CAPÍTULO 7
MÃO LIGEIRA
Houve um momento de silêncio em torno da mesa. Foi quebrado pela voz agitada de Meyer.
— Tomem todos nota, não me incluam nisto. Ouviu, Hugger?
Sabia que se tratava de uma aposta particular com Bond, mas queria mostrar a Drax que se sentia bastante nervoso a respeito de toda aquela história. Viu-se cometendo algum erro tremendo que iria custar um mundo de dinheiro a seu próprio parceiro.
— Não seja ridículo, Max — advertiu Drax, com aspereza. — Você joga sua mão. Isto nada tem que ver com você. Trata-se apenas de uma pequena e agradável aposta com nosso temerário amigo. Vamos, vamos. Sou eu a dar cartas, Almirante.
M. cortou as cartas, e o jogo começou.
Bond acendeu um cigarro com as mãos que se haviam tornado subitamente firmes. Sua mente estava límpida e lúcida. Sabia exatamente o que tinha a fazer e quando, sentindo-se satisfeito porque o momento da decisão chegara.
Recostou-se na cadeira e, por um momento, teve a impressão de que havia uma multidão postada detrás dele. De cada lado de seus ombros, faces estavam procurando espreitar as cartas. Tinha uma vaga impressão de que eram fantasmas amigos, que aprovavam a rude justiça prestes; a ser sentenciada .
Sorriu ao surpreender-se enviando uma mensagem a essa turba de jogadores mortos, para que eles vissem que tudo corria bem.
Os ruídos familiares da célebre sala de jogo penetraram-lhe o cérebro. Lançou a vista em redor. No meio do comprido salão, sob o candelabro central, havia diversos espectadores, assistindo a uma partida de pôquer. “Aposto cem.” “Seus cem e mais cem.” “Que vá para o diabo! Vejo.” E um grito de triunfo, seguido do murmúrio de comentários. Ouvia ao longe o raspar da pá de um crupiê contra as fichas de um jogo de Shemmy. Mais próximo, do lado do salão onde ele se encontrava, havia três outras mesas de bridge, da qual se evolava a fumaça dos charutos e cigarros, subindo em direção ao teto de grossas vigas.
Quase todas as noites, durante mais de cento e cinquenta anos, tinha se repetido exatamente a mesma cena, refletiu Bond, naquele famoso salão. Os mesmos gritos de vitória e derrota, os mesmos rostos atentos, o mesmo cheiro de fumo e drama. Para Bond, que adorava jogar, era o espetáculo mais excitante do mundo. Lançou em redor um último olhar, a fim de gravar tudo aquilo no espírito e, depois, voltou-se para a mesa.
Pegou as cartas, e seus olhos faiscaram. Pela primeira vez, as cartas dadas por Drax eram simplesmente maravilhosas; sete espadas, com quatro máximas, o ás de copas, ás e rei de ouros. Olhou para Drax. Teriam ele e Meyer os paus? Mesmo assim, ele podia tentar um overbid. Será que Drax procuraria forçá-lo demasiado alto e arriscar uma dupla? Bond aguardou.
— Não ofereço nada — disse Drax, incapaz de não trair pela voz a amargura de seu conhecimento a respeito da bela mão de Bond.
— Quatro espadas — disse Bond.
Meyer não reagiu, nem M. Drax só com relutância. M. trouxe alguma ajuda, e fizeram cinco vazas.
Cento e cinquenta pontos abaixo da linha. Cem acima para as figuras.
— Hummm. . . — fez uma voz ao lado de Bond. Este ergueu os olhos. Era Basildon. Sua partida de bridge já terminara, e ele aproximava-se para ver o que estava acontecendo naquele outro campo de batalha.
Pegou a folha dos escores de Bond e examinou-a.
— Foi um jogo para matar, hem? — disse, alegremente. — Parece que você está liquidando os campeões. Quais são as apostas?
Bond deixou a resposta para Drax. Ficou satisfeito pela interrupção. Não poderia ter chegado em melhor altura. Drax cortara as cartas azuis para ele. Então, Bond juntou as duas metades e colocou o baralho na sua frente, próximo à borda da mesa.
— Quinze e quinze, à minha esquerda — informou Drax.
Bond ouviu Basildon perder a respiração.
— O camarada, continuou Drax — parecia ter vontade de jogar. De modo que concordei com ele. Pois começou por ficar com as melhores cartas. . .
Drax continuava resmungando.
Do outro lado da mesa, M. viu um lenço branco materializar-se na mão direita de Bond. Os olhos de M. se apertaram. Bond parecia limpar o rosto com ele. M. viu-o olhar intensamente para Drax e Meyer, voltando a colocar depois o lenço no bolso.
Bond tinha nas mãos um baralho azul e começara a dar as cartas.
— Isto é uma aposta de mil demônios — comentou Basildon. — Certa vez, tivemos uma aposta de mil libras, num jogo de bridge, mas isso passou-se durante o período da inflação dos rubbers, antes da guerra de 1914. Faço votos para que ninguém sofra muito com isso.
Basildon era sincero. Apostas muito altas, num jogo particular, geralmente redundam em complicações. Deu alguns passos e foi colocar-se entre M. e Drax.
Bond acabou de dar cartas. Com um quê de ansiedade, recolheu as suas próprias. Nada mais tinha do que cinco paus, até o ás, dama e dez, e oito pequenos ouros, até a dama.
Estava tudo certo. A armadilha fora preparada.
Quase sentiu Drax retesar os músculos, quando examinou suas cartas e depois, incrédulo, voltou a examiná-las. Bond sabia que Drax tinha umas cartas incrivelmente boas. Dez vazas certas, o ás e o rei de ouros, as quatro figuras máximas de espadas e copas, o rei, valete e nove de paus.
Bond havia preparado essas cartas para ele na secretaria, antes do jantar. Aguardou, portanto, conjeturando como seria que Drax reagiria àquela mão fabulosa. Tomou um interesse quase cruel em observar como o peixe guloso vinha morder a isca. Drax foi muito além das expectativas.
Como quem nada quer, juntou as cartas e deixou-as sobre a mesa. Com toda a calma, tirou o maço de cigarros do bolso, escolheu um e acendeu-o. Não olhou para Bond. Ergueu os olhos para Basildon.
— Pois é. . . — foi dizendo, em continuação à conversa de ambos sobre apostas. — É um jogo alto, claro, mas não o mais alto que já joguei, sabe? Certa vez joguei a duas mil libras o rubber, no Cairo. No Mohammed Ali, com efeito, e digo que eles têm peito para valer. Muitas vezes apostam em todas as vazas, assim como na mão e no rubber. — Depois de pegar novamente as cartas, olhou astutamente para Bond e continuou: — Bom, tenho aqui algumas cartas nada más. Confesso que são boas. Mas o negócio é que você também pode ter. Quem sabe?
— “Coisa muito pouco provável, seu velho pirata”, pensou Bond, “se você tem três parelhas de ás-rei na mão.”
— Quer fazer mais uma pequena aposta extra, só nesta mão? — sugeriu Drax.
Bond fingiu estudar as cartas com a minúcia de alguém que já está quase completamente bêbedo.
— Eu também tenho aqui muita coisa boa — avisou com uma voz arrastada. — Se o mesmo se der com meu parceiro, e as cartas caírem bem, eu também posso fazer uma porção de vazas. . . Que é que o senhor propõe?
— Pelo que vejo, estamos em pé de igualdade — mentiu Drax. — Que me diz de cem por cada vaza a mais? Pelo que me diz, creio que não seria muito puxado. . .
Bond parecia pensativo e bastante confuso. Olhou novamente para suas cartas, com atenção, passando-as uma a uma.
— Está bem. Aceito. Francamente, o senhor me fez jogar e apostar demais. É evidente que deve estar com uma senhora mão. De modo que eu preciso eliminá-lo e arriscar-me.
Bond olhou para M. com uns olhos apertados e quase lacrimosos.
— Pague suas perdas nesta mão, parceiro. Aí vamos nós... Sete paus.
No silêncio mortal que se seguiu, Basildon, que vira as cartas de Drax, assustou-se tanto que derrubou o uísque com soda no chão. Depois lançou um olhar meio tonto para os cacos de vidro e deixou-os ficar.
— Que foi que disse?! — perguntou Drax, numa voz assustada e, apressadamente, examinou todas as cartas que tinha na mão, a fim de se certificar.
— O senhor disse grande slam em paus? — tornou Drax a perguntar, fitando curiosamente seu adversário, evidentemente bêbado. — Pois bem, é o seu funeral. Que diz você a isto, Max?
— Não prometo coisa alguma — respondeu Meyer, sentindo no ar a eletricidade. Justamente a crise que ele tinha procurado evitar. Por que diabo não fora para casa, antes desse último rubber? resmungava ele, intimamente.
— Não ofereço — disse M., aparentemente imperturbável.
— Dobro.
A palavra saiu, acintosamente, da boca de Drax. Pousou as cartas na mesa e olhou, cruel e desdenhosamente, para aquele idiota bêbedo, que havia por fim caído em suas mãos, sem apelação.
— Quer dizer que dobra também as apostas por fora? — perguntou Bond.
— Sim, é isso mesmo! — afirmou Drax, ganancioso. — Foi isso que eu quis dizer.
— Está bem — concordou Bond. Fez uma pausa. Olhou para Drax, e não para sua própria mão.
— Redobro. O contrato e as apostas por fora. Quatrocentas libras cada vaza.
Foi naquele instante que o primeiro sintoma de uma dúvida tremenda e incrível penetrou o espírito de Drax. Porém, uma vez mais, olhou as cartas e, mais uma vez, sentiu-se seguro. Na pior das hipóteses, não poderia deixar de fazer duas vazas.
Ouviu-se um sussurro:
— Não ofereço — era a voz sumida de Meyer.
Frase idêntica, e bastante abafada, partiu de M. Por último, uma impaciente sacudida de cabeça por parte de Drax.
Basildon permanecia ali, o rosto imensamente pálido, fitando com intensidade a fisionomia de Bond, do outro lado da mesa.
Depois caminhou lentamente, em redor da mesa inspecionando todas as mãos. O que viu foi o seguinte:
E, subitamente, Basildon compreendeu tudo. Bond dispunha de um Grande Slam à prova de qualquer defesa, exposto sobre a mesa. Com o que fosse que Meyer abrisse, Bond teria um trunfo em sua própria mão ou na mesa. Entretanto, para limpar trunfos, castigando Drax, claro, jogaria duas rodadas de ouros, trunfando sempre e apanhando o às e rei de Drax no processo. Após cinco jogadas, ele ficaria com os restantes trunfos e seis ouros à maior. Os ases e reis de Drax ficariam totalmente destituídos de valor.
Aquilo era puro assassinato, era um massacre.
Basildon, quase em transe, continuava rodeando a mesa, e parou entre M. e Meyer, de maneira a poder observar as fisionomias de Drax e Bond. A sua estava impassível, mas as mãos, que ele metera nos bolsos das calças, para que o não traíssem, transpiravam. Esperou, quase temeroso, o terrível castigo que Drax estava prestes a receber — treze chicotadas separadas, cujas cicatrizes ficam indeléveis em qualquer jogador.
— Vamos, vamos! Saia com alguma coisa, Max. Eu não posso ficar aqui a noite inteira — exclamou Drax, impaciente.
— “Pobre imbecil”, pensou Basildon. “Dentro de dez minutos vai desejar que Meyer tivesse morrido sentado na cadeira, antes de puxar essa primeira carta.”
De fato, Meyer dava a impressão de que ia ter um enfarte, a qualquer momento. Estava mortalmente pálido, e o suor pingava-lhe do queixo, caindo no peitilho da camisa. Tinha a certeza de que sua primeira carta poderia ser um desastre.
Finalmente, raciocinando que Bond podia estar sem nada de bom em seus próprios naipes de espadas e copas, puxou o valete de ouros para abrir.
Não faria diferença se a abertura fosse esta ou aquela, mas quando M. mostrou que estava em branco no naipe de ouros, Drax rosnou para o parceiro:
— Não tinha outra coisa, seu refinado idiota? Quer entregar o rubber a eles numa bandeja? Afinal de que lado está você?
Meyer encolheu-se dentro da roupa.
— Foi o melhor que eu pude fazer, Hugger — explicou, desolado, limpando o rosto com o lenço.
Mas nessa altura Drax já tinha também seus aborrecimentos .
Bond jogou um trunfo na mesa, pegando o rei de ouros de Drax e jogando prontamente, a seguir, uma carta de paus. Drax jogou o nove. Bond pegou-o com o dez e jogou um ouro, trunfando com uma carta da mesa. O ás de Drax caiu. Outro paus da mesa, para levar o valete de Drax.
Depois, coube a vez do ás de paus entrar em cena.
Quando Drax deixou o rei ser levado, entreviu, pela primeira vez, o que poderia estar acontecendo. Seus olhos se fixaram medrosamente em Bond, à espera da próxima carta. Teria Bond os ouros? Não teria Meyer guardado alguns? Afinal de contas, fora o naipe com que abrira. Drax esperou, as cartas escorregadias de suor.
Morphy, o grande jogador de xadrez, tinha um hábito terrível. Jamais levantava os olhos do jogo, enquanto não soubesse que seu adversário já não podia escapar à derrota. Então, costumava levantar lentamente a cabeçorra, fitando com curiosidade seu antagonista, do outro lado do tabuleiro. Este sentia o olhar e, humilde e vagarosamente, erguia os seus para encontrar os de Morphy. Naquele instante compreendia que não adiantava prosseguir com o jogo. Os olhos de Morphy assim diziam. Nada mais restava senão render-se.
Agora, tal como Morphy, Bond ergueu a cabeça e olhou dentro dos olhos de Drax. Em seguida, puxou lentamente a dama de ouros e colocou-a sobre a mesa. Sem esperar que Meyer jogasse, continuou, deliberadamente, soltando na mesa o oito, o sete, o seis, o cinco, o quatro e dois paus de trunfo que lhe sobravam.
Depois falou.
— É só, Drax — articulou com enorme calma, recostando-se na cadeira.
A primeira reação de Drax foi avançar para as cartas de Meyer, arrebatando-as da mão do parceiro. Espalhou-as sobre a mesa, procurando febrilmente entre elas uma possível vencedora.
Depois, atirou-as novamente sobre o pano verde.
Seu rosto tinha a palidez cadavérica, mas os olhos faiscavam brasas na direção de Bond. Repentinamente, ergueu um punho fechado e largou-o com força sobre a mesa, entre os impotentes ases, reis e damas espalhados diante dele.
Muito baixo, cuspiu as palavras para Bond:
— Você é um trapac...
— Basta, Drax! — A voz de Basildon atravessou a mesa como uma chicotada. — Aqui não se usa essa linguagem. Estive observando o jogo todo. Acalme-se. Se tem alguma queixa a fazer, formule-a por escrito ao Comitê.
Drax levantou-se lentamente. Ficou um pouco afastado da cadeira e correu os dedos pelos cabelos ruivos e empapados de suor. A cor foi retornando devagar a seu rosto e, com ela, uma expressão de astúcia. Baixou os olhos para Bond e no seu olho bom bailava uma expressão de desdenhoso triunfo, que o agente achou curiosamente perturbador.
Drax voltou-se para a mesa.
— Boa-noite, cavalheiros — cumprimentou ele, olhando para cada um deles com a mesma expressão estranhamente desdenhosa. — Devo cerca de 15.000 libras. Assumo a responsabilidade pela soma de Meyer.
Inclinou-se para a frente, pegando a cigarreira e o isqueiro. Depois, tornou a olhar para Bond e disse-lhe, em voz muito baixa, arreganhando o bigode ruivo:
— Se eu estivesse no seu lugar, Comandante Bond, trataria de gastar o dinheiro bem depressa.
Então, afastou-se, dando meia-volta e caminhando rapidamente para fora do salão.
SEGUNDA PARTE
TERÇA-FEIRA
CAPITULO 8
O TELEFONE VERMELHO
Embora só se tivesse deitado às duas da manhã, Bond entrou pontualmente no Quartel-General do Serviço Secreto às dez horas desse dia. Sentia-se horrivelmente indisposto. Além de acidez e dor no fígado, em resultado de ter bebido duas garrafas de champanha, sofria daquele toque de melancolia e depressão espiritual causados, em parte, pelos efeitos posteriores da benzedrina e, também em parte, pela reação ao drama da noite anterior.
Quando subia no elevador, ao encontro de mais um dia de rotina, o gosto amargo das noitadas ainda o acompanhava. Depois que Meyer escapara agradecido para a cama, Bond tirara dois baralhos de cartas dos bolsos do casaco e colocara-os sobre a mesa, diante de M. e Basildon. Um era o azul que Drax cortara para ele e que embolsara, substituindo-o pelo outro antecipadamente preparado, que trazia no bolso direito. Havia ainda um outro, vermelho, que ele escondera no bolso esquerdo e não chegara a ser necessário.
Bond abriu o baralho vermelho sobre a mesa e mostrou a M. e Basildon que ele teria produzido o mesmo e tão invulgar Grande Slam que derrotara Drax.
— É o famoso golpe Culberston — explicou. — Empregou-o para embromar suas próprias convenções de traques rápidos . Tive de preparar um baralho vermelho e outro azul. Não podia adivinhar qual a cor com que teria de lidar, quando Drax cortasse para mim.
— Pois olhe, amigo, o resultado do negócio foi fulminante — respondeu Basildon, cheio de gratidão. — Agora, espero que ele tire suas conclusões e se afaste do clube, ou, então, que passe a jogar corretamente, no futuro. Foi uma noite bastante cara para ele. Você nos prestou, sem dúvida, um bom serviço e, ao mesmo tempo, deu uma lição de mão cheia a Drax. Não discutamos, portanto, quanto você ganhou. As coisas poderiam ter falhado, por qualquer motivo, e então seria você quem sairia de orelhas murchas, sofrendo as consequências. Acho muito justo que você embolse. O cheque lhe será entregue no sábado.
Haviam-se despedido, e Bond, num estado de espírito de anticlímax, fora se deitar. Tomara um comprimido suave, um soporífero, para limpar a mente dos estranhos acontecimentos daquela noite e preparar-se para o dia de trabalho no escritório. Antes de dormir ainda refletiu, como sempre acontecera em outros momentos de triunfo nas mesas de jogo, que o ganho do vencedor é, de certa e bizarra maneira, sempre menor que a perda para o vencido.
Quando ele fechou a porta atrás de si, Loelia Ponsonby olhou curiosamente para as sombras escuras sob os olhos de Bond. Este notou o olhar da moça, tal como ela desejava.
O agente fez uma careta, disfarçada em sorriso.
— Parte disto foi trabalho, parte brincadeira — explicou Bond — em companhia estritamente masculina. E muito obrigado pela benzedrina. Precisava dela, e muito! Espero que não tenha alterado seu programa de ontem?
— Claro que não — respondeu a moça, pensando no jantar e no livro da biblioteca, que ela abandonara quando Bond telefonou. Baixou os olhos para a agenda estenografada. — O Chefe de Gabinete telefonou faz meia hora. Disse que M. queria falar-lhe hoje, mas não sabia dizer quando. Informei-o de que você tinha Combate Sem Armas às três da tarde, e ele mandou que cancelasse o exercício. É só. A não ser os relatórios que sobraram de ontem.
— Graças a Deus — disse Bond. — Eu hoje não suportaria andar sendo jogado de encontro àquele malfadado camarada dos Comandos. Chegaram algumas notícias do 008?
— Sim, chegaram. Comunicam que ele está bem. Foi mandado para o hospital militar de Wahnerheide. Aparentemente, trata-se apenas de choque traumático.
Bond sabia o que “choque traumático” poderia significar em sua profissão.
— Excelente — comentou ele, sem qualquer convicção. Sorriu para a moça, dirigiu-se ao seu próprio escritório e fechou a porta.
Passou, decidido, em torno da escrivaninha e foi sentar-se na cadeira, puxando para ele o dossiê que estava colocado em primeiro lugar, no alto da pilha. Segunda-feira já se fôra. Hoje era terça. Um novo dia.
Decidiu, nesse momento, subtrair seu espírito à dor de cabeça o às lembranças da noite, acendeu um cigarro e abriu uma pasla marrom, com a estrela vermelha de Top Secret na capa. Tratava-se do um memorando expedido pelo gabinete do Inspetor-Chefe da Alfândega dos Estados Unidos, intitulado “Inspectoscópio”.
Bond concentrou a atenção no documento e leu o seguinte:
“O Inspectoscópio é um instrumento que utiliza os princípios fluoroscópicos para a detecção de contrabando. É fabricado pela Sicular Inspectoscope Company, de São Francisco, e está sendo largamente empregado nas prisões norte-americanas para a detecção secreta de objetos de metal ocultos nas roupas ou corpos dos detentos, assim como nos visitantes. É também empregado na detecção do tráfico ilícito de diamantes e no contrabando dos campos diamantíferos da África do Sul e do Brasil. O instrumento custa sete mil dólares, mede aproximadamente dois metros e meio de comprimento por um metro de altura, pesando quase três toneladas. Requer dois operadores adestrados em seu funcionamento. Foram realizadas experiências com este instrumento na seção alfandegária do Aeroporto Internacional de Idlewild, em New York, com os seguintes resultados...”
Bond saltou duas páginas, contendo detalhes exaustivos sobre diversas formas de contrabando, e estudou o “sumário e conclusões”, de cuja leitura deduziu, com certa irritação, que teria de pensar em outro lugar, que não fosse o sovaco para carregar sua Beretta .25, da próxima vez que viajasse para o estrangeiro. Tomou uma nota mental para discutir esse problema com a Seção de Dispositivos Técnicos.
Grampeou e rubricou com as iniciais os documentos a serem distribuídos e, automaticamente, estendeu a mão para o dossiê seguinte, intitulado: “Philophon, Uma Droga Mortífera Japonesa.”
“Philophon”.. . Seu espírito tentava divagar, e ele o arrastava energicamente de volta para as folhas datilografadas.
“Philophon é o principal fator no incremento de criminalidade no Japão. De acordo com os dados do Ministério da Saúde, existem atualmente 1.500.000 viciados em todo o País, dos quais um milhão conta menos de vinte anos de idade, e a Polícia Metropolitana de Tóquio atribui 70% da delinquência juvenil à influência da droga.”
“O vício, como no caso da maconha nos Estados Unidos, começa por uma simples “dose”. O efeito é “estimulante”, e a droga vicia com rapidez. Além do mais, é barata — cerca de dez yen por cada dose — e o viciado aumenta, vertiginosamente, seu uso, chegando a cem doses por dia. Nessas quantidades, o vício já se torna caro, e a vítima, automaticamente, volta-se para o crime, a fim de poder continuar pagando a droga. O fato de o crime incluir, com frequência, o homicídio e o assalto físico, deve-se a uma propriedade peculiar da droga. Provoca um tremendo complexo de perseguição no viciado, o qual se torna vítima da ilusão de que as pessoas desejam matá-lo, e que está sempre seguido por alguém, com intenções maléficas. Voltar-se-á para atacar quem quer que seja, usando os pés, os punhos ou navalha, para agredir o estranho que, na rua, ele imaginou o estivesse fitando perigosamente. Os viciados menos adiantados tendem a evitar um velho amigo que já alcançou a média de cem doses diárias, e isto, naturalmente, aumenta apenas sua ideia de perseguição.”
“Desta forma, o assassínio se transforma em um ato de autodefesa, virtuoso e justificado, e será prontamente compreendido como é possível que se converta em arma perigosa, desde que seja manejada e conduzida para o crime organizado por um “cérebro diretor”.
“Descobriu-se que o Philophon foi o motivo oculto no caso de morte no famigerado Bar Mecca e, como resultado desse triste acontecimento, a polícia recolheu mais de cinco mil traficantes da droga em poucas semanas.”
“Como sempre, os coreanos estão sendo acusados...”
Subitamente, Bond teve um impulso de rebeldia. Que diabo fazia ele, lendo toda essa lengalenga? Seria concebível que lhe fosse alguma vez preciso saber tudo a respeito de uma droga mortífera japonesa chamada Philophon?
Sem prestar atenção, percorreu as páginas restantes, colocou o grampo de distribuição e jogou o documento na bandeja de saída.
Sua nevralgia continuava pertinazmente instalada sobre o olho direito, como se ali tivesse sido pregada. Abriu uma das gavetas da escrivaninha e tirou um vidro de “phensic”. Refletiu se devia pedir um copo de água à secretária, mas não gostava de ser mimado. A contragosto, esmagou dois tabletes entre os dentes e engoliu o pó ácido.
Depois, acendeu um cigarro, levantou-se e ficou de pé junto à janela. Olhou o panorama verde que se desenrolava embaixo, deixando os olhos divagarem, sem prestar atenção a coisa alguma de particular, pelo horizonte fechado e irregular da imensa mole londrina. Entretanto, seu espírito era atraído para os estranhos acontecimentos da noite anterior.
Quanto mais pensava neles, mais estranho lhe parecia tudo aquilo.
Por que razão Drax, um milionário, um herói popular, um homem com uma posição ímpar no País, por que razão esse mesmo homem teria de fazer trapaça no jogo? Que conseguiria ele com isso? Que coisa pretendia provar a si mesmo? Pensaria, talvez, que ele próprio criaria suas leis, muito acima da corja vulgar e seus ridículos cânones de comportamento, de maneira a poder cuspir no rosto da opinião pública?
As cogitações de Bond detiveram-se naquele ponto. Cuspir-lhes nos rostos. Isso descrevia exatamente as maneiras de Drax no Blades. Mescla de superioridade e desdém. Como se estivesse lidando com o lixo da humanidade, situada em escala tão baixa, para seu desprezo, que nem sequer havia necessidade de simular uma conduta decente em tal companhia.
Provavelmente, Drax gostava de jogar. Talvez o jogo diminuísse as tensões que o dominavam e eram transparentes em sua voz áspera, no roer de unhas e na transpiração constante. Mas não poderia perder nunca. Seria desprezível perder para essa gente inferior. De modo que, qualquer que fosse o risco, ele tinha de trapacear para obter a vitória. Quanto à possibilidade de ser descoberto, talvez pensasse que era capaz de sair de qualquer complicação. Se é que pensava nisso. As vítimas do obsessões, refletiu Bond, são normalmente cegas ao perigo. Chegam mesmo a desafiá-lo, de modo perverso. Os cleptomaníacos roubam objetos cada vez mais difíceis. Os maníacos sexuais exibem suas taras como se desajassem, intensamente, ser detidos. Os pirômanos, na maioria das vezes, não fazem a menor tentativa para evitar que se descubra sua ligação com os incêndios por eles provocados.
Mas, qual seria a obsessão que devorava Drax? Qual seria a origem do impulso incontrolável que o arrastava, montanha abaixo, em direção ao mar?
Todos os sintomas indicavam paranoia. Ilusões de grandeza e, por detrás delas, de perseguição. O desdém em sua fisionomia. A voz autoritária. A expressão de triunfo secreto com que encarou a derrota, após um momento de amarga derrocada. O triunfo do louco ciente de que, seja qual fôr a evidência dos fatos, ele estará sempre com a razão. Poderá vencer quem quer que procure frustrá-lo. Para ele não existe derrota nem fracasso, por causa de seu poder secreto. Sabe como fabricar ouro. Pode voar como um pássaro. É onipotente... o homem que se julga Deus na Terra.
Sim, meditou Bond, os olhos perdidos pelo arvoredo de Regent’s. Park. Essa é a explicação. Sir Hugo Drax é um paranoico delirante. Foi isso que o impeliu para o rumo de sua vida, percorrendo sendas tortuosas, até juntar seus milhões. Essa a razão primordial de sua dádiva à Inglaterra — aquele gigantesco foguete que aniquilaria nossos inimigos. Graças ao todo-poderoso Drax.
Mas quem poderá dizer quão próximo estará esse homem da crise final? Quem penetrou alguma vez por trás daquela violência, daqueles pêlos vermelhos, quem decifrou os sintomas como sendo algo mais do que o resultado de sua origem humilde ou da susceptibilidade, a respeito de seus ferimentos de guerra?
Aparentemente, ninguém. Nesse caso, estaria ele, Bond, certo em sua análise? Em que se baseava? Seria prova suficiente, esse vislumbrar, através de uma janela quase totalmente oculta por persianas, da alma de um homem? Talvez muitos outros já tivessem vislumbrado também momentos semelhantes. Talvez em Singapura, Hong Kong, Nigéria, Tânger, quando determinado comerciante, sentado diante de Drax, tivesse observado o suor, as unhas roídas e o fulgor avermelhado de seus olhos, num rosto de onde parecia ter fugido todo o sangue, tivesse havido outros momentos de suprema tensão.
Se dispusesse de tempo, pensou Bond, iria procurar toda essa gente, se é que existia, e desvendar tudo o que realmente se relacionasse com aquele homem. Quem sabe? Colocá-lo até na forca, antes que fosse demasiado tarde.
Demasiado tarde? Bond sorriu. Por que diabo estaria ele assim tão dramático? Afinal, que lhe fizera aquele homem? Dera-lhe um presente de quinze mil libras, só isso. Deu de ombros. De qualquer modo, não era coisa que lhe dissesse respeito. Mas aquela última observação de Hugo Drax, antes de sair: “Se eu estivesse no seu lugar, Comandante Bond, trataria de gastar esse dinheiro bem depressa...”
Que poderia ter querido ele dizer com isto? Deviam ter sido essas palavras, refletiu Bond, que haviam ficado gravadas no fundo de sua mente e que o faziam, mesmo sem querer, cogitar minuciosamente acerca do problema de Drax.
Bond afastou-se bruscamente da janela. Para o inferno tudo isso, pensou. Também já estou ficando obsecado. Ora vejamos. Quinze mil libras. Uma inesperada dádiva do céu. Muito bem, então ele as gastaria rapidamente, não valia a pena contrariar ninguém. Sentou-se e pegou num lápis. Pensou por instantes e, em seguida, escreveu numa folha de memorando, encimada pelas palavras Top Secret.
(1) Rolls-Bentley Conversível, digamos, 5.000 libras
(2) Três clips de diamantes a 250 libras cada: 750 libras
Fez uma pausa. Ainda sobravam quase dez mil libras. Algumas roupas. Ah, uma nova decoração do apartamento. Um jogo completo de tacos de golfe, tinham aparecido agora os novos irons de Henry Cotton. Bem, mais umas dúzias de garrafas de champanha Taittinger. Mas estas podiam esperar. Essa tarde, iria comprar os clips a um joalheiro seu amigo e ter uma conversa com os vendedores da Bentley. O resto aplicaria em ações de confiança. Faria uma fortuna. Aposentar-se-ia.
Num protesto irado, o telefone vermelho quebrou o silêncio.
— Pode subir? M. deseja falar-lhe.
Era o Chefe de Gabinete, com o ar de quem se refere a um assunto muito urgente.
— Vou já — respondeu Bond, subitamente alerta. — Alguma ideia do que se trata?
— Nem por sombras — disse o Chefe de Gabinete. — Não apanhei sintoma algum. Esteve toda a manhã na Scotland Yard e no Ministério de Abastecimento. Chegou há poucos instantes.
O Chefe de Gabinete desligou.
CAPITULO 9
COMECE POR AQUI
Poucos minutos depois, Bond entrava pela porta familiar, e a luz verde acendeu-se na entrada. M. fitou-o atentamente.
— Você está com uma aparência horrível, 007. Sente-se.
Trata-se de coisa séria, pensou Bond, as pulsações acelerando. Hoje nada temos de nomes próprios. Sentou-se. M. estudava algumas notas a lápis, num caderninho de apontamentos. Ergueu os olhos. Mas estes não estavam mais interessados no aspecto de Bond.
— Houve uma trapalhada na fábrica de Drax, a noite passada — informou M. — Duplo homicídio. A polícia tentou entrar em contato com Drax. Ao que parece, não pensou no Blades. Só o localizou quando ele regressou ao Ritz, por volta de uma e meia da madrugada de hoje. Dois homens do projeto “Explorador da Lua” foram atacados a tiro, num café próximo da fábrica. Morreram ambos. Drax respondeu à polícia que o assunto não lhe interessava em absoluto, e desligou. Típico do nosso homem. Ele está lá agora. Levando as coisas um pouco mais a sério, ao que parece.
Bond observou, pensativo:
— Interessante coincidência. Mas onde é que nós aparecemos? Não se trata de um caso de polícia?
— Só em parte. Acontece que somos responsáveis por uma boa parte dos funcionários-chave na base onde constróem o foguete — explicou M. — São alemães. O melhor é explicar. . . — Olhou para os apontamentos e continuou: — é um estabelecimento da RAF, e o plano global está integrado no grande sistema de radar ao longo da costa oriental. A RAF é responsável pela guarda do perímetro, e o Ministério de Abastecimento só tem autoridade no centro onde se procedem aos trabalhos de montagem. Fica na costa, entre Dover e Deal. A área total abrange cerca de mil acres, mas os estaleiros cobrem apenas uns duzentos. Nesse local, há apenas Drax e mais cinquenta e dois outros que permaneceram. Toda a turma de construção já se retirou.
— “Um baralho de cartas e um coringa”, pensou Bond.
— Cinquenta desses homens são alemães — continuou M. — Quase todos os peritos em mísseis teleguiados que os russos não conseguiram açambarcar. Drax pagou para que viessem para a Inglaterra, a fim de trabalharem no “Explorador da Lua”. Ninguém ficou muito feliz com esse arranjo, mas parece que não havia outra alternativa. O Ministério não podia dispor de nenhum de seus técnicos da Woomera. Drax contratou seus homens onde pôde. No intuito de reforçar a segurança do pessoal da RAF, o Ministério designou um seu oficial de segurança para estacionar no local. É um homem chamado Major Tallon.
M. fez uma breve pausa, olhando para o teto.
— Foi ele um dos homens mortos na noite passada. Alvejado por um dos alemães, que em seguida suicidou-se.
M. baixou os olhos, fitando Bond. Este nada disse, esperando o resto da história.
— O negócio aconteceu numa taverna perto do local da base. Houve muitas testemunhas. Aparentemente, trata-se de um bar situado nos limites da zona interditada e muito frequentado pelos homens da base. Eles precisam de ter um lugar para ir, é o que suponho. — M. fez nova pausa. Conservava os olhos fixos em Bond. — Você me pergunta o que fazemos nós metidos em tudo isso. Entramos no caso porque investigamos o passado desse alemão e de todos os outros, antes de permitir que viessem trabalhar aqui. Possuímos as fichas de todos eles. De modo que, quando isto aconteceu, a primeira coisa que o serviço de segurança da RAF e a Scotland Yard requisitaram foi o cadastro do homem morto. Vieram procurar o oficial de plantão, a noite passada, e este desencantou os papéis e enviou-os à Yard. É a rotina, em tais casos. Nosso homem anotou no livro de registro a saída. Quando aqui cheguei esta manhã e vi a informação, senti-me repentinamente interessado. — M. falava calmamente. — Depois de ter passado a noite em companhia de Drax era, como você mesmo observou, uma coincidência curiosa.
— Muito curiosa, de fato — disse Bond, ainda na expectativa .
— Ainda há mais uma coisa — continuou M. — E essa é a verdadeira razão por que me deixei envolver, em vez de me conservar alheio a toda essa história. Isto deve ter prioridade absoluta sobre todos os outros assuntos. — A voz de M. estava perfeitamente controlada. — Vão experimentar o “Explorador da Lua” na sexta-feira. Faltam menos de quatro dias. Será um lançamento experimental do foguete.
M. fez nova pausa, estendeu a mão para o cachimbo e ocupou-se em acendê-lo.
Bond não disse uma palavra. Ainda não conseguia compreender o que tudo isso teria que ver com o Serviço Secreto, cuja jurisdição só vigora fora do Reino Unido. Parecia-lhe um caso para a seção especial da Scotland Yard ou, possivelmente, para o serviço M.15. Esperou. Olhou o relógio. Era meio-dia.
M. acendeu o cachimbo, por fim, e continuou:
— Todavia, à parte tudo isso, eu me interessei pelo caso, porque Drax me atraiu imenso a noite passada.
— A mim também — disse Bond.
— De modo que, quando li o registro do caso — prosseguiu M., ignorando o comentário de Bond — telefonei a Valance, na Yard, e perguntei-lhe de que se tratava, no fim de contas. Valance estava muito preocupado e pediu-me que fosse até lá. Respondi-lhe que não queria entrar no terreno deles, mas asseverou que já falara com os chefes. Haviam confirmado que se tratava de um caso entre meu departamento e a polícia, pois tínhamos sido nós quem havíamos dado a informação sobre o alemão que cometera o homicídio. De modo que fui até à Scotland Yard.
M. fez uma pausa e consultou suas notas.
— A base do “Explorador” está situada na costa, a cerca de três milhas ao norte de Dover. Há também a tal estalagem, muito próxima, junto à estrada principal que corre ao longo da costa: chama-se “Mundo Sem Desejo”, e os homens da base frequentam-na de noite. A tarde passada, mais ou menos às sete e meia, o funcionário da Seção de Segurança do Ministério, o tal Major Tallon, foi até ao bar da estalagem. Tomava um uísque com soda e conversava com alguns dos alemães, quando o assassino entrou, encaminhando-se diretamente para Tallon. Puxou uma Luger — sem número de série, aliás — de dentro da camisa, e disse: “Amo Gala Brand. Ela não será sua.” Depois atirou em Tallon, atingindo-o no coração. Em seguida, virou a arma para a própria boca e voltou a puxar o gatilho.
— Negócio sujo... — comentou Bond. Imaginava todos os detalhes da cena, no bar apinhado de gente de uma típica taberna inglesa. — Quem é a garota?
— Temos aí outra complicação. É uma agente da Seção Especial Bilíngue. Fala alemão. Uma das melhores auxiliares de Vallance. Ela e Tallon eram as duas únicas pessoas, entre as que Drax tinha em serviço na fábrica, que não eram alemãs. Vallance é um camarada desconfiado. Tem de ser. O projeto do “Explorador” é naturalmente a coisa mais importante que se executa na Inglaterra, atualmente. Sem contar a ninguém e agindo, mais ou menos, por instinto, enviou essa agente Brand ao Drax, e conseguiu que ela fosse admitida como secretária particular. Gala Brand estava no local de construção desde o início. Nada teve, absolutamente nada, para declarar. Diz que Drax é um excelente chefe, fazendo restrições, apenas, a suas maneira. Diz que ele trata seus homens com excessiva severidade. Parece que tentou conquistá-la, mesmo depois de ter ela usado o truque habitual de dizer que estava noiva, mas quando Gala Brand demonstrou que poderia defender-se, coisa que realmente pode, Drax desistiu e, segundo ela afirma, são agora bons amigos. A moça, naturalmente, conhecia Tallon, mas este tinha idade suficiente para ser pai dela. Era feliz no casamento e tinha quatro filhos. A própria Gala contou ao auxiliar de Vallance, que conversou ligeiramente com ela esta manhã, que Tallon a levara ao cinema duas vezes, apenas, no período de dezoito meses, sempre em atitude paternal. Quanto ao assassino, um homem chamado Egon Bartsch, era um técnico de eletrônica, que ela mal conhecia de vista.
— E que dizem os amigos do alemão, a respeito disso tudo? — perguntou Bond.
— O camarada que compartilhava o quarto com ele, toma seu partido. Afirma que Egon estava loucamente apaixonado por essa pequena Gala Brand e atribui toda a sua falta de êxito ao “inglês”. Diz que Bartsch tinha-se tornado muito melancólico e reservado nos últimos tempos. O camarada, de forma alguma, ficara surpreendido quando lhe contaram o ocorrido.
— A opinião dele parece corroborar os fatos — comentou Bond. — Pode-se imaginar, de algum modo, a cena. Um desses caras de nervos extremamente tensos, com o habitual mau humor dos alemães. E que pensa Vallance de tudo isso?
— Ele não formou ainda um juízo seguro — respondeu M. — Está sobretudo preocupado em proteger sua auxiliar do assédio da imprensa e providenciar para que a cobertura estabelecida em torno dela não salte pelos ares. Todos os jornais se ocupam do caso, naturalmente. Sairá nas edições do meio-dia. Estão todos gritando por uma foto da moça. Vallance está preparando uma que se pareça mais ou menos com qualquer pequena, mas que seja razoavelmente parecida com Gala Brand, também. A moça vai enviá-la hoje à noite. Felizmente, os repórteres não podem aproximar-se da base. Ela se recusa falar, e Vallance está rezando para que algum amigo ou parente não estrague tudo. O inquérito já deve estar oficializado, e Vallance torce para que o caso fique encerrado hoje mesmo, de modo que os jornais tenham de deixar morrer o assunto, por falta de elementos informativos.
— Que me diz desse lançamento experimental, chefe? — perguntou Bond.
— Permanecem fiéis ao horário estabelecido — informou M. — Meio-dia de sexta-feira. Empregarão uma falsa cápsula. O lançamento será na vertical, com os depósitos a três quartos de combustível. Já estão avisando toda a navegação para que se afaste de uma área de cem milhas quadradas, no Mar do Norte, desde a latitude de 52 graus para o norte, a partir de uma linha que vai da cidade de Haia ao Wash. Detalhes completos serão fornecidos pelo Primeiro-Ministro, na noite de sexta-feira.
M. parou de falar. Girou a cadeira, de modo a ficar olhando pela janela. Bond ouviu um relógio, ao longe, dar uma hora. Iria ficar outra vez sem almoço? Se M. deixasse de se meter nos assuntos de outros departamentos, ele poderia fazer uma refeição ligeira e ir até a Bentley. Bond mexeu-se na cadeira.
M. tornou a girar e encarou seu agente por cima da escrivaninha.
— O pessoal mais preocupado com tudo isso é o do Ministério de Abastecimento. Tallon era um de seus melhores auxiliares. Seus relatórios sempre tinham sido completamente negativos. Então, repentinamente, telefonou para o assistente pessoal do Subsecretário de Estado, ontem à tarde, e afirmou desconfiar de que qualquer coisa muito estranha estava acontecendo na base. Pediu para falar pessoalmente com o Ministro às dez horas da manhã. Não quis dizer mais nada pelo telefone e, poucas horas depois, atiraram nele. Outra coincidência curiosa, não foi?
— Muito engraçada — concordou Bond. Mas por que não fecham a base e fazem um inquérito meticuloso? Afinal de contas, esse negócio é sério demais para que se possa correr qualquer risco.
M. continuou falando:
— O Ministério reuniu-se esta manhã, e o Primeiro-Ministro formulou a pergunta óbvia. Que provas existiam de qualquer espécie de tentativa, ou mesmo intenção, de sabotar o “Explorador”? A resposta foi: nenhuma. Havia apenas temores, que tinham sido trazidos à superfície nas últimas vinte e quatro horas, pela vaga comunicação de Tallon e o duplo assassínio. Todos concordaram em afirmar que, a não ser que surgisse uma prova mais evidente, a qual não aparecera até o momento, os dois incidentes seriam considerados como consequência da tremenda tensão nervosa reinante na base. Pelo rumo que as coisas estão tomando no mundo, ficou decidido que, quanto mais cedo o “Explorador” nos possa garantir uma posição independente em política internacional, tanto melhor para a Inglaterra e... — M. sacudiu os ombros — muito possivelmente, para todo o mundo. Concordaram também em que, comparadas com as mil razões pelas quais o lançamento do “Explorador” deveria ser feito, as razões contrárias não contavam. O Ministro de Abastecimento teve de concordar, mas ele sabe tão bem quanto você ou eu que, sejam quais forem os fatos, teria sido uma vitória colossal para os russos sabotarem o foguete na véspera de seu lançamento experimental. Se a coisa fosse bem feita, poderiam facilmente causar o fracasso da experiência e enviar todo o projeto para as prateleiras. Existem cinquenta alemães trabalhando na base. Qualquer deles pode ter parentes ainda presos na Rússia, parentes cujas vidas poderiam ser usadas como alavanca.
M. parou de falar. Levantou os olhos para o teto. Depois, baixou-os, pousando-os em Bond, pensativo:
— O Ministro me pediu que fosse vê-lo no seu gabinete. Disse que o mínimo que poderia fazer era substituir Tallon imediatamente por novo agente. Deverá falar inglês e alemão. Ser técnico em sabotagem e possuir muita experiência a respeito de nossos amigos russos. M. 15 apresentou três candidatos. Estão todos tratando de casos diferentes, no momento, mas poderiam ser liberados em poucas horas. Mas o Ministro solicitou então minha opinião. Dei-a. Ele falou depois com o Primeiro-Ministro e foi eliminada, rapidamente, uma boa porção de burocracia.
Bond fitou M., incisivo, desconfiado, seus olhos perscrutando os do chefe, indecifráveis e desapaixonados.
— De modo que — concluiu M., em voz despida de qualquer emoção — sir Hugo Drax foi notificado sobre sua designação para o cargo, e espera-o em seu escritório, a tempo de jantarem esta noite...
CAPITULO 10
AGENTE ESPECIAL
Às seis horas daquela tarde de terça-feira, já nos últimos dias de maio, James Bond conduzia o grande Bentley pela estrada de Dover, no trecho que passa por Maidstone.
Apesar de guiar com velocidade e atenção ao caminho, parte de seu espírito continuava recordando os passos que dera essa tarde, desde o instante em que deixara o escritório de M., há quatro horas e meia.
Após fazer um breve resumo do caso à sua secretária e de comer, sozinho, um almoço ligeiro, na cantina, pedira à garagem que, pelo amor de Deus, andasse depressa com seu carro e o enviassem, com o tanque cheio, a seu apartamento, mas que não passassem das quatro horas em ponto. Em seguida, tomara um táxi e dirigira-se à Scotland Yard, onde tinha encontro marcado com o Comissário-Adjunto, Vallance, às três menos um quarto.
Os pátios e saguões da Yard lhe fizeram pensar, como sempre, num presídio sem telhados. A iluminação vinha do alto, no corredor frio, roubava a cor do rosto do sargento que lhe perguntou que queria e ficara observando Bond, enquanto este assinava o talão verde-maçã dos visitantes. O efeito era o mesmo no rosto do policial que o escoltou pela pequena escada acima e ao longo de uma sombria passagem, por entre filas de portas anônimas, até à sala de espera.
Uma mulher plácida, de meia-idade, com os olhos resignados de alguém que já vira tudo na vida, entrou e disse a Bond que o Comissário-Adjunto estaria livre dentro de cinco minutos. Bond aproximara-se da janela e olhara o pátio cinzento, lá embaixo. Um policial que, sem seu quepe mais parecia estar nu, saíra de um edifício e cruzara o pátio, mastigando um pãozinho partido ao meio, com qualquer coisa cor-de-rosa entre as duas metades.
Tudo ali era silencioso. O rumor do tráfego em Whitehall e no Embankment parecia muito longínquo. Bond se sentia deprimido. Via-se envolvido com departamentos estranhos. Estaria fora de contato com sua própria gente e sua maneira de trabalhar. Já naquela sala de espera sentia-se alheio ao ambiente, como peixe fora d’água. Apenas criminosos ou informantes vinham e esperavam ali, além de pessoas de destaque social, tentando escapar a multas por infração de trânsito, ou esperando, com desespero, persuadir Vallance, de que os filhos deles não eram, absolutamente, homossexuais. Com efeito, não se podia estacionar na sala de espera da Seção Especial, para qualquer finalidade inocente. Ali, estava-se acusando ou defendendo alguém.
Por fim, a mulher veio buscá-lo. Bond esmagou o cigarro num tampo de lata de Players, que servia de cinzeiro nas salas de espera de quase todos os departamentos governamentais. Seguiu pelo corredor. Depois do ambiente sombrio de onde vinha, o fogo extemporâneo na lareira da grande e alegre sala pareceu-lhe um truque, como os cigarros que ofereciam na Gestapo aos detidos. Bond levou cinco minutos bem contados para dissipar sua depressão e perceber que Ronnie Vallance estava aliviado por vê-lo, que não estava interessado em ciumadas interdepartamentais, e que considerava Bond o homem capaz de proteger o “Explorador da Lua”, subtraindo, assim, uma de suas melhores agentes ao que poderia muito bem resultar numa embrulhada dos diabos.
Vallance era um homem de muito tato. Nos primeiros minutos, falara só de M., exprimindo-se com sinceridade e íntimo conhecimento, sem mencionar sequer o caso. Ganhara a amizade e cooperação de Bond. Enquanto levava o Bentley através das ruas apinhadas de Maidstone, refletia que esse dom de Vallance provinha de evitar, durante vinte anos, pisar os calos de M. 15, de trabalhar com os setores uniformizados da polícia e de manejar políticos ignorantes ou diplomatas estrangeiros ofendidos.
Ao deixá-lo, depois de um quarto de hora de conversações muito sérias, cada um dos dois sabia ter adquirido um aliado. Vallance compreendera Bond e sabia que Gala Brand obteria dele todo o auxílio e proteção de que necessitasse. Respeitara, igualmente, o critério profissional de abordar o problema que Bond demonstrara, em relação à missão que lhe fora confiada, bem como a ausência nele de qualquer rivalidade departamental, em face da Seção Especial da Yard. Quanto a Bond, ficou cheio de admiração pelo que soube a respeito da agente especial de Vallance. Convenceu-se de que não estava descoberto e que poderia contar com Vallance e todo o peso de seu departamento para lhe darem cobertura total.
Bond saíra da Scotland Yard com a sensação de que realizara o primeiro princípio de Clausewitz: consolidar a retaguarda .
Sua visita ao Ministério de Abastecimento nada acrescentara ao que ele já sabia sobre o caso. Estudou o dossiê de Tallon e seus relatórios. O primeiro era impecável — uma vida inteira a serviço da Inteligência do Exército e da Seção de Segurança em Campanha — e os relatórios descreviam o quadro de um estabelecimento técnico muito movimentado e bem dirigido: apenas um ou dois casos de embriaguez, um de pequeno furto, diversas vinditas pessoais, terminando em lutas e conflitos de menor vulto mas, fora essas ocorrências, uma turma leal e dura de trabalhadores.
Em seguida, passara meia hora inútil na sala de operações do Ministério, com o Professor Train, homem de aspecto pouco distinto, obeso e pelancudo, que fora candidato ao Prêmio Nobel no setor de Física, no ano anterior, e que era reputado como um dos maiores técnicos do mundo em teleguiados.
O Professor Train caminhara até uma fila de enormes mapas de parede e puxara a corda de um deles, deixando-o a descoberto. Bond deu de frente com um diagrama horizontal, na escala de três metros, semelhante a um V-2, provido de grandes barbatanas.
— Muito bem, o senhor nada sabe a respeito de foguetes, de modo que lhe darei uma breve explicação, em termos simples, sem enchê-lo com uma porção de coisas sobre a proporção de dilatação dos cones, perdas de velocidade e elipse kepleriana. O “Explorador”, como a Drax aprouxe batizar, é um foguete de um só andar. Consome todo o combustível na ascensão e depois ruma para o objetivo. A trajetória dos V-2 era mais como a de uma granada disparada por um canhão. No ponto culminante de sua trajetória de 200 milhas, subia o máximo de 70. Era abastecido por uma mistura altamente combustível, de álcool e oxigênio líquido, diluído de modo a não queimar o aço brando de que era construído, e era, então, o único metal empregado nesses engenhos. Existem hoje combustíveis muito mais poderosos, contudo, até agora, não conseguimos muita coisa com eles, pela mesma razão: seu ponto de combustão é de tal forma elevado, que incendiaria o engenho mais resistente.
O Professor fez uma pausa e espetou um dedo no peito de Bond.
— A única coisa que, meu caro senhor, precisa lembrar-se, com referência a este foguete — continuou o técnico — é que, graças à columbite de Drax, que possui um ponto de fusão de cerca de 3.500 graus centígrados; comparados com os 1.300 graus dos engenhos V-2, podemos agora usar um dos super-combustíveis, sem perigo de incêndio.
Olhou para Bond, como se este devesse ficar impressionado, e prosseguiu:
— De fato, estamos usando fluorine e hidrogênio.
— Ah, sim? — comentou Bond, reverente, mas um pouco forçado.
O Professor fitou-o com atenção.
— De modo que esperamos conseguir uma velocidade de 1.500 milhas horárias, aproximadamente, e um raio de ação vertical de quatro mil milhas, colocando todas as capitais da Europa ao alcance da Inglaterra. Muito útil — acrescentou secamente — em determinadas circunstâncias. Mas, para os cientistas, sobretudo, desejável como um decisivo passo avante na luta para fugir à tração da Terra. Tem alguma pergunta a fazer?
— Como funciona? — indagou Bond, com ar de menino de escola.
O Professor fez um gesto brusco, na direção do diagrama, e começou explicando:
— Vamos tomar o cone, como ponto de partida. Primeiro, vemos a cápsula, que pode, em caso de guerra, receber uma carga nuclear. Para o lançamento experimental, levará apenas instrumentos próprios para exploração da estratosfera, radar e coisas desse gênero. Depois, os giroscópios de manutenção de voo em linha reta... Giroscópios de retificação e de ondulação. A seguir, vários instrumentos de menor importância, como sejam, os servo-motores, para alimentação de energia, etc. Finalmente, os grandes tanques de combustível: 15 toneladas de produto. Na cauda, temos dois pequenos tanques para alimentação da turbina, duzentos quilos de peróxido de hidrogênio, que se misturam a 20 quilos de permaganato de potássio, produzindo o vapor de impulsão da turbina, situada por debaixo deles. A turbina, por sua vez, movimenta uma série de bombas centrífugas, que forçam a admissão do combustível principal no motor do foguete, sob tremenda pressão. Está me seguindo? — Endereçou um olhar de revés a Bond.
— O princípio é muito semelhante ao dos aviões a jato — disse Bond.
O Professor pareceu satisfeito e prosseguiu:
— Mais ou menos. Só que o foguete carrega com ele todo o combustível, em vez de sugar o oxigênio de fora para dentro, como é o caso dos aviões, do Comet, por exemplo. Pois bem, o combustível atinge o ponto de ignição no motor e é expelido pela extremidade do foguete, num jato contínuo. Como se fosse o coice permanente de um revólver. Esse jato força o foguete a subir, como qualquer outro fogo de artifício. Naturalmente, é na seção de popa que entra a liga de columbite. Esta nos permitiu a construção de um motor que não fundirá por causa desse fantástico calor. Além disso, aqui estão estas espécies de barbatanas de tubarão para manter o engenho firme no arranque para voo. São igualmente fabricadas com uma liga de columbite, ao contrário se desintegrariam sob a colossal pressão do ar. Mais alguma coisa?
— Como pode haver certeza de que descerá no ponto que se deseja? O que o impedirá de cair, por exemplo, em Haia, na próxima sexta-feira?
— Os giroscópios se encarregarão disso. Mas, de fato, não queremos correr qualquer risco, na experiência de sexta-feira, de modo que instalaremos um sistema de radar emissor, que ficará colocado numa jangada, em pleno Mar do Norte. Haverá um radar emissor-receptor no cone do foguete, que captará um eco do radar da jangada e entrará automaticamente em comunicação com a base. Naturalmente — disse o Professor, rindo — se algum dia tivéssemos de usar esse negócio em tempo de guerra, seria um grande auxílio dispor de um aparelho desses transmitindo sinais do meio de Moscou, Varsóvia, Praga ou Monte-Carlo, ou para, onde fosse que estivéssemos atirando. Provavelmente, caberá a vocês, rapazes, colocarem-no para que funcione a nosso gosto. Boa sorte, é o que lhes desejo.
Bond sorriu, um sorriso neutro.
— Mais uma pergunta, Professor. Se alguém desejasse sabotar o foguete, qual seria a maneira mais fácil?
— Há muitas maneiras — respondeu o técnico, alegremente. — Areia no combustível, qualquer substância arenosa nas bombas, um orifício em qualquer ponto da fuselagem ou das barbatanas. Com aquela fôrça e velocidade, a menor falha liquidaria tudo.
— Muito obrigado. Parece que o senhor está com menos preocupações a respeito do “Explorador da Lua” do que eu —. disse Bond.
— É um maravilhoso engenho — retorquiu o Professor. Voará impecàvelmente, se ninguém interferir. Drax realizou uma coisa sólida. É um organizador de incontestável mérito. E a equipe de que dispõe é simplesmente brilhante. Tudo fará por ele. Temos muito que lhe agradecer.
Bond calcou o pé no acelerador, fez uma mudança à corredor profissional e virou à esquerda, na bifurcação de Charing, preferindo a estrada desafogada de Chilham e Canterbury, à estrada estreita de Ashford e Folkestone. O carro voava a cento e trinta quilômetros, em terceira, e ele o conservava nessa velocidade para chegar depressa ao topo do longo aclive que terminava na estrada de Molash.
Depois, meteu a direta e escutou com satisfação a trovoada provocada pelo tubo de escape, enquanto meditava sobre Drax. Que espécie de recepção lhe faria, quando se encontrassem? Segundo M., quando seu nome fora sugerido pelo telefone, Drax fizera uma pausa, por instantes, e depois dissera: “Ah, sim. Conheço esse camarada. Ignorava que ele estivesse metido nessa rede de vocês. Estou interessado em tornar a vê-lo. Mande-o até cá. Espero que chegue a tempo para jantarmos.” — E desligara em seguida.
O pessoal do Ministério tinha seu próprio ponto de vista a respeito de Drax. Nas negociações com ele, achavam-no um homem dedicado, inteiramente obcecado por tudo o que dissesse respeito ao “Explorador da Lua”, vivendo apenas para ver seu êxito, puxando por seus homens e fazendo-os renderem o máximo, lutando pela obtenção de prioridades no fornecimento de materiais estratégicos, dependentes de outros departamentos, induzindo o Ministério de Abastecimento a fornecer suas encomendas, em nível ministerial. Eles não apreciavam seus modos autoritários, mas respeitavam-no por sua capacidade e maneira de agir, sua energia e dedicação. E, tal como o resto do povo inglês, consideravam-no um possível salvador do País.
Pois bem, pensava Bond, acelerando, ao descer o trecho reto de estrada, depois de passar o castelo de Chilham, ele também podia tomar as coisas por esse prisma e, se tinha de trabalhar com o homem, o melhor era adaptar-se a essa versão heroica. Se Drax quisesse, ele se prontificaria a despejar da cabeça toda aquela história do Blades e se concentraria em proteger Sir Hugo e seu maravilhoso projeto, contra todos os inimigos do País. Só tinha três dias pela frente. As precauções de segurança já eram rigorosas, e Drax poderia ficar ressentido por quaisquer sugestões para aumentá-las. Não ia ser nada fácil, e teria de fazer uso de uma grande dose de tato. Tato... Não era esse o forte de Bond e, refletiu, também não combinava com o que ele já conhecia do caráter de Drax.
Bond enfiou pelo atalho mais curto, ao sair de Canterbury, pela velha estrada de Dover, e olhou o relógio. Eram seis e meia. Mais quinze minutos para atingir Dover e mais dez pela estrada de Deal. Haveria outros planos a fazer? O duplo homicídio estava fora de sua alçada, graças a Deus. “Homicídio e Suicídio, Causados por Perturbação Mental”, fora o veredicto do funcionário da perícia legal. A moça nem sequer fora chamada a depor. Bond pretendia parar, a fim de tomar um drinque no “Mundo Sem Desejo” e ter uma conversa rápida com o proprietário. No dia seguinte, tentaria farejar aquele “algo de estranho” que Tallon procurara transmitir pessoalmente ao Ministro. Nesse aspecto, não havia qualquer indício. Nada fora encontrado no quarto de Tallon, que ele, provavelmente, também revistaria. Bem, de qualquer forma, haveria muito tempo para examinar todos os papéis do Major.
Bond concentrou-se na direção, enquanto descia pela costa de Dover. Conservou-se bem na esquerda e, dentro em breve, saía novamente da cidade, deixando para trás o maravilhoso castelo que, à distância, mais parecia de papelão.
Havia um trecho coberto de nuvens baixas, no topo da colina. Chuviscou no para-brisas do carro. Um vento frio soprava no mar. A visibilidade era fraca, e Bond guiava lentamente pela estrada costeira, com os pilares da estação de radar de Swingate, suas lâmpadas de posição brilhando como rubis, petrificadas como círios romanos à sua direita.
E a pequena? Teria de ser muito prudente na maneira de abordá-la e esforçar-se por não perturbá-la. Bond cogitava se ela poderia ser-lhe útil em alguma coisa. Depois de um ano na base, ela deveria ter tido todas as oportunidades de uma secretária particular do “Chefe” para penetrar no âmago do projeto — e no de Drax. E ela possuía uma mentalidade adextrada para seus especiais talentos. Porém, Bond estava preparado para encontrá-la desconfiada a respeito daquela nova personalidade, e talvez se ressentisse até por isso. Imaginava como seria ela na realidade. A fotografia no registro da Scotland Yard mostrara uma moça atraente, mas de aspecto severo, e qualquer parcela de sedução fora eliminada pelo dólmã hostil de seu uniforme de mulher-polícia.
Cabelos: Acaju escuro. Olhos: azuis. Altura: Um metro e sessenta e quatro. Peso: cinquenta e oito quilos. Quadris: noventa centímetros. Cintura: cinquenta e cinco centímetros. Busto: noventa centímetros. Sinais particulares: Verruga na curvatura superior do seio direito.
Hummm. . . pensou Bond.
Afastou do espírito as estatísticas antropométricas e chegou à curva da estrada para a direita. Havia uma tabuleta que indicava Kingsdown, e viu as luzes de uma pequena estalagem.
Avançou e desligou o motor. Acima de sua cabeça, lia-se “Mundo Sem Desejo”, em letras douradas já desvanecidas, em parte, pela maresia e o vento salgado que soprava dos penhascos, a meia milha de distância. Saiu, espreguiçou-se e caminhou até à porta da taberna. Estava fechada. Seria para limpeza? Experimentou a outra porta, que se abriu, dando acesso a um pequeno bar reservado. Atrás do balcão, um homem de aspecto impassível, em mangas de camisa, lia um jornal da tarde. Levantou os olhos à entrada de Bond e pousou o jornal sobre o balcão.
— Boa-noite, sir — saudou o homem, evidentemente aliviado por ver entrar um freguês.
— Boa-noite. Uma dose dupla de uísque com soda, por favor.
Bond sentou-se e esperou, enquanto o homem lhe servia duas doses de Black & White, colocando o copo diante dele, com um sifão de soda. Depois, encheu o resto do copo com soda.
— Negócio desagradável o que você teve aqui a noite passada — comentou Bond, tomando um trago.
— Terrível! E ruim para a casa. O senhor não será da imprensa? O dia inteiro só tive jornalistas e policiais entrando e saindo.
— Não — esclareceu Bond, pousando o copo — Vim para ocupar o lugar do camarada que foi morto. Major Tallon. Ele era um de seus fregueses habituais?
— Nunca veio aqui senão uma vez... e essa foi o fim dele. Agora terei de parar meu negócio durante uma semana, e o estabelecimento terá de ser todo pintado de novo, de cima a baixo. Mas deixe que eu lhe diga que Sir Hugo se mostrou muito decente nesta história. Mandou-me cinquenta libras esta tarde, para pagar os prejuízos. Deve ser um cavalheiro muito fino. Conquistou a amizade de todos por estas paragens. Sempre generoso e com uma palavra de ânimo para cada um.
— É isso mesmo. Um cavalheiro muito distinto — concordou Bond. — Viu como as coisas se passaram?
— Não vi o primeiro tiro. Estava servindo uma cerveja no momento. Depois, naturalmente, olhei. Derrubei o raio da cerveja no chão.
— E que sucedeu então?
— Bom, todo o mundo se afastou, claro. Só havia alemães. Mais ou menos uma dúzia deles. O corpo ali, no chão, e o camarada com o revólver, olhando para ele. De repente, sem que nem para que, perfilou-se, estendeu o braço para cima e gritou “Heil!” como aqueles imbecis costumavam fazer durante a guerra. Logo depois, virou o revólver para a boca. Daí a um instante, fazia uma careta, e o sangue espirrou até o teto.
— Então foi só isso que ele, disse, depois de dar o primeiro tiro? — perguntou Bond. — Só “heil” e mais nada?
— Só isso, chefe. Parece que não conseguem esquecer essa maldita palavra, não é mesmo?
— É verdade. Eles não esquecem — respondeu Bond, pensativo.
CAPÍTULO 11
GALA BRAND, A POLICIAL
Cinco minutos depois, Bond mostrava seu passe ministerial ao guarda uniformizado que estava de plantão à entrada da base, junto de uma alta cerca de arame farpado.
O sargento da RAF devolveu o documento e fez a continência .
— Sir Hugo Drax está esperando, sir. É aquele edifício grande, ali em cima, junto do bosque. — O guarda apontou para umas luzes mais adiante, na direção dos penhascos.
Bond ouviu o sargento telefonar para o posto de guarda seguinte. Levou o carro lentamente pela estrada asfaltada de novo, que fora aberta através dos campos, além de Kingsdown. Podia ouvir dali o ruído distante do mar, batendo na base dos altos penhascos e, de um ponto qualquer e próximo de onde se encontrava, escutava também os gemidos e pancadas de máquinas, que foram crescendo de intensidade à medida que ele se aproximava das árvores.
Foi novamente interceptado por um guarda, este à paisana, numa segunda cerca de arame, na qual uma barreira dava acesso ao interior do bosque. Quando o deixaram atravessar, escutou ainda o ladrar longínquo de cães-policiais, que lhe sugeriam uma forma eficiente de patrulha noturna. Todas essas precauções pareciam eficientes. Bond chegou à conclusão de que não deveria preocupar-se com os problemas de segurança externa.
Uma vez ultrapassadas as árvores, o carro seguiu por uma plataforma de concreto, cujos limites, à luz deficiente, se perdiam de vista, mesmo para os faróis possantes de seu carro. A umas cem jardas para a sua esquerda, à margem do terreno coberto de arvoredo, viam-se as luzes de uma casa de grande porte, semioculta por trás de um sólido muro quase tão alto como o próprio edifício que protegia. Bond diminuiu a marcha do carro, ultrapassou lentamente o muro, na direção do mar e de uma forma escura que, subitamente, rebrilhou, alvacenta, quando foi banhada pelo facho de luz crua do farol giratório de South Goodwin, ao largo do Canal da Mancha. O facho abriu um sulco iluminado no concreto, descobrindo, quase no limite das escarpas da costa, uma cúpula esferoide, semelhante ao teto dos observatórios e planetários. Bond podia distinguir o rebordo de uma articulação que se movia para um e outro lado, na superfície da cúpula.
Fez nova curva e, lentamente, passou entre o que ele presumia agora ser um muro de proteção contra as violentas deslocações de ar e a frontaria da casa. Quando estacou diante da casa, a porta abriu-se e um empregado, de jaqueta branca, saiu em sua direção. Abriu a porta do automóvel, num gesto eficiente.
— Boa-noite, sir. Por aqui, faz favor. — Falava em tom áspero e com um leve sotaque.
Bond seguiu-o até à casa e, através de um confortável hall, chegou a uma porta onde o criado bateu.
— Entre!
Bond sorriu para si mesmo, ao ouvir aquela voz, de que se recordava tão bem, e do tom de comando imprimido à palavra.
Bem na extremidade da longa e atraente sala de estar, decorada com chita clara recortava-se a figura de Drax, de pé, dando as costas para uma lareira acesa — enorme, as barbas ruivas contrastando com um smoking de veludo cor de ameixa. Três outras pessoas estavam a seu lado, dois homens e uma mulher.
— Ah, meu caro amigo — ribombou a voz de Drax, esfuziante, saindo ao encontro de Bond e sacudindo-lhe cordialmente a mão. — Assim nos encontramos de novo, hem? E mais depressa do que poderíamos imaginar. Não fazia ideia de que fosse um daqueles duros que fazem espionagem para o meu Ministério, caso contrário, teria sido mais cuidadoso ao jogar cartas contra você. Já gastou aquele dinheiro todo? — perguntou, tomando Bond pelo braço e levando-o para perto do fogo.
— Ainda não — sorriu Bond. — Nem sequer lhe vi ainda a cor.
— Claro, o pagamento é no sábado. Provavelmente recebe o cheque mesmo a tempo de festejar nossa pequena exibição de fogos de artifício, heim? Bom, façamos as apresentações...
Foi levando Bond até onde se encontrava a moça.
— Minha secretária, Miss Brand — prosseguiu Drax.
Bond fitou um par de olhos muito frios e muito azuis.
— Boa-noite — e endereçou-lhe um sorriso amistoso. Não houve retribuição de sorriso nem nos olhos, nem nos lábios da moça que apenas o olhou calma e imperturbàvelmente. Também não houve qualquer pressão no aperto de mão que trocaram.
— Prazer... — disse ela. E Bond quase pressentiu hostilidade.
Passou pela cabeça do agente 007 que ela fora bem escolhida. Outra Loelia Ponsonby. Eficientemente reservada, leal e virgem. Graças aos céus, pensou. Uma profissional no duro.
— Este é meu braço direito, o Dr. Walter.
O velhote, magro e com um par de olhos irados, sob o tufo de cabelos negros, deu a impressão de não ter notado a mão estendida de Bond. Empertigou-se em posição de sentido e saudou rapidamente, com um breve inclinar de cabeça.
— Valter — retificou a boca, de lábios finos, do cientista, por cima de uma barbicha pontiaguda e negra, emendando a pronúncia de Drax.
— E agora... como direi?. . . meu cão-de-fila — continuou Drax, apresentando o outro homem. — Meu ajudante-de-campo, Willy Krebs.
Bond sentiu o contato da mão úmida.
— Muito prracerrr em conhecerrr — disse uma voz que tentava ser amável. Bond observou um rosto pálido, redondo e enfermiço, naquele momento franzido por um sorriso que morreu quase no mesmo instante em que Bond o notou. Bond olhou-o nos olhos. Pareciam dois botões negros e inquietos, que se desviaram dos dele.
Os dois homens trajavam macacões brancos, imaculados, com fecho-éclair, nas mangas, nos tornozelos e ao longo das costas. Tinham os cabelos cortados rentes, de modo que o couro cabeludo brilhava por entre eles. Ambos teriam parecido gente de outro planeta, não fosse a barbicha e o bigode mal cuidado do Dr. Walter, bem como o tufinho desbotado do bigode de Krebs. Eram ambos caricaturas: um cientista louco e uma versão juvenil de Peter Lorre.
A figura rubicunda e calorosa de Drax formava um contraste agradável com aquela gente frígida, e Bond lhe foi grato pela rudeza alegre da recepção, bem como pelo aparente desejo de esquecer o que se passara e de tirar o melhor partido possível de seu novo agente de segurança.
Drax foi um anfitrião cem por cento. Começou por esfregar as mãos e dizer:
— E agora, Willy, que tal se você nos preparasse alguns de seus excelentes Martinis secos? Menos para o doutor, claro. Não bebe nem fuma, — explicou Drax a Bond, voltando para o lugar onde se encontrava antes, junto à lareira. — O doutor mal respira, creio eu. — E latiu uma de suas risadinhias. — Não pensa em outra coisa que não seja o foguete. Não é verdade, meu amigo?
O doutor tinha o olhar focalizado com firmeza num ponto indeterminado, algures à sua frente.
— Agrada-lhe muito fazer gracejos — respondeu ele.
— Vamos, vamos — disse Drax, como quem se dirige a uma criança. — Já voltaremos a tratar daquelas arestas condutoras mais tarde. Todo o mundo está satisfeito com elas, menos você, doutor. — Voltou-se para Bond. — Nosso bom doutor está sempre nos assustando — explicou, indulgente. — Vem sempre com um pesadelo a respeito de qualquer detalhe. Agora são as arestas condutoras das barbatanas da cauda do “Explorador”. Já estão mais afiadas que lâminas de barbear. Mal acusam qualquer resistência ao vento, e, de repente, o doutor mete na cabeça a ideia de que vão derreter. Resistência ao ar e excessiva fricção. Naturalmente, tudo é possível. Mas foram testadas a mais de 3.000 graus, como eu lhe digo, e se vão desintegrar-se, então aconteceria o mesmo ao foguete todo, não acha? E isso é coisa que não vai acontecer — acrescentou, com um sorriso sardônico.
Krebs entrou carregando uma bandeja de prata, com quatro cálices e uma coqueteleira, transpirando de gelo. O Martini estava ótimo, e Bond assim o declarou.
— O senhorrr é muito amável — disse Krebs, com uma careta e satisfação. Sir Hugo gosta que tudo se faça semprrrre muito correto.
— Encha o cálice dele outra vez — disse Drax — e depois talvez nosso amigo queira se lavar. Jantamos às oito em ponto.
No momento em que pronunciava estas palavras, ouviu-se o gemido abafado de uma sirena e, quase imediatamente depois, o rumor de um grupo de homens correndo pela faixa de concreto, lá fora, em perfeito movimento sincrônico.
— É a primeira turma da noite — explicou Drax. — Os alojamentos do pessoal são nos fundos da casa. Devem ser oito horas. Fazemos tudo em duplicata — acrescentou com um brilho de satisfação no olhar. — Precisão. Uma porção de cientistas e técnicos em volta de nós, mas procuramos dirigir as coisas como se estivéssemos num quartel do Exército. Willy, você se encarrega do Comandante. Nós vamos andando. Venha, meu caro...
Enquanto Bond seguia Krebs até à porta por onde havia entrado, viu os outros dois homens, indo Drax mais à frente, dirigirem-se para as portas duplas na extremidade da sala, que se abriram logo que Drax acabou de falar. O empregado da jaqueta branca postava-se à entrada. Quando Bond saiu para o hall, atravessou-lhe o espírito a ideia de que Drax entraria com certeza na sala sem se lembrar de dar prioridade a Miss Brand. Personalidade dominadora e enérgica. Tratava seus auxiliares como se fossem crianças. Incontestàvelmente, um líder nato. Onde adquirira essa força? No Exército? Ou teria se desenvolvido paralelamente aos milhões?
Bond seguia atrás do pescoço de minhoca de Krebs e conjeturava.
O jantar foi excelente. Drax era um anfitrião impecável e na sua própria mesa, suas maneiras eram perfeitas. A maior parte da conversa tinha por finalidade fazer falar o Dr. Walter em benefício de Bond e incluiu uma série de assuntos técnicos, que Drax se esforçava depois por explicar com poucas frases mais acessíveis, depois de cada tópico ter sido esgotado. Bond estava impressionado pela confiança com que Drax tratava cada um dos complexos problemas tecnológicos, à medida que eles surgiam, bem como por sua profunda compreensão de qualquer detalhe. Uma autêntica admiração pelo homem começava a desenvolver-se gradualmente nele, obscurecendo grande parte da primitiva antipatia. Sentia-se cada vez mais inclinado a esquecer o caso do Blades, agora que se defrontava com o outro Drax, o criador e o líder inspirado de uma notável empresa.
Bond estava sentado entre o anfitrião e Miss Brand. Fez diversas tentativas para entabular conversação com ela. Falhou por completo. A moça respondia com monossílabos polidos e quase nunca o encarava. Bond ficou levemente irritado. Achava-a fisicamente muito atraente e aborrecia-se por não conseguir obter dela a mínima atenção. Achava que sua frígida indiferença era exageradamente afetada e que sua missão devia ter sido recebida muito mais amistosamente, em vez dessa exagerada reticência. Sentia um forte impulso de dar-lhe, por debaixo da mesa, um vigoroso pontapé no tornozelo. A ideia brincou em seu espírito, e ele encontrou-se observando a moça com olhos diferentes — uma moça e não uma colega do mesmo ofício. Como ponto de partida e prevalecendo-se de uma longa discussão entre Drax e Walter, para a qual ela fora solicitada a opinar, a respeito dos relatórios meteorológicos, provenientes do Ministério da Aeronáutica e da Europa, começou a coligir suas impressões sobre Gala Brand.
Era muito mais atraente do que sua fotografia deixava entrever, e era difícil notar vestígios da severa competência de uma mulher-policial naquela sedutora garota sentada a seu lado. Lia-se autoridade nas linhas definidas do perfil. Mas as longas pestanas negras, velando os olhos azuis-escuros, assim como a boca bastante rasgada, poderiam muito bem ter sido pintadas por Mario Laurencin. No entanto, os lábios eram carnudos demais para um Laurecin, e os cabelos castanhos, com reflexos de cobre, voltados para dentro da base da nuca, eram de um tipo diferente. Havia um toque de sangue oriental nos malares salientes e na linha suavemente oblíqua dos olhos, mas o calor da carnação era inteiramente inglês. Havia um excesso de pose e de autoridade em seus gestos e na maneira como mantinha a cabeça ereta, para ser um retrato muito convincente de secretária. Com efeito, parecia quase um membro da equipe de Drax, e Bond observou que os homens escutavam com atenção, quando ela respondia às perguntas formuladas por Drax.
Seu vestido de noite, bastante severo, era em gros-grain, preto carvão, de mangas três quartos. A blusa drapeada, delineava apenas a curva do seio, que eram tão esplêndidos quanto Bond adivinhara, fazendo os cálculos pelas medidas que lera em seu registro policial. Na ponta do decote em v, ela colocara um broche de camafeu azul brilhante, trabalho de Tassie, calculou Bond, barato mas decorativo. Não usava nenhuma outra joia, exceto uma aliança de pequenos brilhantes no anular da mão direita. Salvo o cálido batom dos lábios, não usava qualquer outra pintura. As unhas eram cortadas rentes e polidas em tom natural.
Tudo somado, decidiu Bond, Gala era realmente uma linda moça, e, sob aquela camada de reserva, adivinhava-se um temperamento apaixonado e vibrante. Podia ser uma mulher-polícia e perita em judô, mas também possuía uma verruguinha no seio direito.
Com este pensamento reconfortante, Bond voltou toda a sua atenção para a conversa entre Drax e Walter, não fazendo qualquer nova tentativa para captar a simpatia da moça.
O jantar terminou às nove horas.
— Agora iremos apresentá-lo à nossa vedete, o “Explorador da Lua” — disse Drax, erguendo-se abruptamente da mesa. — Walter nos acompanhará. Ele tem muito que fazer. Vamos andando, meu caro Bond.
Sem dirigir uma só palavra a Krebs ou à pequena, saiu da sala. Bond e Walter seguiram-no.
Deixaram a casa e caminharam pelo concreto, em direção à forma distante que se divisava à beira do penhasco. A lua subira nos céus e, ao longe, a cúpula acaçapada, resplandecia pàlidamente.