uma série de círculos concêntricos, representando, com intervalos de dez milhas, o raio de ação do projétil. Num ponto distante 80 milhas da base, entre as ilhas Fríseas e Hull, via-se um losango vermelho, desenhado em pleno oceano.
Drax fez um gesto para as intrincadas tábuas matemáticas e as colunas de leitura de bússolas, que enchiam o lado direito do mapa.
— Velocidades de vento, pressão atmosférica, cálculos de computador para os giroscópios — foi explicando ele. — Tudo calculado na base da velocidade e raio de ação do foguete, como constantes matemáticas. Recebemos diariamente as previsões meteorológicas fornecidas pelo Ministério da Aeronáutica, bem como as leituras efetuadas na atmosfera superior, cada vez que um jato da RAF alcança essa altitude. Todos os relatórios nos são transmitidos. Quando um avião atinge a altitude máxima, solta balões de hélio que podem subir ainda mais e nos fornecem novas leituras. A camada atmosférica chega até cinquenta milhas de altitude, aproximadamente. Depois das primeiras vinte, não existe já qualquer densidade que possa afetar o progresso do foguete. Voará quase em vácuo. Atravessar as primeiras vinte milhas é que constitui o principal problema. A atração da gravidade, claro, é outra preocupação. Walter poderá explicar-lhe todas essas coisas, se você estiver interessado. Haverá informações contínuas sobre o tempo, durante as últimas horas até sexta-feira. E então ajustaremos os giroscópios, pouco antes do lançamento. Por enquanto, Miss Brand colige as informações recebidas todas as manhãs e organiza um mapa de movimentos giroscópicos, para o caso de ser necessário.
Drax apontou para o segundo dos dois mapas. Era um diagrama do voo elíptico do foguete, desde o ponto de lançamento até seu alvo. Havia ainda mais colunas de números e cifras.
— Aí temos o registro de velocidade da Terra e seus efeitos na trajetória do foguete — explicou Drax. — A Terra estará girando para Leste, em relação ao voo do foguete. Esses fatores têm de ser conjugados com o outro mapa, e é da leitura final que sairão as instruções de voo. É um negócio bem complicado. Felizmente você não precisa compreender. Deixe isso para Miss Brand. E agora — disse, apagando as luzes da parede que ficou novamente lisa — deseja fazer alguma pergunta a respeito de seu trabalho? Não creio que haja muita coisa para você fazer. Já viu que tudo foi feito com a máxima segurança. O Ministério insistiu para que assim fosse, desde o início.
— Tudo me parece em ordem — disse Bond.
Examinou a fisionomia de Drax, em seguida. O olho bom fitava-o intensamente. Bond fez uma pausa.
— Acha que havia alguma coisa entre sua secretária e o Major Tallon?
Era uma pergunta clara, e o melhor seria fazê-la agora.
— É possível, — respondeu Drax sem constrangimento. — Ela é moça atraente. Eram forçados a conviver, constantemente, na companhia um do outro. De qualquer maneira, parece que Bartsch ficou alucinado por ela.
— Ouvi dizer que Bartsch fez continência e gritou: “Heil Hitler” antes de virar a arma contra a boca — disse Bond.
— Foi o que me contaram — confirmou Drax, sem o mínimo interesse. — E daí?
— Por que motivo todos os homens usam bigode? — indagou Bond, ignorando a pergunta de Drax.
Novamente teve a impressão de que sua pergunta exasperara o outro homem.
Drax soltou uma de suas risadinhas curtas e ladradas.
— Foi uma ideia que eu tive. Eles são difíceis de reconhecer nesses macacões brancos e com as cabeças raspadas. Por isto mandei que todos deixassem crescer os bigodes. A coisa se tornou quase um fetiche. Como na RAF, durante a guerra. Vê alguma coisa de inconveniente nisso?
— Claro que não. A princípio é um tanto.. . surpreendente. Eu teria pensado que números grandes colocados nas roupas, com uma cor diferente para cada turma, teria sido mais eficiente.
— Pois bem — replicou Drax, voltando-se em direção à porta como para finalizar a conversação. — Decidi-me pelos bigodes.
CAPITULO 13
DECISÃO FINAL
Na quarta-feira de manhã, Bond despertou cedo, na cama do homem morto.
Dormira pouco. Drax não dissera nada a caminho de volta para casa e lhe desejara um rápido boa-noite no fim da escada. Bond seguira pelo corredor atapetado até o ponto onde brilhava uma luz, vinda de uma porta aberta, e encontrara suas coisas ordenadamente arranjadas num confortável quarto.
O aposento era mobiliado com o mesmo gosto de tipo dispendioso que encontrara no andar térreo. Havia biscoitos e uma garrafa de Vichy (não era uma garrafa de Vichy com água da bica, verificou Bond) ao lado da cama.
Não se notavam sinais do ocupante precedente, a não ser uma pasta de couro contendo binóculos, na mesinha de cabeceira, e um arquivo de metal, trancado. Bond conhecia tudo sobre arquivos. Virou-o contra a parede, colocou a mão embaixo e encontrou a ponta do fecho que se projeta para baixo, quando a série de escaninhos de cima foi trancada. Uma pressão feita para cima soltou as gavetas uma por uma, e ele baixou suavemente a borda do arquivo para o chão, refletindo maldosamente que o Major Tallon não teria sobrevivido durante muito tempo no Serviço Secreto.
A gaveta de cima continha mapas de escala da base e seus edifícios, além de um mapa do Almirantado n° 1895, representando o Estreito de Dover. Bond colocou cada uma das folhas sobre o leito e examinou-as minuciosamente. Havia restos de cinza de um cigarro nas dobras do mapa do Almirantado.
Bond foi buscar sua caixa de ferramentas — uma caixa quadrada de couro que estava ao lado da cômoda. Examinou os números nas rodas da fechadura de segredo e, satisfeito por não terem sido mexidas, virou-as para o número de código. A caixa estava repleta de instrumentos. Bond escolheu um vaporizador de pó para impressões digitais e uma lente grande. Espalhou o pó fino e acinzentado, centímetro por centímetro, sobre toda a extensão da carta geográfica. Apareceu uma floresta de impressões digitais.
Examinando-as com a lente, chegou à conclusão de que pertenciam a duas pessoas. Isolou os dois melhores grupos, tirou uma Leica com um flash de dentro da pasta de couro e fotografou-os. Em seguida, examinou cuidadosamente com a lente os dois minúsculos sulcos no papel que o pó fizera aparecer .
Estes davam a impressão de serem duas linhas traçadas da costa para formar uma rota cruzando o mar. Sua direção era muito estreita, e as duas linhas pareciam originar-se da casa onde se encontrava Bond. De fato, poderiam indicar observações de algum objeto no mar, feitas de cada ala da casa.
As duas linhas não haviam sido traçadas com lápis, mas, presumivelmente, para evitar serem descobertas, com um estilete que mal sulcara o papel.
No ponto onde se encontravam, havia a sombra de uma interrogação, na linha correspondente à décima-segunda braça, cerca de cinquenta jardas distante do penhasco, numa direção reta da casa para o navio-farol South Goodwin.
Não havia mais nada para ser descoberto no mapa. Bond olhou o relógio. Vinte para a uma. Ouviu passos distantes no hall e o estalido de uma lâmpada sendo apagada. Num impulso, ergueu-se e, de mansinho, apagou as luzes do quarto, deixando apenas a de leitura, velada por um abajur e colocada à mesinha de cabeceira.
Ouviu os pesados passos de Drax aproximando-se da escada. Houve o estalido de outro interruptor e depois silêncio. Bond imaginava aquela cara grande, cabeluda, voltada para o corredor, olhando, escutando. Depois percebeu o rangido de uma porta, sendo aberta devagar e fechada da mesma forma. Esperou, visualizando os movimentos do homem que se preparava para dormir. Ouviu ainda o som abafado de uma janela que se abria, o ruído de trombeta, distante, de um nariz sendo assoado. Depois silêncio.
Bond concedeu mais cinco minutos a Drax e depois foi até o arquivo, abrindo suavemente as outras gavetas. Não havia nada na segunda e na terceira, mas a última estava repleta de arquivos arrumados em ordem alfabética. Eram os dossiês dos homens que trabalhavam na base. Bond puxou a série “A”, voltou para a cama e começou a ler.
Em cada um a fórmula era a mesma: nome por inteiro, endereço, data do nascimento, descrição, sinais particulares, profissão ou ofício depois da guerra, registro de tempo de guerra, sobre atitudes políticas e simpatias atuais, registro criminal, de saúde e sobre os parentes próximos. Alguns desses homens tinham mulher e filhos, cujas particularidades eram anotadas e, acompanhando cada dossiê, havia fotografias: de frente e de perfil, além das impressões digitais de ambas as mãos.
Duas horas e dez cigarros depois, Bond examinara todos eles e descobrira dois pontos de interesse geral. Primeiro, que todos os cinquenta homens pareciam ter levado uma vida sem mácula, sem o menor vestígio de ódio político ou criminoso. Aquilo lhe pareceu tão pouco verossímil, que resolveu encaminhar todos eles novamente à Estação D. para serem submetidos a um reexame completo na primeira oportunidade.
O segundo ponto era que nenhuma das caras das fotografias tinha bigode. Apesar da explicação de Drax, esse fato suscitou um segundo pequeno ponto de interrogação no espírito de Bond.
Ergueu-se da cama e trancou novamente tudo, colocando o mapa do Almirantado em um dos arquivos de sua pasta de couro. Girou a fechadura de segredo e enfiou a pasta bem para debaixo da cama, de modo que a mesma ficasse diretamente sob seu travesseiro no ângulo interno da parede. Depois, sem fazer barulho, lavou-se, escovou os dentes no banheiro anexo e escancarou a janela.
A lua ainda brilhava: como devia ter brilhado, pensou Bond, quando, despertado por algum ruído fora do comum, Tallon subira ao telhado, talvez somente há poucas noites, e vira, no meio do mar, o que tinha visto. Devia trazer os binóculos consigo, e Bond, lembrando-se, saiu da janela e apanhou-os. Eram binóculos muito possantes, de fabricação alemã, pilhagem da guerra, talvez, e o 7 X 50 nas chapas superiores revelaram que se tratava de binóculos para a noite. Depois então, o cauteloso Tallon devia ter caminhado de leve (mas não o suficiente) para a outra extremidade do telhado e novamente erguido os binóculos, calculando a distância da borda do penhasco até o objeto no mar, e do objeto até o Goodwin, navio-farol. Em seguida, devia ter voltado pelo mesmo caminho e, sem fazer ruído, tornado a entrar no quarto.
Bond viu Tallon, talvez pela primeira vez desde que estava na casa, trancar a porta cautelosamente, dirigir-se até o arquivo, retirar dali o mapa, ao qual mal lançara um olhar até então, e marcar sobre o mesmo, de leve, as linhas de sua direção, às pressas. Talvez tivesse olhado para ele durante longo tempo, antes de apor a pequenina interrogação ao seu lado.
E que teria sido então o objeto desconhecido? Impossível dizer. Um navio? Uma luz? Um ruído?
Fosse o que fosse, Tallon não devia ter visto. E alguém o tinha ouvido. Alguém havia adivinhado que ele vira, e esperara que Tallon saísse do quarto na manhã seguinte. Aí então aquele alguém viera ao seu quarto e dera uma busca. A carta marítima, provavelmente, nada revelara, mas vira os binóculos para noite em cima da janela.
Fora o bastante. E naquela noite, Tallon morrera.
Bond se controlou. Ia depressa demais, compondo um caso, baseado no mais tênue dos indícios. Bartsch matara Tallon, e Bartsch não fora o homem que ouvira o barulho, o homem que deixara as impressões digitais no mapa, o homem cujo dossiê Bond separara e guardara em sua pasta de couro.
O homem tinha sido o untuoso Krebs, a criatura do pescoço de minhoca. As impressões digitais eram suas. Durante um quarto de hora, Bond comparara as impressões do mapa com as impressas no dossiê de Krebs. Mas quem disse que Krebs ouvira um barulho, ou fizera qualquer coisa por causa disso? Bem, para começar, ele parecia mesmo um tipo intrometido. Tinha os olhos de um ladrão sem importância. Aquelas impressões no mapa haviam sido, positivamente, feitas depois que Tallon o estudara. Os dedos de Krebs cobriram os de Tallon em diversos pontos.
Entretanto, como poderia Krebs estar envolvido nessa história, com os olhos de Drax constantemente em cima dele? O assistente confidencial. Mas que dizer de Cícero, o empregado particular de toda confiança do Embaixador Britânico em Ankara, durante a guerra? A mão no bolso das calças pendendo por cima das costas da cadeira. As chaves do Embaixador. O cofre. Os segredos. O quadro era muito semelhante.
Bond sentiu um arrepio. Compreendeu então, de repente, que estivera de pé durante muito tempo em frente às janelas abertas e que já era tempo de dormir um pouco.
Antes de se deitar, pegou o coldre de ombro da cadeira, onde estava no meio das roupas despidas, e retirou a Beretta, colocando-a debaixo do travesseiro. Como defesa contra quem? Bond não sabia, mas sua intuição lhe dizia muito claramente que pairava o perigo no ar. O cheiro era insistente, apesar de ainda impreciso, e restringia-se apenas ao limiar de seu subconsciente. Na realidade, ele sabia que suas impressões se baseavam num determinado número de interrogações que se haviam materializado durante as últimas vinte e quatro horas: o enigma de Drax; o “Heil Hitler” de Bartsch; os estranhos bigodes; os cinquenta alemães de conduta impecável; a carta marítima; os binóculos de noite; Krebs.
Primeiro precisava comunicar suas suspeitas a Vallance. Depois explorar as possibilidades de Krebs. Em seguida, olhar as defesas do “Explorador da Lua” — o lado do mar, por exemplo. Finalmente, entrar em contato com essa pequena Brand e concordarem na elaboração de um plano para os próximos dois dias. Não havia muito tempo a perder.
Enquanto forçava o sono no cérebro transbordante de pensamentos, Bond imaginou o número sete no mostrador de um relógio e deixou a tarefa de acordar entregue às células ocultas de sua memória. Desejava estar fora de casa e no telefone com Vallance, o mais cedo possível. Se suas ações levantassem suspeitas, não ficaria desanimado. Um de seus objetivos era atrair para sua órbita as mesmas forças que envolveram Tallon, porque de uma coisa ele tinha quase certeza, o Major não morrera por amar Gala Brand.
O despertador extra-sensorial não falhou. Pontualmente, às sete horas, com a boca seca por causa dos muitos cigarros da noite anterior, esforçou-se por sair da cama e entrar num banho frio. Barbeara-se, gargarejara com um dentifrício forte e, agora, vestido num terno batido branco e preto, uma camisa azul-marinho de algodão, tipo Mares do Sul, gravata de tricô preto, caminhava levemente, mas não de modo furtivo, pelo corredor até as escadas, com a pasta de couro quadrada na mão esquerda.
Encontrou a garage no fundo da casa, e o motor do Bentley correspondeu à primeira pressão do arranque. Bond seguiu lentamente pela faixa de concreto sob o olhar indiferente das janelas encortinadas da casa e seguiu em frente, em prise, pelo caminho margeado de árvores. Seus olhos voltaram-se para a casa e confirmaram seu cálculo de que um homem de pé no telhado seria capaz de enxergar por cima do muro e ter uma visão da beira do penhasco e do mar mais adiante.
Não havia sinal de vida em torno do local onde se encontrava o “Explorador da Lua”. O concreto, já começando a brilhar ao primeiro sol da manhã, estirava-se vazio na direção de Deal. Tinha-se a impressão de um aeródromo recém-construído ou talvez, pensou, com suas três “coisas” diferentes de concreto, a cúpula de uma colmeia, a parede lisa de ferro e o cubo distante do ponto de disparo, cada qual lançando poços negros de sombra em sua direção, ali no sol matutino, como uma paisagem deserta de Dali, na qual três objets trouvés repousavam num acaso cuidadosamente calculado.
Lá fora, no mar, dentro do nevoeiro da manhã que prometia um dia quente, o navio-farol South Goodwin mal se delineava, difusa embarcação vermelha, casada para sempre com o mesmo ponto, e condenada, como um navio de cenário no palco de Drury Lane, a assistir ao diorama das ondas e nuvens navegarem atarefadamente para os bastidores, enquanto que ele, sem papéis, passageiros ou carga, continuava ancorado para sempre no ponto de partida que era também seu porto de destino.
Com intervalos de trinta segundos, buzinava sua triste queixa dentro do nevoeiro, uma prolongada nota dupla de trumpete, em cadência descendente. Um canto de sereia, pensou Bond, para repelir em vez de seduzir. Perguntava a si mesmo como os sete homens da tripulação suportariam agora o ruído, enquanto mastigavam carne de porco com feijão. Encolher-se-iam, quando marcava contracanto com a Housewife’s Choice, vindo a todo volume do rádio na hora do rancho? Mas era uma vida segura, foi a conclusão a que chegou Bond, apesar de ancorado nos portões de um cemitério.
Anotou mentalmente, para descobrir se esses sete homens tinham visto ou ouvido a coisa que Tallon marcara no mapa, em seguida saiu rápido por entre os postos de guarda.
Em Dover, parou diante do Café Royal, modesto restaurantezinho, com uma cozinha modesta porém capaz, como ele sabia há muito tempo, de preparar excelentes pratos de peixe e de ovos.
A dona, suíça-italiana, com o filho que a ajudava a dirigir a casa, recebeu-o como velho amigo, e ele pediu um prato de ovos mexidos com presunto e bastante café, recomendando que estivessem prontos em meia hora. Depois seguiu até o posto policial e fez uma chamada para Vallance, por meio da mesa de ligações da Scotland Yard. Vallance estava em casa, tomando o café da manhã. Ouviu sem comentários a conversa reservada de Bond, mas não expressou surpresa, quando este disse que não tinha tido oportunidade de falar mais intimamente com Gala Brand.
— Essa aí é uma garota inteligente. Se o Sr. K. anda tramando alguma coisa, com certeza ela tem uma ideia do que seja. E se T. ouviu um barulho no sábado à noite, ela pode ter ouvido também. Se bem que eu deva confessar que não se referiu a esse assunto.
Bond não disse nada sobre a recepção que tinha tido por parte do agente de Vallance.
— Vou falar com ela esta manhã e mandar-lhe-ei o mapa com o filme da Leica para que o senhor os examine. Vou dá-los ao Inspetor. Talvez um dos patrulheiros da estrada possa levar. É verdade, de onde T. telefonou quando chamou seu chefe na segunda-feira?
— Vou mandar verificar e depois lhe direi — disse Vallance. Mandarei também a Trinity House perguntar se a South Goodwin e os guardas-costeiros podem ajudar. Mais alguma coisa?
Bond respondeu:
— Não.
A linha passava por muitas mesas de ligação. Talvez, se tivesse sido M., ele tivesse insinuado mais alguma coisa. Pareceu-lhe ridículo falar com Vallance a respeito de bigodes e a atmosfera de perigo que ele sentira na noite anterior, e que a luz do dia dissipara. Aqueles policiais só queriam os fatos nus e crus. Eram melhores, refletiu, na solução de um crime, do que antecipá-los.
— Não, é só.
Desligou.
Sentiu-se mais alegre depois de uma excelente primeira refeição. Leu o Express e The Times e encontrou uma notícia sucinta sobre o inquérito do caso Tallon. O Express fizera muito escarcéu e muita exibição da fotografia da moça. Bond divertiu-se, ao verificar a neutra semelhança que Vallance conseguira apresentar. Decidiu que precisava tentar trabalhar com ela. Demonstraria toda confiança e lhe contaria tudo, fosse ela receptiva ou não. Talvez ela também tivesse suas suspeitas e intuições, porém tão vagas que as estava guardando consigo mesma.
Bond voltou rapidamente para a casa. Eram nove horas em ponto, e quando passou por entre as árvores na faixa de concreto, ouviu-se o lamento de uma sereia e, dos bosques por trás da casa, uma dupla fila de doze homens apareceu correndo num ritmo propositadamente igual, em direção à cúpula do foguete. Marcavam o tempo enquanto um deles tocava a campainha. A porta então se abriu, e eles entraram em fila, desaparecendo .
Raspe-se a superfície de um tedesco e encontrar-se-á a precisão — pensou Bond.
CAPITULO 14
DEDOS FORMIGANTES
Meia hora antes, Gala Brand esmagara a ponta do seu cigarro matutino, engolira o resto do café, saíra do quarto e se encaminhara para a base, com o aspecto perfeito de uma secretária particular. Trajava uma blusa branca imaculada e uma saia azul-marinho pregueada.
Pontualmente, às oito e meia, estava em seu escritório. Havia um monte de telimpressos do Ministério da Aeronáutica em cima da mesa, e sua primeira ação foi transferir um resumo de seus conteúdos para um mapa meteorológico, entrar pela porta de comunicação no escritório de Drax, e pregar o mapa num quadro pendente no ângulo da parede ao lado do vidro liso. Em seguida, apertou o interruptor que iluminava o mapa de parede, fez alguns cálculos, baseada nas colunas de números reveladas pela luz, e anotou o resultado no diagrama que prendera ao quadro.
Fizera isto com os dados do Ministério da Aeronáutica, que se tornavam cada vez mais exatos, à medida que a data do lançamento experimental se aproximava, todos os dias, desde que a base terminara, e a construção do foguete se iniciara dentro dela. Tornara-se tão perita, que agora sabia de cor as direções do giroscópio para quase todas as variações de temperatura em diferentes altitudes.
De modo que ainda ficava mais irritada quando Drax não demonstrava aceitar seus cálculos. Todos os dias quando, às nove horas, pontualmente, as campainhas de aviso soavam, e ele descia a íngreme escadaria de ferro para entrar em seu escritório, seu primeiro gesto era chamar o insuportável Dr. Walter, para que, juntos, estudassem novamente todas as suas anotações, transcrevendo os resultados no fino caderninho de notas que Drax trazia no bolso traseiro das calças. Sabia que aquilo era uma rotina invariável e se cansara de observá-la através de um orifício disfarçado que fizera, de forma a poder enviar a Vallance um relatório semanal dos visitantes de Drax. O orifício ficava na parede fina que separava os dois escritórios. O método era amadorista, porém eficiente, e ela lentamente formara um quadro completo da rotina diária, que acabara por achar demasiado irritante. Era irritante por duas razões. Significava que Drax não confiava em seus algarismos e solapava sua oportunidade de tomar parte, da maneira mais modesta que fosse, no lançamento final do foguete.
Era natural que, no decorrer dos meses, tivesse ficado tão integrada em seu disfarce quanto em sua verdadeira profissão. Era uma coisa fundamental para a exatidão absoluta dêsse disfarce que sua personalidade ficasse tão verdadeiramente oculta quanto possível. E agora, enquanto espionava, apalpava e farejava o vento em torno de Drax, para relatar ao seu Chefe em Londres, sentia-se profundamente interessada pelo sucesso do “Explorador da Lua” e tornara-se tão dedicada ao seu serviço quanto qualquer outro membro da base.
O resto de seus Ideveres como secretária particular de Drax era intoleràvelmente monótono. Todos os dias chegava um enorme volume de correspondência dirigida a Drax em Londres e enviada para lá pelo Ministério. Naquela manhã, encontrara o monte habitual de mais ou menos cinquenta cartas aguardando em cima da escrivaninha. Eram sempre de três tipos. Cartas de pedidos, de pessoas maníacas pelo foguete, cartas comerciais do corretor de Drax e de outros agentes comerciais. Para estas Drax ditava respostas breves, e o resto do dia ela se ocupava em datilografar e arquivar.
De sorte que era natural o fato de sua única obrigação relacionada com a operação do foguete destacar-se extraordinàriamente entre os monótonos deveres. Naquela manhã, ao conferir e reconferir seu plano de voo, estava mais que decidida a fazer aceitarem seus cálculos para O Dia. Entretanto, como muitas vezes lembrava a si mesma, talvez não houvesse razão para que não os aceitassem. Talvez os cálculos diários de Drax e Walter para anotação no caderninho preto não passassem de nova verificação de seus próprios números. Era bem verdade que Drax nunca tinha pedido seu boletim meteorológico ou as direções do giroscópio por onde os calculava. E quando um dia ela perguntara diretamente se seus cálculos sobre o tempo estavam corretos, ele respondera com evidente sinceridade:
— Excelentes, minha cara. Muito valiosos. Não poderíamos arranjar-nos sem eles.
Gala Brand voltou para sua sala e começou a abrir as cartas. Só mais dois planos de voo para quinta-feira e sexta, e então, baseados em seus cálculos ou noutros, nos guardados dentro do bolso de Drax, o giroscópio seria finalmente ajustado, e seria apertado no ponto de disparo.
Distraidamente, Gala olhou para as unhas e depois estendeu as duas mãos, com as costas voltadas em sua direção. Quantas vezes, durante seu adestramento na Escola da Polícia, fora mandada para fora com outras alunas e recomendada a não voltar sem um caderno de notas, um estojo de maquilagem, uma caneta-tinteiro ou mesmo um relógio de pulso? Quantas vezes, durante os cursos, o instrutor não se voltara, segurando-a pelo pulso e dizendo: “Vamos, vamos, senhorita. Isto assim não vai de jeito nenhum. Dá até a impressão de um elefante procurando açúcar no bolso do tratador. Tente novamente.”
Friamente, flexionou os dedos e depois, tomando uma resolução, voltou à pilha de cartas.
Quando faltavam poucos minutos para as nove, as campainhas de alarma soaram, e ela ouviu Drax chegar ao escritório. Pouco depois ouviu-o abrir as portas duplas novamente e chamar Walter. Em seguida, veio o habitual murmúrio de vozes cujas palavras eram abafadas pelo leve chiar do ventilador.
Gala arrumou as cartas em três pilhas e sentou-se inclinada para a frente, os nervos relaxados, os cotovelos descansando na escrivaninha e o queixo repousando na mão esquerda.
Comandante Bond. James Bond. Evidentemente, um jovem convencido, como tantos outros do Serviço Secreto. E porque tinha sido enviado em vez de alguém com quem pudesse trabalhar, um de seus amigos da Seção Especial ou mesmo uma pessoa do M15? A mensagem do Comissário-Assistente dizia que não havia mais ninguém disponível assim de repente, que ele era um dos astros do Serviço Secreto, que desfrutava da mais absoluta confiança da Seção Especial e tinha as bênçãos do M15. Até mesmo o Primeiro-Ministro lhe dera permissão para agir somente nesta missão dentro da Inglaterra. Mas de que poderia adiantar, em face do pouco tempo que restava? Ele, provavelmente, atirava bem e falava idiomas estrangeiros, além de executar uma série de truques que poderiam ser úteis no exterior. Entretanto, que poderia fazer de bom aqui, sem lindas espiãs para namorar. Porque bonitão ele era, incontestàvelmente. (Gala Brand procurou automaticamente o estojo de maquilagem e bateu a esponjinha de pó de arroz no nariz.) Bem no gênero de Hoagy Carmichael, sob certo aspecto. Aquele cabelo preto caindo em cima da sobrancelha direita. Mais ou menos o mesmo tipo ósseo. Mas havia um quê de crueldade na boca, e os olhos eram frios. Cinzentos ou azuis? Tinha sido difícil verificar a noite passada. Bem, de qualquer maneira, ela o pusera em seu lugar e lhe mostrara que não estava impressionada por rapazes atraentes do Serviço Secreto, por mais românticos que parecessem. Havia homens igualmente belos na Seção Especial, e estes eram detetives de verdade, não apenas pessoas que Phillips Oppenheim idealizara, donos de carros velozes com bandas douradas e coldres de ombro. Ah, isto ela descobrira com certeza, e até esbarrara nele para ter certeza.
Pois bem, supunha que devia demonstrar, de uma forma ou de outra, que trabalhava com ele, apesar de só Deus saber em quê. Se ela estivera ali desde quando o local fora construído sem descobrir coisa alguma, o que poderia esse homem, Bond, esperar descobrir em dois dias? E o que havia para ser descoberto? Naturalmente, existiam uma ou duas coisas que ela não conseguia compreender. Deveria falar-lhe em Krebs, por exemplo? A primeira coisa a fazer era providenciar para que ele não lhe estragasse o trabalho, fazendo qualquer tolice. Teria de ser fria, firme e extremamente cautelosa. Mas isto não queria dizer, chegou à conclusão no momento em que a cigarra tocava e ela apanhava as cartas e o caderno de taquigrafia, que não pudesse ser amistosa em suas relações. Estritamente dentro de suas próprias condições, é claro.
Havendo tomado esta segunda decisão, abriu a porta de comunicação e entrou no escritório de Sir Hugo Drax.
Ao voltar para sua sala, meia hora depois, encontrou Bond sentado em sua cadeira com o Almanaque Whitaker aberto na escrivaninha diante dele. Apertou os lábios, quando Bond se levantou e desejou-lhe um feliz bom dia. Gala baixou a cabeça rapidamente, rodeou a escrivaninha e sentou-se. Afastou cuidadosamente o Whitaker e colocou as cartas e o caderno em seu lugar.
— Devia ter mais uma cadeira para as visitas — disse Bond com um sorriso que ela definiu como impertinente. — E alguma coisa melhor para se ler do que livros de referências.
A moça ignorou as observações.
— Sir Hugo deseja vê-lo. Eu ia agora mesmo ver se já havia se levantado.
— Mentirosa. Você me ouviu passar às sete e meia. Eu a vi espiando entre as cortinas.
— Não fiz semelhante coisa — retrucou Miss Brand indignada. — Por que haveria de estar interessada num carro que passava?
— Eu disse que você ouviu o carro — disse Bond. Insistiu em sua vantagem. — E, por falar nisso, acho que não deve coçar a cabeça com o lápis quando está tomando ditado. Nenhuma das melhores secretárias particulares faz tal coisa.
Bond olhou de modo significativo para um ponto da porta de comunicação. Depois sacudiu os ombros.
As defesas de Gala caíram. Diabo de homem, pensou. Endereçou-lhe um sorriso relutante.
— Ora. Vamos parar com isto. Eu não posso passar a manhã inteira brincando de adivinhação. Ele quer nos ver e não gosta de esperar.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação, abrindo-a. Bond seguiu-a, fechando depois a porta.
Drax estava de pé, olhando o mapa de parede iluminado. Voltou-se, quando os dois entraram.
— Ah, você está aqui — disse com um olhar firme para Bond. — Pensei que talvez nos tivesse deixado. Os guardas anotaram sua saída às sete e meia da manhã de hoje.
— Precisei dar um telefonema — explicou Bond. — Espero não ter incomodado ninguém.
— Existe um telefone em meu estúdio — ajuntou Drax, conciso. — Tallon achava que servia muito bem.
— Ah, pobre Tallon — disse Bond sem nenhuma inflexão particular.
Notara um quê de autoritário na voz de Drax que o desagradara bastante, e isto fizera com que desejasse instintivamente desarmá-lo. Nessa vez foi bem sucedido.
Drax lançou-lhe um olhar duro, que disfarçou com um risinho curto, latido e um sacudir de ombros.
— Faça como melhor lhe agradar. Você tem seu trabalho para fazer. Contanto que não perturbe as rotinas daqui. Deve-se lembrar — acrescentou mais amável — de que todos os meus homens estão nervosos ao extremo agora, e eu não posso inquietá-los com misteriosas movimentações. Espero que não deseje fazer-lhes muitas perguntas hoje. Eu preferia que não tivessem mais nada com que se preocupar. Ainda não se recuperaram do que aconteceu segunda-feira. Miss Brand poderá informá-lo a respeito de tudo que diz respeito a eles, e creio que todos os dados arquivados acham-se no quarto de Tallon. Já os examinou?
O arquivo não tem chave — respondeu Bond, dizendo a verdade.
— Desculpe, a culpa é minha — disse Drax. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta da qual tirou um pequeno molho de chaves, e entregou-o a Bond.
— Devia ter-lhe entregado isto a noite passada. O Inspetor que tratou do caso pediu-me lhe entregasse. Desculpe.
— Muito obrigado — disse Bond por sua vez. Depois fez uma pausa.
— Diga-me uma coisa, há quanto tempo Krebs trabalha com o senhor?
Fez a pergunta obedecendo a um impulso. Houve um momento de silêncio na sala.
—Krebs? — repetiu Drax, pensativo.
Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se. Estendeu a mão para o bolso da calça e puxou um maço de cigarros de ponta de cortiça. Seus dedos grosseiros lutaram com o envólucro de celofane. Tirou um cigarro e meteu-o na boca, sob a franja do bigode avermelhado, acendendo-o depois.
Bond mostrou-se surpreso.
— Eu não sabia que se podia fumar aqui — observou, tirando sua própria carteira do bolso.
O cigarro de Drax, minúsculo tubo branco no meio da caraça vermelha, subia e descia enquanto ele respondia sem tirá-lo da boca.
— Aqui não há perigo. Estas salas são à prova de ar. As portas são forradas com borracha. A ventilação é separada . Precisei colocar as oficinas e geradores apartados da cúpula e, de qualquer maneira — seu lábios sorriram em torno do cigarro — preciso dar um jeito para fumar.
Drax tirou o cigarro da boca e olhou-o. Parecia estar tomando uma resolução.
— Você estava me interrogando a respeito de Krebs. Pois bem, cá entre nós, não confio inteiramente nesse camarada — declarou fitando Bond com uma expressão significativa.
Levantou a mão num gesto de quem se desculpa.
— Nada de definido, naturalmente, ou eu já o teria mandado embora, mas encontrei-o espionando pela casa, e uma vez apanhei-o em meu estúdio, remexendo meus papéis particulares . Ele apresentou uma explicação perfeita e deixei-o sair, prevenindo-o. Contudo, para ser franco, tenho minhas suspeitas a respeito do homem. Evidentemente, ele não pode fazer mal algum. Faz parte do pessoal da casa, e nenhum deles tem licença de entrar aqui, mas — Drax fitou Bond francamente, dentro dos olhos — eu devia ter-lhe dito que se concentrasse nele. Foi muita vivacidade sua, haver observado qualquer coisa no homem, tão depressa — acrescentou com respeito. — Que foi que o levou a isto?
— Nada de extraordinário. Ele tem um aspecto inquieto. Mas o que o senhor diz é interessante, e eu não deixarei de estar de olho nele.
Voltou-se para Gala Brand, que permanecera em silêncio desde o momento em que entraram na sala.
— Qual sua opinião a respeito de Krebs, Miss Brand? — perguntou, polidamente.
A moça respondeu, dirigindo-se a Drax.
— Não entendo muito dessas coisas, Sir Hugo, — disse com modéstia e um quê de impulsivo que Bond admirou.
— Porém não confio nele de jeito nenhum. Não tinha intenção de lhe contar, mas ele andou rondando meu quarto, entrou lá, abriu cartas etc. Tenho certeza disso.
Drax mostrou-se chocado.
— Foi mesmo?
Pôs o cigarro no cinzeiro e extinguiu os fragmentos acesos, um por um.
— Deixe-o comigo — falou sem levantar os olhos.
CAPÍTULO 15
JUSTIÇA RUDE
Houve um momento de silêncio na sala durante o qual Bond refletiu como era estranho que as suspeitas recaíssem tão de repente e unanimemente sobre o mesmo homem. Isto, por acaso, libertaria automaticamente os outros? Krebs não poderia ser membro de uma quadrilha? Ou trabalharia por conta própria e, nesse caso, com que objetivo? E que relação haveria entre suas espionagens e as mortes de Tallon e Bartsch?
Drax quebrou o silêncio.
— Bem, parece que chegamos a um ponto de acordo — disse, olhando Bond, à procura de confirmação. Este baixou a cabeça, num gesto cauteloso.
— Tenho mesmo de deixá-lo por sua conta. De qualquer forma, providenciaremos para que se conserve bem afastado da base. Aliás, vou levá-lo comigo amanhã para Londres. Pormenores de última hora deverão ser combinado com o Ministério, e Walter não pode sair daqui. Krebs é o único homem capaz de executar o serviço de um ajudante-de-ordens. Isto o conservará fora de qualquer complicação. Até lá temos todos de mantê-lo sob vigilância. A não ser, naturalmente, que você queira prendê-lo já, trancando-o à chave e cadeado. Eu preferia que não. Não desejo perturbar mais a equipe.
— Não será necessário — disse Bond. — Ele conta com alguns amigos particulares entre os outros homens?
— Nunca o vi falando com nenhum, exceto Walter e o pessoal de casa — disse Drax. — Calculo que se considera superior aos outros. Pessoalmente, não acredito que exista muita maldade nesse camarada, do contrário não o teria conservado. Ele fica sozinho em casa o dia inteiro, e com certeza é um desses sujeitos que gostam de bancar o detetive e meter o nariz nos negócios dos outros. Que diz você? Talvez pudéssemos deixar as coisas neste pé?
Bond fez que sim, guardando seus pensamentos para si mesmo.
— Pois então — continuou Drax, feliz por deixar de lado um assunto desagradável e voltar para os negócios. — Temos outras coisas para conversar. Ainda nos restam dois dias, e é melhor falar-lhe sobre o programa.
Ergueu-se da cadeira e mediu pesadamente a sala em largas passadas, por trás da escrivaninha:
— Hoje é quarta-feira. À uma hora a base será fechada para receber combustível. Isto será supervisionado pelo Dr. Walter, por mim e mais dois homens do Ministério. Para a eventualidade de qualquer coisa sair errada, uma câmara de televisão registrará tudo que fizermos. E então, se houver uma explosão, nossos sucessores saberão como agir melhor na próxima vez — finalizou com um curto riso ladrado. — Se o tempo permitir, o telhado será aberto hoje à noite para deixar a fumaça sair. Meus homens montarão guarda em vigias de dez jardas de intervalo, até a distância de cem jardas a partir da base. Haverá três homens armados na praia, do lado oposto ao túnel exaustor no penhasco. Amanhã de manhã a base será novamente aberta até o meio-dia para uma verificação final e, a partir desse instante, exceto a disposição do giroscópio, o “Explorador da Lua” estará pronto para partir. Os guardas ficarão permanentemente vigiando toda a base. Na sexta-feira pela manhã eu examinarei pessoalmente o ajustamento do giroscópio. Os homens do Ministério tomarão conta do ponto de disparo, e a RAF do radar. A BBC enviará seus caminhões, que ficarão atrás do ponto de disparo, e as irradiações começarão às onze e quarenta e cinco.
Ao meio-dia em ponto apertarei o pistão, um sinal de rádio passará por um circuito elétrico e — Drax sorriu abertamente — nós veremos o que vamos ver.
Fez uma pausa, mexendo no queixo:
— Vejamos agora o que mais? Ah, sim. A navegação será banida da área orbital desde a meia-noite de quinta-feira. A Marinha providenciará uma patrulha nos limites da área durante toda a manhã. Haverá um comentarista da BBC num dos navios. O Ministério do Abastecimento mandará técnicos que ficarão num navio de salvamento com um aparelho de televisão para a profundidade do mar, e depois que o foguete aterrissar, tentarão recuperar os restos. Talvez você se interesse em saber — continuou, esfregando as mãos numa alegria quase infantil, — que um mensageiro do Primeiro-Ministro trouxe a notícia muito alvissareira de que não só estará reunido o Gabinete para ouvir a irradiação, mas o Palácio também escutará o lançamento.
— Ótimo — disse Bond, satisfeito pelo outro.
— Obrigado. Agora quero ter absoluta certeza de que você está satisfeito com as medidas de segurança que tomei na própria base. Não creio que seja necessário nos preocuparmos com o que se passar do lado de fora. A RAF e a polícia parecem estar executando um serviço muito completo.
— Tudo parece ter sido providenciado — disse Bond.
— Não creio que me reste muita coisa para fazer no tempo que ainda falta.
— Nada que eu me lembre — concordou Drax. — Exceto nosso amigo Krebs. Esta tarde ele permanecerá na camioneta da televisão tomando notas, de modo que estará fora de qualquer trapalhada. Por que você não vai dar uma olhada na praia, na base do penhasco, enquanto ele está fora de ação? este é o único ponto fraco que eu posso lembrar. Muitas vezes pensei que se alguém quisesse penetrar na base, tentaria passar pela cavidade exaustora. Leve Miss Brand. Quatro olhos, etc, e ela não poderá mesmo usar seu escritório até amanhã de manhã.
— Está bem — concordou Bond.
— Eu gostaria de dar uma olhada no lado do mar, depois do almoço, e se Miss Brand não tiver nada de melhor para fazer...
Voltou-se para ela com as sobrancelhas erguidas. Gala Brand baixou os olhos.
— Claro, se Sir Hugo desejar — disse sem entusiasmo.
Drax esfregou as mãos.
— Então está combinado. E agora preciso voltar a trabalhar. Miss Brand, quer fazer o favor de pedir ao Dr. Walter que venha aqui, se estiver livre? Nós nos veremos na hora do almoço — disse a Bond, despedindo-o.
Este fez com a cabeça que sim.
— Acho que vou caminhar até a cúpula e dar uma olhadela no ponto de disparo — falou sem saber direito porque mentia. Virou-se e seguiu Gala Brand através das portas duplas e depois até a base do cilindro.
Enorme serpente negra de fios de borracha se retorcia sobre o brilhante chão de aço, e Bond observou a moça escolher o caminho por entre suas voltas até onde se encontrava Walter, sozinho. Olhava a boca do tubo do combustível ser levantada para onde um guindaste, esticado até a soleira de uma porta de acesso, na metade do foguete, indicava os principais tanques de combustível.
A moça disse qualquer coisa a Walter e depois ficou olhando para cima, enquanto o tubo ia sendo delicadamente manipulado para o interior do foguete.
Bond achou que ela parecia muito inocente, ali de pé, com os cabelos castanhos soltos e a curva da garganta cor de marfim imergindo na blusa branca e simples. Com as mãos cruzadas nas costas, contemplando embevecida os faiscantes cinquenta pés do “Explorador da Lua”, poderia ser tomada por uma colegial mirando uma árvore de Natal — exceto pelo impudente orgulho dos seios atrevidos, levantados pela cabeça e os ombros jogados para trás.
Bond sorriu consigo mesmo ao chegar ao pé da escada de ferro e começar a subir. Aquela moça inocente, desejável, lembrou a si próprio, é uma policial extremamente competente. Sabe como desferir pontapés e onde; pode quebrar meu braço, provavelmente mais depressa e com mais facilidade do que eu poderia quebrar o dela, e pelo menos metade de seu ser pertence à Seção Especial da Scotland Yard. Naturalmente, refletiu, baixando os olhos a tempo de vê-la seguir o Dr. Walter até o escritório de Drax, existe sempre a outra metade.
Lá fora, o brilhante sol de maio parecia particularmente dourado depois do branco azulado dos arcos, e Bond sentia-o quente nas costas ao caminhar deliberadamente pelo concreto em direção à casa. O apito de nevoeiro do Goodwin estava silencioso, e a manhã tão calma que ele podia ouvir as batidas rítmicas dos motores de um navio, quando este passava por Inner Leads, entre o Goodwin e a praia, a caminho do Norte.
Aproximou-se da casa, protegido pelo largo muro contra o vento, e então, rapidamente, atravessou as poucas jardas até a porta da frente, sem produzir o menor ruído com os sapatos de crepe-sola. Abriu a porta, deixou-a escancarada e caminhou de leve para o háll onde se pôs à escuta. Ouviu o rumor das manhãs de verão; uma abelha batendo de encontro à vidraça de uma das janelas e um bulício confuso e distante nas barracas atrás da casa. Fora isto, o silêncio era profundo, cálido e tranquilizante .
Bond caminhou cautelosamente através do hall e pelas escadas acima, assentando os pés inteiros no chão e usando as extremidades dos degraus onde havia menos probabilidade de a madeira estalar. Não se ouvia barulho no corredor, mas Bond viu que sua porta, lá no fim do mesmo, estava aberta. Retirou o revólver da axila e foi seguindo depressa pela passagem atapetada.
Krebs estava de costas para ele. Achava-se ajoelhado no meio do quarto com os cotovelos no chão. Suas mãos se encontravam nas rodas do fecho de segredo da pasta de couro de Bond. Toda sua atenção focalizava-se no estalido das linguetas do fecho.
O alvo era tentador, e Bond não hesitou. Seus dentes apareceram num sorriso cruel, deu dois passos rápidos para dentro do quarto e mandou o pé com violência.
Toda sua força se concentrava na ponta do sapato, e seu equilíbrio e tempo foram perfeitos.
Um grito de gralha partiu de Krebs quando, como a caricatura de um sapo pulando, saltou por cima da pasta de Bond mais ou menos um metro adiante, batendo na frente da cômoda de mogno. Sua cabeça foi de encontro ao centro com tanta fôrçia, que a pesada peça dançou na base. O grito foi abruptamente interrompido, e ele tombou esticado e inerte sobre o tapete, ali permanecendo.
Bond ficou olhando e esperando ouvir o som de passos apressados, mas o silêncio continuou a reinar dentro da casa. Passou por cima do corpo, curvou-se sobre ele e ajeitou-o de costas. O rosto em torno do borrão do bigode amarelo estava pálido e um pouco de sangue escorria de um corte no alto da fronte. Os olhos continuavam fechados, e a respiração normal.
Bond ajoelhou-se num lado só e começou a dar uma busca minuciosa em todos os bolsos do terno alinhado, cinzento, de listas fininhas, que o homem trajava, colocando desapontado o magro conteúdo no tapete ao lado do corpo. Não havia caderninhos de nota nem papéis. Os únicos objetos de interesse eram um molho de chaves-mestras, uma faca de mola com uma lâmina de estilete bem amolada e uma espécie de cassetete de couro preto em forma de trouxa. Bond guardou essas coisas no bolso, foi até a mesinha de cabeceira e pegou a garrafa intacta de água de Vichy.
Foram necessários cinco minutos para fazer Krebs voltar a si e fazê-lo sentar-se com as costas apoiadas na cômoda. Mais cinco para que recuperasse a voz. Pouco a pouco a cor foi voltando-lhe ao rosto e a astúcia aos olhos.
— Não respondo perguntas a não ser a Sir Hugo — declarou quando Bond começou o interrogatório. — Você não tem o direito de me fazer perguntas. Eu cumpria meu dever.
Sua voz era mal-humorada e segura de si.
Bond segurou a garrafa vazia de Vichy pelo gargalo.
— Refuta novamente. Do contrário, eu lhe bato com isto até quebrar, e depois usarei o gargalo para alguma cirurgia plástica. Quem lhe mandou revistar meu quarto?
— Leck mich am Arsch — Krebs cuspiu o insulto obsceno na cara de Bond.
Este curvou-se e vibrou-lhe violenta pancada nas canelas.
O corpo de Krebs dobrou-se mas, quando Bond tornou a levantar o braço, ergueu-se subitamente do chão e mergulhou por baixo da garrafa que descia. O golpe pegou-o rijo no ombro, porém não lhe cortou o ímpeto, e ele se encontrou do outro lado da porta, já no meio do corredor, antes de Bond partir em sua perseguição.
Bond parou então do lado de fora da porta e observou a figura ligeira desaparecer pelas escadas, fora de suas vistas. Em seguida, o rinchar das solas de borracha descendo às pressas as escadas se fez ouvir até atravessar o hall. Bond riu abruptamente para si mesmo, voltou para o quarto e fechou a porta. Além de quase arrebentar a cabeça do sujeito, tudo indicava que não arrancaria nada dele. Animal astucioso. Seus ferimentos não poderiam ter sido assim tão maus, no fim das contas. Bem, caberia a Drax castigá-lo. A não ser, naturalmente, que Krebs estivesse executando suas ordens.
Pondo em ordem a confusão do seu quarto, Bond sentou-se na cama e olhou a parede do lado oposto com olhos que nada viam. Não tinha sido apenas o instinto que o levara a dizer a Drax que iria até o ponto do tiro, em vez de voltar para a casa. Passara-lhe seriamente pela ideia o fato de que a espionagem de Krebs era feita por ordem de Drax e que este organizava seu próprio sistema de segurança. Entretanto, de que maneira isto se entrosava com as mortes de Tallon e Bartsch? Ou o duplo assassínio teria sido uma coincidência sem nenhuma relação com as marcas do mapa e as impressões digitais de Krebs?
Como que chamado pelos seus pensamentos, bateram à porta, e o mordomo entrou. Vinha seguido por um sargento da polícia, com o uniforme de patrulheiro de estrada, que fez continência e entregou um telegrama a Bond. Bond levou-o até a janela. Vinha assinado: Baxter, que queria dizer Vallance, e dizia:
PRIMEIRA CHAMADA VEIO DA CASA SEGUNDO LUGAR NEVOEIRO EXIGIU FUNCIONAMENTO BUZINA DE NEVOEIRO DE MODO QUE NAVIO FOI OUVIDO VÍRGULA NÃO OBSERVOU NADA TERCEIRO LUGAR SUA ÁREA SUSPEITA FICA MUITO PERTO PRAIA ASSIM FORA DAS VISTAS DOS ÚLTIMOS PONTOS DOS GUARDA-COSTAS DE SAINT MARGARET OU DEAL.
— Obrigado — disse Bond. — Não tem resposta.
Depois de fechar a porta, chegou o isqueiro aceso ao telegrama e depois deixou-o cair na lareira, reduzindo os restos queimados a pó com a sola do sapato.
Dali nada mais se aproveitava, exceto que a chamada de Tallon para o Ministério poderia realmente, ter sido ouvida por alguém da casa, o que teria resultado na busca em seu quarto, que, por sua vez, teve como consequência a morte do major. Mas que dizer de Bartsch? Se tudo aquilo fazia parte de uma coisa muito maior, como poderia ser ligada a um atentado de sabotagem ao foguete? Não seria muito mais simples supor que Krebs era um espião nato, ou ainda mais provável, que estivesse trabalhando para Drax, que parecia ser meticulosamente cônscio da necessidade de segurança e que podia também querer certificar-se da lealdade de seu secretário, de Tallon, e, sem dúvida, depois do encontro no Blades, de Bond? Não seria agir justamente como o chefe (e Bond conhecera alguns que se adaptariam perfeitamente ao tipo) de um projeto super-secreto durante a guerra, que reforçava a segurança oficial com seu próprio sistema de espionagem particular?
Se essa teoria fosse correta, restava apenas o duplo assassínio. Agora que Bond fora contagiado pela magia e tensão do “Explorador da Lua”, os fatos referentes aos tiros histéricos pareciam mais razoáveis. Quanto às marcas no mapa, poderiam ter sido feitas num dia qualquer do ano anterior; os binóculos para noite eram isto apenas: binóculos para noite, e os bigodes dos homens apenas uma quantidade de bigodes.
Bond sentou-se no quarto silencioso, remexendo as peças do quebra-cabeças, de modo que dois quadros inteiramente diversos se alternavam em sua mente. Num deles o sol brilhava, tudo estava límpido e inocente como o dia. O outro era uma confusão culposa de motivos, suspeitas obscuras e interrogações de pesadelo.
Quando o gongo soou para o almoço, ele ainda não sabia que quadro escolher. Para adiar a decisão, afastou do espírito tudo, menos as perspectivas da tarde que passaria sozinho com Gala Brand.
CAPITULO 16
UM DIA GLORIOSO
Era uma tarde maravilhosa, azul, verde e dourada. Quando deixaram a faixa de concreto passando pelo portão da guarda, perto do ponto de tiro, agora ligado à base de lançamento por um grosso cabo, pararam um momento à beira do grande penhasco calcário e ficaram olhando todo o trecho da Inglaterra onde César ancorara pela primeira vez dois mil anos atrás.
À esquerda, o tapete de grama verde, salpicado de pequeninas flores silvestres descia gradativamente para as longas praias de pedregulho de Walmer e Deal, que se curvavam para Sandwich e a baía. Mais além, os penhascos de Margate, surgindo brancos dentre a névoa distante que ocultava o North Foreland, guardavam a mancha cinzenta do aeródromo de Manston, acima do qual aviões a jato norte-americanos descreviam suas parábolas no céu. Em seguida, vinha a Ilha de Thanet e, fora do raio visual de ambos, a embocadura do Tâmisa.
A maré era baixa, e os Goodwins pareciam dourados e suaves dentro do azul cintilante do Canal mostrando apenas o conjunto de mastros e cordames que se esticavam para contar a verdadeira história. As letras brancas do navio-farol South Goodwin estavam fáceis de ler, e até o nome do navio irmão, mais para o norte, surgia branco contra o vermelho do casco.
Entre as areias da costa, ao longo do canal de doze braças do Inner Leads, havia meia dúzia de navios navegando pelo Downs. O som ritmado de seus motores destacava-se claramente dentro do mar calmo e, entre as areias cruéis e o contorno nítido da costa francesa, viam-se navios de todas as procedências rumando para seus destinos — navios de passageiros de linha regular, navios mercantes, rústicas chalupas holandesas e até uma esguia corveta correndo para o sul, talvez para Portsmouth. Até onde a vista alcançava, o lado oriental mais próximo da Inglaterra estava coalhado de embarcações, dirigindo-se para os horizontes distantes, para um porto nacional ou para o outro lado do mundo. Era um panorama cheio de colorido, excitação e romance, e as duas criaturas, ali na borda do penhasco, mantinham-se em silêncio enquanto permaneciam por algum tempo observando tudo.
A paz foi turbada por dois uivos de sirena, provenientes da casa, e eles se viraram, para olhar o mundo negro e feio de concreto, que haviam banido de seus espíritos. Enquanto olhavam, uma bandeira vermelha foi hasteada por cima da cúpula de lançamento, e duas ambulâncias da RAF, com as cruzes vermelhas nos lados, irromperam do renque de arvoredo, na direção do muro, e aí estacaram.
— Vai começar a operação combustível — disse Bond. — Vamos principiar nosso passeio. Nada haverá para ver e, se por acaso acontecesse alguma coisa, nós não sobreviveríamos, quase com certeza, no ponto em que nos encontramos.
A moça sorriu.
— É verdade. E eu já estou cheia de olhar para todo esse concreto.
Seguiram ambos pelo declive suave e, dentro em pouco, encontravam-se já longe do alcance de tiro e da alta cerca de arame.
O gelo da reserva de Gala derretia-se rapidamente ao sol.
A alegria exótica de sua toalete, uma blusa de algodão listrada de branco e preto, metida num cinto largo, pespontado à mão, também preto, encimava uma saia meio curta, rosa shocking, e o conjunto parecia contagiá-la. Era impossível, para Bond, reconhecer a mulher frígida e distante da noite anterior naquela que caminhava agora a seu lado, rindo e feliz de sua ignorância a respeito dos nomes de flores selvagens: a erva de S. Pedro, a fumaria e outras, em tons azuis, que rodeavam seus pés.
Triunfalmente, encontrou uma orquídea selvagem e colheu-a .
— Você não faria isso, se soubesse que as flores gritam quando são colhidas — disse Bond.
Gala olhou para ele.
— Que quer você dizer com isso? — perguntou, suspeitando um gracejo.
— Ah, você não sabia? — Bond sorriu, ao observar a reação de Gala. — Existe um professor hindu, chamado Bhose, que escreveu um tratado sobre o sistema nervoso das flores. Mediu a reação delas à dor. Chegou mesmo a registrar o grito de uma rosa, quando é colhida. Deve ser um dos sons mais lancinantes do mundo, não lhe parece? Pois eu ouvi algo de semelhante quando você colheu essa flor.
— Não acredito — disse Gala, olhando desconfiada para a raiz arrancada. — Mas, de qualquer maneira — acrescentou, maliciosa — eu jamais pensaria que você fosse capaz de sentimentalismos. As pessoas, no seu Serviço, não fazem de matar um ofício? E não são apenas flores. São pessoas.
— As flores não podem atirar em nós, também — disse Bond.
Gala olhou a flor.
— Agora você me fez sentir como se fosse uma criminosa. É muita maldade sua. Mas — confessou relutante — terei de descobrir essa história do hindu, e se você tiver dito a verdade, nunca mais apanharei uma flor enquanto viver. Que faço com esta? Você me fez sentir com as mãos sangrando completamente.
— Dê para mim. De acordo com você, minhas mãos já estão gotejando sangue. Um pouco mais não fará diferença.
A moça ofereceu-lhe a flor, e suas mãos se tocaram.
— Você poderá colocá-la no cano do revólver — falou, para disfarçar o instante do contato.
Bond riu:
— Quer dizer que os orifícios não servem só para decoração. Mas a minha é uma pistola automática, e eu deixei-a no quarto.
Enfiou o talo da flor numa das casas de sua camisa de algodão:
— Achei que um coldre de ombro chamaria um pouco a atenção sem o paletó para cobri-lo. Depois não acredito que ninguém vá mexer em meu quarto esta tarde.
Numa concordância tácita, eles se afastaram do momento de intimidade. Bond contou sua descoberta a respeito de Krebs e a cena do quarto.
— Foi bem feito para ele. Nunca confiei nesse homem. Mas o que é que diz Sir Hugo?
— Falei com ele antes do almoço — respondeu Bond.
—Entreguei-lhe a faca e as chaves de Krebs como prova. Ficou furioso e saiu imediatamente à procura do sujeito, resmungando de cólera. Quando voltou, me disse que Krebs parecia já se encontrar num estado deplorável e perguntou se eu não me dava por satisfeito ao saber que fora bem castigado. Repetiu toda aquela história de não querer perturbar sua equipe na última hora, etc. e tal. De modo que concordei em que fosse mandado de volta à Alemanha na próxima semana e que, enquanto isto, se considerasse preso sob palavra — sendo-lhe permitido apenas deixar o quarto vigiado.
Bond e sua companheira desceram um caminho íngreme do penhasco até a praia, virando à direita, para Royal Marine, em Deal. Caminharam em silêncio até chegarem a uma extensão de duas milhas de uma praia coberta de cascalho que, durante o tempo de maré baixa, corre entre os elevados penhascos brancos até a baía de Sta. Margarida.
Enquanto esmagavam lentamente as pedrinhas macias, Bond contou tudo que lhe passara pela cabeça desde o dia anterior. Não guardou nada. Relatou todos os passos tomados, as pistas falsas que seguira em cada um dos pontos de partida, não deixou nada por comentar, exceto uma tênue suspeita mal fundada e um amontoado de indícios que terminavam todos na mesma interrogação. . . onde estava o X da história? Onde achar um plano no qual os indícios se encaixassem? E sempre a mesma resposta: nada do que Bond sabia ou suspeitava parecia ter qualquer relação concebível com a segurança contra a sabotagem do “Explorador da Lua”. Isto, no entanto, quando tudo fora dito e feito, era a única coisa com que ele e a moça tinham que ver. Não com a morte de Tallon e Bartsch, ou com o ordinário Krebs, mas somente com a proteção de todo o projeto relacionado com o “Explorador da Lua” contra seus possíveis inimigos.
— Não é verdade? — finalizou Bond.
Gala parou e ficou um momento olhando por entre as rochas e algas a calma cintilação das ondas do mar. Estava suada e ofegante depois da caminhada difícil pelo caminho de cascalhos. Pensava como seria maravilhoso tomar um banho de mar — voltar por um momento aos dias da infância à beira-mar, antes de sua vida ter sido presa nesta estranha profissão, cheia de emoções decepcionantes e tensões nervosas. Olhou o rosto moreno e cruel do homem ao seu lado. Será que teria momentos de anseio pelas coisas simples e calmas da vida? Com certeza não. Gostava de Paris, Berlim e New York, trens, aviões, comida cara e, sim, certamente, de mulheres caras.
— Então? — perguntou Bond, conjeturando se ela ia apresentar algum indício que ele não percebera. — Que é que acha?
— Desculpe. Eu estava sonhando acordada. Não, eu acho que você tem razão. Estou aqui desde o princípio e, apesar de ter notado coisinhas estranhas de vez em quando, fora os tiros resultando em duas mortes, claro, não vi absolutamente nada de incorreto. Todos os componentes da equipe, de Sir Hugo para baixo, estão de corpo e alma dedicados ao foguete. Vivem unicamente para isso, e tem sido maravilhoso ver tudo se desenvolver. Os alemães são trabalhadores ao extremo — posso bem acreditar que Bartsch tenha perecido pela tensão exagerada dos nervos — gostam de ser dirigidos por Sir Hugo, e ele gosta de dirigi-los. Eles adoram-no. Quanto à segurança, o local está sólido e bem guarnecido. Tenho certeza de que se alguém quisesse se aproximar do “Explorador da Lua” seria feito em pedaços. Concordo com você a respeito de Krebs e que ele, provavelmente, estivesse agindo sob as ordens de Drax. Foi por isto que não me dei o trabalho de ir contar--lhe quando ele andou mexendo nas minhas coisas. Não havia nada para ele encontrar, naturalmente. Só cartas particulares e coisas assim. Seria típico de Sir Hugo procurar certificar-se com absoluta minúcia. Aliás, devo dizer que o admiro por isto — acrescentou com franqueza. — Ele é um homem cruel, com maneiras deploráveis, e não muito simpático debaixo de toda aquela cabelada vermelha, mas eu gosto de trabalhar para ele e estou ansiosa para que o “Explorador da Lua” seja um sucesso. Viver ao lado dele durante tanto tempo fez com que eu me sentisse exatamente como seus homens.
Gala levantou os olhos para ver a reação do companheiro. Este baixou a cabeça, assentindo.
— Depois de um dia apenas, eu posso compreender isto — disse. — Creio que concordo com você. Não há nada em que nos basearmos, exceto minha intuição, e isto é uma coisa que não conta. O principal é que o “Explorador da Lua” parece seguro, tão seguro quanto as joias da Coroa e, provavelmente, ainda mais.
Bond sacudiu os ombros impaciente, aborrecido consigo mesmo, por renegar as intuições que contavam tanto em seu trabalho.
— Vamos embora — convidou quase rude. — Estamos perdendo tempo.
Compreendendo, a moça sorriu e seguiu o companheiro.
Contornando a próxima inclinação do penhasco, chegaram à base do elevador, coberto de algas marinhas e crustáceos . . . Cinquenta jardas mais adiante alcançaram o dique, construção forte, tubular, de ferro, calçado de tiras de aço entrelaçadas, que avançava sobre as rochas e mais além.
Entre os dois, e talvez uns vinte pés acima da face do penhasco, escancarava-se a boca negra e larga do túnel de exaustão, que subia inclinada dentro do penhasco para o chão de aço sob a popa do foguete. Da borda inferior da cavidade, giz derretido caía como lava, e viam-se respigos da matéria por cima de todos os pedregulhos e rochas lá embaixo. Com os olhos da imaginação, Bond via um rastro ofuscante de flama branca surgir uivando da parede do penhasco e ouvia o sibilo e borbulhar, quando o giz líquido se derramava na água.
Levantou os olhos para a estreita faixa da cúpula de lançamento que aparecia acima da borda do penhasco, duzentos pés acima, imaginando os quatro homens com suas máscaras contra gases, vestidos com roupas de asbetos, observando os instrumentos medidores enquanto o terrível líquido explosivo pulsava pelo tubo negro de borracha até o estômago do foguete. De repente, percebeu que se encontravam dentro do raio de ação, se alguma coisa não desse certo no enchimento de combustível.
— Vamos sair daqui — disse à pequena.
Quando umas cem jardas se interpuseram entre eles e a cavidade, Bond parou e olhou para trás. Imaginou-se acompanhado de mais seis homens fortes e durões, com todos os instrumentos necessários — e conjeturou como daria início a um ataque à base, vindo do mar — embarcações presas ao cais, quando a maré estivesse baixa; uma escada na borda da cavidade? e depois o quê? Seria impossível galgar as paredes de aço polido do túnel exaustor. Seria uma questão de disparar uma arma antitanque através do chão de aço por baixo do foguete, seguida de algumas granadas de fósforo, e esperar que alguma coisa pegasse fogo. Negócio meio confuso, mas que talvez desse resultado. Sair depois seria complicado. Seriam alvos fáceis para quem estivesse no topo do penhasco. Mas isto não perturbaria um esquadrão suicida russo. Era tudo muito possível de realizar.
Gala estivera ao seu lado, observando os olhos que mediam e especulavam.
— Não é tão fácil como você pensa — disse, vendo-lhe a testa franzida. — Mesmo quando a maré é alta e o mar muito forte, colocam guardas ao longo do cimo do penhasco de noite. Eles têm holofotes, Brens e granadas. As ordens que recebem são de atirar, e fazerem as perguntas depois. Naturalmente seria melhor iluminar completamente o penhasco à noite. Mas isto só serviria para tomar a base um alvo certeiro. Estou convencida de que pensaram em tudo.
Bond continuava franzindo a testa.
— Se eles tivessem cobertura do ataque por um submarino ou uma embarcação, um grupo eficiente ainda conseguiria realizar o negócio. Vai ser o diabo, mas eu vou nadar. O mapa do Almirantado diz que existe um canal de doze braças ali adiante, mas eu gostaria de dar uma olhada. Deve ter muita água no final do dique, contudo eu me sentirei mais feliz quando verificar com meus próprios olhos.
Sorriu para a moça:
— Por que você não vem nadar também? A água deve estar bastante fria, mas lhe faria bem, depois de ter estado a cozinhar-se dentro daquela cúpula de concreto a manhã inteira .
Os olhos de Gala se iluminaram.
— Acha que eu posso? — perguntou, hesitante. — Estou com um calor tremendo. Mas que é que nós vamos vestir?
Corou ao lembrar-se de suas calcinhas e porta-seios minúsculos e de nylon quase transparentes.
— Deixe isto pra lá — disse Bond aèreamente.
— Você deve ter alguns trapinhos vestidos aí por baixo, e eu estou de short. Estaremos perfeitamente respeitáveis, e não há ninguém por aqui para ver. Depois, eu prometo não olhar — mentiu alegremente, seguindo na frente até a próxima inclinação do penhasco.
— Você se despe atrás dessa rocha, e eu desta outra.
— Vamos. Não seja tola. Tudo faz parte de nossas obrigações .
Sem esperar a resposta dela, encaminhou-se para trás de uma rocha elevada, tirando a camisa enquanto andava.
— Ora, muito bem — disse Gala, aliviada por ter a resolução sido tirada de suas mãos. Foi para trás de outra rocha e lentamente desabotoou a saia.
Quando espiou nervosamente para fora, Bond já ia na metade do trecho de áspera areia marrom que seguia por entre os pequenos lagos para onde a maré enchente rodopiava entre os verdes e negros detritos das rochas... O rapaz tinha uma aparência elástica e a pele bronzeada. O short azul era tranquilizador.
Pisando de leve, ela seguiu-o e, de repente, estava dentro d’água. Imediatamente nada mais teve importância, fora do gelo aveludado do mar, a beleza das manchas de areia por entre os cabelos ondulados das algas marinhas que via nas profundezas verdes e claras abaixo dela quando mergulhou a cabeça e nadou paralelamente à praia num rápido crawl.
Ao se encontrar ao nível do dique, parou um momento para tomar fôlego. Não se via sinal de Bond, que ela vira nadando vários metros à frente. Bateu com os pés fortemente dentro da água para manter viva a circulação e então recomeçou novamente, pensando nele sem querer, pensando no corpo rijo e moreno que devia estar ali por perto, entre as rochas, talvez, ou mergulhando para a areia, a fim de calcular a profundidade da água com que um inimigo podia contar.
Virou-se para procurá-lo de novo, e foi então que ele surgiu inesperadamente do mar, por baixo dela. Sentiu o abraço rápido e apertado e o contato breve mas forte dos lábios dele nos seus.
— Vá para o diabo — exclamou furiosa, mas o rapaz já bavia mergulhado novamente, e quando ela golfou uma porção de água do mar, conseguindo orientar-se, ele nadava alegremente a vários metros de distância.
Gala voltou-se e nadou displicente, sentindo-se bastante ridícula, porém resolvida a pô-lo no seu lugar. Era exatamente como tinha pensado. Esse pessoal do Serviço Secreto sempre encontrava tempo para o sexo, por mais importante que fosse a missão de que se encarregavam.
Mas seu corpo vibrava obstinadamente com o imprevisto do beijo, e o dia luminoso parecia ter adquirido nova beleza. Enquanto nadava mais para fora, virou-se e olhou os dentes brancos como leite, dentes da Inglaterra que rosnavam, olhou o braço distante de Dover, o confete branco e preto dos corvos e gaivotas, jogados contra o vivido pano de fundo dos campos verdes, e chegou à conclusão de que tudo seria permitido num dia assim e que, só por aquela vez, ela o perdoaria.
Meia hora depois estavam deitados, esperando que o sol viesse secá-los, separados pela respeitável distância de um metro de areia, ao pé do penhasco.
O beijo não fora mencionado, mas os esforços de Gala para manter uma atitude de alheamento haviam tombado com a excitação de examinar uma lagosta que Bond apanhara com as mãos, ao mergulhar. Relutantemente, tornaram a colocá-la numa das cavidades da rocha e ficaram observando seus movimentos de volta ao abrigo das algas marinhas. Agora, ali estavam, cansados e alegres com o banho gelado, rezando para que o sol não se escondesse atrás do penhasco acima de suas cabeças antes de estarem aquecidos e suficientemente secos para poder vestirem novamente as roupas.
No entanto, não eram só estes os pensamentos de Bond. O lindo corpo estirado da pequena ao seu lado, incrivelmente erótico na ênfase marcante das calcinhas e porta-seios agarrados à pele, interpunha-se entre ele e sua preocupação com o “Explorador da Lua”. Além do mais, não havia nada que ele pudesse fazer pelo foguete durante mais uma hora. Ainda não eram cinco, e a tomada de combustível não terminaria senão depois das seis.
Seria somente àquela hora que ele poderia aproximar-se de Drax para certificar-se de que nas duas próximas noites haveria um acréscimo de guardas no penhasco e que eles possuíam as armas adequadas. Pois verificara com os próprios olhos que havia muita água, mesmo com a maré vazante, possibilitando a chegada de um submarino.
De modo que contava pelo menos com um quarto de hora livre antes de poderem voltar.
No intervalo havia essa pequena. O corpo semidespido surgia acima dele na superfície, quando nadava em baixo dela; o beijo rápido, forte e suave ao mesmo tempo, com os braços em torno dele; as colinas pontudas de seus seios, tão próximas e o estômago macio e raso, descendo para o mistério das coxas fortemente cerradas.
Para o inferno, toda essa história.
Arrancou o espírito dessa febre e fitou diretamente o infindável azul do céu, forçando-se a observar a beleza das gaivotas esvoaçantes ao se alinharem sem nenhum esforço entre as correntes de ar que giravam sobre o alto topo dos penhascos acima deles. Mas a plumagem sedosa e branca do colo das aves desviou novamente seus pensamentos para ela, não lhe dando descanso.
— Por que você se chama Gala? — perguntou, para interromper a sequência de pensamentos cálidos e persistentes.
A moça riu.
— Durante todo meu tempo de escola mexiam comigo por causa disso — respondeu, e Bond se impacientou diante da voz clara, fácil. — Depois, quando pertenci às Wrens e ainda pela metade da força policial de Londres. Mas meu verdadeiro nome é ainda pior. É Galateia. Era o cruzador onde meu pai servia quando eu nasci. Creio que Gala não é tão ruim assim. Quase me esqueci do meu nome de verdade. Estou sempre precisando trocá-lo, agora que estou na Seção Especial.
— Na Seção Especial. Na Seção Especial. Na. . .
Quando a bomba cai. Quando o piloto calcula mal, e o avião bate antes de tocar a pista de aterrissagem. Quando o sangue deixa o coração, e a consciência foge, há pensamentos no cérebro, ou palavras, ou talvez uma frase musical que se repete durante os poucos segundos antes da morte, como o som moribundo de um sino.
Bond não estava morto, mas as palavras ainda estavam dentro de sua mente, vários segundos depois de tudo haver acontecido.
Desde o momento em que tinham-se deitado na areia, recostados no penhasco, enquanto seus pensamentos se concentravam em Gala, seus olhos haviam observado distraidamente duas gaivotas brincando em redor de uma ponta de palha que estava na beira do ninho, numa pequena saliência, cerca de uns trezentos metros abaixo do cume distante do penhasco. Inclinavam os pescoços e pareciam cumprimentar, em seu jogo amoroso, só com as cabeças, que Bond divisava contra o branco ofuscante do céu. Então o macho voava para longe e, imediatamente voltava à saliência da rocha, para recomeçar seu jogo de amor.
Bond observava-os sonhadoramente enquanto ouvia o que a moça dizia, quando, subitamente, as duas gaivotas fugiram da saliência da rocha com um só grito de pavor. No mesmo instante viu-se um rolo de fumaça negra e ouviu-se um estrondo amortecido vindo do alto do penhasco. Em seguida, uma grande quantidade de giz branco, bem acima das cabeças de Bond e Gala, pareceu desligar-se para fora, ziguezagueando fragmentos pela encosta.
Quando Bond se deu conta do que fazia, achou-se deitado em cima de Gala, o rosto apertado contra o dela, e percebeu que o ar estava cheio de trovões, que sua respiração estava abafada, e que o sol desaparecera. Sentia as costas dormentes e doendo sob um grande peso, e sua orelha esquerda, além do eco do trovão, guardava o som de um grito sufocado.
Mal teve consciência do se passava, e precisou esperar até que seus sentidos voltassem à vida.
A Seção Especial. O que foi que ela disse a respeito da Seção Especial?
Fez esforços inauditos para se mexer. Apenas no braço direito, o braço mais próximo do penhasco, ainda havia algum movimento, mas quando puxou o ombro, o braço ficou mais livre até que, finalmente, com um impulso grande para trás, a luz e o ar chegaram até eles. Lutando no nevoeiro de poeira de giz, alargou o buraco, até a cabeça poder retirar seu peso esmagador de cima de Gala. Sentiu o leve movimento, quando ela virou a cabeça para um lado, procurando a luz e o ar. Uma torrente de poeira e pedras no buraco que ele limpara fê-lo cavar ferozmente mais uma vez. Pouco a pouco, aumentou o espaço até conseguir firmar o cotovelo direito, e então, tossindo ao ponto de imaginar que os pulmões iam arrebentar, impulsionou o ombro direito para cima até que, de repente, livrou-o, bem como a cabeça.
Seu primeiro pensamento foi que tinha havido uma explosão no “Explorador da Lua”. Levantou os olhos para o penhasco e depois para a praia. Não. Estavam a cem metros da base. Foi apenas na linha do horizonte, diretamente acima deles, que um grande pedaço fora comido no penhasco.
Em seguida pensou no perigo imediato que corriam. Gala gemia, e ele sentia o frenético bater de seu coração contra o próprio peito, mas a máscara pavorosa e branca de seu rosto estava agora livre para respirar, e ele se pôs então a girar o corpo de um lado para o outro em cima dela, a fim de tentar aliviar a pressão de seus pulmões e do estômago. Lentamente, polegada por polegada, seus músculos partindo-se com o esforço, procurou caminho sob a pilha de poeira e detritos até o lado do penhasco, onde sabia que o peso seria menor.
Finalmente livrou o peito e pôde ajoelhar-se ao lado da companheira. O sangue pingava de suas costas e braços feridos, misturando-se com a poeira de giz que continuamente caía na parte lateral dos buracos que fizera mas verificou que não tinha ossos quebrados e, com a fúria do trabalho de salvamento, não sentiu dores.
Grunhindo e tossindo, sem uma pausa para respirar, ergueu-a e fê-la sentar-se e, com a mão sangrando, limpou um pouco do giz de seu rosto. Depois, livrando as pernas da tumba de giz, levantou-a e levou-a até uma elevação dos detritos, com as costas voltadas para o penhasco.
Ajoelhou-se e olhou aquele horrível espantalho branco que, minutos antes, fora uma das mais lindas moças que já vira. Enquanto olhava os filêtes de sangue escorrendo-lhe pelo rosto, rezou para que seus olhos se abrissem.
Quando, segundos mais tarde, eles se abriram, o alívio foi tão grande, que Bond se afastou e sofreu tremenda crise de náuseas.
CONTINUA
A um quilômetro da base, aproximadamente, Drax estacou.
— Eu explicarei a geografia — disse ele. — Walter, siga na frente. Já devem estar esperando por você, para dar outra olhada naquelas barbatanas... Mas não se preocupe demasiado com elas, meu caro amigo. O pessoal das ligas de alto teor sabe muito bem o que está fazendo. E agora — continuou Drax, olhando para Bond, enquanto fazia um gesto na direção da cúpula branca como leite — ali dentro está o “Explorador”. O que você vê é o topo de uma plataforma que foi escavada a mais de quarenta pés de profundidade, no terreno calcário. As duas metades da cúpula são abertas hidràulicamente e recolhidas para trás, ao nível do muro de vinte pés. Se agora estivessem abertas, você veria o cone final do “Explorador”, ao nível do muro. Ali — apontou para uma sombra retangular que estava já quase fora do campo visual de ambos, na direção de Deal — fica a casamata de controle, de onde se comanda o disparo. É um blocausse em concreto. Está cheio de dispositivos de radar de rastreio — tanto o radar de velocidade Doppler como o radar de rastreio de direção de voo, por exemplo. As informações são fornecidas por meio de vinte canais telemétricos, alojados no cone do foguete. Também existe ali dentro uma enorme tela de televisão, de modo que se pode acompanhar o comportamento do foguete no interior da cápsula, depois de iniciado o voo. Um outro conjunto de televisores serve para acompanhar o início da ascensão. Ao lado da casamata, há um elevador que desce ao longo do penhasco. Uma boa parte das peças e maquinismos foi trazida para a base por via marítima e transportada até cá em cima por meio desse monta-cargas. Aquele gemido que você escuta, vem da central elétrica, ali mais adiante — e Drax fez um gesto vago, em direção a Dover. — Os alojamentos dos homens e a casa são protegidos pelo muro à prova de deslocação de ar. Mas quando fizermos o lançamento, não deverá haver ninguém dentro de um raio de ação de um quilômetro e meio, a partir da base, exceto os técnicos do Ministério e a equipe da B.B.C., que estará colocada na casamata de comando. Espero que o muro aguente bem a deslocação de ar. Walter diz que a base e uma boa parte da faixa de concreto derreterão com o calor. E é tudo. Nada mais precisa saber, até entrarmos. Vamos.
Bond tornou a observar o tom rude de comando. Seguiu em silêncio, atravessando uma zona banhada de luar, até chegarem à parede de suporte da cúpula. Uma lâmpada vermelha brilhava na parede, por cima de uma porta de aço chapeado. Iluminava um grande letreiro que dizia em inglês e alemão:
PERIGO DE MORTE.
ENTRADA PROIBIDA QUANDO A LÂMPADA VERMELHA ESTIVER ACESA.
TOQUE A CAMPAINHA E ESPERE.
Drax apertou o botão por debaixo do letreiro, e ouviu-se o som abafado de uma campainha de alarma.
— Pode estar alguém trabalhando com o oxiacetileno, ou fazendo qualquer outro trabalho delicado — explicou Drax. — Basta que desvie sua atenção do serviço, pela fração de um segundo, caso alguém entre sem aviso, e isso poderia resultar num erro bastante caro. Todos largam os utensílios quando a campainha soa, e só recomeçam quando veem de que se trata.
— Drax afastou-se um pouco da porta e apontou para uma série de gradeados dispostos logo abaixo do remate da parede. — São os exaustores de ventilação — continuou ele explicando.
— O ar condicionado no interior da cúpula mantém-se constantemente a setenta graus Farenheit.
A porta foi aberta por um homem que empunhava um cassetete de policial e trazia um revólver no cinturão. Bond seguiu Drax até uma pequena antecâmara. Esta nada tinha senão um banco e uma fileira bem arrumada de chinelos de feltro.
— Terá de calçá-los — disse Drax, sentando-se e tirando os sapatos. — Poderia escorregar e esbarrar contra alguém. O melhor é deixar aqui também seu casaco. Setenta graus Farenheit é uma temperatura bastante elevada.
— Obrigado — disse Bond, lembrando-se da Beretta encaixada sob a axila. — A verdade é que não sinto calor algum.
Sentindo-se como um visitante num teatro em dia de ensaios, Bond seguiu Drax através de uma porta de comunicação, passando depois por um estreito corredor e desembocando numa série de projetores que, instintivamente, o fizeram levar a mão aos olhos, enquanto com a outra se agarrava ao gradeado do corrimão protetor, à sua frente.
Quando retirou a mão, foi brindado com uma cena de tal esplendor que, durante vários minutos, ficou sem fala, os olhos fascinados pela terrível beleza da mais poderosa arma existente sobre a Terra.
CAPITULO 12
O “EXPLORADOR DA LUA”
Era como se o tivessem metido no tambor polido de um gigantesco revólver. Partindo do chão, a mais de doze metros abaixo da varanda onde se encontravam, erguia-se uma parede circular, de metal polido, no topo da qual, ele e Drax se colavam como duas moscas. No centro desse imenso cilindro, que mediria pelo menos uns nove metros de diâmetro, estava colocado um gigantesco lápis de cromo, refulgente, cuja ponta, aguçando-se numa antena fina como agulha, parecia roçar o telhado, seis ou sete metros acima de suas cabeças.
O cintilante projétil descansava numa base cônica de aço, que se erguia do chão por entre as extremidades de três barbatanas em forma de delta, pronunciadamente puxadas para trás, e que parecia tão afiadas quanto bisturis de cirurgião. Mas, fora isso, nada mais empanava o brilho sedoso dos quinze metros de aço cromado e polido, exceto as duas garras que saíam das paredes e colhiam a cintura do foguete, por entre espessos acolchoados de espuma de borracha.
No ponto em que as garras tocavam o projétil, viam-se pequenas portas de acesso, abertas na superfície de aço e, quando Bond olhou para baixo, divisou um homem que saía agachado por uma delas, até alcançar a estreita plataforma do monta-cargas instalado paralelamente ao bojo do “Explorador”. Depois, fechou a porta com a mão enluvada. Encaminhou-se a passos miúdos, equilibrando-se pela estreita ponte, até alcançar a parede, e fez girar uma manivela. Ouviu-se um profundo gemido de maquinismo, e a garra retirou seu suporte acolchoado do bojo do foguete, ficando suspensa no ar, como as patas dianteiras de um louva-a-Deus. Os gemidos do mecanismo alteraram-se para um tom mais cavo, e a plataforma do monta-cargas, lentamente, foi-se retraindo, em movimento de telescópio. Depois, tornou a esticar-se e foi pegar o foguete, com a garra, três metros mais abaixo. Seu operador esgueirou-se de novo pelo braço e abriu outra pequena porta de acesso ao interior, desaparecendo dentro do foguete.
— Provavelmente está verificando o sistema de alimentação de combustível dos tanques posteriores — disse Drax. — A alimentação é feita por gravidade. Um sistema bastante complexo. Que acha você disto? — Observou com prazer a expressão de êxtase, estampada no rosto de Bond.
— Uma das coisas mais lindas que eu já vi em toda a minha vida — respondeu Bond. Era fácil falar. Não se ouvia o menor som dentro do grande cilindro de aço, e as vozes dos homens apinhados lá embaixo, junto da cauda do foguete, não chegavam a eles senão como distante murmúrio. Drax apontou para cima e explicou:
— Veja o cone. O que está montado é apenas experimental, mas pode substituir-se, claro, por uma cápsula estratégica, com carga nuclear. Para este voo, irá cheia de instrumentos. Telêmetros e todas essas coisas. Depois, estão os giroscópios, bem defronte de nós. E, em seguida, quase exclusivamente, tanques de combustível até abaixo, quando temos então as turbinas, já próximas da cauda. Impulsionadas por vapor superaquecido, obtido na decomposição do peróxido de hidrogênio . O combustível, fluorina e hidrogênio... — olhou rapidamente para Bond. A propósito, isto é top secret, sabe?... pois o combustível, como dizia, baixa pelos tubos de alimentação e recebe a ignição logo que é introduzido no motor. Trata-se de uma espécie de explosão controlada, que impulsiona o foguete para o ar. Esse assoalho de aço onde o “Explorador” assenta agora, desliza então para fora, claro. Por baixo, há um enorme poço de exaustão. Tem saída para a base dos rochedos, do lado do mar. Amanhã você irá dar uma vista d’olhos. Parece uma gigantesca caverna, nada mais. Quando procedemos, há dias, a um teste estático, a substância calcária do terreno derreteu e correu para o mar como se fosse água. Espero que não acabemos por calcinar e destruir os famosos penhascos brancos de Dover, quando chegar a hora zero. Você gostaria de dar uma olhada nos trabalhos?
Bond seguiu em silêncio, quando Drax indicou o caminho, descendo por uma íngreme escada de ferro, que acompanhava a parede de aço em sua curvatura. Sentia agora invadir-se por uma onda de admiração e quase de reverência por esse homem e sua formidável realização. Como teria podido ele, Bond, deixar-se impressionar desfavoravelmente pela conduta infantil de Drax, à mesa de jogo? Mesmo os grandes homens têm suas fraquezas. E Drax necessitava dessa válvula de escape para a tensão a que o submetia a tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Tornava-se óbvio que Drax não podia confiar excessivamente em seus auxiliares direitos, de nervos à flor da pele. Dele sozinho devia partir a vitalidade e a confiança necessárias para manter elevado a moral de todos. Mesmo tratando-se de uma coisa tão insignificante quanto ganhar uma partida de bridge, devia ser importante para Drax estar-se assegurando constantemente da própria capacidade, procurando em tudo vaticínios de boa sorte e de êxito, chegando ao ponto de criar esses augúrios favoráveis por suas próprias mãos. Quem não suaria ou roeria as unhas, estando tanta coisa em jogo?
Enquanto contornavam a larga curva da escada, com suas figuras grotescamente refletidas na superfície cromada do foguete, como em um espelho mágico de feira, Bond sentia quase afeto pelo homem que, apenas há poucas horas, ele dissecara sem piedade e quase com ódio.
Quando chegaram à plataforma da base de aço do cilindro, Drax fez uma pausa e olhou para cima. Bond seguiu o olhar do outro. Visto naquela perspectiva, o “Explorador” dava-lhes a impressão de estar olhando para um fino cone vertical de luz, perdendo-se na abóbada cintilante, um feixe de luz que não era totalmente branco, mas de uma tonalidade acetinada de madrepérola. Havia nele alguns pontos vermelhos e brilhantes, refletidos por um gigantesco extintor de incêndios, de neve carbônica, colocado a pouca distância. Um homem em traje de amianto estava postado ao lado do extintor, que apontava seu bico de leque para a base do foguete. Havia também uma estria de cor violeta, cuja origem provinha de uma lâmpada fixada ao painel de instrumentos, na parede. Servia para controlar os movimentos da cobertura de aço em que se encontravam e que os separava do poço de exaustão. Finalmente, um tom verde-esmeralda vinha da luz difusa de uma lâmpada com abajur, colocada sobre uma mesa de pinho, à qual se sentava um homem que ia anotando números que lhe eram transmitidos, de viva voz, pelo grupo reunido logo abaixo da cauda do foguete.
Levantando os olhos para aquela coluna em tons pastel, tão incrivelmente esguia e graciosa, parecia impossível que uma coisa tão delicada pudesse aguentar as pressões a que teria de submeter-se na próxima sexta-feira: o jato tronitruante da mais poderosa explosão controlada que alguma vez fora tentada; o impacto da barreira do som; as pressões desconhecidas da estratosfera, a quinze mil milhas por hora; o choque terrível quando retornasse, num mergulho de milhares de milhas de altura, para ferir de novo o envelope atmosférico da Terra.
Drax pareceu ler seus pensamentos. Voltou-se para Bond:
— É como perpetrar um assassinato — disse ele. Em seguida, de maneira surpreendente, explodiu numa risada asinina. —Walter! — chamou, dirigindo-se ao grupo de homens. — Venha cá!
Walter destacou-se dos outros e aproximou-se.
— Walter — prosseguiu Drax — eu estava dizendo ao nosso amigo, o Comandante, que quando lançarmos o “Explorador da Lua” será como se cometêssemos um crime de assassinato .
Bond não ficou surpreendido, ao ver uma expressão de incredulidade intrigada estampar-se no rosto do doutor. Irritado, Drax exclamou:
— Assassinato de uma criança. Assassinato de nosso filho — repetiu com um gesto na direção do foguete. — Acorde, homem! Acorde! Que se passa com você?
A fisionomia de Walter clareou. De um modo velado, sorriu, mostrando seu apreço pela comparação.
— Assassinato, Ah, sim! Essa é muito boa. Ha! Ha! E agora, Sir Hugo, as folhas de grafita no exaustor. O Ministério está satisfeito com o ponto de fusão? Eles não acham que. ..
Ainda falando, Walter levou Drax para debaixo da cauda do foguete. Bond seguiu ambos.
Os rostos dos dez homens estavam voltados para eles, quando chegaram. Drax apresentou-o com um gesto da mão.
— Comandante Bond, o nosso novo agente de segurança, — disse, conciso.
O grupo olhou Bond em silêncio. Não houve o menor movimento para ir cumprimentá-lo, e os dez pares de olhos não refletiam curiosidade.
— Então, que negócio é esse de tanta história com a grafita? . ..
O grupo se fechou em torno de Drax e Walter. Bond foi deixado só, para trás.
Não estava surpreso com a frieza da recepção. Teria olhado a intromissão de um amador nos segredos de seu próprio departamento com a mesma indiferença mesclada de ressentimento. Além do mais, simpatizava com esses técnicos apanhados a dedo, que tinham vivido durante meses a fios nas mais altas regiões da astronáutica e se encontravam agora no limiar do julgamento final. Entretanto, lembrava-se, os inocentes entre si deviam saber que Bond tinha seu próprio dever a cumprir, sua própria participação vital nesse projeto. Suponhamos, por exemplo, que um desses pares de olhos, nada comunicativos, escondesse um homem dentro de outro homem, um inimigo que, talvez, naquele instante mesmo exultasse com a certeza de que a grafita que Walter parecia não confiar era realmente sub-resistente. É verdade que tinham o aspecto de uma equipe bem unida, quase de uma fraternidade, ao se colocarem assim em torno de Drax e Walter, pendendo de suas palavras, os olhos atentos aos movimentos das bocas dos dois homens. Mas seriam parte de um cérebro, movimentando-se dentro da intimidade de uma órbita secreta, registrando seus cálculos ocultos como o mecanismo clandestino de uma máquina infernal?
Bond caminhava a esmo, para cima e para baixo do triângulo formado pelas três pontas das barbatanas que repousavam em suas cavidades forradas de borracha no chão de aço, interessando-se em tudo em que seus olhos pousavam, mas, de quando em quando, focalizando-os no grupo de homens, em ângulo diferente.
Com exceção de Drax, todos usavam o mesmo macacão justo de nylon, preso por fecho-éclair de plástico. Não se via o menor vestígio de metal, e nenhum deles usava óculos. Como no caso de Walter e Krebs, suas cabeças estavam raspadas bem rente. Provavelmente, pensou Bond, para evitar que um fio solto de cabelo pudesse cair dentro do engenho. Entretanto, e isso chamou-lhe a atenção como característica muito estranha da equipe, todos exibiam exuberantes bigodes, cuja manutenção exigia, sem dúvida, grande dose de cuidados. Eram de todos os formatos e tonalidades: louros, cor de rato ou escuros, em guidões de bicicleta, de foca, à Kaiser ou à Hitler — cada rosto exibia seu distintivo capilar, entre os quais a pelagem ruiva de Drax brilhava como insígnia oficial do chefe supremo.
Por que motivo, conjeturava Bond, todos os homens da base usavam bigode? Nunca os apreciara, mas combinados com as cabeças raspadas, lembravam algo de positivamente obsceno. Teria sido apenas tolerável, se todos fossem cortados no mesmo modelo, mas a variedade de gêneros individuais, essa anarquia de formatos, tinha um que de particularmente horrível, destacando-se do fundo composto pelas cabeças nuas e redondas.
Nada mais havia para chamar a atenção. Os homens eram de estatura mediana, e todos de tipo mais sobre o esguio — talhados, supunha Bond, mais ou menos de acordo com as necessidades do trabalho. A agilidade seria imprescindível nas plataformas, nas passagens ao longo das garras laterais e dos monta-cargas, e solidez para executar as manobras através das portas de acesso e dentro dos minúsculos espaços disponíveis nos compartimentos do foguete. As mãos deles pareciam ter os músculos e nervos relaxados. Eram imaculadamente limpas, e seus pés, metidos em chinelos de feltro, estavam imóveis pela concentração no trabalho. Bond não surpreendeu nenhum deles, em ocasião alguma, olhando em sua direção, movido pela curiosidade, e quanto a penetrar em seus espíritos ou calcular suas doses de lealdade, confessava a si próprio que a tarefa de desmascarar os pensamentos de cinquenta desses homens-robôs alemães, em três dias, era absolutamente impraticável. E lembrou-se, então, de que já não eram cinquenta. Apenas quarenta e nove. Um desses robôs estourara o tampo dos miolos. E o que transparecera dos pensamentos secretos de Bartseh, afinal? Desejo por uma mulher e um “Heil Hitler”. Estaria muito enganado, cogitava Bond, se julgasse que, esquecendo o “Explorador da Lua”, fossem esses também os pensamentos dominantes dentro de mais quarenta e nove cabeças?
— Dr. Walter! Estou dando uma ordem!
A voz de Drax, cheia de uma ira controlada, interrompeu os pensamentos de Bond, enquanto permanecia tocando com os dedos a aresta condutora de uma das barbatanas de columbite da cauda do foguete.
— Voltem ao trabalho! Já perdemos tempo demais!
Os homens se espalharam, pressurosos, cada um absorvido em sua tarefa, e Drax aproximou-se de Bond, deixando Walter vagando, indeciso, sob a enorme bocarra do exaustor de jato do foguete.
Drax mostrava uma fisionomia tempestuosa.
— Maluco do inferno — praguejou ele. — Está sempre descobrindo complicações.
Depois, como se quisesse esquecer seu adjunto, acrescentou bruscamente para Bond:
— Venha até meu escritório. Vou-lhe mostrar o plano de voo. Depois iremos dormir.
Bond seguiu-o. Drax girou uma pequena maçaneta embutida na parede de aço, e uma porta estreita se abriu, com um silvo abafado. A um metro mais para dentro, havia outra porta também de aço, e Bond notou que ambas eram cercadas de borracha, tornando o cilindro estanque à entrada de ar. Antes de fechar a porta externa, Drax parou na soleira e apontou, na parede circular, um bom número de maçanetas, quase invisíveis e semelhantes à que ele utilizara.
— São as portas das oficinas: geradores elétricos, controle de combustível, lavatórios, armazéns de materiais... — Apontou a porta seguinte. — Aqui é a sala de minha secretária. — Fechou a porta externa, antes de abrir a segunda e, entrando em seu escritório, fechou a porta interna atrás de Bond.
Era um recinto severo, pintado de cinza-claro, onde se via uma ampla escrivaninha e diversas cadeiras de metal tubular, forradas de lona azul-marinho. O chão era atapetado em cinza. Havia ainda dois fichários verdes e um grande aparelho de rádio, metálico. Uma porta semiaberta deixava entrever parte de um banheiro ladrilhado. A escrivaninha estava disposta de frente para uma larga parede lisa, que parecia ser construída de vidro opaco. Drax encaminhou-se para a parede e baixou dois interruptores, na extremidade direita. A parede inteira ficou iluminada como tela de cinema, e Bond se defrontou com dois mapas, cada um de seis pés quadrados, ambos desenhados no próprio vidro.
O mapa da esquerda mostrava toda a região oriental da Inglaterra, desde Portsmouth até Hull, bem como as águas adjacentes, nas latitudes entre 50 e 55 graus. Do ponto vermelho, próximo a Dover, que representava a base de lançamento do “Explorador da Lua”, partia uma série de círculos concêntricos, representando, com intervalos de dez milhas, o raio de ação do projétil. Num ponto distante 80 milhas da base, entre as ilhas Fríseas e Hull, via-se um losango vermelho, desenhado em pleno oceano.
Drax fez um gesto para as intrincadas tábuas matemáticas e as colunas de leitura de bússolas, que enchiam o lado direito do mapa.
— Velocidades de vento, pressão atmosférica, cálculos de computador para os giroscópios — foi explicando ele. — Tudo calculado na base da velocidade e raio de ação do foguete, como constantes matemáticas. Recebemos diariamente as previsões meteorológicas fornecidas pelo Ministério da Aeronáutica, bem como as leituras efetuadas na atmosfera superior, cada vez que um jato da RAF alcança essa altitude. Todos os relatórios nos são transmitidos. Quando um avião atinge a altitude máxima, solta balões de hélio que podem subir ainda mais e nos fornecem novas leituras. A camada atmosférica chega até cinquenta milhas de altitude, aproximadamente. Depois das primeiras vinte, não existe já qualquer densidade que possa afetar o progresso do foguete. Voará quase em vácuo. Atravessar as primeiras vinte milhas é que constitui o principal problema. A atração da gravidade, claro, é outra preocupação. Walter poderá explicar-lhe todas essas coisas, se você estiver interessado. Haverá informações contínuas sobre o tempo, durante as últimas horas até sexta-feira. E então ajustaremos os giroscópios, pouco antes do lançamento. Por enquanto, Miss Brand colige as informações recebidas todas as manhãs e organiza um mapa de movimentos giroscópicos, para o caso de ser necessário.
Drax apontou para o segundo dos dois mapas. Era um diagrama do voo elíptico do foguete, desde o ponto de lançamento até seu alvo. Havia ainda mais colunas de números e cifras.
— Aí temos o registro de velocidade da Terra e seus efeitos na trajetória do foguete — explicou Drax. — A Terra estará girando para Leste, em relação ao voo do foguete. Esses fatores têm de ser conjugados com o outro mapa, e é da leitura final que sairão as instruções de voo. É um negócio bem complicado. Felizmente você não precisa compreender. Deixe isso para Miss Brand. E agora — disse, apagando as luzes da parede que ficou novamente lisa — deseja fazer alguma pergunta a respeito de seu trabalho? Não creio que haja muita coisa para você fazer. Já viu que tudo foi feito com a máxima segurança. O Ministério insistiu para que assim fosse, desde o início.
— Tudo me parece em ordem — disse Bond.
Examinou a fisionomia de Drax, em seguida. O olho bom fitava-o intensamente. Bond fez uma pausa.
— Acha que havia alguma coisa entre sua secretária e o Major Tallon?
Era uma pergunta clara, e o melhor seria fazê-la agora.
— É possível, — respondeu Drax sem constrangimento. — Ela é moça atraente. Eram forçados a conviver, constantemente, na companhia um do outro. De qualquer maneira, parece que Bartsch ficou alucinado por ela.
— Ouvi dizer que Bartsch fez continência e gritou: “Heil Hitler” antes de virar a arma contra a boca — disse Bond.
— Foi o que me contaram — confirmou Drax, sem o mínimo interesse. — E daí?
— Por que motivo todos os homens usam bigode? — indagou Bond, ignorando a pergunta de Drax.
Novamente teve a impressão de que sua pergunta exasperara o outro homem.
Drax soltou uma de suas risadinhas curtas e ladradas.
— Foi uma ideia que eu tive. Eles são difíceis de reconhecer nesses macacões brancos e com as cabeças raspadas. Por isto mandei que todos deixassem crescer os bigodes. A coisa se tornou quase um fetiche. Como na RAF, durante a guerra. Vê alguma coisa de inconveniente nisso?
— Claro que não. A princípio é um tanto.. . surpreendente. Eu teria pensado que números grandes colocados nas roupas, com uma cor diferente para cada turma, teria sido mais eficiente.
— Pois bem — replicou Drax, voltando-se em direção à porta como para finalizar a conversação. — Decidi-me pelos bigodes.
CAPITULO 13
DECISÃO FINAL
Na quarta-feira de manhã, Bond despertou cedo, na cama do homem morto.
Dormira pouco. Drax não dissera nada a caminho de volta para casa e lhe desejara um rápido boa-noite no fim da escada. Bond seguira pelo corredor atapetado até o ponto onde brilhava uma luz, vinda de uma porta aberta, e encontrara suas coisas ordenadamente arranjadas num confortável quarto.
O aposento era mobiliado com o mesmo gosto de tipo dispendioso que encontrara no andar térreo. Havia biscoitos e uma garrafa de Vichy (não era uma garrafa de Vichy com água da bica, verificou Bond) ao lado da cama.
Não se notavam sinais do ocupante precedente, a não ser uma pasta de couro contendo binóculos, na mesinha de cabeceira, e um arquivo de metal, trancado. Bond conhecia tudo sobre arquivos. Virou-o contra a parede, colocou a mão embaixo e encontrou a ponta do fecho que se projeta para baixo, quando a série de escaninhos de cima foi trancada. Uma pressão feita para cima soltou as gavetas uma por uma, e ele baixou suavemente a borda do arquivo para o chão, refletindo maldosamente que o Major Tallon não teria sobrevivido durante muito tempo no Serviço Secreto.
A gaveta de cima continha mapas de escala da base e seus edifícios, além de um mapa do Almirantado n° 1895, representando o Estreito de Dover. Bond colocou cada uma das folhas sobre o leito e examinou-as minuciosamente. Havia restos de cinza de um cigarro nas dobras do mapa do Almirantado.
Bond foi buscar sua caixa de ferramentas — uma caixa quadrada de couro que estava ao lado da cômoda. Examinou os números nas rodas da fechadura de segredo e, satisfeito por não terem sido mexidas, virou-as para o número de código. A caixa estava repleta de instrumentos. Bond escolheu um vaporizador de pó para impressões digitais e uma lente grande. Espalhou o pó fino e acinzentado, centímetro por centímetro, sobre toda a extensão da carta geográfica. Apareceu uma floresta de impressões digitais.
Examinando-as com a lente, chegou à conclusão de que pertenciam a duas pessoas. Isolou os dois melhores grupos, tirou uma Leica com um flash de dentro da pasta de couro e fotografou-os. Em seguida, examinou cuidadosamente com a lente os dois minúsculos sulcos no papel que o pó fizera aparecer .
Estes davam a impressão de serem duas linhas traçadas da costa para formar uma rota cruzando o mar. Sua direção era muito estreita, e as duas linhas pareciam originar-se da casa onde se encontrava Bond. De fato, poderiam indicar observações de algum objeto no mar, feitas de cada ala da casa.
As duas linhas não haviam sido traçadas com lápis, mas, presumivelmente, para evitar serem descobertas, com um estilete que mal sulcara o papel.
No ponto onde se encontravam, havia a sombra de uma interrogação, na linha correspondente à décima-segunda braça, cerca de cinquenta jardas distante do penhasco, numa direção reta da casa para o navio-farol South Goodwin.
Não havia mais nada para ser descoberto no mapa. Bond olhou o relógio. Vinte para a uma. Ouviu passos distantes no hall e o estalido de uma lâmpada sendo apagada. Num impulso, ergueu-se e, de mansinho, apagou as luzes do quarto, deixando apenas a de leitura, velada por um abajur e colocada à mesinha de cabeceira.
Ouviu os pesados passos de Drax aproximando-se da escada. Houve o estalido de outro interruptor e depois silêncio. Bond imaginava aquela cara grande, cabeluda, voltada para o corredor, olhando, escutando. Depois percebeu o rangido de uma porta, sendo aberta devagar e fechada da mesma forma. Esperou, visualizando os movimentos do homem que se preparava para dormir. Ouviu ainda o som abafado de uma janela que se abria, o ruído de trombeta, distante, de um nariz sendo assoado. Depois silêncio.
Bond concedeu mais cinco minutos a Drax e depois foi até o arquivo, abrindo suavemente as outras gavetas. Não havia nada na segunda e na terceira, mas a última estava repleta de arquivos arrumados em ordem alfabética. Eram os dossiês dos homens que trabalhavam na base. Bond puxou a série “A”, voltou para a cama e começou a ler.
Em cada um a fórmula era a mesma: nome por inteiro, endereço, data do nascimento, descrição, sinais particulares, profissão ou ofício depois da guerra, registro de tempo de guerra, sobre atitudes políticas e simpatias atuais, registro criminal, de saúde e sobre os parentes próximos. Alguns desses homens tinham mulher e filhos, cujas particularidades eram anotadas e, acompanhando cada dossiê, havia fotografias: de frente e de perfil, além das impressões digitais de ambas as mãos.
Duas horas e dez cigarros depois, Bond examinara todos eles e descobrira dois pontos de interesse geral. Primeiro, que todos os cinquenta homens pareciam ter levado uma vida sem mácula, sem o menor vestígio de ódio político ou criminoso. Aquilo lhe pareceu tão pouco verossímil, que resolveu encaminhar todos eles novamente à Estação D. para serem submetidos a um reexame completo na primeira oportunidade.
O segundo ponto era que nenhuma das caras das fotografias tinha bigode. Apesar da explicação de Drax, esse fato suscitou um segundo pequeno ponto de interrogação no espírito de Bond.
Ergueu-se da cama e trancou novamente tudo, colocando o mapa do Almirantado em um dos arquivos de sua pasta de couro. Girou a fechadura de segredo e enfiou a pasta bem para debaixo da cama, de modo que a mesma ficasse diretamente sob seu travesseiro no ângulo interno da parede. Depois, sem fazer barulho, lavou-se, escovou os dentes no banheiro anexo e escancarou a janela.
A lua ainda brilhava: como devia ter brilhado, pensou Bond, quando, despertado por algum ruído fora do comum, Tallon subira ao telhado, talvez somente há poucas noites, e vira, no meio do mar, o que tinha visto. Devia trazer os binóculos consigo, e Bond, lembrando-se, saiu da janela e apanhou-os. Eram binóculos muito possantes, de fabricação alemã, pilhagem da guerra, talvez, e o 7 X 50 nas chapas superiores revelaram que se tratava de binóculos para a noite. Depois então, o cauteloso Tallon devia ter caminhado de leve (mas não o suficiente) para a outra extremidade do telhado e novamente erguido os binóculos, calculando a distância da borda do penhasco até o objeto no mar, e do objeto até o Goodwin, navio-farol. Em seguida, devia ter voltado pelo mesmo caminho e, sem fazer ruído, tornado a entrar no quarto.
Bond viu Tallon, talvez pela primeira vez desde que estava na casa, trancar a porta cautelosamente, dirigir-se até o arquivo, retirar dali o mapa, ao qual mal lançara um olhar até então, e marcar sobre o mesmo, de leve, as linhas de sua direção, às pressas. Talvez tivesse olhado para ele durante longo tempo, antes de apor a pequenina interrogação ao seu lado.
E que teria sido então o objeto desconhecido? Impossível dizer. Um navio? Uma luz? Um ruído?
Fosse o que fosse, Tallon não devia ter visto. E alguém o tinha ouvido. Alguém havia adivinhado que ele vira, e esperara que Tallon saísse do quarto na manhã seguinte. Aí então aquele alguém viera ao seu quarto e dera uma busca. A carta marítima, provavelmente, nada revelara, mas vira os binóculos para noite em cima da janela.
Fora o bastante. E naquela noite, Tallon morrera.
Bond se controlou. Ia depressa demais, compondo um caso, baseado no mais tênue dos indícios. Bartsch matara Tallon, e Bartsch não fora o homem que ouvira o barulho, o homem que deixara as impressões digitais no mapa, o homem cujo dossiê Bond separara e guardara em sua pasta de couro.
O homem tinha sido o untuoso Krebs, a criatura do pescoço de minhoca. As impressões digitais eram suas. Durante um quarto de hora, Bond comparara as impressões do mapa com as impressas no dossiê de Krebs. Mas quem disse que Krebs ouvira um barulho, ou fizera qualquer coisa por causa disso? Bem, para começar, ele parecia mesmo um tipo intrometido. Tinha os olhos de um ladrão sem importância. Aquelas impressões no mapa haviam sido, positivamente, feitas depois que Tallon o estudara. Os dedos de Krebs cobriram os de Tallon em diversos pontos.
Entretanto, como poderia Krebs estar envolvido nessa história, com os olhos de Drax constantemente em cima dele? O assistente confidencial. Mas que dizer de Cícero, o empregado particular de toda confiança do Embaixador Britânico em Ankara, durante a guerra? A mão no bolso das calças pendendo por cima das costas da cadeira. As chaves do Embaixador. O cofre. Os segredos. O quadro era muito semelhante.
Bond sentiu um arrepio. Compreendeu então, de repente, que estivera de pé durante muito tempo em frente às janelas abertas e que já era tempo de dormir um pouco.
Antes de se deitar, pegou o coldre de ombro da cadeira, onde estava no meio das roupas despidas, e retirou a Beretta, colocando-a debaixo do travesseiro. Como defesa contra quem? Bond não sabia, mas sua intuição lhe dizia muito claramente que pairava o perigo no ar. O cheiro era insistente, apesar de ainda impreciso, e restringia-se apenas ao limiar de seu subconsciente. Na realidade, ele sabia que suas impressões se baseavam num determinado número de interrogações que se haviam materializado durante as últimas vinte e quatro horas: o enigma de Drax; o “Heil Hitler” de Bartsch; os estranhos bigodes; os cinquenta alemães de conduta impecável; a carta marítima; os binóculos de noite; Krebs.
Primeiro precisava comunicar suas suspeitas a Vallance. Depois explorar as possibilidades de Krebs. Em seguida, olhar as defesas do “Explorador da Lua” — o lado do mar, por exemplo. Finalmente, entrar em contato com essa pequena Brand e concordarem na elaboração de um plano para os próximos dois dias. Não havia muito tempo a perder.
Enquanto forçava o sono no cérebro transbordante de pensamentos, Bond imaginou o número sete no mostrador de um relógio e deixou a tarefa de acordar entregue às células ocultas de sua memória. Desejava estar fora de casa e no telefone com Vallance, o mais cedo possível. Se suas ações levantassem suspeitas, não ficaria desanimado. Um de seus objetivos era atrair para sua órbita as mesmas forças que envolveram Tallon, porque de uma coisa ele tinha quase certeza, o Major não morrera por amar Gala Brand.
O despertador extra-sensorial não falhou. Pontualmente, às sete horas, com a boca seca por causa dos muitos cigarros da noite anterior, esforçou-se por sair da cama e entrar num banho frio. Barbeara-se, gargarejara com um dentifrício forte e, agora, vestido num terno batido branco e preto, uma camisa azul-marinho de algodão, tipo Mares do Sul, gravata de tricô preto, caminhava levemente, mas não de modo furtivo, pelo corredor até as escadas, com a pasta de couro quadrada na mão esquerda.
Encontrou a garage no fundo da casa, e o motor do Bentley correspondeu à primeira pressão do arranque. Bond seguiu lentamente pela faixa de concreto sob o olhar indiferente das janelas encortinadas da casa e seguiu em frente, em prise, pelo caminho margeado de árvores. Seus olhos voltaram-se para a casa e confirmaram seu cálculo de que um homem de pé no telhado seria capaz de enxergar por cima do muro e ter uma visão da beira do penhasco e do mar mais adiante.
Não havia sinal de vida em torno do local onde se encontrava o “Explorador da Lua”. O concreto, já começando a brilhar ao primeiro sol da manhã, estirava-se vazio na direção de Deal. Tinha-se a impressão de um aeródromo recém-construído ou talvez, pensou, com suas três “coisas” diferentes de concreto, a cúpula de uma colmeia, a parede lisa de ferro e o cubo distante do ponto de disparo, cada qual lançando poços negros de sombra em sua direção, ali no sol matutino, como uma paisagem deserta de Dali, na qual três objets trouvés repousavam num acaso cuidadosamente calculado.
Lá fora, no mar, dentro do nevoeiro da manhã que prometia um dia quente, o navio-farol South Goodwin mal se delineava, difusa embarcação vermelha, casada para sempre com o mesmo ponto, e condenada, como um navio de cenário no palco de Drury Lane, a assistir ao diorama das ondas e nuvens navegarem atarefadamente para os bastidores, enquanto que ele, sem papéis, passageiros ou carga, continuava ancorado para sempre no ponto de partida que era também seu porto de destino.
Com intervalos de trinta segundos, buzinava sua triste queixa dentro do nevoeiro, uma prolongada nota dupla de trumpete, em cadência descendente. Um canto de sereia, pensou Bond, para repelir em vez de seduzir. Perguntava a si mesmo como os sete homens da tripulação suportariam agora o ruído, enquanto mastigavam carne de porco com feijão. Encolher-se-iam, quando marcava contracanto com a Housewife’s Choice, vindo a todo volume do rádio na hora do rancho? Mas era uma vida segura, foi a conclusão a que chegou Bond, apesar de ancorado nos portões de um cemitério.
Anotou mentalmente, para descobrir se esses sete homens tinham visto ou ouvido a coisa que Tallon marcara no mapa, em seguida saiu rápido por entre os postos de guarda.
Em Dover, parou diante do Café Royal, modesto restaurantezinho, com uma cozinha modesta porém capaz, como ele sabia há muito tempo, de preparar excelentes pratos de peixe e de ovos.
A dona, suíça-italiana, com o filho que a ajudava a dirigir a casa, recebeu-o como velho amigo, e ele pediu um prato de ovos mexidos com presunto e bastante café, recomendando que estivessem prontos em meia hora. Depois seguiu até o posto policial e fez uma chamada para Vallance, por meio da mesa de ligações da Scotland Yard. Vallance estava em casa, tomando o café da manhã. Ouviu sem comentários a conversa reservada de Bond, mas não expressou surpresa, quando este disse que não tinha tido oportunidade de falar mais intimamente com Gala Brand.
— Essa aí é uma garota inteligente. Se o Sr. K. anda tramando alguma coisa, com certeza ela tem uma ideia do que seja. E se T. ouviu um barulho no sábado à noite, ela pode ter ouvido também. Se bem que eu deva confessar que não se referiu a esse assunto.
Bond não disse nada sobre a recepção que tinha tido por parte do agente de Vallance.
— Vou falar com ela esta manhã e mandar-lhe-ei o mapa com o filme da Leica para que o senhor os examine. Vou dá-los ao Inspetor. Talvez um dos patrulheiros da estrada possa levar. É verdade, de onde T. telefonou quando chamou seu chefe na segunda-feira?
— Vou mandar verificar e depois lhe direi — disse Vallance. Mandarei também a Trinity House perguntar se a South Goodwin e os guardas-costeiros podem ajudar. Mais alguma coisa?
Bond respondeu:
— Não.
A linha passava por muitas mesas de ligação. Talvez, se tivesse sido M., ele tivesse insinuado mais alguma coisa. Pareceu-lhe ridículo falar com Vallance a respeito de bigodes e a atmosfera de perigo que ele sentira na noite anterior, e que a luz do dia dissipara. Aqueles policiais só queriam os fatos nus e crus. Eram melhores, refletiu, na solução de um crime, do que antecipá-los.
— Não, é só.
Desligou.
Sentiu-se mais alegre depois de uma excelente primeira refeição. Leu o Express e The Times e encontrou uma notícia sucinta sobre o inquérito do caso Tallon. O Express fizera muito escarcéu e muita exibição da fotografia da moça. Bond divertiu-se, ao verificar a neutra semelhança que Vallance conseguira apresentar. Decidiu que precisava tentar trabalhar com ela. Demonstraria toda confiança e lhe contaria tudo, fosse ela receptiva ou não. Talvez ela também tivesse suas suspeitas e intuições, porém tão vagas que as estava guardando consigo mesma.
Bond voltou rapidamente para a casa. Eram nove horas em ponto, e quando passou por entre as árvores na faixa de concreto, ouviu-se o lamento de uma sereia e, dos bosques por trás da casa, uma dupla fila de doze homens apareceu correndo num ritmo propositadamente igual, em direção à cúpula do foguete. Marcavam o tempo enquanto um deles tocava a campainha. A porta então se abriu, e eles entraram em fila, desaparecendo .
Raspe-se a superfície de um tedesco e encontrar-se-á a precisão — pensou Bond.
CAPITULO 14
DEDOS FORMIGANTES
Meia hora antes, Gala Brand esmagara a ponta do seu cigarro matutino, engolira o resto do café, saíra do quarto e se encaminhara para a base, com o aspecto perfeito de uma secretária particular. Trajava uma blusa branca imaculada e uma saia azul-marinho pregueada.
Pontualmente, às oito e meia, estava em seu escritório. Havia um monte de telimpressos do Ministério da Aeronáutica em cima da mesa, e sua primeira ação foi transferir um resumo de seus conteúdos para um mapa meteorológico, entrar pela porta de comunicação no escritório de Drax, e pregar o mapa num quadro pendente no ângulo da parede ao lado do vidro liso. Em seguida, apertou o interruptor que iluminava o mapa de parede, fez alguns cálculos, baseada nas colunas de números reveladas pela luz, e anotou o resultado no diagrama que prendera ao quadro.
Fizera isto com os dados do Ministério da Aeronáutica, que se tornavam cada vez mais exatos, à medida que a data do lançamento experimental se aproximava, todos os dias, desde que a base terminara, e a construção do foguete se iniciara dentro dela. Tornara-se tão perita, que agora sabia de cor as direções do giroscópio para quase todas as variações de temperatura em diferentes altitudes.
De modo que ainda ficava mais irritada quando Drax não demonstrava aceitar seus cálculos. Todos os dias quando, às nove horas, pontualmente, as campainhas de aviso soavam, e ele descia a íngreme escadaria de ferro para entrar em seu escritório, seu primeiro gesto era chamar o insuportável Dr. Walter, para que, juntos, estudassem novamente todas as suas anotações, transcrevendo os resultados no fino caderninho de notas que Drax trazia no bolso traseiro das calças. Sabia que aquilo era uma rotina invariável e se cansara de observá-la através de um orifício disfarçado que fizera, de forma a poder enviar a Vallance um relatório semanal dos visitantes de Drax. O orifício ficava na parede fina que separava os dois escritórios. O método era amadorista, porém eficiente, e ela lentamente formara um quadro completo da rotina diária, que acabara por achar demasiado irritante. Era irritante por duas razões. Significava que Drax não confiava em seus algarismos e solapava sua oportunidade de tomar parte, da maneira mais modesta que fosse, no lançamento final do foguete.
Era natural que, no decorrer dos meses, tivesse ficado tão integrada em seu disfarce quanto em sua verdadeira profissão. Era uma coisa fundamental para a exatidão absoluta dêsse disfarce que sua personalidade ficasse tão verdadeiramente oculta quanto possível. E agora, enquanto espionava, apalpava e farejava o vento em torno de Drax, para relatar ao seu Chefe em Londres, sentia-se profundamente interessada pelo sucesso do “Explorador da Lua” e tornara-se tão dedicada ao seu serviço quanto qualquer outro membro da base.
O resto de seus Ideveres como secretária particular de Drax era intoleràvelmente monótono. Todos os dias chegava um enorme volume de correspondência dirigida a Drax em Londres e enviada para lá pelo Ministério. Naquela manhã, encontrara o monte habitual de mais ou menos cinquenta cartas aguardando em cima da escrivaninha. Eram sempre de três tipos. Cartas de pedidos, de pessoas maníacas pelo foguete, cartas comerciais do corretor de Drax e de outros agentes comerciais. Para estas Drax ditava respostas breves, e o resto do dia ela se ocupava em datilografar e arquivar.
De sorte que era natural o fato de sua única obrigação relacionada com a operação do foguete destacar-se extraordinàriamente entre os monótonos deveres. Naquela manhã, ao conferir e reconferir seu plano de voo, estava mais que decidida a fazer aceitarem seus cálculos para O Dia. Entretanto, como muitas vezes lembrava a si mesma, talvez não houvesse razão para que não os aceitassem. Talvez os cálculos diários de Drax e Walter para anotação no caderninho preto não passassem de nova verificação de seus próprios números. Era bem verdade que Drax nunca tinha pedido seu boletim meteorológico ou as direções do giroscópio por onde os calculava. E quando um dia ela perguntara diretamente se seus cálculos sobre o tempo estavam corretos, ele respondera com evidente sinceridade:
— Excelentes, minha cara. Muito valiosos. Não poderíamos arranjar-nos sem eles.
Gala Brand voltou para sua sala e começou a abrir as cartas. Só mais dois planos de voo para quinta-feira e sexta, e então, baseados em seus cálculos ou noutros, nos guardados dentro do bolso de Drax, o giroscópio seria finalmente ajustado, e seria apertado no ponto de disparo.
Distraidamente, Gala olhou para as unhas e depois estendeu as duas mãos, com as costas voltadas em sua direção. Quantas vezes, durante seu adestramento na Escola da Polícia, fora mandada para fora com outras alunas e recomendada a não voltar sem um caderno de notas, um estojo de maquilagem, uma caneta-tinteiro ou mesmo um relógio de pulso? Quantas vezes, durante os cursos, o instrutor não se voltara, segurando-a pelo pulso e dizendo: “Vamos, vamos, senhorita. Isto assim não vai de jeito nenhum. Dá até a impressão de um elefante procurando açúcar no bolso do tratador. Tente novamente.”
Friamente, flexionou os dedos e depois, tomando uma resolução, voltou à pilha de cartas.
Quando faltavam poucos minutos para as nove, as campainhas de alarma soaram, e ela ouviu Drax chegar ao escritório. Pouco depois ouviu-o abrir as portas duplas novamente e chamar Walter. Em seguida, veio o habitual murmúrio de vozes cujas palavras eram abafadas pelo leve chiar do ventilador.
Gala arrumou as cartas em três pilhas e sentou-se inclinada para a frente, os nervos relaxados, os cotovelos descansando na escrivaninha e o queixo repousando na mão esquerda.
Comandante Bond. James Bond. Evidentemente, um jovem convencido, como tantos outros do Serviço Secreto. E porque tinha sido enviado em vez de alguém com quem pudesse trabalhar, um de seus amigos da Seção Especial ou mesmo uma pessoa do M15? A mensagem do Comissário-Assistente dizia que não havia mais ninguém disponível assim de repente, que ele era um dos astros do Serviço Secreto, que desfrutava da mais absoluta confiança da Seção Especial e tinha as bênçãos do M15. Até mesmo o Primeiro-Ministro lhe dera permissão para agir somente nesta missão dentro da Inglaterra. Mas de que poderia adiantar, em face do pouco tempo que restava? Ele, provavelmente, atirava bem e falava idiomas estrangeiros, além de executar uma série de truques que poderiam ser úteis no exterior. Entretanto, que poderia fazer de bom aqui, sem lindas espiãs para namorar. Porque bonitão ele era, incontestàvelmente. (Gala Brand procurou automaticamente o estojo de maquilagem e bateu a esponjinha de pó de arroz no nariz.) Bem no gênero de Hoagy Carmichael, sob certo aspecto. Aquele cabelo preto caindo em cima da sobrancelha direita. Mais ou menos o mesmo tipo ósseo. Mas havia um quê de crueldade na boca, e os olhos eram frios. Cinzentos ou azuis? Tinha sido difícil verificar a noite passada. Bem, de qualquer maneira, ela o pusera em seu lugar e lhe mostrara que não estava impressionada por rapazes atraentes do Serviço Secreto, por mais românticos que parecessem. Havia homens igualmente belos na Seção Especial, e estes eram detetives de verdade, não apenas pessoas que Phillips Oppenheim idealizara, donos de carros velozes com bandas douradas e coldres de ombro. Ah, isto ela descobrira com certeza, e até esbarrara nele para ter certeza.
Pois bem, supunha que devia demonstrar, de uma forma ou de outra, que trabalhava com ele, apesar de só Deus saber em quê. Se ela estivera ali desde quando o local fora construído sem descobrir coisa alguma, o que poderia esse homem, Bond, esperar descobrir em dois dias? E o que havia para ser descoberto? Naturalmente, existiam uma ou duas coisas que ela não conseguia compreender. Deveria falar-lhe em Krebs, por exemplo? A primeira coisa a fazer era providenciar para que ele não lhe estragasse o trabalho, fazendo qualquer tolice. Teria de ser fria, firme e extremamente cautelosa. Mas isto não queria dizer, chegou à conclusão no momento em que a cigarra tocava e ela apanhava as cartas e o caderno de taquigrafia, que não pudesse ser amistosa em suas relações. Estritamente dentro de suas próprias condições, é claro.
Havendo tomado esta segunda decisão, abriu a porta de comunicação e entrou no escritório de Sir Hugo Drax.
Ao voltar para sua sala, meia hora depois, encontrou Bond sentado em sua cadeira com o Almanaque Whitaker aberto na escrivaninha diante dele. Apertou os lábios, quando Bond se levantou e desejou-lhe um feliz bom dia. Gala baixou a cabeça rapidamente, rodeou a escrivaninha e sentou-se. Afastou cuidadosamente o Whitaker e colocou as cartas e o caderno em seu lugar.
— Devia ter mais uma cadeira para as visitas — disse Bond com um sorriso que ela definiu como impertinente. — E alguma coisa melhor para se ler do que livros de referências.
A moça ignorou as observações.
— Sir Hugo deseja vê-lo. Eu ia agora mesmo ver se já havia se levantado.
— Mentirosa. Você me ouviu passar às sete e meia. Eu a vi espiando entre as cortinas.
— Não fiz semelhante coisa — retrucou Miss Brand indignada. — Por que haveria de estar interessada num carro que passava?
— Eu disse que você ouviu o carro — disse Bond. Insistiu em sua vantagem. — E, por falar nisso, acho que não deve coçar a cabeça com o lápis quando está tomando ditado. Nenhuma das melhores secretárias particulares faz tal coisa.
Bond olhou de modo significativo para um ponto da porta de comunicação. Depois sacudiu os ombros.
As defesas de Gala caíram. Diabo de homem, pensou. Endereçou-lhe um sorriso relutante.
— Ora. Vamos parar com isto. Eu não posso passar a manhã inteira brincando de adivinhação. Ele quer nos ver e não gosta de esperar.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação, abrindo-a. Bond seguiu-a, fechando depois a porta.
Drax estava de pé, olhando o mapa de parede iluminado. Voltou-se, quando os dois entraram.
— Ah, você está aqui — disse com um olhar firme para Bond. — Pensei que talvez nos tivesse deixado. Os guardas anotaram sua saída às sete e meia da manhã de hoje.
— Precisei dar um telefonema — explicou Bond. — Espero não ter incomodado ninguém.
— Existe um telefone em meu estúdio — ajuntou Drax, conciso. — Tallon achava que servia muito bem.
— Ah, pobre Tallon — disse Bond sem nenhuma inflexão particular.
Notara um quê de autoritário na voz de Drax que o desagradara bastante, e isto fizera com que desejasse instintivamente desarmá-lo. Nessa vez foi bem sucedido.
Drax lançou-lhe um olhar duro, que disfarçou com um risinho curto, latido e um sacudir de ombros.
— Faça como melhor lhe agradar. Você tem seu trabalho para fazer. Contanto que não perturbe as rotinas daqui. Deve-se lembrar — acrescentou mais amável — de que todos os meus homens estão nervosos ao extremo agora, e eu não posso inquietá-los com misteriosas movimentações. Espero que não deseje fazer-lhes muitas perguntas hoje. Eu preferia que não tivessem mais nada com que se preocupar. Ainda não se recuperaram do que aconteceu segunda-feira. Miss Brand poderá informá-lo a respeito de tudo que diz respeito a eles, e creio que todos os dados arquivados acham-se no quarto de Tallon. Já os examinou?
O arquivo não tem chave — respondeu Bond, dizendo a verdade.
— Desculpe, a culpa é minha — disse Drax. Foi até a escrivaninha, abriu uma gaveta da qual tirou um pequeno molho de chaves, e entregou-o a Bond.
— Devia ter-lhe entregado isto a noite passada. O Inspetor que tratou do caso pediu-me lhe entregasse. Desculpe.
— Muito obrigado — disse Bond por sua vez. Depois fez uma pausa.
— Diga-me uma coisa, há quanto tempo Krebs trabalha com o senhor?
Fez a pergunta obedecendo a um impulso. Houve um momento de silêncio na sala.
—Krebs? — repetiu Drax, pensativo.
Encaminhou-se para a escrivaninha e sentou-se. Estendeu a mão para o bolso da calça e puxou um maço de cigarros de ponta de cortiça. Seus dedos grosseiros lutaram com o envólucro de celofane. Tirou um cigarro e meteu-o na boca, sob a franja do bigode avermelhado, acendendo-o depois.
Bond mostrou-se surpreso.
— Eu não sabia que se podia fumar aqui — observou, tirando sua própria carteira do bolso.
O cigarro de Drax, minúsculo tubo branco no meio da caraça vermelha, subia e descia enquanto ele respondia sem tirá-lo da boca.
— Aqui não há perigo. Estas salas são à prova de ar. As portas são forradas com borracha. A ventilação é separada . Precisei colocar as oficinas e geradores apartados da cúpula e, de qualquer maneira — seu lábios sorriram em torno do cigarro — preciso dar um jeito para fumar.
Drax tirou o cigarro da boca e olhou-o. Parecia estar tomando uma resolução.
— Você estava me interrogando a respeito de Krebs. Pois bem, cá entre nós, não confio inteiramente nesse camarada — declarou fitando Bond com uma expressão significativa.
Levantou a mão num gesto de quem se desculpa.
— Nada de definido, naturalmente, ou eu já o teria mandado embora, mas encontrei-o espionando pela casa, e uma vez apanhei-o em meu estúdio, remexendo meus papéis particulares . Ele apresentou uma explicação perfeita e deixei-o sair, prevenindo-o. Contudo, para ser franco, tenho minhas suspeitas a respeito do homem. Evidentemente, ele não pode fazer mal algum. Faz parte do pessoal da casa, e nenhum deles tem licença de entrar aqui, mas — Drax fitou Bond francamente, dentro dos olhos — eu devia ter-lhe dito que se concentrasse nele. Foi muita vivacidade sua, haver observado qualquer coisa no homem, tão depressa — acrescentou com respeito. — Que foi que o levou a isto?
— Nada de extraordinário. Ele tem um aspecto inquieto. Mas o que o senhor diz é interessante, e eu não deixarei de estar de olho nele.
Voltou-se para Gala Brand, que permanecera em silêncio desde o momento em que entraram na sala.
— Qual sua opinião a respeito de Krebs, Miss Brand? — perguntou, polidamente.
A moça respondeu, dirigindo-se a Drax.
— Não entendo muito dessas coisas, Sir Hugo, — disse com modéstia e um quê de impulsivo que Bond admirou.
— Porém não confio nele de jeito nenhum. Não tinha intenção de lhe contar, mas ele andou rondando meu quarto, entrou lá, abriu cartas etc. Tenho certeza disso.
Drax mostrou-se chocado.
— Foi mesmo?
Pôs o cigarro no cinzeiro e extinguiu os fragmentos acesos, um por um.
— Deixe-o comigo — falou sem levantar os olhos.
CAPÍTULO 15
JUSTIÇA RUDE
Houve um momento de silêncio na sala durante o qual Bond refletiu como era estranho que as suspeitas recaíssem tão de repente e unanimemente sobre o mesmo homem. Isto, por acaso, libertaria automaticamente os outros? Krebs não poderia ser membro de uma quadrilha? Ou trabalharia por conta própria e, nesse caso, com que objetivo? E que relação haveria entre suas espionagens e as mortes de Tallon e Bartsch?
Drax quebrou o silêncio.
— Bem, parece que chegamos a um ponto de acordo — disse, olhando Bond, à procura de confirmação. Este baixou a cabeça, num gesto cauteloso.
— Tenho mesmo de deixá-lo por sua conta. De qualquer forma, providenciaremos para que se conserve bem afastado da base. Aliás, vou levá-lo comigo amanhã para Londres. Pormenores de última hora deverão ser combinado com o Ministério, e Walter não pode sair daqui. Krebs é o único homem capaz de executar o serviço de um ajudante-de-ordens. Isto o conservará fora de qualquer complicação. Até lá temos todos de mantê-lo sob vigilância. A não ser, naturalmente, que você queira prendê-lo já, trancando-o à chave e cadeado. Eu preferia que não. Não desejo perturbar mais a equipe.
— Não será necessário — disse Bond. — Ele conta com alguns amigos particulares entre os outros homens?
— Nunca o vi falando com nenhum, exceto Walter e o pessoal de casa — disse Drax. — Calculo que se considera superior aos outros. Pessoalmente, não acredito que exista muita maldade nesse camarada, do contrário não o teria conservado. Ele fica sozinho em casa o dia inteiro, e com certeza é um desses sujeitos que gostam de bancar o detetive e meter o nariz nos negócios dos outros. Que diz você? Talvez pudéssemos deixar as coisas neste pé?
Bond fez que sim, guardando seus pensamentos para si mesmo.
— Pois então — continuou Drax, feliz por deixar de lado um assunto desagradável e voltar para os negócios. — Temos outras coisas para conversar. Ainda nos restam dois dias, e é melhor falar-lhe sobre o programa.
Ergueu-se da cadeira e mediu pesadamente a sala em largas passadas, por trás da escrivaninha:
— Hoje é quarta-feira. À uma hora a base será fechada para receber combustível. Isto será supervisionado pelo Dr. Walter, por mim e mais dois homens do Ministério. Para a eventualidade de qualquer coisa sair errada, uma câmara de televisão registrará tudo que fizermos. E então, se houver uma explosão, nossos sucessores saberão como agir melhor na próxima vez — finalizou com um curto riso ladrado. — Se o tempo permitir, o telhado será aberto hoje à noite para deixar a fumaça sair. Meus homens montarão guarda em vigias de dez jardas de intervalo, até a distância de cem jardas a partir da base. Haverá três homens armados na praia, do lado oposto ao túnel exaustor no penhasco. Amanhã de manhã a base será novamente aberta até o meio-dia para uma verificação final e, a partir desse instante, exceto a disposição do giroscópio, o “Explorador da Lua” estará pronto para partir. Os guardas ficarão permanentemente vigiando toda a base. Na sexta-feira pela manhã eu examinarei pessoalmente o ajustamento do giroscópio. Os homens do Ministério tomarão conta do ponto de disparo, e a RAF do radar. A BBC enviará seus caminhões, que ficarão atrás do ponto de disparo, e as irradiações começarão às onze e quarenta e cinco.
Ao meio-dia em ponto apertarei o pistão, um sinal de rádio passará por um circuito elétrico e — Drax sorriu abertamente — nós veremos o que vamos ver.
Fez uma pausa, mexendo no queixo:
— Vejamos agora o que mais? Ah, sim. A navegação será banida da área orbital desde a meia-noite de quinta-feira. A Marinha providenciará uma patrulha nos limites da área durante toda a manhã. Haverá um comentarista da BBC num dos navios. O Ministério do Abastecimento mandará técnicos que ficarão num navio de salvamento com um aparelho de televisão para a profundidade do mar, e depois que o foguete aterrissar, tentarão recuperar os restos. Talvez você se interesse em saber — continuou, esfregando as mãos numa alegria quase infantil, — que um mensageiro do Primeiro-Ministro trouxe a notícia muito alvissareira de que não só estará reunido o Gabinete para ouvir a irradiação, mas o Palácio também escutará o lançamento.
— Ótimo — disse Bond, satisfeito pelo outro.
— Obrigado. Agora quero ter absoluta certeza de que você está satisfeito com as medidas de segurança que tomei na própria base. Não creio que seja necessário nos preocuparmos com o que se passar do lado de fora. A RAF e a polícia parecem estar executando um serviço muito completo.
— Tudo parece ter sido providenciado — disse Bond.
— Não creio que me reste muita coisa para fazer no tempo que ainda falta.
— Nada que eu me lembre — concordou Drax. — Exceto nosso amigo Krebs. Esta tarde ele permanecerá na camioneta da televisão tomando notas, de modo que estará fora de qualquer trapalhada. Por que você não vai dar uma olhada na praia, na base do penhasco, enquanto ele está fora de ação? este é o único ponto fraco que eu posso lembrar. Muitas vezes pensei que se alguém quisesse penetrar na base, tentaria passar pela cavidade exaustora. Leve Miss Brand. Quatro olhos, etc, e ela não poderá mesmo usar seu escritório até amanhã de manhã.
— Está bem — concordou Bond.
— Eu gostaria de dar uma olhada no lado do mar, depois do almoço, e se Miss Brand não tiver nada de melhor para fazer...
Voltou-se para ela com as sobrancelhas erguidas. Gala Brand baixou os olhos.
— Claro, se Sir Hugo desejar — disse sem entusiasmo.
Drax esfregou as mãos.
— Então está combinado. E agora preciso voltar a trabalhar. Miss Brand, quer fazer o favor de pedir ao Dr. Walter que venha aqui, se estiver livre? Nós nos veremos na hora do almoço — disse a Bond, despedindo-o.
Este fez com a cabeça que sim.
— Acho que vou caminhar até a cúpula e dar uma olhadela no ponto de disparo — falou sem saber direito porque mentia. Virou-se e seguiu Gala Brand através das portas duplas e depois até a base do cilindro.
Enorme serpente negra de fios de borracha se retorcia sobre o brilhante chão de aço, e Bond observou a moça escolher o caminho por entre suas voltas até onde se encontrava Walter, sozinho. Olhava a boca do tubo do combustível ser levantada para onde um guindaste, esticado até a soleira de uma porta de acesso, na metade do foguete, indicava os principais tanques de combustível.
A moça disse qualquer coisa a Walter e depois ficou olhando para cima, enquanto o tubo ia sendo delicadamente manipulado para o interior do foguete.
Bond achou que ela parecia muito inocente, ali de pé, com os cabelos castanhos soltos e a curva da garganta cor de marfim imergindo na blusa branca e simples. Com as mãos cruzadas nas costas, contemplando embevecida os faiscantes cinquenta pés do “Explorador da Lua”, poderia ser tomada por uma colegial mirando uma árvore de Natal — exceto pelo impudente orgulho dos seios atrevidos, levantados pela cabeça e os ombros jogados para trás.
Bond sorriu consigo mesmo ao chegar ao pé da escada de ferro e começar a subir. Aquela moça inocente, desejável, lembrou a si próprio, é uma policial extremamente competente. Sabe como desferir pontapés e onde; pode quebrar meu braço, provavelmente mais depressa e com mais facilidade do que eu poderia quebrar o dela, e pelo menos metade de seu ser pertence à Seção Especial da Scotland Yard. Naturalmente, refletiu, baixando os olhos a tempo de vê-la seguir o Dr. Walter até o escritório de Drax, existe sempre a outra metade.
Lá fora, o brilhante sol de maio parecia particularmente dourado depois do branco azulado dos arcos, e Bond sentia-o quente nas costas ao caminhar deliberadamente pelo concreto em direção à casa. O apito de nevoeiro do Goodwin estava silencioso, e a manhã tão calma que ele podia ouvir as batidas rítmicas dos motores de um navio, quando este passava por Inner Leads, entre o Goodwin e a praia, a caminho do Norte.
Aproximou-se da casa, protegido pelo largo muro contra o vento, e então, rapidamente, atravessou as poucas jardas até a porta da frente, sem produzir o menor ruído com os sapatos de crepe-sola. Abriu a porta, deixou-a escancarada e caminhou de leve para o háll onde se pôs à escuta. Ouviu o rumor das manhãs de verão; uma abelha batendo de encontro à vidraça de uma das janelas e um bulício confuso e distante nas barracas atrás da casa. Fora isto, o silêncio era profundo, cálido e tranquilizante .
Bond caminhou cautelosamente através do hall e pelas escadas acima, assentando os pés inteiros no chão e usando as extremidades dos degraus onde havia menos probabilidade de a madeira estalar. Não se ouvia barulho no corredor, mas Bond viu que sua porta, lá no fim do mesmo, estava aberta. Retirou o revólver da axila e foi seguindo depressa pela passagem atapetada.
Krebs estava de costas para ele. Achava-se ajoelhado no meio do quarto com os cotovelos no chão. Suas mãos se encontravam nas rodas do fecho de segredo da pasta de couro de Bond. Toda sua atenção focalizava-se no estalido das linguetas do fecho.
O alvo era tentador, e Bond não hesitou. Seus dentes apareceram num sorriso cruel, deu dois passos rápidos para dentro do quarto e mandou o pé com violência.
Toda sua força se concentrava na ponta do sapato, e seu equilíbrio e tempo foram perfeitos.
Um grito de gralha partiu de Krebs quando, como a caricatura de um sapo pulando, saltou por cima da pasta de Bond mais ou menos um metro adiante, batendo na frente da cômoda de mogno. Sua cabeça foi de encontro ao centro com tanta fôrçia, que a pesada peça dançou na base. O grito foi abruptamente interrompido, e ele tombou esticado e inerte sobre o tapete, ali permanecendo.
Bond ficou olhando e esperando ouvir o som de passos apressados, mas o silêncio continuou a reinar dentro da casa. Passou por cima do corpo, curvou-se sobre ele e ajeitou-o de costas. O rosto em torno do borrão do bigode amarelo estava pálido e um pouco de sangue escorria de um corte no alto da fronte. Os olhos continuavam fechados, e a respiração normal.
Bond ajoelhou-se num lado só e começou a dar uma busca minuciosa em todos os bolsos do terno alinhado, cinzento, de listas fininhas, que o homem trajava, colocando desapontado o magro conteúdo no tapete ao lado do corpo. Não havia caderninhos de nota nem papéis. Os únicos objetos de interesse eram um molho de chaves-mestras, uma faca de mola com uma lâmina de estilete bem amolada e uma espécie de cassetete de couro preto em forma de trouxa. Bond guardou essas coisas no bolso, foi até a mesinha de cabeceira e pegou a garrafa intacta de água de Vichy.
Foram necessários cinco minutos para fazer Krebs voltar a si e fazê-lo sentar-se com as costas apoiadas na cômoda. Mais cinco para que recuperasse a voz. Pouco a pouco a cor foi voltando-lhe ao rosto e a astúcia aos olhos.
— Não respondo perguntas a não ser a Sir Hugo — declarou quando Bond começou o interrogatório. — Você não tem o direito de me fazer perguntas. Eu cumpria meu dever.
Sua voz era mal-humorada e segura de si.
Bond segurou a garrafa vazia de Vichy pelo gargalo.
— Refuta novamente. Do contrário, eu lhe bato com isto até quebrar, e depois usarei o gargalo para alguma cirurgia plástica. Quem lhe mandou revistar meu quarto?
— Leck mich am Arsch — Krebs cuspiu o insulto obsceno na cara de Bond.
Este curvou-se e vibrou-lhe violenta pancada nas canelas.
O corpo de Krebs dobrou-se mas, quando Bond tornou a levantar o braço, ergueu-se subitamente do chão e mergulhou por baixo da garrafa que descia. O golpe pegou-o rijo no ombro, porém não lhe cortou o ímpeto, e ele se encontrou do outro lado da porta, já no meio do corredor, antes de Bond partir em sua perseguição.
Bond parou então do lado de fora da porta e observou a figura ligeira desaparecer pelas escadas, fora de suas vistas. Em seguida, o rinchar das solas de borracha descendo às pressas as escadas se fez ouvir até atravessar o hall. Bond riu abruptamente para si mesmo, voltou para o quarto e fechou a porta. Além de quase arrebentar a cabeça do sujeito, tudo indicava que não arrancaria nada dele. Animal astucioso. Seus ferimentos não poderiam ter sido assim tão maus, no fim das contas. Bem, caberia a Drax castigá-lo. A não ser, naturalmente, que Krebs estivesse executando suas ordens.
Pondo em ordem a confusão do seu quarto, Bond sentou-se na cama e olhou a parede do lado oposto com olhos que nada viam. Não tinha sido apenas o instinto que o levara a dizer a Drax que iria até o ponto do tiro, em vez de voltar para a casa. Passara-lhe seriamente pela ideia o fato de que a espionagem de Krebs era feita por ordem de Drax e que este organizava seu próprio sistema de segurança. Entretanto, de que maneira isto se entrosava com as mortes de Tallon e Bartsch? Ou o duplo assassínio teria sido uma coincidência sem nenhuma relação com as marcas do mapa e as impressões digitais de Krebs?
Como que chamado pelos seus pensamentos, bateram à porta, e o mordomo entrou. Vinha seguido por um sargento da polícia, com o uniforme de patrulheiro de estrada, que fez continência e entregou um telegrama a Bond. Bond levou-o até a janela. Vinha assinado: Baxter, que queria dizer Vallance, e dizia:
PRIMEIRA CHAMADA VEIO DA CASA SEGUNDO LUGAR NEVOEIRO EXIGIU FUNCIONAMENTO BUZINA DE NEVOEIRO DE MODO QUE NAVIO FOI OUVIDO VÍRGULA NÃO OBSERVOU NADA TERCEIRO LUGAR SUA ÁREA SUSPEITA FICA MUITO PERTO PRAIA ASSIM FORA DAS VISTAS DOS ÚLTIMOS PONTOS DOS GUARDA-COSTAS DE SAINT MARGARET OU DEAL.
— Obrigado — disse Bond. — Não tem resposta.
Depois de fechar a porta, chegou o isqueiro aceso ao telegrama e depois deixou-o cair na lareira, reduzindo os restos queimados a pó com a sola do sapato.
Dali nada mais se aproveitava, exceto que a chamada de Tallon para o Ministério poderia realmente, ter sido ouvida por alguém da casa, o que teria resultado na busca em seu quarto, que, por sua vez, teve como consequência a morte do major. Mas que dizer de Bartsch? Se tudo aquilo fazia parte de uma coisa muito maior, como poderia ser ligada a um atentado de sabotagem ao foguete? Não seria muito mais simples supor que Krebs era um espião nato, ou ainda mais provável, que estivesse trabalhando para Drax, que parecia ser meticulosamente cônscio da necessidade de segurança e que podia também querer certificar-se da lealdade de seu secretário, de Tallon, e, sem dúvida, depois do encontro no Blades, de Bond? Não seria agir justamente como o chefe (e Bond conhecera alguns que se adaptariam perfeitamente ao tipo) de um projeto super-secreto durante a guerra, que reforçava a segurança oficial com seu próprio sistema de espionagem particular?
Se essa teoria fosse correta, restava apenas o duplo assassínio. Agora que Bond fora contagiado pela magia e tensão do “Explorador da Lua”, os fatos referentes aos tiros histéricos pareciam mais razoáveis. Quanto às marcas no mapa, poderiam ter sido feitas num dia qualquer do ano anterior; os binóculos para noite eram isto apenas: binóculos para noite, e os bigodes dos homens apenas uma quantidade de bigodes.
Bond sentou-se no quarto silencioso, remexendo as peças do quebra-cabeças, de modo que dois quadros inteiramente diversos se alternavam em sua mente. Num deles o sol brilhava, tudo estava límpido e inocente como o dia. O outro era uma confusão culposa de motivos, suspeitas obscuras e interrogações de pesadelo.
Quando o gongo soou para o almoço, ele ainda não sabia que quadro escolher. Para adiar a decisão, afastou do espírito tudo, menos as perspectivas da tarde que passaria sozinho com Gala Brand.
CAPITULO 16
UM DIA GLORIOSO
Era uma tarde maravilhosa, azul, verde e dourada. Quando deixaram a faixa de concreto passando pelo portão da guarda, perto do ponto de tiro, agora ligado à base de lançamento por um grosso cabo, pararam um momento à beira do grande penhasco calcário e ficaram olhando todo o trecho da Inglaterra onde César ancorara pela primeira vez dois mil anos atrás.
À esquerda, o tapete de grama verde, salpicado de pequeninas flores silvestres descia gradativamente para as longas praias de pedregulho de Walmer e Deal, que se curvavam para Sandwich e a baía. Mais além, os penhascos de Margate, surgindo brancos dentre a névoa distante que ocultava o North Foreland, guardavam a mancha cinzenta do aeródromo de Manston, acima do qual aviões a jato norte-americanos descreviam suas parábolas no céu. Em seguida, vinha a Ilha de Thanet e, fora do raio visual de ambos, a embocadura do Tâmisa.
A maré era baixa, e os Goodwins pareciam dourados e suaves dentro do azul cintilante do Canal mostrando apenas o conjunto de mastros e cordames que se esticavam para contar a verdadeira história. As letras brancas do navio-farol South Goodwin estavam fáceis de ler, e até o nome do navio irmão, mais para o norte, surgia branco contra o vermelho do casco.
Entre as areias da costa, ao longo do canal de doze braças do Inner Leads, havia meia dúzia de navios navegando pelo Downs. O som ritmado de seus motores destacava-se claramente dentro do mar calmo e, entre as areias cruéis e o contorno nítido da costa francesa, viam-se navios de todas as procedências rumando para seus destinos — navios de passageiros de linha regular, navios mercantes, rústicas chalupas holandesas e até uma esguia corveta correndo para o sul, talvez para Portsmouth. Até onde a vista alcançava, o lado oriental mais próximo da Inglaterra estava coalhado de embarcações, dirigindo-se para os horizontes distantes, para um porto nacional ou para o outro lado do mundo. Era um panorama cheio de colorido, excitação e romance, e as duas criaturas, ali na borda do penhasco, mantinham-se em silêncio enquanto permaneciam por algum tempo observando tudo.
A paz foi turbada por dois uivos de sirena, provenientes da casa, e eles se viraram, para olhar o mundo negro e feio de concreto, que haviam banido de seus espíritos. Enquanto olhavam, uma bandeira vermelha foi hasteada por cima da cúpula de lançamento, e duas ambulâncias da RAF, com as cruzes vermelhas nos lados, irromperam do renque de arvoredo, na direção do muro, e aí estacaram.
— Vai começar a operação combustível — disse Bond. — Vamos principiar nosso passeio. Nada haverá para ver e, se por acaso acontecesse alguma coisa, nós não sobreviveríamos, quase com certeza, no ponto em que nos encontramos.
A moça sorriu.
— É verdade. E eu já estou cheia de olhar para todo esse concreto.
Seguiram ambos pelo declive suave e, dentro em pouco, encontravam-se já longe do alcance de tiro e da alta cerca de arame.
O gelo da reserva de Gala derretia-se rapidamente ao sol.
A alegria exótica de sua toalete, uma blusa de algodão listrada de branco e preto, metida num cinto largo, pespontado à mão, também preto, encimava uma saia meio curta, rosa shocking, e o conjunto parecia contagiá-la. Era impossível, para Bond, reconhecer a mulher frígida e distante da noite anterior naquela que caminhava agora a seu lado, rindo e feliz de sua ignorância a respeito dos nomes de flores selvagens: a erva de S. Pedro, a fumaria e outras, em tons azuis, que rodeavam seus pés.
Triunfalmente, encontrou uma orquídea selvagem e colheu-a .
— Você não faria isso, se soubesse que as flores gritam quando são colhidas — disse Bond.
Gala olhou para ele.
— Que quer você dizer com isso? — perguntou, suspeitando um gracejo.
— Ah, você não sabia? — Bond sorriu, ao observar a reação de Gala. — Existe um professor hindu, chamado Bhose, que escreveu um tratado sobre o sistema nervoso das flores. Mediu a reação delas à dor. Chegou mesmo a registrar o grito de uma rosa, quando é colhida. Deve ser um dos sons mais lancinantes do mundo, não lhe parece? Pois eu ouvi algo de semelhante quando você colheu essa flor.
— Não acredito — disse Gala, olhando desconfiada para a raiz arrancada. — Mas, de qualquer maneira — acrescentou, maliciosa — eu jamais pensaria que você fosse capaz de sentimentalismos. As pessoas, no seu Serviço, não fazem de matar um ofício? E não são apenas flores. São pessoas.
— As flores não podem atirar em nós, também — disse Bond.
Gala olhou a flor.
— Agora você me fez sentir como se fosse uma criminosa. É muita maldade sua. Mas — confessou relutante — terei de descobrir essa história do hindu, e se você tiver dito a verdade, nunca mais apanharei uma flor enquanto viver. Que faço com esta? Você me fez sentir com as mãos sangrando completamente.
— Dê para mim. De acordo com você, minhas mãos já estão gotejando sangue. Um pouco mais não fará diferença.
A moça ofereceu-lhe a flor, e suas mãos se tocaram.
— Você poderá colocá-la no cano do revólver — falou, para disfarçar o instante do contato.
Bond riu:
— Quer dizer que os orifícios não servem só para decoração. Mas a minha é uma pistola automática, e eu deixei-a no quarto.
Enfiou o talo da flor numa das casas de sua camisa de algodão:
— Achei que um coldre de ombro chamaria um pouco a atenção sem o paletó para cobri-lo. Depois não acredito que ninguém vá mexer em meu quarto esta tarde.
Numa concordância tácita, eles se afastaram do momento de intimidade. Bond contou sua descoberta a respeito de Krebs e a cena do quarto.
— Foi bem feito para ele. Nunca confiei nesse homem. Mas o que é que diz Sir Hugo?
— Falei com ele antes do almoço — respondeu Bond.
—Entreguei-lhe a faca e as chaves de Krebs como prova. Ficou furioso e saiu imediatamente à procura do sujeito, resmungando de cólera. Quando voltou, me disse que Krebs parecia já se encontrar num estado deplorável e perguntou se eu não me dava por satisfeito ao saber que fora bem castigado. Repetiu toda aquela história de não querer perturbar sua equipe na última hora, etc. e tal. De modo que concordei em que fosse mandado de volta à Alemanha na próxima semana e que, enquanto isto, se considerasse preso sob palavra — sendo-lhe permitido apenas deixar o quarto vigiado.
Bond e sua companheira desceram um caminho íngreme do penhasco até a praia, virando à direita, para Royal Marine, em Deal. Caminharam em silêncio até chegarem a uma extensão de duas milhas de uma praia coberta de cascalho que, durante o tempo de maré baixa, corre entre os elevados penhascos brancos até a baía de Sta. Margarida.
Enquanto esmagavam lentamente as pedrinhas macias, Bond contou tudo que lhe passara pela cabeça desde o dia anterior. Não guardou nada. Relatou todos os passos tomados, as pistas falsas que seguira em cada um dos pontos de partida, não deixou nada por comentar, exceto uma tênue suspeita mal fundada e um amontoado de indícios que terminavam todos na mesma interrogação. . . onde estava o X da história? Onde achar um plano no qual os indícios se encaixassem? E sempre a mesma resposta: nada do que Bond sabia ou suspeitava parecia ter qualquer relação concebível com a segurança contra a sabotagem do “Explorador da Lua”. Isto, no entanto, quando tudo fora dito e feito, era a única coisa com que ele e a moça tinham que ver. Não com a morte de Tallon e Bartsch, ou com o ordinário Krebs, mas somente com a proteção de todo o projeto relacionado com o “Explorador da Lua” contra seus possíveis inimigos.
— Não é verdade? — finalizou Bond.
Gala parou e ficou um momento olhando por entre as rochas e algas a calma cintilação das ondas do mar. Estava suada e ofegante depois da caminhada difícil pelo caminho de cascalhos. Pensava como seria maravilhoso tomar um banho de mar — voltar por um momento aos dias da infância à beira-mar, antes de sua vida ter sido presa nesta estranha profissão, cheia de emoções decepcionantes e tensões nervosas. Olhou o rosto moreno e cruel do homem ao seu lado. Será que teria momentos de anseio pelas coisas simples e calmas da vida? Com certeza não. Gostava de Paris, Berlim e New York, trens, aviões, comida cara e, sim, certamente, de mulheres caras.
— Então? — perguntou Bond, conjeturando se ela ia apresentar algum indício que ele não percebera. — Que é que acha?
— Desculpe. Eu estava sonhando acordada. Não, eu acho que você tem razão. Estou aqui desde o princípio e, apesar de ter notado coisinhas estranhas de vez em quando, fora os tiros resultando em duas mortes, claro, não vi absolutamente nada de incorreto. Todos os componentes da equipe, de Sir Hugo para baixo, estão de corpo e alma dedicados ao foguete. Vivem unicamente para isso, e tem sido maravilhoso ver tudo se desenvolver. Os alemães são trabalhadores ao extremo — posso bem acreditar que Bartsch tenha perecido pela tensão exagerada dos nervos — gostam de ser dirigidos por Sir Hugo, e ele gosta de dirigi-los. Eles adoram-no. Quanto à segurança, o local está sólido e bem guarnecido. Tenho certeza de que se alguém quisesse se aproximar do “Explorador da Lua” seria feito em pedaços. Concordo com você a respeito de Krebs e que ele, provavelmente, estivesse agindo sob as ordens de Drax. Foi por isto que não me dei o trabalho de ir contar--lhe quando ele andou mexendo nas minhas coisas. Não havia nada para ele encontrar, naturalmente. Só cartas particulares e coisas assim. Seria típico de Sir Hugo procurar certificar-se com absoluta minúcia. Aliás, devo dizer que o admiro por isto — acrescentou com franqueza. — Ele é um homem cruel, com maneiras deploráveis, e não muito simpático debaixo de toda aquela cabelada vermelha, mas eu gosto de trabalhar para ele e estou ansiosa para que o “Explorador da Lua” seja um sucesso. Viver ao lado dele durante tanto tempo fez com que eu me sentisse exatamente como seus homens.
Gala levantou os olhos para ver a reação do companheiro. Este baixou a cabeça, assentindo.
— Depois de um dia apenas, eu posso compreender isto — disse. — Creio que concordo com você. Não há nada em que nos basearmos, exceto minha intuição, e isto é uma coisa que não conta. O principal é que o “Explorador da Lua” parece seguro, tão seguro quanto as joias da Coroa e, provavelmente, ainda mais.
Bond sacudiu os ombros impaciente, aborrecido consigo mesmo, por renegar as intuições que contavam tanto em seu trabalho.
— Vamos embora — convidou quase rude. — Estamos perdendo tempo.
Compreendendo, a moça sorriu e seguiu o companheiro.
Contornando a próxima inclinação do penhasco, chegaram à base do elevador, coberto de algas marinhas e crustáceos . . . Cinquenta jardas mais adiante alcançaram o dique, construção forte, tubular, de ferro, calçado de tiras de aço entrelaçadas, que avançava sobre as rochas e mais além.
Entre os dois, e talvez uns vinte pés acima da face do penhasco, escancarava-se a boca negra e larga do túnel de exaustão, que subia inclinada dentro do penhasco para o chão de aço sob a popa do foguete. Da borda inferior da cavidade, giz derretido caía como lava, e viam-se respigos da matéria por cima de todos os pedregulhos e rochas lá embaixo. Com os olhos da imaginação, Bond via um rastro ofuscante de flama branca surgir uivando da parede do penhasco e ouvia o sibilo e borbulhar, quando o giz líquido se derramava na água.
Levantou os olhos para a estreita faixa da cúpula de lançamento que aparecia acima da borda do penhasco, duzentos pés acima, imaginando os quatro homens com suas máscaras contra gases, vestidos com roupas de asbetos, observando os instrumentos medidores enquanto o terrível líquido explosivo pulsava pelo tubo negro de borracha até o estômago do foguete. De repente, percebeu que se encontravam dentro do raio de ação, se alguma coisa não desse certo no enchimento de combustível.
— Vamos sair daqui — disse à pequena.
Quando umas cem jardas se interpuseram entre eles e a cavidade, Bond parou e olhou para trás. Imaginou-se acompanhado de mais seis homens fortes e durões, com todos os instrumentos necessários — e conjeturou como daria início a um ataque à base, vindo do mar — embarcações presas ao cais, quando a maré estivesse baixa; uma escada na borda da cavidade? e depois o quê? Seria impossível galgar as paredes de aço polido do túnel exaustor. Seria uma questão de disparar uma arma antitanque através do chão de aço por baixo do foguete, seguida de algumas granadas de fósforo, e esperar que alguma coisa pegasse fogo. Negócio meio confuso, mas que talvez desse resultado. Sair depois seria complicado. Seriam alvos fáceis para quem estivesse no topo do penhasco. Mas isto não perturbaria um esquadrão suicida russo. Era tudo muito possível de realizar.
Gala estivera ao seu lado, observando os olhos que mediam e especulavam.
— Não é tão fácil como você pensa — disse, vendo-lhe a testa franzida. — Mesmo quando a maré é alta e o mar muito forte, colocam guardas ao longo do cimo do penhasco de noite. Eles têm holofotes, Brens e granadas. As ordens que recebem são de atirar, e fazerem as perguntas depois. Naturalmente seria melhor iluminar completamente o penhasco à noite. Mas isto só serviria para tomar a base um alvo certeiro. Estou convencida de que pensaram em tudo.
Bond continuava franzindo a testa.
— Se eles tivessem cobertura do ataque por um submarino ou uma embarcação, um grupo eficiente ainda conseguiria realizar o negócio. Vai ser o diabo, mas eu vou nadar. O mapa do Almirantado diz que existe um canal de doze braças ali adiante, mas eu gostaria de dar uma olhada. Deve ter muita água no final do dique, contudo eu me sentirei mais feliz quando verificar com meus próprios olhos.
Sorriu para a moça:
— Por que você não vem nadar também? A água deve estar bastante fria, mas lhe faria bem, depois de ter estado a cozinhar-se dentro daquela cúpula de concreto a manhã inteira .
Os olhos de Gala se iluminaram.
— Acha que eu posso? — perguntou, hesitante. — Estou com um calor tremendo. Mas que é que nós vamos vestir?
Corou ao lembrar-se de suas calcinhas e porta-seios minúsculos e de nylon quase transparentes.
— Deixe isto pra lá — disse Bond aèreamente.
— Você deve ter alguns trapinhos vestidos aí por baixo, e eu estou de short. Estaremos perfeitamente respeitáveis, e não há ninguém por aqui para ver. Depois, eu prometo não olhar — mentiu alegremente, seguindo na frente até a próxima inclinação do penhasco.
— Você se despe atrás dessa rocha, e eu desta outra.
— Vamos. Não seja tola. Tudo faz parte de nossas obrigações .
Sem esperar a resposta dela, encaminhou-se para trás de uma rocha elevada, tirando a camisa enquanto andava.
— Ora, muito bem — disse Gala, aliviada por ter a resolução sido tirada de suas mãos. Foi para trás de outra rocha e lentamente desabotoou a saia.
Quando espiou nervosamente para fora, Bond já ia na metade do trecho de áspera areia marrom que seguia por entre os pequenos lagos para onde a maré enchente rodopiava entre os verdes e negros detritos das rochas... O rapaz tinha uma aparência elástica e a pele bronzeada. O short azul era tranquilizador.
Pisando de leve, ela seguiu-o e, de repente, estava dentro d’água. Imediatamente nada mais teve importância, fora do gelo aveludado do mar, a beleza das manchas de areia por entre os cabelos ondulados das algas marinhas que via nas profundezas verdes e claras abaixo dela quando mergulhou a cabeça e nadou paralelamente à praia num rápido crawl.
Ao se encontrar ao nível do dique, parou um momento para tomar fôlego. Não se via sinal de Bond, que ela vira nadando vários metros à frente. Bateu com os pés fortemente dentro da água para manter viva a circulação e então recomeçou novamente, pensando nele sem querer, pensando no corpo rijo e moreno que devia estar ali por perto, entre as rochas, talvez, ou mergulhando para a areia, a fim de calcular a profundidade da água com que um inimigo podia contar.
Virou-se para procurá-lo de novo, e foi então que ele surgiu inesperadamente do mar, por baixo dela. Sentiu o abraço rápido e apertado e o contato breve mas forte dos lábios dele nos seus.
— Vá para o diabo — exclamou furiosa, mas o rapaz já bavia mergulhado novamente, e quando ela golfou uma porção de água do mar, conseguindo orientar-se, ele nadava alegremente a vários metros de distância.
Gala voltou-se e nadou displicente, sentindo-se bastante ridícula, porém resolvida a pô-lo no seu lugar. Era exatamente como tinha pensado. Esse pessoal do Serviço Secreto sempre encontrava tempo para o sexo, por mais importante que fosse a missão de que se encarregavam.
Mas seu corpo vibrava obstinadamente com o imprevisto do beijo, e o dia luminoso parecia ter adquirido nova beleza. Enquanto nadava mais para fora, virou-se e olhou os dentes brancos como leite, dentes da Inglaterra que rosnavam, olhou o braço distante de Dover, o confete branco e preto dos corvos e gaivotas, jogados contra o vivido pano de fundo dos campos verdes, e chegou à conclusão de que tudo seria permitido num dia assim e que, só por aquela vez, ela o perdoaria.
Meia hora depois estavam deitados, esperando que o sol viesse secá-los, separados pela respeitável distância de um metro de areia, ao pé do penhasco.
O beijo não fora mencionado, mas os esforços de Gala para manter uma atitude de alheamento haviam tombado com a excitação de examinar uma lagosta que Bond apanhara com as mãos, ao mergulhar. Relutantemente, tornaram a colocá-la numa das cavidades da rocha e ficaram observando seus movimentos de volta ao abrigo das algas marinhas. Agora, ali estavam, cansados e alegres com o banho gelado, rezando para que o sol não se escondesse atrás do penhasco acima de suas cabeças antes de estarem aquecidos e suficientemente secos para poder vestirem novamente as roupas.
No entanto, não eram só estes os pensamentos de Bond. O lindo corpo estirado da pequena ao seu lado, incrivelmente erótico na ênfase marcante das calcinhas e porta-seios agarrados à pele, interpunha-se entre ele e sua preocupação com o “Explorador da Lua”. Além do mais, não havia nada que ele pudesse fazer pelo foguete durante mais uma hora. Ainda não eram cinco, e a tomada de combustível não terminaria senão depois das seis.
Seria somente àquela hora que ele poderia aproximar-se de Drax para certificar-se de que nas duas próximas noites haveria um acréscimo de guardas no penhasco e que eles possuíam as armas adequadas. Pois verificara com os próprios olhos que havia muita água, mesmo com a maré vazante, possibilitando a chegada de um submarino.
De modo que contava pelo menos com um quarto de hora livre antes de poderem voltar.
No intervalo havia essa pequena. O corpo semidespido surgia acima dele na superfície, quando nadava em baixo dela; o beijo rápido, forte e suave ao mesmo tempo, com os braços em torno dele; as colinas pontudas de seus seios, tão próximas e o estômago macio e raso, descendo para o mistério das coxas fortemente cerradas.
Para o inferno, toda essa história.
Arrancou o espírito dessa febre e fitou diretamente o infindável azul do céu, forçando-se a observar a beleza das gaivotas esvoaçantes ao se alinharem sem nenhum esforço entre as correntes de ar que giravam sobre o alto topo dos penhascos acima deles. Mas a plumagem sedosa e branca do colo das aves desviou novamente seus pensamentos para ela, não lhe dando descanso.
— Por que você se chama Gala? — perguntou, para interromper a sequência de pensamentos cálidos e persistentes.
A moça riu.
— Durante todo meu tempo de escola mexiam comigo por causa disso — respondeu, e Bond se impacientou diante da voz clara, fácil. — Depois, quando pertenci às Wrens e ainda pela metade da força policial de Londres. Mas meu verdadeiro nome é ainda pior. É Galateia. Era o cruzador onde meu pai servia quando eu nasci. Creio que Gala não é tão ruim assim. Quase me esqueci do meu nome de verdade. Estou sempre precisando trocá-lo, agora que estou na Seção Especial.
— Na Seção Especial. Na Seção Especial. Na. . .
Quando a bomba cai. Quando o piloto calcula mal, e o avião bate antes de tocar a pista de aterrissagem. Quando o sangue deixa o coração, e a consciência foge, há pensamentos no cérebro, ou palavras, ou talvez uma frase musical que se repete durante os poucos segundos antes da morte, como o som moribundo de um sino.
Bond não estava morto, mas as palavras ainda estavam dentro de sua mente, vários segundos depois de tudo haver acontecido.
Desde o momento em que tinham-se deitado na areia, recostados no penhasco, enquanto seus pensamentos se concentravam em Gala, seus olhos haviam observado distraidamente duas gaivotas brincando em redor de uma ponta de palha que estava na beira do ninho, numa pequena saliência, cerca de uns trezentos metros abaixo do cume distante do penhasco. Inclinavam os pescoços e pareciam cumprimentar, em seu jogo amoroso, só com as cabeças, que Bond divisava contra o branco ofuscante do céu. Então o macho voava para longe e, imediatamente voltava à saliência da rocha, para recomeçar seu jogo de amor.
Bond observava-os sonhadoramente enquanto ouvia o que a moça dizia, quando, subitamente, as duas gaivotas fugiram da saliência da rocha com um só grito de pavor. No mesmo instante viu-se um rolo de fumaça negra e ouviu-se um estrondo amortecido vindo do alto do penhasco. Em seguida, uma grande quantidade de giz branco, bem acima das cabeças de Bond e Gala, pareceu desligar-se para fora, ziguezagueando fragmentos pela encosta.
Quando Bond se deu conta do que fazia, achou-se deitado em cima de Gala, o rosto apertado contra o dela, e percebeu que o ar estava cheio de trovões, que sua respiração estava abafada, e que o sol desaparecera. Sentia as costas dormentes e doendo sob um grande peso, e sua orelha esquerda, além do eco do trovão, guardava o som de um grito sufocado.
Mal teve consciência do se passava, e precisou esperar até que seus sentidos voltassem à vida.
A Seção Especial. O que foi que ela disse a respeito da Seção Especial?
Fez esforços inauditos para se mexer. Apenas no braço direito, o braço mais próximo do penhasco, ainda havia algum movimento, mas quando puxou o ombro, o braço ficou mais livre até que, finalmente, com um impulso grande para trás, a luz e o ar chegaram até eles. Lutando no nevoeiro de poeira de giz, alargou o buraco, até a cabeça poder retirar seu peso esmagador de cima de Gala. Sentiu o leve movimento, quando ela virou a cabeça para um lado, procurando a luz e o ar. Uma torrente de poeira e pedras no buraco que ele limpara fê-lo cavar ferozmente mais uma vez. Pouco a pouco, aumentou o espaço até conseguir firmar o cotovelo direito, e então, tossindo ao ponto de imaginar que os pulmões iam arrebentar, impulsionou o ombro direito para cima até que, de repente, livrou-o, bem como a cabeça.
Seu primeiro pensamento foi que tinha havido uma explosão no “Explorador da Lua”. Levantou os olhos para o penhasco e depois para a praia. Não. Estavam a cem metros da base. Foi apenas na linha do horizonte, diretamente acima deles, que um grande pedaço fora comido no penhasco.
Em seguida pensou no perigo imediato que corriam. Gala gemia, e ele sentia o frenético bater de seu coração contra o próprio peito, mas a máscara pavorosa e branca de seu rosto estava agora livre para respirar, e ele se pôs então a girar o corpo de um lado para o outro em cima dela, a fim de tentar aliviar a pressão de seus pulmões e do estômago. Lentamente, polegada por polegada, seus músculos partindo-se com o esforço, procurou caminho sob a pilha de poeira e detritos até o lado do penhasco, onde sabia que o peso seria menor.
Finalmente livrou o peito e pôde ajoelhar-se ao lado da companheira. O sangue pingava de suas costas e braços feridos, misturando-se com a poeira de giz que continuamente caía na parte lateral dos buracos que fizera mas verificou que não tinha ossos quebrados e, com a fúria do trabalho de salvamento, não sentiu dores.
Grunhindo e tossindo, sem uma pausa para respirar, ergueu-a e fê-la sentar-se e, com a mão sangrando, limpou um pouco do giz de seu rosto. Depois, livrando as pernas da tumba de giz, levantou-a e levou-a até uma elevação dos detritos, com as costas voltadas para o penhasco.
Ajoelhou-se e olhou aquele horrível espantalho branco que, minutos antes, fora uma das mais lindas moças que já vira. Enquanto olhava os filêtes de sangue escorrendo-lhe pelo rosto, rezou para que seus olhos se abrissem.
Quando, segundos mais tarde, eles se abriram, o alívio foi tão grande, que Bond se afastou e sofreu tremenda crise de náuseas.