Biblio "SEBO"
Profundo conhecedor da história e do folclore da região, que é trazido para o fortim com sua filha. Por ironia, o Dr. Theodor Cuza e sua bela filha Magda são judeus.
Desconhecido de todos, outro personagem está a caminho do fortim - um homem que despertou de um pesadelo e começou imediatamente sua longa e perigosa jornada, atravessando a Europa até o local onde deve encontrar seu destino.
É assim que começa um romance de paixão e de horror, envolvendo um ser maligno libertado depois de cinco séculos de solidão. . . uma encantadora heroína e seu amor, intenso e marcado pela ameaça. . . e um misterioso forasteiro ruivo que vem tomar parte em uma batalha de forças primordiais. Este impressionante conflito de poderes ocultos, em pleno desenrolar da Segunda Guerra Mundial, cria um quadro magistral de tensão e de pavor. O Fortim deve ser lido à luz de lampiões, quando espíritos inquietos se agitam nas trevas e presenças misteriosas se escondem em cantos escuros.
VARSÓVIA, POLÔNIA
Segunda-feira, 28 de abril de 1941
8h15m
Um ano e meio atrás havia outro nome sobre a porta - um nome polonês - e sem dúvida a referência a um ministério ou departamento do governo do país. Mas a Polónia não mais pertencia aos poloneses, e o nome fora grosseiramente apagado com espessas pinceladas de tinta preta. Erich Kaempffer deteve-se do lado de fora da porta e tentou lembrar-se do nome. Não que isso tivesse importância para ele. Era apenas um exercício de memória. Uma placa de mogno cobria agora a mancha, mas em torno das extremidades apareciam os sinais da tinta. Na placa estava escrito:
SS-Oberjuhrer W. Hossbach
RSHA - Divisão de Raças e Redistribuição
Distrito de Varsóvia
Kaempffer procurou acalmar-se. O que Hossbach quereria dele? Por que aquela convocação tão cedo? Estava irritado consigo mesmo por ter-se deixado impressionar, mas a verdade é que ninguém na SS, por mais firme que fosse sua posição, mesmo um oficial com uma carreira tão rápida como a dele, poderia ser convocado "com urgência" ao gabinete de um superior sem experimentar uma súbita apreensão.
Kaempffer respirou fundo, tratou de disfarçar seu nervosismo e abriu a porta. Um cabo que fazia as vezes de secretário do General Hossbach tomou posição de sentido. Como o rapaz fosse novo na função, Kaempffer pôde perceber que não fora reconhecido
por ele. E isso era compreensível. . . Kaempffer estivera em Auschwitz durante todo o ano anterior.
- Stumbannführer Kaempffer -- disse ele, permitindo que o jovem o anunciasse.
O cabo girou sobre os calcanhares e dirigiu-se ao gabinete contíguo, regressando logo depois.
- Oberführer Hossbach pede-lhe que entre, Herr Major. Kaempffer passou pelo cabo e peneirou no gabinete de Hossbach, encontrando-o sentado atrás de sua mesa.
- Olá, Erich! Bom-dia! - exclamou ele, com uma jovialidade inusitada. - Café?
- Não, obrigado, Wilhelm.
Bem que ele apreciaria uma xícara naquele momento, mas o sorriso de Hossbach o pusera desde logo em guarda. Havia agora um nó em seu estômago vazio.
- Então está bem, mas tire o capote e fique à vontade.
Embora o calendário indicasse abril, ainda fazia frio em Varsóvia. Kaempffer usava seu comprido capote da SS. Tirou-o lentamente e junto com o quepe, pendurou-o no cabide da parede, obrigando Hossbach a observá-lo e, talvez, a dar-se conta das diferenças físicas existentes entre ambos. Hossbach era gordo, calvo e tinha pouco mais de cinqüenta anos; Kaempffer, dez anos mais moço, apresentava um corpo musculoso e uma farta cabeleira loura. E Erich Kaempffer estava fazendo carreira.
- A propósito, receba meus cumprimentos pela promoção e pelo novo cargo. Essa missão em Ploiesti é muito honrosa.
- Certamente - replicou Kaempffer, procurando manter um tom de voz neutro. - Espero fazer jus à confiança que Berlim depositou em mim.
- Disso não tenho dúvida.
Kaempffer bem sabia que os votos de Hossbach eram tão falsos como as promessas que fizera quanto à redistribuição dos judeus poloneses. Hossbach desejara o cargo em Ploiesti para si mesmo, como, aliás, qualquer oficial da SS, uma vez que eram enormes as oportunidades para promoção e aumento do prestígio pessoal oferecidas pelo comando de uma guarnição tão importante na Romênia. Na infatigável busca de uma posição dentro da imensa burocracia criada por Heinrich Himmler - onde cada um mantinha um olho grudado nas costas vulneráveis do homem à sua frente, enquanto com o outro vigiava, por cima do ombro, o sujeito de trás - nada havia de parecido com sinceros votos de êxito para um companheiro.
No constrangedor silêncio que se seguiu, Kaempffer correu os olhos pelas paredes e reprimiu um sorriso desdenhoso ao notar os sinais, na cor da tinta, dos retângulos e quadrados das molduras dos diplomas do anterior ocupante do gabinete. Hossbach não havia colocado os seus - gesto típico de quem tenta dar a impressão de que, muito ocupado com os assuntos da SS, não tem tempo para preocupar-se com ninharias tais como mandar pintar de novo as paredes. Kaempffer não precisava recorrer a tais demonstrações para reafirmar sua devoção à SS. Todas as suas horas do dia eram dedicadas a reforçar sua posição na hierarquia da organização.
Colocando-se em frente a um grande mapa da Polônia, pregado na parede, fingiu interessar-se pela série de alfinetes coloridos que representavam as concentrações indesejáveis. Aquele ano fora muito trabalhoso para o gabinete de Hossbach na RSHS, pois através dele se operara o encaminhamento de toda a população de judeus poloneses para o centro de redistribuição perto do entroncamento ferroviário de Auschwitz. Kaempffer imaginou seu futuro gabinete em Ploiesti, com um mapa da Polônia na parede e também pontilhado de alfinetes coloridos. Ploiesti. . . não poderia haver dúvida de que a amável recepção de Hossbach escondia notícias desagradáveis. Algo de errado acontecera em algum lugar e Hossbach iria aproveitar seus últimos dias como superior de Kaempffer para esfregar-lhe o dedo no nariz.
- Há alguma coisa em que eu lhe possa ser útil? - perguntou Kaempffer por fim.
- Não a mim, propriamente, mas ao Alto Comando. Surgiu agora um pequeno problema na Romênia; na verdade, um transtorno.
- Ah, sim?
- Um destacamento do exército regular, estacionado nos Alpes ao norte de Ploiesti, vem sofrendo ultimamente algumas baixas - ao que parece em virtude das atividades de guerrilheiros locais - e o oficial comandante sugere que o destacamento seja transferido para outro local.
- Mas isso é um assunto do exército - ponderou o Major Kaempffer, não desejando morder a isca. - A SS nada tem a ver com o problema.
- Acontece que tem - replicou Hossbach, desdobrando um papel que estava sobre sua mesa. - O Alto Comando enviou este documento ao gabinete do Obergruppenführer Heydrich. Acho que é perfeitamente lógico que eu o encaminhe a você.
- Lógico, por quê?
- O comandante do destacamento é o Capitão Klaus Woermann, justamente o oficial de quem você me falou, há cerca de um ano, a propósito da recusa dele em inscrever-se no Partido.
Kaempffer permitiu-se um instante de discreto alívio.
- E, uma vez que estou indo para a Romênia, o problema é jogado em cima de mim.
- Precisamente. O ano que você passou em Auschwitz não apenas lhe ensinou como dirigir eficientemente um campo de concentração, mas também como tratar com guerrilheiros locais. Estou certo de que você solucionará tudo rapidamente.
- Posso ler o documento?
- Claro.
Kaempffer apanhou a folha de papel e leu as duas linhas. Sem entender, leu-as novamente.
- Isto foi descodificado adequadamente?
- Foi. Eu também estranhei, de maneira que dei ordem para que fizessem uma verificação. Está correto.
Kaempffer leu a mensagem ainda uma vez:
Solicito imediata transferência de local. Algo está assassinando meus homens.
Uma mensagem desconcertante. Kaempffer conhecera Woermann na Grande Guerra e guardara dele a impressão de um homem resoluto. E agora, numa nova guerra, como oficial na Reichswehr, Woermann repetidamente se recusara a ingressar no Partido, a despeito de constantes pressões. Não era homem de abandonar uma posição, estratégica ou não, desde que fosse o responsável por ela. Somente um fato muito grave o levaria a solicitar uma transferência de local.
Mas o que preocupava Kaempffer ainda mais era a escolha de palavras. Inteligente e preciso, Woermann sabia que sua mensagem teria de passar por diversas mãos em sua rota de transcrição e descodificação e deve ter tentado comunicar algo ao Alto Comando sem entrar em pormenores.
Mas o quê? O verbo assassinar implicava na existência de um agente humano deliberado. Por que, então, fizera preceder essa palavra do termo algo? Um animal, uma substância tóxica, um desastre poderiam matar, mas não assassinar.
- Acho que não preciso recomendar-lhe - foi dizendo Hossbach - que, como a Romênia é um país aliado e não um território ocupado, será necessário agir com muita habilidade.
- Estou perfeitamente a par disso.
Seria necessário também agir com muita habilidade ao tratar com Woermann. Kaempffer tinha umas velhas contas a acertar com ele.
Hossbach tentou sorrir, mas a tentativa pareceu mais um esgar.
- Todos nós da RSHA, inclusive o General Heydrich, estaremos acompanhando o êxito com que você dará cumprimento a esta missão. . . antes de sua transferência para o elevado cargo em Ploiesti.
A ênfase dada à palavra antes e a pequena pausa que a precedeu não passaram despercebidas a Kaempffer. Hossbach estava fazendo o possível para transformar essa pequena viagem aos Alpes em uma prova de fogo. Kaempffer deveria apresentar-se em Ploiesti dentro de uma semana; se ele não fosse capaz de resolver o problema de Woermann com suficiente rapidez, então poderia pensarse que talvez ele não fosse o homem adequado para comandar o campo em Ploiesti. E não faltariam candidatos para tomar o seu lugar.
Instigado por um súbito sentimento de urgência, Kaempffer levantou-se e apanhou o capote e o quepe.
- Penso que não haverá problemas. Partirei imediatamente com dois grupos de einsatzkommandos. Se for providenciado o transporte aéreo e se fizerem as devidas conexões ferroviárias, poderemos estar lá ainda esta noite.
- Ótimo! - exclamou Hossbach, correspondendo à continência de Kaempffer.
- Dois grupos serão suficientes para tomar conta de alguns guerrilheiros.
Fez meia-volta e dirigiu-se para a porta.
- Mais do que suficiente, acho eu. SS-Sturmbannführer Kaempffer não ouviu a última observação
de seu superior. Outras palavras enchiam sua mente: "Algo está assassinando meus homens."
PASSO DINU, ROMÊNIA
28 de abril de 1941
13h22m
O Capitão Klaus Woermann aproximou-se da janela de seu quarto, na torre do fortim, e cuspiu um líquido branco.
Leite de cabra! Ainda se fosse para fazer queijo, vá lá, mas para beber. . .
Enquanto observava o líquido misturar-se com os pingos que caíam incessantemente das rochas uns trinta metros acima, woermann ansiou por uma boa caneca de cerveja alemã. A única coisa que ele desejava mais do que a cerveja era ir embora daquela antecâmara do Inferno.
Isso, porém, não seria possível. No momento, pelo menos. Estufou o peito num gesto tipicamente prussiano. Era mais alto do que a média, possuía ombros largos e seus músculos já haviam sido mais rijos do que agora, tendendo para a lassidão. Tinha cabelo castanho cortado rente; os olhos, muito separados, eram também castanhos; o nariz, ligeiramente torto, fora quebrado na juventude, e a boca, larga, mostrava todos os dentes quando ele ria. Sua túnica cinzenta estava desabotoada na cintura, revelando um começo de obesidade que ele acariciou. Salsichas em demasia. Quando frustrado ou insatisfeito, Woermann tendia a beliscar qualquer coisa entre as refeições, comendo geralmente uma salsicha. Quanto mais frustrado e insatisfeito, mais ele beliscava. Estava engordando.
O olhar de Woermann fixou-se na pequena vila romena, no outro lado da garganta, aquecendo-se pacificamente ao sol da tarde, como se pertencesse a um mundo distante. Afastando-se da janela, o oficial voltou-se e atravessou o quarto - um quarto guarnecido de blocos de pedra, muitos dos quais ornados com estranhas cruzes de bronze e níquel. Quarenta e nove cruzes naquele quarto, para ser exato. Ele sabia disso, pois que as contara inúmeras vezes nos últimos três ou quatro dias. Passando por um cavalete onde havia um quadro inacabado e por uma escrivaninha improvisada, encaminhou-se para a janela do lado oposto, aquela de onde se avistava o pequeno pátio do fortim.
Lá embaixo, os homens de seu destacamento que se encontravam de folga estavam reunidos em pequenos grupos, alguns conversando em voz baixa, a maioria mal-humorada e silenciosa, mas todos evitando as sombras que avançavam. Aproximava-se outra noite. Mais um deles iria morrer.
Um dos homens estava sentado sozinho a um canto, esculpindo um pedaço de madeira apressadamente. Woermann observou a pequena peça que tomava forma nas mãos do artista - era uma cruz. Como se não houvesse já bastantes cruzes por ali!
Os homens estavam amedrontados. E ele também. Uma reviravolta completa em menos de uma semana! Ele se lembrava como haviam entrado, marchando orgulhosamente, pelo portão do fortim - os invencíveis soldados da Wehrmacht, um exército que tinha conquistado a Polônia, a Dinamarca, a Noruega, a Holanda e a Bélgica. Em seguida, depois de empurrar para o mar em Dunquerque os remanescentes do exército britânico, acabara por liquidar a França em trinta e nove dias. E justamente naquele mês a Iugoslávia fora arrasada em doze dias e a Grécia em apenas vinte e um, terminados na véspera. Nada poderia detê-los. Eram vencedores natos.
Mas havia os fatos da última semana. Foi impressionante como aquelas seis mortes horríveis afetaram os conquistadores do mundo. Era isso que o preocupava. Durante toda a semana o mundo se contraíra, como se nada mais existisse, para ele e seus homens, além daquele pequeno castelo, daquele túmulo de pedra. Estavam enfrentando alguma coisa que desafiava todos os esforços que faziam para detê-la, alguma coisa que matava e desaparecia, para voltar e novamente matar. O coração deles não suportava mais o desespero.
Deles. . . Woermann deu-se conta de que, durante algum tempo, não se incluíra entre os que haviam perdido a fé, desde aquele tempo na Polônia, perto da cidade de Poznan, depois que a SS chegara e ele vira, com os próprios olhos, o destino dos indesejáveis, dos que eram deixados para trás, no rastro da vitoriosa Wehrmacht. Protestara. O resultado foi que desde então nunca mais o designaram para uma unidade de combate. Simplesmente. A partir desse dia, ele perdera todo o orgulho que tinha por considerar-se como um dos conquistadores do mundo.
Deixou a janela e voltou para a escrivaninha. Apoiou-se em uma das pontas, esquecido das fotografias de sua mulher e dos dois filhos, e releu uma vez mais a mensagem descodificada:
SS-Sturmbannjührer Kaempffer chegará hoje com destacamento de einsatzkommandos. Mantenha posição atual.
Por que um major da SS? Aquela era uma guarnição do exército regular. Tanto quanto sabia, a SS nada tinha a ver com ele, com o fortim ou com a Romênia. A verdade, porém, é que havia muitas coisas que Woermann não conseguira entender naquela guerra. E logo Kaempffer! Um mau soldado, mas, sem dúvida, um membro exemplar da SS. Por que viria ele? E por que razão com os einsatzkommandos? Tropa de extermínio, eram Esquadrões da Morte, especialistas em campos de concentração, em matar civis desarmados. Fora o trabalho deles que Woermann presenciara perto de Poznan. Por que estariam agora vindo para o fortim?
Civis desarmados... As palavras se arrastavam. . . Um sorriso aflorou-lhe timidamente nos cantos da boca, mas os olhos permaneceram imóveis.
Que viessem então os homens da SS. Woermann estava agora convencido de que havia uma participação civil, desarmada, na raiz de todas as mortes no fortim, mas não uma participação servil, da espécie com que a SS estava acostumada a lidar. Que viessem os comandos da SS. Eles teriam oportunidade de sentir na carne o pavor que tanto gostavam de difundir, de aprender a acreditar no inacreditável.
Woermann acreditava. Uma semana antes teria rido daquela tolice. Agora, porém, quanto mais o sol se aproximava do horizonte mais convictamente ele acreditava. .. e temia.
Tudo em uma semana apenas. Houvera perguntas sem resposta, quando eles entraram pela primeira vez no fortim, mas não medo. Uma semana. Só isso? Parecia que tinham decorrido séculos desde que ele avistara pela primeira vez o fortim. . .
EM RESUMO: O complexo da refinaria de Ploiesti tem uma proteção relativamente satisfatória ao norte. O passo Dinu, nos Alpes da Transilvânia, oferece a única ameaça por terra, mas é pequena. Como será explicado detalhadamente neste relatório, a esparsa população e as condições atmosféricas durante a primavera teoricamente permitem que o passo possa ser percorrido por um destacamento blindado - e sem que este seja detectado - que, partindo das estepes do sudoeste da Rússia, passe pelos contrafortes do sul dos Cárpatos e, atravessando o passo, surja por fim do outro lado das montanhas, uns trinta quilômetros a noroeste de Ploiesti, havendo apenas uma planície entre ele e os campos petrolíferos.
Em razão da importância crucial do petróleo fornecido por Ploiesti, recomenda-se que, até que a Operação Barbarossa se encontre em pleno progresso, uma pequena força guarneça o passo Dinu. Conforme está mencionado no relatório, há uma velha fortificação nas proximidades do passo, que pode servir adequadamente como base da vigilância.
ANÁLISE DA DEFESA DE PLOIESTI, ROMÊNIA Apresentada ao Alto Comando da Reichswehr a 19 de abril de 1941.
PASSO DINU, ROMÊNIA Terça-feira. 22 de abril
12h8m
Não pode haver um dia longo aqui, qualquer que seja a estação do ano, pensava Woermann enquanto contemplava as encostas abruptas das montanhas, com mais de trezentos metros de altura de cada lado do passo. O sol tinha de elevar-se num arco de 30° antes que pudesse surgir por cima da encosta oriental, e percorrer depois apenas 90° através do céu, antes de se ocultar de novo. As encostas do passo Dinu eram incrivelmente íngremes, tão próximas da vertical quanto seria possível à parede de uma montanha sem que ela perdesse o equilíbrio e desabasse; pedaços enormes de lajes pontudas e blocos de rocha desabavam ocasionalmente, liberados por inscrustações cónicas de xisto em desagregação. Marrom e cinza, argila e granito se misturavam, com espassas pinceladas verdes. Árvores raquíticas, ainda desfolhadas naquele começo de primavera, com seus troncos açoitados e torcidos pelo vento, mantinham-se precariamente sustentadas por teimosas raízes que, de alguma maneira, conseguiram infiltrar-se na rocha. Elas se agarravam como alpinistas exaustos, incapazes de mais um movimento para cima ou para baixo.
Woermann podia ouvir, logo atrás de seu carro-comando, o ruído dos dois transportes que traziam seus homens e, mais atrás, o confortador sacolejar do caminhão com os suprimentos e as armas. Os quatro veículos deslocavam-se em coluna por um, ao longo da encosta ocidental do passo, onde, durante anos, uma laje natural vinha sendo utilizada como estrada. Como todos os passos de montanha, o Dinu era estreito, medindo menos de um quilómetro no sinuoso percurso através dos Alpes da Transilvânia - a área menos explorada da Europa. Woermann olhou com pesar para a parte inferior do passo, uns quinze metros mais abaixo, à sua direita; era plana e verde, com uma trilha no centro. Seria um caminho mais curto e menos incómodo, mas as instruções que recebera alertavam que esse trecho era impróprio para veículos sobre rodas, dada a natureza do solo. Era necessário prosseguir pela estrada sacolejante. Estrada? Woermann deu um suspiro. Aquilo não era uma estrada. Ele a classificaria como trilha ou, mais propriamente ainda, como laje. Estrada é que não era. Aparentemente, os romenos dali não acreditavam em motores de combustão interna e não haviam tomado providências para o trânsito de automóveis pelo passo.
O sol desaparecera de repente; ouviu-se um trovão, em seguida um relâmpago riscou o céu e começou a chover novamente. Woermann praguejou. Outra tempestade. O tempo ali era de enervar. Rajadas violentas sopravam entre as paredes do passo, relâmpagos se cruzavam em todas as direções, e o fragor dos trovões ameaçavam derrubar as montanhas, solapadas pelas torrentes logo formadas pela chuva. Súbito, tudo voltava ao normal, tão abruptamente como chegara. Tal como o espetáculo de agora.
Como é que alguém poderia viver em um lugar como esse? - perguntava Woermann a si mesmo. As lavouras cresciam com dificuldade, mal dando para a subsistência do local. Cabras e carneiros pareciam dar-se bem, beneficiando-se da grama do vale e da água límpida que descia dos picos. Mas por que escolher um lugar assim para viver?
Woermann tinha avistado o fortim pela primeira vez quando a coluna passou pelo meio de um pequeno rebanho de cabras, em uma das curvas da sinuosa trilha. Sentiu imediatamente uma impressão estranha, mas, apesar de tudo, favorável. Embora sob a forma de um castelo, a construção não podia ser classificada como tal, por ser demasiado pequena. Por isso era chamada de fortim. Não tinha nome próprio, o que era normal. Deveria contar séculos de idade, mas se apresentava como se a última pedra fora colocada no dia anterior. A surpresa de Woermann foi tal que receou ter errado o caminho. Não poderia ser esta a fortificação abandonada, velha de quinhentos anos, que ele recebera ordem de ocupar. Fazendo a coluna parar, ele consultou o mapa e certificou-se de que aquele era realmente seu novo posto de comando. Olhou novamente para a estrutura, estudando-a.
Séculos antes, uma enorme laje de rocha escorregara do flanco ocidental do passo. Em torno dela havia uma profunda garganta, através da qual corria um arroio gelado cujas águas pareciam brotar de dentro da montanha. O fortim assentava sobre essa laje. Seus muros lisos, de uns doze metros de altura, eram feitos de blocos de granito encaixados solidamente na rocha da encosta da montanha à retaguarda - a obra do homem conjugada com a da natureza. Todavia, a característica mais impressionante da pequena fortaleza era sua torre solitária, na extremidade principal: rendilhada de ameias no topo, projetava-se na direção do centro do passo, distando pelo menos cinqüenta metros desde seu parapeito chanfrado até o vale rochoso mais abaixo. Tal era o fortim. Uma reminiscência de uma época diferente. Uma visão agradável, na medida em que prometia abrigo seguro ao destacamento durante o cumprimento de sua missão na vigilância do passo.
Mas era estranho como o fortim apresentava aspecto tão novo.
Woermann fez um sinal para o homem a seu lado e começou a enrolar o mapa. O nome dele era Oster, um sargento - o único sargento no destacamento de Woermann. Fazia também as vezes de motorista. Oster levantou o braço esquerdo, para avisar os motoristas das viaturas de trás, e a marcha foi retomada. A estrada - ou, melhor, a trilha - se alargava à medida que eles avançavam na curva e desembocavam numa pequenina vila aninhada no sopé da montanha ao sul do fortim, logo após a garganta.
Ao se aproximarem do centro da vila, Woermann decidiu reclassificá-la também. Não era propriamente uma vila no sentido considerado pelos alemães, mas um agrupamento de cabanas de paredes de estuque, tetos reforçados, todas de um único pavimento, exceto a última, na extremidade norte. Esta situava-se no lado direito, possuía um segundo andar e uma tabuleta na frente. Woermann não sabia ler romeno, mas teve a impressão de que se tratava de uma espécie de estalagem, embora não pudesse imaginar qual a necessidade de um estabelecimento dessa natureza. Quem jamais viria hospedar-se ali?
A uns trinta metros além da vila a trilha terminava na beira da garganta. A partir daí, uma ponte de madeira, apoiada em colunas de pedra, atravessava os sessenta metros da garganta rochosa, propiciando a única ligação do fortim com o mundo. Outro meio possível de entrada seria escalar a íngreme muralha de baixo ou deslizar, agarrado a uma corda, do topo da montanha, ao longo de uns trezentos metros da encosta igualmente íngreme.
O olho militar de Woermann avaliou desde logo as vantagens estratégicas do fortim. Um excelente posto de observação. O passo Dinu, em toda a sua extensão, ficava inteiramente sob as vistas da torre; das muralhas do fortim, uns cinqüenta homens decididos poderiam deter um batalhão de russos. Não que ele receasse o aparecimento de uma coluna soviética no passo, mas quem poderia saber os desígnios do Alto Comando?
Havia outro olho no interior de Woermann, e era com ele que o oficial agora examinava o fortim. Um olho de artista, de um amante da paisagem, imaginando o que deveria usar para representar toda aquela beleza - aquarela ou tinta a óleo? A única maneira de saber isso seria tentar ambas. E. para tanto, não lhe faltaria tempo durante os próximos meses.
- Bem, sargento - disse ele a Oster, ao alcançarem a extremidade da ponte -, que acha você de seu novo lar?
- Não me parece grande coisa, senhor.
- Você se acostumará. Provavelmente passará o resto da guerra aqui.
- Sim, senhor.
Notando uma certa preocupação nas respostas de Oster, Woermann olhou para o sargento, um jovem esguio e moreno, com pouco mais da metade de sua idade.
- Aliás, a guerra não deverá durar muito tempo mais, sargento. Já chegou a notícia de que, como fora previsto, a Iugoslávia se rendeu.
- Ah, senhor, já nos deveria ter contado isso! Levantaria o nosso moral!
- Os homens estão assim tão precisados de incentivo?
- Todos preferiríamos estar na Grécia agora, senhor.
- Mas lá só existe bebida ruim, carne dura e danças estranhas. Você não gostaria do país.
- É por causa dos combates, senhor.
- Ah. sim!
Woermann notara que a faceta irônica de seu espírito se revelava cada vez mais no decorrer da guerra. Por certo não era uma característica invejável em se tratando de um oficial alemão e poderia até vir a ser perigosa para quem sempre se recusara a tornarse um nazista. Todavia, tratava-se da única defesa contra a crescente frustração que vinha experimentando ao longo da guerra e da carreira. O Sargento Oster não servira com ele o tempo suficiente para aperceber-se disso. Com o tempo, porém, aprenderia.
- Quando você chegasse lá, sargento, os combates já teriam cessado. Penso que a rendição não demora uma semana.
- Ainda assim todos achamos que estaríamos fazendo mais pelo Führer do que aqui nestas montanhas.
- É bom não esquecer que foi por ordem do Führer de vocês que nós viemos para cá - replicou Woermann, notando com satisfação que Osíer não notara o "de vocês".
- Mas por quê, senhor? Qual a finalidade de ficarmos aqui? Woermann começou a recitar sua ladainha:
- O Alto Comando considera o passo Dinu uma ligação direta entre as estepes da Rússia e todos os campos petrolíferos que atravessamos em Ploiesti. Se as relações entre a Rússia e o Reich se deteriorarem um dia, os russos podem decidir o lançamento de um ataque de surpresa contra Ploiesti. E, sem esse petróleo, a mobilidade da Wehrmacht ficaria seriamente ameaçada.
Oster ouviu tudo pacientemente, embora aquela explanação já lhe tivesse sido feita uma dúzia de vezes e ele próprio a houvesse transmitido aos homens do destacamento. E Woermann sentia que ele não ficara convencido daquela história. Mas não o culpava por isso. Qualquer soldado razoavelmente inteligente teria suas dúvidas no caso. Oster já estava no exército há bastante tempo para saber que era muito estranho que um oficial veterano fosse colocado no comando de quatro esquadras de infantaria, sem outro oficial como subcomandante, e depois enviado com esse pequeno destacamento para guardar um passo isolado nas montanhas de um país aliado. Isso era função para um tenente recém-promovido.
- Mas os russos dispõem de quantidade suficiente de petróleo próprio, senhor, e temos um tratado com eles.
- É claro! Quase me esquecia disso. Um tratado! Não se costuma mais romper tratados.
- O senhor não está pensando que Stalin tenha a ousadia de trair o Führer, está?
Woermann engoliu a resposta que lhe veio de imediato: Não se o Führer de vocês o trair primeiro. Oster não compreenderia.
Como a maioria dos membros da geração de pós-guerra, o sargento equiparava os interesses do povo alemão à vontade de Adolf Hitler. Fora inspirado e conquistado pelo homem. Woermann se achava velho demais para se permitir tal confusão. Fizera 41 anos no mês anterior. Acompanhara a ascensão de Hitler desde as manifestações nas cervejarias até sua nomeação para Chanceler, até o endeusamento. Jamais simpatizara com ele.
Na verdade, Hitler unira o país e o lançara novamente na estrada da vitória e do auto-respeito. Alemão algum poderia negarlhe esses méritos. Entretanto, Woermann jamais confiara em Hitler - um austríaco que se cercara daqueles bávaros, todos sulistas. Nenhum prussiano seria capaz de depositar sua confiança em uma camarilha de sulistas como aquela. Havia algo de sinistro em suas decisões. O que Woermann presenciara em Potsdam fora suficiente para dar-lhe essa impressão.
- Diga aos homens que desembarquem e espichem as pernas
- ordenou Woermann, ignorando a última pergunta de Oster. Afinal, era apenas retórica. - Examine o estado da ponte e veja se ela suportará o peso dos veículos. Enquanto isso, irei dar uma olhada lá dentro.
À medida que caminhava pela ponte, Woermann foi-se convencendo de que o madeiramento estava em condições suficientemente boas. Correu os olhos pelas pontas de rocha e pela água que gorgolejava lá embaixo. Era uma altura considerável, no mínimo uns vinte metros. O melhor seria esvaziar os caminhões e, deixando apenas o motorista, fazê-los atravessar um de cada vez.
O pesado portão, no arco da entrada do fortim, estava escancarado, bem como os postigos da maioria das janelas na muralha e na torre. Era como se o fortim estivesse sendo arejado. Woermann passou pelo portão e encontrou-se no interior do pátio cercado de pedras. O ambiente era fresco e silencioso. O oficial notou que havia uma seção traseira do fortim, aparentemente encravada na encosta da montanha, que ele não percebera quando se encontrava na ponte.
Continuou a correr lentamente os olhos pelo conjunto. A torre avultava acima dele, enquanto cinzentas muralhas o rodeavam por todos os lados. Woermann sentiu-se como se estivesse cercado pelos tentáculos de um enorme animal adormecido que ele não tinha coragem de acordar.
Foi então que viu as cruzes. As paredes internas do pátio estavam repletas de centenas, milhares delas. Todas do mesmo tamanho e com o mesmo formato singular: o braço vertical, de uns vinte e cinco centímetros de altura, era reto no topo e alargado na base; o braço transversal media cerca de vinte centímetros e apresentava em cada ponta um pequeno ângulo para ema.
Todavia, o detalhe especial era que a ponta superior do braço vertical mal se destacava acima do transversal, fazendo com que a cruz parecesse um grande "T".
Woermann teve a impressão de que o detalhe era vagamente anormal, de que havia algo errado nele. Aproximou-se de uma das cruzes e passou a mão sobre sua superfície polida. O braço vertical era de bronze e o transversal de níquel, sendo o conjunto habilmente incrustado na superfície do bloco de pedra.
Correu os olhos novamente em torno. Alguma coisa mais o estava perturbando. De súbito, descobriu: pássaros. Não havia pombos nos vãos das paredes. Os castelos na Alemanha costumam ter bandos de pombos, com seus ninhos em cada fenda. Ali não havia um único pássaro nas paredes, nas janelas nem na torre.
O oficial ouviu um ruído atrás de si e virou-se, já com a mão no cabo de sua Luger. O governo romeno podia ser aliado do Reich, mas Woermann estava certo de que havia grupos no país que discordavam dessa posição. O Partido Nacional dos Camponeses, por exemplo, era fanaticamente antigermânico, e, embora se encontrasse fora do poder, ainda se conservava ativo. Deveria haver grupos esparsos nos Alpes, aguardando, escondidos, uma oportunidade para matar alguns alemães.
O ruído tornou a repetir-se, desta vez mais forte. Eram passos que se aproximavam, sem a preocupação de serem silenciosos. Vinham de uma porta da seção traseira do fortim e, quando Woermann se virou, deparou com um jovem que, vestindo um cojoc de pele de cabra, transpusera a porta. Ele não vira Woermann. Tinha uma pá de pedreiro em uma das mãos e, de costas para o oficial, reforçava com argamassa as ombreiras da porta.
- O que está você fazendo aí? - perguntou Woermann asperamente. Ás instruções que recebera diziam que o fortim estava abandonado.
Colhido de surpresa, o pedreiro voltou-se e o espanto em seu rosto logo desapareceu, reconhecendo o uniforme e dando-se conta de que a pergunta fora feita em alemão. Balbuciou algumas palavras ininteligíveis, certamente em romeno. Woermann concluiu, aborrecido, que teria de arranjar um intérprete ou de aprender um pouco do idioma, se tivesse de passar algum tempo naquele local.
- Fale em alemão! O que está fazendo aí?
O homem balançou a cabeça num misto de temor e indecisão. Levantou a mão, fazendo sinal para que esperasse, depois gritou uma palavra que soava como "Papail".
Ouviu-se uma voz mais acima, quando um homem idoso, com uma caciula de lã na cabeça, abriu uma das janelas da torre e olhou para baixo. Woermann apertou com mais força o cabo de sua Luger, enquanto os dois romenos trocavam algumas palavras. A seguir, o mais velho avisou em alemão:
- Já estou descendo, senhor.
Woermann concordou com um aceno de cabeça e relaxou os músculos. Aproximou-se novamente de uma das cruzes e a examinou . .. Bronze e níquel. . . quase como ouro e prata.
- Há dezesseis mil, oitocentas e sete cruzes iguais a essa embutidas nas paredes do fortim - disse uma voz atrás dele. O sotaque era carregado e as palavras, escolhidas com dificuldade.
Woermann o encarou:
- Você as contou? - Calculou que o homem devia ter por volta de cinqüenta e cinco anos. Havia uma grande semelhança entre ele e o jovem pedreiro a quem Woermann assustara. Ambos estavam vestidos com idênticas camisas de camponeses e calções, porém o mais velho usava o gorro de lã. - Ou é essa uma das informações que você transmite aos turistas que aparecem por aqui?
- Meu nome é Alexandru - respondeu o romeno com aspereza, inclinando-se ligeiramente. - Meus filhos e eu trabalhamos aqui. E não costumamos acompanhar ninguém como visitante.
- Haverá uma alteração agora mesmo. Disseram-me que o fortim estava desocupado.
- Somente quando vamos para casa à noite. Moramos na vila.
- Onde está o proprietário?
- Não tenho a menor idéia - replicou Alexandru, encolhendo os ombros.
- Quem é ele?
Novo encolher de ombros.
- Não sei.
- Mas quem é que paga vocês?
Aquilo estava-se tornando exasperante. Será que aquele homem não sabia fazer outra coisa senão encolher os ombros e dizer que não sabia?
- O estalajadeiro. Alguém lhe traz o dinheiro duas vezes por ano, inspeciona o fortim, toma algumas notas, depois vai embora. O estalajadeiro nos paga mensalmente.
- E quem diz o que vocês devem fazer? - perguntou Woermann, esperando outro encolher de ombros, que não veio.
- Ninguém. - Alexandru mantinha-se com a cabeça erguida e falava com serena dignidade. - Fazemos de tudo. Nossas instruções são para mantermos o fortim como novo. É só isso o que precisamos saber. O que for necessário fazer, nós o fazemos. Meu pai passou a vida inteira trabalhando aqui e, antes dele, seu pai, sempre assim. Meus filhos continuarão na mesma rotina depois de mim.
- Vocês passam a vida inteira cuidando do fortim? Não posso acreditar nisso.
- Ele é muito maior do que parece. Todas as muralhas que o senhor está vendo têm quartos dentro delas. Há corredores de quartos no porão, embaixo de nós, e encravados na encosta da montanha, atrás de nós. Não nos falta trabalho.
O olhar de Woermann percorreu as muralhas de paredes cinzentas, parte das quais já na sombra, depois o pátio, também sombreado, embora a tarde mal tivesse começado. Quem teria construído o fortim? E quem estaria pagando para que ele fosse mantido em tão perfeitas condições? Aquilo não fazia sentido. O oficial ficou olhando as sombras e ocorreu-lhe que, se tivesse sido ele o construtor, teria erguido o fortim no outro lado do passo, onde ficaria mais exposto à luz e ao calor do sol, a oeste e ao sul. No local onde fora construído, a noite sempre chegava mais cedo.
- Muito bem - disse ele a Alexandru. - Vocês podem continuar suas tarefas de manutenção, depois de nos termos instalado. Mas você e seus filhos devem apresentar-se à sentinela na entrada e na saída. - Ao notar que o velho sacudia a cabeça, discordando, perguntou: - Qual é o problema?
- O senhor e seus homens não podem ficar aqui.
- E por que não?
- É proibido.
- Proibido por quem?
- Sempre foi assim - replicou Alexandru, voltando a encolher os ombros. - Nós devemos cuidar da manutenção do fortim e impedir a entrada de estranhos.
- E, naturalmente, vocês sempre foram obedecidos - ironizou Woermann. A seriedade do velho divertia-o.
- Não. Nem sempre. Houve ocasiões em que viajantes pousaram aqui contra a nossa vontade. Não lhes opusemos resistência, pois não fomos contratados para lutar. Entretanto, jamais alguém ficou mais de uma noite. Na maioria das vezes, nem mesmo isso.
Woermann sorriu. Estava esperando por aquilo. Um castelo deserto, mesmo sendo pequeno como aquele, tinha de ser assombrado. Na falta de outro motivo, pelo menos para dar ao povo um assunto para comentar.
- E o que os faz ir embora? Gemidos? Espectros arrastando correntes?
- Não... não há fantasmas aqui, senhor.
- Mortes, então? Assassinatos horripilantes? Suicídios? - Woermann estava-se divertindo. - Temos uma quantidade enorme de castelos na Alemanha e não há um único que não possua uma história de horror que vem sendo contada por sucessivas gerações ao pé da lareira.
Alexandru meneou a cabeça.
- Nunca morreu ninguém aqui. Pelo menos que eu saiba.
- Então o que é? Por que ninguém fica mais de uma noite?
- Pesadelos, senhor. Horríveis pesadelos. E sempre os mesmos, pelo que ouvi contar. . . algo como ficar trancado em um pequeno quarto sem porta, sem janelas e sem luz... escuridão total... e frio. . . muito frio... e alguma coisa na escuridão junto do hóspede. . . algo mais frio que a própria escuridão. . . e faminto.
Woermann sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha enquanto ouvia aquela descrição. Ocorreu-lhe perguntar a Alexandru se ele nunca havia passado uma noite no fortim, mas o pavor nos olhos do romeno era uma resposta suficiente. Sim, Alexandra passara uma noite ali. Mas uma única apenas.
- Quero que você fique aqui até que meus homens terminem de atravessar a ponte - disse Woermann, dominando seus temores. - Depois, vamos visitar as dependências.
A fisionomia de Alexandru revelava sua frustração.
- É meu dever. Herr Capitão - disse ele com dignidade - informá-lo de que não são permitidos hóspedes aqui no fortim.
Woermann sorriu, mas sem menosprezo nem ar superior. Compreendia a noção de dever do romeno e a respeitava.
- Você cumpriu sua obrigação ao me alertar. Contudo, eu represento o exército alemão, uma força que está muito além de sua capacidade de resistência, de modo que é melhor você ficar de lado. Considere seu dever fielmente cumprido.
Dito isto, Woermann deu meia volta e dirigiu-se para o portão.
Continuava a não ver pássaro algum. Será que as aves tinham pesadelos? Será que passavam também uma noite ali e nunca mais regressavam?
O carro-comando e os três caminhões descarregados atravessaram a ponte e estacionaram no pátio sem incidentes. Os homens seguiram a pé, carregando a respectiva bagagem, depois retornaram para a margem oposta da garganta, a fim de transportarem a carga do caminhão de suprimentos - geradores, alimentos, armas antitanques.
Enquanto o Sargento Oster se encarregava da mudança, Woermann seguiu atrás de Alexandru para uma rápida visita ao fortim. O número de cruzes idênticas - sempre de bronze e níquel e inseridas a intervalos regulares nas pedras de cada corredor, de cada quarto, de cada parede - continuava a intrigá-lo. E os quartos. Parecia que tinham sido construídos em toda a parte, cavados nas paredes que cercavam o pátio, no porão, na seção traseira, na torre. Em sua maioria eram pequenos e nenhum deles estava mobiliado.
- Quarenta e nove quartos no total, incluindo as suítes na torre - informou Alexandru.
- Um número esquisito, não acha? Por que não arredondar para cinqüenta?
- Quem pode saber? - replicou o romeno, dando de ombros. Woermann rilhou os dentes. Se ele der de ombros mais uma
vez. . .
Os dois homens percorreram uma das seções das muralhas, que partia em diagonal da torre, depois seguia em linha reta até à encosta da montanha. O oficial notou que havia cruzes embutidas também no parapeito, à altura dos ombros. Uma pergunta surgiu em sua mente:
- Não me recordo de ter visto cruzes na parte posterior da muralha.
- Não há nenhuma. Todas estão na parte interna. E repare nos blocos aqui. Veja como eles se ajustam perfeitamente. Não há o menor sinal de argamassa para mantê-los unidos. Todas as paredes no fortim são construídas dessa maneira. É uma arte esquecida.
Woermann não se interessava por blocos de pedra. Apontou para a plataforma a seus pés.
- Você disse que há quartos aqui embaixo de onde estamos?
- Dois terços deles dentro de cada muralha, cada um com uma fenda à guisa de janela, abrindo para fora, e uma porta para o corredor que conduz ao pátio.
- Ótimo. Servirão perfeitamente para alojamento dos homens. Agora vamos à torre.
A construção da torre de vigia não obedecia aos modelos comuns. Havia cinco pavimentos, cada um compreendendo uma suíte de dois quartos que ocupavam toda a área, exceto o espaço destinado a uma porta de comunicação com um pequeno patamar. Uma escada de pedra subia, em ziguezague íngreme, pela parte interna da muralha norte da torre.
Ofegante, após a subida, Woermann inclinou-se sobre o parapeito que circundava a torre e examinou atentamente a área do passo Dinu comandada pelo fortim. Podia assim escolher as melhores posições para suas armas antitanques. Ele não confiava muito na eficiência dos Panzerbuchse 38, de 7,92 mm que lhe haviam fornecido, mas tinha esperanças de que não precisaria usá-los. Nem os morteiros. De qualquer modo, porém, teria de instalá-los.
- Não há muito lugar para alguém deixar de ser visto daqui
- disse ele, falando consigo mesmo.
Alexandru replicou inesperadamente:
- Exceto no nevoeiro da primavera. O passo inteiro fica tomado por uma densa cerração todas as noites nessa época do ano.
Woermann anotou mentalmente a observação. O pessoal do serviço de vigilância deveria manter abertos não apenas os olhos, mas também os ouvidos.
- Onde se meteram os pássaros? - perguntou, aborrecido por não ter visto ainda nenhum.
- Nunca vi um pássaro no fortim - respondeu Alexandru.
- Nunca.
- Isso não lhe parece estranho?
-. O fortim é em si estranho, Herr Capitão, com todas essas cruzes e tudo o mais. Desisti de tentar uma explicação quando tinha dez anos. Conformei-me.
- Quem o construiu? - perguntou Woermann e voltou o rosto, para não ver o encolher de ombros que fatalmente viria.
-- Pergunte a cinco pessoas e terá cinco respostas. Todas diferentes. Alguns dizem que foi um dos antigos senhores da Valáquia, ouüos, que teria sido um turco revoltado. E há mesmo uns poucos que acreditam que a construção se deve a um dos papas. Quem sabe ao certo? A verdade pode encurtar e a fantasia desenvolver-se muito durante cinco séculos.
- Você acredita de fato que decorreu todo esse tempo? - perguntou Woermann, olhando ainda uma vez para o passo, antes de afastar-se. Isso pode acontecer em um período de poucos anos.
Ao chegarem ao nível do pátio, o ruído de marteladas levou Alexandru a encaminhar-se na direção do corredor ao longo da parede interior da plataforma sul. Woermann seguiu atrás dele. Quando Alexandru viu soldados batendo contra as paredes, correu para olhar de mais perto, depois voltou-se para Woermann.
- Herr Capitão, eles estão fincando pregos entre as pedras!
- exclamou, torcendo as mãos, muito aflito. - Faça com que eles parem! Estão estragando as paredes!
- Bobagem! São apenas pregos comuns, colocados a intervalos de uns três metros. Dispomos de dois geradores e os homens estão distribuindo as lâmpadas. O exército alemão não usa tochas.
Ao retomarem o caminho pelo corredor, viram um soldado ajoelhado no chão e arranhando um dos blocos com a ponta da baioneta. Alexandru ficou ainda mais agitado.
- E este? - perguntou o romeno, num sussurro irritado. - Também está colocando lâmpadas?
Woermann aproximou-se rápida e silenciosamente, colocando-se atrás do desatento soldado. Ao ver o homem forçar a extremidade de um dos braços da cruz com a ponta da pesada lâmina, Woermann sentiu um arrepio e um suor gelado correr-lhe pela testa.
- Quem mandou você fazer isso, soldado?
O homem levantou-se, espantado, e deixou cair a baioneta. Seu rosto aflito empalideceu ao dar com seu comandante encarando-o. Tomou a posição de sentido.
- Responda, soldado! - gritou Woermann.
- Ninguém, senhor.
- Qual é a sua tarefa?
- Ajudar a colocar as lâmpadas, senhor,
- E por que não está fazendo isso?
- Não tenho desculpa, senhor.
- Não sou o seu sargento instrutor, soldado. Quero saber o que tinha você em mente quando resolveu agir como um vândalo comum e não como um soldado alemão. Responda-me!
- É o ouro, senhor - disse o soldado envergonhadamente. A resposta era esfarrapada e ele sabia. - Estão dizendo que este castelo foi construído para esconder um tesouro papal. E todas estas cruzes, senhor. . . elas parecem de ouro e prata. Eu estava apenas. . .
- Você estava deixando de cumprir seu dever, soldado. Como é o seu nome?
- Lutz, senhor.
- Bem, Soldado Lutz, hoje foi um dia útil para você. Ficou sabendo não só que estas cruzes são feitas de bronze e níquel, e não de ouro e prata, mas também que está escalado para sentinela durante toda a semana, no primeiro quarto. Apresente-se ao Sargento Oster quando tiver terminado sua parte na colocação das lâmpadas.
Depois que Lutz apanhou sua baioneta e se afastou, Woermann encarou o rosto pálido de Alexandru e notou que suas mãos tremiam.
- As cruzes nunca devem ser tocadas! - disse o romeno. - Nunca!
- E por que não?
- Porque foi sempre assim. Nada no fortim pode ser alterado. É para isso que trabalhamos. E é por isso que o senhor não pode ficar aqui!
- Boa-tarde, Alexandru - disse Woermann, num tom que ele esperava pusesse fim à discussão. Simpatizava com as intenções do velho romeno, mas tinha um dever a cumprir.
Ao afastar-se, ouviu a voz aflita de Alexandru atrás dele.
- Por favor, Herr Capitão! Diga-lhes para não tocarem nas cruzes! Que não toquem nas cruzes!
Woermann resolvera fazer justamente isso. Não por causa de Alexandru, mas porque não conseguira explicar o estranho temor que se apossara dele ao ver Lutz forçar aquela cruz com a baioneta.
Não fora uma simples sensação desagradável, mas um estranho temor que lhe embrulhou o estômago e o deixou oprimido. E o pior é que ele não sabia imaginar porquê.
Quarta-feira. 23 de abril
3h20m
Era já tarde quando Woermann pôde afinal acomodar-se em seu saco de dormir, no chão de um dos quartos. Escolhera para si o terceiro pavimento da torre. Este situava-se acima das muralhas e não era de difícil acesso. O quarto da frente serviria como gabinete, e o menor, atrás, como alojamento pessoal. As duas janelas da frente - aberturas retangulares, sem vidraças, situadas na parede externa e flanqueadas por postigos de madeira - permitiam descortinar a maior parte do passo e também a vila. E através do par de janelas da parte de trás ele podia enxergar todo o pátio.
Os postigos ficavam completamente abertos à noite. Woermann apagara a luz e permaneceu um momento junto a uma das janelas da frente. A garganta estava meio oculta por uma leve camada de névoa. Depois que o sol se ocultara, o ar frio começara a descer dos picos da montanha, misturando-se com a umidade do fundo do passo, que ainda retinha um pouco do calor do dia. O resultado era um rio branco de névoa deslizando suavemente. A cena era iluminada apenas pela luz das estrelas, uma incrível quantidade delas, como somente são vistas nas montanhas. Woermann podia contemplá-las e quase compreender o fantástico movimento da Noite Estrelada de Van Gogh. O silêncio era quebrado apenas pelo zumbido surdo dos geradores instalados no extremo oposto do pátio. Uma cena intemporal, e que Woermann destratou até ser vencido pelo cansaço.
Porém, uma vez no saco de dormir, o sono lhe fugiu apesar da fadiga, e sua mente ficou vagando em todas as direções: a noite estava fria, mas não o bastante para acender lareiras. . . Aliás não havia lenha para elas. . . o aquecimento não seria problema, com o verão já tão próximo. . . A água também não, uma vez que havia cisternas cheias no porão, alimentadas por um arroio subterrâneo. . . As instalações sanitárias sempre constituíam um problema .. . Quanto tempo eles iriam ficar ali?.. . Deveria permitir que os homens dormissem até mais tarde, depois de um dia tão trabalhoso? Talvez conseguisse que Alexandru e seus filhos arranjassem uns catres para ele e seus homens, livrando-os daquele chão de pedras frias. . . especialmente se tivessem de continuar ali durante os meses do outono e do inverno. . . se é que a guerra iria durar tanto...
A guerra. . . Parecia que ela estava agora tão distante. A idéia de pedir dispensa de sua comissão passou-lhe novamente pela cabeça. Durante o dia pôde esquecê-la, mas agora, no escuro, sozinho consigo mesmo, ela voltava, insistente, oprimindo-lhe o peito, exigindo resposta.
É claro que não poderia pedir dispensa agora, com seu país ainda em guerra, principalmente enquanto se encontrava naquelas desoladas montanhas, ao capricho dos soldados-políticos de Berlim. Isso equivaleria a entregar-se totalmente nas mãos deles. Sabia bem qual era o dilema: Ingresse no Partido ou o deixaremos marginalizado, sem oportunidade para lutar; ingresse no Partido ou infernizaremos sua vida, com missões iguais a esta, vigiando um passo nos Alpes da Transilvânia; ingresse no Partido ou peça para ser dispensado.
Talvez ele pedisse dispensa depois da guerra. Nesta primavera completara vinte e cinco anos de serviço no exército. E, da maneira como as coisas iam, talvez um quarto de século já fosse o suficiente. Seria bom estar em casa todos os dias, com Helga, passar algumas horas com os filhos e aprimorar suas aptidões de pintor nas paisagens prussianas.
Entretanto... o exército fora seu lar durante tanto tempo e ele não podia deixar de acreditar que o exército alemão se livraria de algum modo daqueles nazistas. Se ele pudesse agüentar o tempo necessário...
Woermann abriu os olhos e fitou a escuridão. Embora a parede oposta estivesse mergulhada na sombra, ele quase podia sentir as cruzes encravadas nos blocos de pedra. E, embora não fosse um homem religioso, constituía para ele um inexplicável conforto sentir-se rodeado por elas.
Veio-lhe ao pensamento então o incidente daquela tarde no corredor. Por mais que se esforçasse, Woermann não conseguira livrar-se completamente do choque que sentira, ao ver aquele soldado - como era mesmo o nome dele? Lutz? - forçando uma das cruzes.
Lutz. . . Soldado Lutz. . . Aquele homem ia dar preocupação. . . melhor que Oster ficasse de olho nele. . .
Woermann mergulhou afinal no sono, perguntando a si mesmo se o pesadelo de que lhe falara Alexandru não estaria esperando por ele.
Quarta-feira, 23 de abril
3h40m
Agachado sob uma lâmpada de baixa voltagem, o Soldado Hans Lutz era uma figura solitária numa ilha de luz em meio a um rio de escuridão, puxando fundo a fumaça de seu cigarro, as costas apoiadas na pedra fria das paredes do porão do fortim. Tirara o capacete, deixando à mostra seus cabelos louros e um rosto juvenil desfigurado pela amarga expressão de sua boca e de seus olhos. Todo o corpo lhe doía. Estava exausto. E não desejava senão meter-se em seu saco de dormir e mergulhar no esquecimento por algumas horas. Na verdade, se não fizesse tanto frio naquele porão, ele poderia cochilar um pouco ali mesmo onde estava.
Entretanto ele não podia permitir que isso acontecesse. Tirar o primeiro quarto durante uma semana inteira já era castigo bastante, e Deus sabe o que aconteceria se fosse apanhado dormindo em serviço. E não seria de estranhar que o Capitão Woermann aparecesse no corredor onde Lutz estava sentado, apenas para fazer uma inspeção. Precisava ficar acordado.
Por azar, o capitão o surpreendera naquela tarde. Lutz estivera interessado naquelas cruzes estranhas desde que pusera os pés no pátio. Finalmente, após uma hora junto delas, não resistiu à tentação. Pelo aspecto, seriam de ouro e prata, embora parecesse impossível que assim fosse. Quisera certificar-se disso e arranjara uma punição.
Bem, pelo menos satisfizera sua curiosidade: nem ouro nem prata. No entanto achava que tal conhecimento lhe custara um preço muito alto: uma semana de primeiro quarto.
Colocou as mãos em concha em torno da brasa do cigarro, para aquecê-las. Gott, como estava frio ali embaixo! Mais do que ao ar livre, na plataforma, onde Ernst e Otto estavam de sentinela. Lutz viera para o porão sabendo que ali o frio era mais intenso. Aparentemente, tinha esperança de que uma temperatura mais baixa o refrescaria e o ajudaria a manter-se acordado; na realidade, o que ele queria era uma chance para um reconhecimento que tinha em vista.
É que Lutz ainda não se dissuadira de sua crença de que um tesouro papal estava escondido ali. Havia uma série de indícios - de fato, tudo indicava isso. As cruzes eram a pista principal e mais evidente; não se tratava de cruzes de Malta, simétricas, normais, fortes, mas não deixavam de ser cruzes. E pareciam feitas de ouro e prata. Ademais, nenhum dos quartos era mobiliado, o que significava que ninguém pretendera morar neles. O mais surpreendente, porém, estava na manutenção constante. Alguma organização vinha pagando a conservação do fortim durante séculos, sem interrupção. Séculos! Lutz sabia que apenas uma organização dispunha do poder, dos recursos e da continuidade para tanto - a Igreja Católica.
Segundo o raciocínio de Lutz, o fortim era conservado com uma única finalidade: a salvaguarda do tesouro do Vaticano.
Esse tesouro estava escondido em algum lugar - no interior das muralhas ou sob as pedras do chão - e ele tinha de achá-lo.
Lutz não tirava os olhos da parede de pedra ao longo do corredor. As cruzes eram particularmente numerosas ali no porão e, como de costume, todas se pareciam - exceto talvez aquela ali da esquerda, na pedra da fileira inferior logo embaixo da lâmpada... algo de diferente na maneira com que a fraca iluminação se refletia em sua superfície. Um efeito de luz? Um acabamento diverso?
Ou um metal diferente?
Lutz apanhou a Schmeisser automática que tinha sobre os joelhos e encostou-a na parede. Retirou a baioneta e engatinhou pelo corredor, apoiado nas mãos e nos joelhos. No instante em que a lâmina tocou o metal amarelo do braço vertical da cruz, ele teve a certeza de que descobrira algo: o metal era dúctil. . dúctil e amarelo como deve ser o ouro puro.
Suas mãos começaram a tremer quando ele fincou a ponta da lâmina no intervalo da cruz e da pedra, cavando cada vez mais fundo, até que sentiu o aço ranger contra a pedra. Apesar de pressionada, a lâmina não avançou mais. Já havia alcançado a base em que se embutia a cruz. Com um pequeno esforço, ele certificou-se de que poderia fazer com que a cruz se soltasse, inteira, da pedra. Apoiando-se contra o cabo da baioneta, Lutz foi aumentando a pressão. Sentiu que alguma coisa cedia e parou para olhar.
Que inferno,! O aço da baioneta estava penetrando através do ouro. Lutz tentou ajustar a direção de seu esforço, torcendo a ponta da lâmina para fora da pedra, mas o metal continuava a ceder, até que... a pedra se moveu.
O soldado retirou a baioneta e examinou o bloco. Nada de especial: uns 60 cm de largura, por uns 45 de altura e talvez uns 30 de espessura. Não apresentava o menor sinal de argamassa, o mesmo se dando com os outros blocos na parede; só que agora sobressaía uns seis milímetros do alinhamento dos demais. Lutz levantou-se e mediu a distância até à entrada, à esquerda; entrando no quarto, fez a mesma medição pelo lado de dentro. Repetiu a operação no lado oposto do quarto, à direita da pedra solta. Uma simples conta, somando e subtraindo, revelou a existência de uma significativa discrepância. O número de passos não era o mesmo em cada um dos lados.
Havia um bom espaço morto atrás da parede.
Com o coração batendo mais depressa, Lutz agarrou-se ao bloco deslocado e puxou-o freneticamente pela saliência que ele provocara com a lâmina da baioneta. Porém, a despeito de todos os seus esforços, não conseguiu afastar o bloco da parede um milímetro sequer. Embora odiasse a idéia, foi obrigado a admitir que não seria capaz de fazer aquilo sozinho. Teria que chamar alguém para ajudá-lo.
Otto Grunstadt, naquele momento patrulhando a amurada, era a escolha óbvia - um sujeito que estava sempre procurando um meio de ganhar alguns marcos sem muito esforço. E havia muito mais do que algumas moedas escondidas ali. Atrás daquela pedra se encontravam milhões em ouro papal. Lutz estava certo disso. Quase podia sentir o gosto desse tesouro.
Deixando sua Schmeisser e a baioneta no chão, correu para a escada.
- Mais depressa, Otto!
- Não estou entendendo nada disto - resmungou Grunstadt, procurando apressar-se. Era mais corpulento que Lutz e suava, apesar do frio. - Estou de plantão lá em cima. Se me virem abandonando o posto...
- Serão apenas uns minutinhos rápidos. É logo aqui disse Lutz.
Depois de apanhar um lampião de querosene no almoxarifado, ele literalmente arrancara Grunstadt de seu posto, falando todo o tempo a respeito do tesouro, de ficar rico para o resto da vida e de nunca mais ter de trabalhar. Como uma mariposa atraída pela luz, Grunstadt seguiu atrás dele.
- Veja! - exclamou Lutz, parando junto à pedra e apontando para ela. - Reparou como está fora do alinhamento?
Grunstadt ajoelhou-se para examinar as bordas arranhadas e tortas da cruz embutida na pedra. Apanhou a baioneta de Lutz e pressionou a ponta contra o metal amarelo do braço vertical. O aço penetrou facilmente.
- É ouro -mesmo - murmurou ele.
Lutz sentia vontade de empurrá-lo, dizer-lhe que se apressasse, mas tinha de deixar Grunstadt chegar a uma conclusão. Assim, ficou observando o companheiro enquanto este experimentava, com a ponta da baioneta, as demais cruzes em torno deles.
- Todos os outros braços são de bronze. Este é o único que vale alguma coisa.
- E é a pedra que está solta - acrescentou Lutz rapidamente. - Além disso, há um espaço morto atrás dela, com perto de dois metros de largura e quem sabe quantos de profundidade.
Grunstadt levantou os olhos e sorriu. A conclusão era indiscutível.
- Vamos em frente.
Trabalhando de comum acordo, eles progrediram, mas não o suficiente para satisfazer Lutz. O bloco de pedra deslocava-se um milímetro para a esquerda, depois outro para a direita e, depois de quinze minutos de incessantes esforços, o afastamento em relação à parede não ia muito além de dois centímetros.
- Espere - disse Lutz, ofegante. - Este bloco tem uns trinta centímetros de espessura. Levaremos a noite inteira trabalhando assim. Não terminaremos antes da hora de trocar a guarda. Vamos ver se podemos encurvar o centro da cruz um pouco mais. Tenho uma idéia.
Utilizando as duas baionetas, eles conseguiram arquear o braço de ouro, forçando-o para fora de seu encaixe num ponto logo abaixo do braço transversal, deixando por trás dele espaço suficiente para Lutz enfiar seu cinturão entre o metal e a pedra.
- Agora, é só puxar!
Grunstadt voltou a sorrir, mas debilmente. Não se sentia bem por estar afastado tanto tempo de seu posto de vigilância.
- Então, vamos lá.
Os dois apoiaram os pés contra a parede acima e ao lado do bloco e, cada um agarrando o cinturão com as duas mãos, socorreram-se das pernas, das costas e dos braços para extrair a teimosa pedra. Com um ranger agudo de protesto, ela começou a mover-se, deslizando devagar até sair completamente. Os dois homens a colocaram de lado e Lutz procurou um fósforo.
- Pronto para ficar rico? - exclamou ele, acendendo o lampião de querosene e aproximando-o do buraco. Nada havia lá dentro, além da escuridão.
- Pronto - replicou Grunstadt. - Odiando começaremos a contar o dinheiro?
- Tão logo eu regresse.
Lutz ajustou a chama do lampião, depois começou a esgueirar-se pela abertura, empurrando a luz à sua frente. Encontrou-se em uma estreita caverna de pedra, ligeiramente inclinada para baixo e com pouco mais de um metro de comprimento. A caverna terminava em outro bloco de pedra idêntico ao que eles tão demorada e laboriosamente haviam removido. Lutz ergueu o lampião até junto da pedra. A cruz nela encravada parecia ser também de ouro e prata.
- Alcance-me a baioneta - pediu ele, esticando o braço na direção de Grunstadt, que se apressou em colocar o punho da arma na palma da mão estendida.
- Qual é o problema?
- Um obstáculo.
Por um momento, Lutz sentiu-se derrotado. Mal tendo espaço para caber na caverna, seria impossível para ele remover aquela segunda pedra que o detinha. Toda a parede teria de ser posta abaixo e essa era uma tarefa que ele e Grunstadt não poderiam pensar em levar a cabo sozinhos, por mais numerosas que fossem as noites que ambos gastassem nessa tarefa. Lutz não sabia o que fazer, mas desejou satisfazer sua curiosidade quanto aos metais da cruz que tinha pela frente. Se o braço vertical fosse de ouro, ele teria pelo menos a certeza de que se encontrava na pista certa.
Resmungando contra a estreiteza da caverna, Lutz fincou a ponta da baioneta na cruz. Ela não apenas penetrou facilmente, mas toda a pedra girou para trás, ao ser forçada pelo lado esquerdo. Surpreso, Lutz empurrou-a com a mão livre e verificou que se tratava apenas de uma fachada, cuja espessura não ia além de dois centímetros e meio e que se deslocava facilmente, deixando passar uma lufada de ar fétido e gelado, oriundo da escuridão mais atrás. Alguma coisa nesse ar fez com que ele ficasse todo arrepiado.
Frio, pensou ele, ao sentir que tremia involuntariamente, mas aquele era um frio diferente.
Dominando uma crescente sensação de temor, arrastou-se para diante, empurrando sempre o lampião, à sua frente, sobre o chão de pedra da caverna. Ao ultrapassar a nova abertura, a chama começou a extinguir-se. Ela não bruxuleava dentro de sua caixa de vidro, de modo que a causa não podia ser atribuída a alguma turbulência no ar trio que continuava a soprar em seu rosto. A chama simplesmente começou a enfraquecer no pavio. A possibilidade de um gás nocivo passou-lhe pela mente, mas Lutz não sentia qualquer odor estranho, nenhuma dificuldade em sua respiração nem ardência nos olhos ou nas vias respiratórias.
Talvez o querosene estivesse acabando. Ao trazer o lampião mais para perto, a fim de verificar o nível do combustível, a chama voltou logo ao normal. Lutz sacudiu o depósito e sentiu que havia bastante líquido. Intrigado, empurrou o lampião de novo para a frente e outra vez a chama começou a baixar. Quanto mais ele avançava, menor a chama se tornava, não iluminando absolutamente mais nada. Alguma coisa estava errada.
- Otto! - chamou Lutz por cima do ombro. - Amarre o cinturão em torno de um dos meus tornozelos e segure firme. Vou tentar escorregar para baixo.
- Por que você não espera até amanhã. . . quando estiver mais claro?
- Está doido? Aí todo o pessoal ficará sabendo e cada um vai querer uma parte - e o próprio capitão provavelmente ficará com a porção maior. Nós teremos feito todo o trabalho e acabaremos de mãos vazias.
A voz de Grunstadt revelava hesitação:
- Não estou gostando nada disto.
- Alguma coisa errada, Otto?
- Não sei ao certo, mas não quero ficar mais tempo aqui embaixo.
- Pare de falar como uma velha reumática! - reclamou Lutz. Receava a oposição de Grunstadt porque ele próprio não se sentia muito à vontade. Entretanto, havia uma fortuna alguns centímetros adiante e ele não iria permitir que qualquer coisa fosse impedi-lo de apossar-se dela. - Amarre esse cinturão e agüente firme. Se este chão ficar mais inclinado, não quero escorregar lá para o fundo.
- Está bem - foi a relutante resposta. - Mas ande depressa.
Lutz esperou até sentir que estava bem preso por seu tornozelo esquerdo e então começou a engatinhar para a frente dentro da câmara escura, o lampião sempre diante dele. Dominado por uma sensação de urgência, movia-se o mais rapidamente que lhe permitia a exiguidade do espaço. No momento em que sua cabeça e seus ombros passaram pela abertura, a chama do lampião se tornou tão mortiça. .. como se não fosse bem-vinda, como se a escuridão a lançasse de volta para o pavio.
Quando Lutz empurrou o lampião mais alguns centímetros, a chama extinguiu-se de vez. Nesse momento, ele sentiu que não se encontrava sozinho.
Algo tão escuro e tão frio como a caverna onde ele entrara estava alerta e faminto - e a seu lado. Lutz começou a tremer incontrolavelmente. O terror traspassou-lhe as entranhas. Tentou recuar, puxar de volta os ombros e a cabeça, mas foi agarrado. Era como se a caverna se tivesse fechado em cima dele, mantendo-o inexoravelmente numa escuridão tão completa que ele perdeu o sentido de direção. O frio tomou conta dele, juntando-se ao pavor - uma combinação que o estava levando à loucura. Abriu a boca para pedir a Otto que o puxasse, mas o frio penetrou-lhe goela abaixo e sua voz não foi mais do que um gemido de terror.
No lado de fora, o cinturão que Grunstadt segurava começou a dar arrancos, à medida que as pernas de Lutz se debatiam dentro da caverna. Ouviu-se um som semelhante à voz humana, mas tão cheio de horror e desespero, e vindo de um ponto tão distante, que Grunstadt não acreditou que pudesse ser de seu amigo. O som interrompeu-se bruscamente, como um ronco pavoroso. Ao mesmo tempo, cessaram os movimentos frenéticos de Lutz.
- Hans?
Não houve resposta.
Completamente dominado pelo pânico, Grunstadt puxou o cinturão até os pés de Lutz aparecerem. Agarrando as duas botas, arrastou Lutz para o corredor.
Ao ver o que havia saído da caverna, Grunstadt começou a gritar. O som ecoou por todo o corredor do porão, repercutindo e crescendo em volume até que as próprias paredes começaram a vibrar.
Assustado pelo som ampliado de seu próprio terror, Grunstadt permaneceu imóvel, enquanto a parede de onde seu amigo saíra se abaulava para o lado de fora, e pequenas rachaduras apareciam ao longo das extremidades dos pesados blocos de granito. Uma larga fenda marcou o espaço deixado pela pedra que eles haviam removido. As pequenas lâmpadas instaladas ao longo do corredor começaram a enfraquecer e, quando estavam quase apagando, a parede desabou com um convulsivo tremor final, lançando sobre Grunstadt fragmentos de pedra e liberando algo inconcebivelmente negro, que saltou para fora e o envolveu com um movimento rápido e silencioso.
Desencadeara-se o horror.
TAVIRA, PORTUGAL Quarta-feira, 23 de abril
2h35m (hora de Greenwich)
De repente, o homem ruivo deu-se conta de que estava acordado. O sono havia desaparecido e ele a princípio não soube explicar porquê. Fora um dia pesado, com redes rasgadas e mar agitado; e, como ele regressara à hora de costume, deveria ter dormido até o amanhecer. Entretanto, agora, depois de umas poucas horas apenas, estava acordado e alerta. Por quê?
Foi então que soube.
Furioso, bateu uma, duas vezes com o punho cerrado na areia fria em que se apoiava a baixa armação de seu catre. Havia raiva em seus movimentos, mas também certa resignação. Desejara que aquele dia jamais chegasse e procurara convencer-se de que não chegaria mesmo. Agora, porém, ali estava ele, inevitável como sempre fora.
O homem ergueu-se da cama e, vestido apenas de cuecas, começou a andar pelo quarto. Tinha feições finas, mas o moreno de sua pele contrastava com a cor vermelha dos cabelos; apresentava ombros largos e cintura estreita. Movia-se com graça felina no interior da pequena cabana, recolhendo peças de roupa penduradas em ganchos nas paredes, artigos de uso pessoal deixados na mesa ao lado da porta, mas sempre planejando sua rota até a Roménia. Quando acabou de juntar as coisas de que precisava atirou-as sobre a cama, enrolou tudo no cobertor e amarrou as duas extremidades com barbante.
Depois de vestir um casaco e umas calças velhas, passou o embrulho do cobertor sobre um dos ombros, apanhou uma pá curva e saiu para a noite sem lua, de ar frio e cheirando a salsugem. Mais além das dunas, o Atlântico assobiava e bramia contra as pedras. Caminhando em sentido oposto ao do mar, ele se dirigiu para a duna mais próxima e começou a cavar. Pouco mais de um metro abaixo, a pá bateu contra um objeto duro. O homem ruivo ajoelhou-se e passou a cavar com as mãos. Após alguns movimentos rúpidos e vigorosos, apareceu uma caixa comprida e estreita, envolta em oleado, que ele arrastou para fora do buraco. Medindo mais ou menos um metro e meio de comprimento, a caixa devia ter uns vinte e cinco centímetros de largura e uma altura de apenas dois centímetros e meio. O homem fez uma pausa, os ombros encurvados pelo peso da caixa que sustentava nas mãos. Quase chegara a acreditar que nunca mais voltaria a abri-la. Colocando-a de lado, cavou novamente e encontrou, também envolto em oleado, um pesado cinturão para carregar dinheiro.
Com o cinturão amarrado sob a camisa e a caixa embaixo do braço, o homem enfrentou a brisa fresca da noite que lhe desmanchava os cabelos e passou por cima da duna, dirigindo-se para o local onde Sanchez guardava seu bote, em um ponto elevado, temendo a improvável possibilidade de que uma onda na maré alta o carregasse. Sujeito cuidadoso, o Sanchez. Bom chefe. O homem ruivo gostava de trabalhar para ele.
Revistando o compartimento da proa do bote, ele descobriu as redes e atirou-as na areia. Depois, foi a vez da caixa de ferramentas e equipamento. Colocou tudo junto às redes na areia, mas antes apanhou o martelo e uns pregos da caixa. A seguir, foi até à barraca de Sanchez e retirou do cinturão quatro moedas de ouro austríacas, no valor de cem coroas cada uma. Havia ainda no cinturão muitas outras moedas de ouro de diferentes tamanhos e de outros países: dobrões russos de dez rublos, moedas austríacas de cem xelins, peças tchecas, patacas de dez ducados, dólares americanos de duas águias, e outras mais. Ele tivera de confiar na universal aceitação do ouro, a fim de poder viajar pelo Mediterrâneo em tempo de guerra.
Com dois certeiros e pesados golpes do martelo fincou as quatro moedas austríacas em um prego bem à vista na barraca. Elas serviriam para que Sanchez comprasse um novo barco. Um outro melhor que aquele.
Desamarrou o cabo, puxou o bote até à beira da praia, entrou nele e empunhou os remos. Depois de ter passado pela arrebentação e de desfraldar a única vela no topo do mastro, o homem virou a proa para leste, na direção de Gibraltar, não muito distante, e permitiu-se dirigir um último olhar para a pequena vila de pescadores, situada na extremidade sul de Portugal, onde morara durante os últimos anos. Não fora fácil ser aceito por aquela gente simples. Não o consideravam um deles - e jamais o fariam; no entanto admitiam que era um bom trabalhador e respeitavam isso. O trabalho havia cumprido sua finalidade, deixando-o esguio e novamente musculoso, depois de tantos anos de boa vida na cidade. Fizera amigos, mas nenhum íntimo. Não havia ninguém de quem ele não pudesse separar-se sem mágoas.
Fora uma vida dura, aquela, mas ele prazerosamente teria preferido trabalhar o dobro e continuar na vila, em vez de ir para onde devia ir e enfrentar o que precisava enfrentar. Suas mãos abriram-se e fechavam-se tensamente, ao pensar na tarefa que tinha pela frente. Não havia, porém, qualquer outra pessoa que pudesse executá-la. Apenas ele.
Não podia esperar mais. Precisava chegar à Romênia tão depressa quanto possível, mas para isso, teria de percorrer 2.300 milhas do mar Mediterrâneo.
Em um recanto até então adormecido de seu cérebro havia o temor de que talvez não chegasse a tempo, que já fosse tarde demais . . . uma possibilidade terrível demais para ser admitida.
Quarta-feira, 23 de abril
4h35m
Woermann acordou tremendo e suando ao mesmo tempo, como todos os demais ocupantes do fortim. Não fora o prolongado e repetido uivo de Grunstadt que provocara esse efeito, pois Woermann estava fora do alcance dos ruídos no porão. Algo, porém, o havia arrancado do sono, com uma sensação de terror. . . a impressão de que acontecera alguma coisa terrivelmente errada.
Após um momento de perplexidade, Woermann vestiu seu uniforme e correu escadas abaixo até à base da torre. Quando ele chegou, os homens estavam começando a surgir de seus quartos e a reunir-se no pátio, em grupos tensos e murmurantes, ouvindo o lúgubre grito de lamento que parecia vir de todas as direções. O oficial destacou três homens para o arco que encimava o topo das escadas do porão. Ele também se dirigiu para lá, logo encontrando dois dos homens que reapareciam, terrivelmente pálidos e trémulos.
- Há um morto lá embaixo! - disse um deles.
- Quem é? - perguntou Woermann, ao passar pelos dois soldados e começar a descer a escada.
- Acho que é Lutz, mas não tenho certeza. Sua cabeça desapareceu!
Um cadáver uniformizado jazia no centro do corredor, deitado de bruços, meio encoberto pelos escombros da parede. Sem cabeça. O detalhe patético, porém, era que a cabeça não fora cortada, como por uma guilhotina ou um machado, mas arrancada, deixando expostos pedaços de artérias e uma vértebra que aflorava através do rasgão da pele do pescoço. A vítima fora um soldado - era tudo o que Woermann podia concluir à primeira vista. Um segundo soldado, imóvel, sentado nas proximidades, mantinha os olhos arregalados fixos no buraco da parede à sua frente. Enquanto Woermann o observava, o soldado tremeu todo e emitiu um longo e lancinante uivo que provocou um calafrio no oficial.
- O que aconteceu aqui, soldado? - perguntou Woermann, porém o soldado não teve a menor reação. O oficial segurou-o pelos ombros e o sacudiu, mas os olhos do jovem revelavam que este nem sequer se dera conta da presença de seu comandante. Era como se se tivesse recolhido para dentro de si mesmo, não permitindo a intromissão de qualquer agente externo.
O restante dos homens se amontoavam no corredor para saber o que havia acontecido. Reunindo suas forças, Woermann inclinou-se sobre a figura sem cabeça e revistou-lhe os bolsos. A carteira continha o documento de identidade do Soldado Hans Lutz. O oficial já vira antes muitos homens mortos, vítimas da guerra, mas este era diferente. Este pusera-o doente de uma maneira diversa da dos outros. As mortes nos campos de batalha eram geralmente impessoais; esta, não. Esta era uma morte horrível, como se houvesse a preocupação de mutilar. E no fundo do pensamento do oficial havia a pergunta: Será isto o que acontece quando alguém tenta arrancar uma cruz aqui no fortim?
Oster chegou com um lampião. Depois de acendê-lo, Woermann manteve-o à sua frente e desajeitadamente penetrou no largo buraco aberto na parede. A luz se refletiu nas paredes vazias. Seu hálito ofegante se condensava no ar e era como uma nuvem branca que, partindo dele, deslizava para trás. Fazia frio, muito mais frio do que seria normal, e havia também um odor de umidade e de alguma coisa mais. . . algo putrescente que lhe deu vontade de voltar para trás. Mas os homens estavam esperando.
Woermann seguiu a gelada corrente de ar até sua origem: um enorme buraco no solo. A pedra que o fechava provavelmente havia caído quando a parede desmoronara. A escuridão no interior era absoluta. O oficial aproximou a lâmpada da boca da abertura. Degraus de pedra, cobertos de cascalho da parte que desabara, conduziam para baixo. Um dos pedaços desse cascalho parecia mais esférico que os demais. Woermann baixou o lampião para ver melhor e sufocou um grito ao identificar o que era. A cabeça do Soldado Hans Lutz, com os olhos arregalados e a boca sangrando, olhava fixamente para ele.
43
CINCO
BUCARESTE, ROMÊNIA Quarta-feira, 23 de abril
4h45m
Não ocorreu a Magda pensar se estava agindo acertadamente, até que ouviu a voz de seu pai, chamando-a:
- Magda!
Ela levantou os olhos e viu seu rosto refletido no espelho do toucador. O cabelo estava solto - uma lustrosa cascata de um castanho-escuro que se derramava sobre seus ombros e lhe alcançava as costas. Não estava acostumada a ver-se assim. Normalmente, seu cabelo era amarrado dentro de um lenço, apenas com algumas madeixas teimosamente aparecendo. Nunca usava o cabelo solto durante o dia.
Por um momento sentiu-se confusa. Que dia era aquele? E que horas eram? Magda consultou o relógio. Cinco para as cinco. Impossível! Ela se levantara havia uns quinze ou vinte minutos. O relógio deveria ter parado durante a noite. Entretanto, quando dera corda nele, na véspera, ouvira o ruído cadenciado do mecanismo. Estranho. . .
Com duas rápidas passadas aproximou-se da janela no outro lado do toucador. Uma nesga atrás da montanha deixava ver parte de Bucareste, ainda às escuras e adormecida.
Ela olhou de novo para sua figura no espelho e viu que estava vestida ainda com sua camisola de flanela azul, amarrada ao pescoço, de mangas compridas e barra até ao chão. Os seios, embora não muito grandes, destacavam-se impudicamente sob o tecido macio e morno, livre dos apertados sutiãs que os mantinham presos o dia inteiro. Rapidamente, cruzou os braços sobre eles.
Magda constituía um mistério para a comunidade. Apesar de suas delicadas feições, de sua pele sedosa e branca, de seus grandes olhos castanhos, ainda se conservava solteira aos trinta e um anos de idade. Magda, a estudante, a filha devotada, a ama-seca. Magda, a solteirona. Entretanto, muita moça já casada invejava a firmeza e o arredondado daqueles seios, que nenhuma outra mão. a não ser a dela mesma, jamais acariciara. Magda não sentia desejo de alterar aquela situação.
A voz do pai interrompeu seus devaneios.
- Magda! O que está fazendo?
Ela olhou para a mala de mão em cima da cama e as palavras brotaram espontaneamente de seus lábios:
- Arrumando alguns agasalhos na mala, papai. Após uma breve pausa, ele disse:
- Venha até cá, para que eu não acorde o resto do edifício com meus gritos.
Magda encaminhou-se rapidamente, através da escuridão, para o lugar onde seu pai repousava. Foram necessários apenas alguns passos. O apartamento térreo consistia de quatro dependências - dois quartos lado a lado, uma pequena cozinha com fogão a lenha e um compartimento pouco maior, que servia ao mesmo tempo como vestíbulo, sala de estar, sala de jantar e sala de leitura. Magda sentia uma falta enorme de sua antiga casa, mas tiveram de mudar-se seis meses antes, fazendo as maiores economias e vendendo a mobília que sobrara. Haviam fixado o pergaminho contendo o mezuzah da família no batente interno da porta e não no externo, de acordo com os costumes judeus. Considerando as surpresas daqueles tempos, a medida era sinal de prudência.
Um dos amigos ciganos de seu pai havia gravado um pequeno círculo patrin na superfície externa da porta. O sinal significava amigo.
A pequena lâmpada sobre a mesinha-de-cabeceira no lado direito da cama de seu pai estava acesa; no lado esquerdo encontrava-se, vazia, uma cadeira de rodas, de espaldar alto e feita de madeira. Sob as cobertas, como uma flor murcha guardada entre as páginas de um velho livro, jazia seu pai. Ele levantou a mão defeituosa, escondida como de costume dentro da luva de algodão, e acenou, contraindo o rosto ante a dor que o simples gesto lhe causava. Magda sentou-se a seu lado e tomou-lhe a mão, massageando-lhe os dedos e procurando esconder a própria dor, por ver como o pai definhava dia a dia.
- Que história é essa de arrumar a mala? - perguntou ele, os olhos brilhando na face encovada, sem poder enxergar bem a filha. Os óculos estavam sobre a mesinha, deixando-o virtualmente cego. - Você nunca me falou em partir.
- Nós dois vamos embora - replicou ela, sorrindo.
- Para onde?
Magda sentiu seu sorriso desaparecer, preocupada em ocultar sua confusão. Para onde iriam eles? Ela se deu conta de que não tinha uma idéia firme, apenas uma vaga impressão de picos nevados e ventos gelados.
- Para os Alpes, papai.
Os lábios do velho se entreabriram num pálido sorriso que repuxava a pele enrugada, acentuando os ossos do rosto descarnado.
- Você deve ter sonhado, minha querida. Não podemos ir a parte alguma. Eu, certamente, não estou mais em condições de viajar - nunca mais. Foi um sonho. Um belo sonho, apenas. Esqueça tudo isso e volte para sua cama.
Magda se espantou com a desanimadora resignação da voz de seu pai, que sempre fora um lutador. A doença estava consumindo algo mais do que suas forças físicas. Agora, porém, não era a ocasião para discutir com ele. Acariciou-lhe as costas da mão e procurou o interruptor da lâmpada da mesinha-de-cabeceira.
- Acho que você tem razão. Foi um sonho.
Deu-lhe um beijo na testa e apagou a luz, deixando-o na escuridão.
De volta a seu quarto, Magda contemplou durante uns momentos a mala parcialmente cheia, esperando em cima da cama. Naturalmente só poderia ter sido um sonho pensar que eles pudessem ir para alguma parte. Que lugar seria? Qualquer espécie de viagem estava fora de cogitação.
Apesar de tudo, o sentimento permanecia. .. uma certeza absoluta de que eles iriam para o norte, e em breve. Os sonhos não costumam provocar uma impressão assim tão profunda. Teve um calafrio, uma sensação desagradável, como se leves dedos gelados acariciassem a pele de seus braços.
Não podia lutar contra o inevitável. Fechou a mala e colocou-a sob a cama, sem afivelar as correias nem retirar as roupas que já havia arrumado. . . roupas bem grossas. . . pois ainda fazia muito frio nos Alpes, naquela época do ano.
Quarta-feira, 23 de abril
6h22m
Passou-se algum tempo antes que Woermann pudesse sentar-se com o Sargento Oster e tomarem ambos uma xícara de café no refeitório. O Soldado Grunstadt fora levado para um dos quartos e deixado a sós. Haviam-no colocado dentro de seu saco de dormir, depois de despido e lavado por dois companheiros. Ficara completamente molhado de suor e sujo antes de entrar em delírio.
- O que posso imaginar - estava dizendo Oster - é que a parede desabou e um daqueles enormes blocos de pedra deve ter batido contra a nuca de Lutz, arrancando-lhe a cabeça.
Woermann percebeu que Oster estava tentando parecer calmo e analítico, mas na verdade encontrava-se tão confuso e chocado como todos os demais.
- Suponho que é uma explicação tão válida como qualquer outra, até que se tenha um laudo médico. Contudo, ela não nos diz o que é que eles estavam fazendo lá, nem esclarece também o estado em que ficou Grunstadt.
- Choque.
Woermann sacudiu a cabeça com ceticismo.
- Esse homem já esteve em combate inúmeras vezes e tenho certeza de que ele já viu coisa pior. Não posso aceitar o choque como uma explicação completa. Há algo mais.
O oficial fizera sua própria reconstrução dos acontecimentos daquela noite. O bloco de pedra com sua cruz de ouro e prata violada, o cinturão em volta do tornozelo de Lutz, a caverna na parede... tudo indicava que Lutz penetrara na cavidade esperando encontrar mais ouro e prata dentro dela. Nada mais havia, porém, do que um pequeno cubículo vazio e escuro. . . como uma minúscula cela de prisão. . . ou um esconderijo. Não lhe ocorria qualquer razão plausível para que houvesse aquele espaço ali.
- Eles devem ter alterado o equilíbrio das pedras da parede, ao removerem uma bem embaixo - disse Oster. - Isso provocou o desabamento.
- Tenho minhas dúvidas - replicou Woermann, sorvendo seu café, tanto para aquecer-se como para animar-se. - O chão da caverna, sim. Ficou enfraquecido e desabou para a galeria embaixo do porão. Mas a parede do corredor. ..
Woermann lembrava-se da maneira como as pedras tinham ficado espalhadas pelo corredor, como se tivessem sofrido uma explosão. Não conseguia entender isso. Bebeu seu último gole de café. A explicação teria de esperar.
- Vamos. Temos muito o que fazer.
Dirigiu-se para seus aposentos, enquanto Oster foi fazer a primeira das duas ligações diárias, via rádio, com a guarnição de Ploieste. O sargento recebera ordem de reportar a baixa como uma morte acidental.
O céu já clareara quando Woermann se debruçou na janela traseira de seu quarto e olhou para o pátio, ainda mergulhado nas sombras. O fortim já não era o mesmo. A seu respeito, uma intranqüilidade pairava no ar. Na véspera ele aparentara ser apenas uma velha construção de pedra. Agora era mais do que isso. Cada sombra parecia mais escura e mais profunda do que antes, e com um toque indescritivelmente sinistro.
Atribuiu essa impressão ao mal-estar da noite insone e ao choque da morte tão recente. Todavia, quando o sol finalmente transpôs os topos das montanhas na parte extrema do passo, espantando as sombras e aquecendo as paredes de pedra do fortim, Woermann teve a sensação de que a luz não iria acabar com o que estava errado; no máximo, poderia fazer com que as coisas ficassem sob a superfície por algum tempo.
Os homens também sentiam isso, mas Woermann teria de levantar-lhes o moral. Quando Alexandru chegou, naquela manhã, o oficial ordenou-lhe imediatamente que fosse buscar uma carrada de madeira. Havia mesas e catres para serem construídos. Dentro em pouco o fortim se encheria do ruído forte de marteladas de mãos vigorosas fincando pregos na madeira seca. Woermann foi até à janela de onde se avistava a ponte. Sim, lá vinham Alexandru e seus dois filhos. Tudo iria normalizar-se.
Ele alongou o olhar, abarcando a pequena vila, já iluminada pelos primeiros raios do sol. Uma parte ainda se mantinha na sombra, projetada pelas montanhas mais altas e Woermann sentiu que pintaria a cena precisamente como a via naquele momento. Recuou um passo. A vila, enquadrada pela moldura da janela, brilhava como uma jóia. Deveria ser assim. . . a paisagem vista através de uma janela na parede. Os contrastes lhe pareciam ótimos. Teria de instalar uma tela e começar o quadro imediatamente. Pintava melhor quando sob o efeito de tensão nervosa, e era então que mais gostava de misturar as tintas, distraindo-se com as combinações, as perspectivas, os efeitos de luz e sombra.
O resto do dia escoou-se rapidamente. Woermann supervisionou o transporte do corpo de Lutz para a galeria sob o porão. O cadáver, acompanhado da cabeça decepada, foi conduzido através do buraco aberto no solo do porão e coberto com um lençol no chão sujo da caverna. A temperatura ali aproximava-se do ponto de congelamento. Não havia qualquer sinal da presença de animais daninhos ali, e o local oferecia as melhores condições para guardar o cadáver, até o fim da semana, quando seria possível providenciar o transporte para a Alemanha.
Em circunstâncias normais, Woermann ficaria tentado a explorar a galeria sob o porão; a caverna subterrânea com suas paredes reluzentes e desvãos escuros bem poderia ser objeto de quadros interessantes. Mas não agora. Concordou consigo mesmo que fazia muito frio e que teria de esperar a chegada do verão. Evidentemente essa não era a verdadeira razão. Algo naquela caverna o levava a afastar-se dela o mais cedo possível.
Todos perceberam, à medida que o dia passava, que Grunstadt seria um problema. Ele não apresentava sinal algum de melhora. Ficava em qualquer posição em que o colocassem, os olhos fixos no espaço. De quando em quando, estremecia e gemia; às vezes soltava uivos lancinantes com toda a força de seus pulmões. E seus., intestinos estavam desarranjados. A continuar assim, sem absorver alimento nem líquido e sem um tratamento médico adequado, não sobreviveria até o fim da semana. E ele teria de ser transportado junto com os restos mortais de Lutz, se não melhorasse logo.
Durante todo o dia Woermann observou atentamente a disposição de ânimo de seus homens e ficou satisfeito com a reação deles às tarefas práticas que lhes designara. Todos trabalharam bem, apesar da falta de sono e da morte de Lutz. Conheciam bem o companheiro morto, sua fama de brincalhão e inventor de casos complicados. Parecia ser consenso geral que fora ele quem provocara o acidente que acabara por matá-lo.
Woermann percebeu que não deveria deixar que sobrasse tempo para lamentações ou comentários, mesmo para os que não eram dados a mexericos. Havia todo um sistema sanitário a ser organizado, e outras tarefas como transporte de madeira procedente da vila e confecção de mesas e cadeiras. Ao anoitecer, terminado o rancho, poucos eram os homens do destacamento que ainda tinham ânimo para um cigarro. Com exceção dos escalados para a ronda, todos se recolheram a seus sacos de dormir.
Woermann permitiu uma alteração no serviço de guarda, de maneira que o vigia encarregado do pátio cobrisse o corredor que conduzia ao quarto de Grunstadt. Em razão de seus gritos e gemidos, ninguém gostaria de passar a noite a menos de trinta metros dele; todavia, Otto sempre fora benquisto por seus camaradas e eles se sentiram no dever de cuidar para que não lhe acontecesse nada.
Perto de meia-noite, Woermann ainda se encontrava acordado, apesar de seu desesperado desejo de dormir. Com a noite chegara-lhe uma sensação de maus presságios que o impedia de relaxar os nervos. Finalmente, cedeu a uma imperiosa necessidade de levantar-se e percorrer os postos de guarda, a fim de certificar-se de que as sentinelas estavam acordadas.
Sua inspeção conduziu-o ao corredor de Grunstadt e ele decidiu verificar o estado do enfermo. Não conseguira imaginar o que teria deixado aquele homem em condições tão deploráveis. Espiou através do vão da porta. O soldado estava em uma de suas fases de calma, respirando rapidamente, gemendo e soluçando. Os soluços eram seguidos de um prolongado uivo. Woermann desejou estar bem longe dali para não ouvir aquilo. Era enervante ouvir uma voz humana produzir um som como aquele. . . a voz tão perto e a mente tão distante.
O oficial encontrava-se no fim do corredor e se preparava para entrar de novo no pátio quando o som lhe chegou aos ouvidos. Só que desta vez não era como os outros. Mais parecia um guincho, como se Grunstadt tivesse acordado de repente e se visse envolto em chamas ou trespassado por milhares de punhais - desta vez havia no som agonia tanto física quanto emocional. Depois, o grito interrompeu-se subitamente, como um rádio desligado no meio de uma canção.
Woermann permaneceu imóvel por um instante, gelado de pavor, os músculos e nervos recusando-se a responder a seu comando. Com grande esforço ele voltou para trás, percorreu o corredor e entrou no quarto. No compartimento fazia frio, mais frio que um minuto antes, e o lampião de querosene estava apagado. Woermann procurou um fósforo para acendê-lo novamente e então voltou-se para Grunstadt.
Morto. Os olhos estavam arregalados, fixos no teto, enquanto a boca estava escancarada, com os lábios repuxados, mostrando os dentes, como se tivessem sido congelados em meio a um grito de pavor. E o pescoço... a garganta estava cortada de lado a lado. Havia sangue por toda parte, desde as cobertas até às paredes.
Os reflexos de Woermann agiram rapidamente. Antes que ele se desse conta do que estava fazendo, já tirara sua Luger do coldre e esquadrinhava com os olhos os cantos do quarto, à procura de quem fizera aquilo. Não viu ninguém. Correu até à janela, enfiou a cabeça pelo vão estreito e examinou as paredes, de alto a baixo. Não havia uma corda nem qualquer outro sinal que indicasse a fuga de alguém. Voltando a cabeça para o interior do quarto, tornou a procurar. Impossível! Ninguém passara por ele no corredor nem saíra pela janela. Entretanto, Grunstadt fora assassinado.
O ruído de passos que se aproximavam correndo interrompeu seus pensamentos - as sentinelas haviam escutado o grito e vinham investigar. Já era um alívio, pois Woermann tinha de admitir para si mesmo que estava apavorado, que não poderia ficar sozinho naquele quarto nem mais um minuto.
Quinta-feira, 24 de abril
Depois de providenciar para que o corpo de Grunstadt fosse colocado junto ao de Lutz, Woermann preocupou-se em fazer com que seus homens ficassem ocupados o dia inteiro, confeccionando catres e mesas. Deixou que se espalhasse o boato de que havia um grupo de guerrilheiros antigermânicos operando naquela área. Entretanto, seria impossível convencer-se a si próprio, uma vez que se encontrava no corredor quando o crime ocorrera e sabia que o criminoso não poderia passar por ele sem ser visto - a menos que fosse capaz de voar ou andar pelas paredes. Qual seria então a resposta?
Determinou que as sentinelas fossem dobradas naquela noite, com vigias postados dentro e em torno dos alojamentos, para salvaguarda dos que estavam dormindo.
Enquanto ouvia o ruído dos martelos e serrotes trabalhando no pátio, Woermann aproveitou a tarde para instalar uma de suas telas e começou a pintar. Tinha de distrair-se com alguma coisa que o fizesse esquecer aquela aterradora expressão no rosto de Grunstadt. Procurou concentrar-se na mistura dos pigmentos que produzissem uma cor de tinta semelhante à da parede de seu quarto. Decidiu colocar a janela à direita do centro, depois gastou a maior parte das duas últimas horas da tarde para produzir uma boa quantidade de tinta e passá-la para a tela, deixando um espaço em branco no qual pintaria um trecho da vila, tal como visto através da janela.
Naquela noite conseguiu dormir. Depois do interrompido sono da primeira noite e da completa insónia da segunda, seu corpo exausto como que desabou dentro do saco de dormir.
O Soldado Rudy Schreck fazia sua ronda cautelosa e atentamente, com um olho no vulto de Wehner, no lado oposto do pátio. Logo que anoiteceu, houve a impressão de que dois homens eram demais para uma área tão pequena, mas, à medida que a escuridão se acentuava e envolvia o fortim, Schreck sentiu-se satisfeito por ter alguém ao alcance de seus olhos. Ele e Wehner deveriam cumprir uma rotina: ambos percorreriam o perímetro do pátio, ligeiramente afastados da muralha e em lados opostos, caminhando no sentido dos ponteiros do relógio. Isso mantinha-os sempre separados, mas significava melhor vigilância.
Rudy Schreck não estava com medo de que sua vida corresse perigo. Apreensivo, sim, mas não com medo. Achava-se bem acordado, alerta; tinha sobre o ombro uma arma de tiro rápido e sabia como usá-la. Quem quer que fosse, o assassino de Otto na noite anterior não teria chance contra ele. Entretanto, preferia que houvesse mais luzes no pátio. As lâmpadas colocadas espaçadamente criavam círculos de luz aqui e ali, ao longo da periferia, mas não chegavam a iluminar o pátio completamente. Os dois cantos do fundo eram verdadeiros poços de escuridão.
A noite estava fria. Para piorar as coisas, uma névoa densa baixou sobre o passo e, envolvendo o soldado, pontilhou a superfície de seu capacete com pingos de umidade concentrada. Schreck esfregou os olhos com a mão. Estava realmente cansado. Cansado de tudo que dissesse respeito ao exército. A guerra não era o que ele imaginara. Quando fora incorporado, dois anos atrás - tinha então dezoito -, tinha a cabeça cheia de sonhos de feitos heróicos, de grandes batalhas e gloriosas vitórias, de vastos exércitos se enfrentando no campo da honra. Era assim que estava descrito nos livros de história. Todavia, a guerra verdadeira era bem diferente. Resumia-se quase todo o tempo em serviço de guarda, esperando... E era em geral um serviço penoso, na lama, no frio, na chuva. Rudy Schreck achava que já contribuíra com sua parte para a guerra. Agora queria voltar para Treysa. Seus pais viviam lá, e havia também uma garota chamada Eva que, por sinal, já não escrevia tão freqüentemente como no início. Ele queria viver novamente a sua vida, uma vida sem uniformes, inspeções, exercícios, sargentos, oficiais. E também sem serviço de sentinela.
Schreck aproximava-se do canto do fundo do pátio, no lado norte. Ali as sombras pareciam mais densas do que nunca. . . muito mais densas do que em seu último turno. A medida que se aproximava, o soldado foi retardando o passo. É uma tolice, pensou ele. Apenas um jogo de luz. Não havia nada a temer.
E contudo. . . ele não queria ir até lá. Preferia deixar de lado aquele canto. Olharia bem os outros, mas não aquele.
Endireitando os ombros, Schreck forçou seus próprios passos. Tratava-se apenas de uma sombra.
Era um homem feito, com idade suficiente para não ter medo do escuro. Continuou caminhando para a frente, mantendo-se afastado da muralha até chegar ao canto escuro... e, subitamente, sentiu-se perdido. Uma escuridão gelada e absorvente fechou-se em torno dele. Schreck tentou retroceder, mas tudo o que encontrou foi mais escuridão ainda. Era como se o restante do mundo tivesse desaparecido. Tirando a Schmeisser do ombro, ele se preparou para atirar. Embora tiritando de frio, suava profusamente. Queria acreditar que tudo não passava de uma brincadeira, que Wehner tinha, de algum modo, apagado todas as luzes no momento em que ele penetrara na sombra. Todavia, os sentidos de Schreck eliminavam tal esperança. A escuridão era por demais completa, como se lhe esmagasse os olhos e, como um verme, lhe roesse toda a coragem.
Alguém se aproximava. Schreck não podia vê-lo nem ouvi-lo, mas sentia que alguém chegava cada vez mais perto dele.
- Wehner? - perguntou ele em voz baixa, fazendo o possível para que seu terror não se refletisse na voz. - É você, Wehner?
Mas não era Wehner. Schreck deu-se conta disso tarde demais. Era alguém. .. alguma coisa.. . Sentiu como se uma grossa corda se enrolasse de repente em volta de seus tornozelos. Puxado pelos pés, o Soldado Rudy Schreck começou a gritar e a atirar desesperadamente, até que a escuridão completa pôs fim à guerra para ele.
Woermann foi subitamente despertado por uma curta rajada de tiros de uma Schmeisser. Correu para a janela que dava para o pátio. Um dos guardas estava correndo para a parte de trás. Onde estava o outro? Que inferno! Ele colocara dois guardas no pátio! Já estava se aprontando para correr na direção da escada quando viu algo na muralha. Um vulto indefinido... quase como se fosse...
Era um corpo... de cabeça para baixo. . . um corpo nu, pendurado pelos pés. Mesmo da janela da torre Woermann podia ver o sangue que escorrera da garganta para o rosto. Um de seus soldados, em serviço e de arma na mão, fora massacrado, despido e pendurado como uma galinha na vitrine de um açougue.
O pavor - que até então apenas ameaçara apossar-se de Woermann - agora lançava suas garras geladas sobre ele.
Sexta-feira, 25 de abril
Três homens mortos, com seus cadáveres depositados na galeria do porão. O Quartel-General em Ploiesti fora notificado dos últimos acontecimentos, mas não chegara qualquer resposta pelo rádio.
Houve muita atividade no pátio durante o dia, mas pouco rendimento. Woermann decidira colocar sentinelas duplas naquela noite. Parecia incrível que um guerrilheiro fosse capaz de surpreender em seu posto um soldado veterano e prevenido, mas a verdade é que isso acontecera. Não aconteceria com um par de sentinelas.
À tarde ele retornou a seu quadro e encontrou um pouco de alívio, fugindo da atmosfera pesada que dominava o fortim. Começou a acrescentar pinceladas de sombra sobre a parte ainda branca que representava a parede e acentuou as cores da moldura da janela. Decidiu deixar de fora as cruzes, porque elas desviariam a atenção da paisagem da vila, que era o que ele desejava de fato focalizar. Trabalhou como um autómato, concentrando seu mundo nas pinceladas sobre a tela, esquecendo a atmosfera de horror que o cercava.
A noite chegou mansamente. Woermann continuou a levantarse várias vezes e chegar até à janela que dava para o pátio - uma rotina inútil, quase uma compulsão, como se pudesse manter seus homens vivos através de uma vigilância pessoal sobre o fortim. Em uma de suas idas à janela, notou que a sentinela do pátio fazia sua ronda sozinha. Ao invés de chamar o soldado, resolveu investigar pessoalmente.
- Onde está seu companheiro? - perguntou à sentinela, quando chegou ao pátio.
O soldado hesitou por um momento, depois confessou:
- Ele estava muito cansado, senhor. Deixei que fosse descansar um pouco.
Um calafrio percorreu a espinha de Woermann.
- Eu dei ordens para que todas as sentinelas fossem duplas! Onde está ele?
- Na cabine do primeiro caminhão, senhor.
Woermann dirigiu-se apressadamente para o veículo estacionado no pátio e abriu a porta da cabine. O soldado que se encontrava lá dentro não se moveu. O oficial puxou-o por um braço.
- Acorde!
O soldado começou a inclinar-se sobre ele, a princípio lentamente, depois com maior rapidez, como que desabando sobre seu comandante. Woermann procurou ampará-lo, mas só o conseguiu com dificuldade, pois, na queda, a cabeça se inclinou para trás, deixando à mostra um enorme corte na garganta. O oficial deixou que o corpo escorregasse até ao chão, depois recuou um passo, cerrando os dentes com toda a força que lhe restava, a fim de evitar um grito de pavor.
Sábado, 26 de abril
Woermann ordenou que Alexandru e seus filhos voltassem do portão quando chegaram pela manhã. Não que suspeitasse deles como cúmplices nas mortes, mas o Sargento Oster lhe comunicara que os homens estavam alarmados ante a impossibilidade de garantirem a própria segurança. Woermann julgou prudente evitar um incidente desagradável.
Pouco depois ficou ciente também de que os homens estavam preocupados com algo mais do que a segurança. No fim da tarde iniciou-se uma briga no pátio. Um cabo tentou valer-se de sua hierarquia sobre um soldado, exigindo que ele lhe entregasse um crucifixo que fora especialmente benzido. O soldado recusou e a luta entre os dois degenerou em uma briga envolvendo uma dúzia de homens. Segundo parecia, houvera uns comentários a respeito de vampiros, depois da primeira morte, o que fora então objeto de chacota. Todavia, com a sucessão de vítimas, a idéia ganhou corpo até que os crentes se tornaram mais numerosos do que os céticos. Afinal, estavam na Roménia, nos Alpes da Transilvânia.
Woermann sabia que tinha de matar essa idéia no nascedouro. Reuniu os homens no pátio e falou-lhes durante mais de meia hora. Recordou o dever deles, como soldados alemães, de enfrentarem corajosamente o perigo, de permanecerem fiéis à sua causa, de não permitirem que o temor atirasse uns contra os outros, pois isso fatalmente conduziria à derrota.
- Finalmente - disse ele, notando que seus ouvintes se mostravam inquietos -, vocês devem livrar-se de qualquer temor do sobrenatural. Há um agente humano nessas mortes e nós o descobriremos. É evidente que devem existir numerosas passagens secretas no fortim, permitindo que o criminoso entre e saia sem ser visto. Passaremos o resto do dia procurando essas passagens. E a metade de vocês ficará de guarda esta noite. Vamos pôr um ponto final nisso de uma vez por todas!
O moral dos homens pareceu elevar-se com essas palavras. Na realidade, Woermann quase convencera a si mesmo.
Durante o resto do dia o oficial percorreu todo o fortim, encorajando os homens, observando enquanto eles mediam a espessura dos soalhos e das paredes em busca de espaços mortos, ou batiam nos blocos de pedra para verificar se não havia alguma parte oca. Entretanto, nada encontraram. Woermann pessoalmente fez um rápido reconhecimento da caverna no subsolo. Teve a impressão de que ela desaparecia no interior da montanha e decidiu deixá-la inexplorada por enquanto. Não havia tempo para uma busca mais demorada, nem existiam sinais de qualquer movimentação, no solo empoeirado da caverna, que indicassem a passagem por ali de qualquer pessoa ao longo de muitos anos. Contudo, mandou colocar quatro homens de guarda na abertura para o subsolo, prevenindo a improvável hipótese de que alguém tentasse entrar através da caverna embaixo.
Woermann conseguiu reservar uma hora, antes do cair da tarde, para esboçar o trecho da vila que queria pintar. Era a única pausa que fazia na crescente tensão que o acossava de todos os lados. Ao mesmo tempo que se concentrava no desenho, o oficial podia sentir que suas preocupações começavam a desaparecer, como se a tela conseguisse absorvê-las. Teria de arranjar algum tempo na parte da manhã do dia seguinte para acrescentar a cor, pois era a vila, como ela aparecia à primeira luz da manhã, que ele desejava representar em sua tela.
Quando começou a escurecer, e a falta de luz o obrigou a suspender o trabalho, sentiu que todo o temor e todas as apreensões estavam voltando. À luz do sol, ele podia facilmente acreditar que havia um agente humano matando seus homens e até rir das histórias de vampiros. Todavia, na escuridão crescente, o inquietante temor retornava juntamente com a lembrança daquele soldado coberto de sangue, que caíra em seus braços na noite anterior.
Uma noite calma. Uma noite sem mortes e talvez eu possa vencer esta coisa. Com metade dos homens velando o sono da outra metade esta noite, eu deverei ser capaz de inverter esta intranqüilidade e começar a ganhar terreno amanhã. Uma noite. Apenas uma noite sem mortes.
Domingo, 27 de abril
A manhã chegou como devem chegar as manhãs de domingo - brilhantes e ensolaradas. Woermann adormecera sentado na cadeira e acordou ao alvorecer, dolorido e com as pernas dormentes. Levou algum tempo para dar-se conta de que seu sono não fora interrompido por gritos nem tiros. Calçou as botas e dirigiu-se para o pátio, a fim de certificar-se de que havia tantos homens vivos naquela manhã quantos na noite anterior. A primeira sentinela que encontrou deu-lhe a desejada informação: não fora registrado qualquer fato anormal.
Woermann sentiu-se dez anos mais moço. Conseguira! Havia então uma maneira de conter o assassino! Mas aqueles dez anos começaram a pesar novamente sobre ele, ao ver a fisionomia descomposta de um soldado que corria através do pátio na direção dele.
- Senhor! - exclamou o homem ao aproximar-se. - Há alguma coisa errada com Franz, quero dizer o Soldado Franz Ghent. Ele não acorda.
As pernas e os braços de Woermann tornaram-se subitamente fracos e pesados, como se todo o vigor que havia neles tivesse de repente desaparecido.
- Você o sacudiu?
- Não, senhor. Eu. . . Bem, eu. . .
- Mostre-me o caminho.
O oficial seguiu o soldado até ao alojamento dentro das muralhas do lado sul. O homem que eles procuravam estava dentro de seu saco de dormir, sobre um catre recentemente feito, as costas voltadas para a porta.
Franz! - disse seu camarada, quando entraram no quarto.
- O capitão está aqui!
Não houve o menor movimento.
Por favor, meu Deus, faça com que ele esteja doente ou mesmo morto por uma parada cardíaca, pensou Woermann ao aproximar-se do catre. Mas, por favor, não deixe que sua garganta esteja cortada. Tudo, menos isso.
- Soldado Ghent! - gritou o oficial.
Não se notou qualquer sinal nas cobertas, nem mesmo o ondular provocado pela respiração de uma pessoa que dorme. Apavorado com o que iria ver, Woermann inclinou-se sobre o catre.
O saco de dormir cobria o corpo de Ghent até ao queixo. Woermann não chegou a puxá-lo. Não havia necessidade. Os olhos vidrados, a pele amarelada e a mancha de sangue que aparecia na coberta revelaram-lhe claramente o que iria encontrar.
Os homens estão à beira do pânico, senhor - dizia o Sargento Oster.
Woermann esparramou tinta sobre a tela, com curtas, rápidas e furiosas pinceladas. A luz da manhã era bem a que ele imaginara e precisava aproveitar ao máximo aquele instante. Certamente Oster estaria pensando que ele enlouquecera, o que talvez não fosse de todo errado. A despeito da carnificina havida, a pintura se tornara uma obsessão para ele.
- Não os condeno por isso. Suponho que estejam com vontade de ir até à vila e matar alguns habitantes. Isso, entretanto. . .
- Desculpe, senhor, mas não é isso o que eles estão pensando. Woermann interrompeu suas pinceladas.
- Ah, não? Então o que é?
- Eles acham que os homens que foram mortos não sangraram tanto quanto deviam. Acham também que a morte de Lut? não foi um acidente. . . que ele foi assassinado, do mesmo modo que os outros.
- Não sangraram, é? Compreendo... A história do vampiro outra vez.
Oster concordou com um sinal de cabeça.
- Sim, senhor. E pensam que Lutz liberou o vampiro quando abriu aquela caverna no espaço morto do porão.
- Mas não aceito isso - replicou Woermann, voltando-se para a pintura, a fim de esconder a expressão de seu rosto. Precisava manter sua ascendência sobre seus homens, servir-lhes de âncora. Tinha de apresentar os fatos como naturais. Reafirmo que
Lutz foi esmagado por uma pedra que caiu; que as quatro mortes subseqüentes nada têm a ver com a dele. E acho que todos sangraram profusamente. Não há coisa alguma por aqui sugando sangue de ninguém, sargento!
- Mas as gargantas...
Woermann não soube o que responder. Sim, as gargantas. Elas não tinham sido cortadas, não fora utilizada uma faca ou um arame que servisse de garrote. Tinham sido dilaceradas. Cruelmente. Mas com quê? Dentes?
- Quem quer que seja o assassino, está tentando amedrontar-nos. E está tendo êxito. Assim, faremos o seguinte: vou colocar de vigia todos os homens do destacamento esta noite, inclusive eu mesmo. Todos serão escalados em pares. Este fortim será tão atentamente patrulhado que nem sequer uma mosca voará sem ser notada!
- Mas não podemos fazer isso todas as noites, senhor!
- Não, mas podemos fazer esta noite e, se necessário, a de amanhã. Assim, agarraremos seja lá quem for.
- Sim, senhor - replicou Oster, com os olhos brilhando.
- Diga-me uma coisa, sargento - disse Woermann, quando Oster fez a continência para retirar-se.
- O quê, senhor?
- Tem havido pesadelos desde que viemos para o fortim?
- Pesadelos? - perguntou o jovem sargento, surpreso. - Não, senhor. Eu, pelo menos, não tive.
- Algum dos homens falou a respeito disso?
- Nenhum. Aconteceu com o senhor?
- Não.
Woermann sacudiu a cabeça de maneira tal que Oster compreendeu que a conversa terminara. Não havia pesadelos. Entretanto, os dias se tinham tornado um sonho mau.
- Falarei pelo rádio com Ploiesti agora - disse Oster ao deixar o quarto.
Woermann ficou pensando se uma quinta morte não impressionaria o Quartel-General de Ploiesti. Oster vinha informando uma morte diariamente, sem que houvesse qualquer reação - a oferta de auxílio, a ordem para abandonar o fortim. Era claro que ninguém se estava preocupando muito com o que lá acontecia, desde que alguém continuasse vigiando o passo. Woermann teria de tomar em breve uma decisão a respeito dos corpos, mas desejava desesperadamente passar uma noite sem mortes, antes de transferir os cadáveres. Apenas uma noite.
Retornou à pintura, mas já era tarde e a luz havia acabado. Limpou seus pincéis. Não tinha muita esperança de capturar o assassino naquela noite, mas ainda assim ela poderia marcar um momento decisivo. Com todos vigiando e aos pares, talvez nada acontecesse, o que seria ótimo para o moral do destacamento. Então, um horrível pensamento o assaltou, ao guardar os tubos de tintas na caixa: E se um de seus próprios homens fosse o criminoso?
Segunda-feira, 28 de abril
A metade da noite já passara sem que nada acontecesse. O Sargento Oster havia instalado um posto de controle no centro do pátio e não recebera qualquer comunicação de anormalidade. As lâmpadas suplementares colocadas no pátio e na torre contribuíram para aumentar a confiança dos homens, apesar das sombras que elas projetavam. Manter todos acordados a noite inteira fora uma drástica medida, mas estava dando resultado.
Woermann debruçou-se em uma de suas janelas que davam para o pátio. De onde estava, podia ver Oster em sua mesa e os homens caminhando aos pares ao longo do perímetro e junto às muralhas. Os geradores matraqueavam, instalados junto aos veículos. Lâmpadas adicionais tinham sido colocadas na encosta da montanha que formava a parede do fundo do fortim, com o propósito de evitar que o assassino se esgueirasse, descendo por ali. Os homens nas plataformas vigiavam o lado exterior das muralhas, prevenindo a possibilidade de alguém tentar escalá-las. Os portões estavam fechados e havia um grupo guardando o buraco na caverna.
O fortim estava em segurança.
Ao chegar a essa conclusão, Woermann deu-se conta de que era o único homem em toda a estrutura, sozinho e sem guarda. Esteve a ponto de dar uma busca nos cantos mais escuros do quarto, mas compreendeu que aquele era o preço de ser um oficial.
Olhando mais para baixo, pelo vão da janela, notou uma sombra maior na junção da torre com a muralha do lado sul. Enquanto observava, a luz da lâmpada lá existente começou a reduzir de intensidade até apagar-se de todo. Seu pensamento imediato foi de que alguma coisa rebentara o fio, mas teve de descartar essa idéia ao ver que as demais lâmpadas continuavam acesas. Uma lâmpada queimada, então. Com certeza fora isso o que acontecera, embora tenha sido uma maneira estranha de uma lâmpada queimar-se. Normalmente há uma luminosidade maior, azulada, e em seguida os filetes se apagam. Aquela, simplesmente fora se apagando.
Um dos guardas na muralha do lado sul também notara o que havia acontecido e fora investigar. Woermann teve vontade de alertá-lo para que levasse também seu companheiro, mas achou que estava exagerando. O segundo homem ficou bem à vista, encostado no parapeito junto à torre - um canto morto, sem possibilidade de perigo.
Woermann acompanhou com o olhar o soldado enquanto este desaparecia na sombra - uma sombra estranhamente escura. Decorridos talvez uns quinze segundos, desviou o olhar, mas foi então que ouviu um murmúrio abafado vindo da parte inferior, seguido do ruído característico da batida de madeira e de metal contra o chão - a queda de uma arma.
O oficial, sobressaltado, sentiu as palmas das mãos se umedecerem, ao debruçar-se sobre o peitoril da janela para ver melhor. Mas a sombra continuava impenetrável.
O outro guarda também deveria ter ouvido os mesmos ruídos, pois logo correu para verificar o que sucedera com seu companheiro.
Woermann percebeu que uma luz começara timidamente a acender-se, afastando a escuridão. Quando a claridade se tornou maior, o oficial notou que era a própria lâmpada, supostamente queimada, que voltara a brilhar. Foi então que ele viu o primeiro soldado: estava deitado de costas, as mãos nos quadris, as pernas dobradas sob o corpo, a garganta estraçalhada. Olhos sem vida voltados para cima, pareciam fixados em Woermann, como que o acusando. Não havia mais ninguém, nem qualquer coisa naquele canto.
Quando o outro soldado começou a gritar por socorro, Woermann recuou para o interior do quarto e encostou-se na parede, reprimindo a ânsia de vômito. Não tinha mais forças para moverse nem para falar. Meu Deus, meu Deus!
Cambaleando, foi até à mesa que lhe haviam feito apenas dois dias antes e apanhou um lápis. Precisava tirar seus homens dali, para fora do fortim, abandonando o Posto Dinu, se necessário. Não havia defesa contra aquilo que ele acabara de presenciar. Não se comunicaria mais através de Ploiesti. Sua mensagem seria remetida diretamente para o Alto Comando.
Mas o que dizer? Olhou para as cruzes, procurando inspiração; elas, porém, pareciam zombar dele. Como fazer com que o Alto Comando compreendesse que não estava lidando com um louco? Como explicar que ele e seus homens deviam deixar o fórum, porque algo sobrenatural os estava ameaçando, algo imune ao poderio militar germânico?
Começou a rabiscar frases, riscando-as cada vez que lhe ocorria uma redação melhor. Queria evitar a idéia de que estava abandonando sua posição, mas percebia o horror de mais uma noite passada ali. Os homens estavam agora praticamente incontroláveis. Mantida a média atual de mortes, ele seria um oficial sem ninguém para comandar se se demorasse ali.
Comandar... Sua boca contraiu-se em um ricto sardónico ao pronunciar a palavra. Ele não estava mais no comando do fortim. Algo escuro e terrível o havia deposto.
ESTREITO DOS DARDANELOS Segunda-feira, 28 de abril
2h44m
Já estavam a meio caminho, atravessando o estreito, quando ele sentiu que o barqueiro começaria a agir.
Não fora uma jornada fácil. O homem ruivo deixara Gibraltar ao anoitecer e velejara para Marbella, onde contratara aquela lancha a motor, de cerca de dez metros, e que agora vibrava em torno dele. Era um barco bem cuidado, com dois motores possantes. Seu proprietário estava longe de ser um novato. O homem ruivo sabia identificar um contrabandista quando punha os olhos em um deles.
O proprietário regateara muito a respeito do preço, até saber que seria pago em dólares de ouro americanos, de duas águias: a metade na partida e o restante quando chegassem, sem problemas, na costa norte do mar de Mármara. Para a travessia do Mediterrâneo, o proprietário insistira em contratar uma tripulação, mas o homem ruivo não concordou; ele se encarregaria de todo o serviço.
Navegaram ininterruptamente durante seis dias, cada um dos dois agarrado ao leme por oito horas a fio, descansando as oito seguintes e conservando a velocidade da lancha sempre em vinte nós, durante as vinte e quatro horas do dia. Haviam aportado apenas em enseadas discretas, onde o proprietário parecia ser bem conhecido, permanecendo o tempo suficiente para reabastecer os tanques. O homem ruivo pagara todas as despesas.
Agora, alertado pela redução da velocidade do barco, ficou esperando que o proprietário, Carlos, descesse do convés para tentar matá-lo. Carlos esperara pacientemente uma oportunidade desde que eles haviam deixado Marbella, mas não se apresentara nenhuma. Agora, aproximando-se o fim da viagem, Carlos dispunha apenas de uma noite para apossar-se do dinheiro no cinturão. O homem ruivo sabia que era isso o que o outro desejava. Carlos repetidamente lhe dera encontrões, para certificar-se de que seu passageiro ainda usava aquele cinturão. E sabia que nele havia ouro e, pelo volume, não deveria ser pouca quantidade. Parecia também bastante curioso a respeito da caixa comprida e estreita que seu passageiro mantinha sempre perto de si.
Era uma pena. Carlos fora uma boa companhia durante os últimos seis dias. Um bom marinheiro, também. Bebia um pouco demais, comia mais do que devia e, pelo jeito, não costumava tomar banho com a necessária freqüência. O homem ruivo não se importava com essas coisas. Ele tivera, em seu tempo, cheiro pior. Muito pior.
A porta de trás se abriu, deixando entrar uma lufada de ar fresco. O vulto de Carlos se destacou contra a luz, antes de fechar a porta atrás de si.
Que pena! - pensou o homem ruivo, ao ouvir o ruído do atrito da lâmina de aço ao ser retirada da bainha de couro. Uma bela viagem encaminhava-se para um final melancólico. Carlos os havia conduzido habilmente na direção da Sardenha, passara por ela, pelas águas azuis entre a ponta norte da Tunísia e a Sicília, depois rumara para o norte de Creta e atravessara as Cíclades, entrando no mar Egeu. No momento, dirigiam-se para os Dardanelos, o estreito canal que liga o Egeu com o mar de Mármara.
Que pena!
Viu o lampejo rápido da lâmina na direção de seu peito. Com a mão esquerda segurou o pulso de Carlos, antes que o punhal pudesse baixar; com a direita, imobilizou o outro braço do atacante.
- Por que isso, Carlos?
- Entregue-me o ouro!
As palavras eram como chicotadas.
- Eu poderia ter-lhe dado mais, se você me tivesse pedido. Por que tentar matar-me?
Carlos, dando-se conta da força das mãos que o seguravam, arriscou uma explicação:
- Ia apenas cortar o cinturão. Não tinha a intenção de feri-lo.
- O cinturão se encontra na altura de minha barriga e seu punhal está apontado contra meu peito.
- É que está escuro aqui.
- Não tão escuro assim. Mas vá lá. . . - disse o homem ruivo, soltando os pulsos de Carlos. - Quanto mais você quer?
Carlos levantou a mão que empunhava a arma e avançou novamente, rosnando:
- Quero tudo!
O homem ruivo agarrou-lhe outra vez o pulso, antes que a lâmina pudesse atingi-lo.
- Seria melhor que você não tivesse feito isso, Carlos.
Com firme, inexorável deliberação, o homem ruivo torceu contra o peito do assaltante a mão que segurava o punhal. Os ligamentos das juntas se esticaram até ao limite. Carlos gemeu de dor e medo, quando seus tendões se romperam e se ouviu o impressionante estalo de ossos quebrados. A ponta do punhal se achava agora diretamente em cima do lado esquerdo de seu peito.
- Não! Por favor. . . não!
- Dei-lhe uma chance, Carlos - disse o homem ruivo, e sua voz soou dura e incolor. - Você não a aproveitou.
A voz de Carlos se transformou em um grito que cessou abruptamente quando seu pulso foi empurrado contra as costelas, mergulhando o punhal no coração. Seu corpo se inteiriçou, depois os músculos perderam as forças e o cadáver escorregou até o chão.
O homem ruivo permaneceu imóvel por uns instantes, escutando o bater de seu próprio coração. Tentou sentir remorsos, mas não conseguiu. Já fazia muito tempo que ele não matava ninguém. Deveria sentir alguma coisa, mas esperou em vão. Carlos era um assassino de sangue-frio. Procedera de acordo com as circunstâncias. Não havia motivo para remorsos; apenas uma desesperada urgência de chegar à Romênia.
Levantando-se, apanhou a caixa comprida, subiu para o convés e tomou o leme. Os motores estavam em marcha lenta. Ele os acelerou até o ponto máximo.
Os Dardanelos. Ele já estivera ali antes, mas nunca durante uma guerra, muito menos a toda velocidade em meio à escuridão. A água, onde as estrelas se refletiam, era uma imensidão cinzenta à sua frente; a costa, uma mancha escura à direita e à esquerda. Ele se encontrava em uma das mais estreitas seções dos Dardanelos, onde o canal não tinha mais de um quilômetro e meio de largura. Mesmo nas partes mais largas, nunca excedia seis quilômetros e meio. O homem ruivo pilotava ajudado pela bússola e pelo instinto, sem acender nenhuma luz, mergulhado em completa escuridão.
Era impossível saber o que ele poderia encontrar naquelas águas. O rádio anunciara que a Grécia se rendera; isso poderia ser verdade ou não. Talvez agora houvesse alemães nos Dardanelos, ou mesmo britânicos ou russos. Teria de evitá-los. Aquela viagem não fora planejada; ele não possuía documentos que justificassem sua presença. E o tempo agia contra ele. Necessitava de toda a velocidade que os motores pudessem render.
Uma vez no mar de Mármara, umas vinte milhas à frente, ele teria espaço suficiente e poderia navegar enquanto seu combustível permitisse. Quando os tanques se esvaziassem, ancoraria o barco e iria por terra até o mar Negro. Perderia um tempo precioso, mas não havia outra solução. Ainda que lhe sobrasse combustível, não poderia arriscar-se a passar pelo Bósforo. Ali os russos eram mais numerosos de que moscas em torno de um cadáver.
Empurrou até ao fundo a alavanca do acelerador, tentando obter maior velocidade dos motores. Impossível.
Desejou ter asas.
BUCARESTE, ROMÉNIA Segunda-feira, 28 de abril
9h50m
Magda tocava seu bandolim com natural facilidade, a palheta vibrando na mão direita, os dedos da esquerda subindo e descendo pelo braço do instrumento e saltando de uma corda para outra, apoiando-se nos trastos. Seus olhos se concentravam em uma folha com notas musicais escritas à mão: uma das mais lindas melodias ciganas que ela passara para o papel.
A moça estava sentada no interior de uma carroça pintada com cores vivas, estacionada nos arredores de Bucareste. O espaço, já de si pequeno, era reduzido pelas prateleiras cheias de ervas exóticas e especiarias, por almofadas coloridas e lanternas pendentes do teto. Suas pernas, cruzadas, serviam de apoio para o bandolim, e ainda assim a saia de lã cinzenta mal lhe deixava à mostra os tornozelos. Um casaco da mesma cor, abotoado na frente, cobria a blusa branca. Um pedaço de pano escondia-lhe os cabelos castanhos. Todavia, a simplicidade de sua indumentária não lhe roubava o brilho dos olhos nem a cor das faces.
Magda deixava-se embalar pela música, livrando-a por uns momentos de um mundo que se tornava cada dia mais hostil para ela. Eles agora estavam lá - os que tinham ódio dos judeus. Haviam demitido seu pai da posição que ocupava na universidade, ordenando que se mudassem ambos da casa onde sempre tinham morado, e destituíram o rei - não que Carol fizesse jus à lealdade dela, mas ainda assim era o rei -, substituindo-o pelo General Antonescu e a Guarda de Ferro. Apesar de tudo, ninguém poderia privá-la de sua música.
- Toquei direito? - perguntou ela, quando a última nota se extinguiu, deixando o interior da carroça novamente em silêncio.
A velha que estava sentada à sua frente, na pequena mesa redonda, sorriu, enrugando a pele morena em torno de seus negros olhos de cigana.
- Quase. No meio, porém, a melodia é assim.
Colocou sobre a mesa um velho baralho de cartas e apanhou um naiou de madeira. Parecendo um Pa enrugado, ela levou o instrumento aos lábios e começou a soprar. Magda acompanhava-a no bandolim até que, ao perceber que suas próprias notas destoavam, tratou de fazer as alterações na folha de papel.
- Agora, sim, parece que está certo - disse ela, juntando as folhas com evidente satisfação. - Agradeço-lhe muito, Josefa.
A velha esticou o braço e pediu:
- Deixe-me dar uma olhada.
Magda entregou-lhe o papel e ficou observando o olhar da velha percorrer a página, linha por linha. Josefa era a phurl dai, a mais respeitada mulher daquela tribo de ciganos. Papai muitas vezes descrevera o quanto ela fora bonita; agora, porém, sua pele se enrugara, seus cabelos negros se entremearam com fios de prata, seu corpo se encurvou. A mente, todavia, continuava clara.
- Então isto aqui é a minha canção - disse Josefa, que não sabia ler música.
- Exatamente. Preservada para sempre. A velha devolveu o papel.
- Mas eu não a tocarei sempre deste jeito. Esta é a maneira como gosto dela hoje. No próximo mês possivelmente alterarei alguma parte. Já fiz isso uma porção de vezes ao longo dos anos.
Magda concordou com um movimento da cabeça, enquanto colocava a folha de papel junto das demais na pasta. Antes de iniciar sua coleção ela sabia que a música cigana era predominantemente feita de improviso, o que, aliás, não seria de estranhar, dado que a improvisação constitui característica da vida desse povo, que não possui outro lar a não ser uma carroça, não dispõe de linguagem escrita nem sequer tem recursos para registrá-la. Talvez fosse isso que a levou a procurar captar algumas das manifestações musicais dos ciganos e preservá-las para o futuro.
- Está tudo ótimo por enquanto - replicou Magda. - Talvez no próximo ano eu veja o que você tiver acrescentado.
- E o livro já não terá sido publicado então?
- Receio que não.
- Por que não?
Magda fingiu estar muito absorvida em guardar seu bandolim, sentindo-se incapaz de dar uma resposta satisfatória. Replicou sem levantar os olhos:
- Tenho de encontrar um novo editor.
- O que aconteceu com o outro?
Magda continuou de olhos baixos. Estava embaraçada. Passara por um dos mais penosos momentos de sua vida ao saber que o editor desfizera o acordo. A recusa ainda lhe doía.
- Ele mudou de idéia. Alegou que o momento não era propício para o lançamento de um compêndio sobre música cigana da Roménia.
- Especialmente sendo a autora uma judia – acrescentou Josefa.
Magda levantou os olhos, surpresa, mas tornou logo a baixálos. Quanto aquilo era verdade!
- Talvez - murmurou, com um nó na garganta. Não queria falar sobre esse assunto. -- Como vão os negócios?
- Muito mal - disse Josefa, sacudindo os ombros, enquanto punha de lado o naiou e apanhava de novo o baralho de cartas. Trajava o variado conjunto de roupas exóticas comuns aos ciganos: blusa guarnecida de flores, saia listrada, lenço na cabeça. Uma confusa mistura de cores e modelos. Seus dedos hábeis, como que agindo automaticamente, começaram a baralhar as cartas. - Recebo apenas alguns dos velhos fregueses para fazer uma leitura. Nenhum cliente novo depois que me mandaram retirar o letreiro.
Magda notara, ao chegar pela manhã, que desaparecera a tabuleta pendurada sobre a porta traseira, anunciando Domna Josefa: Leituras da Sorte. Desaparecera também o diagrama de uma palma de mão, colocado na janela da esquerda, e o símbolo cabalístico, na da direita. Segundo se dizia, todas as tribos ciganas haviam recebido ordens da Guarda de Ferro para permanecerem onde se encontravam e não fazerem trapaças com os cidadãos.
- Quer dizer que os tempos não são bons para os ciganos também?
- Nós, da tribo romena, sempre estivemos em desfavor, qualquer que fosse a época ou o lugar. Já estamos acostumados. Mas vocês, judeus... - Deu um muxoxo e sacudiu a cabeça. - Temos ouvido histórias. . . terríveis histórias do que acontece na Polónia.
- Nós também temos ouvido - replicou Magda, contendo um estremecimento. - Mas já estamos igualmente acostumados ao desfavor.
Pelo menos alguns de nós. Ela não. Jamais se conformaria com isso.
- Receio que ainda vá ficar pior - disse Josefa.
- A tribo romena não poderia estar melhor. . .
Magda se deu conta de que estava sendo grosseira, mas não pôde evitar. O mundo se tornara um lugar assustador e sua única defesa ultimamente tinha sido a negação. As coisas que ela ouvira não podiam ser verdadeiras, pelo menos a respeito dos judeus ou acerca do que estava acontecendo aos ciganos nas regiões rurais - histórias de prisões em massa pela Guarda de Ferro, esterilizações forçadas e mesmo trabalho escravo. Deveriam ser apenas boatos, para atemorizar. Entretanto, com todas as coisas terríveis que estavam realmente acontecendo. . .
- Eu não me preocupo - disse Josefa. - Corte um cigano em dez pedaços e, ao invés de matá-lo, você apenas terá fabricado dez ciganos.
Magda tinha certeza de que, em circunstâncias semelhantes, sobraria apenas um judeu morto. Novamente tentou mudar de assunto.
- Esse baralho é para tirar a sorte? - perguntou, sabendo perfeitamente que era.
Josefa assentiu com um movimento de cabeça.
- Quer tentar a sua?
- Não. Na verdade não acredito em nada dessas coisas.
- Para ser sincera, devo dizer-lhe que muitas vezes também não acredito. Freqüentemente as cartas nada dizem, simplesmente porque nada têm a dizer. Então, a gente improvisa, como se faz em música. E que mal existe nisso? Não faço o hokkane baro; apenas digo às garotas gadjé que elas logo encontrarão um homem maravilhoso, e aos homens gadjé que seus empreendimentos não custarão a prosperar. Não causo danos.
- E quanto à sorte?
- Algumas vezes as cartas acertam - replicou Josefa, erguendo os ombros estreitos. - Quer experimentar?
- Não, obrigada.
Não queria saber o que o futuro lhe reservava. Tinha a sensação de que somente poderia ser alguma coisa ruim.
- Por favor. É um presente meu.
Magda hesitou. Não queria ofender Josefa. Afinal, a velha não lhe havia confessado que as cartas freqüentemente nada diziam? Talvez a cigana inventasse uma bela fantasia para ela.
- Está bem.
Josefa colocou o maço de cartas sobre a mesa.
- Corte.
Magda pegou a metade de cima e a entregou a Josefa, que a juntou à de baixo e começou a cartear, falando enquanto seus dedos ágeis trabalhavam.
- Como está seu pai?
- Não muito bem, infelizmente. Já mal consegue manter-se de pé.
- É uma pena. Nem sempre se encontra um gadjé que saiba como rokker. O ursinho de Yoska não melhorou o reumatismo dele?
Magda sacudiu a cabeça.
- Não. Aliás não é apenas reumatismo o que ele tem. Trata-se de algo mais sério.
O pai havia tentado tudo para deter a crescente deformação de seus membros, chegando mesmo a permitir que o ursinho do neto de Josefa caminhasse sobre suas costas - uma antiga terapia cigana que se revelara tão inútil quanto os últimos milagres da medicina moderna.
- Um bom homem - disse Josefa com voz cacarejante. - É uma pena que uma pessoa que sabe tanta coisa a respeito desta terra, deva ser. . . mantido em silêncio. . . impedido de transmitir seus conhecimentos. . .
Josefa franziu as sobrancelhas e suas últimas palavras mal se fizeram ouvir.
- O que houve? - perguntou Magda, fixando preocupada, a expressão do rosto de Josefa, que olhando para as cartas espalhadas sobre a mesa. - A senhora está sentindo alguma coisa?
- Hein? Ah, sim! Estou bem. São estas cartas...
- Más notícias?
Magda se recusava a acreditar que as cartas pudessem prever o futuro mais do que as entranhas de um pássaro morto; todavia, não pôde evitar uma sensação de ansiedade.
- É a maneira como elas estão divididas. Nunca vi uma coisa assim. As canas neutras estão espalhadas, mas as que são consideradas como boas estão todas aqui do lado direito, enquanto as más ou nefastas se agruparam totalmente à esquerda. Estranho.
- Que significa isso?
- Não sei. Deixe-me consultar Yoska - replicou Josefa, que em seguida chamou o neto gritando por cima do ombro. - Yoska é muito bom nessas interpretações. Aprendeu desde que era pequeno.
Um jovem moreno e bonito, com pouco mais de vinte anos, apareceu na porta da frente, mostrando um sorriso de dentes perfeitos e um tórax musculoso. Cumprimentou Magda com uns olhos vorazes, que a fizeram sentir-se como que despida, apesar de suas pesadas roupas. Era mais moço do que ela, mas isso não o impedia de cortejá-la. Já por várias vezes demonstrara seus desejos, sendo sempre recusado por Magda.
Yoska olhou para as cartas que a avó estava mostrando. Rugas profundas começaram a formar-se entre suas sobrancelhas, enquanto estudava as figuras. Permaneceu imóvel durante algum tempo, depois pareceu ter chegado a uma decisão.
- Baralhe, corte e dê outra vez.
Josefa balançou a cabeça, concordando, e a rotina foi repetida, desta vez em silêncio. A despeito de seu ceticismo, Magda instintivamente se inclinou para a frente e ficou observando as cartas, à medida que elas eram colocadas sobre a mesa, uma por uma. Como não entendia nada do que significavam aquelas figuras, teria de submeter-se inteiramente à interpretação da cartomante e de seu neto Quando levantou os olhos, percebeu nos rostos deles que alguma coisa estava errada.
- O que acha você, Yoska? - perguntou a velha em voz baixa.
- Não sei... essa concentração do bem e do mal. . . essa nítida separação entre ambos.
Magda sentiu que sua boca estava seca.
- Quer dizer que se repetiu a mesma coisa? Duas vezes seguidas?
- Sim - disse Josefa. - Exceto que os lados são diferentes. O bem está agora à esquerda e o mal à direita. Isso indica uma escolha. Uma grave escolha.
Uma súbita irritação dominou o mal-estar de Magda. Eles estavam fazendo um jogo de mau gosto com ela. Não se prestaria ao papel de tola,
- Acho que é melhor eu ir embora - anunciou ela, apanhando a pasta e a caixa do bandolim. - Não sou uma dessas ingênuas garotas gadjé com quem vocês se divertem.
- Não! Espere! Somente mais uma vez - apelou a velha cigana, segurando-a pela mão.
- Desculpe, mas já estou atrasada.
Magda dirigiu-se apressadamente para a porta de trás da carroça, ciente de que não estava sendo delicada com Josefa, mas ainda assim decidida a retirar-se. Aquelas cartas grotescas, com suas figuras estranhas, mais a expressão de espanto nos rostos da cigana e do neto provocaram nela uma necessidade imperiosa de sair da carroça. Queria voltar para Bucareste, para uma sala com paredes retas e soalho de concreto.
Segunda-feira, 28 de abril
19h10m
As serpentes tinham chegado.
Os homens da SS, especialmente os oficiais, davam a Woermann a idéia de serpentes. O SS-Sturmbannführer Erich Kaempffer não constituía exceção.
Woermann nunca esquecera uma noite, muitos anos antes da guerra, quando o Hohere SS-und Polizeiführer - um nome pomposo para um simples chefe de polícia local - ofereceu uma recepção no distrito de Rathenow. O Capitão Woermann - oficial condecorado do exército alemão e proeminente cidadão do lugar - fora um dos convidados. Sua vontade era de não comparecer, mas Helga tinha tão raras oportunidades de participar de uma elegante recepção oficial e ficara tão entusiasmada ao receber o convite, que ele não teve ânimo para recusar.
Junto a uma das paredes do saguão de entrada havia um tanque de vidro, na qual uma serpente de cerca de um metro se enroscava e desenroscava incessantemente. Era o animalzinho preferido do anfitrião, que gostava de conservá-lo faminto. Por três vezes, durante a noite, ele reunira todo os convidados para que vissem a serpente devorar um sapo. Um rápido olhar por ocasião da primeira experiência fora suficiente para que Woermann se sentisse enojado. Ele vira o sapo a meio caminho da goela da serpente, ainda vivo, as patas se agitando freneticamente em uma inútil tentativa de escapar.
A cena servira para tornar repugnante uma recepção enfadonha. Quando ele e Helga passaram pelo tanque, à saída, viram a serpente, ainda faminta, agitando-se em sua caixa de vidro, esperando um quarto sapo, apesar de já ter engolido três.
Foi nessa serpente que Woermann pensou, ao ver Kaempffer percorrer todo o seu quarto, desde a porta, passando pelo cavalete e pela mesa, indo até à janela e voltando outra vez. Exceto quanto à camisa marrom, Kaempffer estava vestido inteiramente de preto - a túnica, os culotes, a gravata, o cinturão, o coldre e as botas. A insígnia de prata - a caveira - os relâmpagos emparelhados da SS e o distintivo de seu posto eram os únicos pontos brilhantes no uniforme. . . escamas brilhantes numa venenosa serpente de cabeça loura.
Woermann notou que Kaempffer parecia bem mais velho do que na época do encontro ocasional de ambos em Berlim, dois anos antes. Mas não tanto quanto eu, pensou amargamente. O major da SS, embora dois anos mais velho do que Woermann, era esguio e dava a impressão de ser mais jovem. Sua cabeleira loura era abundante e penteada para trás e ainda não entremeada de fios grisalhos. Uma imagem do ariano perfeito.
- Reparei que você trouxe apenas uma esquadra - disse Woermann. - O telegrama se referia a duas. Pessoalmente, eu pensava que traria um regimento.
- Não, Klaus - respondeu Kaempffer em tom condescendente, continuando a caminhar pelo quarto. - Uma simples esquadra será mais do que suficiente para resolver esse suposto problema de vocês. Meus einsatzkommandos são mais do que capazes para esse tipo de coisas. Trouxe duas esquadras porque esta vinda até aqui é apenas uma parada em meu caminho.
- E onde ficou a outra esquadra? Colhendo margaridas?
- De certo modo, sim - replicou Kaempffer e seu sorriso nada tinha de cordial.
- O que quer dizer isso?
Tirando o quepe e o casacão, Kaempffer atirou-os sobre a mesa de Woermann, depois foi até à janela de onde se avistava a vila.
- Mais um minuto e você verá.
Relutantemente, Woermann foi para junto do homem da SS na janela. Kaempffer chegara apenas há vinte minutos e já estava assumindo o comando. À frente de sua esquadra de especialistas, ele se dirigira para a ponte sem a menor hesitação. Woermann chegou a desejar que os pilares tivessem apodrecido durante a última semana, mas não teve essa sorte. O jipe do major e o caminhão que o acompanhava atravessaram a ponte sem incidentes. Depois de desembarcar e de ordenar ao Sargento Oster - O Sargento Oster de Woennann - que os einsatzkommandos fossem bem alojados imediatamente, entrou no quarto de Woermann com o braço direito na saudação de Heil Hitler e a atitude de um messias.
- Parece que você mudou bastante, desde a Grande Guerra disse Woermann, enquanto contemplavam a vila que parecia adormecida. - Pelo jeito, você se deu bem na SS.
- Eu prefiro a SS ao Exército regular, se é isso que você está insinuando. É muito mais eficiente.
- É o que ouvi dizer.
- Vou-lhe mostrar como resolver problemas, Klaus. E quem resolve problemas acaba ganhando as guerras. Olhe - acrescentou, apontando para a janela.
A princípio Woermann nada percebeu, mas depois notou certos movimentos na orla da vila. Um grupo de pessoas. Ao aproximar-se da ponte, o grupo parou: eram dez habitantes locais empurrados pelos homens da segunda esquadra dos einsatzkommandos.
Woerman sentiu-se chocado e revoltado, embora estivesse esperando qualquer coisa daquela natureza.
- Você enlouqueceu? Aqueles homens são cidadãos romenos! Estamos em um país aliado!
- Soldados alemães têm sido mortos por um ou mais cidadãos romenos. É altamente improvável que o General Antonescu se aborreça com o Reich por causa de uns pobres-diabos de uma vila perdida.
- Mas não vai adiantar nada matá-los!
- Ah, mas eu não tenho a intenção de matá-los já! Acho que eles constituem excelentes reféns. Vai-se espalhar na vila a notícia de que, se morrer mais um soldado alemão, todos aqueles dez habitantes locais serão imediatamente fuzilados. E outros dez serão apanhados toda vez que outro soldado alemão aparecer morto. E assim continuaremos até que cessem os assassinatos ou não haja mais ninguém na vila.
Woermann afastou-se da janela. Então essa era a Nova Ordem, a Nova Alemanha, a ética da Raça Superior. Era desse modo que a guerra seria ganha.
- Não vai dar certo - disse ele.
- É claro que vai - replicou Kaempffer com toda a empáfia - Sempre deu resultado e sempre dará. Esses guerrilheiros se entusiasmam com os tapinhas nas costas que lhes dão seus companheiros de bar. Fazem passar-se por heróis e exploram esse papel até que seus amigos comecem a morrer ou até que suas mulheres e filhos sejam levados. A partir daí eles voltam a ser camponesinhos bem comportados.
Woermann procurou um meio de salvar aqueles homens. Sabia que eles nada tinham a ver com as mortes.
- Desta vez é diferente.
- Acho que não. Estou certo, Klaus, de que tenho muito mais experiência do que você nesse tipo de rebeldia.
- Não duvido. . . Auschwitz, não é mesmo?
- Aprendi muito com o Comandante Hoess.
- E gostou de aprender? - perguntou Woermann, apanhando o quepe do major, em cima da mesa, e atirando-o para ele. - Vou-lhe mostrar algo novo! Venha comigo!
Caminhando depressa e não dando tempo a Kaempffer para fazer perguntas, Woermann desceu as escadas da torre até o pátio, depois dirigiu-se para outra escada que conduzia ao porão. Parou junto à parede derrubada, acendeu um lampião e conduziu Kaempffer para a úmida caverna subterrânea.
- Como faz frio aqui! - comentou Kaempffer, esfregando as mãos.
- É aqui que guardamos os corpos. Todos os seis.
- Você não mandou nenhum ainda para a Alemanha?
- Não me pareceu conveniente embarcar um de cada vez. . . Poderia provocar comentários entre os romenos ao longo do percurso. . . o que não seria bom para o prestígio da Alemanha. Tinha planejado levá-los todos comigo hoje, quando fosse embora. Entretanto, como você sabe, meu pedido foi negado.
Deteve-se ante os seis vultos cobertos por lençóis, que jaziam sobre o chão puro, notando, contrariado, que os lençóis estavam em desalinho. Era apenas um detalhe, mas ele achava que o mínimo que poderia fazer por aqueles homens, antes do sepultamento final, seria tratar seus restos mortais com respeito. Se tivessem de aguardar uma oportunidade para retornar à pátria, pelo menos seriam mantidos bem uniformizados e condignamente amortalhados.
Aproximou-se do homem mais recentemente morto e puxou o lençol, descobrindo-lhe a cabeça e os ombros.
- Este é o Soldado Remer. Veja como está a garganta dele. Kaempffer olhou, conservando o rosto impassível. Woermann recolocou o lençol, depois levantou o do seguinte, mantendo o lampião erguido, de maneira que Kaempffer pudesse ver como ficara também aquela garganta. Prosseguiu assim, um a um, até chegar ao pior de todos.
- E agora. . . o Soldado Lutz.
Finalmente, Kaempffer mostrou uma reação: sua respiração ficou ligeiramente alterada. Mas Woermann também se espantou. A cabeça de Lutz estava colocada ao contrário e os olhos continuavam arregalados, fixos nos visitantes. O alto de sua cabeça fora encaixado no vão entre os ombros; o queixo e o que restava de seu pescoço estavam voltados para cima, para o vazio da escuridão.
Rápida e desajeitadamente, Woermann desvirou a cabeça até encaixá-la adequadamente, maldizendo o homem que tratara de maneira tão descuidada os restos mortais de um camarada morto, e desejando puni-lo. Arrumou o lençol cuidadosamente e voltou-se para Kaempffer.
- Você compreende agora por que lhe disse que os reféns não farão a menor diferença?
O major não respondeu imediatamente. Em vez disso, fez meia volta e dirigiu-se para a escada, à procura de ar menos gelado. Woermann sentiu que Kaempffer ficara mais chocado do que demonstrara.
- Esses homens não foram apenas assassinados - disse Kaempffer finalmente. - Foram mutilados!
- Exatamente! Quem ou o que for que esteja fazendo isso é completamente louco! As vidas dos dez reféns não significaria nada.
- Por que você disse ou o que for? Woermann enfrentou o olhar curioso de Kaempffer.
- Não sei explicar. Tudo o que sei é que o assassino entra e sai à vontade. Nada do que fazemos, nenhuma das medidas de segurança que tentamos, produziu qualquer resultado.
- A segurança não adiantou - disse Kaempffer, retomando sua antiga empáfia, tão logo eles retornaram à claridade e ao aconchego do quarto de Woermann - porque segurança não é a resposta. Temor deve ser a réplica. Faça o assassino ter medo de matar. Faça com que ele se apavore com o preço que outros terão de pagar pelas ações dele. Temor é sempre a melhor segurança.
- E se o assassino for alguém como você? Se não der a mínima importância ao que possa acontecer com os habitantes da vila?
Kaempffer não respondeu. Woermann decidiu insistir no argumento.
- Essa espécie de temor deixa de funcionar quando você enfrenta tipos de sua própria natureza. Experimente isso em Auschwitz, quando voltar.
- Não voltarei para a Polônia, Klaus. Quando tiver terminado minha missão aqui - e isso me exigirá apenas um dia ou dois - seguirei para Ploiesti, mais ao sul.
- Não vejo em que você possa ser útil por lá: não há sinagogas para queimar, apenas refinarias de petróleo.
- Continue fazendo seus irônicos comentários, Klaus - disse Kaempffer, com os lábios semicerrados. -> Divirta-se com eles agora, porque quando eu iniciar meu projeto em Ploiesti, você nem ousará falar comigo.
Woermann sentou-se atrás de sua mesa rústica. Estava cansado de ouvir Kaempffer. Voltou os olhos para o retrato de seu filho mais moço, Fritz, com quinze anos.
- Ainda não consegui imaginar que atração Ploiesti poderia oferecer a tipos como você.
- Não são as refinarias, pode ficar certo. Essas eu deixo para o Alto Comando.
- Muita bondade sua. Kaempffer fingiu não ouvir.
- Minha missão diz respeito às ferrovias.
Woermann continuou com os olhos fixos no retrato do filho.
- Ferrovias?
- Exatamente. O maior entroncamento ferroviário da Roménia se encontra em Ploiesti, o que faz desta o lugar ideal para um campo de concentração.
Woermann foi arrancado de sua apatia e ergueu a cabeça.
- Quer dizer que será uma réplica de Auschwitz?
- Exatamente! Tem as mesmas características. Uma boa rede ferroviária é decisiva para o transporte eficiente de raças inferiores para os campos. O petróleo é transportado por estrada de ferro de Ploiesti para todos os cantos da Roménia - explicou Kaempffer abrindo totalmente os braços e tornando a fechá-los. - E de cada canto os trens retornarão com seus vagões carregados de judeus, de ciganos e demais rebotalho humano que ainda vive nesta terra.
- Mas este não é um território ocupado! Você não pode. . .
- O Fiihrer não quer que sejam negligenciados os indesejáveis da Roménia. É verdade que Antonescu e a Guarda de Ferro estão removendo os judeus de suas posições de influência, mas o Fiihrer tem um plano mais radical. Foi batizado na SS como A Solução Romena. Para implementá-la, o Reichsfiihrer Himmler combinou com o General Antonescu no sentido de que a SS demonstrasse aos romenos como isso pode ser feito. Eu fui o escolhido para essa missão. Serei o comandante do Campo de Ploiesti.
Aterrorizado. Woermann não encontrou palavras para qualquer comentário, enquanto Kaempffer prosseguia em sua entusiasmada exposição.
- Você sabe quantos judeus existem na Roménia, Klaus? Setecentos e cinqüenta mil, segundo o último recenseamento. Talvez um milhão! Ninguém sabe ao certo, mas logo que eu assumir, criarei um eficiente sistema de registros e teremos o número exato. Mas isso não é o pior. O país está coalhado de ciganos e francomaçons. E pior ainda: muçulmanos! Dois milhões de indesejáveis no total!
- Se ao menos eu tivesse suspeitado! - exclamou Woermann, cerrando os olhos e apertando o rosto com as mãos. - Nunca teria posto os pés nesta terra infeliz!
Desta vez Kaempffer prestou atenção em Woermann.
- Pode rir, Klaus, mas Ploiesti será extremamente importante. No momento estamos transferindo os judeus da Hungria para Auschwitz com uma grande perda de tempo, mão-de-obra e combustível. Uma vez instalado o Campo Ploiesti, prevejo que muitos deles serão encaminhados para a Roménia. E, como comandante, serei um dos homens mais importantes na SS. . . no Terceiro Reich! Então será a minha vez de rir.
Woermann permaneceu em silêncio. Não tinha rido. Apenas a idéia o enojara. A zombaria era a única defesa contra um mundo que estava passando para o controle de fanáticos, contra a percepção de que ele era um oficial do exército que estava permitindo a expansão daquele controle. Ficou observando Kaempffer rodar de novo pelo quarto.
- Não sabia que você era pintor - disse o major, parando em frente ao cavalete, como se o estivesse vendo pela primeira vez. Estudou-o por um momento em silêncio. - Talvez se você tivesse dedicado tanto tempo à procura do assassino como gastou nesta pinturazinha mórbida, alguns de seus homens pudessem. . .
- Mórbida? Não há nada de mórbido nessa pintura!
- A sombra de um corpo pendurado num laço. . . será que é um quadro alegre?
Woermann levantou-se de um salto e aproximou-se do cavalete.
- Do que é que você está falando?
- Logo aqui.. . perto da parede - indicou Kaempffer.
Woermann arregalou os olhos. A princípio, nada percebeu. As sombras na parede eram da mesma cor cinzenta que ele havia pintado dias atrás. Não havia qualquer diferença que. . . Mas não. Woermann mal podia acreditar no que via. À esquerda da janela através da qual aparecia um trecho da vila, brilhando ao nascer do sol, um fino traço vertical se ligava a uma grande forma escura, como que pendurada nele. Bem poderia parecer alguém enforcado, ainda preso à corda. Woermann se lembrava vagamente de haver pintado o traço e a sombra, mas nunca lhe passara pela cabeça acrescentar um toque tão horrível a seu quadro. Apesar de tudo, não quis dar a Kaempffer a satisfação de confessar que também percebera a semelhança.
- Como a beleza, a morbidez depende de quem olha. Mas Kaempffer já mudara de assunto.
- É uma sorte para você que o quadro já esteja terminado, Klaus Depois que eu me tiver instalado, ficarei ocupado demais para permitir que você suba até aqui somente para terminar sua pintura. Entretanto, você poderá retomar seu trabalho depois que eu tiver seguido para Ploiesti.
Woeimann estava esperando essa oportunidade e não a deixou passar.
- Você não vai instalar-se em meus alojamentos.
- Corrija isso: meus alojamentos. Você parece esquecer que sou seu superior, capitão.
Woermann sorriu desdenhosamente.
- Hierarquia da SS! Não vale nada! Meu sargento é quatro vezes mais soldado do que você! E quatro vezes mais homem, também!
- Cuidado, capitão. Essa Cruz de Ferro que você recebeu na guerra passada não lhe dá o direito de ir tão longe!
Woermann sentiu qualquer coisa rebentar dentro dele. Arrancou da túnica a cruz de Malta esmaltada de preto, com bordas prateadas e mostrou-a a Kaempffer.
- Você não possui uma destas! E jamais possuirá! Pelo menos uma verdadeira, semelhante a esta, sem uma odiosa cruzinha suástica no centro.
- Chega!
- Não, não chega! Os seus homens da SS matam civis indefesos . . . mulheres, crianças! Conquistei esta medalha enfrentando homens que lutavam com armas semelhantes às minhas. E nós dois sabemos - acrescentou Woermann, baixando a voz até que ela se tornou um raivoso sussurro - o quanto você evita um inimigo que tem meios para reagir!
Kaempffer inclinou-se para a frente, até seu nariz ficar a menos de um palmo do de Woermann. Seus olhos azuis brilharam na palidez de seu rosto furioso.
- A Grande Guerra. . . tudo isso é passado. Esta agora é que é a Grande Guerra. . . a minha guerra. A outra, a sua, está morta e esquecida!
Woermann sorriu, satisfeito por haver finalmente atingido o repugnante orgulho de Kaempffer.
- Não está esquecida. Nunca estará. Especialmente o seu heroísmo em Verdun!
- Estou avisando você - disse Kaempffer. - Você vai. . . Interrompeu-se, ao ver Woermann avançar contra ele, já não
mais suportando as bravatas daquele emproado rufião que anunciava o extermínio de milhões de pessoas indefesas com a tranqüilidade de quem discute o que vai comer no jantar. Woermann não fez qualquer gesto de agressão, mas Kaempffer recuou um passo involuntariamente, ao vê-lo aproximar-se. Woermann simplesmente passou por ele e abriu a porta.
- Saia.
- Você não pode fazer isso!
- Fora.
Os dois se entreolharam durante algum tempo. A princípio, Woermann pensou que Kaempffer fosse enfrentá-lo, uma vez que estava em melhores condições e era fisicamente mais forte - mas apenas fisicamente. Por fim, Kaempffer desviou o olhar e voltou-se. Ambos sabiam a verdade acerca do SS-Sturmbannführer Kaempffer. Sem uma palavra, ele apanhou seu casacão preto e saiu ruidosamente do quarto. Woermann então fechou calmamente a porta.
Permaneceu imóvel por um momento. Havia deixado queKaempffer lhe fizesse perder a cabeça. Seu controle costumava ser melhor. Aproximou-se do cavalete e ficou olhando para sua tela. Quanto mais examinava a sombra que havia pintado na parede, mais ela lhe parecia um corpo pendurado. A sensação que teve foi de náusea e de desgosto. Imaginara representar o ponto focal do quadro pelo trecho da vila batido pelo sol, mas agora o que mais, lhe chamava a atenção era aquela maldita sombra.
Procurando reagir, voltou à sua mesa e ficou contemplando, ainda uma vez o retrato de Fritz. Quanto mais lidava com homens como Kaempffer, mais se preocupava a respeito de Fritz. Não tivera a mesma preocupação quando Kurt, o filho mais velho, entrara em combate na França no ano anterior. Kurt tinha então dezenove anos e já era cabo. Estava um homem agora.
Fritz, entretanto... eles estavam metendo coisas na cabeça de Fritz, aqueles nazistas. O rapaz havia sido de certo modo induzido, a alistar-se na Jugendjührer local - a Juventude Hitlerista. Quando Woermann esteve em casa, na sua última licença, ficara surpreso e consternado ao ouvir seu filho de quatorze anos repetindo as teses cedidas da superioridade da Raça Ariana e falando do Der Führer com uma reverência que antes era reservada somente a Deus. Os nazistas lhe estavam roubando o filho embaixo de seu nariz e transformando o rapaz em uma serpente como Kaempffer. E Woermann não via nada que pudesse fazer para impedir isso.
Também parecia que não havia nada que pudesse fazer a respeito de Kaempffer. Não tinha hierarquia sobre o oficial da SS. Se Kaempffer resolvesse fuzilar camponeses romenos, não havia maneira de impedi-lo, a não ser prendendo-o. E isso ele não podia fazer. Kaempffer estava lá por ordem do Alto Comando. Prendêlo seria uma insubordinação, um ato de atrevido desafio. Seu espírito prussiano não podia aceitar tal idéia. O exército era sua carreira, seu lar. . . e fora bom para ele durante um quarto de século. Desafiá-lo agora...
Incapaz. Era assim que ele se sentia. Recordou-se de uma clareira perto de Poznan, na Polônia, cerca de ano e meio antes, logo, após o término de um combate. Seus homens estavam instalando, um bivaque quando chegou até eles o ruído de rajadas de metralhadoras procedente de uma elevação distante dali cerca de um quilômetro e meio. Ele fora até lá para investigar. Einsatzkommandos estavam colocando em linha um grupo de judeus - homens e mulheres de todas as idades, até mesmo crianças - e fuzilando-os sistematicamente. Depois que os corpos rolavam para dentro do fosso cavado atrás deles, outro grupo era alinhado e fuzilado. O chão já estava encharcado de sangue e o ar saturado do cheiro de cordite e dos gritos dos que ainda estavam vivos, agonizantes, sobre os quais ninguém se dignou desfechar um coup de grâce.
Ele fora incapaz então, e era incapaz agora. Incapaz de fazer com que esta guerra fosse entre soldados; incapaz de deter o que estava matando seus homens, incapaz de impedir que Kaempffer fuzilasse aqueles camponeses romenos.
Afundou-se em sua cadeira. Que adiantava pensar? Que poderia sequer tentar? Tudo estava mudando para o pior. Ele nascera com o século, um século de esperanças e promessas. Entretanto, já estava lutando em sua segunda guerra, uma guerra que não conseguira compreender.
E no entanto ele desejara esta guerra. Pensara que teria uma oportunidade para acabar com os abutres que se haviam apossado da pátria depois da última guerra, sobrecarregando-a com impossíveis reparações, humilhando-a durante anos e anos. Sua chance chegara e ele participara de algumas das grandes vitórias alemãs. A Wehrmacht era invencível.
Por que, então, se sentia tão descontente? Parecia-lhe impatriótico querer estar fora daquilo tudo e regressar a Rathenow, para junto de Helga. Parecia-lhe também impatriótico sentir-se satisfeito porque seu pai, igualmente oficial de carreira, morrera na Grande Guerra e assim não poderia ver as atrocidades que estavam sendo cometidas em nome da pátria.
E ainda assim, com tanta coisa errada, ele se mantinha na ativa. Por quê? A resposta a isso era a que dera a si mesmo pela centésima ou milésima vez: ele acreditava, do fundo do coração, que o exército alemão acabaria com o nazismo. Os políticos passavam, mas o exército seria sempre o exército. Se ele tivesse forças para suportar tudo, o exército alemão seria vitorioso e Hitler, com seus sequazes, apeados do poder. Ele acreditava nisso. Tinha de acreditar.
Contrariando toda a lógica, ele rezou para que a ameaça de Kaempffer contra os camponeses da vila produzisse o desejado efeito - que não houvesse mais mortes. Entretanto, se isso não desse resultado... se mais um alemão tivesse de morrer naquela noite, Woermann não tinha dúvidas acerca de quem ele desejava que fosse a vítima.
Terça-feira, 29 de abril
1h15m
O Major Kaempffer permanecia acordado em seu saco de dormir, ainda enraivecido pela insolente insubordinação de Woermann. O Sargento Oster, pelo menos, havia sido atencioso. Como quase todos os homens do exército regular, ele se comportou com temerosa obediência ante o uniforme negro e a insígnia da Caveira - sentimento ao qual o comandante de Oster parecia de todo imune. Mas o caso é que Kaempffer e Woermann já se conheciam muito antes de haver a SS.
O sargento providenciara alojamento para as duas esquadras de einsatzkommandos e sugerira um fundo de corredor, na parte traseira do fortim, para colocar os prisioneiros da vila. Uma escolha excelente: O corredor fora escavado na pedra da própria montanha e servia de entrada para quatro grandes quartos. O único acesso à área era feito através de outro longo corredor, vindo diretamente do pátio, em ângulo reto. Kaempffer imaginou que aquela seção servira originariamente como depósito, uma vez que a ventilação era deficiente e não havia lareiras nos quartos. O sargento providenciara também para que em toda a extensão dos dois corredores, desde o pátio até ao granito da montanha no fundo, a iluminação fosse reforçada com novas lâmpadas, tornando virtualmente impossível para qualquer pessoa surpreender os einsatzkommandos que estariam de guarda, aos pares, permanentemente.
Para o Major Kaempffer, pessoalmente, o Sargento Oster reservou um quarto grande, de tamanho duplo, no segundo pavimento da seção traseira do fortim. Sua primeira sugestão fora na torre, mas Kaempffer 'recusara; instalar-se no primeiro ou no segundo pavimento seria uma boa solução, mas com o inconveniente de ficar embaixo de Woermann. O quarto pavimento da torre exigia a subida de um número demasiado de degraus várias vezes por dia. A seção traseira do fortim era melhor. Tinha uma janela que dava para o pátio, uma armação de cama feita por um dos homens de Woermann e uma porta de carvalho, excepcionalmente pesada, com um grande ferrolho. Com seu saco de dormir arrumado sobre a armação, o major se instalou dentro dele, tendo ao lado, ao alcance da mão, uma lanterna elétrica.
Seus olhos se fixaram nas cruzes nas paredes. Parecia haver uma porção delas por toda a parte. Curioso. . . Ele quisera perguntar ao sargento o que elas significavam, mas não achou próprio descer de seu pedestal de quem sabe tudo. Essa postura constituía parte importante da mística da SS e era imprescindível mantê-la. Talvez ainda perguntasse a Woermann - quando se dignasse falar com ele novamente.
Woermann. . . esse nome não lhe saía da cabeça. E a ironia da história estava em que Woermann era a última pessoa no mundo que Kaempffer desejaria ter como companheiro. Com Woermann por perto, ele não poderia representar o tipo de oficial da SS que desejava ser. Bastaria Woermann fixar os olhos nele, atravessar o orgulhoso uniforme da SS e seu simbolismo de poder, para deixar a nu um aterrorizado garoto de dezoito anos. Aquele dia em Verdun representara um ponto de inflexão nas vidas de ambos. . .
. . . os ingleses rompendo as linhas alemãs num contra-ataque de surpresa, o fogo imobilizando Kaempffer, Woermann e toda a companhia, homens morrendo por toda a parte, o metralhador ferido e tombado, os britânicos avançando. . . Recuar e reagrupar era a única coisa a fazer, mas não chegava a ordem do comandante da companhia. . . provavelmente também morto... O Soldado Kaempffer, vendo que toda a sua esquadra fora dizimada, exceto um novo recruta, um voluntário chamado Woermann, de dezesseis anos de idade, jovem demais para lutar. . . fez sinal ao garoto para que fugisse com ele. . . Woermann respondeu negativamente com um movimento de cabeça e rastejou até à plataforma da metralhadora. . . começando a disparar desordenadamente, depois com mais confiança e precisão.. . Kaempffer continuou sua fuga, certo de que os britânicos enterrariam mais um recruta alemão naquele dia.
Woermann, porém, não fora enterrado naquele dia. Conseguira deter o inimigo o tempo suficiente para que a posição fosse reforçada. Por sua conduta, foi promovido e condecorado com a Cruz de Ferro. E quando a Grande Guerra acabou, ele era Fahnenjunker, candidato a oficial, e conseguiu integrar os minúsculos remanescentes do exército que haviam sobrado da derrocada de Versalhes.
Kaempffer, por outro lado, filho de um funcionário de Augsburg, encontrou-se desempregado depois da guerra. Estava desanimado e sem dinheiro, como tantos milhares de veteranos de uma guerra perdida e de um exército derrotado. Não eram heróis, mas apenas um estorvo. Começou por juntar-se ao niilista Freikorps Oberland, e daí. sem muita demora, ao Partido Nazista em 1927; depois de comprovar seu volkisch, sua pura linhagem germânica, alistou-se na SS em 1931. Daí por diante, a SS tornou-se o seu lar. Perdera a família depois da Grande Guerra e jurou que nunca mais ficaria novamente sozinho.
Na SS aprendeu as técnicas do terror e da tortura; aprendeu também as da sobrevivência: descobrir as fraquezas de seus superiores e esconder as próprias da cupidez dos subordinados. Acabou por conquistar a posição de primeiro assistente de Rudolf Hess, o mais eficiente de todos os exterminadores de guetos.
De novo foi tão eficiente que o promoveram ao posto de Sturmbannführer e o designaram para instalar o campo de concentração de Ploiesti.
Kaempffer desejava ardentemente seguir para Ploiesti e iniciar sua tarefa. Só que os invisíveis matadores dos homens de Woermann se interpunham em seu caminho. Precisava eliminá-lo imediatamente. Não se tratava propriamente um problema, mas de uma contrariedade. Queria ver-se livre dela o mais cedo possível, não apenas para poder seguir para seu novo posto, mas também para provar que Woermann não passava de um pobre-diabo incapaz. Uma solução rápida e ele prosseguiria em triunfo, deixando Klaus Woermann para trás - um impotente joão-ninguém.
Ademais, Kaempffer ficaria livre de qualquer coisa que Woermann pudesse dizer a respeito do incidente de Verdun. Se este um dia resolvesse acusá-lo de covardia, Kaempffer se limitaria a alegar que o acusador era um homem frustrado, amargo, atacando malevolamente um colega que tivera êxito na solução de um problema onde o outro fracassara.
Apagou a lanterna que estava no chão. Sim. . . precisava dar uma solução rápida, ainda mais porque uma importante missão aguardava sua atenção.
A única coisa que o preocupava em tudo o que vira era o fato incontestável de que Woermann estava assustado. Realmente assustado. E Woermann não era homem de assustar-se facilmente.
Fechou os olhos e procurou adormecer. Pouco depois, sentiu que o sono o envolvia como um cobertor macio e morno. Estava quase completamente envolto quando teve a impressão de que o cobertor fora violentamente arrancado. Despertou de todo, a pele subitamente úmida e arrepiada de medo. Alguma coisa se encontrava do lado de fora da porta de seu quarto. Não estava vendo nem ouvindo nada, mas sentia que havia ali algo estranho, algo com tão poderosa aura de maldade, em tamanha capacidade de ódio, de tão aguda sede de vingança, que sua presença se fazia sentir através da madeira e da pedra que isolavam o quarto. Estava lá fora, movendo-se ao longo do corredor, passando em frente à porta, e afastando-se. Afastando-se. . .
As batidas de seu coração abrandaram, o suor diminuiu. Esperou mais um pouco, mas afinal se convenceu de que tivera um pesadelo horrível, dos que acontecem nas fases iniciais do sono.
O Major Kaempffer levantou-se de seu saco de dormir e desajeitadamente começou a despir a roupa de baixo. Sua bexiga se esvaziara involuntariamente durante o pesadelo.
Os Soldados Friedrich Waltz e Karl Flick, integrantes da primeira esquadra do Major Kaempffer, montavam guarda, tiritando de frio dentro de seus uniformes negros, com os capacetes brilhando à luz das lâmpadas. Estavam cansados e frustrados. Aquele não era o tipo de serviço que costumavam executar. Lá em Auschwitz eles dispunham de guaritas e alojamentos, aquecidos e confortáveis, onde podiam sentar-se, tomar café e jogar cartas, enquanto os prisioneiros se encolhiam em suas choças geladas. Somente de quando em vez eles deviam fazer uma ronda, percorrendo o perímetro ao ar livre.
Na verdade, eles estavam protegidos ali, mas as condições eram semelhantes às dos prisioneiros no que se referia ao frio e à umidade. Isso não era direito.
O Soldado Flick pôs sua Schmeisser às costas e esfregou as mãos. As pontas dos dedos estavam dormentes, apesar das luvas. Postou-se aoJado de Waltz, que estava apoiado contra a muralha, no ângulo formado pelo encontro dos dois corredores. Desse ponto eles tinham a vantagem de vigiar todo o corredor à esquerda, até o retángulo escuro que era o pátio, e, ao mesmo tempo, manter sob os olhos o bloco das celas dos prisioneiros, à direita.
- Estou ficando doido - disse Waltz. - Vamos fazer qualquer coisa.
- Por exemplo?
- Que tal trazer os prisioneiros para um pouco de Sachsengruss?
- Eles não são judeus.
- Mas também não são alemães.
Flick não tinha pensado nesse detalhe. O Sachsengruss - a saudação saxônia - fora seu processo favorito de dominar os recém-chegados a Auschwitz. Durante horas a fio ele os obrigava a repetir o exercício: os joelhos bem curvados, os braços levantados e as mãos cruzadas atrás da cabeça. Mesmo um homem em excelentes condições físicas ficaria todo dolorido em menos de meia hora. Flick sempre se divertia muito em observar as fisionomias dos prisioneiros quando eles sentiam que seus corpos não suportavam mais, que suas juntas e músculos cediam ante a dor. E a também expressão de medo nos rostos deles, pois que os que caíam, exaustos, eram fuzilados no próprio local ou alvo de pontapés até que retomassem o exercício. Ele e Waltz não iriam bater em nenhum dos romenos naquela noite, mas pelo menos poderiam divertir-se um pouco à custa deles. Infelizmente, a solução era arriscada.
- É melhor esquecer isso - sugeriu Flick. - Somos apenas dois. E se um deles resolve bancar o herói?
- Mas não podemos trazer das celas apenas um par de cada vez? Vamos, Karl! Será divertido!
- Está bem - concordou Flick com um sorriso.
Não seria tão divertido quanto a brincadeira que ele e Waltz costumavam fazer em Auschwitz, onde realizavam concursos para ver quantos ossos de prisioneiros seriam capazes de quebrar, sem que o exercício parasse. De qualquer modo, um pouco de Sachsengruss ajudaria a passar o tempo.
Flick começou a procurar a chave do cadeado que transformara em cela o último quarto do corredor. Havia quatro quartos disponíveis, entre os quais os prisioneiros poderiam ter sido distribuídos; em vez disso, amontoaram todos os dez num único aposento. Rick já antegozava o olhar espantado dos prisioneiros quando abriu a porta - o amedrontado recuo e tremer de lábios ao verem o sorriso dele e perceberem que não deveriam esperar qualquer gesto seu de bondade. Esta idéia lhe deu uma sensação indescritível, maravilhosa, algo tão embriagador que ele desejava prolongar indefinidamente.
Já havia transposto a porta quando a voz de Waltz o deteve.
- Espere um pouco, Karl.
Flick voltou-se. Waltz estava olhando para o corredor, na direção do pátio, com uma expressão de espanto no rosto.
- O que é? - perguntou Flick.
- Algum defeito em uma das lâmpadas lá adiante. A primeira . . . está-se apagando.
- E o que tem isso?
- É que se apaga aos poucos - explicou ele, olhando para Flick e depois novamente para o corredor. - Agora é a segunda que se está apagando! - O tom de sua voz elevou-se um pouco quando ele empunhou sua Schmeisser. - Vamos até lá!
Flick deixou cair a chave, empunhou também sua arma e correu para junto do companheiro. No momento em que chegou à junção dos dois corredores, a terceira lâmpada apagou-se. Embora tentasse, não conseguiu ver mais nada no corredor além das lâmpadas apagadas. Era como se a área tivesse sido mergulhada em impenetrável escuridão.
- Não estou gostando disto - comentou Waltz.
- Nem eu. Mas não vejo uma única alma. Talvez seja o gerador. Ou um fio partido.
Flick sabia que nem ele nem Waltz acreditavam nessa explicação, mas precisava dizer alguma coisa para distrair seu crescente temor. Os einsatzkommandos tinham fama de provocar terror, não de senti-lo.
A quarta lâmpada começou a extinguir-se. A escuridão estaa apenas a alguns passos dali.
- Vamos ficar por aqui - propôs Flick, encostando-se na parede bem iluminada do corredor traseiro. Dali podia ouvir os prisioneiros cochichando no último quarto de trás. Embora não pudessem ver as lâmpadas se apagando, percebiam que alguma coisa estava errada.
Agachado atrás de Waltz, Flick tremia sob a ação do frio crescente ao ver que a iluminação do corredor externo continuava a reduzir-se. Desejava ter alguma coisa em que atirar, mas só conseguia ver a escuridão.
E então a escuridão envolveu-o, gelando-lhe os membros e turvando-lhe a visão. Por um instante - que pareceu prolongar-se por uma eternidade - o Soldado Karl Flick transformou-se numa vítima do implacável terror que ele tanto gostava de provocar nos outros e sentiu na própria carne a insuportável dor que ele tanto gostava de infligir nos outros. Depois, não sentiu mais nada.
Lentamente, a iluminação voltou aos corredores, primeiro no de trás, depois no da passagem de acesso. Os únicos sons vinham dos habitantes da vila presos em sua cela: o sussurro das mulheres e os suspiros de alívio dos homens por se sentirem todos livres do pânico que se apossara deles. Um dos homens tentou aproximar-se da porta, para espiar pela frincha entre as duas metades. Seu campo
de visão se limitava a um trecho do solo e parte da parede traseira do corredor.
Não conseguiu ver nada. O chão estava limpo, exceto quanto a uma mancha de sangue ainda vermelho, ainda úmido, ainda congelando sob a ação do frio. E na parede traseira havia mais sangue, - só que agora, ao invés de resultantes de salpicos, as manchas pareciam ter sido produzidas por um tecido ensangüentado que roçara contra a parede. Essas manchas observavam certa regularidade, como se fossem letras de um alfabeto que ele quase reconhecia, mas formando palavras não identificáveis, palavras que eram como cães uivando dentro da noite, angustiadamente presentes mas sempre fora de alcance.
O homem afastou-se da porta e foi juntar-se aos companheiros agrupados no canto extremo da cela.
Os olhos de Kaempffer mantiveram-se abertos; ele receava que o pesadelo se repetisse. Mas não. Desta vez não sentia uma presença imponderável do outro lado da parede. Agora tratava-se de alguém, de uma pessoa, aliás desajeitada. Se o objetivo do intruso era pregar-lhe um susto, iria falhar deploravelmente. Como estivesse do lado protegido, Kaempffer tirou sua Luger do coldre e preparou-se para resistir.
- Quem está aí?
Silêncio.
O ruído de uma mão tateante, forçando o ferrolho, era agora mais nítido. Kaempffer podia ver interrupções na faixa de luz que aparecia por baixo da porta, mas elas não lhe permitiam identificar quem poderia estar do outro lado. Pensou em acender a lanterna, mas desistiu. O quarto escuro dava-lhe uma vantagem: um intruso ficaria com sua silhueta destacada contra a luz do corredor.
- Identifique-se!
As sacudidas no ferrolho cessaram, substituídas por um leve rangido e estalidos, como se algum objeto muito pesado estivesse sendo empurrado contra a porta, tentando derrubá-la. Kaempffer não podia ter certeza, tal era a escuridão, mas pareceu-lhe ter visto a porta abaular-se para o lado de dentro. E eram duas polegadas de madeira de lei! Seria necessário um peso enorme para produzir tal efeito. Quando os estalidos da madeira se acentuaram, ele começou a tremer e a suar. Não havia como fugir. E agora se ouvia um outro ruído, como se alguém estivesse arranhando na porta, querendo entrar - um ruído cada vez mais forte, que o paralisava completamente. A madeira estava cedendo, prestes a estilhaçar-se em milhares de fragmentos; as dobradiças gemeram, como se estivessem sendo arrancadas de seus encaixes na rocha. Não demoraria para que uma ruptura se produzisse. Kaempffer sabia que precisava colocar um pente de balas em sua Luger, mas não conseguia fazer um movimento.
O ferrolho cedeu de repente e a porta se abriu, batendo contra a parede. Dois vultos se destacaram contra a luz do corredor. Pelos capacetes, Kaempffer reconheceu que se tratava de soldados alemães; pelas botas, concluiu que eram dois dos einsatzkommandos que tinham vindo com ele. Deveria sentir-se mais tranqüilo à vista de seus dois comandados, mas por algum motivo mostrou-se irritado. Que maneira era aquela de lhe invadirem o quarto?
- O que significa isto? - perguntou.
Não houve resposta. Ao invés de falar, os dois homens deram ao mesmo tempo um passo à frente, na direção do catre onde Kaempffer se encontrava, imobilizado de terror. Havia qualquer coisa postada à sua frente. Quando seus dedos trémulos encontraram desordenado, mas certo bamboleio grotesco. Por um angustiante segundo, o Major Kaempffer pensou que os soldados iriam passar por cima dele, mas pararam justamente à beira do catre, ao mesmo tempo, como que obedecendo a um comando. Nenhum deles pronunciou uma única palavra. Também não fizeram continência.
- O que querem vocês?
Kaempffer desejava mostrar-se furioso, mas a raiva não conseguia vencer o medo. Apesar de seus esforços, o corpo todo lhe tremia sob as cobertas.
- Digam alguma coisa!
Já era uma súplica. Não obteve resposta. Com a mão esquerda conseguiu alcançar a lanterna elétrica no chão, junto à cama, sempre mantendo a Luger na mão direita, apontada para a dupla silenciosa postada à sua frente. Quando seus dedos trémulos encontraram o interruptor da lanterna, ele hesitou, ouvindo sua própria respiração ofegante. Precisava ver quem eram aqueles homens e o que queriam, mas uma parte de seu ser aconselhava-o a não acender a luz.
Finalmente, não suportou mais. Com um gemido, apertou o interruptor e levantou a lanterna.
Os Soldados Flick e Waltz estavam em pé à sua frente, os rostos pálidos e contorcidos, os olhos esgazeados. . . Um pedaço de carne ensangüentado e arrancado pendia da parte que constituía a garganta de ambos. Ninguém se moveu... Os dois soldados mortos não queriam, Kaempffer não podia. Este permaneceu paralisado pelo terror, a lanterna na mão, a boca tentando inutilmente articular um grito de socorro, um som qualquer que fosse capaz de emitir.
Houve, então, um movimento. Silenciosamente, quase delicadamente, os dois soldados se inclinaram para frente e caíram em cima do comandante, imobilizando-o em seu saco de dormir, sob o peso de cento e tantos quilos de carne morta.
Enquanto lutava freneticamente para livrar-se dos dois cadáveres, Kaempffer ouviu que uma voz ao longe, começava a gritar, tomada de pânico mortal. Uma parte isolada de seu cérebro conseguiu fixar-se naquele som até identificá-lo.
Era a sua própria voz.
- Agora você acredita?
- Acredita em quê?
Kaempffer evitava encarar Woermann, preferindo concentrar sua atenção no copo de kiimmel que segurava com as duas mãos. De um só trago ele bebera a metade e agora sorvia o restante. Lenta e penosamente, começou a sentir que estava conseguindo controlar-se, ajudado ainda pelo fato de encontrar-se nos aposentos de Woermann e não nos seus próprios.
- Que os processos da SS não servem para resolver este problema.
- Os processos da SS sempre dão resultado.
- Não desta vez.
- É que mal começamos! Ainda não morreu nenhum habitante da vila!
Enquanto falava, Kaempffer admitiu para si mesmo que a situação que enfrentava estava inteiramente além da experiência de qualquer um na SS. Como não havia precedentes, ele não tinha para quem apelar, em busca de conselhos. Existia no fortim algo que transcendia o medo, a coerção, algo excepcionalmente capaz de usar o temor como arma própria. Não se tratava de guerrilheiros, de um grupo do Partido Nacional Camponês, mas de alguma coisa que nada tinha a ver com guerra, nacionalidade ou raça.
Todavia, os prisioneiros da vila deveriam ser fuzilados ao amanhecer. Não poderia libertá-los - isso seria admitir a derrota, e ele, juntamente com a SS, perderia toda a autoridade. Jamais permitiria que tal acontecesse. Não fazia diferença se as mortes dos camponeses provocariam ou não efeitos sobre. . . a coisa que estava matando os homens. Os prisioneiros tinham de morrer.
- E não morrerão - falou Woermann.
- O que foi que você disse? - interpelou Kaempffer, finalmente tirando os olhos do copo de kümmel.
- Os habitantes da vila. . . deixei que eles fossem embora
- Como ousou fazer isso?
Falava agora com raiva, começando a sentir-se novamente superior. Ergueu-se da cadeira.
- Você um dia ainda me vai agradecer por não ser obrigado a explicar o fuzilamento sistemático de toda a população de uma vila romena, pois é isso o que ocorreria. Conheço bem as pessoas de seu tipo. Uma vez tomada uma decisão, por mais tola que seja por mais danos que provoque, você preferirá continuar do que admitir que cometeu um engano. Por isso estou impedindo que você comece. Agora pode descarregar em cima de mim a culpa por seu fracasso. Assumo a responsabilidade e podemos procurar um lugar mais seguro para alojar nossos homens.
Kaempffer sentou-se de novo, mentalmente admitindo que a providência de Woermann lhe resolvera um problema. Entretanto, ficara de mãos amarradas. Não poderia confessar, em um relatório à SS, que fracassara. Isso significaria o fim de sua carreira.
- Não vou desistir - disse ele a Woermann, tentando mostrar-se teimosamente corajoso.
- O que mais pode você fazer? Lutar contra o desconhecido?
- Lutarei!
- De que modo? - perguntou Woermann, cruzando as mãos sobre os joelhos. - Você nem sequer sabe contra o que está lutando. Como poderá atacá-lo?
- Com armas, com fogo! Com. . . - Kaempffer recuou na cadeira, instintivamente, quando Woermann se inclinou na sua direção; amaldiçoando-se pelo recuo, reconhecia no entanto que fora impotente para evitar o reflexo.
- Escute o que lhe digo, Herr Sturmbannführer - falou Woermann. - Aqueles homens já estavam mortos quando entraram em seu quarto esta noite. Mortos! Encontramos o rastro do sangue deles ao longo do corredor. Eles morreram na prisão que você improvisou. Apesar disso, percorreram todo o corredor até seu quarto, arrombaram a porta, caminharam até sua cama e caíram em cima de você. De que jeito você vai lutar contra um fenômeno assim?
Kaempffer estremeceu ao ouvir a descrição.
- Eles não estavam mortos antes de chegarem ao meu quarto! Fiéis ao sentimento de lealdade, tinham vindo apresentar-se, apesar de mortalmente feridos!
Não acreditava em uma única palavra do que dizia. A explicação foi feita automaticamente.
- Eles estavam mortos, meu amigo - replicou Woermann, sem o menor traço de amizade em sua voz. - Você não examinou os corpos deles. . . estava muito ocupado em limpar a sujeira de suas ceroulas. Mas eu examinei, do mesmo modo que examinei cada homem que morreu neste desgraçado fortim. E creia, aqueles dois homens morreram de repente. Todos os principais vasos sangüíneos de seus pescoços foram rebentados. O mesmo aconteceu com suas traquéias. Ainda que você fosse o próprio Himmler, eles não poderiam ter-se apresentado.
- Então foram carregados!
Apesar de tudo o que havia visto com seus próprios olhos, ele tentava encontrar outra explicação. Mortos não caminham. Eles não podiam ter andado tanto!
Woermann se recostou na cadeira e ficou olhando para Kaempffer com tamanho desdém que este se sentiu pequeno e desnudado.
- Lá na SS eles também ensinam as pessoas a mentir para si mesmas?
Kaempffer não respondeu. Não precisava de nenhum exame médico dos corpos para saber que eles já estavam mortos quando entraram no quarto. Certificou-se disso no instante em que a luz de sua lanterna iluminara os rostos deles.
Woermann levantou-se e caminhou para a porta.
- Vou avisar os homens de que partiremos ao amanhecer.
- NÃO! - A palavra foi pronunciada em tom mais agudo do que ele desejara.
- Você não pretende realmente ficar aqui, não é verdade? - perguntou Woermann com expressão incrédula.
- Devo cumprir minha missão!
- Mas não pode! Você perderá! Certamente está vendo issoagora!
- Vejo apenas que devo mudar meus métodos.
- Somente um louco ficaria aqui!
Não quero ficar - pensou Kaempffer. Ninguém mais do que eu deseja ir embora! Em quaisquer outras circunstâncias, ele teria dado imediatamente ordem de partida, mas essa não era uma de suas opções. Tinha de resolver o problema do fortim - resolvê-lo rápida e cabalmente - antes de poder seguir para Ploiesti. Se fracassasse naquela missão, haveria dezenas de oficiais da SS aguardando sua vez na execução do projeto Ploiesti. Ao menor sinal de fraqueza, ele perderia o lugar. Precisava ter êxito no fortim. Caso contrário, seria deixado para trás, esquecido em alguma função secundária na retaguarda, enquanto outros na SS assumiriam a direção do mundo.
No entanto necessitava do auxílio de Woermann. Tinha de convencê-lo a permanecer ali mais alguns dias, até que encontrassem uma solução. Depois, ele o denunciaria, a fim de que fosse julgado por uma corte marcial por ter libertado os camponeses.
- Que é que você pensa que está causando isso, Klaus? - perguntou suavemente.
- Isso o quê? - replicou Woermann, num tom de voz que traía seu aborrecimento, as palavras propositadamente secas.
- As mortes. . . Quem ou o que você acha que está fazendo isso?
Woermann sentou-se novamente, a fisionomia fechada.
- Francamente, não sei. E, nesta altura, já não me interessa saber. Há agora oito cadáveres no porão e temos de providenciar para que o número deles não aumente.
- Ora, vamos, Karl. Você já está aqui há uma semana. . . deve ter formado uma idéia.
Continue falando, disse Kaempffer para si mesmo. Quanto mais você falar, mais tempo terá antes de voltar para aquele quarto.
- Os homens acham que se trata de um vampiro.
Um vampiro! Esse não era o tipo de conversa de que ele necessitava, mas esforçou-se por manter sua voz em tom baixo e amistoso.
- E você concorda?
- Na semana passada - meu Deus, apenas três dias atrás! - eu teria respondido não. Agora, já não estou tão certo. Aliás, não estou certo de coisa alguma. Se se tratar de um vampiro, não será como esses que você lê nas histórias de horror ou vê no cinema. A única coisa de que tenho certeza é que o assassino não é humano.
Kaempffer tentou relembrar tudo o que sabia a respeito das lendas dos vampiros. Seria essa coisa que matava os homens, chupando-lhes o sangue? Quem poderia saber? As gargantas das vítimas ficavam de tal maneira estraçalhadas e havia tanto sangue ensopando as roupas, que seria necessário um exame de laboratório para avaliar a quantidade que estava faltando. Ele vira uma vez, no tempo do cinema mudo, um filme de piratas, Nosferatu, e assistira à versão americana de Drácula, com legendas em alemão. Isso já fazia muito tempo e nessa época a idéia de um vampiro parecia tão fantasiosa quanto o merecia. Agora, porém. .. Certamente não se tratava de nenhum eslavo, com o nariz em forma de bico e vestido a rigor, andando furtivamente pelo fortim. A verdade é que existiam oito cadáveres no porão. Todavia ele não poderia chegar ao ponto de armar seus homens com chuços e forcados.
- Acho que devemos ir às fontes - disse ele, quando seus pensamentos chegaram a um impasse.
- E onde estão elas?
- Não c onde, é quem. Preciso encontrar o dono do fortim. Esta estrutura foi construída por uma razão que ignoramos e está sendo mantida em perfeitas condições. Deve haver uma explicação para isso.
- Alexandru e seus filhos não sabem quem é o dono.
- Isso é o que eles dizem.
- Por que iriam mentir?
- Todo o mundo mente. Alguém pode estar pagando para tanto.
- O dinheiro é entregue ao dono da estalagem e ele o distribui entre Alexandru e seus filhos.
- Então interrogaremos o estalajadeiro.
- Você pode também pedir-lhe para traduzir as palavras escritas na parede.
- Que palavras? Que paredes? - perguntou Kaempffer, espantado.
- Lá onde morreram os seus dois homens. Há qualquer coisa escrita na parede com o sangue deles.
- Em romeno? Woermann sacudiu os ombros.
- Não sei. Nem sequer conheço as letras, quanto mais as palavras.
Kaempffer pôs-se em pé de um salto. Ali estava alguma coisa de que ele podia tratar.
- Mande chamar esse estalajadeiro!
O homem se chamava luliu.
Era um sujeito grandalhão, com seus cinqüenta e tantos anos, um começo de calvície e bigode. Suas gordas bochechas, com uma barba de pelo menos três dias, tremiam de frio, como todo o seu corpo dentro da camisola de dormir, enquanto aguardava no corredor traseiro, onde seus vizinhos tinham sido aprisionados.
Quase como nos velhos tempos - pensou Kaempffer, observando a cena oculto na sombra de um dos quartos. Já se sentia de novo mais senhor de si. A fisionomia assustada do homem trouxe-lhe à lembrança os anos iniciais com a SS em Munique, quando eles arrancavam os judeus do calor de suas camas, altas horas da manhã, batiam neles em frente às respectivas famílias e se divertiam ao vê-los suar de terror no frio da madrugada.
O estalajadeiro, porém, não era judeu.
Isso, realmente, não fazia grande diferença. Judeu, franco-maçom, cigano, romeno, o que de fato interessava a Kaempffer era destruir senso de autocontentamento, de autoconfiança, de segurança da vítima; ao mesmo tempo, saber-se seguro de que sua vontade era temida, de que não haveria tranqüilidade para os prisioneiros enquanto ele estivesse por perto.
Deixou o estalajadeiro tiritando de frio sob a lâmpada durante o maior tempo que sua paciência suportou. luliu fora levado para o local onde os dois einsatzkommandos haviam sido mortos. Tudo o que, mesmo remotamente, se parecesse com um manuscrito ou um bloco de anotações tinha sido retirado da estalagem e despejado numa pilha atrás do homem. Os olhos deste vagavam das manchas de sangue no chão para os rabiscos também de sangue na parede de trás, ou para os rostos implacáveis dos quatro soldados que o haviam arrancado da cama, para depois atirá-lo sobre as manchas no chão. Kaempffer achou penoso olhar para aqueles restos de sangue que lhe traziam à lembrança as duas gargantas estraçalhadas de onde eles haviam emanado e o peso dos dois cadáveres sobre seu corpo.
Quando o Major Kaempffer começou a sentir que seus próprios dedos se tornavam dormentes sob a ação do frio, apesar das luvas de couro, aproximou-se de luliu e o encarou. Ao ver o oficial da SS, completamente uniformizado, luliu deu um passo atrás e quase caiu sobre seus livros.
- Quem é o proprietário do fortim? - perguntou Kaempffer abruptamente.
- Não sei, Herr Oficial.
Os conhecimentos de alemão do estalajadeiro revelavam-se precários, mas era mais conveniente falar sem a intervenção de um intérprete. Deu uma bofetada em luliu com as costas de sua mão enluvada. O gesto não significava maldade, mas apenas o procedimento de rotina.
- Quem é o proprietário do fortim?
- Não sei. Nova bofetada.
- Quem é?
O estalajadeiro cuspiu sangue e começou a chorar. Ótimo. Ele estava cedendo.
- Não sei! - gritou luliu.
- Quem fornece o dinheiro para pagar os zeladores?
- Um mensageiro.
- Mandado por quem?
- Não sei. Ele nunca disse. Parece que é um banco. Vem duas vezes por ano.
- Você terá de assinar um recibo ou descontar um cheque. Qual é o procedimento?
- Assino uma carta. No cabeçalho está impresso Banco Mediterrâneo da Suíça. Em Zurique.
- E sob que forma vem o dinheiro?
- Em ouro. Moedas de ouro de vinte lei. Pago Alexandra e ele paga os filhos. Sempre tem sido assim.
Kaempffer ficou observando luliu enxugar os olhos e procurar recompor-se. Era o último elo da cadeia. Teria agora de apelar para a central da SS, a fim de descobrir, junto ao Banco Mediterrâneo em Zurique, quem estava enviando moedas de ouro para um estalajadeiro nos Alpes da Transilvânia. E daí, chegar ao titular da conta e, conseqüentemente, ao proprietário do fortim.
E depois?
Não sabia, mas era a única providência que lhe ocorria tomar no momento. Voltou-se e ficou olhando as palavras rabiscadas na parede atrás dele. O sangue - sangue de Flick e de Waltz - com que as palavras tinham sido escritas, já havia secado e adquirido uma cor vermelho-escura. Muitas das letras estavam ou desajeitadamente desenhadas ou eram completamente distintas de quaisquer outras que ele jamais vira. Outras eram identificáveis. No conjunto, não formavam sentido. Todavia, deveriam significar alguma coisa.
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Apontou para as palavras.
- O que está escrito ali?
- Não sei, Herr Oficial - respondeu o estalajadeiro, apavorado com o brilho azul dos olhos de Kaempffer. - Por favor. . . acredite. Realmente não sei.
Pela expressão da fisionomia de luliu e pelo som de sua voz, Kaempffer sabia que o homem estava dizendo a verdade. Isso, porém, não era uma consideração real - nunca fora nem nunca seria. O romeno deveria ser pressionado ao máximo, golpeado e quebrado para que, ao regressar ao convívio dos habitantes da vila, espalhasse a fama do tratamento desumano que aquele oficial de uniforme preto infligia aos prisioneiros. Então, eles compreenderiam que era necessário cooperar, que deveriam vir rastejando oferecer seus serviços à SS.
- Você está mentindo! - berrou Kaempffer, batendo mais uma vez no rosto de luliu. - Estas palavras são romenas! Quero saber o que elas dizem!
- Elas se parecem, Herr Oficial - respondeu luliu, encolhendo-se todo de medo e de dor. - Mas não são romenas. Não tenho idéia do que significam.
A declaração estava de acordo com o que Kaempffer concluíra, folheando seu dicionário. Ele vinha estudando romeno e seus dialetos desde o primeiro dia em que tivera notícia do projeto Ploiesti. Agora conhecia um pouco de romeno da Dácia e esperava que dentro de mais algum tempo pudesse falar fluentemente o dialeto. Não queria que nenhum romeno, que fosse trabalhar com ele, pensasse que poderia ocultar qualquer coisa falando perto dele no idioma local.
Entretanto, havia ainda três outros dialetos principais que variavam bastante uns dos outros. As palavras escritas na parede, embora similares às romenas, não pareciam pertencer a nenhum deles.
luliu - talvez o único homem alfabetizado na vila - não as reconhecia. Ainda assim, teria de sofrer.
Kaempffer afastou-se dele e dos quatro einsatzkommandos que estavam por perto. Não se dirigiu a nenhum deles especificamente, mas a ordem foi entendida.
- Ensinem a ele a arte de traduzir.
Houve um instante de expectativa, depois um golpe surdo, seguido de um grito de dor. Kaempffer não precisava esperar. Um de seus guardas batera com a ponta do cano de seu fuzil na altura dos rins de luliu - uma pancada violenta que o fez cair de joelhos. Agora os quatro se amontoavam em torno dele, preparando-se para pisar com o salto de suas botas polidas em todas as partes sensíveis do corpo da vítima. E eles sabiam bem onde pisar.
- Já chega! - disse uma voz que Kaempffer reconheceu logo como sendo a de Woermann.
Desobedecido em suas instruções, voltou-se para enfrentar o insolente. Era um ato de insubordinação, uma afronta direta contra sua autoridade! No momento, porém, que abriu a boca para recriminar Woermann, notou que a mão do capitão segurava o cabo da pistola. Certamente não iria usá-la, mas, pelas dúvidas...
Os einsatzkommandos ficaram olhando para seu comandante, não muito seguros da atitude que ele iria tomar. Kaempffer tentou dizer-lhes que continuassem no cumprimento da ordem, mas percebeu que não poderia. O olhar firme e a atitude de desafio de Woermann fizeram com que ele hesitasse.
- Este sujeito se recusou a cooperar - disse ele, em tom incerto.
- E por isso você manda bater nele até torná-lo inconsciente - ou morto, talvez - pensando obter o que deseja? Como é inteligente! - acrescentou Woermann, aproximando-se de luliu, enquanto calmamente empurrava os einsatzkommandos para os lados, como se fossem objetos inanimados. Olhou para o estalajadeiro que gemia no chão, depois encarou cada um dos guardas. – É assim que procedem as tropas alemãs para a maior glória da pátria? Aposto que as mães e os pais de vocês adorariam estar aqui, vendo bater em um pobre homem até matá-lo. Quanta bravura! Por que vocês não os convidam um dia? Ou quem sabe vocês também bateram neles até à morte, na última vez que estiveram em casa, de licença?
- Devo avisá-lo, capitão... - começou Kaempffer, mas Woermann já voltara sua atenção para o estalajadeiro.
- O que pode você dizer-nos, relativamente ao fortim, que já não seja de nosso conhecimento?
- Nada - respondeu luliu, ainda no chão.
- Uma dessas histórias que as mulheres contam, alguma lenda para assustar as crianças?
- Passei toda a minha vida aqui e jamais ouvi qualquer história assim.
- Nem mortes no fortim?
- Nunca.
Kaempffer, que observava atentamente a fisionomia do estalajadeiro, notou nela um raio de esperança, como se lhe tivesse ocorrido uma solução para sobreviver ao horror daquela noite.
- Talvez haja alguém que possa ajudá-los. Se ao menos eu pudesse dar uma olhadela no meu caderno de notas. . . -. acrescentou, indicando a pilha de papéis que se encontrava no chão.
Depois que Woermann lhe deu permissão, com um sinal de cabeça, ele rastejou até encontrar um velho volume, com capa de pano, diferente dos demais. Folheou-o apressadamente até achar o que procurava.
- Aqui está! Ele esteve aqui três vezes nos últimos dez anos, cada vez mais doente e sempre acompanhado da filha. Sei que é um grande professor da Universidade de Bucareste e um estudioso da história desta região.
- Quando foi que ele esteve aqui pela última vez? - perguntou Kaempffer, agora interessado.
- Há uns cinco anos - respondeu luliu, esquivando-se de Kaempffer.
- Que quer você dizer com "doente"? - perguntou Woermann.
- Da última vez ele só podia caminhar com o auxílio de duas bengalas.
Woermann apanhou o livro que estava nas mãos de luliu.
- Como é o nome dele?
- Professor Theodor Cuza.
- Vamos fazer votos para que ele ainda esteja vivo - disse Woermann, entregando o livro a Kaempffer. - Estou certo de que a SS dispõe em Bucareste de meios suficientes para encontrá-lo, se ele viver. Sugiro que não perca tempo.
- Eu nunca perco tempo, capitão - replicou Kaempffer, tentando recuperar parte do prestígio que certamente perdera perante seus homens. Jamais perdoaria Woermann por aquilo. - Quando você passar pelo pátio já encontrará meus homens ocupados em derrubar paredes e remover pedras. Espero que você ordene aos seus subordinados que os ajudem logo que puderem. Enquanto esperamos a resposta do Banco Mediterrâneo em Zurique e que o professor seja encontrado, todos nós nos concentraremos em desmantelar esta estrutura, pedra por pedra. Se não obtivermos informações úteis do banco ou do professor, já teremos acabado com qualquer esconderijo possível dentro do fortim.
- Suponho que é melhor do que ficar sentado por aí, esperando ser morto - comentou Woermann, sacudindo os ombros. .- Mandarei que o Sargento Oster se apresente a você, a fim de coordenar os detalhes do trabalho.
Agachou-se, ajudou luliu a ficar de pé e, enquanto o empurrava pelo corredor, disse:
- Estarei bem atrás de você para certificar-me de que a sentinela não irá impedi-lo de sair.
Entretanto, o estalajadeiro deteve--se por um instante e disse algumas palavras ao ouvido do capitão. Woermann começou a rir.
Kaempffer sentiu o rosto em brasa, dominado pela raiva. Aqueles dois estavam falando mal dele, ridicularizando-o.
- Qual é a graça, capitão?
- Esse Professor Cuza - explicou Woermann, cessando de rir, mas conservando um ar de zombaria no rosto -, o homem que talvez saiba algo que possa manter vivos alguns de nós. . . esse homem é judeu!
A risada do capitão ecoou ainda uma vez pelas paredes do fortim, enquanto ele atravessava o pátio.
Terça-feira, 29 de abril
10h20m
As violentas, insistentes batidas na porta sacudiram todo o apartamento.
- Abram!
Magda ficou um instante sem voz, depois conseguiu fazer a pergunta cuja resposta já sabia qual era:
- Quem está aí?
- Abram imediatamente!
Magda, vestida com uma blusa simples e uma longa saia, a farta cabeleira castanha ainda por pentear, estava em pé junto à porta, procurando ocultar o pai, sentado em sua cadeira de rodas atrás da escrivaninha.
- É melhor deixá-los entrar - disse ele com voz calma que ela sabia ser forçada. Sua fisionomia se mantinha impassível, mas os olhos revelavam temor.
Magda correu o ferrolho e recuou, como se receasse ser atropelada. Foi bom que ela procedesse assim pois a porta se escancarou e dois membros da Guarda de Ferro - o equivalente romeno das tropas de choque alemãs - invadiram a sala, de armas em punho.
- Esta é a residência de Cuza - disse um deles. Deveria ser uma pergunta, mas a frase foi pronunciada em tom de declaração, como que ameaçando quem ousasse discordar.
- É - respondeu Magda, recuando para junto de seu pai. - O que desejam?
- Estamos procurando por Theodor Cuza. Onde está ele?
- Sou eu - disse Papai.
Magda mantinha-se a seu lado, uma das mãos pousada protetoramente no encosto de madeira da cadeira de rodas. A moça estava assustada. Chegara, afinal, aquele dia que ela tanto temia, certa de que seriam arrastados para um campo de concentração, onde seu pai não sobreviveria sequer uma noite. Ambos sempre recearam que o anti-semitismo daquele regime se transformasse em um horror institucionalizado semelhante ao da Alemanha.
Os dois guardas olharam para Papai. O de trás, que parecia ser o mais graduado, avançou e tirou do cinto uma folha de papel. Olhou para ela, depois para o velho.
- O senhor não pode ser Cuza. Ele tem cinqüenta e seis anos. O senhor é bem mais idoso.
- Apesar disso, sou eu mesmo.
Os dois guardas olharam para Magda.
- É verdade? Este é o Professor Theodor Cuza, da Universidade de Bucareste?
Magda, que estava terrivelmente amedrontada, ofegante, incapaz de falar, limitou-se a concordar com um aceno de cabeça.
Os dois Guardas de Ferro hesitaram, sem saber o gue deveriam fazer.
- Que querem vocês de mim? - perguntou Papai.
- Temos ordens para levá-lo à estação da estrada de ferro e acompanhá-lo até ao entroncamento em Campina, onde o senhor será recebido por representantes do Terceiro Reich. A partir de lá. . .
- Alemães? Mas por quê?
- O senhor não tem direito de perguntar. A partir de lá...
- O que quer dizer que eles também não sabem - Magda ouviu seu pai murmurar.
- ... o senhor será escoltado até o passo Dinu.
O rosto de Papai refletiu a surpresa estampada no de Magda, mas ele se recobrou rapidamente.
- Eu gostaria de agradecer-lhes muito, senhores - disse Papai, abrindo as mãos retorcidas, como sempre dentro das luvas de algodão -, pois há poucos lugares no mundo mais fascinantes do que o passo Dinu. Entretanto, como podem ver, não estou no momento em condições de viajar.
Os dois Guardas de Ferro permaneceram em silêncio, indecisos, contemplando o velho em sua cadeira de rodas. Magda podia perceber a reação deles. Seu pai não era mais do que um esqueleto animado, com sua pele baça e transparente, sua cabeça com ralos fios de cabelos brancos, seus dedos rígidos, encurvados, parecendo garras mesmo sob as luvas, e seus braços e pescoço tão finos como se fossem feitos apenas de pele e ossos. Seu aspecto era de uma fragilidade tal que dava a impressão de ter mais de
oitenta anos. Todavia, os documentos se referiam a um homem de cinqüenta e seis.
- Ainda assim, o senhor tem de vir conosco - disse o líder.
- Ele não pode,! - protestou Magda. - Acabará morrendo numa viagem como essa!
Os dois guardas se entreolharam. Era fácil perceber o que pensavam: haviam recebido ordens para encontrar o professor Cuza e providenciar para que ele fosse levado até o passo Dinu o mais rapidamente possível. E vivo, naturalmente. Entretanto, o homem que se encontrava à frente deles parecia não ter nem sequer condições para chegar até à estação.
- Se eu contar com a presença dedicada de minha filha - Magda ouviu seu pai dizer - talvez consiga viajar.
- Não, Papai! Você não pode! Que estava ele dizendo?
- Magda... estes homens vieram buscar-me. Para que eu possa sobreviver, você deve vir comigo. - Olhou fundo nos olhos dela e insistiu: - Você deve.
- Sim, Papai - replicou a filha, sem poder imaginar o que ele tinha em mente, mas sabendo que tinha de obedecer. Era seu pai.
- Você tem idéia de qual é a direção para onde vamos, minha querida? - perguntou ele, continuando a fitá-la.
Ele estava tentando dizer-lhe alguma coisa, tentando despertar-lhe uma lembrança. Então ela se recordou do sonho que tivera uma semana antes e da mala com roupas, ainda debaixo de sua cama.
Os dois homens da Guarda de Ferro estavam sentados à frente deles, no carro de passageiros, entretidos com uma conversa em voz baixa, de quando em vez comentando a pesada roupa de Magda. Papai estava sentado junto à janela, as mãos metidas em luvas duplas, de couro e algodão, e apoiadas em seu colo. Bucareste estava desaparecendo atrás deles; pela frente, tinham uns oitenta e cinco quilômetros de estrada de ferro - cinqüenta e cinco até Ploiesti, e cerca de trinta para o norte, até Campina. Depois disso o meio de transporte deveria ser penoso. Magda rezava para que o esforço não fosse demasiado para Papai.
- Você sabe por que eu lhes disse que queria traze-la comigo? - perguntou ele, com sua voz seca.
- Não, Papai. Não vejo razão para nenhum de nós dois viajar. Você poderia ter-se descartado disso. Bastava que os chefes deles olhassem para você e logo concluiriam que suas condições não lhe permitiam viajar.
- Eles não se importariam. Aliás, estou bem melhor do que pareço - não com saúde, segundo os padrões normais, mas certamente também não o cadáver ambulante que pareço ser.
- Não fale assim,!
- Deixei de mentir para mim mesmo há muitos anos, Magda. Quando me disseram que eu tinha artrite reumática, sabia que estavam errados. E estavam mesmo. Eu tinha algo pior. Mas aceitei o que estava me acontecendo. Não há cura e não me sobra muito tempo ainda. Assim, acho que devo aproveitá-lo da melhor maneira possível.
- Você não precisava apressar-se tanto para ser levado ao passo Dinu!
- Por que não? Sempre adorei o passo Dinu. É um lugar tão bom como qualquer outro para morrer. E acabariam por me trazer de qualquer jeito. Eles me querem lá por alguma razão e me levariam mesmo num carro fúnebre. Mas você sabe - acrescentou baixando a voz - por que lhes disse que queria que você me acompanhasse?
Magda considerou a pergunta. Seu pai nunca deixara de ser o professor, sempre fazendo o papel de Sócrates, formulando perguntas sobre perguntas, conduzindo o interlocutor a uma conclusão. Magda muitas vezes achava o processo monótono e procurava descobrir a conclusão o mais rapidamente possível. Agora, entretanto, estava por demais tensa, incapaz de tentar prosseguir no jogo.
- Por ser sua enfermeira, como de costume! Que mais haveria de ser.
Mal acabara de pronunciar aquelas palavras, Magda já se sentia arrependida de sua rispidez, mas seu pai não pareceu ter notado nada. Estava tão interessado no que queria dizer, que nem percebera a irritação da filha.
- Sim, é isso mesmo que quero que eles pensem. Na realidade, porém, é a chance que você terá de sair do país! Quero que você vá ao passo Dinu comigo, mas, logo que surja uma oportunidade, deverá fugir e esconder-se nas montanhas.
- Isso não, Papai!
- Escute - disse ele, falando junto ao ouvido da filha. - Uma oportunidade como esta jamais se repetirá. Já estivemos nos Alpes uma porção de vezes. Você conhece bem o passo Dinu. O verão está próximo. Você pode esconder-se por uns dias e depois seguir rumo ao sul.
- Para onde?
- Não sei... para qualquer lugar! Para sair do país, da Europa! Vá para a América! Para a Turquia! Para a Ásia; Para qualquer lugar, mas fuja!
- Uma mulher viajando sozinha em tempo de guerra - disse Magda, encarando seu pai e tentando evitar que sua voz fosse desdenhosa. Ele não estava mais raciocinando com clareza. - Até onde você pensa que eu conseguiria ir?
- Você precisa tentar,! - suplicou ele, com os lábios trêmulos.
- Papai, o que está havendo de errado?
Ele ficou olhando para a janela durante longo tempo. Quando finalmente respondeu, sua voz mal se ouvia.
- Está tudo acabado para nós. Eles vão tirar todos nós do continente.
- Nós quem?
- Os judeus! Não resta a menor esperança para nós na Europa. Talvez noutro lugar.
- Não seja assim...
- É a verdade! A Grécia acabou de render-se. Você já se deu conta de que, desde que atacaram a Polônia, ano e meio atrás, eles não perderam uma única batalha? Ninguém foi capaz de resistir-lhes por mais de seis semanas! Nada pode detê-los! E aquele demente que os lidera pretende erradicar-nos todos nós, judeus, da face da terra! Você ouviu as histórias do que aconteceu na Polônia, não foi? Pois o mesmo vai acontecer aqui. O fim dos judeus romenos somente foi retardado porque o traidor Antonescu e a Guarda de Ferro estão se digladiando. Mas, como parece que nos últimos meses eles conseguiram aplainar suas diferenças, não nos restará muito tempo.
- Você está enganado, Papai - atalhou Magda nervosamente. Essa espécie de conversa a aterrorizava. - O povo romeno nunca aceitará isso.
Ele voltou a encará-la, os olhos fuzilando.
- Não aceitará? Olhe para nós. Veja o que aconteceu até agora. Alguém protestou quando o governo começou a romeiuzação de todas as propriedades e indústrias que estavam nas mãos dos judeus? Houve um único de meus colegas na universidade - amigos fiéis durante décadas! - que tivesse ousado questionar a minha demissão? Nenhum! E teve algum deles um dia a coragem de vir visitar-me, saber notícias minhas? - Sua voz começava a falhar. - Nenhum!
Voltou o rosto para a janela e permaneceu em silêncio. Magda procurou alguma coisa para dizer, a fim de consolá-lo, mas nada lhe ocorreu. Sabia que as faces dele estariam molhadas de lágrimas se a doença não tivesse tornado seus olhos incapazes de chorar. Quando ele voltou a falar, já havia retomado o controle, embora conservasse o olhar voltado para os campos verdejantes que o trem atravessava.
- E agora estamos neste vagão, sob a guarda de fascistas romenos, que irão entregar-nos nas mãos de fascistas alemães! É o fim!
Magda ficou observando a parte de trás da cabeça do pai. Como ele se tornara um homem amargo e céptico! E será que não tinha motivos para isso? Fora atacado por uma doença que lentamente tomava conta de seu corpo, distorcendo-lhe os dedos, tornando sua pele um papel encerado, secando-lhe os olhos e a boca, dificultando cada vez mais sua capacidade de engolir. Quanto à sua carreira - a despeito de anos e anos na universidade como reconhecida autoridade em folclore romeno e do fato de ser o subchefe do Departamento de História -, fora brutalmente despedido. Ah, sim! Alegaram que sua avançada debilidade o impedia de cumprir seus deveres, mas Papai sabia que a verdadeira razão era o fato de ele ser judeu. Fora mandado embora como um objeto inútil.
E agora estava assim: a saúde piorando, afastado de seu trabalho de pesquisa da história romena, que ele tanto amava, e arrancado de sua casa. E acima e além de tudo estava a certeza de que os motores destinados à destruição de sua raça tinham sido construídos e já operavam com implacável eficiência em outros países. Dentro de pouco tempo seria a vez da Romênia.
Evidentemente ele está amargurado] pensou ela. E tem todo o direito de estar.
E eu também. É a minha raça, a minha herança, que eles também desejam destruir. E logo depois, sem dúvida, a minha vida.
Não, não a sua vida. Isso não poderia acontecer. Ela não poderia aceitar isso. No entanto eles haviam destruído qualquer esperança de que ela pudesse ser algo mais do que uma simples secretária e uma enfermeira de seu pai. A súbita recusa de seu editor de música era suficiente prova disso.
Magda sentiu um peso no peito. Aprendera à própria custa, desde a morte de sua mãe onze anos antes, o problema da mulher neste mundo. Se casa, a vida é dura; se não casa, é mais dura ainda, pois não terá ninguém em que se amparar, ninguém que fique a seu lado. Era quase impossível que qualquer mulher com alguma ambição, fora dos cuidados do lar, fosse levada a sério. Se fosse casada, deveria ficar em casa; se não fosse, então havia algo errado com ela. E se se tratasse de uma judia...
Ela passou os olhos rapidamente pelo banco onde estavam os dois guardas. Por que não me é permitido desejar que minha passagem pelo mundo fique assinalada? Não um grande marco. . . um pequeno arranhão já serviria. Meu livro de canções... Ele nunca seria famoso nem popular, mas talvez um dia, daqui a cem anos, alguém encontrasse um exemplar e tocasse uma das canções. E, quando terminasse, fecharia o livro e veria meu nome na capa. . . E eu de certo modo ainda estaria viva. Alguém ficaria sabendo que Magda Cuza existira.
Suspirou. Não iria desistir. Pelo menos por enquanto. As coisas iam mal e provavelmente ainda ficariam piores. Mas nem tudo estava acabado. E nunca estará enquanto houver um fio de esperança.
Porém ela sabia que não bastava ter esperança. Era preciso alguma coisa mais, algo que ela ignorava o que fosse. Mas a esperança era o ponto de partida.
O trem passou por um acampamento onde carroças pintadas com cores vivas estavam dispostas em torno de uma fogueira. Os estudos de Papai sobre o folclore romeno levaram-no a simpatizar com os ciganos e, conseqüentemente, a explorar o filão de sua tradição oral.
- Olhe! - disse ela, com esperança de que aquela cena levantasse o ânimo do pai. - Ciganos.
- Estou vendo - replicou ele, sem entusiasmo. - Diga-lhes adeus, porque estão tão condenados quanto nós.
- Pare com isso, Papai!
- É verdade. Os ciganos romenos se encontram sob um pesadelo autoritário e, por causa disso, serão também eliminados. Eles são alegres, gostam de reunir-se para cantar e sonhar. A mentalidade fascista não tolera essas coisas. O lugar de nascimento de um cigano era o pedaço de terra que, nesse momento, estivesse sob a carroça de seus pais; não possuem endereço nem emprego permanente. Nem sequer usam um nome com razoável freqüência, porque possuem três: um público, para o gadjé, outro para ser utilizado entre os membros de sua tribo e um terceiro, secreto, murmurado a seu ouvido, no nascimento, por sua mãe, para confundir o Demônio, se este vier procurá-lo. Para a mentalidade fascista eles são objeto de desprezo.
- Talvez - disse Magda. - Mas e nós? Por que somos também desprezados?
Ele deixou afinal de olhar para a janela.
- Não sei. Acho que ninguém sabe. Somos bons cidadãos em qualquer país onde estivermos. Trabalhadores, incentivamos o comércio e pagamos nossos impostos. Talvez seja a nossa sina, mas realmente não sei - acrescentou, sacudindo a cabeça. - Tentei descobrir a causa disso, mas não consegui, como não consegui saber a razão desta viagem forçada ao passo Dinu. A única coisa interessante que há por lá é o fortim, mas este somente despertaria interesse de pessoas como você e eu, nunca dos alemães.
Recostou-se no assento e fechou os olhos. Pouco depois, estava dormitando ressonando suavemente. Dormiu durante boa parte do percurso em meio às chaminés e tanques de Ploiesti, tendo acordado ligeiramente ao chegarem a Floresti; depois adormeceu novamente. Magda passou todo o tempo procurando imaginar o que os esperava e qual a razão de os alemães os terem mandado levar para o passo Dinu.
Enquanto as planícies desfilavam através da janela, Magda acariciou seu sonho favorito, um no qual ela era casada com um homem inteligente, formoso e amado. Teriam uma grande fortuna, mas não a utilizariam em coisas como jóias ou roupas finas, que para Magda não significavam mais do que um capricho, e ela não via razão nem utilidade em possuí-las. O dinheiro serviria para comprar livros e antiguidades. Morariam em uma casa que se assemelhasse a um museu, repleta de objetos de valor apenas para eles. E essa casa ficaria longe da cidade, num lugar onde ninguém soubesse que eles eram judeus ou que pelo menos não se importasse com isso. O marido seria um professor brilhante e ela própria uma musicista mundialmente conhecida e respeitada por seus trabalhos. Papai teria a seu dispor os melhores médicos e enfermeiros, permitindo que ela tivesse tempo para se dedicar à sua música.
Um sorriso amargo perpassou levemente pelos lábios de Magda. Uma bela fantasia - era tudo o que aquilo poderia significar. Além disso, tarde demais para ela. Já fizera trinta e um anos, tendo passado da idade em que um homem de posição a consideraria digna de ser sua esposa e mãe de seus filhos. O que lhe restava agora era apenas ser a amante de alguém. E isso, naturalmente, ela não aceitaria.
Certa vez, uns doze anos atrás, houve alguém.. . Mihail.. . um aluno de Papai. A atração foi mútua. Alguma coisa resultaria daquilo, mas então Mamãe morreu e Magda teve de dedicar-se a Papai - dedicar-se de tal modo que Mihail foi posto de lado. Ela não tivera escolha. Papai ficara traumatizado demais pela morte da esposa e coube a Magda ajudá-lo a recobrar as forças.
Magda acariciou o fino aro de ouro no dedo anular de sua mão direita. Era uma lembrança de sua mãe. Como tudo teria sido diferente, se ela não tivesse morrido!
De vez em quando Magda pensava em Mihail. Ele casara e tinha agora três filhos. Magda tinha apenas Papai.
Tudo mudara com a morte de Mamãe. Magda não saberia explicar como isso acontecera, mas a verdade era que Papai se tornara o centro de sua vida. Embora ela vivesse então cercada de homens, nunca prestava atenção neles. Seus galanteios e tentativas eram como gotas de água numa estatueta; de vidro, jamais absorvidas e apenas deixando, quando evaporadas, um círculo embaciado.
Os anos decorridos desde a morte da mãe, ela os passara indecisa entre a vontade de ser alguém de renome e o desejo de gozar todas as coisas que as mulheres desfrutam normalmente. E agora era tarde demais. Realmente, não havia mais nada que ela pudesse esperar - e isso ela percebia cada dia mais claramente.
E no entanto tudo poderia ter sido tão diferente, tão melhor! Se Mamãe não tivesse morrido!... Se Papai não adoecesse tanto... Se ela não tivesse nascido judia.. . Esta hipótese não poderia ser do conhecimento de Papai. Ficaria furioso - e arrasado - se soubesse que ela pensava assim. Mas era a verdade. Se eles não fossem judeus, não estariam agora naquele trem; Papai seria ainda professor na universidade e o futuro não se apresentaria como um abismo escancarado, negro, medonho e sem saída.
As planícies aos poucos eram substituídas pelas colinas e as rampas começavam a surgir. O sol se punha por trás dos Alpes enquanto o trem subia a última encosta para Campina. Ao passarem pelas chaminés da pequena refinaria de Steaua, Magda ajudou o pai a vestir o suéter. Depois, apertou mais o lenço sobre os cabelos e foi buscar a cadeira de rodas que ficara num compartimento no fundo do vagão. O mais jovem dos dois Guardas de Ferro seguiu atrás dela. Magda sentira os olhos dele durante toda a viagem, fixos nas dobras de sua saia, tentando adivinhar a silhueta de seu corpo. E quanto mais o trem se afastava de Bucareste, mais insistente se tornavam seus olhares.
Quando Magda se inclinou sobre a cadeira, para acomodar a almofada do assento, sentiu as mãos dele agarrarem suas nádegas por cima do grosso tecido da saia. Os dedos de sua mão direita começaram a forçar a passagem entre as coxas dela. Com uma sensação de repulsa e nojo, ela indireitou o corpo e voltou-se para o guarda, apertando as mãos para não arranhar-lhe o rosto.
- Pensei que você iria gostar disto - disse ele, aproximando-se mais e passando um braço em torno da cintura dela. - Você até que não é má para uma judia, e posso garantir-lhe que sou bastante homem.
Magda olhou para ele. Estava longe de ser bastante homem. Deveria ter no máximo uns vinte anos, provavelmente dezoito, e seu lábio superior estava coberto por uma penugem que tentava ser um bigode, mas parecendo mais um resto de poeira. Encostou-se fortemente contra ela, empurrando-a para a porta.
- O próximo vagão é o de bagagens. Vamos para lá. Magda conservou seu rosto totalmente impassível.
- Não.
- Ande! - exclamou ele, dando-lhe um empurrão.
Enquanto decidia o que fazer, Magda tinha de resistir ao temor e revolta que aquelas mãos despertavam nela. Precisava dizer alguma coisa, mas não queria desafiá-lo, fazer com que ele se sentisse capaz de dominá-la.
- Você não pode arranjar uma garota que tenha desejos por você? - perguntou ela, sem tirar os olhos dos dele.
- É claro que posso.
- Então por que você quer violentar uma que não sente esses desejos?
- Você me agradecerá quando tivermos acabado.
- Mesmo forçada?
Ele enfrentou o olhar dela por um momento, depois baixou a cabeça. Magda não sabia o que iria acontecer e se preparou para uma barulhenta exibição de gritos e pontapés, se ele continuasse a querer levá-la para o vagão de bagagens.
O trem se sacudiu e rangeu, quando o maquinista começou a aplicar os freios. Estavam chegando ao entroncamento de Campina.
- Agora não há mais tempo - disse ele, olhando pela janela e vendo que a estação se aproximava. - Foi uma pena.
Salva. Magda não disse uma palavra. Sua vontade era gritar de alegria.
O jovem soldado da Guarda de Ferro endireitou o corpo e apontou para a janela.
- Estou certo de que você me acharia um amante mais carinhoso, comparado com um desses.
Magda curvou-se e olhou pela vidraça. Viu quatro homens fardados de preto, em pé na plataforma da estação, e sentiu-se desfalecer. Já ouvira o suficiente a respeito da SS alemã para reconhecer seus membros quando pusesse os olhos neles.
KARABURUN, TURQUIA Terça-feira, 29 de abril
18h2m
O homem ruivo permaneceu em pé junto à amurada, sentindo o calor dos últimos raios do sol que projetavam sua sombra mar adentro. O mar Negro. Um nome estranho. Era azul e parecia um oceano. Em torno dele casas de alvenaria de dois pavimentos se amontoavam à beira da água, com seus telhados vermelhos como que imitando a cor do sol.
Não fora difícil arranjar um bote. Embora a pescaria ali parecesse rendosa, os pescadores continuavam pobres, por mais peixes que colhessem em suas redes. Passavam a vida inteira trabalhando apenas para o sustento.
Desta vez não se tratava de uma lancha moderna e rápida de contrabandistas, mas de um velho barco de pesca de sardinha. Não era bem o que ele queria, mas fora o melhor que encontrara.
A lancha do contrabandista levara-o até perto de Silivri, a oeste de Constantinopla - não, agora chamavam-na de Istambul, não era mesmo? Ele se lembrava de que o atual regime mudara o nome uns dez anos antes. Tinha de acostumar-se, mas os hábitos antigos não são facilmente esquecidos.
Ele atracara o bote, saltara para a praia levando sob o braço a caixa comprida, depois empurrara a lancha para o mar de Mármara, onde ela ficaria à deriva, com o cadáver de seu proprietário a bordo, até ser encontrada por algum pescador ou por um navio de qualquer governo que estivesse nessa ocasião pleiteando a posse daquele trecho de água.
De lá, fora uma viagem de mais de trinta quilómetros pelas campinas levemente onduladas da Turquia européia. Comprar um cavalo na costa sul fora tão fácil quanto alugar um barco no norte. Com os governos caindo a torto e a direito, e sem ninguém que garantisse que o dinheiro em circulação não seria no dia seguinte papel sem valor, a simples vista de uma moeda de ouro bastava para abrir qualquer porta.
E assim ele se encontrava agora nas margens do mar Negro, tamborilando na caixa a seus pés e esperando que o velho navio no qual deveria embarcar acabasse de abastecer-se. Conseguiu resistir 'à tentação de falar com o proprietário e oferecer-lhe uma gratificação para que se apressasse. Isso parecia-lhe inútil. Sabia não haver meios de fazer com que essa gente trabalhasse mais depressa. Aquele era seu ritmo, muito mais lento do que poderia desejar.
Seriam quatrocentos quilómetros para o norte até o delta do Danúbio, e depois uns trezentos para oeste, por terra, até o passo Dinu. Se não fosse aquela maldita guerra, ele teria alugado um avião e já estaria lá há muito tempo.
Que acontecera? Uma batalha no passo? O rádio não dera qualquer notícia de luta na Roménia. Não importa. Alguma coisa estava errada. E ele pensara que tudo fora providenciado em caráter permanente.
Mas ainda havia uma chance de que os acontecimentos não tivessem atingido o ponto além do qual não há retorno.
Terça-feira, 29 de abril
17h52m
- Não vê que ele está exausto - exclamou Magda, agora que seu temor desaparecera para ser substituído pela cólera e por um selvagem instinto protetor.
- Pouco me importa se ele vai exalar seu último suspiro - disse o oficial da SS que chamavam de Major Kaempífer. - Quero apenas que ele me diga tudo o que sabe a respeito do fortim.
O percurso de Campina para o fortim fora um pesadelo. Eles haviam sido brutalmente atirados sobre os bancos de um caminhão de transporte de tropa, vigiados por um par de soldados, enquanto outros dois se encarregavam da direção do veículo. Papai lhes identificara como einsatzkommandos e resumidamente explicou a Magda de que maneira eles agiam. Mesmo sem a explicação ela já os achara repulsivos, tratando os dois passageiros como se fossem bagagem. Nenhum dos quatro homens falava romeno e substituíam as palavras por empurrões e estocadas com o cano dos fuzis Todavia Magda logo percebeu que havia alguma coisa sob aquela brutalidade - uma preocupação. Eles pareciam contentes por estarem fora do passo Dinu por algum tempo, e relutantes por terem de regressar.
A viagem fora especialmente penosa para seu pai, que mal podia sentar-se em um dos bancos laterais do caminhão. O veículo sacudia e jogava violentamente em cada curva da estrada que não fora construída para aquela espécie de trânsito. Cada solavanco era uma agonia para Papai. A Magda restava apenas contemplar impotente o pai, que contraía a fisionomia e cerrava os dentes quando a dor era mais forte. Finalmente, o caminhão teve de parar numa ponte, aguardando a passagem de uma carroça. Magda ajudou o pai a passar do banco para sua cadeira de rodas, sem ver o que ocorria do lado de fora do caminhão, mas sabendo que, enquanto o motorista buzinava impacientemente, ela poderia arriscar a transferência. Depois disso, bastava segurar a cadeira de rodas, evitando que ela rolasse para trás, quando o veículo retomasse a marcha. Os dois guardas limitaram-se a observar os esforços da moça, sem o menor gesto para ajudá-la. Quando o caminhão chegou afinal ao fortim, pai e filha estavam igualmente exaustos.
O fortim. . . Como havia mudado! De longe, até chegarem à ponte, pareceu-lhes, à luz do crepúsculo, que nada se alterara, mas tão logo entraram no pátio, Magda sentiu que havia uma aura de mal-estar, uma alteração no próprio ar, tornando o ambiente pesado e provocando calafrios no pescoço e nos ombros.
Papai sentiu a mesma coisa, pois Magda viu-o erguer a cabeça e olhar em torno, como que tentando identificar a sensação.
Os alemães pareciam estar com muita pressa. Havia dois tipos de soldados, uns fardados de preto outros de cinza. Dois destes abriram a parte traseira do caminhão, logo que ele parou, e começaram a fazer sinais para que os viajantes descessem:
- Schnell! Schnell!
Magda respondeu-lhes em alemão, idioma que ela compreendia e falava razoavelmente bem.
- Ele não pode caminhar,! - o que era verdade no momento, pois Papai estava à beira do colapso físico.
Os dois soldados de uniforme cinza não hesitaram em saltar para o interior do veículo e retirar o velho sentado em sua cadeira; entretanto, Magda fez questão de empurrá-la para atravessar o pátio. As sombras começaram a envolvê-la, enquanto ela seguia atrás dos soldados.
- Algo de errado aconteceu aqui, Papai - murmurou ela a seu ouvido. - Não tem essa impressão?
Um lento aceno de cabeça, concordando, foi sua única resposta.
Magda levou a cadeira até ao pavimento térreo da torre. Dois oficiais alemães estavam lá, esperando pelos visitantes, um de uniforme cinza, outro de preto, ambos em pé junto a uma mesa tosca, iluminada por uma única lâmpada pendente do teto.
A noite mal tinha começado.
- Antes de tudo - disse Papai, falando fluentemente o alemão, ao responder ao pedido de informações do Major Kaempffer - esta estrutura não é propriamente um fortim. Fortim - ou reduto, como era chamado nesta região - era o abrigo final no interior de um castelo, o último local onde o castelão resistia com sua família e auxiliares. Esta construção - acrescentou, fazendo um gesto largo com as mãos - é diferente. Não sei como os senhores a chamam. É demasiadamente bem construída para ser um simples posto de vigilância e, ao mesmo tempo, pequena demais para proteger um orgulhoso senhor feudal. Sempre foi chamada de fortim, provavelmente por falta de um nome melhor. É o que suponho.
- Pouco me importa o que você supõe! - replicou o major brutalmente. - O que me interessa é o que você sabe! A história do fortim, as lendas ligadas a ele - tudo!
- O senhor não pode esperar até amanhã? - perguntou Magda. - Meu pai nem pode pensar direito, de tão cansado. Talvez que pela manhã. ..
- Não! Precisamos saber esta noite!
Magda desviou o olhar do major de cabelos louros para o outro oficial, um capitão moreno chamado Woermann, que ainda não dissera uma única palavra. Fitando os olhos deles, ela teve a mesma impressão que lhe haviam dado todos os soldados alemães que encontrara, desde que deixara o trem. O sintoma comum que a impressionara parecia-lhe agora claro. Aqueles homens estavam com medo. Tanto oficiais como soldados se achavam igualmente apavorados.
- Especificamente sobre o quê? - perguntou Papai. O Capitão Woermann finalmente se fez ouvir.
- Professor Cuza, durante a semana que passamos aqui, oito homens foram assassinados.
O major olhou reprovadoramente para o capitão, mas este prosseguiu falando, não tendo notado a reprovação do outro ou simplesmente ignorando-a.
- Um morto por noite, exceto ontem, quando duas gargantas foram estraçalhadas.
Uma resposta pareceu formar-se nos lábios de Papai. Magda desejou que ele não dissesse nada capaz de irritar os alemães. Ele, porém, estava bem ciente disso.
- Não tenho quaisquer ligações políticas e desconheço a existência de algum grupo de guerrilheiros nesta zona. Não sei como ajudá-los.
- Não achamos que haja motivos políticos no caso - disse o capitão.
- Então o que ou quem pode ser?
A resposta pareceu ser quase fisicamente dolorosa para o Capitão Woermann.
- Nós nem mesmo estamos certos de que se trata de alguém. As palavras ficaram pairando no ar por um momento, depois
Magda notou que a boca de seu pai tomava uma forma oval, os dentes salientes, antes de esboçar um sorriso amargo. Seu rosto ficou parecido com o de um morto.
- Os senhores acham que o sobrenatural está agindo aqui? Alguns de seus homens foram mortos e, como o assassino não foi encontrado e os senhores não querem admitir que um guerrilheiro romeno possa estar levando vantagem, apelam para o sobrenatural. Se realmente desejam minha...
- Cale essa boca, judeu! - disse o major da SS, com a fúria estampada no rosto e avançando um passo. - A única razão de você estar aqui e a única coisa que impede que você e sua filha sejam imediatamente fuzilados é o fato de que você percorreu esta região detalhadamente e é um profundo conhecedor de seu folclore. O tempo que lhe resta de vida depende de sua capacidade de nos ser útil. Até agora você nada disse que me convença de que não perdi meu tempo em trazê-lo aqui!
Magda viu que o sorriso do pai desaparecera quando olhou para ela, depois para o major. A ameaça à filha produzira um grande efeito.
- Farei o que puder - disse ele gravemente - mas, antes o senhor deve contar-me tudo o que aconteceu aqui. Talvez me ocorra alguma explicação mais realística.
- Para seu bem, é bom que seja assim.
O Capitão Woermann contou a história dos dois soldados que haviam entrado na cela da muralha e encontrado uma cruz de ouro e prata, ao invés de bronze e níquel, da caverna que ligava ao que parecia ser uma cela sem aberturas, do desabamento da parede do corredor e do afundamento de parte do chão no subsolo, e, finalmente, do que acontecera ao Soldado Luiz e aos seguintes. O capitão referiu também a absoluta escuridão em que ficou mergulhado o parapeito, duas noites atrás, e os dois homens da SS que, não se sabe como, caminharam até ao quarto do Major Kaempffer, depois que suas gargantas tinham sido estraçalhadas.
A história gelou o sangue nas veias de Magda. Em outras circunstâncias, teria achado graça de tanta imaginação, mas o ambiente do fortim naquela noite e a gravidade das fisionomias dos dois oficiais alemães não permitiam dúvidas. E enquanto o capitão falava, ela se lembrou, com um arrepio, que seu sonho de viajar para o norte ocorrera justamente na noite em que o primeiro homem morrera.
Agora, porém, não era ocasião para pensar nisso. Havia Papai, que necessitava de cuidados. Observara-lhe o rosto, enquanto ele ouvia, e vira como a fadiga que parecia mortal desaparecia aos poucos ante o relato de uma nova morte ou de outro acontecimento anormal. Quando o Capitão Woermann acabou de falar, Papai se transformara de um velho doente, preso a uma cadeira de rodas, no Professor Theodor Cuza, um especialista desafiado em seu próprio campo. Houve uma longa pausa antes que ele respondesse.
- A hipótese óbvia no caso é que algo foi libertado daquele pequeno quarto na muralha, quando o primeiro soldado penetrou nele. Tanto quanto sei, jamais houve uma única morte no fortim. Mas também nunca nenhuma tropa estrangeira acampou nele. Eu teria atribuído as mortes à ação de patriotas - ele acentuou a palavra - romenos, não fossem os acontecimentos das duas últimas noites. Não há uma explicação natural que eu conheça para a maneira como a luz se apagou na muralha nem para o movimento de cadáveres ensangüentados. Assim, talvez convenha pesquisarmos fora do natural.
- É por isso que você está aqui, judeu - disse o major.
- A solução mais simples é irem embora.
- Isso está fora de cogitação!
Papai registrou a veemência da ressalva.
- Não acredito em vampiros, senhores - disse ele, provocando em Magda um olhar de espanto, pois ela sabia que a declaração não era inteiramente verdadeira. - Pelo menos não acredito mais. Nem em lobisomens ou fantasmas. Todavia sempre acreditei que havia algo especial no que diz respeito ao fortim. De há muito ele vem sendo um enigma. É de todo original em seu traçado, contudo não existe registro sobre quem o construiu. E, embora mantido em perfeitas condições de conservação, ninguém reclama sua posse. Não existe em parte alguma qualquer documento de propriedade. Sei disso porque passei anos tentando descobrir quem o construiu e quem o mantém.
- Estamos pesquisando isso agora - disse o Major Kaempffer.
- O senhor quer dizer que entrou em contato com o Banco Mediterrâneo de Zurique? Não perca seu tempo. Já estive lá. O dinheiro provém de um fundo criado no século passado, quando o banco foi fundado; as despesas para a manutenção do fortim correm por conta dos juros do dinheiro depositado. E creio que antes disso eram pagas por uma conta similar em um banco diferente, talvez de outro país... Os registros contábeis antigamente deixavam muito a desejar. A realidade, porém, é que não há qualquer pista da pessoa ou pessoas que abriram a conta; o dinheiro será mantido e os juros serão pagos in perpetuum.
O Major Kaempffer deu um murro na mesa.
- Que inferno,! Para que nos serve você?
- Eu sou tudo o que o senhor tem, Herr Major. Mas deixeme acrescentar isto: Há cerca de três anos cheguei a sugerir ao governo romeno - então sob o Rei Carol - que declarasse o fortim património nacional e tomasse posse dele. Tinha esperança de que essa nacionalização de facto revelaria os proprietários, se eles ainda existissem. Entretanto, a sugestão não foi aceita. O passo Dinu era considerado demasiadamente remoto e inacessível. Ademais, como não havia qualquer fato histórico romeno especificamente ligado ao fortim, este não podia ser oficialmente considerado patrimônio nacional. E finalmente, e mais importante ainda, a nacionalização exigia verbas do governo para a manutenção do fortim. Por que gastar tais recursos, quando o dinheiro privado estava atendendo à manutenção de maneira cabal? É claro que eu não tive como contestar tais argumentos. E então, senhores, eu desisti. Minha saúde, tendo piorado, obrigou-me a ficar em Bucareste. Eu tive de contentar-me com o fato de ter esgotado todas as fontes de pesauisas, tornando-me a maior autoridade viva relativamente ao fortim, conhecendo-o melhor que qualquer outra pessoa - o que, afinal, corresponde a absolutamente nada.
Magda chegou a irritar-se com o constante uso do pronome eu por parte de seu pai. Ela fizera a maior parte do trabalho para ele e sabia igualmente tudo o que se referia ao fortim. Entretanto, nada disse. Não ficava bem contradizer o pai na presença de estranhos.
- E o que me diz disto? - perguntou o Capitão Woermann, apontando para uma pilha de pergaminhos e livros com capas de couro, em um canto do quarto.
- Livros? - estranhou Papai, franzindo a testa.
- Começamos a demolir o fortim - explicou o Major Kaempffer. - Aquilo que procuramos em breve não terá mais onde esconder-se. Vamos acabar tendo cada uma das pedras daqui expostas à luz do dia. E então, onde essa coisa irá se meter?
- Um bom plano - comentou Papai, encolhendo os ombros -, desde que isso não provoque a libertação de algo pior.
Magda notara que ele virara a cabeça, como que por acaso, na direção da pilha de livros; registrara também a espantada reação de Kaempffer - aquela possibilidade nunca ocorrera ao major.
- Mas onde os senhores acharam estes livros? - perguntou Papai. - Nunca houve uma biblioteca no fortim, e os habitantes da vila mal sabem assinar seus nomes.
- Em um buraco existente numa das paredes demolidas - explicou o capitão.
- Veja o que são aqueles livros - disse Papai dirigindo-se à filha.
Magda encaminhou-se para o canto onde estavam os livros e ajoelhou-se junto à pilha, grata por aquela oportunidade de descansar por uns minutos. A cadeira de rodas de Papai era o único assento existente no quarto e ninguém se oferecera para apanhar uma cadeira para a moça. Ela olhou para a pilha e sentiu o cheiro tão conhecido de papel velho - gostava de livros e daquele cheiro. Havia talvez uma dúzia de livros, alguns em mau estado, e um em forma de pergaminho. Magda folheou-os lentamente, descansando o maior tempo possível. Por fim, levantou-se, apanhando um volume ao acaso. O título era em inglês: The Book of Eibon, o que a espantou. Não podia ser. . . era uma brincadeira! Olhou para os outros, traduzindo os títulos escritos em diferentes idiomas, e mostrando-se cada vez mais admirada e inquieta. Eram originais! Ergueu-se novamente e recuou, quase tropeçando com a rapidez do movimento.
- O que houve? - perguntou Papai ao ver-lhe a fisionomia alterada.
- Esses livros! - exclamou ela, incapaz de esconder seu espanto. - Nunca se soube que tivessem sido publicados!
Papai rodou sua cadeira mais para perto da mesa.
- Traga-os para aqui.
Magda abaixou-se e apanhou dois deles. Um era De Vermis Mysteríis, de Ludwig Prinn; o outro, Cultes dês Goules, de Comte d'Erlette. Ambos pesavam bastante, e a pele de Magda se arrepiava só em tocá-los. A curiosidade dos dois oficiais fora despertada de tal maneira que eles também se debruçaram sobre a pilha e colocaram o restante dos livros sobre a mesa.
Tremendo de excitação, que aumentava à medida que cada volume era posto sobre a mesa, Papai resmungava qualquer coisa antes de pronunciar em voz alta os títulos que ia lendo.
- The Pnakotic Manuscripts, em forma de pergaminho! A tradução de DuNord de The Book of Eibon! The Seven Cryptical Books of Hsan! E este aqui: Unaussprechlichen Kulten, de von Juntz! Estes livros não têm preço,! Universalmente confiscados e proibidos através dos tempos, tiveram tantos exemplares queimados que apenas rumores de seus títulos permaneceram. Chegou até a haver dúvidas quanto à existência de alguns deles. Mas cá estão eles, talvez os únicos exemplares restantes!
- Papai, é possível que eles tenham sido proibidos por uma razão justa - disse Magda, apreensiva com o brilho que se acendera nos olhos dele.
Os livros se dedicavam à descrição de ritos condenados e de contatos com forças que agiam além da razão e da sanidade. Era profundamente perigoso saber que eles existiam de fato, que eles e seus autores eram mais que sinistros rumores. Isso abalava a estrutura de qualquer convicção.
- Talvez você tenha razão - replicou Papai, sem levantar os olhos. Havia tirado a capa de couro das luvas, com o auxílio dos dentes, e estava colocando uma dedeira de borracha em seu indicador direito, ainda envolto em algodão. Ajustando seus óculos bifocais, começou a manusear os livros. - Mas isto ocorreu em outra época. Estamos no século XX. Não posso imaginar que haja alguma coisa nestes livros que não possamos enfrentar agora.
- O que poderia ser tão terrivelmente assustador? - perguntou Woermann, apanhando um exemplar de Unaussprechlichen Kulten, com capa de couro e fecho de metal. - Veja. - Este é em alemão.
Abriu o fecho e folheou algumas páginas, detendo-se finalmente no meio e lendo.
Magda esteve prestes a preveni-lo, mas deteve-se. Nada devia àqueles alemães. Viu o rosto do capitão empalidecer e a garganta emitir sons estranhos enquanto fechava o livro violentamente.
- Que espécie de espírito doentio teria sido responsável por esta coisa? É... é uma... - Não conseguia encontrar as palavras que expressassem o que sentia.
- Que foi que o senhor encontrou aí? - perguntou Papai, desviando os olhos de um livro cujo título ele ainda não anunciara. - Ah, é a obra de von Juntz. Foi publicada inicialmente em Diisseldorf, no ano de 1839, por conta do autor. Uma edição extremamente pequena, talvez apenas uns doze exemplares.. .
Interrompeu-se, como se algum fato novo o tivesse perturbado.
- Algo errado - perguntou Kaempffer, que se mantivera afastado da mesa, demonstrando pouca curiosidade.
- Sim. O fortim data do século XV. . . estou certo disso. Estes livros foram escritos antes, todos eles, menos o de von Juntz. Isso significa que nos meados do século passado, possivelmente até mais tarde, alguém visitou o fortim e depositou o livro junto com os outros.
- Não vejo como esse jogo de datas nos pode ser de utilidade agora - disse Kaempffer. - Não serve para evitar o sacrifício, esta noite, de mais um de nossos homens - e sorriu, quando a idéia lhe ocorreu - ou talvez mesmo de você ou de sua filha.
- Apesar de tudo, o fato traz uma nova luz para o problema - replicou Papai. - Esses livros que estão aí à sua frente foram condenados através dos tempos como diabólicos. Não estou de acordo. Minha tese é de que eles não são diabólicos, mas se referem ao demônio. O que tenho no momento em minhas mãos é especialmente temido: o Al Azif, no original arábico.
Magda ouviu seu próprio grito de espanto.
- Oh, não!
Aquele era o pior de todos.
- Sim! Não conheço muito o árabe, mas sou capaz de traduzir o título do livro e o nome do poeta que o escreveu - insistiu Papai, desviando seu olhar de Magda para Kaempffer. - A resposta a seu problema bem pode encontrar-se dentro das páginas destes livros. Começarei a lê-los esta noite. Antes disso, porém, desejo ver os corpos.
- Por quê? - foi a vez de o Capitão Woermann perguntar. Ele já se recobrara do choque que lhe causara o livro de von Juntz.
- Desejo ver os ferimentos e verificar se há alguns aspectos rituais em suas mortes.
- Posso levá-lo até lá imediatamente - ofereceu-se o major, chamando dois de seus einsatzkommandos como escolta.
Magda não queria ir - não tinha a menor vontade de ver soldados mortos -, mas temia ficar esperando sozinha o retorno do pai. Preferiu então agarrar o encosto da cadeira de rodas e empurrá-la na direção das escadas do porão. Ao chegarem ao topo, os dois soldados afastaram-na, obedecendo às ordens do major, e carregaram a cadeira escadas abaixo. Magda começou a sentir frio, já arrependida por ter ido.
- E o que me diz destas cruzes, professor? - perguntou o Capitão Woermann, enquanto caminhavam pelo corredor, com Magda empurrando novamente a cadeira. - O que significam elas?
- Não sei. Não há qualquer lenda a respeito delas na região, exceto relativamente à suspeita de que o fortim foi construído por um dos papas. Entretanto o século XV assinalou um período de crise para o Sacro Império Romano, e o fortim está situado numa região que se manteve sob constante ameaça dos turcos otomanos. Por isso, a hipótese da origem papal é absurda.
- E os turcos? Não teriam sido eles os construtores?
- Impossível - replicou Papai, sacudindo a cabeça. - Não é o estilo de arquitetura deles, e as cruzes não constituem certamente um símbolo turco.
- Mas o que dizem a respeito do tipo de cruz?
O capitão parecia estar muito interessado no fortim, e Magda respondeu antes que o pai o fizesse. O mistério das cruzes fora, durante anos, objeto de pesquisas especiais por parte dela.
- Ninguém sabe explicar. Meu pai e eu procuramos através de inúmeros volumes de história cristã, romana e eslávica, mas em nenhuma parte encontramos uma cruz semelhante a estas. Se tivéssemos achado um precedente histórico deste tipo de cruz, possivelmente teríamos ligado seu desenhista com o fortim. Mas nada conseguimos. Elas são tão excepcionais quanto a estrutura que as abriga.
Poderia ter continuado - o que a livraria de pensar no que veria no porão - mas o capitão não pareceu dedicar-lhe muita atenção. Talvez fosse porque haviam chegado perto da brecha na parede, mas Magda sentiu que a causa verdadeira era ser ela a fonte de informação. Afinal, não passava de uma mulher. Magda deu um suspiro e permaneceu em silêncio. Já passara por situações semelhantes e conhecia bem seus indícios. Os homens alemães aparentemente tinham muito em comum com os homens romenos. Ficou imaginando se os homens seriam todos assim.
- Mais uma pergunta - disse o capitão a- Papai. - Por que, em sua opinião, não há um único pássaro aqui no fortim?
- Para falar a verdade, nunca havia reparado nisso. Magda também se deu conta de que jamais vira um pássaro, em todas as suas visitas, sem que essa ausência lhe tivesse provocado estranheza. . . até agora.
O entulho junto à parede desmoronada fora cuidadosamente empilhado. Ao guiar a cadeira de rodas de Papai por entre os montes de cascalho, Magda sentiu um sopro gelado, vindo do buraco no chão, do outro lado da parede. Apanhou as luvas de couro que se achavam no bolso do encosto da cadeira de Papai.
- É melhor vesti-las novamente - disse ela, parando a cadeira e abrindo a luva esquerda, para que ele pudesse enfiar a mão.
- Mas ele já está de luvas! - reclamou Kaempffer, impaciente com a demora.
- As mãos dele são muito sensíveis ao frio - explicou Magda, preparando a luva da mão direita. - É uma das conseqüências ,de sua doença.
- E qual é a doença! - perguntou Woermann.
- É chamada esclerodermia - replicou Magda, percebendo que a informação de nada adiantara.
- Nunca ouvi falar nessa doença, antes de ser atacado por ela - disse Papai, ajustando as luvas. - Na verdade, os dois primeiros médicos que me examinaram não acertaram o diagnóstico. Não vou entrar em detalhes, bastando dizer que os efeitos não se fazem sentir apenas nas mãos.
- Mas o que o senhor sente nelas? - perguntou Woermann.
- Qualquer queda súbita de temperatura altera drasticamente a circulação em meus dedos; para todos os efeitos eles perdem temporariamente seu suprimento sanguíneo. Preveniram-me de que, se eu não tomar as devidas precauções, eles podem gangrenar, tendo de ser amputados. Por isso uso as luvas dia e noite durante todo o ano, exceto nos meses mais quentes do verão. Uso as luvas até para dormir. Estou pronto para prosseguir - acrescentou, percebendo que esperavam por ele.
Magda teve um calafrio ao sentir o ar que subia do porão.
- Penso que está frio demais para você lá embaixo, Papai.
- Você não vai querer que os corpos sejam trazidos até aqui para que seu pai possa vê-los - disse Kaempffer.
Fez um sinal para os dois soldados da SS, os quais novamente levantaram a cadeira e a carregaram, com seu frágil ocupante, através do buraco na parede. O Capitão Woermann apanhou um lampião de querosene e, depois de o acender, colocou-se à frente do grupo. O Major Kaempffer, com outro lampião, fechava a retaguarda. Relutantemente, Magda incluiu-se na coluna, logo atrás de seu pai, temendo que um dos soldados que o carregavam pudesse escorregar nos degraus úmidos e caísse. Somente quando as rodas da cadeira assentaram no solo empoeirado do porão é que ela se tranqüilizou.
Um dos soldados começou a empurrar a cadeira atrás dos dois oficiais, no momento em que eles se encaminharam na direção dos oito vultos cobertos por lençóis e estirados no chão, uns dez metros adiante. Magda deteve-se, esperando sob uma lâmpada. Não tinha estômago para tanto.
Notou que o Capitão Woermann parecia perturbado, ao passar junto dos corpos. Por mais de uma vez, inclinou-se e esticou os lençóis, ajustando-os melhor em torno dos vultos imóveis. Um porão. . . Ela e Papai haviam visitado o fortim inúmeras vezes ao longo dos anos e nunca imaginaram que existisse ali um porão. Esfregou os braços cobertos pelas mangas do casaco de lã, tentando gerar algum calor. O frio era insuportável.
Olhou em torno de si, apreensiva, procurando sinais de ratos na escuridão. A casa para a qual ela e o pai tiveram de mudar-se em Bucareste, depois de expulsos da que ocupavam perto da universidade, era infestada de ratos no porão. Magda sabia que sua reação era exagerada, mas não podia dominar a repugnância que os ratos lhe provocavam, pela maneira como se moviam, por suas caudas nuas arrastando-se atrás deles. . . Sentia-se nauseada.
Entretanto não viu os pequenos vultos correndo. Mais tranqüila, acompanhou os movimentos do capitão, levantando os lençóis um por um, a fim de expor a cabeça e os ombros de cada homem morto. Não podia ouvir qual o tema da conversa, mas se sentia aliviada por não estar vendo o que os dois oficiais estavam mostrando a seu pai.
Finalmente, todos voltaram em direção à escada. A voz de Papai foi-se tornando inteligível à medida que ele se aproximava.
- ... e realmente não posso afirmar que haja algo de ritualístico nos ferimentos. Com exceção do homem decapitado, todas as mortes parecem ter resultado simplesmente do corte dos principais vasos no pescoço. Não há sinais de dentadas, de animal ou humanas, mas certamente os ferimentos não são obra de qualquer instrumento cortante. Aquelas gargantas foram arrancadas selvagemente, de uma maneira que não posso explicar.
Como Papai podia ser tão profissional a respeito daquelas coisas?
A voz do Major Kaempffer soou áspera e ameaçadora:
- Mais uma vez você conseguiu falar muito sem dizer nada!
- O senhor me forneceu muito pouco material para examinar. Não existe alguma coisa mais?
O major afastou-se sem se dignar responder. O Capitão Woermann, porém, estalou os dedos.
- As palavras na parede! Escritas com sangue, em um idioma que ninguém entende.
- Quero vê-las! - exclamou Papai, os olhos brilhando. Mais uma vez a cadeira foi levantada, e mais uma vez Magda se movimentou, fazendo o caminho de volta para o pátio. Novamente ela se encarregou de empurrar o pai atrás dos alemães enquanto eles se dirigiam para a parte de trás do fortim. Em pouco tempo todos estavam no fim de um corredor sem saída olhando para as letras vermelho-escuras rabiscadas na parede.
Os traços, Magda notou, variavam em espessura, mas todos pareciam ter sido feitos por um dedo humano. Ela teve um calafrio ao ver o que estava escrito. Reconheceu o idioma e sentiuse capaz de fazer a tradução, se sua mente pudesse concentrar-se nas palavras e não no que o autor usara como tinta.
OOTàBUTC
- O senhor tem idéia do que isso quer dizer? - perguntou Woeimann.
- Sim - disse Papai, contemplando hipnotizado o que tinha à sua frente.
- E então? - falou Kaempffer.
Magda percebeu que ele odiava estar dependendo de um judeu e, sobretudo, que este judeu o estava fazendo esperar. Desejou que o pai fosse mais prudente em suas provocações.
- A frase diz: Estrangeiros, ide embora! Está na forma imperativa.
Ele falava como que mecanicamente. Alguma coisa mais naquelas palavras o perturbava.
Kaempffer bateu com a palma da mão no cabo da pistola.
- Ah! Então os assassinatos têm uma motivação política!
- Talvez, mas este aviso ou pedido, como queira chamá-lo, está perfeitamente redigido em eslavônico antigo, uma língua morta. Tão morta quanto o latim. E aquelas letras são desenhadas da maneira idêntica às que eram escritas na época. Conheço bem o assunto. Vi uma porção de manuscritos.
Agora que Papai identificara a inscrição, Magda podia fixarse nas palavras. Concluiu que sabia porque elas eram tão perturbadoras.
- O assassino que procuram, senhores - disse Papai - ou é um professor muito erudito ou está congelado há mais de meio milênio!
- Parece que perdemos nosso tempo - disse o Major Kaempffer, acendendo um cigarro, já de volta ao pátio. Os quatro se encontravam agora no pavimento térreo da torre.
No centro do quarto, Magda se apoiava, cansada, no espaldar da cadeira de rodas. Percebera que havia uma espécie de guerra surda entre Woermann e Kaempffer, mas não podia entender as regras ou motivações dos contendores. De uma coisa, porém, ela estava certa: a vida de Papai e a dela dependeriam do resultado daquela disputa.
- Não concordo - disse o Capitão Woermann, encostado à parede, os braços cruzados sobre o peito. - A meu ver já sabemos bem mais do que sabíamos esta manhã. Não muito, mas pelo menos há um progresso. . . coisa que não havíamos conseguido até agora.
- Mas não é o bastante! - retrucou Kaempffer. - Nem perto disso.
- Muito bem. E como não dispomos de outras fontes de informação, penso que devemos abandonar o fortim imediatamente.
Kaempffer não replicou. Continuou fumando e andando de um lado para outro do quarto.
Papai pigarreou, chamando atenção para o que iria dizer.
- Fique fora disso, judeu!
- Vamos ouvir o que ele tem a dizer. Foi para ouvi-lo que o mandamos buscar, não foi?
Aos poucos ia-se tornando muito claro para Magda que havia uma profunda hostilidade entre os dois oficiais. Sabia que Papai também o notara e certamente tentaria tirar partido dessa situação.
- Talvez eu possa ajudar - disse ele, apontando para a pilha de livros sobre a mesa. - Como já tive oportunidade de dizer, a resposta para o problema dos senhores está nesses livros. Se for assim, sou a única pessoa que, com o auxílio de minha filha, poderá descobri-la. Se desejarem, tentarei.
Kaempffer deixou de andar e olhou para Woermann.
- Acho que vale a pena - disse Woermann. - Não tenho outra idéia melhor. Você tem?
Kaempffer atirou a ponta do cigarro no chão e a esmagou com o pé.
- Três dias, judeu. Você dispõe de três dias para nos dar uma informação útil - concordou ele, atravessando o quarto apressadamente e saindo, deixando a porta aberta atrás de si.
O Capitão Woermann desencostou-se da parede e encaminhou-se para a porta, as mãos cruzadas nas costas.
- Direi ao meu sargento que providencie um par de sacos de dormir para o senhor e sua filha - disse ele, olhando para o corpo frágil de Papai. - Lamento não dispor de camas.
- Nós nos arranjaremos, capitão. Obrigado.
- Lenha - pediu Magda. - Precisamos de alguma coisa para fazer uma pequena fogueira.
- Não faz tanto frio assim durante a noite - disse Woermann balançando a cabeça.
- É que as mãos de meu pai. . . Se não estiverem bem aquecidas, ele não conseguirá sequer virar as páginas.
- Pedirei ao sargento que veja o que pode fazer - respondeu o oficial com um suspiro. - Talvez alguns pedaços de madeira. - Continuou a caminhar para a porta, mas voltou-se ainda uma vez. - Deixem-me dizer uma coisa a vocês dois. O major os tratará com a mesma indiferença com que esmagou aquela ponta do cigarro que havia acabado de fumar. Tem suas razões pessoais para desejar uma solução rápida para este problema e eu tenho as minhas: não quero perder mais nenhum dos meus homens. Descubram um meio de passarmos pelo menos uma noite sem que morra alguém e terão provado o quanto valem. E, se conseguirem resolver este mistério, tentarei mandá-los de volta para Bucareste e mantê-los em segurança lá.
- E então talvez não consiga - disse Magda, olhando firmemente para o rosto do oficial. Ele estava realmente dando-lhes uma esperança?
A fisionomia do Capitão Woermann tornou-se mais sombria e suas palavras foram o eco das de Magda:
- E então talvez não consiga.
Depois de ordenar que levassem lenha para os quartos no pavimento térreo, Woermann parou um momento para pensar. A princípio considerara a dupla que viera de Bucareste como dois pobresdiabos - uma moça presa ao pai, o pai preso a uma cadeira de rodas. Entretanto, à medida que os observava e os ouvia falar, passou a notar uma força interior em cada um deles, o que era bom, pois ambos iriam necessitar de nervos de aço para enfrentar aquela situação. Se homens bem armados não eram capazes de se defender ali, que esperanças poderiam ter uma mulher indefesa e um homem aleijado?
De repente, sentiu que estava sendo observado. Não saberia dizer como o notara, mas se já era desagradável a sensação de ser objeto de vigilância, mesmo nos ambientes mais agradáveis, ali, com o conhecimento do que vinha acontecendo durante aquela semana, o mal-estar era enervante.
Woermann foi verificar os degraus da escada que se encurvava para a direita. Ninguém. Dirigiu-se então para o arco que abria para o pátio. Todas as luzes estavam acesas e as sentinelas montavam guarda aos pares.
De novo a sensação de estar sendo vigiado.
Encaminhou-se então para a escada, tentando livrar-se daquela impressão; talvez se ele saísse dali, ela desaparecesse. Na verdade, tão logo alcançou o pavimento de seu quarto, a sensação se evaporou.
Todavia, continuava com ele o temor subjacente que dominava cada noite no fortim - a certeza de que antes do amanhecer alguém iria morrer tragicamente.
O Major Kaempffer estava parado na porta da seção traseira do fortim. Viu quando Woermann se deteve por um momento na entrada do arco da torre, depois começou a subir os degraus. Kaempffer conteve um impulso de ir atrás dele - atravessar o pátio, subir ao terceiro pavimento da torre e bater na porta de Woermann.
Não queria ficar sozinho naquela noite. Às suas costas estava a escada que conduzia a seus próprios aposentos, o local onde justamente na noite anterior dois homens mortos haviam penetrado e caído sobre ele. Estremecia antes a simples idéia de voltar para lá.
Woermann era a única pessoa que poderia ajudá-lo naquela noite. Na qualidade de oficial, Kaempffer estava impossibilitado de procurar a companhia dos soldados, e certamente não iria juntar-se aos dois judeus.
Woermann era a solução. Tratava-se de um colega e seria normal que um procurasse a companhia do outro. Kaempffer decidiu-se e começou a atravessar o pátio, mas deu apenas alguns passos. Woermann certamente não o deixaria entrar, quanto mais sentarse e beber com ele um copo de schnapps. Woermann desprezava a SS, o Partido e quem quer que estivesse associado com um deles. Por quê? Kaempffer achava que Woermann, um ariano puro, não devia tomar aquela atitude. Nada tinha a temer da SS. Por que, então, odiá-la daquela maneira?
Kaempffer voltou sobre os próprios passos e penetrou de novo na estrutura traseira do fortim. Não poderia haver relações amigáveis com Woermann. Era um homem por demais teimoso e de mentalidade tacanha, incapaz de aceitar as realidades da Nova Ordem. Estava condenado, quanto mais Kaempffer se afastasse dele, melhor.
Apesar de tudo. . . Kaempffer precisava de um amigo naquela noite. E não havia um único.
Hesitantemente, com o coração batendo mais depressa, ele começou a subir devagar os degraus para seus aposentos, imaginando que tipo de novo horror esperava por ele.
O fogo servira não apenas para aquecer o quarto, mas também para lhe dar mais luz, um clarão confortador que a lâmpada não era capaz de igualar. Magda arrumara um dos sacos de dormir junto à lareira, para seu pai, mas ele não parecia interessado. Há muito tempo, nos últimos anos, ela não o via tão excitado, tão animado. Mês após mês a doença lhe roera as forças, deixando-o cada dia mais fatigado, reduzindo o número de horas em que ficava acordado, reagindo contra o sono que aumentava sempre.
Agora, porém, parecia um novo homem, folheando ansiosamente os livros que tinha à sua frente. Magda sabia que aquilo não poderia durar. Breve, a doença dele exigiria um repouso. Estava sendo gasto o pouco que restava de uma energia que não se renovava.
Apesar disso, Magda hesitava em insistir para que o pai repousasse. Ultimamente, ele perdera o interesse por tudo, passando os dias sentado em frente à janela, olhando a rua e nada vendo. Os médicos - quando ela conseguia que um deles o examinasse - diziam que era melancolia, um estado de espírito comum na doença. Nada havia a fazer. Receitavam-lhe aspirina, para aliviar as dores constantes, e codeína - quando acessível - para o terrível sofrimento nas juntas.
Ele tinha sido uma espécie de morto vivo, mas agora estava mostrando sinais de reação. Magda não tinha o direito de refreála. Enquanto o observava, notou que ele fechara o De Vermis Mysteríis, retirara os óculos e esfregava os olhos com a mão envolta em algodão. Talvez fosse a oportunidade para pedir-lhe que pusesse de lado aqueles terríveis livros e descansasse um pouco.
- Por que não lhes expõe a sua teoria? - perguntou ela.
- O quê? - replicou ele, levantando os olhos. - Que teoria?
- Você confessou a eles que realmente não acredita em vampiros, mas isso não é de todo verdadeiro, a menos que tenha finalmente desistido daquela sua teoria favorita.
- Não, ainda acredito que possa ter havido um verdadeiro vampiro - apenas um - responsável pela origem de todas as lendas romenas. Há sólidas pistas históricas, mas nenhuma prova. E sem uma prova concreta eu não poderia publicar minha tese. Por essa mesma razão, preferi não falar a respeito disso com os alemães.
- Por quê? Eles não são eruditos.
- Tem razão, mas até agora eles acham que sou um velho professor que lhes pode ser útil. Se eu lhes expuser minha teoria pensarão que não passo de um judeu caduco e inútil. E não existe ninguém com menos probabilidade de sobreviver do que um judeu inútil no meio de nazistas. Entendeu?
Magda apressou-se em concordar, meneando a cabeça. Não era nesse rumo que ela desejava que a conversa se desenrolasse.
- Mas a respeito da teoria? Você acha que o fortim poderia ter abrigado. . .
- Um vampiro? - Papai encolheu os ombros quase imperceptivelmente. - Quem pode dizer o que vem a ser realmente um vampiro? Há muitas lendas a respeito deles, mas quem pode dizer onde a realidade deixa de existir - admitindo que haja alguma realidade nisso - e o mito começa? Entretanto há tantas lendas sobre vampiros na Transilvânia e na Morávia que alguma coisa deve ter dado origem às mesmas. No fundo, toda história extravagante tem um viso de verdade. - Os olhos dele brilhavam na máscara inexpressiva de seu rosto, enquanto fazia uma pausa. - É claro que não lhe preciso dizer que qualquer coisa estranha está acontecendo aqui. Estes livros representam prova bastante de que esta estrutura tem qualquer ligação com o sobrenatural. E aquelas palavras escritas na parede... se são obra de um demente ou o sinal de que estamos enfrentando um dos mortos - o que não morre - é o que temos de descobrir.
- Que acha você que seja? - insistiu ela, como que buscando alguma forma de convicção. Toda ela reagia à idéia de que existisse ainda algo que deveria estar morto. Jamais dera a essas lendas o menor crédito, e muitas vezes achara que o pai estava travando uma espécie de jogo intelectual ao falar sobre o assunto. Agora, porém. . .
- Não sei dizer bem o que deva ser, mas sinto que estamos à beira de uma resposta. Não é racional... algo que eu possa explicar. Mas um pressentimento. . . Sei que você também tem.
Magda concordou silenciosamente, apenas com um movimento de cabeça. Oh, sim! Ela também sentia isso. Papai esfregava os olhos novamente.
- Não posso ler mais, Magda.
- Então venha deitar-se - disse ela, esquecendo sua inquietação e dirigindo-se ao encontro do pai. - Vou ajudá-lo a deitar-se.
- Espere um momento. Ainda estou muito agitado para dormir. Toque um pouco para mim.
- Mas Papai...
- Você trouxe seu bandolim. Sei que trouxe.
- Papai você sabe que não lhe vai fazer bem.
- Por favor.
- Está bem - concordou ela com um sorriso. Nunca foi capaz de recusar-lhe qualquer coisa por muito tempo.
Havia colocado o bandolim no fundo da mala, antes de partir. Fora certamente um reflexo. Costumava levar o instrumento, para onde quer que fosse. A música sempre desempenhara papel central em sua vida e, desde que Papai perdera seu cargo na universidade, a fonte principal do sustento de ambos. Ela passara a lecionar música depois que se mudaram para o pequeno apartamento, recebendo jovens estudantes para lições de bandolim, ou indo à casa deles para ensinar piano. Ela e Papai tinham sido forçados, antes de se mudarem, a vender o piano por falta de espaço.
Magda sentou-se na cadeira que lhe haviam trazido juntamente com a lenha e os sacos de dormir, e começou a afinar o instrumento. Quando se sentiu satisfeita, iniciou uma variada mistura de melodias que aprendera com os ciganos, produzindo ritmo e melodia. O tema era também dos ciganos, uma melodia tipicamente trágica de amor não correspondido, provocando a morte de um coração ferido. Ao terminar a segunda parte e retomar a primeira, olhou para o pai.
Ele estava recostado na cadeira, os olhos cerrados, os retorcidos dedos de sua mão esquerda apertando as cordas e um imaginário violino através das luvas, a mão direita empunhando um arco também imaginário, fazendo o único movimento que suas juntas permitiam. Ela fora, no seu tempo, um bom violinista e muitas vezes tocara aquela canção em dueto com a filha, ela fazendo o contraponto dos acordes chorosos molto rubato que ele airancava do violino.
Embora suas faces estivessem secas, ele estava chorando.
- Oh, Papai, eu não deveria ter tocado esta canção! - exclamou ela, recriminando-se por haver esquecido aquele detalhe. Sabendo tantas canções, fora escolher justamente a que mais o fazia lembrar sua incapacidade para tocar.
Levantou-se para ir até junto dele, mas se deteve. O quarto não parecia estar tão iluminado como momentos antes.
- Está bem, Magda. Pelo menos posso lembrar-me de toda a melodia que tocamos juntos... melhor até do que nunca. Ainda posso ouvir, no fundo da memória, o som de meu violino. Por favor, toque mais um pouco - pediu ele, os olhos ainda cerrados atrás dos óculos.
Magda, porém, não se moveu. Sentiu que o quarto era invadido por uma onda de frio e procurou a origem daquela corrente de ar. Seria imaginação ou a luz estava realmente reduzindo seu clarão?
Papai abriu os olhos e percebeu a preocupação no rosto da filha.
- O que há, Magda?
- O fogo está se apagando!
As chamas não se extinguiam em meio à fumaça e fagulhas; simplesmente se retraíam para o interior dos toros de madeira carbonizados. À medida que eles se apagavam, o mesmo acontecia com a lâmpada pendurada no teto. O quarto foi ficando cada vez mais negro, mergulhado numa escuridão que era mais do que a simples ausência de luz, parecendo até uma coisa física. À escuridão juntou-se um frio penetrante e um odor, um cheiro acre que lembrava imagens de putrefação, de túmulos violados.
- O que está acontecendo?
- Ele está chegando, Magda! Fique junto de mim!
Instintivamente, ela se aproximou do pai, procurando protegêlo, ao mesmo tempo que se sentia protegida ao lado dele. Trémula, aninhou-se ao pé da cadeira dele, apertando-lhe seus dedos retorcidos.
- Que vamos fazer? - perguntou ela, não sabendo porque falava quase num sussurro.
As sombras se adensaram à medida que o fogo morria e a lâmpada se apagava com as últimas chamas. As paredes haviam desaparecido, mergulhadas em impenetrável escuridão. Somente o brilho de uma brasa, um mortiço raio de luz e sanidade permitia que eles se mantivessem lúcidos.
Não estavam sozinhos. Algo se movia na escuridão, aproximando-se silenciosamente. Algo sujo e faminto.
Um vento súbito começou a soprar, passando rapidamente de uma brisa para uma ventania violenta, varrendo o quarto, embora a porta e as venezianas estivessem completamente fechadas.
Magda lutava para livrar-se do terror que se apossara dela. Soltou as mãos do pai. Não podia ver a porta, mas recordava-se de que ela ficava no lado oposto ao da lareira. Açoitada pelo vento gelado, ela passou para a frente da cadeira de rodas de Papai e começou a empurrá-la para trás, para onde deveria estar a porta. Se ao menos pudesse chegar ao pátio, talvez pudesse salvar-se. Como, não sabia dizer, mas permanecer naquele quarto era como entrar numa fila e ficar esperando que a morte chamasse o nome de cada um.
A cadeira começou a rolar. Magda empurrou-a quase dois metros no rumo da porta quando sentiu que não podia dar mais um único passo. O pânico se apossou dela. Alguma coisa estava impedindo que a cadeira se movesse. Não se tratava de uma parede invisível, maciça, impenetrável, mas alguém ou alguma coisa que, na escuridão, segurava o encosto da cadeira, tornando inúteis todos os esforços para deslocá-la.
Por um instante, em meio às trevas que a envolviam, Magda teve a impressão de que havia um rosto pálido olhando para ela. Em seguida, desapareceu.
O coração da moça batia descompassadamente e suas mãos estavam tão úmidas que escorregavam nos braços de carvalho da cadeira. Aquilo não poderia estar acontecendo! Tinha de ser uma alucinação,! Nada daquilo era real. .. era isso o que sua mente lhe dizia. Mas seu corpo acreditava que era real! Olhou para o rosto do pai e viu que seu terror refletia o que estava estampado no dela.
- Não pare aqui! - gritou ele.
- Não consigo mover a cadeira!
Ele tentou girar o pescoço para ver o que os estava bloqueando, mas suas juntas não lhe permitiram isso. Voltou-se para a filha.
- Depressa! Para junto do fogo,!
Magda mudou a direção de seus esforços, recuando e puxando a cadeira. Quando esta começou a rolar em sua direção, sentiu que algo lhe agarrava o braço como se fosse uma tenaz de gelo.
Um grito morreu em sua garganta, mal se ouvindo um fraco gemido. O frio em seu braço causava-lhe uma dor insuportável, subindo até o ombro e parecendo abrir caminho no rumo do coração. Conseguiu olhar e viu a mão que segurava seu braço, junto ao cotovelo. Os dedos eram longos e grossos; pêlos curtos cobriam as costas da mão, subindo ao longo dos dedos até à raiz das unhas longas e escuras. O punho parecia dissolver-se na escuridão.
As sensações que esse contato produziram nela, apesar de ser através do tecido do casaco e da blusa, eram indescritivelmente repulsivos, enchendo-a de repugnância e horror. Ela passou a mão sobre o ombro, procurando bater em alguma coisa. Nada encontrando, soltou a cadeira de Papai e lutou para libertar-se, gemendo apavorada. Seus sapatos escorregavam no chão, e quanto mais ela lutava para libertar-se mais seus esforços eram inúteis. Não conseguiu sequer tocar na mão que a segurava.
Então a escuridão começou a alterar-se, clareando. Uma forma oval, esbranquiçada, apareceu perto dela. Era um rosto, um rosto de pesadelo.
A testa era larga e uma longa cabeleira negra caía em grossas mechas sobre cada uma das faces, como serpentes mortas presas ao crânio pelos dentes. A pele opaca, as faces encovadas, o nariz adunco, os lábios repuxados, deixando à mostra os dentes amarelados, longos e quase caninos, completavam um rosto onde os olhos brilhavam intensamente e deixavam Magda mais imóvel do que a mão gelada que a segurava pelo braço, tornando-a incapaz de gritar e de tentar uma desesperada reação.
Aqueles olhos! Grandes e redondos, frios e cristalinos, as pupilas nada mais que negros buracos incrivelmente irreais, com um negrume de céu noturno que jamais tivesse sido azulado pelo sol ou acariciado pelo brilho da lua e das estrelas. As íris em torno das pupilas eram igualmente negras, dilatando-se enquanto ela as observava, alargando os dois buracos, empurrando-a para o domínio da loucura.
... a loucura. A loucura era tão atraente, segura, serena, isolada. Seria tão agradável atravessar e submergir naqueles poços escuros . . . tão bom...
Não!
Magda lutou contra a tentação, lutou para livrar-se dela. Mas.. . por que lutar? A vida nada mais era do que doença e miséria, uma luta que terminaria em derrota. O que conseguiria? Nada que realmente valesse a pena. Por que preocupar-se?
Sentiu um súbito empuxão, quase irresistível, atraindo-a para aqueles olhos. Havia aí uma promessa de prazer para ela, um prazer mais do que meramente sexual, atendendo a todos os seus desejos.
Ela se sentiu atraída por aqueles dois buracos escuros. Seria tão fácil mergulhar neles. . .
Havia qualquer coisa dentro dela que se recusava a ceder, insistindo para que lutasse contra a tentação, mas esta era tão forte e ela estava de tal modo cansada... E, afinal, para que lutar?
Um som. , . uma música. .. e contudo não propriamente uma música. Um som no fundo de sua mente, ainda não melódico, desarmônico, uma cacofonia delirante que matraqueava e estremecia, abrindo fendas nas últimas resistências de sua vontade. O mundo em torno dela - todas as coisas - começou a desaparecer, deixando apenas aqueles olhos.. . nada mais do que aqueles olhos. . .
... ela vacilou, prestes a ceder para sempre. . .
. . . então ouviu a voz de Papai.
Magda agarrou-se àquele som, como se fosse uma corda à qual pudesse pendurar-se. Papai não estava chamando por ela, nem mesmo falava em romeno, mas era sua voz, a única coisa familiar naquele caos que a cercava.
Os olhos se desviaram. Magda estava livre. A mão que a segurava soltou-a.
Ela permaneceu ofegante, transpirando, fraca, confusa, a ventania sacudindo-lhe a saia e o lenço que lhe amarrava os cabelos, dificultando-lhe a respiração. E seu terror aumentou, pois os olhos voltavam-se agora para seu pai. Ele era tão fraco!
Entretanto Papai não deixou de enfrentar aquele olhar e falou novamente, como fizera antes, num idioma desconhecido para ela. Magda viu que o horrível sorriso no; rosto pálido desaparecia, enquanto os lábios se tornavam uma fina linha reta. Os olhos se estreitaram, não eram mais que pequenas fendas, como se a mente que os comandava estivesse considerando as palavras de Papai, pesando-lhes as conseqüências.
Magda continuava observando aquele rosto, incapaz de fazer alguma coisa. Viu a linha que formava os lábios encrespar-se levemente nas extremidades. Depois, um aceno de cabeça, não mais do que um leve movimento. Uma decisão.
O vento extinguiu-se como se nunca tivesse existido, e o rosto desapareceu na escuridão.
Tudo estava parado.
Sem uma palavra, Magda e o pai permaneceram olhando um para o outro no centro do quarto, enquanto o frio e a escuridão lentamente se dissipavam. Uma acha de lenha na lareira rachou ao meio, produzindo um ruído semelhante ao de um tiro de fuzil, e Magda sentiu seus joelhos dobrarem com o susto. Caiu para a frente, mas por sorte conseguiu agarrar-se ao encosto da cadeira para não ir ao chão.
- Você está bem? - perguntou Papai, sem olhar para ela. Estava massageando os dedos por cima das luvas.
- Vou ficar boa já - disse ela, com o pensamento voltado para o que acabara de sofrer. - O que foi isto? Meu Deus, o que foi isto?
Mas Papai não estava escutando.
- Eles foram embora. Não pude saber nada deles. Lentamente, começou a tirar as luvas dos dedos.
O esforço dele reanimou-a. Ela endireitou o corpo e começou a empurrar a cadeira para perto do fogo, que crepitava novamente. Estava exausta com o esforço e o choque, mas isso agora parecia ter importância secundária. E quanto a mim? Por que devo vir sempre em segundo lugar? Por que tenho de ser sempre forte? Uma vez... apenas uma única vez... ela gostaria de ser capaz de fraquejar e ter alguém que zelasse por ela. Procurou afastar tais pensamentos. Aquilo não era maneira de uma filha raciocinar quando o pai precisava dela.
- Não deixe que os dedos esfriem, Papai. Não há água quente, de modo que dependeremos do fogo para mantê-los aquecidos.
Na luz incerta das chamas Magda viu que as mãos dele apresentavam uma palidez de morte, tão brancas como as daquela. . . coisa. Os dedos de Papai eram cheios de nós, com a pele grossa e áspera, e unhas curvas e estriadas. Havia pequenas depressões na ponta de cada dedo, cicatrizes deixadas pelas minúsculas áreas de gangrena curada. Eram agora as mãos de um estranho. Magda ainda se recordava do tempo em que aquelas mãos eram graciosas, dotadas de longos dedos afilados. As mãos de um professor. De um músico. Tinham sido coisas vivas. Agora não passavam de mumificadas caricaturas de vida.
Magda teria de aquecê-las, mas não muito rapidamente. Em casa, quando moravam em Bucareste, a moça conservava sempre uma chaleira de água quente no fogão, durante os meses de inverno, para tais eventualidades. Os médicos chamavam isso de fenômeno de Raynaud; qualquer queda súbita de temperatura provocava espasmos constritores nos vasos sangüíneos das mãos de Papai. A nicotina tinha efeito similar e, por isso, ele fora proibido de fumar seus estimados charutos. Se os tecidos ficassem privados de oxigênio por muito tempo ou com muita freqüência, a gangrena se apossava deles. Até então ele tivera sorte. Quando a gangrena surgira, as áreas afetadas tinham sido muito pequenas e ele conseguira dominá-la. Mas nem sempre seria assim.
Ela ficou observando enquanto a pai expunha as mãos ao fogo, virando-as para cima e para baixo contra o calor, movimentando-as até o máximo permitido por suas juntas endurecidas. Ela sabia que Papai não podia sentir nada nelas agora – estavam muito geladas e dormentes. Mas, tão logo a circulação voltasse, ele iria sofrer à medida que os dedos começassem a latejar e a arder como se estivessem sobre brasas.
- Olhe o que eles fizeram com você! - disse ela com raiva, vendo os dedos mudarem do branco para o azul.
Papai levantou os olhos, admirado.
- Já estive bem pior.
- Eu sei, mas não devia ter acontecido. O que é que eles estão tentando fazer conosco?
- Eles?
- Os nazistas! Estão brincando conosco! Experimentando nossa coragem! Não sei bem o que foi que aconteceu aqui. . . foi tudo muito realístico, mas não era real! Não podia ter sido! Eles nos hipnotizaram, utilizaram drogas, abaixaram as luzes...
- Foi real, Magda - disse Papai com voz calma, confirmando o que ela suspeitava no fundo da alma e que tanto queria que ele negasse. - Tão real quanto estes livros proibidos. Eu sei...
A respiração dele acelerou-se subitamente por entre seus dentes, enquanto o sangue começava a correr dentro dos dedos, dando-lhes uma cor vermelho-escura. Os tecidos, privados de irrigação, reagiam agora, ao se livrarem de suas toxinas acumuladas Magda já presenciara tantas vezes essa situação que quase sentia em si mesma a dor que ela provocava.
Quando o sofrimento baixou para um nível suportável, ele continuou, as palavras pronunciadas aos arrancos.
- Falei com ele em antigo eslavônico. . . disse-lhe que os inimigos dele não éramos nós. . . pedi-lhe que nos deixasse em paz... e ele foi embora.
Fez uma careta de dor, depois olhou para Magda com olhos rútilos e brilhantes. Sua voz era rouca e lenta.
- É ele, Magda. Tenho certeza. É ele!
Magda nada respondeu. Ela também tinha certeza.
Quarta-feira, 30 de abril
6h22m
O Capitão Woermann tentara passar a noite em claro, mas não conseguira. Sentara-se junto à janela que dava para o pátio, com sua Luger ao alcance da mão, embora duvidasse que uma parabelum de 9 mm fosse de alguma utilidade contra quem quer que estivesse assombrando o fortim. Tantas noites sem dormir, com raros cochilos durante o dia, acabaram com sua resistência.
Acordou de repente, desorientado. Por um momento, pensou estar de volta a Rathenow, com Helga na cozinha preparando ovos com salsichas e os rapazes já levantados e tirando leite das vacas. Mas fora apenas um sonho.
Quando notou que o dia já clareara, saltou da cadeira. A noite passara e ele ainda estava vivo. Sobrevivera mais uma noite. Sua alegria não durou muito, pois ele sabia que alguma outra pessoa teria sido sacrificada. Em algum lugar do fortim haveria certamente um corpo todo ensangüentado, aguardando ser descoberto.
Guardou a Luger no coldre, atravessou o quarto e se dirigiu para a escada. Estava tudo calmo. Desceu os degraus esfregando os olhos e massageando o rosto ainda não barbeado para sentir-se bem desperto. Ao chegar ao pavimento térreo, a porta dos aposentos dos judeus se abriu e Magda saiu apressadamente.
Ela não chegou a vê-lo. Levava nas mãos uma chaleira e sua fisionomia denotava aflição. Absorta em seus pensamentos, entrou no pátio e dobrou à direita, na direção das escadas do porão, completamente alheia à presença de Woermann. Parecia saber exatamente para onde ia, o que o impressionou até que ele lembrou que ela já estivera antes no fortim inúmeras vezes. Ela conhecia a localização das cisternas e sabia que encontraria lá água fresca.
Woermann entrou também no pátio e ficou observando os movimentos da moça. Havia um toque etéreo na cena: uma mulher pisando aquele chão empedrado ao clarear do dia, cercada por paredes cinzentas incrustadas de cruzes metálicas, um resto de cerração ainda rente ao solo, cobrindo-lhe os passos. Tudo como num. sonho. Ela dava a impressão de ser uma mulher elegante, sob aquelas camadas de saias. Havia um requebro natural em seus quadris quando ela caminhava, uma graça não explorada que instintivamente chamou a atenção do macho que havia nele. Um rosto bonito, também, especialmente devido aos seus grandes olhos castanhos. Se ao menos ela soltasse os cabelos, desamarrando aquele lenço, poderia mostrar-se bela.
Em outra ocasião, em outro lugar, ela correria sério perigo em situação similar: cinco esquadras de soldados ávidos de mulheres. Mas esses soldados tinham outras preocupações a enfrentar - temiam a escuridão, e a morte que infalivelmente a acompanhava.
Woermann estava a ponto de segui-la até ao porão, a fim de certificar-se de que ela procurava apenas apanhar água na cisterna, quando avistou o Sargento Oster correndo em sua direção.
- Capitão! Capitão!
Woermann suspirou resignadamente e preparou-se para ouvir as novidades.
-- Quem foi que perdemos?
- Ninguém - exclamou o sargento, agitando a relação. - Verifiquei um por um e todos estão vivos e bem!
Woermann teve receio de participar daquela euforia - já fora enganado uma vez na semana anterior -, mas permitiu-se um fio de esperança.
- Tem certeza? Certeza absoluta?
- Sim, senhor. Todos, exceto o major, é claro. E os dois judeus.
- Woermann olhou para a seção de trás do fortim, onde se situava a janela de Kaempffer. Será que ele. . .?
- Eu tinha deixado os oficiais para verificar no fim - explicou Oster, como que desculpando-se.
Woermann meneou a cabeça, sem prestar-lhe muita atenção. Será que ele?. . . Poderia Erich Kaempffer ter sido a vítima daquela noite? Seria demais esperar que fosse. Woermann nunca imaginara que pudesse vir a odiar um outro ser humano com a mesma intensidade com que passara a odiar Kaempffer desde a véspera.
Foi com ansiosa expectativa que ele começou a caminhar na direção da parte traseira do fortim. Se Kaempffer estivesse morto, não apenas o mundo se tornaria melhor, mas também ele voltaria a ser o oficial mais graduado e retiraria seus homens do fortim antes do meio-dia. Os einsatzkommandos poderiam ir também ou ficar para trás, morrendo, até que chegasse outro oficial da SS. Woermann não tinha dúvida de que eles o acompanhariam, quando o destacamento partisse.
Se, porém, Kaempffer estivesse vivo, seria uma decepção, mas com um aspecto positivo: Pela primeira vez, desde que eles chegaram, passara-se uma noite sem que um soldado alemão morresse. E isso era ótimo. Levantaria o moral de maneira incalculável. Talvez até significasse uma leve esperança de que havia desaparecido aquele manto da morte que os envolvera como uma mortalha.
Quando Woermann atravessou o pátio, o sargento que seguia atrás dele perguntou:
- O senhor acha que os judeus são responsáveis?
- Responsáveis por quê?
- Por não ter morrido ninguém esta noite.
Woermann detevê-se e correu o olhar entre Oster e a janela de Kaempffer, situada quase acima da cabeça deles. O sargento aparentemente não tinha dúvida de que Kaempffer estivesse vivo.
- Por que você pensa assim dos judeus, sargento? O que poderiam eles ter feito?
Oster franziu a testa.
- Não sei. Os homens - os nossos homens - pelo menos acreditam que foi por causa deles. Afinal, nós perdemos alguém em cada noite, exceto na que passou. E foi ontem que os judeus chegaram. Talvez tenham descoberto alguma coisa naqueles livros que nós achamos.
- Talvez - replicou Woermann, continuando a caminhar para a seção traseira do fortim e subindo a escada para o segundo pavimento.
Interessante, mas improvável. O velho judeu e sua filha não poderiam obter um resultado assim tão rapidamente. Velho judeu. . . Terrível.
Woermann estava ofegante, ao atingir os aposentos de Kaempffer. Salsichas demais, disse para si mesmo. Muitas horas passadas sentado e pintando, ao invés de caminhar bastante e queimar umas calorias. Quando ia bater na porta de Kaempffer, ela se abriu e o próprio major apareceu.
- Ah, Klaus! - disse ele asperamente. - Bem me pareceu que havia alguém aqui.
Ajustou o cinturão preto de seu talabarte de oficial, cruzado sobre o peito, e certificou-se de que o coldre estava bem preso. Satisfeito, saiu para o corredor.
- É um prazer ver que você está tão bem - disse Woermann.
Kaempffer, atingido pela insinceridade da observação, olhou para o capitão, depois para o sargento.
- Bem, sargento, quem foi desta vez?
- Como disse, senhor?
- O morto! Quem morreu na noite passada? Um dos meus ou dos seus? Quero que o judeu e sua filha vejam o corpo e quero também. . .
- Desculpe, senhor - interrompeu Oster - mas ninguém morreu esta noite.
Kaempffer franziu a testa e voltou-se para Woermann.
- Ninguém? Foi mesmo?
- Se o sargento afirmou, é o suficiente para mim.
- Então conseguimos! - exclamou, dando um soco na palma da mão e se aprumando todo. - Nós conseguimos!
- Nós? Pode dizer-me, caro major, o que foi que nós fizemos?
- Ora, varamos uma noite sem uma única morte! Bem que lhe disse que se nós nos mantivéssemos firmes, poderíamos derrotar essa coisa!
- Realmente você disse isso - replicou Woermann, escolhendo cuidadosamente as palavras. Aquilo o estava divertindo. - Mas me conte direitinho: o que foi que produziu o desejado efeito? Qual foi exatamente a medida que nos protegeu a noite passada? Quero estar bem a par disso, de maneira que possa repeti-la hoje novamente.
O entusiasmo de Kaempffer desvaneceu-se tão rapidamente quanto surgira.
- Vamos falar com aquele judeu - disse ele, passando por Woermann e Oster, e dirigindo-se para a escada.
- Pensei que você já tivesse pensado nisso há mais tempo - ironizou Woermann, acompanhando o major mais lentamente.
Ao entrarem no pátio, Woermann teve a impressão de ouvir o leve som de uma voz feminina procedente do porão. Não conseguiu entender as palavras, mas percebeu que havia aflição nelas. Os sons se tornaram mais altos, mais agudos. A mulher estava agora gritando desesperadamente.
Woermann correu para a entrada do porão. A filha do professor estava lá - ele se lembrou então que o nome dela era Magda -, encurralada no ângulo formado pela escada e pela parede. Seu casaco fora rasgado, assim como a blusa e o sutiã, tudo arrancado de um dos ombros, deixando exposto o globo branco de um seio. Um einsatzkommando estava com o rosto afundado naquele seio, enquanto ela se debatia, batendo inutilmente com os punhos e os pés no atacante.
Woermann ficou um instante imobilizado pela surpresa, depois se lançou escada abaixo. Tão empenhado estava o soldado com o seio de Magda que nem ouviu a aproximação de Woermann. Com os dentes cerrados, o capitão deu-lhe um pontapé com toda a força que pôde e sentiu certo prazer em bater pelo menos em um daqueles tipos desprezíveis. Com dificuldade resistiu à vontade de continuar batendo.
O soldado da SS gemeu de dor e endireitou o corpo, pronto para agir contra quem lhe desferira o golpe. Ao ver que se tratava de um oficial, seus olhos enfurecidos revelaram a indecisão sobre se deveria reagir.
Por uma fração de segundo Woermann chegou a desejar que houvesse reação. Ao menor sinal, sua mão estava pronta a puxar a Luger. Nunca imaginou que um dia se visse obrigado a atirar em um soldado alemão, mas, no fundo, sentiu que gostaria de matar aquele homem, de dar vazão, através dele, a toda a sua revolta contra o que estavam fazendo de sua pátria, de seu exército, de sua carreira.
O soldado recuou. Woermann sentiu-se aliviado.
O que acontecera com ele? Nunca, até então, sentira tanto ódio. Matara em combate, a distância e em corpo-a-corpo, mas jamais com ódio. Era uma sensação desagradável, incômoda, como se uma pessoa estranha se tivesse instalado em sua residência sem ser convidado e ele não encontrasse meios de obrigá-la a sair dali.
Quando o soldado se afastou, alisando o uniforme preto, Woermann olhou para Magda. Ela havia recomposto suas roupas e estava se pondo em pé. E, sem que ninguém esperasse, deu meiavolta e bateu com a palma da mão no rosto de seu agressor com tal força que a cabeça dele foi jogada para trás, fazendo-o recuar até o último degrau da escada. E ele só não caiu de costas porque se apoiou na parede de pedra.
Ela exclamou qualquer coisa em romeno - o tom de sua voz e a expressão de seu rosto traduziam o que as palavras não conseguiam exprimir, depois apanhou sua chaleira e retirou-se, passando por Woermann sem sequer olhar para ele.
Woermann precisou de toda a sua circunspecção prussiana para evitar aplaudir a moça. Voltou-se então para o soldado, que ficara constrangedoramente sem saber se se mantinha em posição de sentido na presença de um oficial ou se reagia à bofetada da moça.
Moça. . . por que Woermann pensava nela como uma moça? Era talvez uns doze anos mais jovem que ele, mas certamente uma década mais velha que seu filho Kurt, e ele considerava Kurt como sendo um homem. Talvez fosse por causa de certa inocência, certo ar de frescor - algo que deveria ser preservado, protegido. . .
- Qual é o seu nome, soldado?
- Soldado Leeb, senhor. Einsatzkommandos.
- Você tem o costume de atacar mulheres quando em serviço?
Silêncio.
- O que acabei de ver faz parte das atribuições que deram aqui no porão?
- Ela é apenas uma judia, senhor.
O tom de voz dava idéia de que este detalhe era suficiente para explicar tudo o que ele tivesse feito contra ela.
- Você não respondeu à minha pergunta, soldado! - Woermann estava a ponto de perder o controle. - Atacar mulheres é parte de suas funções aqui?
- Não, senhor - respondeu o soldado, mas a réplica foi ao mesmo tempo relutante e provocadora.
Woermann deu um passo à frente e retirou a Schmeisser do ombro do Soldado Leeb.
- Você está detido em seu alojamento. . .
- Mas senhor. . .
Woermann notou que o apelo não era dirigido a ele, mas a alguém que estava uns degraus mais acima, atrás dele. Não precisou voltar-se para saber de quem se tratava, de modo que prosseguiu sem a menor hesitação.
- ... por haver abandonado seu posto. O Sargento Oster providenciará uma disciplina adequada. - Deteve-se e olhou para o topo da escada, diretamente nos olhos de Kaempffer. - A menos, naturalmente, que o major já se tenha decidido por uma determinada punição.
Oficialmente, Kaempffer tinha o direito de interferir, uma vez que cada um dos dois oficiais tinha comando independente, segundo hierarquias diferentes, e Kaempffer se encontrava ali por ordem do Alto Comando, ao qual todos estavam afinal subordinados. Era também mais graduado. Entretanto, Kaempffer nada podia fazer. Relevar a falta do Soldado Leeb seria apoiar a indisciplina. Nenhum oficial seria capaz disso. Kaempffer encontrava-se numa encruzilhada. Woermann, percebendo a situação, tratou de explorá-la.
O major falou rispidamente.
- Leve esse homem, sargento. Falarei com ele mais tarde. Woermann atirou a Schmeisser para Oster, que empurrou o abatido soldado escada acima.
- Da próxima vez - reclamou Kaempffer azedamente, quando o sargento e o soldado ficaram fora do alcance de sua voz - não se meta a punir nem a dar ordens a meus homens. O comandante deles não é você, sou eu!
Woermann começou a subir a escada. Quando chegou ao degrau em que se encontrava Kaempffer, virou-se para ele.
- Então mantenha-os presos em suas coleiras!
O Major empalideceu, surpreendido pela repentina explosão.
- Escute, Herr Oficial da SS - continuou Woermann, deixando que toda a sua raiva e frustração aflorassem à superfície - e escute bem. Não sei de que maneira poderei meter isto em sua cabeça. Tentarei utilizar a razão, mas receio que você seja imune a qualquer tipo de raciocínio. Assim, apelarei para o seu instinto de autopreservação - ambos sabemos o quanto ele é desenvolvido em você. Veja bem: ninguém morreu esta noite, e a única diferença, relativamente às demais noites, foi a presença dos dois judeus de Bucareste. Deve haver uma conexão. Por conseguinte, se não houver outra razão para explicar a interrupção das mortes e uma maneira de acabar com elas, é preciso que você mantenha seus animais afastados da moça e do pai!
Não esperou a resposta de Kaempffer, receando ter de agredilo, se não se afastasse imediatamente. Ao dirigir-se para a torre "ouviu os passos de Kaempffer atrás dele. Bateu na porta dos aposentos do pavimento térreo, mas não esperou resposta para entrar. A cortesia estava sendo violada, mas ele pretendia manter uma indisputada posição de autoridade aos olhos daqueles dois civis.
O professor limitou-se a levantar os olhos quando os dois alemães entraram. Estava sozinho no quarto da frente, bebendo água em um pequeno copo, ainda sentado em sua cadeira de rodas junto à mesa coberta de livros, da mesma maneira como eles o haviam deixado na noite anterior. Woermann teve a impressão de que o professor não saíra dali durante todo o tempo. Seu olhar desviou-se dos livros e ficou parado. Viera-lhe à lembrança um trecho que lera em um dos livros durante a noite. . . a respeito da preparação de sacrifícios para alguma divindade cujo nome era uma impronunciável seqüência de consoantes. Estremecia, mesmo agora, ao recordar o que deveria ser sacrificado e como o sacrifício era preparado. Ninguém seria capaz de ler aquela descrição sem se sentir mal. . .
Woermann correu os olhos pelo quarto. A moça não estava lá - provavelmente encontrava-se no quarto vizinho. Este aposento parecia menor que o quarto dele, dois pavimentos acima. . . talvez fosse apenas uma impressão criada pela pilha de livros e pela bagagem.
- Será o que aconteceu esta manhã um exemplo do que nos espera se desejarmos beber água? - perguntou o professor desdenhosamente. - E minha filha será ela assaltada cada vez que sair do quarto?
- Quanto a isso já foram tomadas providências - replicou Woermann. - O soldado será punido. - Ao ver que Kaempffer o escutava, postado na outra extremidade do quarto, acrescentou:
- Posso assegurar-lhe que isso não voltará a acontecer.
- Espero que não - disse Cuza. - Já é tarefa difícil tentar descobrir qualquer informação útil nestes textos, mesmo trabalhando sob as melhores condições. Mas se esse esforço é feito sob a ameaça de ofensas físicas a qualquer momento... o espírito se rebela.
- É melhor não rebelar-se, judeu! - exclamou Kaempffer.
- Procure proceder como lhe foi dito.
- É impossível para mim tentar concentrar-me nestes textos se eu estiver preocupado com a segurança de minha filha. Não é uma coisa muito difícil de compreender.
Woermann teve a impressão de que o professor estava tentando fazer-lhe um apelo, mas não imaginava o que pudesse ser.
- Receio que isso seja inevitável - disse ele, dirigindo-se a Cuza. - Ela é a única mulher existente no que corresponde essencialmente a uma base militar. Não estou menos aborrecido que o senhor. Não deveria haver uma mulher aqui. A menos... - Ocorrera-lhe uma idéia. Fitou Kaempffer - Nós a alojaremos na estalagem. Ela poderá levar consigo alguns livros e estudá-los, vindo aqui trocar idéias com seu pai.
- Nada disso! - exclamou Kaempffer. - Ela continuará aqui, onde poderemos ficar de olho nela. E agora -- acrescentou, aproximando-se de Cuza - estou interessado em saber que foi que você andou lendo que nos manteve todos vivos!
- Não estou entendendo. . .
- É que ninguém morreu na noite passada - esclareceu Woermann. Ele esperou por uma reação na fisionomia do professor, mas era difícil, senão impossível, discernir uma mudança de expressão naquele rosto enrugado. No entanto pensou ter visto os olhos se alargarem quase imperceptivelmente de surpresa.
- Magda! - chamou. - Venha cá!
A porta do outro quarto se abriu e a moça apareceu. Parecia recobrada do incidente nos degraus do porão, mas Woermann percebeu que a mão dela tremia, apoiada no trinco da porta.
- O que é, Papai?
- Não houve mortes na noite passada! - exclamou Cuza.
- Deve ter sido uma daquelas magias que estive lendo!
- Na noite passada?
A expressão da moça traía um instante de confusão e alguma coisa mais: uma recordação do pavor que a dominara na noite anterior. Ela trocou olhares com o pai e pareceu ter havido um sinal entre ambos, alegrando o rosto da moça.
- Maravilhoso! Que magia teria sido?
Magia? - pensou Woermann. Na semana anterior teria rido de uma conversa assim - aquilo cheirava a crença em feitiçaria, em magia negra -, mas agora aceitaria qualquer explicação por ter havido uma noite sem mortes. Qualquer.
- Deixe-me ver essa magia - disse Kaempffer, interessado.
- Pois não - replicou Cuza, apanhando um grosso volume. - Este é o De Vermis Mysterih, de Ludwig Prinn. Está escrito em latim. Conhece essa língua, major?
Um aperto dos lábios de Kaempffer foi a única resposta.
- É uma pena - lamentou o professor. - Deixe-me traduzir para. . .
- Você está mentindo para mim, não está, judeu? - disse Kaempffer em tom ameaçador.
Cuza, porém, não era de intimidar-se facilmente, e Woermann admirou-o pela coragem.
- A resposta está aqui! - exclamou o professor, apontando para a pilha de livros à sua frente. - A noite passada é a prova disso. Ainda não sei que fantasma assombra o fortim, mas com um pouco de tempo, de tranqüilidade, sem interrupções, estou certo de que descobrirei. Agora, bom-dia, senhores!
Ajustou suas grossas lentes e olhou o livro mais de perto. Woermann escondeu um sorriso ante a raiva impotente de Kaempffer e falou antes que o major pudesse dizer alguma grosseria.
- Acho que temos o maior interesse em deixar que o professor cumpra a missão que o trouxe aqui, não é verdade, major?
Kaempffer cruzou as mãos nas costas e dirigiu-se para a porta. Antes de sair, Woermann lançou um último olhar para o professor e sua filha. Aqueles dois estavam escondendo alguma coisa. Se era a respeito do fortim ou da entidade assassina que percorria seus corredores à noite, ele não saberia dizer. Aliás, isso agora não interessava. Desde que seus homens deixassem de ser assassinados à noite, Woermann não se preocuparia com o segredo do professor e de sua filha. Talvez não quisesse saber nunca. Todavia, se as mortes recomeçassem, ele exigiria uma completa explicação.
O Professor Cuza largou o livro tão logo a porta se fechou atrás do capitão, e começou a esfregar os dedos de suas mãos um por um, pacientemente.
As horas da manhã eram as piores, quando todo o corpo lhe doía, especialmente as mãos. Cada junta era como uma dobradiça enferrujada da porta de uma cabana abandonada, protestando sob a forma de dor ou de rangido ao mais leve movimento, recusando-se teimosamente a mudar de posição. Todas as suas juntas doíam. Acordar, levantar, passar para a cadeira de rodas - seus movimentos de todos os dias - representava uma seqüência de dores nos quadris, nos joelhos, nos punhos, nos cotovelos e nos ombros. Somente por volta do meio-dia, depois de dois comprimidos de aspirina, um de cada vez, e de quando em quando um pouco de codeína, quando havia, a dor em seus tecidos conectivos passava a ser tolerável. Ele já não considerava seu corpo como um conjunto de ossos, carne e sangue, mas uma peça de mecanismo de relojoaria deixado ao relento e agora irreparavelmente avariado.
E havia ainda a boca seca que tanto o incomodava. Os médicos diziam que "não era incomum os pacientes de esclerodermia experimentarem uma substancial diminuição do volume das secreções salivares". Eles falavam como se se tratasse de uma coisa trivial, mas não havia nada mais incómodo do que viver com a língua sempre seca como gesso-de-paris. A solução era ter um copo de água sempre ao alcance da mão; se deixasse de molhar a boca de vez em quando sua voz começava a soar como o arrastar de velhos sapatos sobre solo arenoso.
Engolir também constituía um sacrifício. Até mesmo a água passava com dificuldade em sua garganta. Quanto aos alimentos - era obrigado a mastigar tudo até que os músculos da mandíbula se cansassem e, depois, ficava torcendo para que a porção engolida não ficasse presa a meio caminho de seu estômago.
Isso não era vida, e mais de uma vez ele considerara a conveniência de acabar com tanto sacrifício. Entretanto, nunca tentara. Talvez porque lhe faltasse coragem, ou então porque a possuísse com força suficiente para enfrentar a vida como ela lhe era oferecida. Ele não saberia dizer qual a verdadeira razão.
- Você está bem, Papai?
Olhou para a filha. Magda estava em pé junto à lareira, os braços cruzados sobre o peito, ainda trémula. Não era de frio. O professor sabia que ela ficara muito abalada pela visita que recebera na noite anterior e que talvez nem tivesse dormido, como acontecera com ele. E, depois de tudo isso, ser agredida a menos de dez metros de seu próprio alojamento...
Selvagens! O que ele não daria para vê-los todos mortos, não apenas aqueles que estavam no fortim, mas cada nazista que manchasse o solo da Roménia, atravessando sua fronteira! E também os que viviam na Alemanha. Desejava que houvesse um meio de exterminá-los todos, antes que eles o exterminassem. Mas que poderia fazer? Um pobre professor aleijado, que aparentava ter o dobro de sua verdadeira idade, que nem sequer era capaz de defender a própria filha - que poderia fazer?
Nada. Queria gritar, quebrar alguma coisa, derrubar paredes como fizera Sansão. Queria chorar e ultimamente chorava muitas vezes, apesar da falta de lágrimas. Isso não era próprio de um homem, mas, afinal, já não lhe restava muita coisa de um ser humano normal.
- Estou bem, Magda - respondeu ele. - Nem melhor nem pior do que de costume. É você que me preocupa. Este não é um lugar para uma mulher.
- Bem sei - replicou ela com um suspiro. - Mas não há maneira de sairmos daqui sem que eles o permitam.
- A filha devotada de sempre - comentou ele, com um enorme sentimento de gratidão. Magda era dedicada e leal, com grande força de vontade e noção de dever. Ele se perguntava a si mesmo o que havia feito para merecê-la. - Eu não estava falando a respeito de nós, mas apenas de você. Quero que deixe o fortim logo ao escurecer.
- Não tenho muita prática em escalar muralhas, Papai - disse ela com um sorriso cansado. - E também não pretendo seduzir o guarda do portão. Não sei como sair daqui.
- A rota de fuga está bem embaixo de seus pés. Lembra-se? Os olhos dela se arregalaram.
- É mesmo! Tinha-me esquecido completamente.
- Como é possível isso? Foi você mesma quem a descobriu. Acontecera por ocasião da última visita que eles haviam feito ao passo. O professor ainda podia caminhar, mas necessitava de duas bengalas para compensar a fraqueza de suas pernas. Incapaz de fazê-lo pessoalmente, ele pedira a Magda que fosse até à garganta procurar um marco junto ao fortim, ou talvez uma pedra com alguma inscrição. . . um indício qualquer que conduzisse à identificação dos construtores da obra. Magda não encontrou o que procurava, mas teve a atenção despertada por uma grande pedra lisa bem na base da torre; quando a moça se apoiou nela, a pedra se deslocou, girando para a esquerda. A luz do sol, penetrando pela abertura, revelou um lanço de escadas que conduzia para cima.
Apesar dos protestos do pai, ela insistira em explorar a base da torre, na esperança de encontrar no interior alguma informação útil, mas havia apenas uns degraus em espiral, que terminavam no que parecia ser um nicho no teto da base. Na verdade, porém, tratava-se de uma parede que dividia os dois quartos que eles agora ocupavam. No fundo do nicho Magda descobriu outra pedra que - embora parecendo ser idêntica às demais que formavam a parede - cedeu à pressão e girou, abrindo espaço para a entrada no maior dos dois quartos e permitindo a ligação direta com a parte exterior da torre.
Na ocasião, Cuza não atribuiu grande importância a essa entrada - os castelos ou fortes tinham sempre uma secreta rota de fuga. Agora iria servir para que Magda alcançasse a liberdade.
- Quero que você utilize essa saída tão logo escureça, atravesse a garganta e se dirija para leste. Quando chegar ao Danúbio, siga até o mar Negro e daí vá para a Turquia ou. . .
- Sem você?
- É claro que sem mim!
- Então tire isso da cabeça, Papai! Onde você ficar, eu ficarei.
- Magda, estou exigindo, como seu pai, que você me obedeça!
- Desculpe, mas não o abandonarei. Seria incapaz de continuar vivendo se o fizesse!
Por mais que se sentisse lisonjeado por tal decisão, o professor queria que seu plano fosse cumprido. Estava claro que, desta vez, uma ordem sua não seria obedecida. Decidiu, então, implorar. Ao longo dos anos ele se acostumou a a depender dela. De um jeito ou de outro, amedrontando-a ou incutindo-lhe um sentimento de culpa, ele geralmente conseguia que a filha cumprisse todas as suas ordens. Por vezes, chegava a arrepender-se pela maneira como dominava a vida dela, mas afinal era sua filha, e ele, além de pai, necessitava de auxílio. Agora, porém, que chegara a vez de libertá-la, ela se negava a salvar-se.
- Por favor, Magda. É a última coisa que lhe pede um velho condenado à morte, que irá para o túmulo sorrindo se souber que você está livre dos nazistas.
- E eu sabendo que o deixei no meio deles? Nunca!
- Por favor, escute-me. Você pode levar o Al Azif. Sei que é volumoso, mas provavelmente oúltimo exemplar que existe em qualquer idioma. Não há um país neste mundo que não pague por esse exemplar um preço capaz de permitir que você viva confortavelmente até o fim de seus dias.
- Não, Papai - disse ela, com uma determinação na voz que ele jamais ouvira.
Magda afastou-se e encaminhou-se para o outro quarto, fechando a porta atrás de si.
"Eu a eduquei tão bem - pensou ele -, vivemos sempre tão agarrados um ao outro que não consigo afastá-la nem mesmo para o bem dela. Será por isso que ela jamais casou? Por minha causa?"
Cuza enxugou os olhos úmidos com os dedos forrados de algodão enquanto relembrava o passado. Desde a puberdade Magda sempre fora objeto de constante atenção masculina. Algo nela atraía diferentes tipos de homens e de diferentes modos; raramente algum deles se mostrava insensível a isso. Provavelmente ela teria casado e seria mãe várias vezes - e ele, avô - se a mãe dela não tivesse morrido de repente onze anos antes. Magda, então com apenas vinte, alterara completamente sua vida, passando a exercer as funções de secretária, companheira, associada e, agora, enfermeira. Os homens que a cortejavam dificilmente tinham oportunidade de vê-la. Aos poucos Magda fora se recolhendo dentro de uma concha. Cuza conhecia bem cada um dos pontos sensíveis dessa concha. .. e podia penetrar nela a seu bel-prazer. Para todas as demais pessoas ela era completamente fechada.
Naquele momento, porém, havia preocupações de outra ordem. O futuro de Magda se apresentava ameaçador, a menos que ela fugisse do fortim. Além disso, havia a aparição que eles tinham enfrentado na noite anterior. Cuza estava certo de que ela retornaria e não queria que Magda estivesse presente nessa ocasião. Havia algo naqueles olhos medonhos que gelava o coração do professor. Aquela atração indescritível. . . Ele queria que Magda estivesse longe esta noite.
Entretanto, mais do que qualquer outra coisa, ele queria estar ali pessoalmente, esperando a repetição da visita. Seria o momento de uma existência - de uma dúzia de existências - encontrar-se de verdade face a face com um mito, com um fantasma que, durante séculos, foi utilizado para assustar crianças. E adultos também. Documentar sua existência! Precisava falar com aquele fantasma outra vez, induzi-lo a responder. . . Tinha de descobrir quais, entre os mitos, eram verdadeiros e quais eram falsos.
A simples ideia do encontro fez com que seu coração batesse mais aceleradamente. Apesar de tudo, ele não se sentia amedrontado. Conhecia a língua em que aquele ser se exprimia e tinha até mesmo falado com ele na noite anterior. Fora compreendido e não sofrera qualquer agressão. Havia a possibilidade de um entendimento entre ambos, algum ponto de idéias comuns. O professor, com certeza, não tinha em mente deter ou causar dano àquele ser - Theodor Cuza não era um inimigo de qualquer coisa que reduzisse os efetivos do exército alemão.
Olhou para a mesa atulhada de livros. Estava certo de que não encontraria neles qualquer coisa que o prejudicasse. Compreendia agora por que aqueles velhos livros haviam sido escondidos: eram execráveis. Entretanto eram também úteis como meios auxiliares na pequena peça que ele estava preparando para aqueles dois oficiais alemães rivais. Sentia-se obrigado a permanecer no fortim até que soubesse tudo a respeito daquele estranho ser que morava lá. Depois, os alemães podiam castigá-lo à vontade.
Magda, porém... Magda tinha de ser posta a salvo, a fim de que ele não tivesse sua atenção desviada. Ela não partiria por sua própria vontade. . . mas não haveria uma possibilidade de forçá-la? O Capitão Woermann talvez fosse a solução. Ele não parecia muito satisfeito por ter de abrigar uma mulher no fortim. Sim. . . se Woermann pudesse ser instigado. . .
Cuza se sentia envergonhado pelo que iria fazer.
- Magda! - chamou ele. - Magda! Ela abriu a porta e ficou parada.
- Espero que não vá insistir para que eu deixe o fortim, porque...
- Não é o fortim, mas apenas o quarto. Estou com fome e os alemães disseram que poderíamos utilizar a cozinha deles.
- Vieram trazer alguma comida?
- Não, e eu estou certo de que não virão. Você terá de ir buscá-la.
- Atravessar o pátio? - perguntou ela, desconfiada. - Você quer que eu vá lá fora depois de tudo o que aconteceu?
- Tenho certeza de que o fato não se repetirá - replicou o professor, odiando-se por ter de mentir para a filha, mas era o único recurso. - Os soldados já foram advertidos pelos oficiais. E, além disso, você não terá de descer a escada de nenhum porão escuro. Estará sempre à vista de todos.
- Mas a maneira como eles olham para mim. . .
- Entendo, mas precisamos comer.
Houve uma longa pausa enquanto Magda fixava os olhos nos do pai. Então ela concordou.
- É acho que precisamos.
Abotoou o suéter até ao pescoço, atravessou o quarto e saiu sem dizer mais nada.
Cuza sentiu a garganta contrair-se quando a porta se fechou atrás dela. Magda era corajosa e acreditava nele - um sentimento que ele estava traindo. Entretanto, não se arrependia. Sabia o que a esperava lá fora, mas conscientemente a mandara para o sacrifício, inventando a história da alimentação.
Não tinha a menor vontade de comer.
DELTA DO DANÚBIO, ROMÊNIA ORIENTAL
Quarta-feira, 30 de abril
10h35m
A terra estava à vista novamente.
Dezesseis horas enervantes, cada uma parecendo um dia interminável, haviam felizmente chegado ao fim. O homem ruivo, em pé na proa batida pelo vento, olhou para a linha da costa. O pesqueiro tinha-se arrastado através de todo o mar Negro a uma velocidade constante, até mesmo boa, mas considerada exasperantemente lenta para a impaciência do único passageiro. Por sorte, ele não fora detido por nenhum dos dois barcos militares de patrulha, um russo e um romeno, com os quais havia cruzado. Se isso tivesse acontecido poderia revelar-se uma desgraça.
Logo à frente abria-se em leque de canais o delta por onde o Danúbio desemboca no mar Negro. A praia era verde e pantanosa, pontilhada de inúmeras enseadas. Atracar não seria problema, mas subir através dos pântanos para margens mais altas e secas exigiria muito tempo. E ele não podia perder um minuto!
Era preciso achar outra solução.
O homem ruivo olhou por cima do ombro para o velho turco que manejava o leme, depois voltou a estudar o delta. O pesqueiro não exigia grande calado - podia deslocar-se tranqüilamente em pouco mais de um metro de água. Havia uma possibilidade: enveredar por um daqueles estreitos canais que constituíam o delta até alcançar o próprio Danúbio, depois rumar para oeste ao longo do rio até determinado ponto, por exemplo, logo a leste de Galati. Teriam de navegar contra a corrente, mas assim mesmo seria mais rápido do que andar a pé, patinhando através de quilômetros de terreno pantanoso.
Abriu um dos bolsos de seu cinturão de dinheiro e tirou duas moedas de cinqüenta pesos. O peso de ambas correspondia a cerca de duas onças e meia de ouro. Dirigindo-se ao turco, fez a proposta no próprio idioma deste:
- Kiamil! Duas moedas mais, se você subir o rio!
O pescador olhou para as moedas e se manteve em silêncio, mordendo o lábio inferior. Já tinha em seu bolso ouro bastante para tornar-se o homem mais rico da vila. Por uns tempos, pelo menos. Sabia que nada dura eternamente, e em breve ele teria de voltar ao trabalho, depois de remendar as redes. Aquelas duas moedas adicionais poderiam prolongar bastante seu merecido descanso. Quem poderia calcular quantos dias seriam necessários no mar, quantos ferimentos nas mãos, quantos esforços de músculos já envelhecendo, quantas redadas entregues na fábrica de conservas para ganhar uma quantia equivalente àquela?
O homem ruivo observava a fisionomia de Kiamil enquanto este pesava os riscos e as vantagens da proposta. E, enquanto observava, ele próprio também calculava os riscos: teriam de viajar de dia, nunca se afastando muito da costa por causa da estreiteza do canal ao longo de quase todo o percurso, em águas romenas, a bordo de um barco turco.
Era uma temeridade. Mesmo que, por um milagre, alcançassem a margem de Galati sem serem detidos, Kiamil não poderia esperar que tal milagre se repetisse quando fizesse a viagem de volta. Seria apanhado, seu barco apreendido e ele posto na cadeia. Inversamente, havia pequeno risco para o homem ruivo. Se fossem interceptados e levados para um porto, ele acharia um meio de escapar e prosseguir em sua viagem. Kiamil, porém, no mínimo perderia seu barco. Possivelmente até sua vida.
Não seria justo. Nem valia a pena. Nem era decente. O homem ruivo recolheu as moedas justamente quando o turco estendia a mão para apanhá-las.
- Esqueça a proposta, Kiamil. Acho melhor mantermos o acordo inicial. Encoste em qualquer lugar por aí.
O velho turco concordou com um movimento de cabeça, a fisionomia revelando mais alívio do que decepção. A vista das moedas de ouro por pouco não fez dele um tolo ambicioso.
Quando o barco rumou para terra, o homem ruivo colocou no ombro o embrulho do cobertor que continha todos os seus pertences e, embaixo do braço, a caixa comprida e chata que trouxera consigo. Kiamil levou o barco até junto de um banco de areia, coberto de pedaços de raízes e ramos apodrecidos. O homem ruivo trepou na amurada e saltou para terra. Depois, voltou-se e acenou para Kiamil. O turco acenou para ele e começou a recuar o barco, afastando-se da margem.
- Kiamil! - gritou ele. - Tome!
O passageiro atirou para o barco as duas moedas de ouro, uma de cada vez. A mão calosa do turco apanhou-as sucessivamente no ar.
Ouvindo sonoros e profundos agradecimentos em nome de Maomé e de tudo o que é sagrado no islamismo, o homem ruivo iniciou sua caminhada. Nuvens de insetos, cobras venenosas e trechos traiçoeiros de areia movediça se apresentariam à sua frente; encontraria também, possivelmente, unidades da Guarda de Ferro. Isso tudo não o deteria, mas talvez lhe retardasse a viagem. Como ameaças à sua vida, todos esses perigos eram insignificantes comparados com o que ele sabia que o aguardava a um dia de marcha para oeste, no passo Dinu.
Quarta-feira, 30 de abril
16h47m
Woermann estava debruçado em sua janela e observava os homens que se encontravam no pátio. Na véspera eles conversavam em grupos onde os uniformes pretos se misturavam com os cinzentos. Agora, porém, uma linha invisível separava os einsatzkommandos dos soldados do exército regular.
Até então eles haviam tido um inimigo comum, que matava sem considerar a cor do uniforme. Entretanto, na noite anterior o inimigo não aparecera e naquela tarde todos se julgavam vitoriosos, cada lado se achando responsável pela noite passada em segurança. Era uma rivalidade natural. Os einsatzkommandos se consideravam tropa de elite, especialistas da SS num tipo particular de guerra. Os homens do exército consideravam que eles é que eram os verdadeiros soldados; embora temessem o poder que o uniforme preto da SS representava, julgavam que os einsatzkommandos não passavam de policiais endeusados.
A desunião começou a manifestar-se na hora da refeição da manhã. Tudo vinha correndo normalmente até que a moça apareceu. Houve alguns empurrões e cotoveladas, cada um querendo ficar mais perto de Magda, enquanto ela enchia a bandeja para si e para o pai. Não chegou de fato a haver um incidente, mas o simples aparecimento da moça no refeitório começou a dividir os dois grupos. Os homens da SS automaticamente admitiram que, em se tratando de uma judia, eles tinham o direito de fazer com ela o que lhes aprouvesse. Os do exército achavam que ninguém tinha direitos adquiridos a respeito da moça. Ela era bonita. Por mais que tentasse esconder os cabelos sob o velho lenço de cabeça e disfarçar a beleza do corpo cobrindo-o com pesadas roupas, não conseguia ocultar sua feminilidade, que resistia a todos os esforços para passar despercebida, revelando-se na delicadeza de sua pele, na suavidade da linha da garganta, na curva dos lábios, no brilho dos olhos castanhos. No que lhes dizia respeito, os soldados do exército achavam que cada um devia tratar de conquistá-la - ressalvando, naturalmente, que os verdadeiros combatentes deveriam ter preferência.
Woermann nada percebera na ocasião, mas não tardaram a aparecer os sinais da quebra do sentimento de solidariedade que prevalecera até o dia anterior.
À hora do almoço repetiram-se os empurrões quando a moça entrou na fila. Dois soldados escorregaram e caíram no chão durante a disputa, fazendo com que Woermann mandasse o sargento intervir antes que o conflito se agravasse. A essa altura Magda já havia apanhado sua comida e partido.
Pouco depois do almoço ela apareceu, procurando por ele. Disse-lhe que o pai necessitava de uma cruz ou um crucifixo, para suas pesquisas em um dos manuscritos. Poderia o capitão emprestar-lhe uma? Woermann atendeu o pedido, entregando uma pequena cruz de prata pertencente a um dos soldados mortos.
E agora os homens de folga estavam sentados no pátio, enquanto os restantes trabalhavam na demolição da parte traseira do fortim. Woermann estava preocupado em descobrir meios de evitar novas rixas por ocasião do jantar. Talvez a melhor solução fosse escalar alguém para encher a bandeja em cada refeição, levando-a para o velho e a filha na torre. Quanto menos a moça fosse vista melhor.
Sua atenção foi despertada por um movimento logo abaixo de sua janela. Era Magda, hesitante a princípio, depois resolutamente, com o queixo levantado, caminhando para a entrada do portão com um balde na mão. Os homens a acompanharam inicialmente com os olhos, depois levantando-se, surgindo de todos os cantos do pátio na direção dela, como bolhas de sabão redemoinhando na boca de um cano de esgoto.
Quando ela voltou do porão com seu balde de água, os homens estavam à sua espera, em um compacto semicírculo, empurrando uns aos outros, em busca de um lugar melhor para vê-la de perto. Eles gritavam o nome dela, dificultando-lhe a passagem. Um dos einsatzkommandos postou-se de maneira a impedi-la de avançar, mas foi atirado para trás por um soldado do exército, que agarrou o balde com exagerada mesura e começou a caminhar à frente dela, fingindo-se de criado. Todavia o homem da SS que fora empurrado agarrou a alça do balde, virando-o e derramando a água sobre as pernas e as botas do soldado que agora o carregava.
Ante as risadas dos de uniforme preto, o soldado do exército ficou rubro de cólera. Woermann percebeu o que iria acontecer, mas, do lugar onde se encontrava, no terceiro pavimento da torre' estava impossibilitado de fazer qualquer coisa. Viu quando o soldado de uniforme cinza jogou o balde com toda a força contra a cabeça do homem da SS que lhe molhara as pernas; então, correu escada abaixo o mais rapidamente que pôde.
Ao chegar ao pavimento térreo, viu a porta dos aposentos dos judeus fechar-se logo após a passagem de Magda, e, quando entrou no pátio, a briga já se havia generalizado. O oficial teve de disparar sua pistola duas vezes para chamar a atenção dos contendores, e o combate somente cessou ante a ameaça de Woermann de atirar contra o primeiro que fizesse um movimento.
A moça tinha de ir embora.
Depois que tudo se acalmou, Woermann deixou seus homens com o Sargento Oster e se dirigiu diretamente para o pavimento térreo da torre. Enquanto Kaempffer estivesse ocupado, colocando seus homens em forma, Woermann aproveitaria oportunidade para tirar a moça do fortim. Se pudesse alcançar a ponte e chegar à estalagem antes que Kaempffer se desse conta do que estava acontecendo, haveria uma boa probabilidade de libertá-la.
Desta vez não perdeu tempo em bater na porta - abriu-a e entrou.
- Fraulein Cuza!
O professor estava ainda sentado à mesa, mas não havia sinais da moça.
- Que deseja o senhor com minha filha? Woermann ignorou a pergunta e tornou a chamar:
- Fraulein Cuza!
- Que deseja? - perguntou ela, saindo do segundo quarto, ainda com a fisionomia alterada.
- Desejo que arrume sua mala e se mude para a estalagem. Dispõe de apenas dois minutos, nada mais.
- E meu pai? Não posso deixá-lo!
- Dou-lhe dois minutos para partir, com ou sem mala! Ele não podia mostrar hesitação e torceu para que seu rosto
se mostrasse implacável. Não desejava separar a moça de seu pai - o professor obviamente precisava de cuidados e era evidente a devoção da filha -, mas os homens sob seu comando mereciam o máximo de sua atenção e a moça era motivo de indisciplina. O pai tinha de continuar no fortim; a filha deveria ir para a estalagem. Qualquer outro argumento seria inoportuno.
Woermann percebeu o olhar de apelo que dirigiu ao pai, como que pedindo que ele interviesse, mas o velho permaneceu em silêncio. A moça deu um longo suspiro e voltou para seu quarto.
- Agora temos apenas um minuto e meio - disse Woermann. - Um minuto e meio para quê? - disse uma voz atrás dele.
Era Kaempffer.
Sufocando uma praga e preparando-se para uma batalha de vontades, Woermann enfrentou o oficial da SS.
- Seu senso de oportunidade continua admirável, major. Eu estava dizendo a Fráulein Cuza que arrumasse sua mala e se mudasse para a estalagem.
Kaempffer abriu a boca para replicar, mas foi interrompido pelo professor.
- Eu o proíbo de fazer isso! - exclamou com sua voz estridente. - Não permitirei que mande minha filha embora!
Os olhos de Kaempffer se estreitaram ante a intervenção do professor. O próprio Woermann não pôde ocultar sua surpresa, sem compreender qual a causa daquela explosão.
- Você proíbe, é, velho judeu? - disse Kaempffer com voz irritada, aproximando-se do professor. - Você proíbe? Deixe-me dizer-lhe uma coisa: aqui você não proíbe coisa alguma! Nada!
O velho baixou a cabeça em sinal de resignação. Satisfeito com o resultado de sua demonstração de autoridade, Kaempffer voltou-se para Woermann.
- Providencie para que ela saia imediatamente. É uma fonte de aborrecimentos.
Pasmo e surpreso, Woermann observou enquanto Kaempffer saía, tão abruptamente como havia entrado. Depois, olhou para Cuza, cuja cabeça não estava mais abaixada e que agora parecia muito resignado.
- Por que o senhor não protestou antes da chegada do major? - perguntou-lhe Woermann. - Tive a impressão de que o senhor concordara com a idéia de retirar sua filha do fortim.
- Talvez. Mas mudei de opinião.
- Foi o que vi. . . e de uma maneira muito provocante, no momento mais propício. O senhor costuma manipular as pessoas desse modo?
- Meu caro capitão - disse Cuza, em tom grave -, ninguém presta muita atenção a um aleijado. As pessoas vêem o corpo, arruinado por um acidente ou por uma enfermidade, e automaticamente acham que a mente também foi atingida. "Ele não pode andar; logo, não tem nada de útil, de inteligente ou de interessante para dizer." Assim, um aleijado como eu aprende logo a maneira de fazer com que os outros apresentem uma idéia que ele já teve, e que essa apresentação se proceda de modo tal que eles fiquem pensando que são realmente os responsáveis pela referida idéia. Isso não é bem manipular. . . apenas uma forma de persuadir.
Quando Magda reapareceu, agora com a maleta na mão, Woermann compreendeu, um tanto vexado, mas talvez com um toque de admiração, que ele também fora manipulado - ou persuadido - para fazer o que o professor ideara. Percebia agora a razão de Magda ter ido tantas vezes ao refeitório e ao porão. Esta constatação, porém, não o aborreceu muito. Seus próprios instintos já o haviam prevenido do perigo de haver uma mulher no fortim.
- Vou deixá-la na estalagem em completa liberdade - disse ele a Magda. - Estou certo de que compreende que, se você fugir, não será bom para seu pai. Confiarei em sua lealdade e devoção para com ele.
Não acrescentou que teria de enfrentar um motim se tivesse de decidir quais os soldados que iriam constituir a guarda na estalagem. Além da vantagem de ficarem afastados do fortim, havia para eles a da proximidade de uma atraente mulher, alargando assim a brecha já existente entre os dois contingentes de soldados. Não lhe restava outra escolha senão confiar nela.
Pai e filha se entreolharam.
- Não tenha receio, capitão - disse Magda, sem deixar de olhar para o pai. - Não tenho intenção de fugir e abandoná-lo.
Woermann notou que as mãos do professor se contraíram, parecendo duas garras.
- É melhor você levar isto - disse ele, indicando um dos livros, o que tinha como título Al Azif. - Estude-o esta noite, a fim de que possamos discuti-lo amanhã.
Havia um traço de bom-humor no sorriso dela.
- Bem sabe que não leio arábico, Papai - ponderou Magda, apanhando outro volume menor. - Prefiro levar este.
Pai e filha trocaram olhares novamente por cima da mesa. Surgira um choque de vontades e Woermann julgou ter uma idéia da causa do conflito.
De repente Magda contornou a mesa e foi beijar o pai no rosto. Acariciou-lhe os ralos cabelos brancos, depois endireitou-se e fitou Woermann diretamente nos olhos.
- Cuide de meu pai, capitão. Por favor. Ele é tudo o que eu tenho.
Woermann ouviu a própria voz antes que pudesse pensar na resposta:
- Não se preocupe. Estarei atento.
Praguejou intimamente contra si mesmo. Não deveria ter falado assim. Procedera contra todo o seu treinamento de oficial, toda a sua formação prussiana. Mas havia aquele apelo nos olhos dela, fazendo com que ele prometesse o que ela pedia. Não tinha filha, mas, se tivesse, haveria de querer que ela cuidasse dele da maneira como aquela moça cuidava de seu pai.
Não. . . não precisava preocupar-se com a possibilidade de ela fugir. O pai, entretanto. .. era muito astuto, exigindo constante atenção. Woermann prometeu a si mesmo nunca aceitar sem muita reflexão qualquer idéia apresentada por aqueles dois.
O homem ruivo conduziu sua montaria através das colinas, em direção à entrada sudeste do passo Dinu, sem dar muita atenção, em sua pressa, aos campos verdejantes por onde passava. Quando o sol começou a esconder-se, as colinas passaram a tornar-se mais íngremes e rochosas, aproximando-se umas das outras e tornando a estrada de tal maneira estreita que esta não tardou em reduzirse a uma simples pista de uns quatro metros de largura. Uma vez atravessada a apertada passagem à sua frente, ele estaria em pleno passo Dinu. A partir daí a viagem seria fácil, mesmo à noite. Ele conhecia bem o caminho.
O homem já se congratulava intimamente por não ter encontrado as numerosas patrulhas militares que vigiavam a área quando avistou dois soldados que lhe bloqueavam o caminho de fuzis em punho e baionetas caladas. Parando sua montaria diante dos soldados, ele decidiu rapidamente como deveria conduzir-se. Não queria criar problemas, de modo que agiria com humildade e cortesia.
- Onde vai com tanta pressa, pastor de cabras?
Fora o mais velho dos soldados que fizera a pergunta. Ostentava um espesso bigode e tinha as faces encovadas. O mais moço riu da expressão pastor de cabras. Aparentemente, ela tinha algum significado pejorativo para eles.
- Atravessar o passo para chegar à vila. Meu pai está doente. Por favor, deixem-me passar.
- Uma coisa de cada vez. Até onde você pretende ir?
- Até o fortim.
- Fortim? Nunca ouvi falar dele. Onde fica?
Isso resolvia uma das dúvidas do homem ruivo. Se o fortim estivesse envolvido em qualquer ação militar no passo, aqueles homens pelo menos teriam ouvido alguma referência.
- Por que vocês me fizeram parar? - perguntou ele, tentando mostrar-se surpreso. - Há alguma coisa errada?
- Não compete a tipos como você interrogar elementos da Guarda de Ferro - replicou o de bigode. - Desmonte e se aproxime, para que possamos vê-lo melhor.
Então eles não eram propriamente soldados; eram membros da Guarda de Ferro. Conseguir passar estava-se apresentando mais difícil do que parecera a princípio.
O homem ruivo apeou de sua montaria e ficou silenciosamente esperando que os soldados o revistassem.
- Você não é daqui - disse o bigodudo. - Mostre seus documentos.
Essa era a exigência que o homem ruivo mais temera durante toda a viagem.
- Não os tenho comigo, senhor - replicou, no tom mais cortês possível. - Parti tão apressadamente que nem me lembrei de apanhá-los. Voltarei para buscá-los, se o senhor quiser.
Os dois soldados se entreolharam. Um viajante sem documentos deixava de ter qualquer direito; o não-cumprimento da lei permitia que ele fosse tratado da maneira que os soldados julgassem melhor.
- Sem documentos? - exclamou o de bigodes, colocando o fuzil em posição. À medida que ia falando, acentuava suas palavras com estocadas nas costelas do homem ruivo. - Como poderemos saber se você não está levando armas para os camponeses nas colinas?
O homem ruivo recuou, gemendo, fingindo que as estocadas lhe causavam uma dor bem maior do que a que realmente sentia; absorver os golpes estoicamente só serviria para aumentar a violência do agressor.
São sempre os mesmos, pensou ele. Qualquer que seja a época ou o local, qualquer que seja o nome que o poder dá a si mesmo, seus sequazes continuam os mesmos.
O bigodudo recuou um passo e apontou o fuzil para o homem ruivo.
- Reviste-o! - ordenou a seu colega mais moço.
O jovem pendurou o fuzil no ombro e começou a apalpar a roupa do viajante, detendo-se ao sentir o cinturão com o dinheiro.
Com movimentos bruscos, abriu a camisa e retirou-o. Quando viram as moedas de ouro, os dois guardas entreolharam-se.
- De onde você roubou isto? - perguntou o mais velho, novamente batendo com a coronha do fuzil nas costelas do homem ruivo.
- Essas moedas são minhas. É tudo o que tenho, mas podem ficar com elas se me deixarem passar.
Estava falando a verdade. Não precisava mais do dinheiro.
- Ora, é claro que ficaremos com elas, mas primeiro vamos ver o que mais você carrega - acrescentou o bigodudo, apontando para a caixa amarrada no lado direito da sela. - Abra isso - disse ele a seu companheiro.
O homem ruivo julgou então que já havia tolerado o máximo que lhe era possível. Não deixaria que abrissem a caixa.
- Não toquem nela! - exclamou.
Os guardas devem ter percebido a ameaça naquele tom de voz e se detiveram, olhando para o viajante. O mais velho mordeu os lábios, furioso, e avançou para bater com o fuzil uma vez mais.
- O que você pensa que...
Embora os movimentos seguintes parecessem cuidadosamente planejados, na verdade não passavam de puro reflexo. Quando o guarda lançou seu fuzil, o homem ruivo destramente o arrancou das mãos dele. Enquanto o bigodudo olhava espantado para as mãos vazias, o homem ruivo quebrou-lhe o queixo, batendo com a coronha da arma; depois, tudo o que faltava para esmagar a laringe era um golpe seco contra a garganta desguarnecida. Voltando-se, viu o outro soldado carregando seu fuzil. Utilizando então a baioneta calada, o ruivo mergulhou-a até o cabo no peito do adversário. Com um suspiro, o soldado caiu, já morto.
O homem olhou a cena calmamente. O guarda mais velho ainda estava vivo, mas agonizante. Com as costas arqueadas, o rosto ia-se tornando azul, enquanto, com as mãos na garganta, ele tentava em vão conseguir a entrada de ar em seus pulmões.
Como já acontecera, quando matara o barqueiro Carlos, o homem ruivo não se alterou. Nenhum sentimento de triunfo ou de pesar. Não podia admitir que o mundo se tornasse mais pobre com a morte de dois membros da Guarda de Ferro. Além disso sabia que, se não tivesse agido prontamente, ele é que estaria agora no chão, ferido ou morto.
Ao recolocar o cinturão viu que o bigodudo estava tão imóvel quanto seu companheiro. Escondeu os dois corpos e os fuzis entre as rochas da encosta norte e retomou seu galope em direção ao fortim.
Magda caminhava dentro de seu quarto na estalagem, nervosamente esfregando as mãos e parando cada vez que passava pela janela para dar uma olhadela no fortim. A noite estava escura, com nuvens altas se deslocando do sul, e não havia lua.
A escuridão a atemorizava. . . a escuridão e o fato de estar sozinha. Já nem se lembrava mais da última vez em que se encontrara tão só. Não era próprio para uma moça hospedar-se na estalagem sem alguém da família. Era confortador saber que Lídia, a mulher de luliu, morava na estalagem, mas ela não seria de grande utilidade se aquele vulto que aparecera no fortim decidisse atravessar a garganta e viesse a seu encontro.
Da janela de seu quarto ela podia avistar diretamente o fortim; aliás, era o único quarto com janela voltada para o norte. Fora justamente por isso que ela o escolhera. Não houvera nenhum problema para ser atendida - ela era a única hóspede.
luliu fora muito atencioso, quase servil. Essa atitude deixou-a intrigada. Ele sempre fora cortês, por ocasião de estadas anteriores, mas de um modo rotineiro. Agora, porém, ele virtualmente a adulava.
Do lugar onde se encontrava Magda podia identificar a janela iluminada, no pavimento térreo da torre, onde seu pai deveria estar sentado. Não havia qualquer sinal de movimento, o que significava que ele estava sozinho. Ficara furiosa ao perceber a maneira como ele manobrara para tirá-la do fortim, mas, à medida que as horas passavam, a revolta se transformou em preocupação. Como se arranjaria sem ela?
Voltou-se e, de costas para a janela, correu os olhos pelas quatro paredes dentro das quais estava confinada. O quarto era pequeno: um armário estreito, uma cômoda com um espelho apoiado em cima, um banco de três pés e um largo leito de colchão macio. Sobre ele repousava o bandolim, esquecido desde a chegada. Também o livro, Cultes dês Goules, não fora sequer olhado e permanecia em uma das gavetas da cômoda. Magda não pretendia estudá-lo; apenas o apanhara ao acaso.
Precisava sair um pouco. Apagou duas das velas, deixando a terceira acesa. Não queria que o quarto ficasse totalmente às escuras. Depois do encontro da noite anterior, passou a temer a escuridão.
Uma escada de madeira encerada conduziu-a ao pavimento térreo. Ela encontrou o estalajadeiro sentado e encurvado no alpendre da frente da casa, falquejando um pedaço de madeira desanimadamente.
- Alguma coisa errada, luliu?
O som da voz dela fez com que ele levantasse a cabeça. Depois de encará-la por um momento, luliu retornou a seu falquejamento.
- E o seu pai? Está passando bem?
- No momento, sim. Por quê?
luliu pôs de lado o canivete e cobriu os olhos com as mãos. As palavras foram pronunciadas de roldão:
- Os dois estão aqui por minha causa. Estou muito envergonhado . . . Não soube resistir. Eles queriam saber tudo a respeito do fortim e eu não sabia como responder às perguntas que faziam. Então me lembrei de seu pai, que conhece o assunto melhor que ninguém. Eu ignorava que ele estivesse tão doente e nunca pensei que fossem traze-la também. Mas não pude evitar isso! Eles começaram a torturar-me!
Magda experimentou um breve sentimento de revolta. luliu não tinha o direito de mencionar o nome de Papai aos alemães! Depois, porém, admitiu que, submetida às mesmas ameaças, ela certamente procederia da mesma forma. Agora, pelo menos, ficara sabendo por que Papai fora chamado e, ao mesmo tempo, tinha uma explicação para as deferências exageradas de luliu.
O arrependimento do estalajadeiro comoveu-a, quando ele perguntou emocionado:
- A senhora me odeia?
Magda inclinou-se e pôs a mão no ombro dele.
- Não. Você não teve intenção de nos fazer mal.
- Espero que tudo acabe bem para os dois - disse ele, colocando a mão sobre a da moça.
- Eu também.
Magda afastou-se lentamente, caminhando na direção da garganta, o silêncio quebrado apenas pelo ruído das pedras que rolavam ao serem pisadas, ecoando no ar úmido. Parou junto a um pequeno bosque à direita da ponte e se encolheu dentro do casaco. A noite estava muito escura, além de fria e úmida; mas o frio que ela sentia ia mais fundo que qualquer provocado por uma simples queda da temperatura. Atrás dela, a estalagem era uma sombra escura; do outro lado da ponte, estava o fortim, com as luzes acesas em várias de suas janelas. A cerração subia do fundo do passo, enchendo a garganta e envolvendo o fortim. O clarão das lâmpadas do pátio filtrava-se através da névoa fina, formando uma nuvem fosforescente. O fortim parecia um desajeitado navio de luxo, à deriva num mar fantasmal de nevoeiro.
O medo se apossou de Magda enquanto ela fitava o fortim.
A noite passada. . . considerando os incidentes do dia, não fora difícil para ela evitar as recordações daquela noite. Agora, porém, em meio à escuridão, tudo lhe voltou à lembrança - aqueles olhos terríveis, o aperto gelado em seu braço. Passou a mão sobre o ponto, junto ao cotovelo, onde fora agarrada. Ainda lá estava a marca roxa na pele. O local parecia sem vida e ela não conseguira ativar-lhe a circulação. Nada contara a Papai, mas ali estava a prova de que ela não sonhara. O pesadelo fora uma realidade. Um tipo de criatura que ela tanto desejara que fosse fantasia materializara-se e estava lá, naquela construção de pedras. E Papai também. Ela sabia que agora mesmo ele estava esperando o encontro, embora não lhe tivesse confessado. Papai desejava ser visitado naquela noite, e ela não estaria lá para ajudá-lo. Aquela coisa poupara-os na noite passada, mas poderia Papai contar com a mesma sorte em duas noites consecutivas?
E se a visita não se realizasse? Se a coisa atravessasse a garganta e viesse ao encontro dela? Magda não podia suportar sequer a idéia de outra cena igual à da noite anterior.
Era tudo tão irreal! O vulto não passava de uma ficção!
Entretanto, na noite passada. . .
O ruído de ferraduras batendo nas pedras interrompeu seus pensamentos. Magda firmou o olhar e divisou um cavaleiro que passava em frente à estalagem a todo galope, dirigindo-se para a ponte, como se fosse tomar o fortim de assalto. No último momento, porém, cavalo e cavaleiro se imobilizaram, agora bem visíveis pelo clarão que vinha do forte, no outro lado da garganta. A moça notou uma caixa comprida e chata, amarrada no lado direito da sela. O cavaleiro desmontou, deu alguns passos sobre a ponte e parou.
Magda agachou-se atrás de uma moita e ficou observando a maneira como o homem estudava o fortim. Ela não saberia dizer por que razão decidira manter-se escondida, mas os acontecimentos dos últimos dias haviam feito com que ela desconfiasse de qualquer pessoa que não fosse de seu conhecimento.
O homem era alto, esguio, com a cabeça descoberta, o cabelo ruivo agitado pelo vento, a respiração ofegante mas controlada. Magda podia ver a cabeça dele mover-se, acompanhando o deslocamento das sentinelas nas muralhas do fortim. Parecia contá-las. Sua atitude era de tensão, como se estivesse se contendo para não avançar contra os portões fechados, na outra extremidade da ponte. Ele parecia frustrado, surpreso e irritado.
Durante longos minutos o homem permaneceu imóvel. Magda começou a sentir as pernas doloridas, por estar agachada tanto tempo, mas não ousava mover-se. Por fim o homem se dirigiu de volta para seu cavalo, sempre olhando cuidadosamente para os dois lados da garganta. De repente, parou, olhando diretamente para o ponto em que Magda se encontrava. Ela suspendeu a respiração e as batidas de seu coração aceleraram-se.
- Você aí! - exclamou o homem. - Venha cá!
O tom de sua voz era de comando, com sotaque que denunciava o uso do dialeto meglenito.
Magda não se moveu. Como foi possível que ele a visse através da escuridão e da moita?
- Saia daí ou irei buscá-la!
Magda encontrou uma pesada pedra ao alcance de sua mão direita. Agarrando-a com força, ela se levantou rapidamente e avançou. Iria tentar suas chances em campo aberto. Não permitiria que aquele homem nem qualquer outro abusasse dela sem luta. Já sofrera o suficiente naquele dia.
- Por que estava você escondida ali?
- Porque não sei quem é você - replicou Magda, esforçando-se para que sua voz fosse firme e desafiadora.
- Uma boa razão - comentou ele, sacudindo levemente a cabeça.
Magda podia perceber a tensão que o dominava, mas sentia que não era por causa dela. Esta impressão tranqüilizou-a um pouco.
O homem apontou para o fortim.
- Que está havendo lá? Quem iluminou o fortim, como se ele fosse uma atração qualquer para turistas?
- Soldados alemães.
- Bem me pareceu que aqueles capacetes eram alemães. Mas por que aqui?
- Não sei. E acho que eles também não sabem.
A moça ficou a observá-lo, enquanto ele, sem tirar os olhos do fortim, murmurava algo que soou como "Tolos!". Mas ela não tinha certeza disso. O homem parecia estar muito longe dali, dando a impressão de que nem estava tomando conhecimento da presença dela, como se a única coisa que o preocupava fosse o fortim. Magda diminuiu a força com que apertava a pedra, mas sem soltála. Ainda não.
- Por que você está tão interessado? - perguntou ela. O homem ruivo olhou-a com ar grave.
- Sou apenas um turista. Já estive aqui uma vez e pensei em parar junto ao fortim no meu caminho através das montanhas.
Ela percebeu logo que era mentira. Nenhum turista galoparia à noite pelo passo Dinu, na velocidade com que ele chegara. A menos que fosse doido.
Magda recuou um passo e começou a caminhar em direção à estalagem. Receava ficar ali no escuro em companhia de um homem que mentia daquele jeito.
- Para onde vai você?
- Para o meu quarto. Está muito frio aqui.
- Eu a acompanharei. Inquieta, Magda apressou o passo.
- Não se incomode. Sei o caminho. Obrigada.
Ele pareceu não tê-la ouvido ou pelo menos resolveu ignorar o que ela dissera. Foi buscar seu cavalo e veio juntar-se a ela, puxando o animal pela rédea. À frente deles a estalagem
parecia uma grande caixa de dois pavimentos. Magda podia ver a luz fraca da vela que ela deixara acesa em seu quarto.
- Pode soltar essa pedra - disse ele. - Não vai precisar dela.
Magda procurou esconder sua surpresa. Aquele homem via no escuro?
- Soltarei quando julgar oportuno.
Ele exalava um cheiro azedo, mistura de suor de homem e de cavalo, que a desagradava. Apertou o passo, a fim de deixá-lo para trás.
Ele não se esforçou para alcançá-la.
Ao chegar à estalagem, Magda soltou a pedra e entrou. À sua direita, a pequena sala de jantar estava escura e vazia; à esquerda, luliu, debruçado sobre a mesa que servia como balcão de recepção, preparava-se para apagar o candeeiro.
- É melhor esperar um pouco - disse a moça, passando rapidamente por ele. - Acho que você vai ter outro hóspede.
- Esta noite? - estranhou luliu, com os olhos brilhando.
- Imediatamente.
Radiante, ele abriu o livro de registros e destampou o tinteiro. A estalagem pertencia à família de luliu há várias gerações. Diziam que ela fora construída para abrigar os operários que haviam erguido o fortim. Não era mais do que uma pequena casa de dois pavimentos e estava longe de ser um bom emprego de capital; o número de viajantes que se hospedavam na estalagem, ao longo de um ano, era ridiculamente baixo. O andar térreo, porém, servia como residência para a família e havia sempre a possibilidade de alguém aparecer. A maior parte da minguada renda de luliu era representada pela comissão que ele recebia como intermediário para pagamento dos homens que trabalhavam no fortim. O restante provinha da lã das cabras de que seu filho cuidava - aquelas que não eram sacrificadas para que a família pusesse um pouco de carne na mesa e algum tecido sobre o corpo.
Dois dos três quartos da estalagem alugados ao mesmo tempo - um sucesso!
Magda subiu depressa para o alto da escada, mas não entrou logo em seu quarto. Parou para escutar o que o estrangeiro iria dizer a luliu. Sua curiosidade surpreendeu-a, pois achara o homem extremamente sem atrativos. Além de malcheiroso e de aparência imunda, havia nele um traço de arrogância e condescendência que ela achava igualmente ofensivo.
Por que, então, ela ficara escutando? Não costumava fazer isso.
Ouviu um ruído pesado de passos no alpendre, e depois na sala, assinalando a entrada dele. Sua voz ecoou escada acima.
- Ah, é o estalajadeiro? Ótimo! Ainda está acordado. Providencie para que alguém cuide de meu cavalo e ponha-o no estábulo por uns dias. Foi minha segunda montaria hoje e galopamos um bocado. Quero que ele seja escovado ainda esta noite, está ouvindo?
- Sim. . . sim, senhor - balbuciou luliu com voz rouca e assustada.
- Você pode encarregar-se disso?
- Sim. Chamarei meu sobrinho imediatamente.
- E quero um quarto para mim.
- Temos dois vagos. Faça o favor de assinar. Houve uma pausa.
- Dême o quarto que fica bem aqui em cima, o do lado norte.
- Ah, desculpe, mas o senhor assinou apenas o sobrenome. "Glenn" não é o bastante - explicou luliu com voz trêmula.
- Há alguém chamado Glenn hospedado aqui?
- Não.
- E há aqui na vila alguma família com o sobrenome Glenn?
- Não, mas...
- Então o sobrenome é suficiente.
- Muito bem, senhor. Entretanto devo informá-lo de que o quarto do lado norte está ocupado. O senhor ficará com o de leste.
- Seja ele quem for, diga-lhe para trocar de quarto. Pagarei um preço extra.
- Mas não se trata de um homem, senhor. É uma moça, e não creio que ela concorde em mudar-se.
Como você raciocina bem, luliu, pensou Magda.
- Vá falar com ela!
Era uma ordem de comando, num tom que não admitia hesitação.
Ao ouvir o ruído dos pés de luliu se arrastando na direção da escada, Magda entrou no seu quarto e esperou. A atitude do estrangeiro deixara-a furiosa. E que teria ele feito para assustar luliu daquela maneira?
Abriu a porta à primeira batida e encarou o pobre estalajadeiro, cujas mãos nervosamente torciam o peitilho da camisa, o rosto pálido e molhado de suor até no bigode. Estava apavorado.
- Por favor, Domnisoara Cuza - implorou ele -, há um homem lá embaixo que quer este quarto. Poderia ter a bondade de mudar-se, deixando o quarto para ele? Por favor!
Era como um gemido, um apelo dramático. Magda ficou com pena dele, mas estava disposta a não sair de seu quarto.
- De jeito nenhum! - exclamou ela, começando a fechar a porta, que luliu segurou com a mão.
- Mas é preciso!
- A resposta é não, luliu. E não adianta insistir.
- Então poderia... poderia a senhora falar com ele? Por favor!
- Por que você está com tanto medo? Quem é ele?
- Não o conheço. Mas não pense que eu. . . - Sua voz tremeu. - Pode fazer-me o favor de falar com ele por mim?
luliu estava realmente tremendo de medo. O primeiro impulso de Magda foi deixar que o estalajadeiro resolvesse seus problemas, mas depois achou que teria certo prazer em comunicar àquele sujeito arrogante que ela não mudaria de quarto. Em dois dias seguidos ela não tivera voz nas decisões que tomavam a seu respeito. Resistir neste pequeno ponto era assim uma espécie de bem-vinda compensação.
- É claro que falarei com ele.
Passou por luliu e desceu a escada. O homem estava esperando, impassível, calmamente apoiado na caixa comprida que havia tirado da sela onde estava amarrada. Pela primeira vez ela pôde vê-lo bem, à luz do candeeiro, e reconsiderou sua impressão inicial. Sim, ele estava sujo e cheirava mal, mas seus traços eram firmes, o nariz reto, as maçãs do rosto salientes. Ela notou que os cabelos dele eram realmente vermelhos como uma chama escura, um pouco longos e despenteados, talvez, mas isso, como acontecia com o cheiro, bem podia ser conseqüência de uma longa e estafante jornada. Os olhos dele envolveram-na por um instante, impressionando-a pelo tom azul e pela luminosidade. A única nota destoante em sua aparência era a cor morena de sua pele - que não afinava com a dos cabelos e a dos olhos.
- Imaginei que fosse você.
- Vou ficar no meu quarto.
- Preciso dele.
- Por enquanto ainda é meu. Estará à sua disposição quando eu partir.
Ele deu um passo na direção da moça.
- É importante que eu tenha uma vista para o norte. Eu...
- Também tenho minhas razões para querer vigiar o fortim disse ela, revelando que bem sabia das intenções dele e dispensando-o de mentir. - Devem ser tão boas quanto as suas, mas de grande importância pessoal. Não me mudarei.
Os olhos dele faiscaram de repente e Magda receou haver ultrapassado os limites de sua arrogância. Mas ele se acalmou também de repente, e deu um passo para trás, com um meio sorriso no canto dos lábios.
- Vê-se logo que você não é daqui desta zona.
- Bucareste.
- Bem que me pareceu.
Magda detectou um relâmpago nos olhos dele, qualquer sinal significando respeito. Mas deveria ser engano. Por que iria mostrar-se cortês, se estava sendo impedido por ela de obter o que queria?
- Não gostaria de reconsiderar?
- Não.
- Bem - disse ele. resignado -, ficarei então voltado para leste. Estalajadeiro! Leve-me ao meu quarto.
Buliu desceu apressadamente a escada, tropeçando nos degraus.
- Imediatamente, senhor. O quarto fica à direita, no topo da escada, e está pronto. Eu levo isto. . . - acrescentou, tentando agarrar a caixa, mas Glenn afastou-o bruscamente.
- Pode deixar comigo, mas há um embrulho, feito com um cobertor, preso à parte traseira de minha sela. Precisarei dele - disse, dirigindo-se para a escada. - E não se esqueça de cuidar de meu cavalo! É um animal forte e de confiança.
Com um rápido olhar para Magda - um olhar que despertou nela uma sensação desconhecida mas não desagradável - o homem ruivo subiu os degraus dois a dois.
- E prepare um banho imediatamente!
- Sim, senhor - disse luliu, voltando-se para Magda e tomando-lhe as mãos. - Muito obrigado - murmurou rapidamente, ainda assustado, porém mais confiante. Depois, correu para onde estava o cavalo.
Magda permaneceu no meio da sala por um momento, relembrando a estranha série de acontecimentos daquela noite. Tinham ocorrido fatos incompreensíveis ali na estalagem, mas não podia pensar neles agora, enquanto não compreendesse os que, muito mais preocupantes, aconteciam no fortim.
O fortim! Ela se esquecera de Papai! Correu escada acima, passou em frente à porta fechada do quarto de Glenn, e, entrando no seu, dirigiu-se logo para a janela. Lá longe, no fortim, a luz no quarto de Papai continuava brilhando.
Magda, com um suspiro de alívio, recostou-se na cama. Uma cama. . . uma verdadeira cama! Talvez tudo acabasse correndo bem naquela noite. Sorriu para si mesma. Não, aquilo não poderia continuar assim. Alguma coisa tinha de acontecer. Fechou os olhos contra a luz da vela, em cima da cômoda, cujo brilho era duplicado pelo espelho atrás dela. Magda sentia-se cansada. Se pudesse, ao menos por alguns minutos, descansar os olhos, ficaria melhor... pensaria em coisas boas, tais como licença para Papai regressar a Bucareste com ela, escapando dos alemães e daquela horrenda aparição...
O ruído de passos no saguão desviou seu pensamento do fortim. Deveria ser aquele homem, Glenn, descendo para o banheiro. Pelo menos assim ele não continuaria cheirando como antes. Mas por que ela se importava com isso? Ele demonstrara preocupação com o estado de seu cavalo, o que bem podia significar um sinal de bondade. Ou de um homem prático. Tinha Glenn de fato dito que aquele cavalo era o segundo que ele montara naquele dia? Seria alguém capaz de cavalgar dois cavalos até fazê-los espumar daquela maneira? E por que luliu se mostrava tão aterrorizado na presença do novo hóspede? O estalajadeiro parecia já conhecer Glenn; entretanto, não sabia seu nome até o momento de assinar o registro de hóspedes. Isso não fazia sentido.
Aliás, nada mais fazia sentido. . . Os pensamentos dela foramse apagando...
O ruído de uma porta que se fechava acordou-a sobressaltada. Não era a de seu quarto. Devia ser no de Glenn. Ouviu-se um estalo na escada. Magda sentou-se na cama e olhou para a vela, que já se reduzira à metade desde a última vez que a vira. Magda pulou para a janela. A luz no quarto de seu pai continuava acesa.
Não havia ruídos vindos de baixo, mas ela podia distinguir a forma escura de um homem caminhando na direção da ponte. Seus movimentos eram os de um felino. Silenciosos. Ela estava certa de que era Glenn. Enquanto Magda observava, ele se ocultou nas moitas à direita da ponte e ficou imóvel, precisamente no lugar onde ela estivera antes. A cerração tomara conta da garganta e alcançava os pés dele. Como uma sentinela, Glenn vigiava o fortim.
Magda sentiu uma súbita revolta. Que estava ele fazendo lá? Aquele lugar era dela. Ele não tinha direito de ocupá-lo. Desejou ter suficiente coragem para ir até lá e dizer-lhe que se retirasse. Não que o temesse, mas ele se movia muito rapidamente, com determinação. Por certo aquele Glenn era um homem perigoso, contudo, sentia Magda, não para ela e sim para os outros. Talvez para aqueles alemães no fortim. E isso não fazia dele uma espécie de aliado? Mesmo assim, ela não podia ir sozinha a seu encontro, no escuro, e dizer-lhe que fosse embora e a deixasse encarregar-se agora da vigília.
No entanto ela podia observá-lo. Podia postar-se atrás dele e descobrir o que significava aquela vigilância sobre a janela de Papai. Talvez ficasse sabendo por que Glenn estava ali. Era este raciocínio que a aborrecia à medida que ela descia a escada, atravessava o alpendre e saía para a estrada, escondendo-se atrás de uma grande rocha, não muito longe de Glenn. Ele jamais saberia que ela estava ali.
- Veio -reclamar seu posto de observação?
Magda teve um sobressalto ao ouvir a pergunta, pois ele nem sequer olhara para trás.
- Como soube que eu estava aqui?
- Estive ouvindo seus passos desde que saiu da estalagem. Você é realmente muito desajeitada.
De novo a mesma pretensiosa auto-suficiência. Ele voltou-se e fez-lhe sinal para que se aproximasse.
- Gostaria de saber por que, na sua opinião, os alemães mantêm o fortim iluminado desse jeito a noite inteira! Eles não costumam dormir?
Ela hesitou, mas afinal acedeu ao convite. Ficaria em pé junto às moitas, mas não muito perto dele. Ao aproximar-se, a moça sentiu que ele já não cheirava mal.
- Parece que têm medo da escuridão - disse ela.
- Com medo da escuridão - repetiu ele num tom desenxabido. Não parecia ter ficado surpreso com a explicação. - E tudo isso por quê?
- Por causa de um vampiro, é o que eles pensam.
Na meia-luz que se filtrava do fortim, através da cerração, Magda viu as sobrancelhas dele se contraírem.
- Ah! Foi isso o que eles lhe disseram? Você conhece alguém lá dentro?
- Estive pessoalmente no fortim e meu pai ainda se encontra lá. Veja - acrescentou, apontando para a janela no pavimento térreo da torre. - É aquela ali, a mais iluminada.
Como ela desejava que ele estivesse bem!
- Mas por que alguém iria acreditar que há um vampiro por aí?
- Oito homens mortos, todos eles soldados alemães, com as gargantas arrancadas.
Os lábios dele formavam uma linha reta.
- Ainda assim. . . um vampiro?
- Há também o caso de dois cadáveres que caminharam. Unr vampiro parece ser a única explicação para tudo o que tem acontecido por lá. E depois do que eu vi. . .
- Você o viu? - perguntou Glenn, voltando-se e encarando-a, aflito por uma confirmação.
Magda recuou um passo.
- Vi.
- E com que se parece ele?
- Por que quer saber? - Glenn começava a assustá-la. Suas palavras pareciam martelá-la à medida que ele inclinava mais o corpo.
- Conte-me! Ele era moreno? Pálido? Bonito? Feio? O quê?
- Eu. . . eu nem mesmo estou certa de que possa lembrarme exatamente. Tudo o que sei é que ele parecia insano e. . . satânico, se é que
isto tem algum sentido para você.
Glenn endireitou o corpo.
- Sim, explica muita coisa, mas não quero incomodá-la - desculpou-se ele, fazendo uma pequena pausa. - E quanto aos olhos?
Magda sentiu um aperto na garganta.
- Como sabia que havia algo estranho nos olhos dele?
- Nada sei a respeito de seus olhos •-- contestou ele rapidamente -, mas costuma dizer-se que eles são as janelas da alma.
- Se isso for verdade - disse ela, baixando o tom da voz -, aquela alma é um abismo sem fundo.
Nenhum deles falou durante algum tempo, pondo-se ambos a observar o fortim em silêncio. Magda perguntava a si mesma sobre o que Glenn estaria pensando. Finalmente ele perguntou:
- Mais uma coisa: Sabe como foi que tudo começou?
- Meu pai e eu não estávamos lá, mas ouvimos dizer que o primeiro homem morreu quando, juntamente com um amigo, fez um buraco na parede do porão.
Ela viu que ele fazia uma careta e fechava os olhos, como se sentisse alguma dor. Do mesmo modo como acontecera horas antes, os lábios dele formaram a palavra "Tolos", sem que se ouvisse qualquer som.
Glenn abriu os olhos e subitamente apontou para o fortim:
- Que está acontecendo no quarto de seu pai?
Magda olhou, mas a princípio nada viu. Depois o terror se apossou dela. A luz estava-se apagando. Sem hesitar, ela começou a correr na direção da ponte, mas Glenn a segurou pelo braço e a puxou para trás.
- Não faça tolices! - ordenou com voz rouca no ouvido dela. - As sentinelas atirarão em você! E, se por acaso eles suspenderem o fogo, jamais a deixarão entrar. Não há nada que você possa fazer!
Magda não lhe deu ouvidos. Freneticamente, sem dizer uma palavra, procurou libertar-se. Precisava ir, ficar ao lado do pai. Glenn, entretanto, era forte e se recusou a soltá-la. Os dedos dele se afundaram nos braços da moça e, quanto mais ela se debatia, mais fortemente ele a segurava.
Finalmente, as palavras dele a convenceram: Não poderia chegar até onde se encontrava Papai. Não havia nada que ela pudesse fazer.
Em meio a um silêncio sepulcral, Magda viu a luz do quarto do pai extinguir-se lentamente, até apagar-se de todo.
Quinta-feira, 1 de maio
2hl7m
Theodor Cuza esperara paciente e ansiosamente, sabendo - ignorando por que sabia - que o vulto que viera na noite anterior voltaria outra vez. O professor lhe falara na língua antiga. Ele voltaria. Naquela noite.
O restante era completamente incerto. Cuza poderia desvendar segredos procurados por eruditos durante séculos, ou talvez não chegasse a ver a luz da manhã seguinte. Estremeceu, tanto de ansiedade pela expectativa como pelo medo do desconhecido.
Estava tudo pronto. Ele se sentou à sua mesa, os velhos livros cuidadosamente empilhados à sua esquerda, e, à direita, uma pequena caixa contendo os tradicionais amuletos contra vampiros; à sua frente, o costumeiro copo de água. A única luz era a que provinha da lâmpada pendurada diretamente sobre sua cabeça, e o único som era o de sua própria respiração.
De repente, percebeu que não estava sozinho.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, sentiu que havia uma presença maléfica, fora de seu campo de visão, de sua capacidade de descrevê-la. Ela simplesmente estava lá. E então começou a escuridão. Desta vez, porém, havia diferenças. Na noite anterior, o próprio ar do quarto fora afetado, soprando em todas as direções. Agora, o professor percebia uma agitação lenta, insidiosa, passando pelas paredes, fechando-se sobre ele.
Cuza apoiou suas mãos enluvadas sobre a mesa, para evitar que elas tremessem. O coração batia-lhe com tanta força que parecia que seu peito iria rebentar. Tinha chegado o momento!
As paredes haviam desaparecido. A escuridão o envolvera em uma abóboda negra que apagara o clarão da lâmpada; nenhuma réstia de luz se escoava além da extremidade da mesa. Fazia frio, mas não tanto como na noite anterior, e não havia vento.
- Onde está você? - perguntou em eslavônico antigo. Nenhuma resposta. Todavia, na escuridão, além do ponto onde a luz não alcançava, ele sentia que um vulto estava em pé e aguardava sua oportunidade.
- Apareça, por favor!
Houve uma longa pausa, até que uma voz arrastada se fez ouvir de dentro da escuridão.
- Posso expressar-me numa forma mais moderna de nossa língua.
As palavras derivavam de uma versão do dialeto dácio-romeno falado naquela região ao tempo em que o fortim fora construído.
A escuridão na extremidade da pequena peça começou a recuar. Um vulto tomou forma nas trevas. Cuza imediatamente reconheceu o rosto e os olhos da última noite; depois, o resto do vulto se tornou visível. Um gigante com mais de dois metros de altura, de ombros largos, estava à sua frente, com ar desafiador, as pernas abertas, as mãos nos quadris. Uma capa comprida, tão negra como o cabelo e os olhos dele, estava presa a seu pescoço com um fecho de ouro. Por baixo dela, Cuza podia ver uma folgada blusa vermelha, possivelmente de seda, e calções pretos também folgados, que se assemelhavam a culotes, metidos dentro de botas de couro marrom, com os canos até aos joelhos.
Era bem a imagem de um antigo poder decadente e cruel.
- Como conseguiu aprender nossa língua antiga? - perguntou o gigante.
Cuza não pôde evitar que sua voz gaguejasse.
- Eu... eu a estudei durante anos, muitos anos. - Sentiu que seu raciocínio se embotara, gelado. Todas as coisas que pensara dizer, as perguntas que, durante toda a tarde, ele planejara fazer, tinham desaparecido de sua memória. Desesperadamente, expressou o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça.
- Cheguei a pensar que você viria em traje de gala. As grossas sobrancelhas, muito juntas, se contraíram.
- Não sei o que quer dizer trajes de gala.
Cuza se repreendeu mentalmente, pensando o quanto uma simples novela, escrita meio século atrás por um inglês, fora capaz de alterar a percepção do que era um mito essencialmente romeno. Inclinou-se para a frente em sua cadeira de rodas.
- Quem é você?
- Sou o Visconde Radu Molasar. Esta região da Valáquia era toda minha.
Estava dizendo que fora um senhor feudal em seu tempo.
- Um boiardo?
- Sim, um dos poucos que ficaram com Vlad - o que chamavam de Tepes, o Empalador - até seu fim, nos arredores de Bucareste.
Se bem que esperasse uma resposta assim, Cuza estava ainda espantado.
- Mas isso ocorreu em 1476! Há quase cinco séculos! Você é assim tão velho?
- Eu estava lá.
- E onde tem estado, desde o século XV?
- Aqui.
- Mas por quê?
O temor de Cuza ia desaparecendo à medida que falava, substituído por uma intensa excitação que fazia sua mente mais ativa, Queria saber tudo - agora!
- Eu estava sendo perseguido.
- Pelos turcos?
Os olhos de Molasar se entrefecharam, deixando aparecer somente o profundo negror de suas pupilas.
- Não. Por outros. . . uns loucos que me perseguiriam através de todo o mundo para destruir-me. Eu sabia que seria incapaz de continuar fugindo eternamente - acrescentou com um sorriso, revelando longos dentes, afilados e levemente amarelados, nenhum especialmente aguçado, mas todos parecendo muito fortes -, de modo que decidi iludi-los. Construí este fortim, tomei providências para sua manutenção e fui esconder-me alhures.
- Você é... - Havia uma pergunta que Cuza, desde o início, estava ansioso para fazer, mas não se atrevera a isso; agora não podia mais conter-se. - Você é dos não-mortos?
Novamente, aquele sorriso frio, quase debochado.
- Não-morto? Nosferatul Moroil Talvez. . .
- Mas como conseguiu... Molasar agitou a mão no ar.
- Chega! Pare com essas perguntas aborrecidas! Não dou importância à sua curiosidade, mas você é um compatriota meu e há invasores em meus domínios. Por que você está com eles? Traiu a Valáquia?
- Não! - Cuza sentiu que o temor que desaparecera na excitação do diálogo estava voltando e tomando conta dele à medida que a atitude de Molasar se tornava feroz. - Eles me trouxeram contra a minha vontade.
- Por quê? - A pergunta era como uma punhalada.
- Eles achavam que eu seria capaz de descobrir o que estava matando os soldados. E parece que descobri mesmo. . . não é verdade?
- É, descobriu - disse Molasar, alterando de novo sua atitude e sorrindo outra vez. - Eu precisava deles para restaurar minhas forças, depois de um repouso tão longo. E irei precisar de todos eles até atingir de novo o auge de meus poderes.
- Mas você não pode fazer isso! - repreendeu Cuza, sem refletir.
Molasar explodiu outra vez.
- Nunca me diga o que devo ou não devo fazer em meus domínios! E muito menos quando sou vítima de invasores! Providenciei para que nenhum turco pusesse jamais os pés neste passo enquanto eu estivesse desaparecido. E agora sou despertado para ver meu fortim ocupado por alemães!
Ele estava espumando de raiva, caminhando de um lado para outro, sacudindo os punhos furiosamente para acentuar as palavras.
Cuza aproveitou a oportunidade para destampar a caixa que estava à sua direita e tirar um pedaço de espelho quebrado, que Magda lhe dera naquela manhã. Enquanto Molasar esbravejava, furioso, Cuza girou o espelho, procurando refletir nele a imagem de seu visitante. Olhando para sua esquerda, o professor situou Molasar junto à pilha de livros na extremidade da mesa, mas ao procurar o reflexo no espelho, viu apenas os livros.
O vulto de Molasar não se refletia!
De repente, o espelho foi arrancado das mãos de Cuza.
- Continua curioso? - perguntou, olhando-se no espelho. - Sim. As lendas são verdadeiras. Não me reflito. Há muitos anos que é assim. O que mais você tem nessa caixa?
- Alho - replicou Cuza, metendo a mão na caixa e tirando um dente de alho. - Dizem que protege contra os não-mortos.
Molasar estendeu a mão aberta. Havia pêlos crescendo no centro dela.
- Dê-me isso.
Cuza obedeceu e Molasar pôs o dente de alho na boca e tirou um pedaço, jogando o resto fora.
- Adoro alho.
- E prata? - perguntou Cuza, mostrando um broche que Magda deixara com ele.
Molasar não hesitou em apanhar a jóia e esfregá-la nas mãos.
- Eu não poderia ter sido um boiardo, se tivesse medo de prata!
Agora, ele parecia estar-se divertindo.
- E isto - prosseguiu Cuza, retirando o último objeto que estava na caixa - dizem que é o mais poderoso fetiche contra vampiros.
Ao falar apresentou a cruz que o Capitão Woermann emprestara a Magda.
Com um rugido, como se estivesse sendo asfixiado, Molasar recuou e desviou o olhar.
- Esconda isso!
- A cruz lhe faz mal? - perguntou Cuza, perplexo, ao ver Molasar encolher-se amedrontado. - Mas por quê? Qual o...
- ESCONDA ISSO!
Cuza obedeceu imediatamente, amassando a beira da caixa de papelão ao apertar a tampa o mais que pôde para esconder o terrível objeto.
Molasar só faltou saltar sobre ele, rilhando os dentes e pronunciando raivosamente as palavras.
- Julguei que poderia ter um aliado em você contra os invasores, mas estou vendo que são todos iguais!
- Mas eu também quero que eles vão embora - disse Cuza, aterrorizado, afundando-se no assento da cadeira de rodas. - Mais do que você!
- Se isso fosse verdade, você nunca traria essa coisa abominável aqui para dentro do quarto. E muito menos a mostraria a mim!
- Mas eu não sabia! Pensei que fosse mais uma lenda falsa como nos casos do alho e da prata!
Precisava convencê-lo.
- Pode ser - disse Molasar depois de uma pausa, virando-se e começando a caminhar rumo à escuridão, já mais calmo. - Mas tenho minhas dúvidas, Aleijado!
- Não vá, por favor!
Molasar parou na borda da escuridão e voltou-se para Cuza, antes de desaparecer sem uma palavra.
- Estou de seu lado, Molasar! - gritou Cuza, esforçando-se para que o visitante não fosse embora, justamente quando havia tantas perguntas sem respostas. - Por favor, acredite-me,!
Viam-se apenas os dois pontinhos luminosos dos olhos de Molasar. O resto de seu vulto sumira na escuridão. De repente um dedo surgiu nas trevas, apontando para Cuza.
- Vou vigiar você, Aleijado. Se achar que merece minha confiança, conversaremos outra vez. Entretanto, se você trair nosso povo, será o fim de seus dias.
O dedo desapareceu; depois, os olhos. Contudo as palavras permaneceram, como que suspensas no ar. A escuridão foi gradualmente recuando, infiltrando-se nas paredes. Dentro em pouco tudo voltou ao normal. O resto do dente de alho atirado no chão era a única prova da visita de Molasar.
Durante longo tempo Cuza permaneceu imóvel. Então notou como sua língua estava grossa e mais seca do que de costume. Apanhou o copo de água e sorveu um gole - ato instintivo que ele fazia sem prestar atenção. Engoliu com a dificuldade de sempre, depois puxou a caixa mais para perto. Apoiou a mão sobre a tampa, por um momento, antes de abri-la. Sua mente entorpecida se recusava a enfrentar o que estava lá dentro, mas ele sabia que, finalmente, teria de fazê-lo. Cerrando os dentes, levantou a tampa, tirou a cruz e a colocou à sua frente sobre a mesa.
Apenas um pequeno objeto. De prata. Algum trabalho de ourivesaria nas extremidades do braço vertical e do transversal. Nenhum corpo pregado nela. Tão-somente uma cruz. Mesmo que não tivesse outro significado, era um símbolo da desumanidade do homem em relação ao próprio homem.
Seguindo tradições milenares e apoiado em sua própria fé, que representava parte tão importante em sua vida diária e em sua cultura, Cuza sempre considerara o uso de cruzes mais como um costume primitivo, um sinal certo ás imaturidades em uma religião. Mas a cristandade era um ramo relativamente recente do judaísmo. Precisava de tempo. O que foi que Molasar dissera a respeito da cruz? Uma coisa abominável. Não, não era isso: pelo menos não para Cuza. Grotesca, talvez, mas nunca abominável.
Agora, porém, ela adquiria um novo significado, como acontecera com tantas outras coisas. As paredes pareciam apertar-se sobre Cuza enquanto ele contemplava a pequena cruz, concentrando nela toda a sua atenção. As cruzes, afinal, se assemelhavam aos amuletos utilizados pelos povos primitivos para afugentar espíritos malignos. Os europeus orientais, especialmente os ciganos, possuíam numerosos fetiches, desde alho até ícones. Ele havia incluído a cruz, não vendo razão para supor que ela despertasse maior consideração que os demais objetos.
Entretanto Molasar ficara horrorizado, não podendo sequer olhar para a cruz. A tradição lhe atribuía poderes sobre demônios e vampiros, porque ela era tida como o símbolo do triunfo final do bem sobre o mal. Cuza sempre defendera a tese de que, se existissem não-mortos e a cruz tivesse poderes sobre eles, tudo seria devido à fé inata da pessoa que possuía esse símbolo e não por causa do símbolo em si.
Agora, porém, tivera a prova de que estava errado.
Molasar era o mal. Não havia dúvida: Qualquer entidade que deixa um rastro de cadáveres atrás de si, a fim de continuar sua existência, é fatalmente um mal. Ora, quando Cuza mostrou a cruz, Molasar se apavorou. Cuza não arreditava no poder da cruz, mas era inegável que ela tinha ascendência sobre Molasar.
Logo, deveria ser a própria cruz que possuía o poder, e não quem a carregasse.
Suas mãos tremeram. Sentiu-se atordoado e sem rumo, ao tentar analisar todas as implicações. Elas eram assustadoras.
Quinta-feira, 1 de maio
6h40m
Duas noites seguidas sem uma única morte. Woermann sentiu-se tomado de uma espécie de júbilo cauteloso enquanto afivelava seu cinturão. Havia dormido toda a noite, sem sobressaltos, e estava bem mais tranqüilo naquela manhã.
O fortim não se mostrava mais animado. Havia ainda no ar aquela indefinível sensação de uma presença maligna. Não, ele é que tinha mudado. Por alguma razão achava que agora havia uma forte probabilidade de voltar vivo para sua casa em Rathenow. Durante algum tempo ele duvidara seriamente dessa possibilidade. Entretanto, depois do substancioso café da manhã que fora servido em seu próprio quarto, e sendo informado de que o número de seus homens era, naquela manhã, o mesmo da noite anterior, tudo o mais lhe pareceu possível - inclusive a partida de Erich Kaempffer e seus sequazes uniformizados.
Até mesmo o quadro que estava pintando deixou de preocupálo. A sombra à esquerda da janela ainda se parecia com um corpo pendurado, mas isso não o irritava mais como acontecera quando Kaempffer mostrara pela primeira vez a semelhança.
Desceu as escadas da torre e chegou ao pavimento térreo a tempo de encontrar Kaempffer dirigindo-se do pátio para os aposentos do professor, parecendo mais confiante do que de costume e, como sempre, sem muita razão.
- Bom-dia, caro major! - cumprimentou Woermann alegremente, sentindo que poderia evitar, naquela manhã, qualquer demonstração de má vontade, considerando a iminência da partida de Kaempffer. Entretanto, uma pontada irônica não faria mal. - Vejo que tivemos a mesma idéia: você veio apresentar seus mais profundos agradecimentos ao Professor Cuza pelas vidas alemãs que ele novamente salvou.
- Não há provas de que ele tenha feito semelhante coisa! - replicou Kaempffer. Seu bom-humor desapareceu logo. - Ademais, ele não pensa assim!
- Todavia o fato de as mortes terem cessado com a sua chegada é bastante sugestivo, fazendo crer numa relação de causaefeito, não acha?
- Simples coincidência! Nada mais!
- Então que veio fazer aqui? Kaempffer hesitou por uns instantes.
- Para interrogar o judeu a respeito do que ele descobriu naqueles livros, é claro.
- É claro.
Os dois entraram no primeiro quarto, Kaempffer à frente. Encontraram Cuza ajoelhado sobre seu saco de dormir estendido no chão. Não estava rezando. Tentava passar para a cadeira de rodas. Depois de um rápido olhar na direção dos visitantes, tornou a concentrar-se inteiramente no que estava fazendo.
O primeiro impulso de Woermann foi de ajudar o velho, vendo que as mãos dele pareciam incapazes de firmar-se nos braços da cadeira e que os músculos eram fracos demais para suspendê-lo. Entretanto Cuza não pedira ajuda nem mesmo com os olhos. Tornava-se evidente que era um motivo de orgulho para ele completar aquela transferência sem auxílio de ninguém. Woermann percebeu que, além da filha, o velho aleijado pouco mais tinha de que pudesse orgulhar-se. E ele não lhe roubaria aquela pequena façanha.
Cuza parecia saber o que estava fazendo. Enquanto Woermann o observava ao lado de Kaempffer - o major estava evidentemente apreciando o espetáculo -, Cuza apoiou o encosto da cadeira na parede junto à lareira e, com o rosto contraído de dor, apelou para os seus enfraquecidos músculos, forçando as juntas emperradas. Finalmente, com um suspiro e o suor correndo-lhe pelas faces, deslizou para a cadeira e deixou-se afundar no assento, ofegante e exausto. Ainda teve de mexer-se, apoiado nos braços e deslocando as nádegas para trás, até sentir-se bem acomodado, mas o pior já passara.
- O que desejam de mim? - perguntou, depois de retomar o fôlego.
Desaparecera aquele ar grave e francamente cortês que lhe caracterizara a conduta desde sua chegada ao fortim; desaparecera também a constante repetição da palavra senhor, sempre usada ao falar com os oficiais. Agora havia muito sofrimento, e muita exaustão impedindo que ele se desse ao luxo do sarcasmo.
- Que aprendeu você esta noite, judeu? - perguntou Kaempffer.
Cuza remexeu-se no assento e recostou-se na cadeira. Cerrou os olhos por uns instantes, depois tornou a abri-los, procurando fixá-los em Kaempffer. Deveria ficar quase cego sem os óculos.
- Nada de importante. Entretanto há provas de que o fortim
foi construído no século XV por um boiardo que foi contemporâneo de Vlad Tepes.
- Só isso? Dois dias de estudo e é esse o resultado?
- Um dia, major - corrigiu o professor, e Woermann percebeu o antigo traço de ironia na resposta. - Um dia e duas noites, o que não é muito tempo, considerando que as fontes estão escritas na língua original.
- Não estou disposto a ouvir escusas, judeu. Quero resultados!
- E já os obteve? - A resposta parecia ser importante para Cuza.
Kaempffer empertigou-se todo para responder.
- Houve duas noites consecutivas sem que se registrasse uma só morte, mas não creio que você tenha tido qualquer coisa a ver com isso. - Girou o tronco e encarou Woermann. - Acho que terminei minha missão aqui. Contudo, apenas como medida de segurança, ficarei mais uma noite antes de retomar minha viagem.
- Ah! Mais uma noite em sua companhia! - exclamou Woermann, apelando para o que lhe restava do bom-humor daquela manhã. - Nossa disputa acabou.
Ele era capaz de enfrentar tudo por mais uma noite tranqüila - até mesmo Kaempffer.
- Não vejo necessidade de sua permanência aqui, Herr Major - disse Cuza, visivelmente sincero. - Estou certo de que outros países necessitam muito mais de seus serviços.
Kaempffer não pôde esconder um sorriso.
- Não estou deixando o seu amado país, judeu. Seguirei daqui para Ploiesti.
- Ploiesti? Por que Ploiesti?
- Você saberá em breve. Deverei partir amanhã de manhã bem cedo - acrescentou, dirigindo-se a Woermann.
- Abrirei pessoalmente os portões para você.
Kaempffer respondeu com um olhar irado, depois saiu abruptamente do quarto, sob o olhar irônico de Woermann. O capitão sentia que nada fora solucionado, que as mortes tinham sido apenas interrompidas e poderiam recomeçar naquela noite ou na seguinte. Era apenas um breve hiato, uma moratória. Nada fora descoberto, nenhuma providência tomada. Entretanto não quis revelar suas dúvidas a Kaempffer. Desejava que ele deixasse o fortim e esse desejo era tão intenso quanto o do major de ir embora. Nada diria que pudesse retardar sua partida.
- Que quis ele dizer a respeito de Ploiesti? - perguntou Cuza depois que a porta se fechou.
- O senhor não gostaria de saber - replicou Woermann, desviando o olhar do rosto contrariado de Cuza e fixando-o na cruz de prata que emprestara na véspera à filha do professor e que agora se encontrava sobre a mesa, junto aos óculos.
- Por favor, capitão, que vai esse homem fazer em Ploiesti?
Woermann ignorou a pergunta. O professor já tinha problemas mais que suficientes. De nada adiantaria dizer-lhe que estava para surgir o equivalente romeno de Auschwitz.
- O senhor pode ver sua filha hoje, se quiser. Mas tem de ir a seu encontro. Ela não poderá vir aqui.
Esticou o braço e apanhou a cruz.
- Isto lhe foi de alguma utilidade?
Cuza olhou por um instante para o pequeno objeto de prata, depois respondeu rispidamente:
- Não. Não serviu para nada.
- Posso levá-la de volta?
- O quê? Não. . . não! Ela ainda poderá ser útil. Deixe-a onde está.
A súbita veemência na voz de Cuza surpreendeu Woermann. O professor parecia apresentar uma sutil mudança em relação ao dia anterior, menos seguro de si mesmo. Woermann não atinava com o motivo, mas sentia que acontecera algum fato novo.
Recolocou a cruz sobre a mesa e dirigiu-se para a porta. Tinha também muitas coisas com que preocupar-se sobre o mesmo assunto que perturbava o professor. Se realmente Kaempffer fosse embora, Woermann teria de decidir o que faria depois. Deveria ficar ou partir? Uma coisa era certa: Iria providenciar o transporte dos corpos para a Alemanha. Os mortos já tinham esperado muito tempo. Sem Kaempffer para importuná-lo, ele poderia decidir como melhor lhe aprouvesse.
Preocupado com seus próprios problemas, saiu do quarto sem ao menos despedir-se. Ao fechar a porta atrás de si notou que Cuza havia rolado sua cadeira para junto da mesa e colocara os óculos. Tinha a cruz nas mãos e olhava para ela fixamente.
Pelo menos ele estava vivo.
Magda aguardou impacientemente até que uma das sentinelas fosse avisar Papai. Eles já a tinham feito esperar uma boa hora antes de abrirem os portões. A moça chegara logo ao amanhecer, mas suas batidas foram ignoradas. Uma noite sem dormir deixara-a irritada e exausta. Mas pelo menos ele estava vivo.
Os olhos de Magda percorreram o pátio. Tudo quieto. Havia montículos de entulho junto à parte de trás, oriundos do trabalho de derrubada
das paredes, mas ninguém estava trabalhando, certamente porque aquela era a hora da refeição da manhã. Por que estavam demorando tanto? Eles deviam ter deixado que ela fosse diretamente ao encontro do pai.
Embora contra a vontade dela, seus pensamentos vagueavam. Ela pensava em Glenn. Ele lhe salvara a vida na noite passada. Se não fosse a intervenção dele, puxando-a para trás, as sentinelas alemãs a teriam fuzilado. Felizmente ele fora forte bastante para segurá-la até que ela se acalmasse. Magda não podia esquecer o que sentira quando se viu apertada contra o peito dele. Nenhum homem jamais fizera aquilo. . . jamais estivera tão perto para fazê-lo. A recordação daquele momento era gostosa, despertando nela algo que agora se recusava a retornar à antiga quietude.
Tentou concentrar-se no fortim e em Papai, esforçando-se para que seus pensamentos se desviassem de Glenn. . .
. . . contudo ele fora atencioso com ela, acalmando-a, convencendo-a a voltar para o quarto e ficar vigiando pela janela. Não havia nada a fazer à beira da garganta. Ela se sentira completamente desamparada, e ele compreendera. E, quando a deixou à porta do quarto, havia uma expressão particular nos olhos dele: tristeza, e algo mais. Culpa? Mas por que iria ele sentir-se culpado?
Magda notou uma diferença no momento em que transpôs o portão de entrada. Toda a luz e calor da manhã pareciam ter desaparecido, como se ela tivesse saído de uma casa aquecida e penetrado numa gelada noite de inverno. Recuou instintivamente e o frio desapareceu tão logo ela pisou na ponte, como se houvesse um especial conjunto de regras dentro do fortim. Os soldados pareciam não notar a diferença, mas ela vinha de fora e podia descrever aquilo.
Papai apareceu em sua cadeira de rodas, empurrada por um constrangido soldado, visivelmente embaraçado com a tarefa. Tão logo ela viu o rosto do pai, percebeu que havia algo errado. Qualquer coisa terrível deveria ter acontecido naquela noite. Desejou correr ao encontro dele, mas sabia que as sentinelas a impediriam de passar. O soldado empurrou a cadeira até o portão, deixando-a .depois rolar na direção de Magda. Sem esperar mais, ela correu e puxou o pai para a ponte. Quando estavam a meio caminho, sem que ele tivesse dito uma palavra, nem sequer bom-dia, a moça sentiu que deveria quebrar o silêncio.
- O que houve, Papai?
- Nada e tudo.
- Ele veio esta noite?
- Espere até chegarmos mais perto da estalagem e contarei tudo. Não convém falar aqui, alguém pode ouvir.
Ansiosa para saber o que havia perturbado tanto seu pai, Magda apressou o passo, empurrando a cadeira para a parte de trás da estalagem, onde o sol da manhã brilhava intensamente sobre a grama e batia em cheio na parede branca da casa.
Colocando a cadeira voltada para o norte, de maneira que o sol aquecesse Papai sem ofuscá-lo, ela ajoelhou-se a seu lado e tomou-lhe carinhosamente as mãos enluvadas. Ele não apresentava boa aparência; estava pior do que de costume, o que a preocupava bastante. Deveriam voltar para Bucareste. Aquele esforço ali era demasiado para ele.
- Que aconteceu, Papai? Conte-me tudo. Ele voltou de novo, não foi?
Sua voz era fria quando ele falou, e seus olhos, ao invés de se fixarem nela, não se desviavam do fortim.
- Está agradável aqui, não apenas para o corpo, mas também para a alma. Nenhuma alma resistiria se permanecesse lá por muito tempo.
- Papai...
- Seu nome é Molasar, e ele afirma que foi um boiardo leal a Vlad Tepes.
- Mas então - disse Magda com voz entrecortada -, ele está com quinhentos anos de idade!
- É mais velho, estou certo disso, mas ele não permitiu que eu lhe fizesse todas as perguntas que desejava. Ele tem seus próprios objetivos e o principal deles é impedir a entrada de estranhos no fortim.
- Inclusive você.
- Não necessariamente. Tive a impressão de que ele me considera um compatriota romeno - um "valaquiano", como diria ele - e não me pareceu ter ficado muito aborrecido com minha presença. Mas quanto aos alemães. . . O fato de eles estarem no fortim dele deixou-o quase louco de raiva. Você deveria ter visto a cara dele, quando tocamos no assunto.
- Fortim dele?
- Exatamente. Molasar construiu-o para proteger-se depois que Vlad foi morto.
Ainda hesitando, Magda fez a mais importants das perguntas:
- Ele é um vampiro?
- Acredito que sim - replicou Papai, olhando para a filha e sacudindo a cabeça. - Pelo menos ele representa aquilo que a palavra vampiro passará a significar de agora em diante. Tenho sérias dúvidas quanto ao fato de que muitas das velhas tradições comprovem ser verdadeiras. Teremos de rever o significado da palavra, não mais em termos de folclore, mas em termos de Molasar. Há tantas coisas - acrescentou ele, fechando os olhos - que terão de ser redefinidas!
Com esforço, Magda dominou o primeiro sentimento de repulsa que lhe despertou a idéia da existência de vampiros e tentou rever e analisar a situação objetivamente, despertando a faceta erudita, tão longamente treinada, de sua personalidade.
- Então ele foi um boiardo de Vlad Tepes? Talvez possamos traçar-lhe as origens.
Papai estava contemplando o fortim novamente.
- Talvez sim, talvez não. Houve centenas de boiardos associados com Vlad ao longo de seus três reinados, alguns amigos, outros hostis. . . Ele empalou alguns de seus opositores. Você pode imaginar como devem ser caóticos e fragmentados os documentos daquele período, pois, se os turcos não estavam invadindo a Valáquia, outros povos o faziam. Mesmo se encontrássemos provas de que houve um Molasar contemporâneo de Vlad, o que provaria isso?
- Nada, acho. - Ela procurou rememorar seus extensos estudos sobre a história daquela região. Um boiardo leal a Vlad Tepes . . .
Magda sempre considerara Vlad como uma mancha sangrenta da história romena. Filho de Vlad Dracul, o Dragão, o Príncipe Vlad era conhecido como Vlad Drácula - Filho do Dragão. Contudo, passara a ser chamado de Vlad Tepes, que significava Vlad o Empalador, em razão de seu método favorito de tratar os prisioneiros de guerra, os súditos desleais, os boiardos traidores e, praticamente, quem quer que discordasse dele. Magda se lembrava de um desenho representando o Dia de São Bartolomeu de Vlad - o massacre em Amlas - quando 30.000 cidadãos dessa desgraçada cidade foram empalados em longos postes de madeira fincados em seguida no chão; os prisioneiros eram atravessados pelo poste e suspensos no ar até à morte. Ocasionalmente, havia uma finalidade estratégica para justificar a empalação: em 1460, o espetáculo de 20.000 cadáveres de turcos empalados, apodrecendo ao sol nos arredores de Targoviste, de tal maneira horrorizou um exército invasor turco que os soldados recuaram e deixaram o reino de Vlad em paz por algum tempo.
- Imagine! - comentou ela. - Ser leal a Vlad Tepes.
- Não se esqueça de que o mundo era então muito diferente - disse Papai. - Vlad era um produto de seu tempo e Molasar também. Vlad ainda é, em algumas regiões, considerado herói nacional - era o flagelo da Valáquia, mas também seu grande defensor contra os turcos.
- Estou certa de que este Molasar não encontrou nada de repugnante na conduta de Vlad - disse Magda, sentindo-se nauseada só em pensar naqueles homens, mulheres e crianças empalados e condenados a morrer lentamente. - Provavelmente achava que era um bom divertimento.
- Quem pode dizer? Mas pode suspeitar-se por que um dos não-mortos gravitava em torno de alguém como Vlad: é que nunca faltavam vítimas. A sede podia ser saciada nos agonizantes e ninguém jamais imaginaria que as vítimas tivessem morrido de outra causa que não fosse a empalação. Não havendo mortes inexplicáveis, capazes de provocar dúvidas, ele podia banquetear-se à vontade, sem levantar suspeitas.
- Nem por isso ele deixa de ser um monstro - sussurrou Magda.
- Como pode você julgá-lo, Magda? Somente seus pares seriam capazes de fazê-lo. Quais foram os pares de Molasar? Você percebe se dá conta do que significa a existência dele? Não vê quantas coisas ela altera? Quantos conceitos que admitíamos como verdadeiros não serão desprezados como lixo inútil?
Magda concordou com um lento aceno de cabeça, sentindo que a descoberta havia aumentado o peso de suas preocupações.
- Tem razão. Uma forma de imortalidade.
- Mais do que isso! Muito mais! É como uma nova forma de vida, um novo modo de existência! Não. . . Não é bem isso. Realmente é um velho modo... porém novo no que concerne aoconhecimento histórico e científico. E, ultrapassando o racional, considere as implicações espirituais - acrescentou com voz vacilante. - Elas são... arrasadoras.
- Mas como tudo isso pode ser verdade? Como! - perguntou ela, inteiramente confusa.
- Não sei. Há tanta coisa para aprender e nós estivemos tão pouco tempo juntos! Ele se alimenta com o sangue vivo. . . quanto a isso não pode haver dúvida, a julgar pelo que vi nos cadáveres dos soldados. Todos eles foram dessangrados através do pescoço. Ontem de noite comprovei que a imagem dele não se reflete no espelho, o que demonstra ser verdadeira esta parte da lenda tradicional dos vampiros. Entretanto são falsas as relativas à repulsa ao alho e à prata. Ele parece ser uma criatura da noite. . . somente aparece e ataca à noite. Contudo, duvido muito que ele passe as horas do dia dormindo em algo tão melodramático como um esquife.
- Um vampiro - comentou Magda em um sussurro. - Sentada aqui, com o sol brilhando sobre minha cabeça, isso me parece tão ridículo, tão...
- Você achou ridículo quando, duas noites atrás, ele sugou a luz de nosso quarto? Foi ridículo o aperto que ele deu em seu braço?
Magda levantou-se, esfregando o local acima de seu cotovelo direito; curiosa por saber se as marcas ainda estavam lá, afastou-se um pouco e arregaçou a manga do vestido. Sim. . . ainda permaneciam ... uns riscos longos, de uma cor acinzentada de cadáver. Ao descer a manga, percebeu que os riscos tinham começado a desaparecer, que a pele retomava sua cor rosada e saudável sob a luz direta do sol. Enquanto observava, a mancha sumiu de todo.
Sentindo-se subitamente fraca, Magda cambaleou e teve de apoiar-se no encosto da cadeira de rodas. Esforçando-se para esconder sua perturbação, ela se manteve atrás do pai. Mas não precisava ter-se preocupado - ele estava novamente de olhos fixos no fortim, sem ter notado que ela se afastara.
- Ele está em algum lugar lá dentro - dizia o professor - esperando que caia a noite. Preciso falar com ele de novo.
- Trata-se realmente de um vampiro, Papai? Será que ele foi mesmo um boiardo quinhentos anos atrás? Como poderemos saber que tudo não passa de um truque? Ele é capaz de provar o que diz?
- Provar? - disse ele com um quê de raiva na voz. - Por que teria ele necessidade de provar alguma coisa? O que lhe importa se acreditamos ou não no que ele diz? Tem seus próprios problemas e acha que lhe poderei ser útil. "Um aliado contra os invasores", foi o que ele disse.
- Você não deve ajudá-lo!
- E por que não? Se ele necessita de um aliado contra os alemães que invadiram o seu fortim, poderei colocar-me à sua disposição, embora não veja em que lhe possa ser útil. Foi por isso que nada contei aos alemães.
Magda desconfiou que não eram somente aos alemães que o pai sonegara informações; ela também não ficara sabendo de tudo. Ele não costumava proceder assim.
- Papai, você não está falando sério!
- Molasar e eu temos um inimigo comum, não temos?
- No momento, talvez. Mas depois? Ele ignorou a pergunta.
- Não posso deixar de considerar que ele pode ser de grande utilidade em meu trabalho. Poderei aprender muita coisa com ele. Preciso falar-lhe outra vez. É indispensável! - insistiu, desviando o olhar do fortim. - Tanta coisa mudou de um momento para outro. . . Tenho de rever uma porção de conceitos. . .
Magda tentou inutilmente compreender suas intenções.
- Qual o motivo de tanta preocupação, Papai? Durante anos você achou que poderia haver algo de verdadeiro no mito dos vampiros. Chegou mesmo a enfrentar o ridículo. Agora, que você tem provas, parece contrariado. Deveria sentir-se eufórico.
- Você não está compreendendo? Pratiquei um exercício intelectual. Agrada-me trabalhar essa idéia, valer-me dela como autoestímulo e provocar todas aquelas mentes emperradas do Departamento de História!
- Era mais do que isso, não negue.
- Está bem. . . mas nunca pensei que tal criatura ainda existisse. Nem, muito menos, que me coubesse a sorte de encontrá-la frente a frente! E jamais considerei - acrescentou baixando a voz - a possibilidade de que ele pudesse de fato temer. ..
Magda esperou que ele terminasse, mas o professor ficou em silêncio sua mão direita procurando algo no bolso do casaco.
- Temer o quê, Papai? Do que é que ele tem medo?
Cuza, porém, não estava prestando atenção ao que dizia a filha. Seus olhos tinham se fixado outra vez no fortim, enquanto a mão vasculhava o bolso.
- Ele é sem dúvida um ente maligno, Magda. Um parasita com poderes sobrenaturais que se alimenta de sangue humano. Um malefício em carne e osso. Mal que se tornou tangível. Assim, se é isso mesmo, onde será então que ele se esconde?
- Sobre o que você está falando? - estranhou Magda, pois os pensamentos do pai eram de assustar. - O que está dizendo não faz sentido!
Ele tirou a mão do bolso e mostrou à filha um objeto.
- Isto! É sobre isto que estou falando!
Era a cruz de prata que a moça pedira de empréstimo ao capitão. Que será que Papai queria dizer? Por que ele olhava daquela maneira, com os olhos tão brilhantes?
- Não compreendo.
- Molasar ficou apavorado ao vê-la!
O que Papai estava achando de tão extraordinário?
- E daí? Por tradição um vampiro deve ser...
- Por tradição! Isto não é tradição, é realidade! E ele ficou apavorado! Quase desapareceu do quarto! Uma cruz!
Súbito, Magda percebeu o que tão dolorosamente vinha perturbando Papai naquela manhã.
- Ah! Agora você compreende, não é - disse ele, inclinando a cabeça com um pequeno sorriso triste.
Pobre Papai! Ter passado toda a noite com aquele problema - lamentou Magda sem comentar mas também sem aceitar o sentido do que acabara de ouvir.
- Mas você não pode realmente pretender. . .
- Não se pode ignorar um fato, Magda - disse ele, levantando a cruz e expondo ao sol a superfície brilhante do pequeno objeto de prata. - É parte de nossa crença, de nossa tradição que Cristo não foi o Messias. Que o Messias ainda está por vir. Que Cristo foi apenas um homem e que seus discípulos eram em geral pessoas bondosas mas ignorantes. Se isso for verdade... - acrescentou, olhando hipnotizado para a cruz. - Se isso for verdade. . . Se Cristo foi tão-somente um homem, então por que uma cruz, instrumento de sua morte, iria apavorar tanto um vampiro. Por quê?
- Papai, você está forçando conclusões. É preciso que haja outros argumentos.
- Estou convencido de que há. Mas preste atenção no que lhe digo. Esses argumentos têm estado conosco todo o tempo, nas lendas, nas novelas, nos filmes baseados no folclore. Entretanto, qual de nós lhes deu atenção? O vampiro tem medo da cruz. Por quê? Porque ela é o símbolo da salvação humana. Percebe o que isso, significa? Essa idéia nunca me passou pela cabeça antes desta noite.
Será isso possível? - perguntou Magda a si mesma enquanto o pai fazia uma pausa. - Será realmente possível? Papai retomou sua exposição, em tom sombrio.
- Se uma criatura como Molasar acha o símbolo da cristandade tão repulsivo, a conclusão lógica é que Cristo deve ter sido mais do que um simples homem. E se isso for verdade, então nosso povo, nossas tradições, nossas crenças durante dois mil anos, têm sido todos mal-orientados. O Messias já veio e nós não o reconhecemos!
- Você não pode dizer isso! Recuso-me a acreditar em suas conclusões! Deve haver outra explicação,!
- Você não estava lá. Você não viu o pavor no rosto dele quando eu puxei a cruz. Não presenciou como ele tremeu aterrorizado e se encolheu todo até que eu recolocasse a cruz na caixa. Ela tem poder sobre ele!
Deveria ser verdade. O fato conflitava com os mais arraigados dogmas que Magda aprendera. Contudo, se Papai dissera, se ele vira, então devia ser verdade. Ela tentou fazer algum comentário, dizer umas palavras de apoio, mas limitou-se a murmurar:
- Papai.
- Não se preocupe, menina. Não estou a ponto de jogar fora a minha Tora nem pretendo recolher-me a um mosteiro. Minha fé é profunda, mas isto exige reflexão, você não acha? Levanta a suspeita de que poderemos estar errados. . . que todos perdemos um barco que partiu há quase vinte séculos.
O pai estava tentando tornar a questão clara para ela, mas Magda percebia que ele próprio se sentia confuso.
A moça sentou-se na grama para pensar. Ao virar-se, percebeu um movimento na janela da estalagem, acima do local onde eles se encontravam. Qualquer coisa avermelhada. Magda cerrou os punhos, furiosa, ao verificar que a janela era a do quarto de Glenn. Ele deveria ter ouvido tudo.
Magda ficou de atalaia, durante alguns minutos, na esperança de surpreendê-lo, porém nada mais viu. Já estava prestes a desistir, quando uma voz a surpreendeu:
- Bom-dia!
Era Glenn, vindo do canto sul da estalagem, trazendo uma pequena banqueta em cada mão.
- Quem é? - perguntou Papai, impossibilitado de virar sua cadeira para ver quem tinha falado atrás dele.
- Uma pessoa que conheci ontem. Seu nome é Glenn. O quarto dele fica em frente ao meu.
Glenn sorriu alegremente para Magda, ao aproximar-se dela e parando diante da cadeira de Papai. Sua altura fazia com que ele se destacasse como se fosse um gigante. Trajava calças de lã, botas de alpinista e uma camisa larga aberta no pescoço. Colocou as banquetas sobre a grama e estendeu a mão a Papai.
- E bom-dia também para o senhor. Já conhecia sua filha.
- Theodor Cuza - replicou Papai, meio hesitante, com maldisfarçadas suspeitas. Depositou sua mão enluvada e retorcida na de Glenn. Seguiu-se uma imitação de aperto de mão, depois Glenn indicou uma das banquetas para Magda.
- Trouxe-lhe esta. A grama ainda está muito úmida para sentar-se nela.
Magda levantou-se do chão.
- Obrigada. Prefiro ficar de pé - replicou com toda a arrogância de que foi capaz. Estava ressentida por ele ter escutado a conversa e principalmente por ter-se intrometido naquele encontro de pai e filha. - Nós estávamos justamente de partida.
Quando Magda se aproximou do encosto da cadeira, para movimentá-la, Glenn colocou delicadamente a mão no braço dela.
- Por favor, não vá ainda. Acordei com o som de duas vozes embaixo de minha janela, falando sobre o fortim e também referindo-se a um vampiro. Vamos discutir um pouco esse assunto, se permitem - acrescentou com um sorriso.
Magda nem encontrou palavras para responder, furiosa com a ousadia da intromissão e do pretexto para agarrar-lhe o braço. Todavia, não repeliu a mão dele. Aquele contato lhe era agradável.
Papai, entretanto, nada tinha que o tolhesse:
- O senhor não deve mencionar a ninguém uma só palavra do que acabou de ouvir aqui! Isso poderá custar nossas vidas,!
- Não tenha a menor preocupação quanto a isso - replicou Glenn, deixando de sorrir. - Os alemães e eu nada temos a dizernos. Não vai sentar-se? - perguntou, dirigindo-se a Magda. - Trouxe esta banqueta para você.
Ela olhou para o pai.
- Papai?
- Parece que não temos muita escolha - concordou ele, inclinando a cabeça resignado.
Glenn retirou a mão quando Magda foi sentar-se, surpresa por sentir um pequeno vazio indefinido. Entrementes, Glenn puxou a outra banqueta e sentou-se também.
- Magda me falou, na noite passada, a respeito do vampiro do fortim - disse ele -, mas não fiquei sabendo qual o nome que ele lhe deu.
- Molasar - respondeu Papai.
- Molasar - repetiu Glenn lentamente, destacando as sílabas e com uma expressão de perplexidade. - Mo. . .la. . .sar. . . - Súbito, seu rosto iluminou-se, como se tivesse resolvido um quebra-cabeças. - Sim... Molasar. Um nome estranho, o senhor não acha?
- Não muito comum, mas não necessariamente estranho.
- E isso aí? - perguntou Glenn, apontando para a cruz ainda apertada entre os dedos retorcidos de Cuza. - Pareceu-me ouvir que Molasar se apavorou ao vê-la.
- Isso mesmo.
Magda notou que Papai não estava disposto a fornecer detalhes.
- O senhor é judeu, não é, professor?
Uma inclinação de cabeça, indicando concordância.
- É costume dos judeus trazerem cruzes consigo?
- Minha filha pediu esta emprestada para mim, por causa de uma experiência que eu queria fazer.
Glenn voltou-se para Magda:
- Como foi que você a conseguiu?
- Pedi-a a um dos oficiais no fortim!
Aonde conduziria tudo isto?
- Era dele mesmo?
- Não. Disse-me que pertencia a um dos soldados mortos - esclareceu Magda, começando a perceber o raciocínio que ele estava seguindo.
- É estranho - comentou Glenn, voltando sua atenção para Papai - que esta cruz não tenha salvo o soldado que a possuía. O lógico seria pensar que uma criatura temerosa da cruz não escolhesse aquela vítima e se satisfizesse com outra, desprotegida de - como vamos chamar isso? - amuleto.
- Talvez a cruz estivesse escondida embaixo da camisa - disse Papai. - Ou no bolso. Ou talvez mesmo guardada no quarto.
- Talvez, talvez - replicou Glenn com um sorriso.
- Nós não pensamos nisso, Papai - disse Magda, ansiosa para apoiar qualquer idéia que contribuísse para animar o espírito do pai.
- É preciso pesquisar todas as pistas - ponderou Glenn. - É preciso pesquisar sempre tudo. Chega a ser uma ousadia minha recomendar isso a um professor.
- Como sabe que sou um professor? - estranhou Cuza, com um brilho nos olhos. - Foi minha filha quem lhe contou?
- Não. Soube por luliu. Mas há algo mais que o senhor deixou de considerar e que é tão óbvio que ambos se sentirão encabulados quando eu disser o que é.
- Faça-nos então encabular - desafiou Magda. - Por favor.
- Está bem. Por que um vampiro iria ter medo de cruzes, se mora em um fortim cujas paredes estão guarnecidas de centenas delas? Pode explicar isso?
Magda olhou para o pai e surpreendeu-se ao vê-lo olhando também para ela.
- Bem... - desculpou-se Papai, com um sorriso embaraçado. - Estive tantas vezes no fortim e me preocupei tanto com sua origem que nem prestei atenção nas cruzes!
- Isso é muito natural. Eu mesmo estive aqui algumas vezes e as cruzes me pareceram ,fazer parte do conjunto. Mas a pergunta continua de pé: Por que uma criatura que tem tanto horror à cruz vive cercado delas? - perguntou Glenn, levantando-se e colocando a banqueta no ombro. - E agora acho que vou pedir a Lídia o meu café e deixar que pai e filha descubram a resposta, se é que há uma.
- Mas qual é o seu interesse nisto? - perguntou Papai. - Que está fazendo aqui?
- Apenas viajando - respondeu Glenn. - Gosto desta região e visito-a regularmente.
- Parece que o senhor dispensa ao fortim mais do que uma simples curiosidade e que tem profundos conhecimentos a respeito dele.
- Estou certo de que o senhor o conhece muito melhor do que eu.
- Gostaria de saber de que modo poderei evitar que meu pai volte para lá esta noite - disse Magda.
- Devo voltar, minha querida. - Preciso enfrentar Molasar outra vez.
Magda esfregou as mãos, que tinham ficado geladas ante a idéia de Papai retornar ao fortim.
- Tudo o que desejo é que você não seja encontrado com a garganta estraçalhada, como aconteceu com os outros.
- Há coisas piores que podem acontecer a um homem - interveio Glenn.
Surpreendida pela alteração no tom da voz dele, Magda encarou-o e percebeu que toda a alegria e despreocupação haviam desaparecido de seu rosto. Glenn olhava fixamente para Papai. Aquele quadro durou apenas uns segundos, depois ele sorriu de novo.
- O café me espera. Conto vê-los novamente enquanto estivermos por aqui. Mas permitam-me mais uma coisa antes que eu me retire.
Encaminhou-se para trás da cadeira de rodas e fê-la girar num arco de 180°.
- Por que está fazendo isso? - perguntou Papai enquanto Magda se levantava de um salto.
- Apenas proporcionando-lhe uma mudança de paisagem, professor. O fortim não passa, afinal de contas, de uma vista melancólica. O dia está bonito demais para se estar olhando um panorama triste - acrescentou, indicando o passo. - Olhe para o sul e para o leste, e não para o norte. Com sua simplicidade, esta região é uma das mais bonitas do mundo. Veja como a grama é verde, como as flores silvestres estão desabrochando. Esqueça ofortim por um momento.
Durante um breve instante os olhares dele e de Magda se cruzaram; depois ele se retirou por trás da estalagem, a banqueta sobre o ombro.
- Um tipo estranho esse, não acha? - observou Papai com certa ironia.
- Sim, sem dúvida.
Ainda que o achasse estranho, Magda sentia que tinha uma gratidão para com ele. Por alguma razão que só ele conhecia, Glenn intrometera-se na conversa deles e lhe emprestara outro rumo, distraindo Papai, levantando-lhe o ânimo, mas deixando-lhes também uma interrogação. Fizera tudo isso habilmente, com inegável eficiência. Mas por quê? Que interesse poderia ele ter a respeito dos íntimos tormentos de um judeu aleijado, vindo de Bucareste?
- A verdade é que ele levantou algumas questões - prosseguiu Papai. - Excelentes questões. Como é que elas não me ocorreram?
- Nem a mim!
- Naturalmente - procurou justificar-se o professor -, ele não está sob o duro impacto de um encontro pessoal com uma criatura considerada até agora como simples produto de uma imaginação doentia. É mais fácil para ele ser objetivo. A propósito, como foi que você o conheceu?
- Ontem à noite, quando eu estava na garganta, vigiando a janela de seu quarto no fortim...
- Você não deve se afligir dessa maneira. Até parece que não fui eu que criei você e sim você a mim!
Magda ignorou a interrupção:
- ... ele chegou a galope, como se fosse tomar o fortim de assalto, parando apenas quando viu as luzes e os alemães.
Papai pareceu não dar muita importância ao relato e mudou de assunto.
- Por falar em alemães, é melhor eu ir tratando de regressar, antes que eles venham buscar-me. Prefiro voltar para o fortim voluntariamente do que sob a ponta de uma baioneta.
- Não haveria um jeito de nós...
- Fugir! É claro! Basta que você empurre a minha cadeira pela estrada até Campina! Ou talvez você me ajude a montar no lombo de um cavalo - o que, certamente, tornará a viagem mais fácil. - O tom da voz dele se tornava cada vez mais irritado, à medida que falava. - Ou, melhor que tudo, por que você não vai pedir àquele major da SS que nos empreste um de seus caminhões, dizendo que é apenas por uma tarde. Estou certo de que ele concordará.
- Não há necessidade de falar comigo desse jeito - disse ela, ferida pelo sarcasmo do pai.
- Também não há necessidade de você torturar-se com a esperança de uma fuga para nós dois. Esses alemães não são tolos. Sabem que eu não posso fugir e que você não fugirá sem mim, por mais que eu desejasse. Não fora isso, pelo menos um de nós estaria livre.
- Ainda que pudesse sair, você voltaria ao fortim, não é verdade, Papai? - disse Magda, começando a compreender a atitude do pai. - Você deseja voltar para lá.
O professor evitou os olhos da filha.
- Estamos presos e sinto que devo aproveitar a oportunidade de uma vida inteira. Se a deixasse escapar eu seria um traidor de todo o meu trabalho.
- Mesmo que um avião pousasse agora no passo e o piloto nos convidasse para embarcarmos, você não aceitaria, não é?
- Preciso vê-lo outra vez, Magda! Preciso perguntar-lhe a respeito daquelas cruzes nas paredes,! De que modo ele se tornou o que é. Sobretudo, preciso saber por que ele tem pavor da cruz. Se não conseguir isso. .. serei capaz de enlouquecer!
Nenhum dos dois falou durante alguns minutos. Longos minutos. Magda sentia que o silêncio alargava o fosso entre eles. Isso nunca acontecera antes. Sempre trocavam idéias. Agora, porém, parecia que o professor não queria discussões, mas simplesmente retornar ao fortim, para ver Molasar.
- Leve-me de volta - foi tudo o que ele disse, e o silêncio retornou, insuportável.
- Fique um pouco mais. Você já esteve bastante tempo no fortim. Acho que isso lhe está fazendo mal.
- Sinto-me perfeitamente bem, Magda. E direi quando achar que minha permanência no fortim se prolonga demais. E agora você vai levar-me de volta ou terei de esperar, sentado aqui, que os nazistas venham buscar-me?
Mordendo os lábios em desespero e frustração, Magda colocou-se atrás da cadeira e começou a empurrá-la na direção do fortim.
Ele estava sentado um pouco afastado da janela, de maneira a poder ouvir a conversa embaixo, sem ser visto por Magda, no caso de ela levantar os olhos. Fora descuidado da vez anterior. Ansioso para ouvi-la melhor, debruçara-se no peitoril. Quando Magda inesperadamente olhou para cima, ele não teve tempo de recuar. Decidira então que seria melhor um ataque frontal e descera para conversar com eles.
Agora parecia que cessara completamente a conversa. Ao ouvir o ruído das rodas da cadeira do professor ele se inclinou para a frente e divisou os dois se afastando. Magda parecia calma enquanto empurrava a cadeira apesar da revolta que, imaginava ele, estaria dominando o espírito dela. Ainda esticou o pescoço para um último olhar quando o par dobrou a esquina da estalagem e desapareceu de suas vistas.
Obedecendo a um impulso súbito, ele correu para a porta, atravessou o corredor em três largas passadas, entrou no quarto de Magda e se dirigiu diretamente para a janela. Ela estava atravessando a ponte, com a cadeira de rodas à sua frente.
Era um prazer vê-la caminhar.
Glenn se interessara por Magda desde o primeiro encontro na garganta, quando ela o enfrentara com arrogante calma, apertando na mão uma pedra. Mais tarde, quando ela viera a seu encontro na sala da estalagem para comunicar que não lhe cederia o quarto, ele vira pela primeira vez, à luz do candeeiro, o brilho dos olhos dela e sentiu uma emoção desconhecida. Olhos de um castanho profundo, as faces rosadas. . . Ele gostou do jeito com que ela o olhou e achou maravilhoso o seu sorriso. Magda sorrira apenas uma vez na presença dele, enrugando os cantos dos olhos e revelando uns dentes brancos e parelhos. E o cabelo... Os pequenos cachos que percebera sob o lenço eram de um castanho lustroso. . . Ela deveria usá-lo solto, ao invés de escondê-lo.
Mas a atração era mais do que física. Aquela moça provinha de boa cepa. Glenn ficou a contemplá-la enquanto ela alcançava a entrada do fortim e entregava a cadeira para a guarda. O portão tornou a fechar-se e Magda ficou sozinha na extremidade da ponte. Quando a moça se voltou e iniciou a caminhada de regresso, ele se recolheu para o fundo do quarto, de modo a não ser visível pela janela, mas...
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