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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GRANDE DIA / Odette Joyeux
O GRANDE DIA / Odette Joyeux

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Michel de Villecroze não esqueceu a sua "noiva improvisada" e deseja que ela desempenhe o papel principal numa série que está a preparar para a televisão. No entanto, Marie não só recusa o papel que lhe é oferecido, como pretende mesmo evitar qualquer encontro com o jovem marquês. O destino, porém, é mais forte do que os seus desejos...

 

 

 

 

No Centro de Dança de Cannes, os alunos prosseguem os seus estudos e o implacável treino quotidiano.

Afluem de todos os horizontes, atraídos pelo prestigio da Escola, pela autoridade da sua directora, que foi "a grande Marjorie Brooks", estrela indiscutível, prima ballerina abssoluta, e a quem por isso todos tratam, respeitosamente, por Madame. Madame amada e temida, secundada pelos mais brilhantes professores, também eles mestres ou estrelas, tais como Chauviré, Béjart, Noureev ou Plessitskaia - que periodicamente acedem em ensinar no Centro, a fim de transmitirem o fogo sagrado, a sua iniciação, as suas inspirações e as suas leis.

As representações, os concursos, oferecem a alguns perspectivas, esperanças, que estimulam a vontade e os esforços. Marie Soler procura deste modo todas as ocasiões para trabalhar, para se aperfeiçoar cada vez mais.

Serge Laroche prepara, com um grupo de colegas, a sua primeira coreografia, que Madame decidiu apresentar no concurso para Jovens companhias, patrocinado por um mecenas,

na Ópera de Monte Carlo. Realizando o seu sonho de sempre, Serge deu a Marie o papel principal.

Para os jovens, esta futura criação é um tempo de exaltação. O amor pela profissão parece apagar os sentimentos que lhes agitaram a infância, que lhes perturbaram a adolescência. Relega para o passado as querelas que Serge e Marie hoje consideravam como infantilidades. Aspirando unicamente a exprimirem-se através duma arte mais difícil do que todas as outras, vivem apenas para a dança.

Pelo menos, é o que eles julgam...

No grande estúdio que Madame deixa à disposição de Serge depois das aulas, o ensaio começa.

Misturados de qualquer maneira, sentados no chão ou apoiados às barras, os bailarinos rodeiam Madame e a sua assistente, Suzanne Leroy. O famoso concurso efectuar-se-á naquela noite. Últimos acertos, últimos conselhos. Dúvidas e esperanças. Para o jovem grupo, é como que um estado de prevenção: tem de defender "o seu" espectáculo, ganhar o jogo, para honra da Escola e de Madame.

O êxito pode dar origem a contratos, fornecer a Serge o meio de montar outras obras, porque a arte da dança, tal como o cinema, exige finanças!

Desde há semanas que Serge, com todo o entusiasmo, elaborou o seu bailado. A pequena trupe entusiasta e benévola do coreógrafo constitui o material humano com o qual, dia após dia, ele deu forma ao seu tema.

Esta noite será o confronto, a prova perante o público e o areópago dum júri composto por celebridades das artes e das letras.

Viva, autoritária, atenta, uma mulher ainda nova assiste ao ensaio, ao mesmo tempo que dá ordens a uma equipa de operadores: é Géraldine Dupuis. Sempre à espreita de documentos ou de revelações, apaixonada pela dança, filma extractos do ballet e faz uma entrevista.

Divertidos, interessados, os bailarinos que estão ali como espectadores olham Serge com simpatia, no seu papel de mestre de ballet. Estes dão o seu apoio a um ensaio que se situa nos antípodas das regras acadêmicas. O bailado é uma sátira que Serge baptizou de As Grades. Deste modo, e através da caricatura, o coreógrafo trai a gravidade das suas preocupações porque trata temas essenciais da existência: um rapaz vai nascer, um homem vai morrer. Os seus primeiros passos e o seu último suspiro, o panorama duma vida. Serge escreveu o poema e o bailado põe a poesia em imagens.

Pela última vez no Centro, ensaiam As Grades.

Dois declamadores, Véronique e James, colocam-se em cada uma das extremidades do estúdio. Seguram uma moldura onde se recorta o busto, como um retrato, enquanto os bailarinos ilustram o texto que eles recitam com uma ênfase irônica. É uma maneira de renovar o coro antigo que comentava as trágicas aventuras de Édipo ou de Agamémnon.

O bailado começa por um pás de deux executado por Marie e Stanislas. Eles interpretam o

jogo papá-mamã, que os declamadores sublinham:

"Eis o papá!

Eis a mamã!

Eis os amantes,

Eis as pessoas de coragem!

que fazem as crianças. "

No final do pás de deux aparece o bebê, papel desempenhado por Lynn, o professor de jazz, em pessoa. O jovem americano ensinou e dançou na Broadway. Amigo de Madame, fez um estágio na Escola e, seduzido, ficou. Os alunos adoram as aulas deste notável bailarino moderno.

Como Serge não conseguisse arranjar nenhum colega com envergadura para encarnar o seu herói, Lynn propôs-lhe a sua ajuda, feliz por ter uma ocasião para dançar, fazendo ao mesmo tempo confiança nas aptidões do jovem coreógrafo. Um elemento formidável! Graças a Lynn, o ballet dançado por alunos toma verdadeiramente um aspecto profissional.

Os declamadores comentam agora a sua entrada:

"Oh! que belo bebê! É preciso fechá-lo Para que não fuja. Para que não desapareça. Para que o não roubem. "

Os pais colocaram o bebê num parque de criança. Para o distrair, trazem-lhe uma gaiola, onde palpita um pássaro. A criança estende imediatamente os braços para a gaiola.

"O pássaro grita muito. A criança fica encantada. As crianças e os pássaros aborrecem-se atrás das grades. "

As mímicas infantis de Lynn no parque são irresistíveis. Os espectadores divertem-se com os seus achados, enquanto Madame e Géraldine trocam um sinal de assentimento.

O bailado anuncia-se bem.

Entretanto, a criança abriu a gaiola. O pássaro voa -os pais tentam agarrá-lo, enquanto o bebê consegue sair do parque. Os declamadores troçam:

"Os pais galopam,

Os pais correm!

Não há nada a fazer para o apanhar.

O mais pesado que o ar

é demasiado ligeiro... "

A criança-Lynn está hilariante: o pássaro ri-se dos pais. Furiosos, eles administram ao ca traio a sua primeira bofetada. E Lynn recebe uma sonora bofetada, conscienciosamente aplicada por Stanislas, que leva muito a sério o seu papel de pai.

Mas o bebê pára bruscamente - esfrega a cara e invectiva Stanislas com uma voz forte de homem. Que bata com menos força, cos diabos!

Serge aproxima-se para indicar aos intérpretes o movimento desejado. O coreógrafo aprendiz mima, cada um por sua vez, o pai e a criança; faz caretas, desfigura-se, caricatura-se, quando Serge é tão belo, com os seus olhos de céu, a sua silhueta de jovem atleta... "Quando à bofetada", disse ele, "o ruído será produzido nos bastidores por um maquinista, que baterá com as mãos diante dum micro para amplificar o som." Em teatro, a verdade não é de pôr.

Serge tem razão. O efeito será muito mais eficaz.

Depois deste incidente, que divertiu toda a gente - Lynn contentou-se com um sorriso amarelo - o ensaio segue o seu curso.

Terminadas as filmagens, Géraldine vem sentar-se junto de Madame. Ao mesmo tempo que olham os bailarinos, falam em voz baixa.

"Que é que pensa disto?", pergunta Madame.

A opinião de Géraldine tem o seu preço. Brilhante jornalista, reinando na imprensa e na televisão, também ela sonhara ser estrela. Em matéria de dança, é tida entre os raros amadores muito qualificados.

Responde:

"Este pequeno Laroche tem talento. A senhora tem razão em o encorajar. O seu bailado é excessivo, mas tanto melhor, isso prova que o coreógrafo tem idéias e personalidade. Além disso, um bailado que faz rir não se vê nenhum nos nossos dias! A maior parte dos jovens coreógrafos dão aos seus primeiros passos na filosofia ou na psicanálise. Este rapaz tem personalidade e agrada-me bastante que tenha preferido dançar contra a corrente, isto é, contando uma história."

Madame reforça: "Ele procura exprimir o que vê.

- A verdade." Madame sorri: "Enfim, a sua verdade." Géraldine sorri igualmente. O ensaio prossegue.

Os declamadores continuam a recitar o texto. Os bailarinos passam dum personagem a outro, encarnando sucessivamente os heróis estereotipados do coreógrafo. Porque As Grades contam uma vida da qual Serge, como todos os jovens de hoje, procura denunciar o absurdo: a existência tal como a sociedade a definiu.

O seu herói, o rapaz que vai crescer, segue o caminho banal, traçado pela maioria dos homens. O nascimento, a inocência depressa corrigida (recebeu a sua primeira bofetada). Contudo, a criança e o pássaro, muito naturalmente, em princípio apenas aspiram à liberdade.

Em seguida virão a escola, os deveres, as brigas e os castigos, depois virão as primeiras emoções, o serviço militar, o amor e a guerra -a morte.

Sim, é possível rir de tudo isto, tal como Serge o tenta fazer, para mascarar a angústia da sua juventude, para exprimir os seus receios e a sua paixão pela vida.

O ensaio termina e Géraldine despede-se. A sua equipa já guardou o material, câmaras e projectores, cabos e micros.

Ela anuncia a Madame:

"Mandarei projectar algumas imagens do espectáculo e, se der resultado, farei que apareça a reportagem numa revista. Logo irei a Monte Carlo para assistir ao ensaio geral. O seu pequeno Serge forneceu-me bons elementos de trabalho. "

Madame agradeceu-lhe. Géraldine segue com simpatia as pesquisas efectuadas no Centro. Admirou a estrela e agora admira, talvez ainda mais, a professora, a pedagoga - aquele entusiasmo, aquela vontade, que apenas a animam para transmitir a sua paixão pela dança aos jovens seres ávidos de beleza e de glória.

"Você reuniu muito material sobre a nossa profissão?

- Nunca é o bastante - responde Géraldine. -A dança é viva. Sabe que estou a preparar uma antologia?... Gostaria de dar uma forma dramática ao meu projecto. E precisarei de intérpretes.

- Pense nos nossos alunos-disse imediatamente Madame. Estou sempre receosa de não lhes garantir um futuro. A dança oferece tão poucas saídas! É por isso que tento dar-lhes uma cultura geral. "

Madame reparou na atenção que Géraldine presta a Marie Soler, uma das suas preferidas. Uma - das muito raras - sobre quem pode fundar esperanças.

Géraldine e Marie começam a conhecer-se e Madame não o ignora. A jornalista há mais dum ano que se interessa por aquela rapariga cheia de promessas. Mas para os seus primeiros passos"; para a sua primeira oportunidade, Marie esteve a ponto de ficar transtornada com uma paixão infantil; misturou o amor pela profissão com o amor, confundiu um ídolo, uma estrela admirável, um bailarino de excepção, com um príncipe encantado, e como não existe príncipe encantado...

É normal, aos dezasseis anos, alguém confundir-se nos seus sentimentos e julgar que a atenção dispensada por um mestre de ballet equivale à dum apaixonado. Sim, Marie falhou por excesso de paixão. Desiludiu. E Géraldine, que apenas ama os triunfantes, afastou-se da bailarina.

E depois, não há muito tempo, no decurso da famosa festa dada em casa dos Villecrozes, num ambiente barroco e refinado, Géraldine e Marie tiveram os seus desaguisados.

Entretanto, vestida com os seus collants cor-de-rosa e pretos, Marie trabalha, emprega-se a fundo: a dura lição de Galateia serviu-lhe para alguma coisa.

Igor Andreiev escolhera-a para interpretar naquele bailado a boneca, que, pouco a pouco, se anima entre as suas mãos. Um papel de estrela ao lado dum bailarino grande entre os grandes e célebre nos quatro cantos do mundo. Marie, por isso, perdera todo o raciocínio e toda a prudência.

Resultado: uma oportunidade deslumbrante perdida.

Passado o desespero, Marie voltou a erguer a cabeça - quer reabilitar-se.

com Serge, é outra coisa, uma verdadeira aventura -a da juventude. Reiniciados os primeiros passos, e, talvez lá mais para diante, mais tarde, uma glória que apenas deverão a si próprios.

Marie ensaiou com os adereços que simbolizam o seu personagem. No decorrer do bailado, ela encarna a mulher sob os seus diversos aspectos. Alternadamente, ela é a apaixonada, a mãe, a professora, o médico-chefe dos conselhos de revisão, a sedutora e, finalmente, a morte. Mostra as diversas caras da vida desde a primeira convulsão do nascimento até à imobilidade definitiva.

Terminado o ensaio, o pequeno grupo espalha-se em debandada. Uns vão voltar ao estudo, outros assistir a aulas antes da hora do almoço. No Centro, ninguém preguiça.

Marie e Florentine juntam-se à inseparável Sarah, a jovem americana que assiste à aula de dança espanhola.

Ali, os alunos substituíram os sapatos tradicionais por sapatos de salto. As raparigas prenderam saias rodadas em cima dos colants. Mas as recém-chegadas, que se esgueiraram na aula ressoando a golpes de tacão e castanholas, não parecem querer assistir à lição. Imóveis junto da porta, olham cortesmente a professora, que, diante do espelho, se bamboleia, rodopia, concentra os olhares em si própria, mais feliz por dançar para si, em suma, do que para os alunos.

Contudo, dá pelas duas raparigas e interpela-as, sem deixar de martelar o solo, donde parece fazer sair o ritmo que a anima.

"Vocês não trabalham?

- Não, Madame, hoje não.

-Temos outra lição. "

A professora, que, como é evidente, se chama Carmen, ergue os olhos para o céu desencadeando uma revoada de castanholas.

"Outra lição! E de quê? Para a senora Carmen só existe a dança espanhola... "

Ela afirma, com uma convicção que faz sorrir os professores das outras disciplinas, que a dança espanhola é a geradora de todas as formas de dança, inclusive da dança clássica.

Ao falarem numa "outra lição", as rebeldes riram discretamente. Enquanto Carmen se excita diante do seu reflexo no espelho, a seguir ao que dez ou doze jovens se agitam com frenesim, Marie e Florentine dirigem a Sarah mímicas cômicas.

Sarah compreendeu. Entre duas rajadas de castanholas e de requebros de rins que se querem voluptuosos, ela aponta-lhes com o queixo o seu saco. As raparigas abrem-no, tiram lá de dentro uma chave e esquivam-se, depois duma breve reverência à professora, que gira fazendo rodopiar as saias.

Sobre os collants, Marie e Florentine enfiaram os vestidos e substituíram os sapatos de ballet por uns normais.

Assim que saem da escola, introduzem-se no parque de estacionamento, entre os loureiros e as mimosas. Depressa dão com o carro que procuram, um Méhan cor de laranja. Instalam-se lá dentro.

Marie sentou-se ao volante. Agora acabaram-se as brincadeiras.

Florentine exclama:

"Um momento! Primeiro, a teoria. "

Empunha um manual do código da estrada e começa:

"Aluna Marie Soler, antes de cada arranque, que é que deve verificar?

- Que o meu retrovisor está bem regulado. Tenho de poder olhar para trás sem me mexer do lugar.

- Muito bem. "

Marie quer estabelecer o contacto. Florentine, lendo o código, detém-na mais uma vez.

"Antes de pôr o motor a trabalhar, que se deve fazer? Deve..."

Marie presta-se ao jogo da lição. Conhecer o código é quase mais difícil do que saber conduzir.

Recomeça docemente:

"Tenho de me assegurar de que a alavanca das velocidades está em ponto morto. Faço o contacto e ligo o motor.

Ao mesmo tempo que vai respondendo, executa as manobras e continua:

"Levanto o travão de mão, desembraio, ponho as mudanças na primeira velocidade, verifico se a via está livre, ponho o pisca-pisca a funcionar, embraio... "

Mas, apesar dos bons começos de Marie, o Méhari avança aos soluços. A condutora acelera o motor, perturba-se e trava. Naquele instante, Géraldine, que se dirige para o seu carro, pára para observar Marie a fazer a manobra.

Divertida com a sua falta de jeito, lança-lhe: "Então, Marie, como vai essa condução? Para quando a carta?

- Para hoje, não - responde Marie, tentando voltar a pôr o motor em marcha.

- Mas olhe que ela tem muito jeito, sabe?", exclama Florentine, sorridente.

Em maré de cumprimentos, Géraldine dirige-se mais uma vez a Marie.

"Foi -muito bom o ensaio! Você está a fazer progressos. Serge deu-lhe um bom papel.

-Formidável!

- Uma oportunidade! Desta vez, veja se não falha. "

Depois desta gracinha, Géraldine afastou-se. Marie baixou a cabeça. Florentine, amistosamente, passa-lhe o braço à volta do pescoço:

"Grande cabra! Ela não tinha necessidade de te reavivar uma recordação tão má. "

Marie encolhe os ombros. - Há meses que procura familiarizar-se com aquela má recordação. A sua primeira decepção. Mas o desgosto "galvaniza-a". Marie não é pessoa de compleição delicada. Tem caracter e sai da provação mais forte, mais lúcida também, armada e julgando-se invencível. Contudo, esperou pela partida da jornalista antes de recomeçar as manobras.

Floflo voltou a abrir o código.

"Aluna Soler, em que casos é que tem de renunciar a conduzir?

- Se estiver sob o efeito de bebidas alcoólicas... Se me sentir cansada, ou nervosa. "

A jornalista, excelente volante, passa como uma flecha diante do Méhari soluçante que avança prudentemente pelo parque de estacionamento.

"Na cidade, a prioridade pertence ao veículo vindo de?...

- Da direita", responde Marie.

Mas surgiu uma moto à sua esquerda que parece avançar sobre o carro.

Instintivamente, Marie parou. Furiosa, reconhece Serge. Ele diverte-se a meter-lhe medo.

"Arre, que é bruto! "

Ele dá meia volta e vem parar junto dela para a felicitar.

"Fizeste muito bem em parar, miúda. Nunca teimes mesmo quando estás dentro da razão; os imbecis existirão sempre".

Depois, empurrando Florentine:

"Sai daí, que me quero sentar. Eu me encarrego de a ensinar a conduzir. "

Florentine prefere sair do carro. Sim, ela está a mais! Sim, ela incomoda-os! É preferível deixá-los e ir à lição de castanholas.

Ficando só com Marie, Serge pergunta-lhe:

"Que é que a mama Dupuis queria?

- Oh, a mama Dupuis, se ela te ouvisse! Não nos podemos fiar nos jornalistas, e sobretudo nela, que tem os braços muito compridos.

- E os dentes ainda mais.

- Esteve a fazer-me grandes elogios. Ela gosta do teu bailado.

-A sério?

-Sim.

- É sempre bom um elogio, e, vindo da "mama Dupuis", que exerce crítica num hebdomadário a atirar para o sério, isso encoraja. Por agora, a vida é l"ela. Vamos dar uma volta. "

Agora é a vez de Serge brandir o código. Ordena a Marie que siga até à Croisette.

Que não tenha medo e se porte à altura.

Marie embraia, mas tinha metido a marcha atrás. O Méhari recua dum salto e, num grande alarido, demoliu a placa na qual se podia ler: "É proibido estacionar. "

Imediatamente, a uma das janelas do Centro aparecem cabeças, sendo a de Sarah a primeira.

"Não há novidade - grita Serge - foi a placa.

-E o meu carro?

- Intacto. -O. K. "

As cabeças desaparecem.

"Se é Serge que dá lições a Marie, ela está bem longe de ter a carta de condução! ", diz uma aluna, azeda.

Florentine, que toma sempre a defesa da amiga, mesmo quando a não atacam, replica:

"Que é que tens a ver com isso? Seja como for, ela ainda não tem idade. "

Aos soluços, o Méhari cor de laranja circula pelas ruas circunvizinhas do Centro.

Estava fora de questão Marie descer até ao mar e conduzir na Croisette, com tanto movimento como uma grande avenida. Era melhor limitar-se às ruas quase desertas que circundam a Escola, construída num bairro residencial. É preferível manobrar, treinar-se nas mudanças de velocidade, nos "Stop", nas pequenas marchas atrás, dentro do circuito da Escola ou inclusive no belo parque que a enquadra de verdura e flores. Assim, os riscos são menores, e os jovens são ajuizados.

Apesar das poucas lições aprendidas com Sarah, Marie, tranqüila, acaba por se sair honrosamente da prova.

Em Nice, um estúdio de televisão.

Na penumbra duma sala de montagem, um jovem trabalha na companhia de Géraldine. Numa pequena tela luminosa, projecta testes, fragmentos de filmes que seleccionou para escolher a que virá a ser a heroína da obra que vai realizar.

Este jovem é Michel de Villecroze.

Depois do falhanço do seu fabuloso noivado

- fabuloso pela fortuna que a noiva devia trazer-, decidiu cortar as amarras com aquilo a que a sua mãe chama "o seu mundo". Atirou para trás das costas as obrigações que julgava dever à sua linhagem e renunciou às aparências para a elas preferir a verdade duma vida conforme com os seus gostos. Decidiu fazer um nome em vez de apenas ficar como o herdeiro duma nobreza que remonta ao tempo das Cruzadas.

O tempo dos valentes e dos cavaleiros já acabou-com o decorrer dos séculos, o sentido da honra alterou-se, desfigurado com honras que não passam de vaidades. Deste modo, o jovem suprimiu título e partícula. Na profissão é tratado por Michel Villecroze. É com este nome que aspira à celebridade entregando-se às pesquisas, às formas de expressão que o apaixonam: o cinema, a televisão.

A câmara, um utensílio mágico para Michel. com ela, procura dar vida à sua visão do mundo-traduzi-la através da imagem e do movimento. As suas idéias entusiasmaram Géraldine. E não só as suas idéias. Michel também é atraente, mesmo quando se mostra levemente cínico, muito descontraído na aparência para dissimular os seus mais profundos sonhos e os seus mais secretos desejos.

Alinhando no jogo com receio de afastar o jovem, Géraldine aceitou formar com ele aquilo a que se chama "um casal à moda". Liberdade garantida, ciúme posto de lado, cada um tem o direito de agir como quiser. Não se discute, não se pede nada, admite-se. Enfim, uma cumplicidade baptizada como amor de hoje e que, claro, é o contrário do amor de sempre.

Mas, profissionalmente, Géraldine e Michel formam uma boa equipa. Estão na moda e, mesmo antes de Michel ter dado provas, as pessoas do mesmo ofício confiam nele, sem dúvida graças ao crédito de que Géraldine goza.

Michel continua a olhar atentamente as imagens que desfilam na tela. Dia após dia, depois duma primeira escolha, elimina postulantes para apenas filmar as que lhe parecem mais aptas a representar a heroína. Contudo, até ao presente, nenhuma o conseguiu convencer, entusiasmá-lo.

Não basta imaginar um personagem, também é preciso materializá-lo.

Cada teste é precedido dum clap ou claquette negro como uma ardósia escolar, onde o maquinista escreveu a giz números e o nome da concorrente. Atentos, os realizadores examinam, pormenorizam cada rosto, cada silhueta. A escolha determinará o êxito do empreendimento, porque a intérprete pode representar o elemento capital desse êxito. Há as que "passam" e as que "não passam". É necessário rebentar a tela para se impor ao coração das multidões.

A adopção do público é uma espécie de fenômeno amoroso -não se analisa, manifesta-se. Freqüentemente, o estado de graça consegue suplantar o talento.

Sem tirar os olhos da tela, os jovens comentam as imagens. Uma rapariga muito bonita executa um exercício em virtuose, e as filmagens terminam com um grande plano do seu rosto.

"Nada mal-deixa escapar Michel.

-É inútil conservá-la, essa nunca será uma estrela de cinema. Foi formada por Besobrasova e Béjart já a contratou. Mais vale dizer que entrou para um convento... "

Maríka Resobraxova. directora dos Bailets de Montt Michel não parece muito contrariado.

"Tanto melhor para ela, porque, para mim, isto não é exactamente a Ko-i-Nor. "

A claquette assinala outra concorrente.

". Vida Dançada -Florentine Bardini- Imagem 1. "

Florentine é encantadora. Michel olha-a por instantes com simpatia. Aquela poderá ser utilizada, mas não como vedeta.

Decreta:

"Engraçada... e demasiado nova. "

Depois do que põe a fita a correr rapidamente.

Novamente a claquette pontua o nome da concorrente:

"Marie Soler. "

É um documento proposto por Géraldine, assim como o de Florentine.

Na tela aparece um encantador grande plano de Marie.

"Reconhece-la?", pergunta Géraldine, com um ligeiro tom de ironia na voz.

Como não iria ele reconhecer aquela com quem por uma noite inteira julgou viver uma vida? Géraldine tinha-lhe reservado aquela surpresa, aquele regresso ao passado, sem pensar que jamais se devem despertar recordações, mesmo que pareçam absurdas.

Michel acciona a moviola, reduz a velocidade ou acelera. Na tela, Marie aproxima-se ou afasta-se. Ei-la que se move, ei-la que dança, envergando um traje de conto de fadas que evoca os faustos da corte de Luís XV, o Bem-Amado.

Poderia Michel não reconhecer a bonita feiticeira? Aquela que, por uma noite, substituíra a noiva escolhida por famílias decididas a unirem-se? Um levando um título, um nome sem mancha, e o outro a fortuna. O bastante com que mandar dourar de novo o brasão dos Villecroze, o bastante com que branquear uma reputação duvidosa... Mas a noiva preferira ficar no outro extremo do mundo... Servindo-se dum subterfúgio para salvarem as aparências, os pais tinham contratado Marie para a substituir.

Durante algumas horas, Michel, que ignorava tudo, acreditara realmente num milagre: uma maquinação familiar, um negócio, uma venda, podiam então transformar-se num encontro idílico? A sua decepção não podia ser maior quando soube a verdade.

"Que é que me dizes?", retomou Géraldine, chamando-o brutalmente à realidade. "Na minha opinião, é com ela que devíamos tentar a sorte. "

Michel não quer aquiescer demasiado depressa. Contudo, não sem amargura, reforça:

"Se para ti, como bailarina, ela é válida, para mim, como comediante, garanto-ta! "

Géraldine sorriu.

"É verdade que estiveste noivo dela durante uma noite inteira... "

Não continua. De repente, as recordações voltam-lhe à memória. Aquela festa fora sublime, isso era indiscutível; a mãe de Michel tem o grande talento de embelezar a vida -é pena que se tenha arruinado por isso! Para a ocasião, Anne de Villecroze tivera, a idéia de apresentar um bailado da corte, noivados dançados como no Grande Século. Géraldine filmava as recreações...

Diverte-se a reconstruir a cena:

"Imagina o meu espanto", conta ela. "Anunciam Micky Smith, a riquíssima herdeira. Quem é que vejo aparecer na câmara? Uma rapariguinha que conheço há muito, vestida como uma filha de rei! Eu não acreditava no que via... E tu movendo-te junto dela no teu belo fato de marquês! Entendi ser meu dever pôr-vos ao corrente, revelar a identidade da noiva ao teu pai. Julguei que se tratava dum embuste, duma farsa sinistra. "

Não seria antes por ela própria que Géraldine se apressara a revelar a verdade aos Villecroze? Ela vira sem qualquer prazer o casal que Michel e Marie formavam. Nunca os olhos de Michel tinham tido aquela expressão ao pousarem-se em Géraldine. Eis que, por uma noite, eles brilhavam, exprimiam uma emoção completamente nova ao descobrir uma desconhecida.

Efectivamente, ao ver-se na tela ao lado de Marie, Michel experimenta de novo a emoção então sentida. Afasta aquela perturbação que julga digna dum garoto. Mas o romantismo deixou grandes marcas no seu coração, e ele ironiza ao comentar os documentos que Géraldine trouxe da festa extraordinária, orientada conforme os faustos duma cerimônia e suficientemente boa para atirar poeira aos olhos.

Géraldine prossegue:

"Aquela miúda conseguiu convencer toda a gente de que era filha de milionário. A famosa Micky Smith. Não é possível imaginar um truque mais bem concebido...

-Digamos antes que ela salvou as aparências, porque os pais de Micky lho tinham pedido. Prestou-lhes um serviço poupando-os ao escândalo. E toda a gente engoliu! -aprovou o rapaz.

- Mesmo tu?"

Como Michel não respondesse, Géraldine prossegue, inclinando-se para a tela denunciadora:

"Olha para ti ao lado dela! Julgar-se-ia Romeu e Julieta trocando os seus primeiros olhares no baile dos Capuletos... "

Mas o telefone toca. Géraldine vai atender. Sarah pede novidades. Ficara combinado que alguns alunos escolhidos no Centro fariam testes. Quanto a si, estava excluído o papel principal. Michel dissera-lho e ela não está aborrecida por isso. De qualquer modo, diverte-a ocupar-se dos outros, ser útil, estar sempre "dentro da jogada". Gosta muito de Michel, seu primo por aliança: uma Villecroze casou com um dos seus tios americanos.

Sarah preveniu as raparigas seleccionadas por Géraldine. Elas estão de acordo em filmar os testes, naquela tarde, em Mônaco, entre o ensaio e o espectáculo de Serge. Géraldine insistiu: a O. R. T. F. pôs uma equipa técnica à disposição de Michel, há que tirar proveito disso.

"Poderão dispor de Isabelle, Françoise e Jocelyne.

- E Marie? Quanto a essa, não a esqueça, por favor! "

Sarah hesitara. Marie dissera "não". Esta noite, ela dança. Os testes, está-se nas tintas para eles. E, sobretudo, recusa-se obstinadamente a voltar a ver Michel.

Géraldine insiste:

"Fá-la decidir-se, porque é a melhor. Ela que não vá complicar as coisas por causa dum noivado de comédia!... Uma brincadeira de mau gosto, concordo, mas, fosse como fosse, pagaram-lhe principescamente... O essencial, não? Diz-lhe que esperamos por ela esta tarde.

- Vou pedir-lhe outra vez, e depois volto a telefonar", promete Sarah.

No Centro, Sarah volta à aula.

A lição de dança clássica está a terminar, e é Madame quem a dá. É melhor dizer que todos se esforçam por dar o máximo das suas possibilidades. Madame sabe arrastar os alunos para além dos seus próprios limites. Mas a ausência momentânea de Sarah provoca no regresso uma observação.

"Sabes muito bem que não gosto que saiam da aula seja sob que pretexto for...

- Madame, peço desculpa, mas eu prometera a M'lle Dupuis telefonar-lhe antes do meio-dia. É muito importante, é por causa dos testes. "

Como se trata duma perspectiva de trabalho para "as suas filhas", Madame, sempre preocupada em garantir contratos às suas alunas, aceita a explicação.

Sarah retomou o seu lugar. Os alunos aglomeram-se numa das extremidades do grande estúdio, banhado pela luz que vem das vidraças. Um a um, os alunos executam em diagonal uma série de piques e de déboulés num movimento vivo e contínuo. Marie precede Sarah. Ela vai principiar o exercício.

Sarah segreda-lhe em voz baixa, enquanto outra aluna rodopia pelo ar.

"Géraldine insiste em que faças os testes com Michel. Tenho a impressão de que tens ali uma belíssima oportunidade... "

Mas Marie parece não a ouvir. O seu rosto permanece tenso, atento, como se apenas pensasse no esforço que ia despender. Executa a sua diagonal, e Madame reprime um sorriso de aprovação. Os elogios são raríssimos na dança.

Madame bate as palmas:

"A reverência... "

A pianista preludia alguns acordes. Toda a aula se coloca em semicírculo para a saudação tradicional.

"Muito obrigada, meninas, muito obrigada, rapazes. "

As raparigas e os rapazes aplaudiram, uma maneira de agradecer ao professor; a seguir é a debandada, a desordem, depois da austera disciplina. Imediatamente, Sarah vai no encalço de Marie, ao longo do corredor, ladeada pela sua inseparável Florentine. Uma vez mais, tenta convencer Marie:

"Ouve, Marie, Géraldine e Michel já fizeram muitos testes, procuraram raparigas por todo o lado, mas Michel não está satisfeito. Agora é muito urgente. Michel tem de começar a filmar imediatamente... "

Florentine mete o seu grãozinho de sal. Também ela não se esqueceu da estranha festa de noivado, Marie aparecendo como noiva diante das suas companheiras espantadas.

"Michel, Michel de Villecroze... "

Ri.

"O divino marquês...

- Cala-te, garota, não sabes o que estás a dizer. Em primeiro lugar, Michel de Villecroze já não existe, agora existe apenas Michel Villecroze, cineasta de grande futuro, à procura da sua heroína.

- Então, ele já não se casa?"

As raparigas continuam a gozar. "Ele prefere fazer cinema..." Irônica, Marie lança uma graça: "Renunciou a vender o nome?

- Prefere fazer outro. "

Foi uma réplica viva, a de Sarah, procurando defender o primo. Sim, ele renunciou àquele casamento quimérico e fora de moda.

"De qualquer modo, ele que não conte comigo -disse Marie num tom de desafio.

-Mas Géraldine insiste.

- Oh, essa...

- Tenho a certeza de que Michel gostaria de te voltar a ver.

- Mas eu não, já o vi o bastante.

- Estás zangada com ele?-pergunta Florentine. -Mas ele, no fim de contas, não te fez nada... "

É verdade, ele não lhe fez nada. É verdade também que a sua imaginação esteve louca naquela noite, que se deixou arrastar naquele jogo romântico e idiota... Porque sentirá ainda por ele aquele rancor misturado com receio? Ambos foram vítimas duma manigância, duma ilusão devida ao acaso.

Não estará ela a dar demasiada importância a um incidente que, em suma, não tem nenhuma?

"Então, Marie? Tenho de voltar a telefonar-lhes... Aceitas?

- Já te disse que não.

- Está bem, está bem! "

Entretanto, na sala de montagem, Michel e Géraldine continuam as suas projecções.

Na tela desfilam as imagens filmadas na véspera, no Centro, por Géraldine, durante o ensaio do bailado de Serge. Michel, cada vez mais convencido, chega em voz alta à conclusão de que é Marie que lhe convém; é ela o seu personagem, a sua intérprete ideal.

O telefone toca e Michel atende de pronto, já impaciente. Ouve por instantes Sarah, que lhe transmite a resposta de Marie. E, de repente, explode:

"O quê? Ela não quer? E porquê?

-Não sei.

- Pois eu tenho cá uma impressão.

-Por causa da vossa história?", diz Géraldine, erguendo uns olhos inocentes.

Michel enerva-se:

"Não há história nenhuma. Que é que estás para aí a dizer?"

Novamente ele se dirige a Sarah: "Disseste-lhe que acredito muito nela?" Ele domina-se ao captar o olhar irônico da sua companheira de equipa:

"Nós acreditamos muito nela.

- Ouve, Michel, creio que é inútil insistir.

- É infantil! Eu mesmo vou falar com ela. Ela compreenderá. "

Filósofa e divertida, Géraldine observa o rapaz:

"Ela compreenderá. Ela compreenderá o quê? Se ela não quer, não temos outro remédio senão conformar-nos. "

Michel protesta:

"Mas, virtualmente, nós acabámos de a escolher... Tenho a certeza de que fará uns bons testes, que apenas confirmarão a nossa escolha. Estamos a jogar uma partida demasiado importante e não vou ficar por aqui devido a criancices. "

Enquanto falava, Michel enfiou o blusão. Sonhadora, Géraldine vê-o partir. Na tela fica parada uma imagem de Marie-uma imagem radiosa.

Bruscamente, Géraldine corta a corrente. A imagem apaga-se.

Aproveitando-se dum breve intervalo de descanso antes do almoço, Marie lava as suas roupas de dança nos lavabos previstos para tal fim. Segundo o letreiro suspenso na parede, era proibido lavar ali qualquer outra coisa que não fosse "a roupa interior".

Enquanto ensaboa, pensa intensamente no que será aquele dia -um dia loucamente preenchido, um dia capital. De manhã, as aulas, a lição de Madame. À tarde, o ensaio geral na Ópera de Monte Carlo. Não esquecer nada, sapatos, maquilhagem, etc. Os bailarinos andam sempre carregados que nem burros.

E depois, à noite, o concurso...

Efectivamente, um atarefado dia em perspectiva, e por isso mesmo Marie devia abster-se de pensamentos que nada tinham de comum com o programa sobrecarregado. A proposta de Michel reavivava recordações das quais gostaria de se rir e acima de tudo se desembaraçar. Mas como esquecer o encanto duma imaginação ingênua que galopa? Como esquecer o aparecimento dum belo homem, num ambiente feito para sonhar? Cinderela transformada em rainha...

Vamos, Marie, vamos, rapariga, isso passa, isso passa, põe isso para trás das costas e pensa apenas no teu concurso! Em Serge, que tens de secundar com todas as tuas forças, na Escola, que é preciso pôr em relevo.

Energicamente, Marie esfrega cuecas e collants, porta-seios e camisola interior.

Sarah fora ter com ela e tentava de novo convencê-la: que faça os testes! Só lhe tomaria uma hora. Michel tinha-o prometido. No dia seguinte, ele teria dificuldade em obter uma equipa de filmagens. A televisão mostrava-se avara com o seu pessoal.

"Fazes mal em recusar a proposta de Michel. Seria um belo negócio.

-Um negócio? Já fiz um com ele.

- E lamentas-te? Mas ganhaste um belo cachet.

- Um cachet principesco, é verdade. Só que... "

Marie calou-se. "Só que o quê?

- Oh, nada... "

E Marie obstina-se nas lavagens, enxaguando, torcendo, esticando cuidadosamente as roupas ligeiras. Enquanto Sarah continua a insistir, Marie vai e vem entre o lavabo e os secadores, onde estende os collants, as polainas, com uma atenção exagerada.

"Ouve, Marie, e não faças essa cara. Michel é que devia estar zangado contigo... Fizeste-lhe cá um destes teatros!

-Foi para isso que me pagaram, não foi?

- De acordo, mas mais um pouco e ele ficava apaixonado por ti.

- Ainda foi feliz por a grande camarada Géraldine ter denunciado o golpe, porque se não fosse isso Marie.

ele teria casado comigo! - gracejou.

- Reflecte, Marie. Se aceitares a sua proposta, será uma enorme publicidade para ti! E ganharás dinheiro.

- Quanto ao dinheiro, estou-me nas tintas. Além do mais o cinema, a televisão, tudo isso é muito bonito, mas eu do que gosto é da dança. Deverias compreender-me, não achas?

- Compreendo-te muito bem. Mas, precisamente, Michel fornece-te um meio de dançar. O seu argumento é uma espécie de comédia musical em episódios, mas, em vez de ser cantada, é dançada. Garanto-te que pode vir a ser muito bonito! Fazes mal em desprezar o lado material. "

Marie sorri.

É inesgotável a boa vontade de Sarah, uma rapariga fixe que encontrou a sua razão de viver no Centro... Ela poderia ter-se tornado, como a sua prima Micky, uma noiva em fuga, uma criança mimada, isto é, estragada. Escolheu outra via. Embora não seja excepcionalmente dotada como bailarina, ninguém duvida que poderá vir a ser uma animadora de primeira ordem. Os seus meios, as suas relações, abrir-lhe-iam todas as portas.

Sarah deixou Nova Iorque e os pais para vir trabalhar na sombra de Madame, no rasto duma estrela absoluta que ela vira resplandecer na Ópera. No Centro, a jovem americana venceu os preconceitos que a fortuna faz nascer nos que a não têm. Os seus melhores amigos: Serge, o filho dum mecânico de automóveis, Florentine, a filha dum pescador, e Marie. Principalmente Marie, que parece sempre guardar um segredo.

Sarah sente-se um pouco responsável pela famosa festa do noivado, porque foi ela quem sugerira à marquesa de Villecroze contratar os alunos da Escola para executarem o ballet.

"Não insistas -aconselha-lhe Marie, que terminou a sua lavagem e a arrasta para a cantina, agarrando-a pela cintura -, não te maces mais... Já te disse: hoje, para mim, o lado material é o bailado de Serge, e não quero pensar em mais nada.

- Hoje, concordo, e amanhã?

- Sarah, estás a aborrecer-me... "

Serge já está instalado na cantina, onde reinam a fantasia e um certo alarido. De mesa para mesa, os alunos falam uns com os outros, trocam impressões ou dichotes. Podem ver televisão, seguir uma banda desenhada, ou decifrar Teilhard de Chardin.

Uma hora de descontracção, uma hora de liberdade.

Serge está preocupado. Sente-se que está nervoso, inquieto. Não tem fome, conforme se apercebe Florentine, a quem nada conseguiria tirar o apetite e que enche a barriga enquanto o observa. Quando dá pelas amigas, agita-se, faz sinais. "Estamos aqui! Venham almoçar connosco! "

Sarah e Marie vão buscar os tabuleiros ao balcão da cozinha. No refeitório, o Sr. Legendre é quem manda. É o pai dos alimentos. Ele prefere trabalhar naquela estranha Escola, onde os alunos passam a maior parte do tempo envergando roupas de acrobatas.

Gosta muito dos "seus acrobatas". A dança é um outro mundo. Ali trabalha-se no duro, mas ninguém se aborrece.

"Há frango. Pus-te uma asa, está bem? -diz ele a Marie.

- O Sr. Legendre para mim é um pai.

- Ah! se eu pudesse ser um papá mimalho...

- com um papá mimalho ficávamos todas obesas... Não temos esse direito. "

Marie é sempre gentil. O Sr. Legendre viu-a chegar ao Centro, há oito anos: uma criança, muito engraçadinha, é verdade, mas com mais qualquer coisa. Um não sei quê de irresistível. Ah! esta tem de certeza futuro.

E continua a tratá-la por tu, como quando era pequena, em sinal de afecto.

"Para a tua sobremesa, uma laranja ou um pêssego?

- Um pêssego, se faz favor.

- E para si, miss?"

O miss também significa por parte do "pai" Legendre uma expressão de amizade, porque, como todos no Centro, aprecia a simpatia americana.

Aponta para Serge e Florentine:

"Os vossos cowboys estão ali em baixo..." Sarah e Marie vão sentar-se junto dos seus

camaradas. Florentine aponta para Serge com

um gesto apiedado:

"Ele não fala, não come... Oh! o mestre não está bem.

- Estás com medo?-pergunta Marie.

- Sim... Tenho a impressão de que não ensaiámos o suficiente com os adereços de cena.

- Ainda temos a tarde toda para os últimos acertos. Não te preocupes.

-Marie acaba de recusar um belo negócio", disse Sarah, começando a comer a sua toranja.

Interrogativo, Serge olha para Marie:

"O projecto da mama Dupuis?"

Marie acrescenta, rindo:

"E do papá Villecroze. "

Sem saber bem porquê, Floflo reforça, feliz por rir:

"Oh... oh... oh... o papá Villecroze...

- Ele queria que eu fizesse uns testes-responde Marie- entre o ensaio e o espectáculo. Um nada. Como se eu tivesse cabeça para isso! "

Serge resmunga:

"Ele já se toma pelo Fellini. "

Mas Sarah protesta:

"Estão a ser injustos. Seja como for, ele é como vocês, é como eu: quer fazer qualquer coisa.

- Que se case -replica Marie, disfarçando um rancor justificado sob um sorriso. - Ele ainda acabará por recuperar Micky Smith. Ela ou outra qualquer... "

Sarah prefere não insistir, mas está decidida a fazer tudo para desfazer aquela confusão entre eles.

Toma Serge como testemunha:

"Tu não poderás dizer que a tua intérprete principal não te é devotada."

Serge virou-se para Marie:

"É verdade, Marie?"

Ela estende-lhe a mão por cima da mesa:

"É verdade. "

Marie tem bonitas mãos, finas, os dedos afilados, as veias azuis transparentes através da pele delicada e cor de âmbar... Serge segura-lha por instantes, depois larga-a muito depressa, docemente.

Como se aquela mão, que parece uma flor, o fosse queimar.

"Meu caro Serge, o que conta, acima de tudo, é a dança...

- Comigo?

- Contigo. "

Faz-se um breve silêncio - emoção, embaraço. Os jovens comem sem fazer barulho. Florentine começa a cacarejar de riso e dá uma cotovelada a Sarah, que observa religiosamente as suas calorias: nada de pão, nem manteiga, 140 disto, 80 daquilo; não é uma festa, o comer.

"Sarah, não achas que estamos a mais?... Se estamos a incomodar, podemos ir comer para outro lado. "

Serge ergue-se como um diabo a sair duma caixa. Não é à mão "duma velha companheira de brinquedos" que o vai afastar dos seus problemas. Ele tem uma missão, a primeira da sua carreira, que começa naquela noite. Não pode estar a tremelicar com emoções de colegial. Os assuntos do coração conciliam-se mal com a dança -Marie foi disso o exemplo e a vítima. Ele é um homem, acabado de sair da adolescência, bom para fazer sonhar todas as raparigas, excepto Marie. Marie, que se obstina em lhe chamar "meu caro Serge".

Serge tem a certeza de possuir uma árdua experiência e o absoluto domínio de si.

"Meninas, desculpem... vou partir à frente. Quero voltar a ver o palco, os maquinistas. "

Oh! sim, tem vontade de fugir... O teatro continua a ser o único local onde agora poderá respirar. O local mágico onde a sua criação -riscos e perigos- tomará o seu valor definitivo diante do parceiro da última hora. Aquele sem o qual o teatro não existiria, pois que ficaria sem eco: o público.

Vale mais deixar as raparigas, aquela refeição que lhe parece indigesta, deixar toda a gente, para ficar perante si próprio. Serge tem medo da doença infernal, nascida surdamente ao longo dos últimos dias e que rebenta em crise.

Uma crise que só a acção poderá acalmar.

Florentine espanta-se que um rapaz que é sempre "fanfarrão" possa tremer de medo como o mais miserável dos alunos. Marie tenta fazer-lhe compreender que os "fanfarrões" são, geralmente, complicados, complexados. Resumindo, uns tímidos, isto é, orgulhosos.

Meio convencida de que se possa associar o orgulho com a timidez, Florentine dá-se conta de que, em suma, Serge seria um tipo no gênero de Turenne, o famoso guerreiro, que dizia, para si mesmo, antes de ir para combate: "Tu tremes, carcaça... mas ainda tremerias mais se soubesses para onde te vou levar daqui a pouco! "

Embora Serge não seja Turenne, entretanto apronta-se para se arremessar para o meio do conflito.

No pátio do Centro está estacionado um autocarro. Já uns tantos alunos de boa vontade dão uma ajuda ao motorista e à costureira para carregar os cestos, os adereços de cena. Desordem insólita e colorida. No meio daquilo tudo reconhece-se um parque de bebê e uma gaiola de pássaro, carteiras de escola, um quadro preto, uma toesa, um canapé.

Enquanto Serge põe a sua moto a trabalhar, um carro, um Peugeot branco descapotável, penetrou no parque de estacionamento, à procura dum lugar. Despeitado com a recusa de Marie, Michel veio pessoalmente, para a convencer.

Serge descreve, conforme é seu hábito, algumas circunvoluções. Gira à volta do autocarro: que não se esqueçam de nada, e acima de tudo que não cheguem atrasados.

A costureira, Gerda -outra figura essencial da Escola-, compreendeu perfeitamente a impaciência do jovem. Ela conhece bem os bailarinos. Desde há muito que escolheu viver no meio dos artistas. No Centro, Gerda realiza maravilhas... Os üitus nascem dos seus dedos e ela é capaz de interpretar todas as fantasias dos encenadores, como se os debuxos não tivessem segredo para si. Quanto aos trajes do repertório, ela sabe vestir Gisela ou ícaro, o Príncipe Igor ou Copei.

Vira-se para Serge.

"Partes à frente?

- Sim, prefiro estar sozinho. Além disso, tenho lá que fazer.

- Não te preocupes, tudo correrá pelo melhor esta noite.

-Assim o espero -disse Serge, enquanto fazia uma figa com os dedos. - Mas vai haver concorrência.

-É o que é preciso. Vamos, desaparece, mas sê prudente. Não vás tu partir a cara com essa engenhoca. Põe o capacete. "

Serge sorriu com amizade. O seu gesto significa: "Pronto, eu obedeço", e coloca o capacete negro sobre os cabelos louros. A caminho! Arranca com um grande ruído de motor, quase roçando o Peugeot que está a arrumar.

Durante alguns segundos, Gerda ficou a segui-lo com os olhos. Serge é, como Marie, um autêntico "filho" da Escola. Veio para ali aos dez anos. Viram-nos crescer, perder as azelhices da infância, progredir, franquear com graça as armadilhas da adolescência, tornar-se jovens muito harmoniosos e, sobretudo, repletos de ardor e de promessas.

Michel arrumou o carro. Lançou um olhar de poucos amigos na direcção do doido que se afasta cavalgando uma moto escarlate e que por um pouco não chocava consigo. A seguir dirige-se para o vestíbulo, onde Suzanne Leroy vem ao seu encontro. Cumprimenta-a.

O braço direito de Madame desde há anos, Suzanne Leroy está ao corrente de tudo o que se relaciona com a Escola, à qual devotou a sua vida. É uma mulher nova e alta de rosto agradável. No entanto, a sua vida limita-se a partilhar a paixão comum pela dança. Mas os seus contactos permanentes com os alunos e o pessoal deram-lhe entretanto uma grande experiência. Suzanne compreende muitas coisas! Consideram-na uma amiga. Tratam-na por tu. E se sabe falar (é professora de História de Arte), também sabe calar.

Michel pede para falar com Marie. Não foi muito feliz na escolha do momento, está a ser anunciada a partida. Transmitida pelos altifalantes, a voz do contra-regra ressoa:

"Dentro de cinco minutos, partida para Monte Carlo. Repito: dentro de cinco minutos, partida para Monte Carlo, para o ensaio geral d'As Grades. Apressem-se, meninas, apressem-se, senhores. "

"Não convém atrasar Marie", diz Suzanne.

Michel apressa-se a tranqüilizá-la, expondo-lhe o fim da sua visita.

"Compete ao senhor convencê-la", retoma logo Suzane. "As nossas alunas são livres de escolher o que quiserem, e Marie já é uma rapariga crescida: vai fazer dezoito anos. Já pode votar. "

Ambos desatam a rir:

"Espero bem", disse Michel, "que essa maioridade iminente me seja favorável! "

Os jovens que participam no concurso invadiram o vestíbulo do pátio. Transportam cestos e sacos, onde estão empilhadas as suas coisas. É o tumulto das partidas em grupo. Todos vestidos de qualquer maneira, formam uma tribo anárquica, cheia de cumplicidades e de hábitos.

No mais total arbítrio, começam por se instalar no interior do autocarro, não sem terem verificado o seu material e os seus adereços, tal como Suzanne recomenda.

Florentine, que corria pelas escadas abaixo, pára de repente. Viu Michel.

Eufórica, dá meia volta e trepa a quatro e quatro para prevenir Marie e Sarah, que vêm atrás dela.

"Ele está ali, o marquês, ele está ali! "

Instintivamente, Marie voltou a subir alguns degraus. As raparigas têm um conciliábulo -enquanto os alunos passam por elas em flecha.

A voz do altifalante renova os seus apelos.

"Meninas, senhores: Para As Grades, partida dentro de cinco minutos. "

"Marie, eu já te tinha prevenido que Michel insistiria", comenta Sarah.

Marie enerva-se:

"Não, não, não quero. Agora, não; hoje, não. Não é o dia indicado. Digam-lhe que já me fui embora. Encontro-me com vocês no autocarro. Dissimular-me-ei e encaminhar-me-ei pelas traseiras. "

No vestíbulo, Michel espera junto de Suzanne; esta previne Florentine e Sarah, que descem como se nada tivesse acontecido:

"Chamam por Marie. "

Sarah beijou o primo e Florentine apertou-lhe a mão. As raparigas tomam um ar de admiração:

"Marie? Mas ela já partiu!

- Partiu?! -exclama Suzanne, espantada por sua vez. -Como é que partiu?"

As raparigas calam-se, embaraçadas. No pátio, onde reina a agitação geral à volta do autocarro, claro que ninguém vê Marie. Têm de justificar a sua ausência.

Então, Florentine declara:

"Bem, partiu à frente com Serge -não é a primeira vez. Ainda não há cinco minutos, pois não, Sarah?"

Sarah aquiesce e Suzanne, efectivamente, não se admira. É um hábito; quantas não foram já as vezes que Serge transportou a sua amiga na moto?

Desapontado, Michel não se dá por vencido. Não encontrou Marie no Centro, encontrá-la-á em Monte Carlo, onde tem de voltar. A equipa técnica espera-o, e, se se pode fazer esperar actores, o mesmo não é permitido com uma equipa de operadores, de engenheiros de som, de electricistas e de maquinistas: isso custa caro, muito caro.

Ele escolheu um cenário exterior para filmar as candidatas: os jardins e as ladeiras do castelo forte que, numa paisagem incomparável, dominam o Mediterrâneo.

Suzanne Leroy afasta-se para vigiar o embarque geral. Sarah e Florentine, que tinham ficado ao pé de Michel, preparam-se para se juntar aos colegas.

Mas, visto que ele vai para Monte Carlo, Michel propõe a Sarah:

"Queres que te leve? Florentine, você também quer vir?"

Florentine descontrai-se: qualquer diversão a seduz. Gosta do autocarro, onde brinca com os camaradas, mas partir em torpedo, os cabelos ao vento, para chegar antes dos outros, também não é nada mau.

"Sim, com muito gosto, mas vou avisar lle Leroy. "

O autocarro começa a andar. Michel acompanhado pelas duas passageiras, de carro, segue atrás dele, pelo parque de estacionamento.

E Marie?

Marie refugiou-se no andar superior, num estúdio deserto. Precisamente o mesmo que Madame pusera à disposição de Serge, para que este pudesse elaborar o seu bailado. Para os bailarinos, os estúdios são locais de magia, de sofrimento e de sonhos. Faz doer dançar, os pés sangram, o coração bate, os músculos arriscam-se a rasgar. Este estúdio onde, durante semanas, os jovens trabalharam pacientemente, com ardor...

A Escola está estranhamente calma. O autocarro ronca-o barulho deste aumenta e Marie decide-se a sair do esconderijo para ver o que se passa.

Em baixo está o autocarro e, não longe, o torpedo branco para onde Michel faz entrar Florentine e Sarah.

Alerta!

Não é a altura de brincar às escondidas, e Marie sente o coração a apertar-se-lhe.

No grande patamar que abre para o andar, uma porta de serviço permite o acesso directo ao pátio, elevado, desnivelado, dando para o jardim. Inútil perder tempo pelas escadas e corredores para chegar à entrada principal da Escola.

Marie atravessa a correr a aula vazia. O soalho range sob os seus socos de couro e a sua imagem atravessa o imenso espelho que cobre por completo uma parede. O espelho que, juntamente com a barra, constitui o principal instrumento de trabalho do bailarino. Na barra, forçam-se. Diante do espelho, corrigem-se.

Ei-la no patamar. Maneja a muleta da porta. Fechada! Marie sacode-a, Marie esforça-se. Nada a fazer.

Fechada.

Trancada...

Então, como uma louca a rapariga corre, desce as escadas a quatro e quatro. O vestíbulo, o jardim. Continuando a correr, contorna a Escola. No fim da álea, o autocarro, que rodava devagar, faz uma breve paragem antes de virar para se meter pela estrada. O carro branco segue-o, para logo a seguir o ultrapassar. Agitam-se mãos dum lado e doutro.

Sarah e Florentine trocam um olhar. Marie esconde-se com certeza no meio dos outros, e Michel não percebe nada.

Florentine pensa que Marie exagera. Michel é muito simpático. Ela faz mal em criar tantos problemas, e, em vez de se empilhar no autocarro com os colegas e todo aquele amálgama, estaria melhor com elas, naquele carro de desporto que roda a grande velocidade para Monte Carlo.

Marie correu em vão. Gritou: "Esperem por mim, esperem por mim." Um apelo inútil. Os outros já estão demasiado longe para a ouvir. Ela sente-se desfalecer. Como se tivesse caído numa armadilha, fica pregada ao chão.

A jovem depressa se recompôs. Fosse porque meio fosse, tinha de alcançar o grupo, mas prevenir alguém dos responsáveis do Centro era desvendar a sua falta. Como explicar aquele capricho, aquela brincadeira? A fuga diante de Michel não merecia outro nome. Marie estava-se bem nas tintas para o rapaz! Então, voltar a vê-lo ou não, que é que isso importava?

Já tinha problemas de sobra, e sobretudo hoje.

Contudo, por causa dele, faltara à partida...

O estado-maior da Escola ia igualmente a caminho. A vida do Centro transferia-se para Monte Carlo, onde se efectuaria, tanto para os professores como para os alunos, o excitante

confronto.

Apanhar um táxi? Os seus magros recursos não lho permitiam. Além disso, à chegada teria de pedir auxílio e explicar-se. Nunca Marie confessaria que devia a sua pouca sorte ao rapaz com quem passara uma noite de ilusões e de engano.

Tendo falhado a primeira oportunidade da sua incipiente carreira, Marie jurara a si mesma não esquecer aquela terrível lição. Uma lição que, contudo, não lhe servira de nada, visto que caíra -e tão estupidamente - na situação duma reincidente.

Que fazer?

E, de súbito, uma grande mancha berrante: o Méhari. A salvação. Oh! obrigada, Sarah, que me quiseste ensinar a conduzir! Sentar-se ao volante - a chave ficara no painel de instrumentos- e correr, correr, alcançar os outros...

Excitada com o seu achado, fascinada pelo veículo, cuja cor sobressai sob a cobertura de folhagem, Marie instala-se. A meia voz, como se pronunciasse palavras de ordem, recita:

"Ponto morto... Contacto... Pôr a trabalhar... O pé na embraiagem: Primeira... o travão de mão... E calma, calma! "

Prudentemente, é a sua vez de sair do Centro, voltar à direita para alcançar a estrada à beira-mar. O sol queimava. Sob a luminosidade de Junho, a Cote d'Azur brilhava. Para dominar os seus loucos cabelos, Marie enfiou um chapéu de palha.

Entretanto, depois de ter ultrapassado o cortejo, Michel roda a grande velocidade. Ao mesmo tempo que conduz com desenvoltura, explica às raparigas o seu argumento. O tema é-lhe muito caro e Floflo não pára de lhe fazer perguntas:

"Que será o seu filme? Uma série de emissões para a televisão? Um folhetim?

- Se assim lhe quiser chamar.

- Gosto muito de folhetins, sobretudo quando há suspense.

-O meu será inteiramente dançado pela heroína. Em vez do palavreado, conto a sua vida através da dança.

- Como numa comédia musical, então?

- com a diferença de que a dança substituirá, as canções.

- Nada mal! ", aprova Florentine, tomando Sarah como testemunha.

Sarah não tem dúvidas... Um empreendimento que pode valorizar a dança, que lhe pode dar um papel essencial quando os realizadores apenas se servem dela como dum divertimento, o que haveria de mais excitante aos seus olhos? Não devotou ela à dança uma paixão sem remédio? Tudo o que a possa promover, que a possa introduzir -através da televisão, por exemplo nos meios populares, é digno de encorajamento.

Sim, Michel e a sua associada, Géraldine, têm razão em se agarrar àquele projecto, em tentar a experiência. Há quem repita com demasiada freqüência que a dança -à excepção de raros iniciados- não interessa a ninguém.

Florentine pergunta com malícia:

"E você escolheu Marie para interpretar a sua heroína?

- Ela ou outra, o que eu quero é a melhor.

- A sua heroína não poderia ser um rapaz? Existem bailarinos muito bons", insiste Florentine.

Michel ri.

"Claro, mas prefiro uma rapariga -e a direcção da televisão também. Uma rapariga, bonita, é mais espectacular. Além disso, quando há uma rapariga, há sempre um rapaz. A minha heroína terá um par.

-Porque não vários?"

Decididamente, nunca se tem a última palavra com Florentine. Ela é espirituosa, mas um pouco cansativa.

Contudo, o rapaz ainda responde: "Na televisão, é preciso que ela seja circunspecta... Uma heroína para todos os públicos, está bem de ver. Os acontecimentos da sua vida, os mais insignificantes, assim como os mais importantes, serão traduzidos pelo ritmo e pelo movimento. Será uma espécie de crônica. "

E, bruscamente, o rapaz cala-se para melhor se concentrar na condução. Ele roda pela média cornija, onde é difícil a circulação. Além disso, Sarah acaba de dizer a Florentine "que ela cansa". E, sobretudo, Michel tem vontade de estar calado, porque, ao evocar o seu projecto, acaba de dar definitivamente um rosto à sua heroína.

O de Marie.

Marie conduz devagar, procura manter-se o máximo pela direita. Não pensa em nada. Em nada, a não ser em conduzir bem aquele carro ao qual não tem direito.

Continua crispada, os olhos fixos na estrada, onde é ultrapassada por todos os veículos. A travessia de Nice foi uma prova difícil. Circulação intensificada, sinais vermelhos, sinais verdes, e os polícias, que ainda lhe parecem mais temíveis que os perigos da estrada.

Marie circula lentamente e, atrás dela, os outros impacientam-se.

Chegada ao cruzamento donde partem as cornijas, hesita, mas sabe que o autocarro do Centro utiliza sempre a do meio, onde é relativamente mais fácil circular que na beira-mar, sobrecarregada de tráfego, mais fácil também do que na grande, onde se experimenta a sensação de andar em pleno céu.

É essa que Marie vai utilizar.

Tal como o desejara, Serge é o primeiro a chegar ao teatro.

Tonto com a imensa claridade do dia, acha, com uma sensação de bem-estar, o palco pouco iluminado, ainda deserto: uma caverna onde dormiam a magia e os sortilégios.

Tal como um peixe reintegrado no seu viveiro, tomava posse do teatro. Escalava o palco. Daí a pouco os seus colegas chegariam e o seu sonho teria a forma que idealizara.

Para chegar, rodara a grande velocidade, mas com prudência: não era o dia mais apropriado para cometer uma infracção, nem para ter disputas com a polícia, sempre "esquisita" nestes casos e que fazia perder o tempo que se quisera ganhar.

Serge percorrera a estrada cheio de recordações e de esperanças. Uma estrada bastante conhecida: a mesma em que, com Marie, há muito tempo... Um ano. É muito, aos vinte anos. Como eram então jovens...

Nessa estrada, aquele caminho fatídico que vai do Centro até um dos mais prestigiosos teatros, o acidente acontecera. Ciúme, atraso involuntário, discussão... A sua amiga de sempre virada contra si, como inimiga, para lhe gritar que amava um bailarino, o maior entre os maiores, e que o considerava a si como uma criança... Como é terrível remastigar recordações!

Ao rever o local onde a moto capotara, o coração de Serge batera com mais força, as imagens tinham rodopiado na sua cabeça. Ele passara como uma flecha, mas a memória era mais rápida. Como esquecer o acidente? A moto avariada, uma rapariga e um rapaz rolando pela poeira, arriscando-se a morrer...

A estrada dominava a paisagem. Sob as escarpas, a baía de Villefranche encurvava-se e o cabo Ferrat prolongava a sua ponta de verdura pelo mar brilhante. Serge e Marie tinham ficado miraculosamente incólumes, mas os seus corações ficaram feridos... Não foram palavras de amor as que trocaram. Marie manifestara-lhe repentinamente rancor, uma espécie de ódio.

Daí para a frente, Serge desconfiaria das mulheres, mesmo que ainda fossem raparigas.

Depois tinham-se esquecido, tinham fingido que se esqueciam. Um ano, uma vida. E tinham voltado a ser "amigos" como antes. Mas a incomparável pureza dos primeiros sentimentos alterava-se. Antes, havia um cristal, agora, um bloco com facetas, irisado de cores.

O que tinham julgado único, absoluto, revelava-se múltiplo e colorido...

Dominando a moto, Serge percorrera deste modo o caminho. A cornija curvava-se, elevava-se, mergulhava nos túneis, ressurgindo na claridade mediterrânica.

Aproximando-se ao acaso das viragens, Serge via Monte carlo içada para o céu, com as suas formidáveis construções verticais, e, ornada pelo mar e pela verdura do parque, a famosa Ópera, onde nessa noite jogaria a sua primeira oportunidade.

Para o ensaio, tinham erguido as cortinas do palco -em primeiro lugar, a cortina de ferro, a da segurança, depois o sumptuoso cortinado à italiana, feito de panos aveludados e franjas.

A sala não estava iluminada. Sobrecarregada de dourados, tensa de púrpura, desenhada na penumbra, parecia-se com um relicário e o silêncio fazia aumentar esta impressão. Somente a luz que dormitava no cristal do lustre e das girândolas parecia velar, luzindo com um brilho surdo. Ela despertaria mais tarde; quando a claridade jorrasse na sala para acolher o público, brilharia, repercutida por mil sóis.

Entretanto: deserto e silêncio...

Pouco tempo depois penetrou na sala um trio, Michel e as suas duas passageiras. Serge, que já se agitava no palco, regulava as luzes com o electricista-chefe e explicava a "implantação" do cenário aos maquinistas, voltou-se.

Michel avançara até ao fosso da orquestra. As raparigas seguiam-no à distância, ligeiramente embaraçadas.

"Desculpe, só queria dizer duas palavrinhas a Marie Soler.

- Espere por ela. Não deve tardar. "

Michel exclamou:

"Como?!... Ela não chegou?1... Não veio consigo?"

Os rapazes olharam um para o outro, sem compreender.

Florentine quis salvar a situação:

"É estranho ela não estar... Julgámos que tinha vindo contigo!"

Serge preferiu não lhe responder, chamando pelo electricista-chefe que lhe perguntava se queria experimentar um efeito com "caçarolas" fixas de cada uma das extremidades do "pátio" e do "jardim"... Simultaneamente, um electricista pendurado nas cintras accionava as caçarolas -por outras palavras, os projectores-, iluminando-as de azul.

Perplexo, Michel virava-se para as raparigas, cujo embaraço lhe parecia de repente evidente. "Que história vem a ser esta?

- Se Marie não veio com Serge, como julgávamos, deve vir com os outros, no autocarro - afirmou Sarah.

-Mas, então, podia ter falado com ela há um bocado no Centro. Podia ter vindo connosco...

- Não chore, porque vai ver Marie." A graça de Florentine veio a calhar. Sarah e Florentine estariam a troçar? A atitude delas irritava o rapaz, sobretudo quando Sarah declarou que não eram responsáveis por Marie, que cada um fazia o que queria e que ela podia ter mudado de idéias. Quer Marie tivesse partido com Serge ou com os outros, isso não tinha nenhuma importância... Restava apenas esperar. De certeza que o autocarro não tardaria a chegar.

Mas, enquanto justificavam a sua inocente mentira, as raparigas experimentavam uma vaga inquietação, que a pouco e pouco tomava o lugar do prazer que tinham sentido, como crianças, a enganar Michel. Elas tentaram tranquilizar-se.

Michel não tinha aspecto de estar contente.

E depois? Apenas lhe tinham feito uma simples partida.

Nada que pudesse vir a ter conseqüências.

Marie conduz lentamente.

A estrada, porém, menos atafulhada, parecia-lhe interminável. As dificuldades sucediam-se. Marie tenta conservar o sangue-frio, mas tem medo. O seu andamento hesitante impacienta os automobilistas que surgem atrás de si. Constantemente são sinais de faróis, apitadelas, e por vezes insultos, a exigirem passagem.

Sente-se no suplício.

Como todos os principiantes, não ousa encostar-se à direita, tão assustada com os parapeitos como com os precipícios. E, arriscando tudo, avança, quando o que preferia fazer era parar, respirar, para obrigar a cessar aquela espécie de pesadelo.

Já desde há um bocado que, incapaz de se arriscar a uma ultrapassagem, Marie tomou o partido de seguir atrás dum camião, como se o peso-pesado, ao abrir-lhe a via, a pudesse proteger.

Em contrapartida, ultrapassando sem prudência a fila de carros escalonados na estrada, uma jovem, ao volante dum Alfa Romeo marcha loucamente. Nervosa, apressada, conduz com tanto de perícia como de audácia. Ultrapassa sem se preocupar com o perigo. O rosto tenso, vigiando o retrovisor, aproxima-se do Méhari que tão timidamente se arrasta.

Um entroncamento...

O peso-pesado vira à direita. Para Marie, a via está livre, mas ela não ousa acelerar, e atrás de si impacientam-se cada vez mais.

Então, Marie acelera... Uma lomba e, de repente, um buraco negro... Um dos pequenos túneis que se sucedem ao longo da comija... Carros, faróis acesos, surgem, encadeando a rapariga. Ela procura acender os seus Faróis, baralha-se nos botões de comando e põe o limpa-vidros a funcionar.

Passado o túnel, reencontra-se o sol, o céu azul, perante o qual o limpa-vidros continua o seu vai-e-vem absurdo. Marie não consegue fazê-lo parar. A sua febrilidade aumenta, tanto mais que, surgindo atrás de si, o Alfa Romeo reclama passagem com estridentes apitadelas.

Antes mesmo de Marie tomar a sua mão, ela passa como um relâmpago, mas um pouco mais adiante ei-la bloqueada por uma furgoneta que embaraça a estrada e para lá da qual se formou um engarrafamento.

Marie alcança o bólide. Aliviada por momentos, pode abrandar e achar maneira de parar o infernal limpa-vidros.

Consegue ver melhor aquela que a precede, uma bonita mulher loura que não pára de perscrutar o retrovisor e se vira para trás com frequência, inquieta, como se fosse perseguida. A seguir, a mulher procura qualquer coisa em cima do banco. Enquanto conduz com a mão esquerda, aperta contra si a maleta, olha mais uma vez para trás.

A sua atitude, o seu nervosismo, não podem passar despercebidos. Colada ao assento do seu Méhari, agarrada ao volante, Marie tem tempo de observar aquela que a ultrapassa. No mesmo andamento, a mulher junta-se mais à ravina. Rochedos e arbustos desembocam num matagal que parece inextricável e cujo desalinho se inclina sobre a margem onde as vivendas se dispõem por andares.

A desconhecida parece procurar um esconderijo ou uma fuga...

Finalmente, a estrada alarga-se: ultrapassada a furgoneta, os carros lançam-se como se tivessem estado privados duma irresistível liberdade.

Novos túneis...

Marie abranda.

À saída dum deles, distingue novamente a mulher, que desta vez avança mais lentamente. Depois, de repente, com todas as suas forças, a desconhecida projecta uma maleta no espaço. Mais um olhar para trás. Nada, unicamente o Méhari.

A desconhecida põe-se de novo a acelerar, a fazer as curvas de qualquer maneira, antes de se enfiar num outro túnel.

Atrás de Marie avança agora um D. S. negro. A rapariga, que, instintivamente, procura seguir pelo meio da estrada, obriga-o a abrandar. O condutor é um homem na força da idade, o rosto duro, de cabelos grisalhos bem cortados. Vestido correctamente, uma certa elegância, estilo do tradicional presidente de conselho de administração, com o seu companheiro mais novo: um cabeludo encaracolado, a cara acutilada por compridos bigodes à gaulês, anódino e banal, de acordo com o seu tempo.

O cabeludo agita-se, pendura-se na janela, com um ar furioso e ameaçador. Injuria Marie: que se meta na mão, aquela rata; que dê passagem. Quando não se sabe conduzir, fica-se em casa!

O condutor fica mais calmo.

Exorta o companheiro a ter paciência:

"Acalma-te, Bill. Economiza as energias! Vamos ter necessidade delas. "

Sem respeito pela faixa amarela, que vai franquear, o homem dos cabelos grisalhos prepara-se para ultrapassar o Méhari.

Surge então, vinda em sentido inverso, uma outra viatura. Chiadeira, travões. A presença de espírito - e a sorte - dos condutores evitou o acidente. Mas o que chega insulta o inconsciente. As suas vociferações perdem-se na distância, e o homem dos cabelos grisalhos, visivelmente, não se preocupa. Prestes a tudo, cola-se ao Méhari, carrega no claxon para exigir passagem. Quando Marie, apertada, se arruma como pode, o D. S. passa como um tornado num grande ruído de motor.

Trêmula, Marie recupera a pouco e pouco o fôlego.

A circulação é verdade que melhora. As viaturas espaçam-se entre si.

Aliviada, tirando partido desta pausa, Marie prossegue o seu caminho a todo o custo. Atingirá o seu objectivo: encontrar o teatro e os amigos.

Mas agora tem a impressão de se ter lançado numa perigosa aventura. E porquê? Para evitar. Michel!

Um coquetismo indigno duma rapariga de bem. Bastava enfrentá-lo e não morreria por isso.

À saída duma curva em gancho, Marie vê uma pequena clareira, à direita da estrada. Sente novamente uma pancada no coração: o D. S. encurralou o Alfa Romeo.

A mulher corre pela berma da estrada;- o cabeludo persegue-a, alcança-a, arrasta-a para o matagal, donde ela se tenta escapar. Enquanto isto se passa, o homem dos cabelos grisalhos abriu o porta-bagagens do Alfa Romeo. Revista. Nada. Corre então a ajudar o companheiro, para agarrar, bater na desconhecida, que se defende como um diabo e consegue retomar a estrada.

Tudo isto em poucos segundos.

Marie, que se preparava para estacionar um bocado, para retomar o domínio dos nervos, está cada vez mais angustiada. Prestes a abrandar, acelera. Apita loucamente, como se gritasse por socorro.

Surpreendido, o homem dos cabelos grisalhos vê-se ameaçado por aquela viatura saltitante que avança na sua direcção e que lhe toca ao passar. Dá um salto, quase que fica estendido sobre o capot, endireita-se e atira-se para a ravina. Mas Marie, durante um breve instante, conseguiu ver-lhe a cara: não a esquecerá.

Continua a rolar; acima de tudo, não pode parar. Tem de avisar! Procurar auxilio!

Ao resvalar pela ravina, Bill arrastou a desconhecida. O seu sinistro companheiro precipitava-se sobre eles.

Marie tem a certeza: vão matar aquela mulher!

Finalmente, a providência: uma bomba de gasolina. Marie pára. O encarregado avança com um ar acolhedor.

"Atestamos, menina?"

Marie gaguejava devido à emoção, a cara alterada...

"Depressa, senhor, é preciso prevenir a polícia... Há um drama na estrada, é horrível...

-Um acidente?

- Não, um crime. Dois homens que atacaram uma mulher. Eles vão matá-la. "

Marie suplica. O encarregado vai imediatamente alertar a polícia, pelo telefone. Aquela cliente com certeza que não está a brincar.

Enquanto ele telefona, uma rapariga muito nova, vestida com um fato-macaco azul, com um boné na cabeça com as cores da estação, aproximou-se sem pressa. Descontraída, tem o ar de quem não se espanta facilmente e que faz o seu trabalho sem que nenhum acontecimento a possa disso distrair.

Enfia a mangueira distribuidora no reservatório:

"Quanto?

-Quanto? De quê? Ah! sim, a gasolina... "

Marie não sabe. Precisará de gasolina? A rapariga da bomba é atenciosa:

"Espere, que vou ver. Mas acalme-se, não é a si que estão a assassinar. "

Verifica a altura da gasolina no mostrador do tablier e faz alguns comentários, questão de falar por falar:

"É cômico, o seu carro. Você é corajosa. Cá por mim, não gostaria de ter uma máquina destas. Deve ser difícil de conduzir! "

Marie não reage à tagarelice. Testemunha duma abominável violência, treme ainda de medo e de nojo.

Perante esta moça traumatizada, a rapariga da bomba deixa transparecer, apesar da sua fleuma, uma sombra de curiosidade:

"Julga que vão mesmo matá-la?"

À entrada do escritório, o encarregado, que conservou o telefone na mão, grita para Marie:

"Onde é que essa história se passa exactamente?

- Aqui perto. Logo a seguir à saída do túnel, na direcção de Monte carlo. Num sítio onde há lugar para arrumar. "

O homem transmite esta descrição aos polícias. E a rapariga da bomba continua, depois de ter deitado alguns litros de super no reservatório:

"com isto não irá longe... Só lhe meti cinco litros...

- Chega para ir a Monte carlo...

- Sim, daqui a pouco está lá.

-Ainda bem", suspira Marie, enquanto paga com o porta-moedas de Sarah, que ficara no porta-luvas. "Estão à minha espera, não posso chegar atrasada.

- Porquê? bom, pergunto por perguntar, não é obrigada a responder.

- vou dançar.

- Dançar?

- Sim, sou bailarina. vou para a ópera.

- Bailarina! Deve ser divertido! "

A rapariga da bomba esboça um tremelicar

de ombros no estilo rock.

"Divertido! Se assim se pode dizer!... "

Marie volta à realidade. Serge espera-a. Nada

a autoriza a faltar ao ensaio-geral, nem sequer

aquele trágico acontecimento:

O encarregado da bomba, entretanto, sai do escritório.

"Eles não se demoram... Há uma brigada que patrulha por estas bandas. "

Efectivamente, ao longe, a sirena da polícia motorizada aproxima-se.

Marie toma de repente consciência da irregularidade da situação. O carro não lhe pertence e, sobretudo, não tem carta de condução. Os polícias vão-lhe fazer perguntas, será preciso responder. O tempo passa... Liga a ignição, destrava, arranca.

"Espere! ", grita o garagista. "Eles podem querer fazer-lhe perguntas... "

Um interrogatório é ao que Marie precisamente procura fugir.

Espantado com esta partida brutal, o encarregado franze o sobrolho, desconfiado. Está a achá-la de repente muito apressada!

A rapariga da bomba continua calma. Bate com um dedo na testa, explica: "É bailarina. Deve ser meio maluca. "

Os agressores não se tinham demorado; alguns minutos lhes bastaram para realizar a sua tarefa. Uma sorte, porque não tardaria a surgir outro carro do túnel.

O homem dos cabelos grisalhos já retomara a estrada, enquanto Bill se sentava a seu lado. Dissimulada em baixo, pela vegetação que cobria a ravina, a vítima permanecia invisível. Apenas o Alfa Romeo continuava onde parara.

Pelo caminho, cruzaram-se com dois polícias de moto. O homem dos cabelos grisalhos, a quem o seu cúmplice chamava Jo, conduzia agora como um automobilista atento a quem não há nada a reprovar... Na verdade, os bandidos sentiam-se mal-humorados, não por terem usado da violência, mas porque o seu louco empreendimento não lhes proporcionara o que eles procuravam.

Além disso, havia uma testemunha, e as testemunhas incomodam... Assim, quando chegaram à bifurcação Monte Carlo-Menton, onde um agente regulava a circulação, e que viram o Méhari parado, reconheceram sem dificuldade a condutora que lhes complicara a tarefa. Bill, o primeiro a vê-la, deu um salto: "Olha, Jo! A tipa que há bocado nos bloqueava a passagem. Foi por causa dela que não pudemos entalar Florence.

- E a cabra aproveitou-se disso para se desembaraçar do pacote. Ela deve-o ter atirado para a ravina, mas onde? Seja como for, não se pode mandar publicar um anúncio... "

A pesada gracinha de Jo encontrou eco.

"Receio que Florence não nos enterre mais neste baixo mundo - murmurou Bill.

-Talvez tenhamos ido longe de mais...

- Ora, ora! Dêmos-lhe uma boa lição. Se não me tivesses chamado por causa dessa tipa...

- Que talvez tenha visto demasiado!

- É possível.

- E se ela viu alguma coisa, por exemplo, o sítio para onde Florence atirou a droga, não é aos chuis que o deve dizer, mas a nós! ", concluiu Bill com determinação.

Aliviada por chegar finalmente às proximidades do seu objectivo, Marie nem por isso treme menos.

com razão ela tinha medo. Medo daqueles homens, da sua violência, do seu crime, talvez? E, depois, também tinha medo de se ter metido numa situação ilegal. Circular sem carta de condução... Arriscava-se a uma multa e - o pior- a comprometer o espectáculo por causa do atraso. Mais uma vez, tanto trabalho, tantas esperanças, podiam ficar reduzidas a nada.

A sua única idéia, agora: chegar ao teatro, retomar o seu lugar, retomar a sua verticalidade, pelo menos por hoje. Amanhã, logo se veria.

Sim, estava próxima do objectivo. A ópera erguia-se diante do mar, com as suas cúpulas esverdeadas, que pareciam fazê-la flutuar. A sua aventura quase lhe parecia incrível. Não teria exagerado nada?

No cruzamento, com as mãos apertando o volante, muito emocionada, com os olhos fixos no sinaleiro, Marie esperava o sinal para avançar. Pusera o pisca-pisca a funcionar para a esquerda. Quando teve ordem para avançar, voltou contudo à direita, para se meter pela estrada que descia em direcção a Mônaco. Apalermado, o agente contentou-se em erguer os olhos ao céu. com uma rapariga bonita pode-se mostrar alguma indulgência... Depois, prestou atenção às viaturas seguintes.

Convencido de que Marie ia virar à esquerda, o homem dos cabelos grisalhos tomara posição atrás dela.

Surpreendido e furioso, viu o Méhari dirigir-se na direcção oposta sem o poder seguir.

"Ela está a gozar connosco! ", resmungou Bill.

Mas o sinaleiro olhava para o homem dos cabelos grisalhos como se o tomasse como testemunha da inconsequência das mulheres.

Obrigado a avançar com prudência, Jo esboçou um sorriso, enquanto Bill fulminava:

"Para que é que servem os chuís? Ela conduz como um podão e não lhe dizem nada. Mete o pisca-pisca dum lado e segue pelo outro... Gostava de saber como é que ela conseguiu tirar a carta de condução! Há bocado julguei que te ia mandar pelos ares!

-Eu também, e receio que tenha reparado em mim!

- Achas que teve tempo?

- É melhor desconfiar... Vamos tentar encontrá-la, e tu tomarás conta dela", disse Jo ao companheiro.

O autocarro chegara -Marie não se enganara. Os bailarinos corriam alegremente pelo teatro dentro. Michel, que esperava, voltou para junto das raparigas. Elas tinham um ar confuso, como quem pregou uma partida que se vira contra si. Mais surpreendidas ainda do que Michel, eram também obrigadas a reconhecer a evidência: a amiga não chegara...

Que significava aquilo?

"Então onde é que ela se meteu? - perguntou o jovem.

-bom, quanto a esta partida, não sabemos de facto nada", balbuciou Florentine.

Sarah preferiu confessar a verdade:

"Nós mentimos-te: há bocado, no Centro, mentimos-te... Quando te dissemos que Marie já tinha partido com Serge, ela estava escondida na Escola.

- Ela não o queria ver", precisou Florentine.

Michel encolheu os ombros, descontente. Tinham estado a fazer troça dele, fizeram-no perder tempo.

"Julgámos que ela tomaria o autocarro juntamente com os outros. Em todo o caso, era essa a sua intenção. É esquisito que não tenha chegado... "

Esquisito? Michel não pensava da mesma maneira.

Sarah queria telefonar para o Centro, informar-se junto dos colegas, falar com M. Ue Leroy, que talvez estivesse ao corrente. Onde estava Marie? A que horas e como é que chegaria Marie? O ensaio geral não tardaria a começar. Marie precisava de se vestir, de se maquiIhar. Não podia chegar atrasada.

As histórias das raparigas, a partida do jogo das escondidas, pouco importava a Michel. O que ele não gostava era de que o gozassem.

Não, não esperaria mais.

"Não tenho tempo a perder com as vossas infantilidades, também tenho o meu trabalho.

- Espera só mais cinco minutos", suplicou Sarah.

Mas Michel já se afastava.

Marie, tanto pior. Além disso, se ela não o queria ver, se não queria aproveitar a sua proposta... Sim, tanto pior para ela, tanto pior para ele também - porque quanto mais ela se afastava mais ele a queria.

Rodar o filme com outra? Impossível. Pouco a pouco, inconscientemente, dera à sua heroína o rosto de Marie. Aquela sedutora feiticeira, durante uma noite mágica, tinha-lhe dado volta à cabeça.

Aquele encontro de fadas não se poderia concretizar em relações de amizade, numa associação? Fariam equipa, Géraldine concordava.

Então porquê aqueles caprichos, aqueles modos, como num conto à Musset?

Invectivando, Michel dirigia-se para o seu carro. Foi quando viu Marie. Uma Marie com a cara assustada que manobrava desastradamente para arrumar no parque de estacionamento.

Correu para ela, o que inspirou à jovem um movimento de terror.

"Ah, não! Não vai agora ter medo de mim! Que é que se passa? Que é que lhe aconteceu? Pare, você não está em condições de conduzir... "

Esgotada, Marie obedeceu. Michel empurra-a para o banco da direita, senta-se no seu lugar e arruma o carro. Junto do jovem, Marie parece voltar a si. A presença de Michel tranqüiliza-a. Agradece-lhe quase sem voz.

"Que é que se passou?", insiste o jovem. "Que é que a pôs nesse estado?"

Marie não responde. Mas Michel não está disposto a largá-la imediatamente e retém-na, pousando nela uma mão autoritária.

"Você sabe que preciso de lhe falar. Fui de propósito procurá-la ao Centro. "

Marie debate-se um pouco.

"Se não se importa, falamos nisso depois. Agora não, vou chegar atrasada. Sarah explicar-lhe-á.

- Ela disse-me... que você se recusa a falar comigo. Tem de concordar que isso é idiotice, visto que acabo de lhe provar que lhe posso ser útil. E você teima em não me querer ouvir. Porquê?"

Marie esboçou um ligeiro sorriso mordendo os lábios. Ergueu os olhos para Michel e sentiu-se desarmada, enquanto ele prossegue, meio sério, meio irônico:

"Você não quer falar comigo porque durante uma noite inteira me fez crer que era outra. Porque fez teatro comigo. E de que maneira! Devia sentir-se orgulhosa... Graças a si, participei num espectáculo perfeitamente bem sucedido! Sim, brincou comigo. Devia ser antes eu a estar ofendido. Você fez-me acreditar; pense bem, mais um pouco, e eu amava-a... Felizmente, aquilo não passou dum sonho, e eu não o quero considerar como uma má recordação. E você?"

Michel estende-lhe a mão, sorri, e Marie consente em confessar: não, para ela também não é uma má recordação.

Agora dirigem-se para a entrada dos artistas. Um D. S. preto deixa ver o capot sob a folhagem onde se resguardou. No interior, os gangsters. Espreitam. Observam...

Saindo do teatro, Sarah vem ao encontro de Michel. Vendo Marie, tranquiliza-se instantaneamente e exclama:

"Eis-te, começava a ter medo... Que é que andaste a fazer.

- Enquanto estive escondida, acabei por perder o autocarro; então, peguei no teu carro.

- Tu és doida! Mal sabes conduzir! Arriscaste-te um bom bocado.

- Peço-te desculpa. mMas, se soubesses..." Sarah arrasta-a. Por um pouco não davam

pela sua ausência. O ensaio está iminente. Marie contar-lhe-á a sua história depois.

As raparigas vão desaparecer. Durante um segundo, Michel retém Marie.

"Não estou longe, estou a filmar no Forte de Saint-André. "

E aponta, do outro lado do porto, para um teatro ao ar livre, escavado na rocha, sobre o qual se ergue o principado.

"Quando acabar, virei buscá-la e depois falaremos, como amigos. De acordo?

- De acordo", repete Marie, esquecendo a sua resolução de não voltar a ver o rapaz.

Marie, enquanto se prepara no camarim, conta a sua aventura às amigas.

Florentine mostra-se muito excitada com o relato: não se assiste todos os dias a um crime! E ainda bem, senão a vida não se poderia viver, é um facto...

Sarah mantém-se reservada. Prefere pensar que Marie exagera. O facto de a rapariga ter fugido à polícia inquieta-a bastante.

"Oh! os chuis metem sempre medo", diz Florentine. "E ainda mais se se está em falta... Minha pobre Marie, tu não tens carta de condução. Eu, no teu lugar, também tinha fugido. "

Mas uma voz ordena pelo altifalante: "Toda a gente em cena. Meninas, senhores, para As Grades, toda a gente em cena... "

Todos estão prontos -nos seus respectivos lugares. Do lado do jardim, Marie espera. Ela ali está, como os outros. Como se nada lhe tivesse

acontecido. Sente-se reviver.

Serge, atento, sorri-lhe, encoraja-a. "Isso vai, Marie? Em forma? -O. K. -Vamos a isto. "

E o pano ergue-se, como se erguerá nessa noite.

Os adereços do primeiro quadro estão no seu lugar. Os bailarinos também, formando uma sucessão de pares, entre os quais o jovem coreógrafo se confunde. Ele preferiu o anonimato dos conjuntos ao papel principal. O papel que o seu professor quis ser ele próprio a interpretar, para melhor lhe testemunhar a sua confiança.

Marie e o seu par estão no centro do grupo. Conforme a vontade de Serge, o decorador reduziu as vestes ao máximo: collants acadêmicos cor de carne; para Stanislas, um falso colarinho e uma gigantesca gravata às riscas; para Marie, colocado sobre as ancas, um cinto tão largo que faz as vezes de saia curta.

Do lado do pátio e do lado do jardim, os recitantes, dos quais apenas se vêem os bustos intensamente iluminados, que parecem sorrir fora das molduras:

86

"Eis o papá.

Eis a mamã.

Eis os amantes,

Eis as pessoas de coragem

Que fazem as crianças... "

Os maquinistas assistem ao ensaio com curiosidade. Serge observa as suas reacções. Não são eles os primeiros espectadores? No palco, o pessoal técnico conta duplamente. Em primeiro lugar, evidentemente, pela sua actividade, mas também pela atitude que manifesta em relação ao espectáculo no qual colabora. Se não lhe presta nenhuma atenção, alerta. Se se interessa, bom sinal.

Nos bastidores, esperando a sua entrada, Sarah e Florentine, misturadas com as suas companheiras, seguem atentamente o ensaio e trocam impressões em voz baixa. Elas conhecem o bailado de cor. Contudo, o palco, as luzes, os trajes dão-lhes uma espécie de novidade, uma dimensão complementar. É assim, na sua forma acabada, que o público julgará a primeira criação dum jovem bailarino que se quer acima de tudo um coreógrafo e que tenta exprimir as suas idéias.

Decididamente, Florentine acha aquilo "engraçado".

"Deus queira que o público pense como tu-disse uma outra.

- É mais do que engraçado-afirma Sarah. -E o público não é parvo, ele compreenderá, apreciará. "

Em cena, a acção desenrola-se. A criança cresce. Mas o herói de Serge não se pode curvar as medidas comuns e, a qualquer forma de existência, prefere a liberdade, simbolizada por um belo pássaro.

Ao passo que Marie recuperara o tempo perdido, os polícias perderam o deles.

Enquanto a testemunha se reanimava em cena, se realizava numa sucessão de personagens-uma mulher que nunca era "nem a mesma, nem outra" -, eles depressa encontraram, à saída do túnel, o Alfa Romeu abandonado.

Vasculhando as imediações, na ravina que ladeava a estrada, também encontraram a vítima. Num grande alarido de sirena, fora levada por uma ambulância.

Na bomba de gasolina, um inspector recolhia os primeiros elementos da pesquisa. Interrogava o encarregado e a rapariga da bomba, que, sempre descontraída, nem por isso deixava de se sentir satisfeita pela importância que adquiria. Sim, tinham visto chegar uma rapariga que lhes indicara o drama. E não era a brincar, visto terem encontrado a vítima.

A empregadita precisava que a cliente, completamente fora de si, nem sequer sabia se precisava ou não de gasolina.

"Meti-lhe cinco litros. Ela não ia para longe, para Monte carlo, para dançar.

- Para dançar?

- Sim, uma bailarina, digo-lhe eu...

- Conduzia um Méhari - interveio o encarregado.

- Sim, cor de laranja. É fácil de se ver. -Tirou-lhe a matrícula?", perguntou o inspector.

Não, não tinham tirado o número da matrícula. Não tinham pensado nisso. Além disso, a rapariga partira repentinamente.

Foi ela que vos disse para nos avisarem?

-Sim, mas esta história fê-la ficar um bocado zuca", concluiu a rapariga, dando um jeito no boné e esticando melhor a blusa.

Acabava de avistar um repórter-fotográfico a ajustar a máquina e ela deixava-se fotografar com uma certa tolerância.

Para fugir aos curiosos, o inspector refugiou-se no escritório da estação de serviço, mas a empregada, antes de o seguir, respondeu de boa vontade às perguntas do repórter:

"Seja simpática. Diga-me o que é que viu.

- Eu, nada. Foi a bailarina que viu.

- A bailarina?

- Sim, porque não? Testemunha, qualquer pessoa pode ser... Uma bailarina que ia para Monte carlo, para a Ópera.

- Nova, bonita?

- Assim-assim.

- Seria capaz de a reconhecer?

- Claro... "

O inspector dirigiu-se ao teatro. Quando chegou, não deixou de reparar no Méhari: a testemunha está ali.

Quando passa pela entrada dos artistas, o porteiro quer interpor-se, mas depressa faz uma reverência quando ouve a palavra de ordem: "Polícia." E conduz o inspector junto do director.

Sarah está nos bastidores. Em cena, Marie. Até agora, o ensaio "corre". Não houve nenhuma falha.

O director puxa discretamente Sarah para trás: que venha, chamam-na, um polícia.

"Um polícia?... "

Assustada, Sarah volta-se para Florentine, que lhe assopra:

"É com certeza por causa do crime! "

Colocado no fundo do palco, atrás do cenário, o inspector espera na penumbra.

"É a menina Sarah Green?

-Sim.

- O Méhari cor de laranja com a matrícula T. T. X. 77 é seu?"

Instintivamente, Sarah fez sinal ao inspector para falar mais baixo. Está-se a trabalhar e sóos que trabalham é que têm direito a falar.

Ele obedece e. baixa a voz:

"O Méhari...

- Sim, sim, é meu, claro! -interrompe Sarah.

- É verdade que viu a agressão de que uma mulher... "

Uma voz furiosa grita um "Stop" retumbante. Tudo pára. Sarah acaba de falhar a sua entrada. No cúmulo do embaraço, ela avança pelo palco onde Serge se agita, subitamente furioso.

"Muito obrigado!... Bravo! "

A silhueta do polícia recorta-se atrás da jovem americana. Mas Serge nem sequer dá por ele.

Mas Marie pressente-o imediatamente: o que ela receia está em vias de se realizar.

Deus queira que Sarah não a traia!

"Serge, a culpa não é minha, pediram para falar comigo", disse Sarah.

Serge nem lhe dá tempo para se explicar.

"São mesmo horas de andar a vender pianos! "

Cada vez mais embaraçada, Sarah volta-se para o polícia, que, cortesmente, lhe faz sinal para ir ensaiar: ele esperará.

Serge deu ordem para retomar alguns compassos antes da entrada de Sarah. De novo Marie dança, iluminada pelo facho dos projectores. O inspector olha-a.

"Pensa no que estás a fazer, Marie!... ", grita Serge. "Ainda há bocado, estavas cá. Recomeça. "

E Marie recomeça.

Nos bastidores, Sarah espreita o momento da sua entrada. Florentine queria informar-se:

"Quem é esse homenzinho? Um polícia! Oh, lá, lá,

- Ele quer interrogar-me - segreda Sarah.

- Basta que digas o que Marie nos contou.

- É arriscado.

- Porquê? Se dizes a verdade, eles vão chatear Marie... Circular sem carta de condução parece que pode levar à prisão... Pergunta-lhe os pormenores. "

Enquanto dança, Marie não se pode impedir de lançar olhares à amiga. Mas esta tomou a sua decisão. Quando entra em cena, a expressão do seu rosto tranqüiliza plenamente Marie.

Ao acaso das figuras do bailado, elas vão conseguir segredar algumas palavras.

"Dá-me pormenores. O homem?

- Eram dois.

- Aquele que por um pouco não derrubavas? -Já não é novo... Uma cara mal parecida. -Viu-te?

-Como te estou a ver a ti. "

Na sala mais ou menos deserta, Géraldine e Michel esperam pelo fim do ensaio. A presença de Serge, a sua beleza, ressalta em cena, e Géraldine pensa que ele seria uma aquisição de primeira ordem para o projecto de ambos. Se conseguirem convencer Marie, terão de o convencer a ele também: ambos formariam um par ideal, capaz de seduzir o grande público.

Embora reconheça as evidentes qualidades do bailarino, Michel mostra-se mais reservado. Géraldine tem razão, mas contudo ele sente alguma hesitação: embora tenha imaginado a sua heroína com os traços de Marie, quanto ao herói, as idéias são muito mais vagas.

Marie e Serge? Serge e Marie? Sim, e depois, porque não? Mas, a dar ouvidos a Mirhel, os bailarinos são "animais estranhos". Fora da dança, pouca coisa lhes interessa. Este Laroche é como os outros. Só pensa no seu ballet, e se tiver êxito ficará intocável.

"Não exageremos", contrapõe Géraldine. "Então, sempre falaste com a pequena?

- Marie? Sim, sim.

-Sim ou não? Ela consentiu em te voltar a ver: então a coisa arranja-se.

- Assim o espero... "

Michel demora o seu olhar em Marie... Marie longínqua e contudo tão presente, na luminosidade quente dos projectores. Ela está deslumbrante de frescura e de graça, revelando uma feminilidade ingênua. Os collants cor de carne cobrem-lhe a silhueta, ao mesmo tempo que a parecem desnudar e ela evolui, simultaneamente casta e perturbante, na luz.

Isabelle e Françoise, que acabaram de ensaiar os seus números, vêm juntar-se a Michel e Géraldine. Estão prontos para ir com eles para os testes. Géraldine vai levá-los, a fim de preparar as filmagens.

Quanto a Michel, ele que se ocupe de Marie, que obtenha o seu consentimento. Porque, também para Géraldine, Marie continua a ser a esperança nº 1...

Assim que Sarah acabou de ensaiar, Serge deixa-a ir e o inspector convida a jovem americana a acompanhá-lo.

Simples formalidade.

Os gangsters ficaram à espreita. A chegada do inspector, ladeado por um agente, não lhes passou despercebida. São o gênero de pessoas em quem Jo e Bill reparam com facilidade! Quando os vêem sair do teatro, não lhes resta a mínima dúvida, tanto mais que o inspector vai direito ao Méhari.

Ele conferencia com uma rapariga.

Jo franziu o sobrolho.

"Quem será aquela?"

Bill tem um rasgo de esperança:

"Talvez não tenha nada a ver connosco...

- Espantar-me-ia. Quando eles chegaram, há bocado, foram logo espreitar para dentro do carro. Não chegaram aqui por radar, alguém os avisou. "

O inspector contornou o Méhari: "É este o seu carro, menina?

- Sim - respondeu Sarah.

- A menina vinha sozinha?"

Sarah hesita... Contudo, diz que sim, mostrando uma expressão inocente. O inspector convida-a a subir para o seu próprio carro, conduzido por um polícia à paisana.

"Não é a típa da estrada", observa Bill.

Graceja:

"Mais vale que embarquem esta e nos deixem a outra. "

Jo parece reflectir. Tudo aquilo não parece claro. Razão ainda maior para agir depressa. com um tom ameaçador, afirma ao cúmplice:

"Essa tipa tem de nos dizer para onde é que Florence atirou a droga, e temos de a obrigar a compreender que nunca nos viu, nunca... Senão... "

A partida de Sarah inquietou Marie. Deus queira que aquele negócio não lhe complique demasiado a vida, sobretudo naquele dia. Contudo, ela sabe que pode contar com a amiga e, aparentemente, a mentira em nada altera a verdade. Sarah contará o que Marie lhe disse, e Marie dissera-lhe a verdade do que vira.

O ensaio d'As Grades termina.

Serge não ficou descontente. Tudo correu "sobre esferas". Deus queira que nessa noite não falhe nada! Bate no soalho com as duas mãos, para esconjurar qualquer eventual mau-olhado. Aos bailarinos reunidos à sua volta dá os últimos conselhos, faz as últimas recomendações.

Serge gostaria que logo a seguir fosse o espectáculo. Não sair do ambiente. Mas os bailarinos das companhias concorrentes invadiram o teatro. É preciso ceder-lhes o palco: um. de cada vez.

com uma espécie de terror, Serge terá de suportar horas de espera e de repouso... De repouso?... Horas difíceis de passar, sim! O medo, há pouco reprimido pela acção, desencadeia-se ainda corn- mais força! O jovem mestre de baltet gostaria de poder tremer como uma criança.

Consciente da sua perturbação, Lynn tranquilizou-o e, retomando de certo modo o seu papel de professor, ralha-lhe gentilmente.

Lynn, tal como os outros, acaba de ensaiar. Dançou bem, procurando servir, com todos os meios ao seu alcance, a tentativa do aluno. Mas hoje o aluno torna-se mestre. Este bailado é obra sua, é sua responsabilidade. Então, que dê o exemplo... Calma, domínio.

Não é altura para fazer perguntas. Tem de ter confiança em si mesmo, com todas as suas forças, para imprimir confiança nos outros.

Na sala, sentada junto de Marie, Florentine tagarela com Michel. Cheia de importância, ela conta-lhe a aventura da amiga:

"Tudo isto devido a si. Precisamente! Se Marie teve azar, foi por sua culpa." Mas a altura não é para afectações.

"Fui idiota - reconhece Marie - e agora tenho medo... Um polícia levou Sarah para que ela faça uma declaração. Acham que a vão chatear?

-Espero que não", replica Michel, pensando que a jovem se meteu numa bela embrulhada e que se arrisca a arrastar Sarah consigo.

Não seria preferível a verdade?

"Hoje não, suplico-lhe-exclama Marie. -Hoje quero estar tranqüila.

-Está bem, ganhou.

-Oh! não se ria... Se tenho de sofrer as conseqüências dum castigo porque cometi uma infracção, amanhã tenho muito tempo de saber... "

Amanhã? Claro. Não era preciso dramatizar. Mas, mesmo assim, este assunto não agrada de modo algum ao rapaz. No entanto, disfarça a sua inquietação. Mais vale deixar Marie sossegada. Além disso, não veio ali para lhe dar lições de moral, mas para lhe arrancar o seu consentimento. Convencê-la a aceitar o papel que lhe propõe.

O seu projecto, a sua heroína, os seus testes, ele fala-lhe disso, ele defende-os. Que Marie lhe dê uma resposta. Não esta noite. De acordo, ele compreendeu: o bailado acima de tudo. Mas amanhã, o mais tardar, ele tem de tomar uma decisão, porque tem de começar imediatamente as filmagens.

Por agora, Michel vai arrancar para o Forte de Saint-André para se juntar a Géraldine e à restante equipa. Se Marie quiser vir dar uma volta até lá, será bem-vinda.

Sarah achou-se no gabinete do comissário, na presença do inspector e dum secretário instalado diante duma máquina de escrever.

O gabinete está iluminado, mobilado apenas com o essencial; uma rosa está metida num copo de água e o comissário mostra-se simpático. Quase a atmosfera duma visita mundana.

Inevitavelmente, o comissário faz-lhe muitas perguntas, às quais Sarah responde o melhor que pode, com brevidade, mas procurando não esquecer nada dos pormenores que Marie lhe fornecera. A pouco e pouco, sente-se tranqüilizada.

"Seria capaz de reconhecer o carro?

- Um D. S. preto. Sabe, existem tantos...

- A matrícula?

- Não reparei.

- O condutor?

- Já não é novo... uma cara de poucos amigos! "

O comissário sorriu, repetindo: "Uma cara de poucos amigos. "

Bruscamente, espalha uma imensa série de fotografias em cima da mesa, oferecendo-as ao olhar de Sarah.

"Consegue identificá-lo?"

Confusa, Sarah olha para o comissário. Identificar?...

Esforçando-se por não perder o sangue-frio inclina-se atentamente sobre as fotografias, para disfarçar o seu mal-estar. O comissário espera.

Ela abana a cabeça. Não, não reconhece ninguém.

"Ninguém... "

E, contudo, entre as fotos apresentadas encontram-se as do homem dos cabelos grisalhos e do seu cúmplice. Os seus nomes estão ali inscritos: Marie-Joseph Cervione, dito Jo, e Bernard Donge, dito Bill. O primeiro mostra, de frente e de perfil, aquilo a que Marie chamara uma "cara de poucos amigos", isto é: uma autêntica cara de tunante. Quanto ao outro, no estilo nova vaga, usa cabelos compridos e bigodes à gaulês.

O comissário parece desiludido; esperara que a reacção da rapariga confirmasse as suas suspeitas... e nada.

"Tem a certeza de que o D. S. preto a seguiu? - prosseguiu ele.

-Sim, - parece-me... Já lhe disse. Até ao cruzamento. A partir daí, já não sei mais.

- O seu carro dá bastante nas vistas. Os gangsters... "

Sarah teve um sobressalto e repete: "Os gangsters?

- Sim, menina. Existem todas as probabilidades de nos ter posto na pista duma quadrilha de traficantes de droga... O seu testemunho é para nós de enorme importância... Então, efectivamente, nenhuma destas fotografias lhe lembra a cara que viu?"

O comissário juntou as fotos todas. Como é que Sarah poderia reconhecer alguém que nunca viu? Uma "cara de poucos amigos"... Ora! havia tantas na colecção do comissário!

Para respeitar a palavra dada a Marie, não se arrisca Sarah a ficar com um caso de consciência?

A rapariga quer afastar aquela idéia da cabeça, mas o seu mal-estar e a sua surpresa aumentam quando o comissário lhe explica que não é muito difícil encontrar-lhe a pista.

"Como?

-Pense um pouco, menina! Se demos consigo rapidamente, os gangsters podem fazer o mesmo.

-Porquê?

-Também podem precisar de si. Para eles, como para nós, você é uma testemunha importante. Mas não tenha receio, porque nós cá estamos... A menina seguiu durante muito tempo o carro da mulher?

- Sim, bastante.

-O D. S. vinha atrás de si?

- Sim. Queria ultrapassar-me. E foi o que acabou por fazer.

-Qual era a atitude da mulher que a precedia? Pareceu-lhe nervosa? Teve a impressão de que se sabia perseguida?

- Pareceu-me... Acho que sim. "

O comissário levanta-se, o interrogatório acabou.

"Menina, os meus agradecimentos. Acompanhá-la-ão. Se voltar a precisar de si, onde é que a posso contactar?

- Esta noite, na Ópera. Amanhã estarei em Cannes, no Centro de Dança. "

O comissário estende-lhe a mão. Ao cumprimentá-la, tem um sorriso que pretende ser protector e tranquilizador. A inquietação, de Sarah é visível...

O inspector prepara-se para reconduzir a jovem, quando o comissário, a quem o secretário acaba de passar uma mensagem, lhe faz sinal para esperar um momento. Há novidades.

"Acabaram de me transmitir uma informação de fonte segura -disse ele ao inspector. - Os agressores não conseguiram encontrar o pacote que Florence transportava.

- Ela não falou?

- Está em estado de coma. Mas, mesmo que se safe, não nos dirá uma palavra sequer. Já a conhecemos! Portanto, só dispomos duma única indicação: a droga continua algures entre Nice e Monte carlo, nas proximidades da bomba de gasolina. vou ordenar que sejam feitas buscas. Quanto à testemunha, você é mais do que nunca responsável pela sua segurança. "

Enquanto o inspector acompanha Sarah ao teatro, a jovem não consegue deixar de pensar naquela situação absurda: é ela, Sarah, a quem protegem.

Durante esse tempo, Marie arrisca talvez a vida.

Impaciente, Marie esperava no teatro pelo regresso da amiga. Estando a ausência de Sarah a prolongar-se, Florentine sugeriu que talvez ela tivesse ido directamente para o Forte de SaintAndré, juntar-se ao primo e aos cineastas.

Marie propôs imediatamente a Serge que fossem ter com Sarah, e, como o jovem apenas tinha um desejo -matar o tempo - aceitou de boa vontade a proposta. Florentine preferia ir comer qualquer coisa ao snack, com os amigos. Mas, assim que Serge se afastou para ir buscar a moto, Marie não pôde deixar de olhar em volta, como se um perigo a ameaçasse.

Na larga avenida que cerca o casino e que se perde entre os jardins estavam parados carros de toda a espécie. Algumas chegadas e partidas. Saía um carro, logo outro se arrumava. Nada de anormal, na aparência.

Contudo, no D. S. igual a tantos outros, e em parte disfarçado por um conjunto de árvores, dois homens espreitavam.

Os gangsters continuavam a perguntar a si próprios porque é que os polícias tinham levado Sarah e não Marie. Que significaria aquilo? Outro assunto? A menos que estejam enganados e que o jovem companheiro da rapariga não seja um chui...

Fosse como fosse, se alguém prevenira a polícia, esse alguém só podia ser Marie, aquela condutora azelha e incômoda que lhes complicava a vida. Ora ali estava ela, à mão de semear...

Era necessário raptá-la, depois obrigá-la a falar, de vontade ou à força.

Logo que Serge regressa, Marie salta para a moto e Serge arranca imediatamente. Mas, na cidade, a circulação é intensa. Serge contorna a praça que se estende em frente do casino mais célebre do mundo, para onde afluem os autocarros e os turistas, os curiosos e os jogadores, milionários ou indigentes fascinados pela sorte.

Contrariamente aos seus hábitos, Serge conduz sem pressa. Passa diante do Hôtel-de-Paris, mete pela avenida que desce para o porto.

Assim que os jovens partem, o D. S. apontou o caprí na mesma direcção.

com um chapéu puxado para a frente, de maneira a dissimular a cara, Jo segue a moto, que se escapa por entre as filas de carros. A seu lado, Bill está disposto a tudo. O projecto dos bandidos é audacioso: raptar a rapariga não será uma tarefa fácil! Têm de achar o momento propício, um local deserto.

Por agora, a animação da cidade, a luz ainda viva, apesar da proximidade do crepúsculo, só lhes fazem aumentar de prudência. Mas, se for preciso provocar um acidente, provocá-lo-ão e em seguida dominarão Serge. O importante é apanharem a testemunha antes de a polícia se meter no assunto.

A moto conseguiu desenvencilhar-se do movimento; mete pela estrada serpenteada que sobe até Mônaco e que passa, sinuosa, por entre os jardins do principado.

"É ali", diz Marie apontando o Forte de Saint-André, que domina o mar, construído sobre as rochas escarpadas.

O velho forte foi transformado; sobre as fiadas e sobre os contrafortes foi edificado um teatro à antiga. A paisagem é muito bela, pitoresca, como se quer. Este teatro ao ar livre parece simultaneamente emergir do mar e do arvoredo.

Por instantes, os gangsters julgam que os jovens se vão meter pelos bosques para se isolarem, como todos os namorados do mundo. Estando isto fora de questão... Serge e Marie, depois de terem largado a moto, metem pelo caminho escarpado que vai dar ao teatro. Lá em cima, Michel dirige as filmagens dos testes no meio duma barafunda de cabos, projectores, aparelhos de registo de som desenfardados a granel e utilizados conforme as necessidades.

O D. S. pára perto da moto. Jo fica ao volante, enquanto Bill vai à procura dos jovens, que em breve descobre entre a pequena multidão de actores e de cineastas que invadem pacificamente o teatro onde Michel colocou a sua câmara.

"Raios! ", diz Bill para consigo mesmo, furioso. "Aqui nunca poderemos deitar a mão a essa maldita miúda! " Contudo, tirando partido da desordem que invariavelmente reina nos locais de filmagens, consegue, tal como os curiosos, aproximar-se dos que trabalham à volta da câmara.

Uma jovem bailarina evolui diante do aparelho e imobiliza-se conforme as indicações de Michel, num grande plano, a dois metros da objectiva.

"Cortem! Está bem, menina. "

Enquanto Michel agradece à concorrente, Géraldine, que está junto dele, vê chegar Serge e Marie. O que quer dizer que Marie se reconciliou com Michel... Géraldine fica realmente satisfeita, visto que todo o projecto do folhetim assenta na participação da jovem bailarina.

"Sarah já chegou? - pergunta imediatamente Marie.

-Julgava que ela vinha convosco... -admira-se o rapaz.

-Não -explica Marie. -Sarah continua no comissariado. É estranho estar lá há tanto tempo.

-Mas que é que se passa? -pergunta Serge. -Há bocado, um chui passeava-se pelo palco... Que é que Sarah fez? Marie, sabes alguma coisa?"

Marie fica calada e Michel vem em seu auxílio. Era inútil alarmar Serge: ele precisa de toda a sua calma para defender o seu espectáculo. E, além disso, não vale a pena dramatizar. Sarah não é acusada, é apenas testemunha.

Quanto à substituição de pessoas, isso em nada altera o desenrolar dos acontecimentos.

"Do que é que Sarah foi testemunha? - pergunta Serge, depois da explicação de Michel.

- Duma briga.

- Dois homens que perseguiam uma mulher para a matar", precisa Marie quase sem querer.

Visto que Serge não está ao corrente de nada, Michel prefere mudar de assunto. Ordena à equipa que "dobre" o material: "Por hoje, está acabado. Mesmo que Sarah ainda venha, será já demasiado tarde para a filmar. A luz do dia começa a desaparecer e a paisagem está a ficar cor-de-rosa. "

Sempre à espreita, Bill apanhou bocados da conversa.

Embora não compreenda a substituição das testemunhas, tem pelo menos a certeza que têm de "interrogar" Marie.

Mas quais serão as intenções da rapariga? O seu emprego do tempo?

Bill não tem vontade de deixar a praça e imita os passeantes que andam pelo local das filmagens, como se conseguissem descobrir alguns dos segredos da câmara. Chegou mesmo a misturar-se com uma família numerosa e tagarela: pai, mãe, quatro filhos, desde o bebê que mal anda ainda até à filha mais velha, de saia comprida, que acaba de atingir a maioridade. A família circula inocentemente e sem problemas, curiosa dos jovens artistas, dos operadores, da maquilhadora que arruma cuidadosamente os seus cremes e bases.

Géraldine expõe novamente a sua idéia a Serge e a Marie.

Ela gostaria de contratar não apenas a rapariga, mas também Serge, que a seu lado seria o par ideal. Efectivamente, insiste nesse ponto com uma secreta intenção que Michel não consegue desvendar. E é o próprio cineasta que pede a Serge que trabalhe com eles.

A vida dançada, a linguagem em parte substituída pelo gesto, pela dança, é uma coisa que toca nas ambições de Serge. Não é isto tentador para os bailarinos?

Serge e Marie consultam-se com um olhar. Michel é simpático, Géraldine influente. Na verdade, o projecto sedu-los. Os bailarinos têm tantas dificuldades em se realizarem... E a televisão tem tanta audiência! Que trampolim! Além disso, sabem que Madame é muito favorável ao projecto. Ela deseja vivamente que Michel escolha os seus intérpretes entre os alunos do Centro: o êxito deles reflectir-se-á na Escola.

Géraldine persiste.

"Oferecemos-lhe um bom papel.

- Serei o par de Marie?

- Claro - garante Michel.

- No fundo, porque não?

- Se você concordar, Marie aceitou fazer testes amanhã de manhã. Sabe, eu podia ter ciúmes porque o seu bailado passa à frente de tudo!. A propósito, vi o ensaio. É bom, muito bom. "

Serge faz uma figa para esconjurar a má sorte. O elogio de Michel deu-lhe um sopro de esperança, tanto mais que Géraldine reforça:

"Se você quiser vir amanhã aos testes, faremos um trabalho duplo. "

Depois, sempre prática, a jovem jornalista põe as coisas a claro:

"Sugiro que vocês fiquem a dormir esta noite em Monte carlo. Assim, já estão no local e poderemos filmar muito cedo. "

Os jovens alegam que têm a lição, a sacrossanta lição a que não querem faltar. Michel dá-lhes a sua palavra de honra: assistirão à lição e a horas.

"Antes das onze horas, teremos ainda muito tempo-precisa ele.

-Então, é sim?"

Última hesitação: é preciso pedir autorização a Madame. Géraldine tratará disso e reservar-lhes-á quartos no hotel.

Definitivamente, esta espécie de intervalo distraiu Serge dos seus problemas mais importantes.

Aquele tipo, Michel, é de facto simpático. Desconfiava um bocado do marquês, mas, no fundo, ele comporta-se com simplicidade. É como eles, jovem, ambicioso, quer tentar a sorte. Sim, como eles. Porquê recusar fazer equipa com ele? Pode-se sempre arriscar, será mais uma experiência.

Quanto a Bill, ouviu o essencial e não perdeu tempo. Resta informar Jo de que podem tentar o rapto logo de seguida.

Mas a noite será comprida. Paciência.

O grupo encontrou-se no snack ao lado do teatro, onde Sarah já se juntara a Florentine.

À medida que Sarah conta aos outros o seu depoimento no comissariado, a inquietação de Marie cresce a olhos vistos.

"É então assim tão grave?

-Não te preocupes -diz Sarah para a tranqüilizar-, eu saí-me bastante bem, mas é um negócio muito sujo: um ajuste de contas entre traficantes de droga.

- Oh! lá! lá! -exclama Florentine -A Mama diz sempre que não temos nada que nos meter nos assuntos dos outros. Minha pobre Marie, devias ter tido tento na língua.

-Seja como for, não se pode deixar assim matar as pessoas sem mais nem menos e ficar-se calado! - objecta Marie.

- Matar, matar... naturalmente era apenas um pequeno correctivo... E se são pessoas indesejáveis, tanto pior para elas. O aborrecido, evidentemente, é a tua infracção. Foi isso que te pôs em pânico. Estás a ver, a Mama diz sempre que nunca nos devemos meter no que não nos diz respeito. "

A lógica de Florentine irrita os outros. Quanto a Sarah, as fotos que lhe mostraram obsidiam-na. Teria Marie reconhecido o homem dos cabelos grisalhos? Marie, consciente também da importância deste pormenor, avalia a alhada em que se meteu; a sua inquietação cresce na medida em que nem sequer ousa manifestá-la.

Serge vem também sentar-se à mesa.

Que é que Marie tem? Está muito pálida: é o medo do público?

E porque é que está sempre a olhar em volta?

Espera alguma coisa? Alguém?

Marie prefere dizer que está com receio do espectáculo. Como confessar a angústia que lhe aperta a garganta? Agora é preciso esquecer aquele estúpido incidente. O espectáculo acima de tudo. Em breve o pano subirá. Em cena estará protegida, sentir-se-á protegida. Sim, protegida, porque pressente a ameaça que paira sobre si. Por muito que o combata, o seu instinto não a engana: Bill e Jo não estarão longe, de sentinela, vigiando o snack.

Lá dentro, a atenção dos clientes é em parte atraída pelo aparelho de televisão, que entretanto transmite o telejornal. Embora as últimas notícias interessem particularmente aos bailarinos, nem por isso dizem menos respeito aos gangsters, que ouvem o rádio dentro do carro.

"Ajuste de contas na cornija..." O comentador resume o que se sabe da agressão.

"Não existe dúvida nenhuma de que se trata dum negócio de droga e dum gang internacional. A jovem bailarina, que esta noite se apresentará na Ópera no espectáculo dos bailados levado a efeito por jovens companhias, teve a presença de espírito necessária para alertar a polícia. Foi interrogada pelo comissário Barnier. No local, os nossos repórteres. "

No écran aparece Sarah saindo da Súreté. Um amálgama de jornalistas rodeia-a. Fotos, perguntas às quais ela se recusa a responder. Que a deixem tranqüila! Tem de regressar à Ópera.

"Iremos aplaudi-la, mas diga-nos qualquer coisa".

Nada, Sarah não dirá nada, e deixa-se docemente conduzir pelo inspector designado para seu guarda-costas.

Os bailarinos olham para esta reportagem como se seguissem um western em que "a sua companheira" fosse a heroína.

Mas, não menos do que Marie, Sarah não pode tomar esta história levianamente. Para mudar de assunto, tenta gracejar.

"Vês Serge, ainda te estou a fazer publicidade!

- Dispenso bem este gênero de publicidade. Não gosto lá muito de chuis! Espero que o teu não venha fazer de ama-seca no meio do bailado, como esta tarde! "

No écran aparece agora o comissário, que enfrenta gentilmente os repórteres à saída do seu gabinete.

"Meus senhores, por agora não sei mais do que vocês. Tudo o que posso dizer é que, se há droga, ainda não lhe pusemos a mão em cima. "

A imagem desapareceu; a locutora prossegue:

"Antes de concluir o telejornal, a nossa rubrica Espectáculo. Géraldine Dupuis entrevistou para nós um dos jovens coreógrafos que esta noite se apresentam na Ópera. "

Os bailarinos aproximam-se um pouco mais do aparelho de televisão. Aparece Serge, em grande plano, no écran. Géraldine interroga-o.

"Serge Laroche, que representa para si a dança?"

Como todos os autênticos bailarinos do mundo, Serge responde num grito vindo do coração:

"O essencial. Uma maneira de viver, de me exprimir.

- Suponhamos que o seu teste é um golpe de mestre e que amanhã lhe oferecem a Ópera de Paris... "

Serge desata a rir:

"Sabe, eu não acredito no Pai Natal. E, além disso, a Ópera não me interessa... Está ultrapassada... Era como se me pedissem que fizesse dançar uma múmia. A mim, o que me tenta é o mundo, as digressões. Dançar por toda a parte, não importa onde, não me fechar numa moldura... Isso é, aliás, o tema do meu balet"

A Ópera comparada a uma múmia! Serge ataca em forte!

Uns riram, outros segredam que ele devia ter tido cuidado com as palavras. Mas as imagens encandeiam-se em seqüência do bailado.

Exótica, Marie invade o écran. Eva múltipla, Eva eterna. Sucessivamente, assume os papéis essenciais da mulher, pelo menos os que surgem como tal aos olhos dos homens.

A fachada iluminada do casino brilha na noite. O público não vai tardar a encher a Ópera. Embora a bonita sala de ouro e púrpura permaneça ainda deserta, a parte viva do teatro já está barulhenta e animada. Dos camarins para os bastidores, do palco para as passadeiras, reina a febre que precede as subidas de pano.

Os grupos preparam-se, cada qual esperando triunfar sobre os outros. O concurso constitui uma espécie de desafio e a motivação artística não exclui o lado desportivo. Que ganhe o melhor!

É preciso contar com o público, com o júri. Mesmo que sejam indulgentes para com a juventude dos concorrentes, mostrar-se-ão implacáveis, sobretudo o público, que não se compadece com considerações profissionais e que, de repente, por paixão, por instinto, recusa ou aceita, permanece de mármore ou aplaude.

Que ganhe o melhor!

Quatro grupos vão concorrer; cada um exprime uma tendência diferente: vanguarda, clássico ou moderno. O ballet de Serge exibir-se-á em segundo lugar.

No camarim que partilha com as suas colegas, Marie serena um pouco.

Ao chegar ao teatro, viu o inspector surgir como que por milagre, mas ele só se interessa por Sarah. Amável, mas firme, pediu para esta ocupar um camarim sozinha, porque seria mais fácil de vigiar que o grande, onde as bailarinas andam num constante vai-e-vem.

"O senhor não vai atrás de mim para o palco! - protestou Sarah.

- Espero não ter de ir tão longe. Mas tenho de zelar pela sua segurança, menina. Lamento incomodá-la com a minha presença, mas, enquanto não deitarmos as mãos aos bandidos, a menina pode. estar em perigo de um momento para o outro.

O prolongado olhar que Sarah troca com Marie chama a atenção do inspector sobre esta última.

Ao ouvi-lo, Marie ficou arrepiada e o seu rosto reflecte uma espécie de terror. Muito simpaticamente, o inspector procura tranqüilizar aquela rapariga que parece inquietar-se tanto com a sorte da amiga.

com ele, Sarah não corre perigo.

"Sarah não corre perigo! "

É a ironia do destino.

Enquanto o inspector se instala no corredor, Sarah desaparece, contrariada, no camarim.

Marie senta-se diante da sua mesa de maquiIhagem; maquinalmente, põe o pó-de-arroz, dilata os olhos, acentua os lábios. Apenas tem um único desejo: entrar em cena para ultrapassar a surda angústia que a atormenta. Não, não tem receio do espectáculo. Esta noite experimenta outra espécie de medo.

A deprimente visão do homem dos cabelos grisalhos não deixa de a importunar. Revê o seu rosto alterado pela raiva e pelo ódio quando, no meio da sua confusão, avançou sobre ele como se o fosse esmagar. Ele quase ficou deitado em cima do capot antes de cair por terra. Durante um horrível segundo, ela viu um homem capaz de tudo...

Marie luta corajosamente contra o medo. Tenta rir de si própria, mas sem convicção. Agora tem a certeza: é preciso dizer a verdade. Fá-lo-á no dia seguinte, e então tanto pior para a infracção, tanto pior para as conseqüências.

Na Ópera reina a animação das noites excepcionais.

Patrocinado por um riquíssimo mecenas que estimulou algumas das mais brilhantes celebridades da dança e das artes, o espectáculo conta-se entre as manifestações a não perder.

A sala está cheia e os repórteres em pé de guerra. Da sala aos bastidores, eles circulam, familiares àqueles sítios. De nada vale uma tabuleta a proibir o acesso pela entrada destinada aos artistas a "qualquer pessoa estranha ao serviço"; o porteiro, resignado, limita-se a deixá-los entrar e sair.

Entre os invasores, um fotógrafo que, aparentemente, não se distingue dos outros: cabeludo, carregado de apetrechos fotográficos. E Bill, que, sob este disfarce, conseguiu penetrar sem dificuldade no teatro. Observa os profissionais, segue-lhes os gestos e tenta imitá-los.

O plano é simples. Encontrar a miúda, a tal Marie Soler, de quem acaba de saber o nome ao examinar as fotografias dos artistas expostas no vestíbulo.

Os artistas nunca se recusam a posar para uma foto da imprensa. Bill vai portanto fotografá-la. Uma fotografia original num enquadramento escolhido. Os terraços do casino, os que dão sobre o mar, são soberbos e estão desertos àquela hora. Jo já ali está escondido.

Mas um profano não se orienta facilmente num teatro...

Bill perde-se, como no coração dum labirinto. Os seus enganos, as suas hesitações, não podem deixar de chamar a atenção sobre si. Já um fotógrafo, dos autênticos, o observou há bocado, com curiosidade. Sob o olhar do outro, Bill tentou manipular a máquina com desenvoltura, o que só fez agravar ainda mais a sua falta de jeito e intrigar ainda mais o "camarada".

Ele ali fica, aflito, num imbróglio de corredores, de escadas, incapaz de se recompor. E de repente, crac! Tem um sobressalto. Um bólide correndo pelas escadas deu-lhe um encontrão e a máquina vai embater brutalmente contra a parede.

"Oh, desculpe... "

Bill reconheceu a espécie de sereia em collant preto que corre fazendo esvoaçar um xaile branco. Uma das raparigas que ele vira no snack, na mesa de Marie.

Arvora um grande sorriso, afagando maquinalmente a máquina.

"Espero não lha ter danificado -disse Florentine muito afável.

- Oh, sabe, é bastante sólida. Já fez a guerra do Vietname", disse Bill para entabular conversa.

Florentine ri:

"Oh, então já não é muito nova! "

A pequena tem um ar simpático, conversador. Bill promete fotografá-la e lança à sorte:

"Diga-me, menina, não se importa de me servir de guia? Deve conhecer aqui toda a gente.

- Conheço sobretudo os meus camaradas, os alunos do Centro, sabe... Para nós é uma grande noite. "

Os alunos do Centro! Muito bem, muito bem. São precisamente esses que interessam ao repórter. Bill gostaria muito de fazer algumas fotos com eles, com as suas vedetas, com aquela jovem bailarina que... que...

"Está-se a referir a Marie? -exclama Florentine, encantada por o ajudar.

- É isso, Marie. "

E eis Florentine, que se lança num panegírico, Marie isto, Marie aquilo. Ela merece o grande papel que Serge lhe confiou. Só ela o podia interpretar.

Bill opina com um ar apaixonado.

O agradável com Florentine é que não é preciso reavivar conversa:

"Por agora", continua a tagarela, "Marie está na sala. bom, ela esconde-se no proscênio que está reservado aos concorrentes e aos seus vigilantes -uma maneira de ver um pouco o que os outros fazem. vou ter com ela. Se quiser vir comigo... "

Bill não podia pedir mais. Segue os passos de Florentine, que circula pelo dédalo como que guiada por um radar.

Passam um estreito corredor, uma porta proibida entre o palco e a sala. E, aí, Bill vê Marie, acaçapada ao fundo do camarote.

Nessa altura, no palco, os bailarinos evolucionam num bailado cujo propósito permanece hermético, embora se pretenda elevar, segundo as tendências de coreógrafos demasiado jovens, às alturas filosóficas e metafísicas. Mas os bailarinos têm um pouco de Platão.

Florentine esgueirou-se na penumbra do camarote. Puxa Marie pela mão, segredando-lhe que venha. Que é que se passa? Um fotógrafo. Pergunta por ela.

Sem ruído, para não perturbar, Marie sai pela porta entreaberta e encontra-se em face do gangster. Como suspeitar dele? Ele parece-se

com toda a gente, e sobretudo com um fotógrafo, com a sua aparelhagem profissional. Aquele é simpático, delicado, agradece-lhe; fala-se muito dela... Se ela não se importasse... Gostaria muito de "fintar" os camaradas e de efectuar os primeiros clichês.

"Vamos a isso -disse Marie, fazendo uma pose.

- Oh, não, aqui, não... Seria demasiado banal. Quero um cenário, um ambiente. Situá-la no enquadramento de Monte carlo e da Ópera. Já fixei um ângulo, lá fora...

- Lá fora! Mas não tenho tempo de ir lá fora.

- Bastarão apenas cinco minutos, no terraço. O mar ao fundo, as balaustradas, que cenário! Um clichê que não se parecerá com os dos outros. E sabe, faço a cobertura de todas as agências noticiosas!

- Oh, vamos! - insiste Florentine. -As fotografias são importantes. Nunca se recusam. "

Se Bill fosse capaz de manifestar ternura, teria beijado aquela aliada providencial, aquela inocente que abona a seu favor. E Marie aceita.

"Vem comigo -diz ela a Florentine.

- Já és suficientemente crescida, não achas? Eu espero por ti."

E voltando-se para Bill: "Só cinco minutos, está bem?

- Dou-lhe a minha palavra", jura o gangster, que já se vê a atingir o seu objectivo.

Atrás de Marie, retoma a estreita passagem, a porta proibida. Mas para chegar à saída dos artistas ainda terá de atravessar um estúdio de ensaio. Um local, com barras que correm ao longo das paredes, um piano metido num ângulo e que parece flutuar à deriva e, a toda a volta, uma galeria que encima a sala, cheia de adereços de cena, de lustres, uma arrumação, uma espécie de cafarnaum.

Em frente do grande espelho, uma rapariga esforça-se para atingir a perfeição, com um livro na mão. É Véronique, uma das declamadoras do bailado de Çerge. Tem "falhas de memória". O pânico, para um intérprete que vai dentro de pouco tempo entrar em cena.

Assim que viu Marie, precipita-se para ela.

"Oh, vens mesmo a calhar. Sê gentil: ajuda-me a repetir o meu texto; visto que já estás pronta. "

Bill dissimula a irritação esboçando um sorriso e agarra Marie por um braço para a arrastar. Mas a familiaridade do gesto não agrada a Marie.

"Um momento, se faz favor", diz-lhe ela friamente.

Depois explica a Véronique que primeiro tem de ir deixar-se fotografar.

A declamadora apressa-se a agarrá-la:

"Fazes isso depois, Marie, por favor; é como se tivesse um buraco aqui. "

E bate na testa com força.

Bill resigna-se; Marie não o seguirá imediatamente. Primeiro que tudo, o seu ballet. Ah! aqueles bailarinos! E, como não consegue dominar a impaciência que o assola, Véronique riposta, indignada:

"Vê-se bem que não é o senhor que se arrisca a afogar-se daqui a pouco em cena!

- Ela tem razão - recomeça Marie. -Nós estamos a trabalhar.

- E eu, julga que ando a divertir-me?", replica Bill, sem se conter.

Depois recompõe-se:

"Bem, bem, está bem... Eu espero, mas insisto na minha foto no exterior. Preparei tudo para isso. "

Marie pegou no texto para, na eventualidade, o assoprar a Véronique: Esta recita-o em grande velocidade, como as crianças que querem dizer uma lição de cor, sem a compreender.

"Vai menos depressa, não se distingue uma palavra do que dizes, não é verdade?"

Marie dirige este "não é verdade" a Bill, tomando-o como testemunha, como a um vulgar espectador.

É verdade, não se percebe nada, mas Bill está-se nas tintas. Ele estrangularia de boa vontade as duas raparigas!

Contudo, finge interessar-se em alinhar no jogo.

"Recomeça nos tambores", diz Marie.

Véronique obedece.

"Os tambores batem,

Os homens batem-se,

Eles sobem... eles sobem. "

Verónique pára de novo, perdida. Marie assopra-lhe:

"Ao assalto,

Eles sobem ao assalto;

Eis de novo o pássaro... "

E novamente a perda de memória:

"O pássaro, o pássaro... "

Marie assopra mais uma vez:

"O pássaro sem fronteiras,

O pássaro sem fronteiras...

O pássaro sem grades", repete Véronique.

Um novo personagem, Serge, veio assistir a este ensaio catastrófico. Para Bill, ele não passa do rapaz da moto, mas o rapaz fala como mestre e repreende a sua declamadora:

"Vais muito depressa. Não tens tempo de pensar. Reflecte e fala depois, é assim que se adquire memória.

-Se julgas que é divertido para um bailarino falar em cena!

- Na nossa época, um bailarino deve saber fazer de tudo. Porque é que não seria capaz de falar? Julgas-te em 1900?"

Tirando partido da invectiva -não desagradável-; Bill, discretamente, convida Marie a segui-lo. Arvora um sorriso atraente:

"Vamos! "

Mas Serge recusa imediatamente. Não é a altura de ir fazer fotografias. Vão antes "desenferrujar-se" fazendo alguns exercícios. E depois é preciso concentrar-se, não se dança "a frio".

Dócil, Marie obedece. Serge tem razão. Contudo, com a maior das gentilezas, murmura ao gangster:

"Daqui a bocado. Logo a seguir ao bailado, irei consigo. Dar-lhe-ei a prioridade. "

E dedica-lhe um sorriso cheio de promessas, ao qual Bill procura corresponder, quando a encantadora e intocável criatura lhe inspira desejos de assassínio.

O pequeno grupo de Serge invadiu o estúdio. Todos estão prontos, vestidos, maquilhados, Lynn tal como os outros.

Sarah junta-se a eles, mas o inspector não a larga uma polegada e a sua presença desperta a desconfiança do gangster.

O tipo que acompanha aquela rapariga é de certeza um chui. A sua calma, o seu aspecto "demasiado polido para ser honesto", testemunham-no suficientemente, pensa o bandido sem um laivo de humor. É melhor dar o salto.

Enquanto o inspector se coloca de sentinela ao lado da porta, depois de ter lançado uma olhadela circular pelo camarim, Bill esquiva-se discretamente.

Simulando escolher ângulos para fazer fotografias foi alcançando a escada que vai dar à galeria, um local atulhado de coisas e estranho que pode servir de esconderijo e de posto de observação.

Antes de tomarem lugar na barra, Marie tem um breve conciliábulo, ao qual Florentine acrescenta a sua pitada de sal, mistura de lógica e de absurdo.

As três juntaram-se nos degraus da escada, a alguns passos de Bill, dissimulado atrás dum velho adereço de cenário em tela pintada. Ali, vai apanhar o essencial da conversa. Uma conversa reveladora, que confirma as suas suspeitas.

A perpétua presença do polícia perturba Marie e, consequentemente, volta a mergulhá-la na aventura que gostaria de relegar para o último plano das suas preocupações.

Esqueceu-se de contar a Sarah um pormenor que julga agora importante, depois de ter ouvido a entrevista do comissário na televisão: a maleta atirada por Florence.

"É isso, a droga! -exclama Florentine. - É preciso que o digas ao teu guarda-costas, Sarah. Sobretudo porque o comissário te interrogou.

- Mas eu disse que não tinha dado por nada...

- Oh, há pormenores que se esquecem momentaneamente e que depois voltam. A memória é assim.

- Florentine tem razão. Valia mais que lhe dissesses -recomeça Marie. - Quando voltarmos esta noite a Cannes, mostro-te o sítio; assim, a polícia verá que não estás a mentir. "

Bill já sabe o suficiente - precisamente o que queria. A vítima transportava então a droga e desembaraçara-se dela. Vão encontrar a maleta antes da polícia, graças a Marie. A única e verdadeira testemunha de que a polícia não se ocupa.

Prevenir Jo.

Dentro duma hora, o assunto estar-lhes-á no papo e a bailarina raptada. Nessa altura será bem necessário que ela fale, que indique o local onde Florence lançou a droga para que a possam recuperar.

Aquela maleta constitui simultaneamente uma prova de crime e uma verdadeira fortuna. Têm de a apanhar antes da polícia. Bill continua sem perceber porque é que Marie se serve da amiga como intermediária. Que importa! Tem mais que fazer.

Bill prepara-se portanto para sair dali e ir ter com Jo.

Penetrando pela porta que dá para a galeria e para onde Bill se dirige, um fotógrafo faz a sua entrada como conhecedor absoluto daquelas paragens. Julgando, evidentemente, tratar-se dum camarada, declara a Bill:

"Você é como eu, hem! Conhece bem os cantos à casa. "

Efectivamente, a galeria, com o seu bricabraque heterogêneo que encima a sala onde os jovens bailarinos fazem exercícios de treino, oferece possibilidades de imagens insólitas, de ângulos fora do vulgar.

Não sabendo que atitude tomar, Bill imita o "camarada" e finge procurar "ângulos". com uma mão, segura na máquina, que traz suspensa do pescoço, à maneira dos repórteres, com a outra segura no flash. Crac! Como ignora o seu manuseamento, desencandeia uma série de clarões sob o olhar trocista do profissional.

"Não quer que lhe dê uma ajudinha?", propõe o fotógrafo a Bill, aproximando-se.

Nesse instante, o seu olhar cai sobre o aparelho do "colega".

"Dá-me licença? Julgo que é melhor assim..." E põe a direito o aparelho, que Bill segurava ao contrário...

Preferindo sair dali sem procurar fingir mais, Bill balbucia uma frase ininteligível, enquanto o profissional franze o sobrolho, cada vez mais admirado:

"Que tipo esquisito! "

Bill tem de alcançar a saída custe o que custar. No patamar, hesita: subir ou descer? Se se lança pelos andares, arrisca-se a perder-se no dédalo do teatro. É melhor descer. Mas na escada, onde se mete com prudência, é rapidamente alcançado pelo fotógrafo, que já fez os seus clichês e que o olha, cada vez mais intrigado com o seu comportamento.

E no patamar, com as mãos nos bolsos, negligentemente apoiado à parede: o chui.

Pirar-se o mais depressa possível... O gangster mistura-se por entre o pessoal que se atarefa nos bastidores. Mais dois andares. Está salvo.

Por seu lado, ao mesmo tempo que prepara a sua reportagem, o fotógrafo continua a seguir com o olhar o seu invulgar camarada.

Distraído, dá um encontrão no comissário e desculpa-se dizendo:

"Sempre gostava de saber para quem é que aquele trabalha!

-Para quem ele trabalha?-pergunta o inspector maquinalmente.

- Sim, para que agência. Não só opera com a máquina ao contrário, como esta nem sequer está carregada! "

O inspector teve um sobressalto. A silhueta de Bill, apenas entrevista, já desapareceu. No estúdio, Sarah, rodeada pelos colegas, por agora não corre nenhum perigo. Pelo sim, pelo não, o inspector corre pelas escadas, encontra-se no vestíbulo.

A saída?

A porta fechou-se. O inspector abre-a, perscruta a noite em vão. Bill volatizou-se. O inspector interroga o porteiro: "Não viu passar ninguém?

- Sim, há bocadinho, um fotógrafo que saiu a correr. Mas eles andam sempre a correr, os fotógrafos. E, além disso, esta noite entram aqui como num moinho. Ninguém respeita as ordens."

As ordens!

O polícia que secunda o inspector surgiu como que por encanto. O seu superior dá-lhe breves ordens: é necessário fechar as portas, exigir os cartões da imprensa e pedir reforço ao comissariado. Foi assinalado um indivíduo duvidoso.

Bill escapuliu-se através das matas que rodeiam a esplanada a prumo sobre o mar como uma imensa varanda.

De noite, o terraço está deserto. A vida concentrou-se no centro da cidade, junto das luzes. Bares e casinos, palácios e boutiques, brilham com deslumbramento. Deste lado, nada. Apenas surgiu uma silhueta na entrada dos artistas -o chui, evidentemente- e voltou a entrar no teatro, com certeza para alertar o seu quartel-general.

Enquanto isto, Bill junta-se ao cúmplice, mete-se no D. S. Ninguém o seguiu. Ainda podem estar tranqüilos.

Furioso, o bandido desembaraça-se do absurdo disfarce. Atira a máquina fotográfica para o banco de trás, ao mesmo tempo que profere um insulto. Por causa daquele objecto, daquela caixa imbecil, deu perigosamente nas vistas. Atirado de esguelha, o aparelho parece focar o gangster com a sua grossa lente, que brilha como um estranho olho.

Ele confessa:

"Fui detectado por um colega. A verdade é que eu tinha o aspecto dum sino com este material. Neste ofício é preciso saber fazer de tudo! "

Jo resmunga:

"Toda a gente é capaz de tirar uma fotografia, cos diabos! "

Bill encolhe os ombros. Sempre gostaria de ver o cúmplice manipular a máquina como um ás do clichê e do flash.

Mas não vale a pena ter discussões inúteis! Agora, trata-se de estabelecer um plano. Está fora de questão tentar o rapto nas proximidades do teatro, com a iminente chegada dos reforços da polícia. É melhor afastarem-se.

Esta noite, a pequena vai dormir em Monte carlo. Deitar-lhe-ão a mão depois do espectáculo, correndo o mínimo de riscos, visto que é a outra rapariga que interessa aos polícias. Uma sorte!

Suavemente, Jo manobra o D. S. para deixar as matas e alcançar o parque de estacionamento, do outro lado do teatro. O Méhari ainda lá está. De certeza que depois do espectáculo a testemunha lhe pegará de novo. Bastará segui-lo.

De qualquer maneira, Bill não se enganou. Uma discreta animação começa a manifestar-se à volta da Ópera. Silhuetas que, a despeito da sua inofensiva aparência, despertam a desconfiança dos malfeitores.

Nenhuma dúvida: o alerta foi dado, a vigilância é reforçada.

O pequeno grupo de Serge suplantou-se. Quando o pano cai sobre o último quadro, o público é pródigo em aplausos. Um verdadeiro sucesso.

Rodeada de Serge e de Lynn, Marie resplandece de alegria. Esqueceu por completo as suas preocupações. Infantílidades, pecadilhos sem importância. A felicidade que experimenta naquele momento "tudo supera: está ali, no coração do palco, no coração do êxito, diante do público conquistado e que saúdam como se o quisessem beijar. Uma felicidade próxima da euforia, recompensadora dos esforços feitos.

Os bailarinos dançaram bem e a sala "marchou", segundo a linguagem do teatro. Parece um feliz encontro, uma descoberta recíproca, um pacto de aliança. O orgulho de Marie só se iguala ao de Serge, o mestre do bailado.

Entre o subir e o descer do pano, durante os aplausos, os espectadores da primeira hora, técnicos, maquinistas, trocam olhares satisfeitos. Este êxito, haviam-no pressentido: as gentes do ofício sabem reconhecer o verdadeiro talento e alegram-se ao vê-lo aplaudido pelo público.

O êxito de Serge também é o êxito da Escola.

Na sala, Madame e o seu estado-maior exultam. Quanto a Michel e a Géraldine, também presentes, a aprovação geral confirma-lhes a sua escolha: Serge e Marie são os intérpretes ideais para o projecto de ambos.

Madame deu o seu consentimento para os testes do dia seguinte. Os "pequenos" podem passar ali a noite. Géraldine ocupou-se da reserva dos quartos no hotel e Michel conduzi-los-á ao Centro antes do meio-dia, assim que tiverem terminado as filmagens.

Aproveitando o intervalo, Michel dirige-se para os bastidores. A porta de comunicação entre a sala e o palco foi aferrolhada. Não se pode passar sem o controle do agente. São as ordens.

Michel apresenta os seus documentos de identificação cérbero, enquanto procura estabelecer conversa. É amigo dos bailarinos, o primo de Sarah Green. Que perguntem ao inspector.

Efectivamente, o inspector, que encontrou o rapaz na companhia de Sarah e conhece as suas actividades, dá ordem para o deixarem passar. Michel está intrigado. Gostaria de saber mais qualquer coisa. Porque é que a vigilância se tornou tão severa? Novidades?...

O inspector mostra-se bastante lacônico, mas as suas poucas explicações bastam para despertar a inquietação do rapaz. Assim fica a saber da intrusão de Bill no teatro: um fotógrafo que, segundo os profissionais, não é com certeza da classe.

Michel foi encontrar os bailarinos no salão. Felicitações, cumprimentos. À volta deles reina a desordem e o barulho que se sucedem às representações bem sucedidas. Fotos, entrevistas, o pequeno grupo vai ter lugar de honra. Marie resplandece.

Contudo, Michel não participa na alegria geral. Olha em volta, como que para despistar um inimigo desconhecido, como se quisesse surpreender o "suspeito" de que a polícia desconfia. Mas, aparentemente, tudo se passa no melhor dos mundos.

Terminado o intervalo, o espectáculo prossegue. O inspector continua presente, o mais discretamente possível, e, embora revele uma firmeza neutra e descontraída, não abranda a sua vigilância.

Então, Michel pressiona Marie e Sarah. Queria falar-lhes sem testemunhas.

"Vamos para o meu camarim", propõe Sarah, "lá estaremos sossegados. "

Seguida de Michel e de Marie, Sarah dirige-se para o camarim. O inspector fecha o cortejo. Mas, chegados à entrada, gentilmente irônica, Sarah pede ao seu protector que fique à porta: seja como for, tem todo o direito de receber os amigos, de mudar de traje.

O inspector aquiesceu e contenta-se em ficar de vela no corredor deserto.

Surge uma silhueta, que passa na sua frente e se volta antes de chegar à porta. É Florentine. Sorriso malicioso:

"O senhor dá-me licença?"

Sem que tenha tido tempo para responder, já ela bateu com a porta. Inofensiva, esta pequena bailarina. O inspector contenta-se em sorrir.

Lá dentro há um conciliábulo. Michel já não prodigaliza cumprimentos a Marie, mas conselhos. Que se ponha em guarda! A constante presença do polícia revela um perigo real. Pior, a troca das raparigas e a mentira que despista os polícias deixam Marie sem defesa.

Michel tenta convencer as duas raparigas:

"Pensem bem: Sarah não arrisca nada, mas Marie! É a si, Marie, que era preciso proteger, porque os gangsters não são parvos. Eles viram -na a si... Conhecem-na.

- Você é que devia servir-lhe de guarda-costas! ", replica Florentine. "De gorila privado! "

Servir de guarda-costas a Marie, devagarinho. Florentine lançou aquilo como um gracejo; ela obstina-se em considerar a aventura como um formidável jogo de polícias e ladrões, onde se divertem a tremer de medo.

Michel pergunta a Marie:

"Que é que conta fazer?"

com os olhos brilhantes, ainda animada pelo milagre do palco, ela suplica, desarmante:

"Não me vá estragar a noite com esta história dos bandidos! Para medo, já basta! O ballet "marchou" bem: é o principal. Amanhã...

- Que é que tenciona fazer amanhã?" Marie tem um sorriso irresistível:

"Em primeiro lugar, tenho os testes consigo, conforme me pediu. E depois, ao voltar de Monte carlo, mostrarei a Sarah o local.

-O local?"

Michel, que não está ao corrente de tudo, não pode compreender. Marie explica:

"O local onde se deve encontrar a maleta que a polícia procura. A prova-crime, sem dúvida! Sei onde a mulher a lançou.

- E não o disse logo?

- Sim, a Sarah. Ela vai encarregar-se de informar o inspector. Na altura, não dei muita importância a esse pormenor. Passou-se tudo tão depressa! "

Michel teima:

-Era melhor confessar a verdade, e imediatamente. "

Mas as raparigas estão resolvidas a insistir na mentira.

Esta noite, o êxito dá-lhes um bocado volta ao miolo. O essencial das suas vidas - a dança está em primeiro plano, com esplendor. Um esplendor que anula as sombras. Sim, têm tempo. Amanhã, Sarah poderá continuar a brincar às testemunhas.

"E se for demasiado tarde?"

Marie estende a mão a Michel num gesto espontâneo de confiança. A presença do jovem, a inquietação que manifesta por si, fazem aumentar, se bem que ela se defenda disso, a felicidade que experimenta naquele momento. Sente-se estranhamente perturbada pelo jovem repentinamente reaparecido na sua vida, o intruso com quem, por vezes, sonhou. contra vontade.

De novo, Marie acha que Michel é infinitamente sedutor, tal como o descobriu quando daquela noite memorável - uma noite da qual quis rejeitar os sortilégios para apenas conservar uma certa amargura. A noiva improvisada! Como se o amor se pudesse improvisar! Ludíbrio...

Perante o optimismo das raparigas, Michel teve de se resignar. De qualquer maneira, por aquela noite, não parece que haja perigo. As três raparigas vão dirigir-se ao camarim comum e Michel irá ter com Géraldine. Ele preferia acompanhar Marie ao hotel, mas Sarah dissuade-o: o inspector vai escoltá-las, o que fará que ambas fiquem bem guardadas. Vão passar uma boa noite, vigiadas por aquele anjo da guarda. Amanhã de manhã, fresca e repousada, Marie poderá enfrentar a câmara.

O espectáculo terminou. O júri deliberará e os resultados só serão conhecidos no dia seguinte. Mas Serge já foi apontado pelos zunzuns no corredor: para ele, "está no papo". Pode dormir sossegado sonhando com as suas futuras criações. O seu bailado, as suas invenções, eliminaram os concorrentes. Revelou-se um coreógrafo, um bailarino, que tem algo a dizer e que o sabe exprimir.

Serge não se deixa toldar com o triunfo; está calmo, lúcido. No meio da euforia geral, continua sério e feliz e pode crer que o futuro lhe pertence. A sua primeira tentativa, os seus "primeiros passos", ficarão assinalados com uma cruz branca. Um bom trampolim para quem se quer afirmar, triunfar.

E Serge, o jovem de coração fiel, considera a sua vitória como a coroação, digamos, da amizade, visto que Marie lhe está associada. Marie, sua amiga de infância, sua amiga de sempre. A grande escolha das suas vidas concretiza-se, esta noite, pelo primeiro êxito conseguido em comum.

Em comum, o trabalho, a dança, a paixão partilhada, mais importantes aos olhos do jovem do que as contingências e as servitudes da existência. Um ponto comum, indestrutível.

Pelo menos, é o que ele julga.

Marie também poderá dormir tranqüila. O concerto dos bravos e dos elogios embalá-la-á. Desta vez não falhou e os cumprimentos de Madame são-lhe duplamente mais preciosos. Madame, que vai de um ao outro com um sorriso de rapariga, o sorriso do coração: cumpriu bem a sua tarefa. Pode-se sentir orgulhosa dos "seus filhos".

Em frente do teatro, já com as luzes apagadas, o grupo dispersa-se. Os outros bailarinos do Centro tomarão o autocarro para voltarem a Cannes, enquanto Serge, Sarah e Marie vão para o Hotel Bellevue, onde passarão a noite.

Serge salta para a moto. As raparigas metem-se no Méhari, mas, claro, é Sarah quem se senta ao volante.

Michel assiste à partida. Viu, confiante, a silhueta do inspector perfilar-se atrás das raparigas.

Como Sarah se prepara para arrancar, o inspector pousa a mão na porta:

"Dão-me licença?"

Sarah sorri:

"Não tenho outro remédio, mas há uma alteração no programa. Não regressamos ao Centro, ficamos em Monte carlo.

- Eu sei. "

Sarah graceja:

"Concorda em que passe a noite aqui?"

Taco a taco, simpático e trocista, o inspector replica:

"Aqui ou noutro sítio, desde que esteja comigo. "

As raparigas desatam a rir. O inspector senta-se atrás delas. Decididamente, respira-se um ambiente de bom humor.

Nem toda a gente é dessa opinião. "Ele não as vai largar", resmunga Jo. -Um autêntico papa mimalho", troça Bill, rangendo os dentes.

Emboscados no D. S. seguros com as informações recolhidas por Bill, os caçadores aguardaram pacientemente até ao fim daquilo a que eles chamam "o circo", isto é a ópera. Terminado o espectáculo, viram os artistas dispersar-se. E espiaram a sua presa.

Tal como os outros, Marie saiu finalmente do teatro. Os bailarinos, pouco apressados em se irem deitar, conversam, brincam, abraçam-se. Uma verdadeira recreação que chateia os gangsters ao mais alto nível. Eles não estão ali para rir e queriam realizar a sua tarefa o mais depressa possível.

Viram o Méhari. - Esperam o momento em que a rapariga se instale no carro, porque continuam a julgar que este lhe pertence.

Mas eis que a outra rapariga se dirige para o Méhari, seguida pelo agente, que não a larga um centímetro! Mau...

Contudo, não. podem abandonar a pista. Prudentes, mantendo-se a boa distância, os gangsters espiam, e desta vez é Sarah quem conduz.

Diante do teatro, o autocarro do Centro espera os bailarinos, enquanto, não longe, Michel conversa com Géraldine. Pouco depois, esta põe-se a andar para o jornal, a fim de redigir um artigo. O êxito alcançado por Serge e Marie merece que se fale dele. O jovem casal foi a vedeta naquela noite: é preciso tirar partido disso.

"Malhemos no ferro enquanto está quente", disse Géraldine. Sempre prática, está encantada por montar o espectáculo como deve ser, porque, aos seus olhos, a publicidade é indissociável do êxito e pode servir o folhetim, se Serge e Marie o vão interpretar.

Assim que Géraldine se afastou, Florentine, que se preparava para subir para o autocarro, viu Michel e foi ter com ele, como se fosse a coisa mais natural deste mundo.

Quando ele vai a entrar no carro, Florentine sente necessidade de tagarelar ainda mais um bocado.

"Você parte sozinho! Não acompanhou Marie!

- Ela está em boas mãos. Entre Sarah e o guarda-costas.

-Preferia ter ficado com ela. Agradava-me passar a noite aqui... Então continua a não me querer para o seu filme?

Demasiado nova, bebê.

- É pena! E um pequenino papel?

- Talvez, se se portar com juízo.

- Não tenho de fazer testes?

- Para um pequenino papel, não vale a pena.

- Gostava tanto de fazer um filme! Mas você quem quer é Marie, é Marie que tem metida na cabeça... "

Um clarão de magnésio interrompe Florentine. Um repórter acaba de fotografar o pequeno grupo que Suzanne Leroy a custo reúne à sua volta.

Nunca se tem sono a meio da noite, quando se acaba de viver a experiência do palco: insólita, apaixonante, colorida. Uma experiência que se prolonga -com os nervos ao rubro, com o sangue num ritmo acelerado. É mais por isso que Florentine tem vontade de tagarelar, de se demorar um pouco mais.

Justamente, eis que ainda tiram fotografias junto do autocarro, no qual os bailarinos se engolfam contrariados.

"Oh! fotos! Desculpe, vou para ali! ", disse a rapariga a Michel.

Recompondo-se, acrescenta antes de desandar:

"A propósito, você não viu o fotógrafo de Marie?"

Michel, a quem a tagarelice da jovem aborrecia, apurou o ouvido: "Qual fotógrafo?

-Ah, é verdade, você não estava lá. Um fotógrafo que só se interessava por Marie, como você. Ela causa sucesso, Marie! "

Michel encolhe os ombros. As palavras do inspector voltam-lhe à memória: "Um suspeito... Um fotógrafo que não era fotógrafo... "

Retém Florentine pela mão:

"Pode-me descrever esse homem?

- Era cômico... Os fotógrafos são sempre cômicos. É esquisito que tenha apostado tudo em Marie... Se o tivesse visto: não a largava um segundo. Parecia que ia fazer a foto do século! E com pressa, antes do espectáculo... Foi preciso que Serge o mandasse passear. Mas Marie, por gentileza, prometeu-lhe prestar-se a fazer as fotografias como ele pretendia.

- Quê? Que é que ele pretendia?"

O tom de Michel surpreendeu Florentine.

"Não se enerve.

-Como era ele?

-Já me perguntou isso. Como toda a gente... Cabelos compridos, bigodes... simpático, mas, repito-o, muito cômico com a sua máquina, uma grande caixa quadrada que lhe balouçava no peito, saltitando. O teatro, os bastidores, nada disso lhe interessava. Ele queria fazer as fotografias aqui fora, no exterior. "

Michel já não a ouve. Já tomou uma decisão: ir imediatamente ter com Marie. A presença do inspector, escarnecido pelas raparigas, já não lhe parece suficiente. É preciso agir depressa, confessar a verdade. O seu instinto não o pode enganar.

Mais do que nunca, Marie está em perigo.

Afastado da cidade, o Hotel Bellevue, tal como o seu nome indica, ocupa uma situação privilegiada. com o seu belo jardim, com terraços em sucessivos andares, domina o mar, que vem embater no emaranhado das rochas selvagens.

Tranqüilidade, silêncio. O porteiro da noite dormita.

Sarah arrumou o carro diante do hotel e, seguidas pelo inspector, as raparigas apresentam-se na recepção.

É exacto, foi reservado um quarto para elas, outro para Serge; e, por momentos, o porteiro julga ser este o companheiro que escolta as raparigas.

O inspector desengana-o. Discretamente, exibe o cartão, e o porteiro inclina-se, surpreendido. A presença da polícia, ali, naquela noite, não estava prevista.

Como o porteiro manifestasse um movimento de curiosidade e de inquietação, o inspector tranqüiliza-o: ele ocupa-se dos jovens clientes.

Certo, está tudo em ordem. Elas têm apenas de apresentar os seus documentos e preencher as fichas. Nada mais fácil.

Não para Marie, que de repente se lembra de que deixou a carteira no Méhari. As peripécias do dia fizeram-na esquecer-se deste pormenor. Não tem importância, um momento, ela vai buscá-la! Enquanto Sarah preenche conscienciosamente a sua ficha, sob o olhar protector do polícia, Marie mergulha na noite.

Àquela hora tardia, os contornos do hotel estão iluminados só o estritamente necessário. Marie tem apenas de dar alguns passos para chegar ao carro, estacionado no escuro contra uma mata de loureiros.

Sem hesitar, Marie inclina-se para o interior do carro. Tem a certeza de que vai encontrar a carteira, arrumada no porta-luvas. Mas uma sombra salta sobre ela. Uma mão abate-se-lhe sobre a boca, ao mesmo tempo que se sente puxada, arrastada, quase levada.

Marie debate-se, escapa-se...

Só dá três passos e é selvaticamente agarrada. Vindo prestar auxílio ao agressor da noite surge uma outra silhueta. Penetrando no parque de estacionamento, um carro de súbito chegando lança os seus faróis sobre eles.

Na luz ofuscante, Marie consegue ver o homem da estrada, o homem dos cabelos grisalhos; rapidamente dominada, meio sufocada pelas mãos de ferro, é atirada para o banco traseiro dum D. S. ali estacionado. Já Jo retomou o volante. Bill segura Marie, ameaçando-a com uma voz surda.

O rapto durou apenas alguns segundos...

Nesse mesmo instante, Michel chega diante do hotel e precipita-se para intervir. Quando o D. S. avança sobre si, com os faróis todos apagados, só lhe resta encostar-se à parede.

Assim que o carro passou, o jovem recompôs-se, logo chamando por auxílio. O mandarete, que esperava o regresso de Marie, compreendeu a situação. Os gritos de Michel, as manobras brutais dos gangsters, chamaram a sua atenção e na intensa luz dos faróis viu a rapariga agarrada pelos bandidos.

O mandarete acorreu, por sua vez, enquanto Michel volta, a entrar para o carro para se lançar no encalço do D, S. Sobre o saibro do pátio, o empregado apanha uma carteira.

Prevenido pelo mandarete, o porteiro informa imediatamente Sarah: acabam de raptar a amiga. Desta vez, não valia a pena mentir.

Assim que Sarah, aterrada, confessa a artimanha, o inspector não tem tempo para mostrar o seu espanto... O quê? Aquelas encantadoras miúdas estiveram a fazer troça de toda a gente, fazendo correr o risco de que falhasse um assunto daquela importância? E, pior ainda, jogando com um perigo que nada tinha de imaginário?!

O comissário, a Süreté... É preciso pôr todos os serviços de alerta e dar o sinal de combate às equipas de vigilância. O telefone é a única arma do inspector. Este não o larga e os telefonistas transmitem sem descanso os apelos e as informações.

A caça vai organizar-se, mas o inspector tem diante de si uma rapariga derrotada, desesperada, que repete o que sabe, o que só devia revelar no dia seguinte.

Em breve as patrulhas devassam as estradas, estabelecem barragens, controlos.

Prostrada no seu quarto, sob o olhar apiedado do porteiro e do mandarete, Sarah espera.

Apesar do rosto inexpressivo que o inspector voluntariamente revela, Sarah pressente a sua reprovação, mesmo não lhe fazendo recrimina ções. Uma única coisa conta: apanhar os bandidos e o refém.

Para a polícia, não há qualquer dúvida: os gangsters vão obrigar a infeliz rapariga a indicar-lhes o local para onde Florence atirou a maleta. Depois... Ameaças, violências, pior ainda, talvez?

Se já cometeram um crime, porque hesitariam em cometer outro? As contas que têm de prestar à polícia são tão pesadas que jogarão tudo por tudo.

Mais ainda que a sua captura, é a vida de Marie que importa.

No D. S. Marie energicamente segura por Bill, está gelada de medo. Posta em posição de responder, consegue a custo murmurar:

"Foi depois do segundo túnel. Antes do posto de gasolina... "

Jo preveniu-a:

"Lembra-te bem: tens todo o interesse em não te enganares! Já não temos muito tempo. "

O D. S. avança na noite. Marie vai refazer o percurso do pesadelo, um pesadelo ainda mais terrível porque, desta vez, é ela que se arrisca a ser vítima.

Tal como os polícias, Michel pensou que os raptores, servindo-se de Marie, iam tentar recuperar a maleta perdida. Alguns quilos de droga, com certeza uma fortuna! Mas também, e sobretudo, há o filão que pode conduzir à organização do tráfico.

Depois de ter compreendido que o mandarete daria o alarme, Michel, ao volante do seu carro, só tem uma idéia: socorrer Marie. Guia como um louco, correndo toda a espécie de riscos.

Entretanto, o D. S. ultrapassou o posto de gasolina.

"Então?", pergunta Bill com brutalidade.

Resignada, Marie olha na noite. A seu pedido, Jo abranda o andamento, a fim de que ela possa fazer a localização.

À sua esquerda, a imensidão, aquele vazio obscuro onde, de longe, se iluminam alguns reflexos: o mar. À direita, a montanha talhada onde a estrada se incrusta e serpenteia, localizada entre os cumes e os precipícios.

Na luz dos faróis surge, ainda longe, a entrada do túnel.

"Então?", repete Bill com um gesto ameaçador.

Marie reconheceu a clareira preparada para estacionar que encima a ravina.

Foi ali que os gangsters deitaram a mão à desconhecida e lhe bateram cruelmente. Foi ali que Marie gravou, no espaço dum segundo, o rosto implacável de Jo.

Essa razão por que ele graceja, voltando-se para ela:

"Lembras-te? Foi ali que nos encontrámos pela primeira vez! Bem, e aconselho-te a perder a memória. Nunca me viste, percebes? Nunca... "

O D. S. abrandou mais um pouco.

"Foi aqui- disse Marie, com a voz abafada.

- Tens a certeza?

- Sim. "

Jo arrumou o carro na berma da estrada. Apagou as luzes todas, e os dois homens arrastaram Marie.

"Mostra-nos. "

Hesitando, ela procura, A penumbra modifica o local, que viu em pleno dia. Ainda por cima, a sua angústia impede-a de se concentrar, de reconstituir as suas lembranças. Mas a pouco e pouco consegue dominar-se e indica aos bandidos um ponto da ravina.

Obrigando Marie a segui-los, os gangsters saltaram o parapeito; do outro lado, rochas e matas rolam para o abismo.

Marie bem tentou fugir, mas depressa Bill a alcançou.

"Obriga-a a estar quietinha! ", ordenou Jo.

Sem hesitar, Bill mostrou um revólver. Que não se mexa, senão...

com uma lanterna na mão, Jo pesquisa a ravina. A espera parece interminável a Marie. Já não ousa mexer-se. Bill mantém-na constantemente sob a sua ameaça.

Por sua vez, na cornija, Michel abrandou a velocidade.

Àquela hora da noite, apenas circulam alguns carros e, aconteça o que acontecer, o jovem não pode contar com o eventual auxílio dos respectivos condutores. Quanto à polícia, deve estar prevenida, mas ainda precisa de se lançar numa boa pista. E daqui até lá!...

Por sua vez, Michel ultrapassou a bomba de gasolina. A sua atenção redobra. Segundo as indicações fornecidas por Marie, o drama desenrolou-se naquelas imediações.

O primeiro túnel, a estrada, quilômetros... Na luz dos faróis, Michel entrevê um outro túnel. Depois, à esquerda, distingue uma superfície livre, ocupada por uma massa escura. Trava è descobre, na berma, o D. S. estacionado, com as luzes todas apagadas.

Pára, aproxima-se. Ninguém. O carro tem todo o aspecto de estar abandonado. Mas, sobre o banco traseiro, algo brilha. Michel acende um fósforo para ver melhor do que se tratava e o seu coração aperta-se ainda mais: uma máquina fotográfica.

Descoberta, a grossa lente da objectiva parece fixá-lo com um olho revelador. Michel julga ouvir o inspector que há pouco lhe contava no teatro: "Um suspeito... Um fotógrafo que não era um fotógrafo. "

Instintivamente, Michel apossou-se do aparelho pesado e quadrado, preso a uma correia. Incerto, hesitante, fica à espera. Espia. Nada. Então, salta o parapeito, desce com precaução. Mais abaixo, nas profundezas, uma pequena luz palpita com um fogo-fátuo.

Michel retém o fôlego. Agarrando-se aos rochedos, aos tojos, procura dirigir-se para aquela luz, único traço de vida na espécie de deserto onde se encontra.

E, de repente, a luz imobiliza-se. Uma exclamação abafada chega até Michel: Jo acaba de encontrar a maleta, apossa-se dela e, resfolegando, volta a subir o declive da ravina.

A pouco e pouco, a luz aproxima-se; Bill compreendeu: tudo corre bem. Tudo, excepto aquela maldita testemunha, de quem não sabem o que fazer.

O medo de Marie transforma-se em pânico. Ela também compreendeu. A maleta foi encontrada, mas a testemunha sente-se perdida: Bill olha-a e ela lê no seu olhar uma horrível hesitação. Uma palavra de Jo e Bill não hesitará mais. Também Marie, enquanto Jo efectua a sua subida, gostaria que o tempo se eternizasse. Que o homem dos cabelos grisalhos nunca mais reaparecesse...

Michel distinguiu as duas silhuetas. Aproxima-se, sem ruído. Marie está na sua frente, a alguns passos; o homem está de costas para ele. Marie adivinha mais do que vê a chegada de Michel e uma louca esperança a invade.

Ela não se mexeu, mas o seu rosto muda duma maneira tão estranha que Bill, perturbado, se volta quase sem dar por isso, como que teleguiado por aquela expressão que revela algo de insólito.

Uma presença inesperada...

Bill largou Marie para aprontar a arma. Michel mantém-se em guarda. Antecipa-se ao gesto dele e, brandindo a máquina, abate-a violentamente sobre o braço do gangster. Desequilibrado com o choque, Bill ruge de dor, cai. De joelhos, vasculhando entre as ervas e as pedras, tenta apanhar a arma, que Michel empurra com o pé. Louco de raiva, Bill chama então o seu cúmplice e agarra-se às pernas do rapaz. Michel cai, por sua vez, para empreender uma luta sem tréguas...

Bill ouviu o apelo. Apercebe-se do ruído da briga, as pedras que rolam, os estalidos dos ramos a partir e os gritos de Marie. Apagou a lanterna. com a maleta apertada debaixo do braço, só tem um objectivo: fugir, fugir antes que seja demasiado tarde. Salvar a droga, salvar o gang, salvar a pele... E que Bill se desenrasque sozinho!

Jo conseguiu içar-se até à cornija. Precisa ainda de alcançar o carro e corre pela estrada.

Mas eis que surgem faróis, varrendo a noite, sirenas da polícia aproximam-se. Acossado, descoberto, cercado pelas motos da polícia, apanhado pelos faróis luminosos, o gangster é rapidamente dominado.

Entretanto, na ravina, a luta prossegue sob os olhos da rapariga, horrorizada. Os seus gritos vão guiar os salvadores. Desesperada, vê Michel perder terreno. Os dois homens torcem-se, rolam juntos sobre as rochas, largam-se, agarram-se de novo ferozmente.

Num sobressalto, Michel conseguiu finalmente pregar ao solo o seu adversário, irritado, que lhe aperta a garganta. Então, aos apalpões, encontra a máquina, agarra-a, fá-la voltar e incidir como uma clava sobre o crânio de Bill, que fica imobilizado...

Faz-se um segundo de silêncio. E depois a ravina ilumina-se.

À luz pálida dos projectores, os polícias descobrem os jovens, que, a custo, sobem para a estrada de mãos dadas.

 

Para Marie, o dia da infracção ficaria memorável. Um dia que já não se anunciava como os outros: o concurso bastava para lhe colocar uma bandeirola, para o diferenciar das longas semanas passadas no Centro, todas igualmente dominadas pela dura disciplina da dança. E eis que sobre este primeiro acontecimento se viera agrafar um outro, imprevisto, esse, e totalmente estranho ao universo de Marie.

Na sua memória, a aventura reconstruía-se, recortada como um cenário: um tema para a série negra cuja heroína -contra a sua vontade- era uma jovem em flor. Este famoso dia tinha condensado tantas peripécias, tantas emoções, terrores e alegrias! No entanto, podiam-se viver meses sem que nada acontecesse... Depois, de repente, em poucas horas, atingia-se as emoções extremas da existência.

E isso podia bastar para alterar o destino: Marie encontrara Michel. Já nada era como dantes.

Um rapaz que se bate por si, que arrisca a vida, merece mais do que atenção. A aventura selara uma amizade que apenas ansiava desenvolver-se. Uma amizade... Que outro nome dar a esta confusão de sentimentos, a estas emoções informuláveis, a este interesse crescente e recíproco, enfim, ao prazer de estarem juntos?

Deste modo, com Michel e por causa dele, Marie vivera duas aventuras nos antípodas uma da outra. A primeira, toda magia e crueldade, uma crueldade insidiosa, camuflada pelo luxo e as boas maneiras, que os martirizara a ambos; a segunda, realidade e violência, a brutal confrontação com um mundo impiedoso.

No decurso do extraordinário dia, Marie aprendera a conhecer Michel.

De facto, depois da noite em casa dos Villecroze, pensara muitas vezes nele, sempre procurando defender-se disso. Agora, lamentava ter-lhe votado tanto rancor... Nem um nem outro eram responsáveis pelo destino que brincara com eles. Cada um deles por pouco não caía na armadilha: ela, estúpida, e de que maneira! que se deixara toldar por aquele príncipe encantado, aquele jovem marquês cínico e sem dinheiro. E ele, o cínico, cedera ao encanto, como uma criança que se maravilha.

Como conseqüência daquela noite de mentiras, os jovens estavam quites; a verdade separara-os. Marie apenas sentira uma ferida no seu amor-próprio, não um desgosto de amor. Mas ela atirara sobre Michel, injustamente, todo o azedume, sem suspeitar que ele experimentava os mesmos sentimentos. E como é que ela podia ter sabido isso, visto que se recusava obstinadamente a voltar a vê-lo, apesar dos esforços de Sarah?

A aventura que acabavam de viver juntos colocara-os outra vez frente a frente, obrigando-os a uma reconciliação forçada. Deliciosamente forçada...

A vida continuava, portanto. Simplesmente, Marie tinha mais um amigo.

Depois da captura de Bill e Jo, o comissário convocara Marie ao seu gabinete. Cheia de apreensão, ela lá foi, mas o agente da autoridade dispensara-se de lhe fazer os sermões do costume. Graças a ela, a polícia realizara um belo trabalho e a infracção cometida não teria as conseqüências temidas.

Quanto a. Bill e Jo, obstinavam-se ainda em não revelar os nomes dos chefes, mas era apenas uma questão de paciência; tarde ou cedo, acabariam por falar, e nessa altura poderiam desmantelar todo o gang.

Ao mesmo tempo que retomava a sua vida do Centro, Marie começara a filmar com Michel, depois de efectuados os testes, que foram concludentes. Marie possuía no écran uma notável fotogenia. Para a bailarina, mais um formidável dom.

Géraldine predizia-lhe um futuro de vedeta e não se cansava de a incitar: negligenciar a dança, em proveito do cinema. Mas a jovem nem sequer a ouvia e continuava a prosseguir no Centro o seu duro treino. Se as filmagens lhe valiam uma sobrecarga de trabalho, aceitava-a de boa vontade. Tanto mais que Serge, contratado por Michel, continuava a seu lado.

Por sua vez, Serge considerava esta interpretação apenas como uma experiência mais. Interessante, é verdade, como o são todas as experiências! Mas ele não ficaria por ali. A sua única finalidade era a dança: seria coreógrafo, como outrora Noverre, Perrot, Petipa e, hoje, Béjart.

Ao ganhar o concurso, Serge obtivera uma importante bolsa, que lhe permitiria fazer estágios junto dos mestres da sua escolha, e dar-lhe-ia também os meios de preparar uma segunda coreografia. O cachet que Michel lhe daria pela sua interpretação no folhetim viria juntar-se a estes ganhos, oferecendo-lhe outras possibilidades.

Embora Serge desprezasse um pouco o trabalho efectuado com Michel, executava-o o melhor que podia.

Há já semanas que as filmagens vão de vento em popa.

Presentemente, A Vida Dançada, tal como Michel e Géraldine a conceberam, desenha-se em cores sobre quilômetros de película. Suplantando a linguagem, o ritmo e os gestos ilustram a vida quotidiana.

Esta crônica duma vida a dois não tem falta de humor, porque Michel quer fazer sorrir os telespectadores, oferecendo-lhes uma amável sátira da sociedade. Mais ainda do que ao conteúdo, ele prende-se à forma, porque deste modo pensa atingir ou renovar temas e sentimentos eternos.

O folhetim segue, além disso, a actualidade, através dum contexto imaginário, e as suas personagens evoluem em situações que todos conhecem. Num mundo sobrecarregado de gadgets, entravado por leis que pretendem reger a felicidade dos homens, aparece um casal. Pouco modificados por uma civilização fora de si, mecanizada, um rapaz e uma rapariga encontram-se para retomarem o duo original.

Serge, com o seu orgulho de bailarino, continua a ver de alto esta trama que reflecte a existência. É verdade que é dançada, e por isso cada um dos seus elementos, assim transposto, se torna por si só um espectáculo. Secretamente, o jovem reprova ao realizador o dar à dança uma forma demasiado familiar...

Quanto a Marie, entrega-se com um prazer e uma curiosidade crescentes à sua nova actividade. Ao contrário de Serge, apaixona-se por este outro meio de expressão, que lhe abre perspectivas diferentes. No écran, ela vê-se a viver como Michel a vê. E inclina-se tanto mais voluntariamente às suas directrizes quanto ele apresenta dela uma imagem exaltada, como se lhe prestasse uma homenagem retumbante.

É verdade que ela permanece prudente. Confiaram-lhe um papel, representa-o com toda a sua alma, nada mais...

Mas como é que podia não se sentir elogiada, maravilhada? Entre as mãos de Michel, na objectiva da sua câmara, que ele usa como um pintor os seus pincéis, ela transforma-se numa outra mulher; tem dificuldade em se reconhecer nesta desconhecida cujo olhar pode invadir o écran. Inconscientemente, identifica-se com a sua heroína e a sua vida paralela acaba por suplantar a verdadeira.

Uma vida onde Serge encarna o par ideal.

Também ele é belo no écran, com os seus olhos dum azul intenso. Juntos, eles interpretam os mais diversos episódios: partem para férias, passeiam no mercado das flores, trabalham, festejam o fim do ano, recebem os amigos...

Ao longo desta crônica, Marie vê gravitar à sua volta outros rapazes. Rivalidades, jogos de amor e do destino, galantarias e quiproquós. Ao escrever o guião, Michel deleitou-se a opor rivais a Serge. Embora o coração de Marie por vezes hesite, é sempre para Serge que ela volta.

Devendo a difusão de A Vida Dançada ser feita numa hora de grande audição, o, decoro tem de ser rigoroso. A heroína mostra-se caprichosa, mas ajuizada. A sua juventude exclui os coquetismos e passos em falso. com o decorrer dos episódios, a rapariga conhece uma subtil evolução psicológica, os seus sentimentos para com Serge amadurecem, tornam-se. mais sólidos e, consequentemente, este acaba por casar com ela.

Em princípio, o folhetim acabará com uma radiosa imagem do jovem casal, depois do pedido de casamento por parte de Serge. Mas, rompendo com a tradição do beijo final, Géraldine e Michel propuseram aos produtores, que asseguram o financiamento, filmarem por inteiro a cerimônia das núpcias.

Contudo, nada está ainda decidido. Os produtores querem em primeiro lugar avaliar da qualidade dos episódios precedentes. Assim que a película estiver pronta e montada, Michel tem de a apresentar numa projecção privada, à qual igualmente assistirão numerosos jornalistas.

Faltam apenas algumas ligações, e por isso Marie sente uma pena crescente. O contrato que a liga a Michel expirará dentro em pouco e a rapariga, ao voltar para o Centro, afastar-se-á novamente dele. Claro, todos estes dias, bastante bem preenchidos, foram extenuantes, porque a filmagem lhe deixa, conforme o combinado entre Michel e Madame, o tempo da lição quotidiana. Todas as noites, cansadíssima, com os nervos tensos, Marie tem dificuldade em adormecer. Contudo, não se consegue habituar à idéia daquela próxima separação.

No último dia, a equipa organiza uma pequena festa, para a qual actores e técnicos estão convidados, a fim de se concluir alegremente aquele período de trabalho em comum. Michel e Géraldine não quiseram falar da projecção prevista. Por superstição, talvez? Ou para não suscitar esperanças que podem ser vãs.

Quando, no fim da festa, Michel deixa Marie diante do Centro, ele beija-a nas duas faces, sem lhe dizer uma palavra. Depois, apressadamente, vai ter com Géraldine, que o espera ao volante do carro.

A projecção destinada aos produtores e à imprensa chegou ao fim.

Quando a luz volta à sala, Michel e Géraldine já sabem que venceram. Durante toda a projecção ouviram exclamações entusiastas, tanto mais estimulantes quanto é certo os profissionais, tão snobes, se mostrarem habitua lmente muito avaros neste tipo de atitude. Produtores e jornalistas são unânimes: a Vida Dançada será um sucesso!

Sob os clarões dos flashes, Michel e Géraldine fazem a figura do par vedeta. O êxito garantir-lhes-á um maior crédito nos meios do cinema e da televisão. E Géraldine, secretamente, gosta de desempenhar este papel principal na vida do amigo; sente-se feliz em se deixar fotografar ao lado dele.

Durante toda a filmagem, sofreu com a presença de Marie junto de Michel. Mas a sua ambição prevalecia sobre os seus sentimentos. E como Michel e ela tivessem obtido a aprovação dos produtores, não levantará nenhum obstáculo à realização deste novo episódio.

Géraldine resolve explorar o filão até ao fim, mesmo que, durante esse tempo, tenha ainda de afrontar a sua demasiado graciosa rival.

No Centro, Serge e Marie retomaram a sua vida de estudantes.

Passaram-se algumas semanas; para o jovem, o folhetim é apenas uma recordação penosa. A devoção que Marie manifestava pelo seu encenador, a sua docilidade, o seu fervor, irritavam-no com freqüência.

Quanto a Marie, teve dificuldade em se readaptar. No entanto, fica totalmente surpreendida ao ver um dia, à porta do estúdio onde Madame acaba de dar a sua lição, Géraldine e Michel, que a aguardam. Nem por um segundo Marie suspeita do objectivo daquela visita, apesar dos seus rostos radiantes.

Assim que Madame liberta os seus bailarinos, Marie, seguida de Serge, sai sem pressa da vasta sala de aula. Géraldine precipita-se para eles:

"Meus amigos, vamos casar-vos! ", anuncia ela triunfalmente.

Os "amigos" ficaram interditos. Serge olha para Marie de tal maneira surpreendido que Géraldine acha por bem explicar:

"A brincar, claro! "

Michel, que não diz nada, tem uma estranha expressão.

"Ah! A brincar!... Meteram-me medo", exclama Marie com um riso que soa a falso.

E Serge replica imediatamente:

"Obrigado! É de facto o grito do coração. "

Durante alguns segundos, Serge tem vontade de mandar tudo passear!

Julgava ter chegado ao fim das atribulações de A Vida Dançada e eis que... Depois, confuso, põe-se a rir com os outros, mesmo quando o jogo o não diverte.

De resto, para o convencer, Géraldine faz-lhe ver todas as vantagens que lhe proporcionará este episódio suplementar: mais meios, mais dinheiro, mais publicidade.

Argumentos irresistíveis.

Serge volta-se para Marie, vê-a radiosa. Então, contrariado, acaba por ceder.

No Centro, tal como para as sessões precedentes, ensaiam as seqüências dançadas do casamento, sob a direcção de Lynn, que é quem faz a coreografia.

Agora, na véspera das filmagens, fazem o último ensaio. Nessa mesma noite, a equipa irá instalar-se no castelo de Villecroze, onde serão feitas as tomadas de vistas.

Michel escolheu aquele cenário para o casamento. Um cenário que ele conhece bem: a sua própria residência e a aldeia em volta, debruçada do alto das colinas, com os seus vestígios de fortaleza e a sua bonita igreja romana, que domina a paisagem.

Michel previu neste quadro um casamento à antiga, inspirado nas tradições provençais. O folclore estará em destaque, com os seus trajes e os seus costumes de outrora. Em suma, Michel procura rejuvenescer o presente com o passado. Para esta reconstituição, Lynn mistura apropriadamente a mais moderna expressão com danças tradicionais, de origem sagrada ou profana.

No seu conjunto, os ensaios foram satisfatórios. Michel pode portanto preparar a sua realização e os seus enquadramentos, enquanto Lynn se apressa a adaptar os movimentos coreográficos às necessidades da câmara.

Trata-se dum episódio capital, porque, em princípio, se considera o dia do casamento como o mais belo dia da vida. O filme terá de ilustrar esta noção de festa, de beleza, de amor... Milhares de raparigas, de mulheres, que se encontram ligadas à existência por escoras de chumbo, identificar-se-ão com esta imagem de sonho. Imagem emocionante, sempre idêntica e sempre renovada, que atravessa vissicitudes e ciladas, o melhor e o pior, nos bicos dos pés.

Além disso, reina em toda a equipa uma atmosfera de alegria febril, como se a ficção se confundisse com a realidade. Só Serge se esforça por permanecer impassível, até mesmo por esconder a sua irritação. Sente que está a perder o seu tempo desempenhando um papel que não foi feito para si.

Sejam quais forem as vantagens, finanças, popularidade, este gênero de actividade desvia Serge do seu verdadeiro objectivo: a coreografia. Tornar-se uma vedeta não lhe interessa; ele sabe que para atingir os mais altos cumes da dança tem de trabalhar na sombra, tactear, entregar-se a difíceis pesquisas, no segredo da criação. Ao prosseguir as filmagens, tem a impressão de macaquear a vida, de fazer revista.

Sem procurar outros motivos, talvez muito diferentes, para além destas razões profissionais, Serge não sente prazer nenhum em desempenhar o seu papel de apaixonado junto de Marie.

Mais de uma vez teve vontade de fugir, batendo com a porta. Mas por escrúpulo, por honestidade, continuou a respeitar o compromisso que tomara.

Só falta repetir uma seqüência particularmente delicada em aperfeiçoar. Ela constitui a chave da emissão: a noite de núpcias, e esta apresenta-se evidentemente como um prolongado pás de deux.

O noivo, primeiro, penetra no quarto nupcial conduzindo a noiva.

Emoções, coquetismos, arrelias, abandono, pudor, acto de despir: a touca voa, a saia voa. Nada de escabroso, a dança transfigura os gestos e as intenções. A cena é encantadora, cheia duma terna ironia.

Marie e Serge ensaiam.

Toda a gente os olha: os bailarinos que se apoiam ao longo das barras, os técnicos- que se aglomeram à volta do realizador atento. Como todos os cineastas, Michel não consegue impedir-se de "marcar", de indicar quer por gestos esboçados, quer por mímicas, a interpretação justa.

Contrariamente aos que assistem ao ensaio, Michel não parece divertir-se. Bruscamente, interrompe os intérpretes:

"Stop... Isso não vai bem! É demasiado dançado e pouco interpretado. "

Serge e Marie, de repente imóveis, ficam abraçados.

Lynn protesta:

"Eles são bailarinos, dançam!

- De acordo, mas podiam pensar na situação, sobretudo Marie. Isto são as premissas da noite de núpcias, ela ainda é uma rapariguinha, uma ingênua. "

Enquanto Michel se explica, Serge ergueu os olhos para o céu.

Largou Marie e ambos, ligeiramente cansados, as mãos na cintura, ouvem as observações.

"Por exemplo, quando Serge a recebe nos braços, quero que ele esteja quase estático. É a câmara que se moverá, -que dará o movimento. Um movimento interior, que tem de trair a sua perturbação.

- Meu caro, tu quiseste uma cena de amor-protesta Lynn.

- De acordo, mas a esta falta-lhe pudor. Nesta altura são apaixonados, ainda não amantes. "

Enquanto fala, Michel afastou Serge e toma o seu lugar:

"Chega-te para lá. E tu, Marie, vem, vem aqui... "

Entre os que assistem ao ensaio, muitos reprimem um sorriso ou trocam olhares cúmplices.

Marie não se mexeu.

"Vem, vem. Vamos recomeçar. Acompanha-me bem. Quando tu te atiras para os braços dele, não o olhes dessa maneira, com o branco dos olhos. Pelo contrário, tens de parecer emocionada, perturbada, enquanto tu já tens uma expressão de êxtase; é idiota. Fazes tudo como se não compreendesses. A tua primeira cena de amor, isso não te diverte?"

Não, não parece divertir muito Marie, que permanece silenciosa. E quando Michel lhe estende os braços, substituindo Serge, ela fica pregada ao chão.

"Então, vens?

-Vai, cos diabos! De que é que estás à espera?"

É Lynn que a empurra pelos ombros, enquanto no estúdio os sorrisos se multiplicam.

Então, Marie repete o movimento com Michel. Mas, verdadeiramente intimidada quando se atira para os seus braços, como a cena o exige, volta o rosto com uma expressão de pânico.

Michel larga-a, exclamando:

"Assim é de mais! Também não tens medo a esse ponto. "

Toda a gente ri, com excepção de Serge.

"Vá, recomecemos", disse Michel. "Não te esqueças: tu descobres o amor. "

A música recomeça, Marie volta a fazer o movimento. Desta vez com donaire, sinceridade. Michel recebe-a nos braços, mantém-na contra si, enquanto, lentamente, ela executa a pantomima pedida.

No grupo há um momento de surpresa, de atenção renovada. O próprio Michel parece surpreendido. Poderá Marie desempenhar aquele papel com tanta justeza que o confunde?

Apressa-se a desfazer o abraço. Volta-se para Serge, que o olha com ar trocista, convidando-o a retomar o seu lugar como se tivesse pressa em se desembaraçar de Marie.

"É a tua vez, Serge! Recomecem... Desta vez não foi nada mal, minha cara. Procura prosseguir assim. "

Marie refizera a mesma coisa com Serge. Pelo menos, era o que parecia. Bruscamente mudo, Michel abstivera-se de qualquer observação e parecia ter pressa em acabar com aquilo.

"São amorosos", murmurava Géraldine a Michel, tomando uma expressão suave e satisfeita que dissimulava uma estranha inquietação.

Inquietação porquê?

Amorosos!... Géraldine dizia a verdade. Michel estava a epilogar sobre o futuro do casal.

"Devíamos casá-los de verdade -insistira Géraldine.

- Não digas disparates. Temos outras coisas em que pensar. "

com efeito, o planning não permitia de modo algum deterem-se em considerações de ordem sentimental, nem de epilogar sobre o futuro do casal.

Como boa assistente de realização, Géraldine já distribuía o plano de trabalho para o dia seguinte.

O dia seria duro. Não havia hipótese de fraquejar, nem de perder uma hora. Mais do que em qualquer outro lado, no cinema, o tempo é dinheiro. Os meios postos em funcionamento eram importantes: não podiam ser ultrapassados. Tinham de respeitar o orçamento abonado pela televisão.

Para este casamento, Géraldine e Michel queriam fazer uma emissão de prestígio com trajes, cenários, figuração, balets: não podia surgir nenhum obstáculo.

Isto era o bastante para tornar nervoso um jovem cineasta, que talvez estivesse a jogar o futuro. Mas Michel, sem o confessar, sentia que este não era o único motivo da tensão que o invadira.

Chegada, como o previsto, antes do fim do dia, a equipa instalava-se no castelo. A marquesa de Villecroze acolhera com boa disposição a horda pacífica que tomava posse do seu domínio.

Visto que Michel imaginara realizar o casamento no seu cenário familiar, Géraldine, prática, conciliara, este desejo com as necessidades pecuniárias da marquesa. A produção alugara o castelo em boa e devida forma. A esta operação não faltava picante aos olhos de Anne de Villecroze, que de mulher mundana se transformara em mulher de negócios, graças aos seus bons amigos Smith, de Chicago. Como a filha faltara à sua palavra, os Smith empenharam-se em manter a deles, permanecendo como bons parceiros. Como senhora da alta-roda, a Srª de Villecroze fizera, e é a palavra justa, das tripas coração.

Para compensar a escapulidela da herdeira e para apagar a afronta que a marquesa, muito filósofa, estava inclinada a minimizar, o Sr. Smith respeitara a sua própria palavra e pagara as dívidas dos seus distintos amigos.

Ainda por cima, este notável homem de negócios sugerira aos Villecroze uma solução alternativa, cujos encargos ele assumira. com o seu impulso, e graças às suas relações no Novo Mundo, o castelo seria daí em diante um dos mais belos florões duma cadeia de residências mais ou menos históricas, transformadas em estalagens de luxo, onde as pessoas são recebidas por autênticos descendentes de S. Luís, desde que puxem pelos cordões à bolsa.

Dentro desta linha, Villecroze acolhia igualmente seminários de associações de alto quilate ou recepções de prestígio, às quais a marquesa oferecia uma hospitalidade de grande estilo.

A perspectiva da falsa cerimônia que hoje se ia desenrolar divertia-a imenso, e ainda mais aos hóspedes de Villecroze, escolhidos a dedo.

Esta distracção excepcional ser-lhe-ia oferecida como uma espécie de improviso, um bônus para além da louça brasonada e das recordações históricas.

Tal como um comandante na tropa, Michel tinha de seguir estritamente o guião previsto: o casamento far-se-ia ao som de tambores. O planning estava regulado como um movimento de relógio. A mínima dessincronia provocaria a grande confusão, Michel sabia-o muitíssimo bem. Sob as suas ordens, cada um tomava as suas funções: electricistas, maquinistas, aderecistas, caracterizadores, cabeleireiros, técnicos da imagem e do som.

Nazaire, o mordomo que, até à sua morte, ficaria devotado aos Villecroze, secundava com zelo o jovem marquês, comportando-se como um mestre de cerimônias.

Ninguém melhor do que ele conhecia o castelo. Tinha os olhos em tudo e informava sobre tudo, impondo o respeito pelas coisas e pelos usos àquela horda de cineastas ao princípio muito simpática, mas depressa turbulenta.

Informada da situação da Sr. Villecroze, que fazia sempre malabarismos com problemas de dinheiro, Géraldine, assim que chegou, apressara-se a regular com a dona da casa os pormenores de ordem prática. Apresentara papéis - contratos, inventários - reclamando assinaturas.

"A minha palavra não basta?", espantou-se a marquesa, que conservava a sua tendência natural para tratar os negócios com sobranceria.

Mas imediatamente se dominou, sempre pronta a ironizar sobre si própria-como sobre os outros. E sentou-se sossegadamente à sua secretária, um encantador dorso de burro Luís XV todo embutido em amaranto e de madeira da índia.

"Aqui está o cheque correspondente ao aluguer do castelo pelo dia de amanhã", explicou Géraldine.

A marquesa pegou no cheque com a ponta dos dedos.

Sorria:

"Fico sempre comprometida por fazer pagar a minha hospitalidade.

- Temos de viver com o nosso tempo -replicou gentilmente Géraldine.

- E os tempos são duros!

A marquesa agitou o cheque antes de o colocar debaixo do seu bonito pesa-papéis.

Observou:

"Paga adiantado!

-Michel deu-me a entender que isso lhe faria jeito.

- É o menos que se pode dizer. Quanto ao meu filho, ele lá se arranja bem. Eu... eu sonhara estupidamente com uma rica aliança para o pôr em pé. Ele preferiu casar com o seu tempo. Você é para ele uma preciosa associada...

- Indispensável, espero! Entendemo-nos. Compreendemo-nos. "

A marquesa não respondeu.

A grande galeria do castelo contém em si, tal como um museu, uma preciosa colecção das artes da Provença.

Admiráveis bonecos de presépio, resguardados em vitrinas, evocam a vida de outrora, o seu aspecto senhorial, religioso ou popular. Estes acotovelam-se com faianças, jóias, objectos preciosos ou rústicos. Roupas também, que apenas vestem fantasmas. Algumas vitrinas estão vazias: a marquesa pôs à disposição do filho tudo o que lhe resta de tesouros.

Para Ane de Villecroze, o casamento de ficção que se realizará no castelo oferece, de certo modo, um seguimento lógico aos noivados sem amanhã de Michel. - Esta continuidade parece-lhe agradável, se bem que fortuita. A comédia não acabou: recomeça. E Michel sente prazer em estabelecer entre os dois factos um laço indiscernível.

Naquele momento, ocupam-se da noiva. Dócil, Marie faz de manequim e apresenta os adornos de que a costureira a revestiu. Michel vigia a prova com uma gravidade muito profissional. Nada é demasiado belo para a noiva imaginada... Uma noiva saída dum outro mundo.

Duma vitrina, Nazaire retirou o delicioso vestido duma noiva da aldeia de há cem anos.

Todos admiram a roupa interior de cambraia, as roupas mais íntimas em tecido fino, as saias sobrepostas, bordadas, debruadas a renda, e finalmente a pesada saia branca almofadada - o famoso boutil provençal - ornada de arabescos raros feitos à mão... Um trabalho de arte.

Sobre a saia, que deixa aparecer meias brancas e bordadas, é colocado o tradicional avental de seda. Do corpete brota o busto, como uma flor. Uma camisinha de musselina encobre os braços e o pescoço. Um ligeiro lenço cobre os ombros de Marie e uma touca, aos canudos, tapa-lhe os cabelos, realçando o seu rosto juvenil e puro. No braço esquerdo, fixada por uma fita, balanceia-se uma grande capelina preta.

Marie está esplendorosa.

Sente-se exaltada, transfigurada com aquela roupa simbólica. Vira-se e revira-se, esboça alguns passos para responder ao realizador, que se inquieta: conseguirá dançar, a toilette não será demasiado pesada?

Demasiado pesada! Nunca nenhum vestido pareceu a Marie tão leve e os que assistem à prova olham a rapariga com olhos divertidos, ou até maravilhados.

Entretanto, Michel ostenta uma expressão séria, imperturbável. Um ar sério que leva, discretamente, os que o rodeiam a sorrir.

Inclina-se para a mãe, apontando Marie: "Como é que a acha?

-Já to disse. A minha opinião não se alterou: é encantadora. "

E a marquesa acrescenta com malícia: "Não partilhas da minha opinião?

- É sempre bonito um vestido de noiva-intervém Géraldine.

- Mas não há só o vestido", replica a marquesa.

Michel contenta-se em franzir o sobrolho como um homem unicamente preocupado com a preparação do seu filme.

Negligentemente, a marquesa agarrou numa cruz, em brincos pendentes, que estende a Marie:

"A cruz é de rigor. "

Mas Géraldine impede-lhe o gesto e, prudente, pergunta se as jóias estão incluídas no inventário.

Anne de Villecroze encolhe os ombros: "Já só têm um valor sentimental. "

E acrescenta, irônica:

"Que não faria eu por este casamento?"

À volta dela, todos se divertem com a situação. Na equipa reina uma espécie de cumplicidade ou de conspiração. Cada gesto, cada intenção motivada pelas filmagens, parecem tomar um duplo sentido.

É verdade, aquela pequena Marie é encantadora, pensa a marquesa; de certo modo, ela ocupa um grande lugar na vida de Michel. Necessidade, claro; a profissão tem as suas exigências e só Marie podia encarar a heroína de A Vida Dançada. Anne de Villecroze rememora a primeira aparição de Marie, ali exactamente, desempenhando com brio um papel de circunstância e encantando todos os corações. É pena que tivesse sido apenas uma comédia...

E se a do dia seguinte fosse reveladora?

A marquesa, que não deixa de olhar a vida como um espectáculo apaixonante, espera o erguer do pano.

Chegada a noite, no auge dos preparativos, a Srª de Villecroze reservou uma surpresa aos seus hóspedes; na grande sala onde tomam as refeições, uma mesa sumptuosa os espera: pratos escolhidos, vinhos de classe, talheres de prata dourada, porcelanas da Companhia das índias.

Deslumbrados, os convivas aplaudem. Mas, na altura de se sentarem à mesa, apercebem-se que Serge falta à chamada para chegar a Villecroze, Serge, como de costume, preferira ir na sua moto. Decidira também chegar o mais tarde possível.

Os colegas aborreciam-no, o ambiente irritava-o. Não achava graça aos ditos de ocasião que o seu casamento provocava.

Depois da decepção que Marie lhe infligira e que queria considerar como uma infantilidade - não eram, antes de mais, amigos, velhos amigos de infância?-, detestava esse gênero de alusões.

Hoje, o ensaio exasperara-o em particular: a falta de jeito de Marie, quando Michel o substituiu para lhe indicar um jogo de cena, e depois o seu súbito abandono, a sua perturbação eloqüente...

Michel impunha a Marie uma interpretação ambígua, que não tinha nem a transcendência da dança, nem a sua pureza. A Vida Dançada assemelhava-se a um jogo, um jogo perigoso, o da verdade. Serge sentia-se de mau humor, pouco à vontade. Decididamente, o papel que era obrigado a assumir pesava-lhe.

No momento da partida, no pátio do Centro, vira Michel já instalado ao volante do seu carro e Marie apertando-se contra ele, a fim de que Géraldine se pudesse também sentar no banco da frente.

Géraldine convidava Serge a entrar, Marie chamava-o:

"Não vens, Serge?"

Michel fazia-lhe sinais:

"Então, não vens connosco? Guardámos-te um lugar.

- No meio dos embrulhos, obrigado! Se não se importam, prefiro ir na minha moto. "

com efeito, sobrava um espaço muito restrito no banco traseiro, cheio de caixas, de embrulhos, de adereços variados, que se revelavam indispensáveis no momento das filmagens.

"Oh! como ele é snobe! ", gracejou Marie.

Michel sugeriu, rindo:

"Para a próxima vez, enviar-te-ei um Rolls com motorista. "

No instante da partida, o cineasta acrescentou:

"Mas que é que há? Ele está com uma verdadeira cara de enterro! Não é, contudo, o momento...

- Amanhã estará melhor, depois da cerimônia", disse Géraldine, rindo.

Depois do que se pôs a cantar a sempiterna marcha nupcial de Mendelsshon. E o trio tomou alegremente o caminho do castelo.

Apenas cem quilômetros de estrada. Interposta entre Michel e Géraldine, Marie deixava-os falar sem os ouvir. O trabalho, sempre o trabalho...

com a cabeça encostada ao espaldar, os olhos escondidos atrás dos óculos de sol, fixar o céu brilhante, o cume das paisagens que desfilavam, as vistas do mar e os seus horizontes de azul.

Depois fechou os olhos.

Deixava-se dormir? Sentia-se bem. Gostaria de poder rolar assim toda a vida. Abandonava-se contra Michel, que também tinha vontade de se calar. Porque experimentava a doçura do jovem corpo que há bocado tivera entre os seus braços e que, agora, parecia desposar o seu.

Seguido pelo seu companheiro Didier, que observara a partida, Serge dirigia-se para a moto.

"Que é que se passa contigo? Porque é que não foste com eles?"

Serge encolheu os ombros:

"Sou maior, ou não? E não gosto da vida em família! Estou farto deste circo! Só me apetece é mandar tudo passear.

- Não estás a gostar do trabalho?

- Ao princípio, sim, mas agora já não.

- Há muitos que gostariam de estar no teu lugar. É duro para um bailarino ganhar a vida -fez notar Didier.

- A quem o dizes! "

Serge gostaria de ter cortado logo a conversa. A curiosidade de Didier embaraça-o. Mas este, um bom rapaz, tenta compreendê-lo e de o fazer raciocinar.

Não era, porém, o momento. Serge reprimia a sua vontade de o mandar dar uma volta, enquanto o outro insistia:

"Graças às emissões, és célebre!

- Na televisão...

- Não devias estar descontente. Olha para Marie, que acede a tudo o que lhe pedem. "

Desta vez, Serge explode:

"Queres que te diga uma coisa? Marie é parva. "

Didier insistia:

"Contudo, tu também gostas bastante dela... Tal como Michel, dás-lhe papéis e achas normal que ela te obedeça, não é assim?

- Comigo, ela dança, meu caro... Enquanto com o outro faz de cigana! "

com esta singular afirmação, Serge põe raivosamente o motor da sua máquina a trabalhar. O ruído põe fim à discussão e Didier, à guisa de adeus, assentou uma palmada amigável nas costas de Serge.

Sem esperar mais, Serge afastou-se como um relâmpago.

É muito tarde quando Serge chega ao castelo. No mesmo instante, Géraldine prepara-se para ir para Cannes.

"Então, não passa aqui a noite? - pergunta a marquesa por pura delicadeza.

- Nem pensar, já basta Michel... A vida de castelo é para ele! Já está habituado. Nós temos de partilhar sempre o nosso trabalho. Amanhã tenho de tomar conta da partida da figuração e dos bailarinos, de manhã muito cedo. E preciso que esteja tudo pronto para se arrancar às nove horas.

- Arrancar?... -repete a marquesa.

- Sim! Nós somos escravos dos horários, dos regulamentos sindicais, do orçamento. Este casamento não é coisa fácil de levar a cabo..." concluiu Géraldine.

Depois repara em Serge, que vem arrumar a moto na garagem.

"Eis o futuro. É a esta hora que chegas? Levaste bastante tempo!

- Espero não ter faltado a nada! - disse Serge, com um laivo de insolência.

- Sim, ao jantar. Decorreu extraordinariamente bem", lança-lhe a marquesa.

Serge apressa-se a inclinar-se diante dela. "Desculpe, minha senhora. "

Ela observa-o durante alguns segundos com um olhar simultaneamente curioso e cheio de malícia.

"Está inteiramente perdoado. Seja como for, ceará na mesma... Mas você vai em primeiro lugar provar a sua endumentária, para poder deixar o pessoal livre. Nazaire ocupar-se-á de si. "

Sempre cerimonioso, Nazaire convida o jovem a segui-lo.

Antes de penetrar no vestíbulo, Serge volta-se. Ao fundo do parque, duas silhuetas parecem surgir da noite: Marie e Michel. Caminham sem pressa, ambos vestidos de claro.

Serge acha- esta visão comovente de romantismo e, voltando-lhes ostensivamente as costas, afasta-se atrás de Nazaire.

Os Villecroze reservaram-lhe um quarto admirável. Não teriam escolhido melhor se o acontecimento fosse real. A sua ceia espera-o sobre uma mesa de pé-de-galo com uma toalha de renda: foie gras coberta de geleia dourada, salada de trufas, farófias num recipiente de cristal debroado a prata dourada. Num balde de prata, que ostenta o brasão dos Villecroze, espera-o uma garrafa de champanhe, engravatada de branco.

Um autêntico pequeno festim. Só para si. O bastante para encher a barriga quando as forças estão a faltar.

"O senhor está satisfeito?- pergunta Nazaire.

- Tenho razão para isso! Muito satisfeito.

- O senhor não se importa de experimentar a roupa? No caso de ser preciso fazer emendas, teremos tempo de as fazer até amanhã. "

O fato do noivo: calça preta, justa como a dum toureiro. Camisa resplandecente, o colarinho apertado por uma fina fita preta. Preta a casaca sem abas finamente bordada. Preto o chapéu de abas largas. Ünica cor, a da faixa escarlate, enrolada, apertada à volta da cintura, alta como um corpete.

Serge olha-se no espelho e Nazaire admira-o. O chapéu colocado sobre os cabelos louros à maneira dum sombrero faz realçar o azul dos olhos. O fato contorna uma silhueta impecável.

"O Sr. Serge tem de verdade o corpo dum manequim, como o Sr. Michel. Ah! que bela juventude! O senhor formará um par soberbo com M. Marie. Toda a aldeia estará em festa, como se se tratasse duma autêntica boda. Estes velhos fatos são muito bonitos, e a senhora marquesa emprestou aos figurantes uma colecção de trajes extraordinários. Será na verdade um belo casamento", afirma o mordomo.

E Nazaire sorri subtilmente...

Serge deixou-o falar. Continua a fixar a sua imagem no espelho como se visse outro eu.

"O senhor sente-se bem?"

Serge parece não compreender. Então Nazaire executa alguns movimentos com os ombros e os braços.

"Quero dizer se o senhor não se sente incomodado... Se se sente à vontade... "

Serge decide-se a mexer-se:

"Sim, sim, muito bem, Nazaire. Está perfeito.

- Então, bom apetite, senhor, e boa noite. "

bom apetite! Serge não tem fome.

Boa noite! Serge não tem sono.

Antes de sair, Nazaire pendurou cuidadosamente o fato de cerimônia. Maquinalmente, Serge volta a envergar as suas roupas habituais: os jeans, a camisa Lacoste, o blusão e as botas. Depois deixa-se cair numa poltrona forrada de seda.

Tenta dominar-se, pôr ordem nos seus pensamentos que, insidiosamente, o assaltam há dias e que hoje o submergem.

Marie, Marie, sempre Marie... Quando é que se decidirá a ser um homem e a deixar-se de pensamentos de garoto?

Desde há semanas, a presença dum recém-chegado alterou, sem que pareça, um entendimento que Serge e Marie insistem em preservar. Amigos, camaradas, irmão e irmã... Mas não há só isso... Há o amor. O amor, é preciso saber reconhecê-lo, mesmo que não seja à sua porta que ele tenha batido.

Marie deixou-se enredar no jogo, é uma coisa evidente. Tudo para agradar. Michel, surgido uma primeira vez sob o aspecto do príncipe encantado. Reaparecido uma segunda vez sob o aspecto da providência. Uma providência musculada; o herói, o arcanjo, que salva a rapariga com o risco da própria vida! Como é que Marie não sentiria reconhecimento? Como é que não ficaria deslumbrada? Tanto mais que o salvador tem encanto e imaginação para dar e vender. Para seduzir Marie, eis que ele imagina uma bela história de cinema, uma vida paralela que, sob a aparência de jogo, reflecte a verdade.

Serge sabe-o agora, tem a certeza. A Vida Dançada é um pretexto. De facto, é uma confíssão, uma declaração. Sim: uma declaração. Toda a gente o pode testemunhar.

Esta tarde, por exemplo, durante aquele instante extraordinário, todos puderam reconhecer a evidência: Michel e Marie estavam abraçados, olhos nos olhos. Para eles, nem o tempo nem os outros existiam. E a perturbação deles depois, aquela maneira de retomarem ainda mais eloqüência, de continuarem o jogo como antes...

Serge não tem nada a fazer neste duo. Então, stop. Acabemos com isto.

Serge não tocou na refeição, mas esvaziou a garrafa de champanhe. Ergue a taça à saúde da roupa que amanhã se pavoneará:

"À tua saúde, meu caro... Desejo-te felicidades! O que a gente vai rir! "

No dia seguinte de manhã, conforme o combinado, Nazaire vai acordar Serge com o pequeno-almoço.

Michel encarregou-se de levar o seu a Marie, para conversar com a sua principal intérprete. Entre os dois jovens estabeleceu-se uma familiaridade que cria toda a espécie de hábitos. Na maior parte das vezes, o jovem adopta para com Marie uma atitude protectora, como se se tratasse duma criança.

Marie aceita com uma alegria secreta as atenções de Michel, às vezes as suas brusquidões, sobretudo quando o seu olhar as desmente e a sua voz fica estranhamente rouca.

Nazaire bate à porta de Serge:

"Toc toc. "

Nada.

"Toc toc. "

Sempre nada.

Nazaire bate cada vez com mais força, quando, impacientada com o barulho, a Srª Villecroze surge no corredor.

"Vá, Nazaire, não se importe: arrombe a porta.

- A senhora marquesa desculpe, mas este senhor não responde.

- Muito bem, entre e abane-o, em vez de abanar essa porta... Na sua idade tem-se o sono pesado. "

E afasta-se no seu roupão de folhos.

Nazaire obedeceu e entra no quarto. Logo de seguida, um barulho horrível faz sobressaltar a marquesa, que volta atrás.

Nazaire aparece, confuso, tendo numa mão a bandeja chocantemente despojada das suas porcelanas e da prata.

com o rosto decomposto, o mordomo exclama:

"Ah, minha senhora! Ah, minha senhora!...

- Que quer isso dizer, minha senhora, minha senhora... Você está doido!

- Oh! não, minha senhora, eu não, mas o noivo, o noivo... "

A marquesa está a léguas de adi vinhar o que perturbou àquele ponto o seu mordomo, sempre tão bem comportado. Pergunta ingenuamente, olhando para o pequeno-almoço espalhado sobre a alcatifa:

"Que é que aconteceu com o noivo? Não gosta de chocolate?"

Nazaire ergue os olhos ao céu:

"Se fosse só isso... Mas, minha senhora, queira ter a maçada de ver com os seus próprios olhos. "

A marquesa levanta o roupão para passar por cima do desastre. Descobre então, abandonado na poltrona almofadada, um soberbo espantalho improvisado com o travesseiro e um cabide. Vestido, engravatado, enchapelado em trajo de casamento.

Na extremidade duma manga, uma folha de papel está agarrada com um alfinete, sobre a qual se pode ler:

"com os bons-dias do noivo. "

A marquesa ficou alvoroçada:

"Mas isto é uma farsa!

-Uma farsa! Num dia como este! Receio que não seja muito mais grave, minha senhora. vou prevenir o Sr. Michel. "

Nazaire parte como uma flecha.

Perplexa, a Sr. a de Villecroze gira à volta do manequim. Corrige um pormenor na roupa, por exemplo o ramo de flores de laranjeira e o laço tradicionais, que coloca nos seus devidos lugares: sempre à esquerda os emblemas, do lado do coração, e o ignorante colocou-os à direita. Mas, precisamente no lado do coração, por baixo da casaca, a marquesa apercebe-se duma carta fechada. Esta destina-se a Marie.

A marquesa eclipsa-se suavemente.

Uma farsa!

A Srª Marquesa, como mulher de espírito, sabe tomar as catástrofes com humor. Um humor que toca as raias da inconsciência.

Nazaire pensa no seu jovem patrão.

Aquele noivo em fuga, aquele actor desistente, não irá desencadear uma catástrofe? Os assuntos do Sr. Michel ainda não estão bem assentes, por isso deve ser evitado todo e qualquer prejuízo.

É preciso preveni-lo... Apanhar o fugitivo... Encontrar uma solução, porque Nazaire tem a certeza duma coisa: não se trata duma farsa, o jovem desapareceu mesmo.

Uma deserção que poderá ter graves conseqüências...

Enquanto a trama se desenrolava, Marie espreguiçava-se no seu leito. Sentia-se maravilhosamente feliz e, enquanto fazia troça de si própria, pensava que se estava a preparar para viver o mais belo dia da sua vida. Mesmo sendo a fingir.

A bailarina tinha autênticos recursos de comediante e, como todos os artistas, tinha o dom de ajustar a realidade aos seus sonhos e desejos. Uma substituição permanente que dava novas dimensões aos actos mais elementares ou aos mais importantes.

Neste estado de graça, Marie vira Michel entrar no seu quarto sem bater, levando-lhe um apetitoso pequeno-almoço e vindo assegurar-se de que a sua principal intérprete estava em forma.

Beijaram-se - nas faces. O sol matinal, ainda tingido dos rosas da aurora, iluminava o quarto. Através da janela chegavam-lhes os ecos duma animação extraordinária. Os tocadores de pífaro e os de tambor ensaiavam músicas para a circunstância: alvorada, marchas, danças.

Os cantores cantavam, os aderecistas atarefavam-se e, na aldeia, o percurso do cortejo nupcial estava decorado como para os dias de festa. Tinham desfraldado a bandeira com as armas da Provença, cor de laranja e branca, brilhando no céu azul. Diante da capela, empregados desenrolavam um tapete escarlate. Os arcos de mirta, símbolo da felicidade e da fidelidade, tinham sido entrançados durante a noite porque os noivos tinham de passar debaixo deste arco. vegetal e vivo, seguro por uma procissão de raparigas em flor.

As câmaras instalavam-se. Os maquinistas puxavam os fios. Os electricistas distribuíam pela igreja "arcos" e projectores. A multidão, divertida, começava a circular para tomar lugar no espectáculo.

Em resposta ao pedido do realizador -que, ainda por cima, era da terra - tinham vestido os fatos tradicionais, que se haviam transmitido de geração em geração, e todos se preparavam, para a glória da aldeia, para figurar com os seus mais belos enfeites.

Poderiam ver-se na televisão, em "grande plano", talvez!

Assim que os bailarinos chegaram ao castelo, Florentine e Sarah -damas de honor, evidentemente- tinham-se apressado a subir até aos aposentos da amiga.

Os noivos.

"Vem, vamos acordar lo novio", dissera Florentine.

Como Sarah tivesse aberto muito os olhos de espanto, ela explicara, muito orgulhosa dos seus conhecimentos em matéria de folclore: "Lou novio quer dizer a noiva, em provençal. "

Quando conseguiram chegar ao quarto de Marie, Michel vinha a sair. Elas troçaram ruidosamente:

"Este ocupa sempre os primeiros lugares! Lou novio dormiu bem? Recebeste os sorrisos da sua última manhã de rapariguinha?"

Brincaram um bocado. Depois, Michel, que tinha mais que fazer, eclipsou-se.

Entre si, as raparigas concluíram que naquela manhã Michel tinha uma cara esquisita e riam cada vez mais.

Marie ainda estava na cama. Florentine e Sarah lançaram um "oh!" de admiração.

O quarto todo rosa, dourado de luz, parecia-lhes feérico. Reinava ali uma grande desordem. Pendurado num manequim de vime, o vestido de casamento oscilava docemente.

Por toda a parte, empilhado sobre a cômoda, disperso pelos assentos, um encantador enxoval de noiva se patenteava: brancuras nupciais capazes de fazerem a cabeça andar à roda.

Florentine parou diante do manequim, fê-lo dar uma volta. O vestido girava, a grande capelina preta balançava-se:

"Como é belo! Vais ficar terrível com isto! Ocuparia de boa vontade o teu lugar.

-Oh! sabes...

- Seja como for, é o teu primeiro casamento", fez notar Florentine.

E Sarah acrescentou: "Esperemos que não seja o último." Continuavam a rir. Marie, na sua curta camisa de noite, com os ombros e os braços desnudados, representava ingenuamente a tentação feita mulher.

A porta abre-se de repente com estrondo. Michel avança pelo quarto. Vocifera. É seguido por uma corte. Nazaire à frente.

"Ah! o patife, o patife! "

Louco de raiva, Michel brandiu à sua frente o absurdo manequim. Atira-o para cima da cama.

"Toma, toma o noivo! "

A surpresa de Marie, que olha para o manequim deitado de través em cima dos seus joelhos, leva a raiva de Michel ao rubro, e ele agita o letreiro insolente debaixo do nariz da rapariga.

Florentine e Sarah inclinaram-se para ler:

"com os bons-dias do noivo. "

"Os bons-dias... ah, ah, ah! -ri Florentine.

-Há de facto muitas razões para rir! -troa Michel.

-Mas é uma brincadeira! -diz Marie.

- Vejamos! Empatei milhões, a minha responsabilidade e semanas de trabalho para que se façam partidas!

-Serge não é doido -diz ainda Marie.

- Todos os bailarinos o são", resmunga Michel.

À sua volta reina a consternação geral.

Sarah tenta interpor-se: Serge vai voltar, não é preciso inquietarem-se, ele não tem nenhuma razão...

Mas Michel tem aquela idéia e não a ouve. Aproximou-se para muito perto de Marie, agarra-a pelos ombros, apesar do manequim que os separa.

E pergunta-lhe com insistência:

"Diz-me a verdade: passou-se alguma coisa entre vocês?

- Que é que queres que se tenha passado?

- Ele não te disse nada? Como é que ele se comportou ontem?

-Tu viste-o... Como de costume.

- Não, de há uns tempos para cá que ele não era o mesmo.

- Isso é verdade", opina Florentine, a quem ninguém perguntou nada.

Surge um contra-regra, que efectuou, sob as ordens de Michel, uma primeira busca. Serge continua sem se encontrar, não deixou nenhum rasto. Uma única indicação, que confirma as suspeitas: a moto não está na garagem.

"O patife! ", profere Michel, sufocando.

O contra-regra continua: em Cannes, Géraldine foi prevenida, teve uma crise de nervos, ela, que é tão senhora de si. Vai procurá-lo. Se for necessário, trará um substituto.

"E filma-se à pressão! "

Michel também tinha perdido o sangue-frio. Nem pensar em prevenir a polícia, o assunto não lhe diz respeito.

Perplexa, Marie passeou-as mãos sobre o manequim estendido sobre a cama. Como se o acariciasse, apalpou a camisa, o colete bordado, grosseiramente enfiados no travesseiro.

Dissimulada pela casaca, algo rangeu-oh! Um papel, uma carta presa com um alfinete no lugar do coração. Uma-carta para si.

Marie apanhou-a sem que ninguém se apercebesse. Esconde-a para a ler mais tarde, mas pressente que esta carta contém um segredo, um segredo que ela já conhece e... que não quer admitir.

Toda a gente continua a agitar-se no quarto, procurando soluções de recurso sem as encontrar. As ameaças proferidas contra Serge por um realizador escumando de raiva em nada alteram o problema essencial: salvar a emissão.

Mas como?

Lynn, responsável pelos bailados e pela figuração, pergunta pela milésima vez:

- Que é que decides? Que é que se faz?

- Que é que se faz? Como é que queres que o saiba?!

E ficam ambos calados.

Então, Marie toma a palavra, com toda a naturalidade, como se anunciasse a coisa mais simples do mundo:

"Eu tenho uma idéia. "

Aproveitando-se da agitação geral, levantou-se. Pegou no espantalho Que lhe atravancava a cama e sentou-o numa poltrona, como um visitante. Compôs o chapéu na extremidade do travesseiro estrangulado por um cordel e que representa a cabeça.

"Eu tenho uma idéia", repete Marie, com a mão em cima do espantalho.

Os assistentes voltam-se. Mas Michel tem um novo ataque de fúria ao descobrir o manequim que os fita. Levanta-o no ar, sacode-o como a um mortal inimigo e acaba por o atirar ao chão. O fato ficou-lhe em parte nas mãos.

com uma lúgubre ironia, lança a Marie, atirando fora os pedaços de pano: "Toma, eis o que resta do noivo.

- Para nós, é o essencial.

- Contentas-te com pouco!" Lynn intervém:

"Acalma-te e deixa Marie falar, ela disse que tinha uma idéia."

Imediatamente reina o silêncio no quarto. "É muito simples. "

Olha Michel a direito nos olhos antes de prosseguir:

"Basta-te substituir Serge.

- O quê?

- Basta-te substituir Serge. "

Há alguns segundos de estupefacção ou de reflexão. Avaliam a sugestão que Marie desenvolve.

"No nosso ofício, os ausentes substituem-se... Eu proponho uma solução prática, e não se perderá mais tempo. Reflecte bem, Michel: tu e Serge têm a mesma estatura, tu sabes o papel de cor, forçosamente porque o escreveste. O que tens a fazer é pores-te no lugar dele.

-Não é mal pensado", nota Sarah, secretamente divertida com o virar dos acontecimentos.

Florentine fica excitada:

"com Michel, ainda será mais divertido.

- Agradeço, mas não me apetece fazer de palhaço. "

A convicção de Florentine não é abalada. Ela prossegue:

"Mesmo com Marie? E, além disso, há imensos realizadores que representam nos seus próprios filmes: Truffaut, Vadim, Polanski. Está muito na moda...

- Oh! isso, isso." Lynn aplaudiu.

"Marie tem razão. Há que substituir Serge.

- E porque não tu, então?... Porque é que devo ser eu a entregar-me?

- Porque se trata do teu filme, meu caro, e, além disso, é preciso o físico... Sem te querer elogiar, tu tens melhor que eu a figura requerida. "

Toda a gente aprova.

Lynn reforça.

"Este casamento é obra tua, ninguém melhor do que tu poderá entrar na pele do personagem. "

Michel ainda hesita:

"Tu achas... Mas eu nunca estarei à altura, para a dança.

-O suficiente para As imagens tradicionais. Para as outras, logo nos desenrascaremos. Tu serás apenas um noivo, em suma, ninguém te pede para seres o pássaro de fogo. "

Nesse momento, vindo do parque, um clamor

domina os outros ruídos. Todos se precipitam

para a varanda. Ouvem gritar "li novi, li novi".

Osfigurantes estão a começar a ensaiar os

movimentos da multidão.

"Li novi", repete Lynn com o seu acento americano. "Estás a ouvir: Li novi. Eles reclamam os noivos. "

Michel debruça-se para reclamar silêncio e explicar à multidão que há um problema. Mas, ao ver Marie aparecer a seu lado, a multidão recomeça, aclama o jovem par. Como este dia de trabalho tem as aparências dum dia de festa, gritam cada vez mais alto: "Li novi, li novi. "

Ressoam salvas de canhão e. batidas de tambor. Quanto aos adereços, cada um é ainda mais bonito do que o outro: a ânfora, a varinha mágica das floristas, as cestinhas de flores e frutos, o cepo de vinha que será queimado depois da cerimônia, ritual oriundo dos confins das idades.

Os arcos engrinaldados de mirta simbolizam a felicidade, o ramo da noiva domina a árvore com fitas. Há também sacos de arroz, rebuçados, moedinhas, que serão atirados às punhadas pelas crianças, à saída da igreja.

Os músicos ensaiam a alvorada que têm de tocar assim que o noivo vier buscar a prometida para a levar ao altar.

Cantos, árias, danças... Todas as formações se preparam, ensaiam na grande confusão. Mas em breve as tomadas de vistas colocarão cada um no seu lugar e a montagem restituirá à cerimônia a ordem de rigor.

com a equipa, Michel e Marie olham a multidão vestida. Não são as pessoas do costume. É a vida dançada que se prepara.

"Então, fazes o sacrifício? Casas comigo?

-Oh! sim, casa com ela -insistem em coro as damas de honor.

- Achas que consigo safar-me?"

Os olhos brilhantes de Marie desmentem o ligeiro sorriso irônico que brinca nos seus lábios:

"Nem melhor nem pior que outro. Pensa na televisão... Pensa em Géraldine.

-Géraldine! "

Michel encolhe os ombros.

Daqui para a frente, este assunto já não diz respeito a Géraldine.

A carta escrita por Serge destinada a Marie apresentava um estilo orgulhoso e viril. Portava-se um pouco como herói: renunciava, apagava-se, explicava-se.

Mas não se enternecia.

Marie lera e relera aquela carta. Seria capaz de a recitar de cor. Dobrara-a cuidadosamente em quatro. Metera-a sob a camisinha macia que o corpete apertava. Recebera a mensagem como uma espécie de viático. Coragem, era preciso coragem para ser feliz!

Melhor que Serge não havia. Mais louco ou mais razoável também não. A infância acabara. Tinham-se tornado adultos, prontos a amar, prontos a sofrer.

Serge, na sua carta, fazia-lhe tomar consciência disso:

Minha querida amiga

Visto que te obstinas em ter os olhos fechados, vou abrir-tos. Desculpar-me-ás se renuncio a fazer de marioneta ao teu lado neste belo dia, mas não é o meu papel e eu devolvo-o. Devolvo-o a quem de direito. Sabes a quem me refiro.

Melhor do que ninguém, eu compreendi admiravelmente a comédia e prefiro deixar que a desempenhes com o seu autor.

Boa sorte, minha boa amiga.

Teu colega,

SERGE

Rodeado dum grupo de jovens, os rapazes de honor, Michel, que ostenta com magnificência o traje do noivo, avança à cabeça do cortejo. Segundo o costume, eles vêm dar a alvorada à noiva antes de a conduzirem à igreja.

E a futura aparece esplendorosa, toda vestida de branco, entre as raparigas com trajes berrantes.

Por sua vez, vem dançando à frente do cortejo, enquanto Michel a espera na parte de baixo do patamar. As câmaras registam, os flashes crepitam.

Michel vê Marie avançar na sua direcção. A pouco e pouco, o seu rosto ilumina-se num sorriso, que não tem nada a ver com um sorriso de comando. Marie sorri do mesmo modo, simultaneamente grave e emocionada. Chega junto de Michel.

Ao vê-los assim em frente um do outro, surpreendidos e enfeitiçados, julgar-se-ia que se encontram pela primeira vez. Eles não trocam uma única palavra. Os coros cobririam as suas vozes. Além disso, o cenário não prevê nenhum texto.

Mão na mão, os prometidos passam debaixo dos arcos da felicidade. Depois, é em cadência que o cortejo toma o caminho da igreja.

No local, a multidão espera-os.

Mas, no momento "de atacar" -para falar a linguagem dos cineastas- a seqüência religiosa, o cortejo parece desfazer-se. Esta famosa e aparente desordem precede logicamente as filmagens, porque o realizador tem primeiro que pôr cada cena au point para o encadeamento das tomadas de vistas. Por isso, pode-se ver o noivo em pessoa mover-se como um general do exército-antes do assalto para ralhar às suas tropas e ditar as manobras.

Sob a vigilância da sua costureira e da caracterizadora, Marie está imóvel, atenta a não amachucar os adornos e feliz por ficar "na pele da sua personagem", enquanto Michel continua a despender energias sem conta, discutindo com os engenheiros de som e os operadores.

Os maquinistas, os electricistas, seguem-no fielmente, prontos a passar à acção. Graças a Lynn, encarregado de todos os movimentos do conjunto, os artistas não arranjarão problemas; também a parte técnica parece não ter qualquer dificuldade. Grandes planos, planos médios, travelling, zoom, o mínimo movimento é ensaiado, muitas vezes comentado com vigor pelos executantes. Mas tudo é remediado num quarto de segundo.

Espectadores e participantes ainda se divertem mais neste casamento do que num casamento vulgar. Mas os acertos acabam. Toda a gente vai para os seus lugares: Michel retoma o seu à frente do cortejo e oferece o braço à "mãe", evoluindo com graça num vestido com anquinhas.

Marie pousou a mão no braço do "pai", cujo aspecto denota um juvenil entusiasmo e uma silhueta talhada pela disciplina do Centro.

"Pode-se começar? -grita Michel.

- Prontos - respondem os responsáveis técnicos a uma voz.

- Então, silêncio, se faz favor. "

Não se ouve um único ruído, como no teatro, quando se levanta o pano. "Acção!

- Pronto... "

As câmaras ronronam.

"Silêncio! ", grita o engenheiro de som.

Entre uma das câmaras e as caras dos noivos, um maquinista apresenta a claquette preta, o pequeno quadro que tem escrito a giz os números de cada tomada de vistas para que os montadores encontrem depois o fio do guião.

"Vamos a isto", grita Michel.

"O Grande Dia -1167- Primeira vez. "

E "clac".

O cortejo move-se então para penetrar na igreja ao som dos tambores que acompanham a marcha nupcial. A pequena igreja resplandece e oferece-se como um repositório.

O padre, vestido à civil, mantém-se discretamente afastado, misturado a um pequeno grupo de técnicos. Um par de posição social colocou-se atrás dele. Se o Sr. Papin não esconde o seu prazer, a Sr. a Papin, temível paroquiana, tem antes um ar franzido.

Em voz baixa, comenta: "Espanto-me, Sr. Padre, que tenha emprestado a sua igreja para esta mascarada.

-Os meus pobres só lucrarão com isso, a televisão é generosa.

- com o dinheiro dos contribuintes!... E o Sr. Padre vai-se deixar filmar no exercício das suas funções?

-Esteja tranqüila, a televisão previu tudo; tenho um duplo, como as vedetas. "

O padre aponta para um perfeito homem que usa elegantemente os hábitos sacerdotais e que, com gestos apropriados, acolhe os prometidos, que vêm apresentar-se-lhe.

A cerimônia começa a desenrolar-se, cadenciada por uma música antiga cheia de frescura como uma aurora de Abril. A multidão ergue-se, ajoelha-se, ergue os braços, ora, observando as cadências.

No seu canto, a Sra Papin mostra uma expressão de descontentamento, escandalizada, enquanto o Sr. Papin, entusiasmado, segreda, apontando para Marie:

"A pequena é fantástica! vou escrever para a televisão e felicitá-la.

-Chut... ", murmuram à sua volta.

Mas a Sr.a Papin puxa pela manga do padre: "O jovem padre que oficia diante do altar é evidentemente um bailarino. Todos estes artistas não vão com certeza pôr-se a dançar na igreja!

- Sim, Sr.a Papin, como outrora. Esta mascarada, como a senhora diz, tem a vantagem de colocar as nossas tradições em lugar de honra.

- Cantam a missa - segreda o Sr. Papin-, porque é que a não poderiam dançar?

- Mas já foi dançada! Não se esqueça de que os movimentos do corpo são ditados pelos movimentos da alma; a dança apenas exprime os ritmos e as leis da vida; e a vida é Deus. O rei David, ele próprio, dançou diante da arca! ", lembra o padre.

É verdade, a cerimônia desenvolve-se como um bailado. Um bailado cujo sentido sagrado se depreende claramente. A interpretação torna-o grave e místico, embora permaneça um espectáculo.

Todos se sentem profundamente emocionados, Michel e Marie ainda mais do que todos os outros.

Os técnicos felicitam-se em voz baixa: "Isto anda, isto marcha, vai bem." Sobre uma almofada de veludo, trazem as alianças, que os noivos vão trocar. Após o seu mútuo consentimento, o padre abençoa-os. Então, conduzida pelo padre, lou novio vai oferecer o seu ramo de flores à Virgem, depois, conforme o costume provençal, ata as fitas da sua touca.

Acabou. Ei-los unidos para o melhor e para o pior.

Os sinos tocam alegremente.

Os tambores soam.

Atrás dos esposos, o cortejo volta a formar-se e encaminha-se para o átrio a céu aberto.

"Vivo novi, vivo novü", grita a multidão aglomerada na praça. Os sinos, os confeitos, o arroz, a chuva de felicidade.

"Não sabia que se podia ser tão feliz -disse Marie num murmúrio.

- Eu também não", disse Michel sem rir. Inclina-se:

"Marie, temos de recomeçar.

- O quê?

- O casamento.

- Achas que não está a correr bem? -inquieta-se a rapariga.

- Antes pelo contrário, Marie, está a correr muito bem, de tal maneira bem que gostava que recomeçássemos. Mas de verdade. "

E é assim que Michel faz o seu pedido de casamento.

 

 

                                                                                                    Odette Joyeux

 

 

 

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