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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HERDEIRO MAGO / Cinda Williams Chima
O HERDEIRO MAGO / Cinda Williams Chima

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HERDEIRO MAGO

 

O alvo era um prédio pobre de três andares em uma área da cidade de Londres que ainda não havia sido reurbanizada. As pessoas e os carros tinham sido retirados das ruas ao redor, e as calçadas sujas transpiravam sob o ar denso. Barreiras mágicas recobriam o tijolo enegrecido pela fuligem, belas como lã de vidro. Era como se fosse uma escultura de gelo ou um castelo de fadas que ocultavam a ameaça dentro de si.

Dessa vez o Dragão tinha permanecido on-line por tempo suficiente para ser localizado. Talvez ele tivesse achado que era seguro emergir nas primeiras horas da madrugada.

Seis magos entraram pela porta da frente como espec­tros, escudos firmes no lugar, sabendo que o Dragão atacaria quando se sentisse acuado. Levaram menos de um minuto para descobrir que não havia ninguém no apartamento para matar.

D'Orsay entrou depois deles. O apartamento era mi­serável e pequeno. A mobília era formada de peças de segunda mão acumuladas por muitas décadas. Camadas de sujeira impregnada no tapete tornavam impossível adivinhar sua cor original. Ele atravessou a sala da frente, a cozinha e entrou no quarto dos fundos. O teclado e o monitor ainda estavam lá, uma estrutura ligada a uma confusão de cabos, mas apenas um leve espaço na poeira sobre a escrivaninha revelava onde o laptop estivera.

Uma escada interna no fundo do corredor levava ao telhado. O apartamento fora escolhido por esse motivo, e não pela decoração. Eles se lançaram escada acima e en­contraram o terraço, ocupado apenas por gatos. D'Orsay examinou a rede de ruas que cercavam o prédio. Não havia movimento em lugar algum.

Algo havia assustado o Dragão. Talvez o uso de magia os tivesse traído. De algum modo, ele sentira que eles o rastrearam pela internet e contornaram todos os becos sem saída e desvios de correspondência que ele armara no universo digital para ludibriá-los.

Ou talvez alguém o tivesse avisado. A rede de espiões do Dragão era lendária, e seus agentes, espantosamente leais. Por meses, D'Orsay vinha procurando uma falha, a ponta solta que, quando puxada, desfiaria a rede.

Uma ponta solta. Alguém que ele pudesse levar para a masmorra na Ravina do Corvo e torturar até que revelasse os segredos do Dragão.

Até agora, no entanto, nada. Pior que isso, era possível que a própria organização de D'Orsay estivesse compro­metida.

O recém-criado Conselho dos Magos lutava para su­perar a guerra sangrenta entre as Casas dos Magos das Rosas Vermelha e Branca, que já durava séculos, a fim de poder lidar com a recente rebelião das ordens servis. Dar fim à guerra seria difícil mesmo nas melhores circunstân­cias, mas era quase impossível com o Dragão atiçando as chamas de velhas rivalidades, espalhando boatos e postando correspondência confidencial na internet.

Aquilo era particularmente irritante para alguém como D'Orsay, que tinha muito a esconder.

Os magos matavam-se uns aos outros nos becos de Londres, nos castelos da Escócia e nas deslumbrantes casas noturnas de Hong Kong. Artefatos mágicos desa­pareciam de cofres, caixas-fortes e adegas. Tradicional­mente submissos, os feiticeiros, adivinhos e encantadores fugiam de seus mestres magos. E a mão do Dragão estava em tudo aquilo.

Aquela era a terceira vez que quase o pegavam desde o torneio na Ravina do Corvo. Seis semanas atrás, eles estavam certos de que o encurralariam numa favela de São Paulo. Acabaram caindo como patinhos num pântano mágico, uma rede de armadilhas diabólicas que dizimara a equipe de assassinos de D'Orsay e deixara o Conselho de mãos vazias. Três magos mortos, e eles continuavam tão longe de encontrar o Dragão quanto antes.

D'Orsay reconheceu o trabalho dele, a simplicidade elegante dos feitiços e dispositivos. Era como se o mago rabiscasse sua assinatura sobre tudo.

Mais recentemente, o Dragão havia libertado uma dúzia de feiticeiros de uma fortaleza em Gales. Aquilo havia sido triplamente irritante, pois era um projeto pessoal de D'Orsay, que tivera esperança de que, sob alguma pressão, os feiticeiros pudessem redescobrir alguns dos segredos das armas mágicas do passado.

Não encontraram fotografias no apartamento, nenhum item pessoal que pudesse fornecer uma pista sobre quem havia sido o inquilino.

D'Orsay estava desapontado, porém, não surpreso. Es­tava certo de que conhecia a identidade do Dragão, mas, se estivesse errado, tanto fazia. De qualquer maneira, aquele não era um rato a ser capturado em uma ratoeira comum. D'Orsay se sentia desconfortável com aquele tipo de operação. Era um estrategista, não um assassino. Es­tava presente somente por causa do poder do adversário e da necessidade de discrição. Era o que se poderia chamar de uma operação não autorizada, fora da jurisdição do Conselho.

Por que um mago se envolveria numa rebelião das ordens mágicas inferiores? O que ele teria a ganhar?

Vinte minutos mais tarde, Whitehead voltou para a cozinha carregando uma pasta de arquivo.

— Achei isto entre o armário de arquivos e a parede. — Ela a entregou a D'Orsay. — É provável que ele não tenha se dado conta de que estava ali atrás.

D'Orsay folheou o conteúdo da pasta: cartas e cópias de e-mails trocados com uma firma de advocacia em Londres, tudo relacionado à custódia de um menor de idade. Havia também correspondência com uma escola particular na Escócia tratando de acomodações, ensino e arranjos financeiros. Tudo isso datado de pelo menos dois anos antes.

O nome do aluno era Joseph McCauley. D'Orsay franziu a testa. O nome não lhe trouxe à mente nenhum dos conhecidos associados ou suspeitos de serem associados ao Dragão. Também não conseguiu relacioná-lo a ne­nhuma das famílias Weir, embora devesse examinar as bases de dados para ter certeza. Ao longo dos séculos, a genealogia havia permitido que as Casas dos Magos encontrassem guerreiros quando precisavam deles, para caçar aqueles que possuíam o dom e não sabiam disso. Os computadores só tornavam o processo mais eficiente.

Qual poderia ser a conexão entre aquele menino e o Dragão? Possivelmente nenhuma, mas os instintos de D'Orsay lhe diziam algo diferente. O que mais explicaria a presença de material tão pessoal no campo inimigo? E por que uma empresa de advocacia estaria lidando com esse tipo de correspondência rotineira? A menos que a intenção fosse esconder uma relação que pudesse revelar vulnerabilidade. D'Orsay sorriu. Seria bom demais para ser verdade.

Valia a pena investir um pouco de tempo naquilo. Àquela altura, os outros voltavam à cozinha. Ele esvaziou o copo de suco de maçã que estava tomando e passou a pasta para Whitehead.

— Encontre esse garoto para mim, Nora. Contate a escola mencionada nas cartas e descubra se ele ainda está lá. Veja se consegue qualquer informação sobre quem contratou essa empresa de advocacia. — Pensou por um momento, esfregando o queixo. — Fale com o Escritório de Registro Geral também. Procure por certidões de nas­cimento, de batismo, qualquer coisa. Se não encontrar nenhum registro britânico, tente em outros países. Veja se ele está em alguma das bases de dados Weir. Mas seja discreta.

Saíram do prédio meia hora após haverem chegado, dei­xando algumas armadilhas na improvável hipótese de o Dragão retornar. Talvez tivessem conseguido, pelo menos, afugentar o Dragão para sua caverna, tirando-o de cena por algum tempo. Qualquer tempo ganho lhes seria pre­cioso. Quando voltasse a agir, talvez fosse tarde demais para ele.

Ou, talvez, chegando essa hora, eles já tivessem uma outra carta para jogar.

 

                   Toronto

O calor de agosto havia persistido noite adentro. Trovões rugiam sobre o lago Ontário, amea­çando um dilúvio. Quando Seph entrou no depósito, pouco depois das duas da madrugada, sentiu como se tivesse topado com uma floresta tropical urbana. Sentiu o odor e o calor de centenas de corpos em mo­vimento e estreitou os olhos para enxergar através da fumaça que encobria a sala.

Era um hábito seu chegar tarde em festas.

Seph sorriu e acenou com a cabeça para o segurança na porta. O homem estava lá para interceptar os menores de idade, mas simplesmente retribuiu ao sorriso de Seph e lhe fez um gesto autorizando a entrada. Acesso nunca era um problema.

A música pulsava de alto-falantes de última geração ligados às vigas do teto do depósito. Suor pingava sobre as tábuas arranhadas do assoalho enquanto a multidão se contorcia na pista de dança. As luzes negras pintavam os rostos de quem dançava, deixando a parte externa da sala inviolada. Um bar ilegal oferecia um serviço rápido no canto, e os clientes de costume já estavam bêbados.

Ele foi parado seis vezes em seu caminho pela sala por pessoas que queriam combinar coisas para mais tarde.

Seph e seus amigos sempre se reuniam à direita do palco. Carson e Maia, Drew, Harper e Cecile já estavam lá; dava para notar que haviam passado a noite toda lá. Eles cercaram Seph, vibrando de excitação e com o tipo de euforia gerada por horas de sobrecarga sensorial. Os amigos eram mais velhos do que ele, mas a festa nunca começava de verdade antes que ele chegasse.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Algo sobre uma garota.

  • Calma lá — disse ele, erguendo as mãos e sorrindo. — Dá pra repetir?

Harper olhou feio para o círculo ao redor até que todos se calassem.

  • O nome dela é Alicia. Ela acabou de se mudar pra Toronto e é totalmente demais.

—  Ela lembra você — acrescentou Cecile. — Quero dizer, ela... bem... tem algo nela. A gente falou pra ela de você, e ela disse que talvez voltasse mais tarde... sabe... pra conhecer você.

Maia, mal-humorada, era a única que não parecia impressionada.

  • Não acho que ela pareça nem um pouco com você.

Maia era asiática, fazia parte do caldeirão de raças que era Toronto. Tinha um jeito de personagem de desenho animado japonês, com o cabelo espetado e extravagantes roupas em retalhos de algodão. Além disso, ela sabia dizer palavrões em três dialetos chineses.

Seph falou no ouvido de Maia, para que pudesse ser escutado em meio à música.

  • Quer dizer que não gostou dela?
  • Não sei. É mais tipo... não confio nela. — Maia olhou-o, estudando seu rosto como que procurando por pistas, então mergulhou a mão na bolsa enfeitada de contas que ela trazia no ombro. Tirou um pacote embrulhado em papel de seda, que entregou a ele. — Fiz uma coisa para você.

Ele sentiu o peso do embrulho sobre a palma. As pes­soas estavam sempre lhe dando coisas.

  • Por que isso? Não precisava me...
    • É pelo seu aniversário. Abra.
    • Meu aniversário foi dois meses atrás. — Ele sorriu para ela e rasgou o papel de seda. Era uma cruz celta de ouro, forjada no estilo delicado e especial de Maia. — Você não pode me dar isto. Deve ter levado horas pra fazer!
      • Foi só um trabalho de artes que fiz para a escola. — Ela a tomou dele, ficou na ponta dos pés e passou a corrente em torno do pescoço dele, levando mais tempo do que o estritamente necessário. — Achei que você ia gostar.
    • Eu gosto, é linda. Mas... — Ele procurou as palavras certas. Não queria dizer nada que arruinasse o que havia entre eles. — É que... você é uma amiga tão legal, e eu não quero...
  • Apenas fique com ela, falou? Como... como um amigo. Sem compromisso.

Ele não podia recusar.

  • Tudo bem, obrigado. É fantástica.

Ele a abraçou com cuidado. Todo braços e nenhum corpo, cotovelos baixos para manter uma pequena dis­tância. Mas ela se aninhou contra ele, enroscando os dedos em seus cabelos, pressionando o rosto contra a camisa dele, como que para sentir o cheiro. Seph deu-lhe tapinhas nas costas, acalmando-a com seu toque. Trans­mitindo uma leve centelha de poder, mas nada muito forte.

  • Lá vem ela! — disse Carson, todo aceso, ao lado dele. — Aquela é Alicia.

Seph ergueu os olhos e viu uma garota abrindo ca­minho pela sala lotada, e as pessoas na pista abriram caminho para deixá-la passar. Era pequena, mas exube­rante, como uma exótica flor tropical. Vestia calça jeans justa e preta e uma blusa de renda que lhe escorregava dos ombros. Os cachos pretos azulados tinham listras roxas e estavam frouxamente presos com um lenço florido. Ela carregava uma bolsa de pano no ombro. Os olhos eram de um amarelo felino.

  • Você deve ser o famoso Seph McCauley. — Ela o mediu de alto a baixo como se estivesse acostumada a decepções, então estendeu os dedos cheios de anéis. — Meu nome é Alicia.
    • Muito prazer — disse ele, soltando Maia e apertando a mão de Alicia.

Foi como enfiar a mão em uma tomada elétrica. Por um longo instante, ficaram paralisados, numa corrente que fluía entre eles. Então ambos soltaram as mãos, recuaram um passo e fitaram um ao outro. Durante toda a sua vida, as pessoas haviam reagido ao toque dele. E agora ele sabia como se sentiam.

Ela se recuperou primeiro.

  • Ora, ora — disse ela, estudando-o com interesse renovado, correndo a língua por sobre os lábios pintados de vermelho. — Você é poderoso mesmo, não é?
    • Eu me viro — disse Seph, massageando os dedos, que formigavam, e contendo um assomo de esperança. Poder. Ela também tinha poder. — Você... você é... Você veio de onde mesmo?
  • Daqui e dali. Minha última parada foi nos Estados Unidos, mas tive de sair de lá.

Ele mordeu a isca.

  • Por que você...?
  • Estava entediada. — Ela estreitou os olhos para ele.

—  Quantos anos você tem, afinal?

  • Dezoito — disse ele, acrescentando automaticamente dois anos á sua idade. — Escute, será que eu posso... pagar uma bebida pra você? — Patético. Aquilo foi patético.

—  Quem sabe a gente possa ir a algum lugar e conversar?

  • ..

Alicia examinou os amigos de Seph, que estavam agru­pados em torno deles em um círculo apertado. Maia franziu o rosto, puxando para trás a franja repicada, mordendo o lábio e olhando de Seph para Alicia.

  • Você — Alicia apontou para Carson. — Seja gentil e vá buscar algo pra gente beber. Vodca com lima pra mim.

Alicia lançou a Seph um olhar inquiridor.

  • Eu não... — começou ele, erguendo as mãos.
  • E um refrigerante para o Seph, já que ele não... — disse ela, sacudindo a cabeça.

Seph revirou os olhos para Carson, mas ele já estava longe, apressando-se em obedecer.

  • Escutem, eu falo com vocês mais tarde. — Seph agarrou o cotovelo de Alicia, esperando um novo espasmo de poder, e guiou-a em direção a uma mesa junto à parede, deixando Maia e os outros perto do palco. — Quem você pensa que é, dando ordens aos meus amigos?
  • E você não dá? — Ela riu baixinho. — Pois deveria. Quem você pensa que é?

Ele jamais tivera uma boa resposta a essa pergunta.

Seph escolheu uma mesa no canto entre os alto-falantes, onde o barulho se reduzia a ponto de permitir que conversassem realmente. Carson trouxe-lhes as bebidas e partiu, dando a Seph uma piscadela.

  • Então por que anda com eles? — indagou Alicia, estendendo a mão sobre a mesa e correndo o dedo pela borda do copo dele.
  • Quem?
  • Seus amigos. Os Anaweirs. Deve ser um tédio. Quer dizer, fora ser o líder da matilha e tudo o mais.

Ele arriscou uma pergunta.

  • Anaweir? Não tenho certeza se eu...
    • Os sem-dom. Os sem-poder. Ainda menos relevantes para um mago do que as ordens servis.

Seph conteve o impulso de responder. Todos tinham seus talentos, mas nenhum deles era mago. Nem mesmo eram membros das outras Ordens Weir mágicas: os fei­ticeiros, os adivinhos, ou os raros encantadores e guer­reiros.

Os magos eram diferentes das outras ordens mágicas, pois necessitavam de encantamentos, palavras para moldar a magia. Sua mãe adotiva, Genevieve, havia-lhe dito isso.

—  Eu venho tentando fazer contato. É difícil achar outras pessoas... como nós. — Pronto, ele dissera. — Quer dizer, eu gostaria de aprender mais, obter mais... treinamento. — Implicando que já tivera algum.

Alicia arqueou uma sobrancelha.

—  O treinamento vem por intermédio das Casas. Qual é a sua afiliação?

  • Afiliação?

—  Sua Casa dos Magos.

Ele simplesmente piscou, então se concentrou em ar­regaçar as mangas, dobrando cuidadosamente o tecido tosco de algodão. A temperatura parecia estar subindo.

Alicia se inclinou para a frente, baixando a voz.

—  Olha, eu entendo que todo cuidado é pouco hoje em dia. Ninguém sabe mais quais são as regras. — Ela sacudiu para trás os cachos. — Eu estava na Ravina do Corvo, sabe?

—  Onde?

—  Na Ravina do Corvo. O torneio em que as regras foram mudadas. Eu era namorada do Jack Swift. Não consigo deixar de pensar que, se eu não tivesse rompido com ele, nada disso teria acontecido.

Ela olhou para ele à espera de uma reação, mas ele simplesmente a fitou, procurando por uma resposta que não revelasse a sua ignorância. Sentia-se estúpido, algo com que não estava acostumado e de que não gostava.

Ele pegou seu copo. O refrigerante correu-lhe garganta abaixo e explodiu em algum lugar em seu estômago, deixando-o tonto e sem fôlego. Qual era o problema com ele? Tinha de manter a cabeça no lugar.

Ele sorriu e olhou-a nos olhos, uma técnica que sempre funcionara no passado.

  • Eu tinha esperança de que a gente pudesse trabalhar junto. Você sabe... colaborar. — Geralmente só o que ele precisava fazer era pedir.

Alicia estudou-lhe o rosto como se fosse um livro em língua estrangeira. Estendeu o braço e correu o polegar pela linha do maxilar dele, como que fascinada pela es­trutura óssea; depois lhe inclinou o rosto para a luz e ajeitou os cabelos dele para trás. O toque dela era como minúsculas explosões contra a pele.

  • Você sabe que os seus olhos mudam de cor? Verde, castanho e azul.

Seph se remexeu, desconfortável sob o escrutínio dela.

  • Foi o que me disseram.

Ela pareceu chegar a uma decisão.

  • Está bem. Eu digo em que Casa estou. Eu geralmente não me dou ao trabalho, só que é difícil encontrar pessoas interessantes, e acho que você é... interessante. — Ela puxou a blusa para fora do jeans, expondo uma tentadora faixa de pele e um umbigo com um piercing. Ali, acima da linha da cintura, estava a tatuagem de uma rosa branca.
  • Muito bem — disse ela, rearranjando as roupas, como se aquilo explicasse tudo. — Agora você. — Ela olhou para ele, na expectativa. — Rosa Vermelha ou Branca?
    • Não sei do que você está falando — admitiu Seph, sentindo-se como se estivesse num jogo viciado de verdade-ou-desafio.

Ele deslizou a mão por sob o colarinho, puxando-o para longe da pele quente.

Alicia parecia aborrecida.

  • Confie em mim, não me importa em que Casa você esteja. Eu deixo a política para o Conselho dos Magos. Sou mercadora. Vendo o que as pessoas querem comprar. Tenho de lidar com todo mundo.
  • Olha, não posso dizer para você o que não sei. — Ele esvaziou o copo e bateu-o com força sobre a mesa.
  • Sei que sou um mago. Sei que tenho poder, mas não sei como usar. Sei que existem outros como eu, porém os que consegui encontrar não sabem mais do que eu. — Ele agarrou a mão dela e prendeu-a contra a mesa. — Como falei, preciso de treinamento. Tenho perguntas.

Ele sabia que estava revelando demais, que era má idéia deixar uma desconhecida tão poderosa saber quão desesperado ele estava.

Alicia tentou sem sucesso retirar a mão, embaraçada pela emoção carente que ele transparecia.

  • E quanto à sua família? E o seu Livro Weir? Isso deveria ser um começo, pelo menos.

Seph engoliu em seco. Sentia-se como se sua cabeça fosse explodir.

  • Não tenho nenhuma família, não que eu saiba. Não tenho um Livro Weir, seja lá o que for. Minha mãe adotiva me falou algumas coisas, mas ela já morreu. E as coisas... estão fora de controle. Se você é mercadora, então me ache um professor. Me ache um Livro Weir, se é disso que eu preciso. Tenho bastante dinheiro. Eu pago o que você pedir.

Alicia olhou-o por sobre a mesa e começou a rir.

  • Não acredito. Você é como um virgem em magia. Você devia ver a sua cara. Tão sério. — Ela lhe roçou a face com os nós dos dedos. — Você é lindo, sabia? Tem o rosto de um deus. Um deus raivoso. E tão... poderoso — sussurrou ela.

A pele de Seph formigou e ardeu. Algo como uma erupção causada pelo calor se espalhou da clavícula para cima. Sentiu os lábios dormentes e a língua engrossar dentro da boca. Não conseguia falar. Algo sinistro ondu­lava por baixo da sua pele, buscando uma válvula de escape. Sentia-se grande demais para seu corpo, como se pudesse se abrir ao longo da espinha e se derramar no chão como uma cobra trocando de pele.

  • O que... o que está acontecendo? — murmurou ele.

A música berrava em seus ouvidos, e as luzes invadiam

o canto escuro em que estavam. Ele levantou um braço para fazer sombra para o rosto.

Ela lhe deu um tapinha na mão.

  • Acredite em mim, é coisa boa. Igual a nada que você já tenha provado.

Ele agarrou a mão dela com mais força, emanando poder sem conseguir se conter.

  • O que você fez comigo? É algum tipo de feitiço, ou... ou...

Alicia remexeu na bolsa de pano e tirou de dentro uma garrafa de vidro iridescente, com uma tampa de cristal.

  • Quer relaxar? O nome disso é Chama de Mago. Nas ruas chamam de "Queima-Mente". Os feiticeiros fazem para vender. Vamos dizer que é minha oferta especial de apresentação.

O pânico se insinuou na consciência de Seph.

  • Você me drogou?
    • É um acelerador para os dotados. Derruba todas as barreiras e deixa o poder fluir. Você vai adorar. Depois disso, a vida diária vai parecer em preto-e-branco.

Ele sacudiu a cabeça.

  • Não. Você não entende. Não consigo controlar o meu poder nem quando estou sóbrio. Coisas acontecem.

Ela sorriu diante da angústia dele.

  • Não se preocupe, o efeito passa em mais ou menos uma hora. Vamos, deixe-me mostrar outra coisa pra você. — Ela se inclinou e o beijou na boca. Então recuou, tre­mendo, passando os dedos nos lábios chamuscados. — Ei!

Os lábios dele não estavam mais dormentes: ardiam. Sua pele estava queimando. A música o agredia. O cheiro da multidão o deixava nauseado. Não conseguia pensar.

Alicia lutou para soltar a mão.

  • Você está me queimando! Me solte!

Ele a soltou, e ela cambaleou para trás, desaparecendo de seu campo de visão. Entretanto, ele conseguia ver cada pessoa no salão, ouvir uma centena de conversas ao mesmo tempo, como se todos os seus sentidos estivessem aguçados.

Ele precisava sair. Rumou para a porta, esgueirando-se pela multidão, contorcendo-se e dando voltas para evitar tocar em alguém, deixando pegadas carbonizadas e fumegantes atrás de si. Roçou numa mesa, e ela explodiu em chamas. Faíscas incendiárias voavam das pontas dos seus dedos, ateando fogo às cortinas em torno do palco e às mantas de isolamento acústico que cobriam as pa­redes. Por todos os cantos da sala, objetos inflamáveis incendiavam-se, vaporizavam-se e desfaziam-se em cinzas. Chamas lambiam as paredes, e metal derretido pingava do teto. A música ainda tocava, e as luzes negras dançavam, mas agora um alarme de incêndio berrava como se fosse o fim do mundo.

— Fujam! — gritou ele.

A voz dele, estranhamente amplificada, reverberou por todo o salão. Rostos se voltaram na direção dele, pontos pálidos no escuro avermelhado, enquanto ele ficava ali, jorrando chamas como uma vela romana[1]. Sua roupa de algodão queimava e soltava fumaça. As pessoas olhavam para ele, horrorizadas, e então corriam para a saída, gritando e empurrando-se umas às outras no desespero de fugirem dali.

Uma multidão se agrupou junto à porta da frente, como um animal em pânico tentando forçar a entrada em uma toca estreita, enquanto centelhas choviam sobre suas cabeças. Muitas pessoas foram prensadas contra a en­trada, e ninguém conseguia passar. Aqueles que não eram esmagados ficavam para morrer queimados.

Seph correu em direção à parede do depósito, os braços estendidos, levado por nada além do puro poder e uma determinação de não causar mais um desastre. Chamas escoavam das pontas dos dedos e explodiam a madeira desgastada, deixando uma abertura carbonizada e fumegante que cheirava como uma lareira acesa e parecia um portal para o inferno. Ele olhou para a abertura, atônito por um instante, e então gritou:

  • Por aqui! Saiam!

A multidão se lançou na direção da nova saída. Ele foi atropelado pela multidão e carregado pela pressão de seus corpos.

Finalmente, estava na rua. A tempestade que havia ameaçado cair o dia inteiro desabou, e ele se viu soltando vapor sob a chuva torrencial. Em poucos segundos, estava encharcado até os ossos. Os refugiados que haviam dei­xado o local se abrigaram sob uma marquise do outro lado da rua, e o observavam com cautela. A pouca distância, uma sirene soava.

Onde estavam Carson, Maia e os outros? Piscando para se livrar da água nos cílios, ele passou os olhos pela multidão, mas não conseguiu encontrar os amigos. Nem Alicia, a garota que havia desencadeado aquela série de eventos.

Lutou contra uma maré de seres humanos para voltar à entrada.

  • Maia! — Maia era pequena e corria grande risco de ser pisoteada. Ele finalmente forçou a entrada pela mesma abertura pela qual saíra e se deparou com uma parede de chamas e fumaça. — Drew!

Ele deu a volta por fora do depósito, procurando desesperadamente um jeito de entrar e não achando nenhum. Como podia estar queimando assim num dilúvio? Faíscas explodiram em direção ao céu quando o teto desmoronou. A temperatura do fogo era tão alta que ele teve de recuar mais uma vez para o outro lado da rua.

Apoiando as costas contra um prédio, ele deslizou para o chão e abraçou os joelhos. Agarrando a cruz de Maia, sentindo o ouro amolecer sob os dedos quentes, Seph virou o rosto para o aguaceiro que caía, resfriando sua pele febril, enquanto desejava que aquela água pudesse lavar a memória do que ele havia feito.

 

A reunião foi realizada na filial do escritório de advocacia Sloane, Houghton e Smythe, em Toronto. Quando Seph chegou, eles o levaram para uma pequena suíte luxuosa com estantes de nogueira e um carpete tão grosso que absorvia o som. Denis Houghton, o tutor de Seph, viera de Londres para aquele evento. Provavelmente queria ter certeza de que o rapaz não chegaria nem perto da matriz.

Seph vira seu tutor apenas duas ou três vezes. O advogado era um homem alto, de cabelos grisalhos e gosto por relógios caros e anéis requintados no dedo mindinho. Seus ternos, feitos sob medida, não conseguiam esconder o princípio de uma barriga.

Seph não podia deixar de se perguntar quantos ternos e anéis a tutela dele havia pagado. Sua mãe adotiva, Genevieve LeClerc, morrera três anos antes. Só então ele descobrira que tinha um tutor, um enorme fundo fiduciário e um monte de advogados para cuidar de seus interesses.

Ela havia guardado tantos segredos. Apesar de Genevieve ter-lhe ensinado a fazer omelete, colar papel de parede e escolher garrafas de vinho para seus convidados na hospedaria, seus parcos conhecimentos de magia haviam sido adquiridos aos trancos e barrancos, revelados com relutância, arrancados dela como ostras de teimosas conchas.

Genevieve tinha a desconfiança típica dos feiticeiros em relação aos magos e a seus métodos cruéis. Essa desconfiança nascera de longos serviços prestados a um mago na França, sua terra natal. Os pulsos traziam braceletes de cicatrizes sobrepostas, marcas das algemas que usara. Ela havia amado Seph com absoluta devoção, mas esperava que a magia dele só se manifestasse caso fosse reconhecida. Em vez disso, a magia de Seph havia se espalhado como uma trepadeira, escalando cercas e desabrochando inesperadamente por entre os paralelepípedos.

Os dedos do Sephfazem cócegas, seus colegas de jardim de infância diziam. Os professores o adoravam naqueles tempos, rendendo-se ao menino de cachos escuros, olhos que mudavam de cor e sorriso doce. O porquinho-da-índia da turma havia se entocado sob a carteira dele e não deixava ninguém tocá-lo além de Seph. A lagoa no parque congelava no meio de julho se Seph quisesse patinar.

Ele gostava do recreio, mais do que tudo, e às vezes o recreio durava o dia todo. Tudo o que Seph precisava fazer era pedir com educação. Até que Genevieve descobriu e interveio.

Mas, à medida que ele crescia, a magia se tornava mais forte, mais perigosa, mais difícil de controlar. Ficara pior depois da morte de Genevieve. Ele era o feio chupim no ninho do tico-tico, impossível de ignorar.

Houghton saiu de trás da enorme escrivaninha de no­gueira e indicou a Seph uma mesa próxima à janela. Era para ser o tipo de reunião sentimental cara a cara, pelo jeito.

Seph se acomodou numa poltrona de couro, e Houghton sentou-se na cadeira em frente. O advogado observou Seph com tristeza por um momento, removeu os óculos, poliu-os até brilharem e os recolocou. Então soltou um longo suspiro.

  • Tudo bem agora, não é?
  • Eu estou bem — disse Seph, olhando o advogado nos olhos, desafiando-o a fazer outra pergunta. Seph não queria conversar sobre o depósito. Tinha medo de perder o controle.

Houghton insistiu, implacável.

  • Que história triste — disse o advogado. — Muito triste, com certeza. Mas, afinal, com essas festas a altas horas da noite, nunca se sabe. Sem nenhuma supervisão. Costumam atrair maus elementos.
  • — Respostas de uma única palavra eram mais seguras.
  • Dizem que havia drogas, bebida e por aí vai. — Houghton fez uma pausa e arqueou uma sobrancelha em uma expressão inquisitiva, mas Seph olhou para fora da janela, forçando-se a respirar fundo e devagar. — Certo — disse Houghton, desapontado. — Bem, de qualquer modo, conseguimos fazer com que algumas daquelas acusações ridículas fossem retiradas.
    • Afinal, convenhamos: lançar chamas das pontas dos dedos como um personagem de história em quadrinhos? Baboseira! Mas as pessoas ficam histéricas, sabe como é.
    • É.

—  É claro, a universidade tem alguma responsabilidade nisso. Todos os alunos do acampamento de verão deve­riam estar nos dormitórios às dez da noite, é o que está no panfleto. E, no entanto, lá estava você, com 16 anos de idade, perambulando pelas ruas de Toronto às quatro da madrugada.

Finalmente, Seph sentiu-se instigado a falar.

—  Eu não estava perambulando pelas ruas. Eu estava numa festa. Fui a um monte de festas, e nada nunca...

—  Então eles são duplamente responsáveis. Eles sa­biam, ou deveriam saber, que...

Seph se inclinou para a frente.

—  O senhor sabe que vou a clubes. O senhor tem pagado as contas.

Houghton pigarreou ruidosamente. Seph esperava que ele enfiasse os dedos nos ouvidos.

—  Enfim, é essa a situação. Acho que podemos con­cordar que a sua idéia de passar o verão na universidade em Toronto foi... um desastre.

—  Toronto não é o problema — disse Seph. — Toronto é ótima. Eu...

  • Não. — Houghton brincava nervosamente com um peso de papéis. A testa brilhava de suor. — Não desta vez. A Polícia Metropolitana exigiu minha garantia de que você vai deixar a cidade o mais rápido possível.

Seph sentiu um grande peso descendo sobre si.

  • Pensei que o senhor tinha dito que as acusações haviam sido retiradas.
  • Há diversas testemunhas que ligaram você ao fogo.

Seph agarrou os braços da poltrona.

  • É mesmo? E o que o senhor pensa?

Houghton enxugou a testa com um lenço cor de neve.

  • O que eu deveria pensar? Você parece ter gosto por substâncias inflamáveis. Houve aquele incidente na Suíça, os fogos e as explosões no telhado da capela, a... ahn... demolição da torre do sino.
  • Eu subi lá com uma... uma amiga. Não fui lá pra abrir um buraco na torre do sino.

Marie queria ver as estrelas, pensou Seph. Foi depois que eles se beijaram que os fogos começaram.

  • E aquele rapaz em St. Andrew. Aquele Henri Armand. Atacado por uma revoada de corvos, não foi?

Seph deu de ombros. Não conseguia se arrepender de modo algum pelo que havia acontecido com Henri. Armand era um aluno mais velho, vindo de Marselha, de quem se dizia ser o filho ilegítimo do líder de uma família da máfia francesa. Ele era também um lutador de rua habilidoso, um talento pouco usual entre alunos de escolas particulares.

Armand considerara Marie como sua propriedade parti­cular, como suas jóias de ouro extravagantes e seu carro esporte italiano. Quando soubera do incidente na torre da capela, ele emboscara Seph em um canto remoto do campus, esmurrando-lhe o estômago de modo que não aparecessem hematomas.

Então os corvos surgiram.

  • Aqueles pássaros retalharam as roupas do rapaz — insistiu Houghton.

Armand ficara tão assustado que molhara as calças. Depois disso, vários dos enormes pássaros negros pou­saram gentilmente sobre os braços e ombros de Seph, observando com seus olhinhos pretos brilhantes o corpo nu de Armand. Não importava que Seph estivesse com tanto medo dos pássaros quanto Armand.

Bem, talvez com um pouco menos de medo.

Seph olhou para Houghton e eriçou uma sobrancelha. Um apelo à lógica geralmente era eficaz.

—  Está querendo dizer que eu mandei uma revoada de corvos para cima do Henri?

Houghton deu um sorrisinho amarelo.

—  Quero dizer que você foi expulso de quatro escolas nos últimos três anos. Estamos ficando sem opções.

  • Mas eu vou para o Colégio da Universidade de Toronto. Está tudo arranjado.

—  Isso já não é mais possível.

  • E quanto ao Colégio da Universidade de St. Michael, então?
  • Não.

Seph percebeu para onde ia aquela conversa. Ele preci­sava ficar em Toronto. Precisava encontrar aquela garota, Alicia, e obter algumas respostas. Ela era a única pista de que dispunha.

Não tinha opção a não ser implorar.

  • Por favor, me deixe ficar aqui pra estudar. Tem de haver algum lugar que me aceite. Juro que não vou me meter em encrencas.

Estendeu a mão em direção a Houghton. Se pelo menos pudesse fazer contato...

Houghton ergueu as mãos e inclinou-se para trás, como que para se defender.

  • Não... Não vai funcionar. Não desta vez. Nossas mãos estão atadas. A polícia foi muita clara a esse respeito.
  • Deixe-me falar com eles.
    • É melhor você deixar isso pra lá. Graças a Deus, eles perderam o interesse em você. É hora de aprender que você não pode se safar de qualquer coisa no papo.
  • Já sei disso.
  • Além do mais, já está tudo arranjado.
    • O quê?
  • A sua nova escola.
    • Onde?
    • No Maine.
  • No Maine?
    • Parece um lugar adorável nas fotografias. É bem junto do mar. — Houghton pôs um panfleto na cara de Seph. — Felizmente pra nós, isso veio pelo correio logo depois que estourou a notícia do que aconteceu no depósito.

Seph pegou-o com relutância.

  • Eu detesto o mar.
  • Quem sabe você não aprende a gostar?

Havia um veleiro na capa. Seph passou os olhos pelo texto e balançou a cabeça.

  • Um colégio para rapazes?

Houghton deu de ombros.

  • A cavalo dado não se olha os dentes. E quem sabe a ausência de moças ajude você a... se concentrar.

Seph raspou a ponta do tênis no tapete feito à mão.

  • O senhor nunca me perguntou o que eu queria.
  • Como eu disse, não tínhamos muitas opções a essa altura do campeonato.
  • Tem pelo menos uma cidade grande no Maine?
    • Sim, acho que sim. Portland, acho que é o nome. — Ele franziu o cenho e esfregou o queixo. — Ou essa é em New Hampshire? Bom, tanto faz — disse ele com energia. — Você precisa partir de imediato. As aulas já começaram.

Seph deu de ombros e enfiou o panfleto no bolso. Normalmente, ele teria continuado a defender seu ponto de vista. Mas, naquele momento, sentia-se como se mere­cesse ir para o Maine. Ou qualquer outro lugar pouco povoado.

Houghton olhou para o relógio, aliviado por Seph não ter oferecido mais resistência.

  • Alguma pergunta?
  • Quem eram os meus pais?

Houghton suspirou.

  • Essa história de novo, não! Você viu os documentos. As fotografias. Não sei o que mais você...
  • Eu sei que são falsos. Eu verifiquei na internet. É tudo invenção.

Houghton levantou-se e remexeu nos punhos da camisa, endireitando o vinco das calças, pondo maior distância entre si mesmo e o cliente.

  • Eu sei que esses últimos três anos têm sido difíceis. Não é fácil perder os pais assim tão jovem. E é provável que a morte da sua mãe adotiva tenha renovado essa sensação de abandono...

Seph se ergueu, e Houghton deu um passo apressado para trás.

  • O senhor é advogado. Ninguém pediu que desse uma de psicanalista.

O poder formigava por suas mãos e braços, e ele lutou para esfriar a própria raiva. Não importa, disse a si mesmo. Não vale a pena.

  • ...e agora esse... acontecimento no depósito. Tão trá­gico. Aquela garota. Como era o nome dela mesmo?
  • Você a conhecia?
    • — Estava de volta às respostas de uma pa­lavra só.
    • Bom, é melhor não falar disso. Pode complicar as coisas bem quando elas começam a se ajeitar.

Houghton hesitou, então passou o braço com cautela em torno dos ombros de Seph. O advogado cheirava a tabaco, lã e loção pós-barba caros. Seph resistiu ao impulso de recuar.

— Pode ser que isso seja exatamente o que você precisa, Joseph. Vá para o Maine. Concentre-se nos estudos. Fuja disso tudo por uns tempos. — A voz do advogado era até gentil. — Você conseguiu se safar de ser fichado na polícia. Suas notas são boas. Veja se consegue se formar com boas notas no Porto Seguro. Então podemos falar sobre faculdades. Quem sabe você até possa voltar a Toronto pra estudar.

Dois anos mais, pensava Seph. Dois anos mais, e eu posso reivindicar meu fundo e despedir Sloane, Houghton e Smythe. Dois anos mais, e vou ter tempo e dinheiro para descobrir quem sou de verdade.

Dois anos pareciam uma eternidade.

 

                   Porto Seguro

Seph pressionou o rosto contra o vidro frio da janela do avião, vendo a costa irregular da Nova Ingla­terra lá embaixo. Daquela altitude, o Atlântico parecia um lago calmo, um profundo verde cinzento com uma delicada cobertura de renda quando quebrava nas praias.

A música martelando em seus fones de ouvido não era suficiente para ocupar a mente irrequieta.

Enfiou as mãos sob a blusa, libertando a cruz semi-derretida que Maia lhe fizera. Surpreendentemente antiquada para um espírito livre como Maia. Quando fechava os olhos, ainda podia sentir a intensidade e a carência do abraço dela.

Seph não se considerava especialmente atraente. Sabia o suficiente sobre arte para perceber que não se adequava a nenhum padrão clássico de beleza. O rosto parecia não ter ainda adquirido forma: todo feito de ossos salientes e ângulos agudos. Os cabelos caíam-lhe em cachos soltos e rebeldes se não os domasse com gel. Havia crescido tão de repente que ainda se sentia desajeitado e desen­gonçado. Mas as meninas ainda arrumavam pretextos para tocar nele e brincar com seus cabelos. Maia sempre falara dos olhos de Seph: de como eles mudavam de cor conforme a luz — castanhos num instante, depois verdes ou dourados.

E agora ela estava morta. Por causa dele.

Ele baixou o olhar para as mãos. As mãos de um assassino, embora parecessem normais, de carne e osso. Ele era... patológico. Era apenas falta de conhecimento ou algum tipo de defeito fatal?

Apertou o punho contra o peito, imaginando que podia sentir o peso interior. "Vous avez un cristal sous votre coeur", Genevieve lhe havia dito. Você tem um cristal sob o coração. Uma fonte de poder que era diferente em cada uma das ordens. Nos feiticeiros, encantadores, guerreiros e adivinhos, o uso do poder é mais ou menos inato.

Os magos precisam de treinamento para utilizar e con­trolar seus poderes. Genevieve lhe dizia aquilo quando ocorriam acidentes mágicos. Para que ele não pensasse que fora possuído, como os jesuítas haviam alegado quan­do era pequeno.

Mas ela não lhe contou a verdade sobre seus pais. E, por causa disso, ele se sentia traído.

Ele precisava de um professor. Se não conseguisse aprender a controlar seu dom, era melhor não tê-lo. Será que a pedra poderia ser removida, como uma vesícula doente?

Pelo menos Genevieve não tivera de enfrentar a tragédia do depósito. Ela teria ido à igreja, acendido uma vela e rezado por ele. Teria dito a ele que, aos olhos de Deus, ele era perfeito, mas Seph se perguntava como ela podia saber disso.

Os ouvidos de Seph o alertaram de que o avião havia começado a descer. Era uma aeronave com 16 poltronas de passageiros, das quais apenas seis estavam ocupadas — caçadores e turistas, pela aparência. Seph gostava da sensação de viajar em aviões pequenos. Talvez comprasse um avião, agora que tinha idade para ter aulas de pilo­tagem. Sorriu com a idéia — seu primeiro sorriso naquele dia — e tirou os fones dos ouvidos.

O avião inclinou-se e fez uma curva. O chão correu na direção deles, e o avião bateu com força sobre a pista coberta de grama. Antes que o avião parasse, Seph já es­tava em pé, puxando a bolsa de viagem do compartimento superior de bagagens.

Ele fechou os olhos e procurou seu centro interior, como Genevieve lhe ensinara. Você consegue. Já fez isso antes. Você é bom em conhecer pessoas novas. Só que essa nova escola era pequena — com cerca de cem alunos, de acordo com o panfleto. Ele nunca se dera bem em escolas pequenas. Ele provocava ondas demais para sobreviver num laguinho.

Precisava descobrir um jeito de ter sucesso ali. Em dois anos, ele poderia voltar para a cidade grande e desaparecer.

O aeroporto exibia um único prédio desgastado de placas de aço. A grama cobria o asfalto do estacionamento.

Um homem aguardava junto à grade de metal que cercava a pista de pouso. Era alto — pelo menos 15 centímetros mais alto do que Seph. Era também comple­tamente careca, mas Seph não sabia se era uma calvície natural ou se raspava a cabeça. Apesar do clima frio, vestia uma camisa pólo de mangas curtas que expunha os braços musculosos. Parecia ter cerca de 50 anos, mas com homens calvos é difícil ter certeza.

Seph esperou até que a tripulação houvesse descar­regado o compartimento de bagagem, então tirou sua outra mala do carrinho, pendurando-a no ombro. Quando caminhou em direção ao portão, o homem avançou para encontrá-lo.

  • Você deve ser Joseph McCauley — disse ele, com um sotaque da alta classe britânica. — Sou o dr. Gregory Leicester, diretor do Porto Seguro.

De perto, os olhos do diretor tinham uma cor peculiar cinza chapada, como rolimãs idênticos. A ausência de cabelo e o fato de os lábios serem da mesma cor do resto do rosto davam-lhe um ar estranho e robótico.

Aliviado porque o diretor não lhe estendeu a mão, Seph forçou um sorriso e disse:

  • Muito prazer.

Devia ser uma equipe pequena, pensou ele, para o diretor ir buscar um aluno no aeroporto.

  • Isso é tudo o que você tem? — perguntou o dr. Leicester, indicando a bagagem com a cabeça.
  • É só isso. Eu enviei uns livros alguns dias atrás, além do meu computador.

Seph viajava com pouca bagagem, o que era conveniente para alguém que se mudava tanto quanto ele.

Havia cerca de meia dúzia de veículos alinhados no estacionamento. O dr. Leicester guiou Seph em direção a uma van branca com PORTO SEGURO e um veleiro pintados em dourado na porta. A van estava destrancada. O diretor ergueu as malas de Seph com facilidade e as jogou no banco traseiro. Fez um gesto a Seph, para que se sentasse no banco do passageiro e entrou pelo lado do motorista.

  • Estamos a uma hora de viagem do colégio — explicou Leicester. — Isso nos dá a oportunidade de nos conhe­cermos.

Saíram do estacionamento de cascalho e viraram numa rodovia de duas pistas. Pelos mapas, Seph sabia que havia uma cidadezinha ao sul do aeroporto. Mas o destino deles ficava 80 km ao norte, sem muita coisa no caminho. Por que alguém ia querer construir uma escola particular num local tão remoto? Se fosse um albergue de caça ou uma prisão, ele poderia entender.

  • Você veio direto de St. Andrew ou passou algum tempo em casa? — indagou Leicester, de olho na estrada.
    • Eu vim de Toronto. Passei o verão lá, num acampa­mento — respondeu Seph.

A cabeça de Seph doía, como se aros de metal se fechassem ao redor de sua testa, e ele se sentiu tonto e desorientado. Talvez fosse em conseqüência do vôo, embora ele costumasse se sentir bem após viagens de avião.

Eles passaram por dois postos de gasolina, algumas casas espalhadas e, em seguida, entraram em uma densa floresta de pinheiros e álamos. Seph baixou o vidro, na esperança de que o ar fresco o reanimasse, e foi recom­pensado com o forte aroma de coníferas.

  • Teve um dia longo, então. — O dr. Leicester interrompeu-lhe o devaneio. — Espero que tenha dormido no avião.
  • Um pouco.

—  De onde você é?

—  Eu nasci nos Estados Unidos, mas cresci em Toronto.

  • Seus pais ainda moram em Toronto?

Seph olhava para frente ao responder:

  • Meus pais morreram.
  • Bem. Nós nos correspondemos com o seu tutor, o sr. Houghton. Presumo que tenha parentes na Inglaterra, então?

—  O sr. Houghton é só o meu advogado. Não sei muito sobre a minha família. Nada, na verdade.

O que lhe disseram sobre seus pais era tênue e incolor, como um desenho, um esboço de uma história sem carne nem osso. A mãe fora comissária de bordo, baseada em Toronto; o pai, um empresário do ramo da computação. Haviam morrido no incêndio de sua casa na Califórnia quando Seph tinha um ano de idade. Genevieve LeClerc fora sua babá e, depois, sua mãe adotiva. Aquela história lhe fora repetida desde que ele era pequeno.

E agora ele sabia que era uma mentira.

—  Acho que vai gostar daqui, Joseph, depois que se aclimatar — disse Leicester. — Sei que mudou de es­cola diversas vezes. Muitas vezes alunos talentosos têm problemas quando suas necessidades não são atendidas. Aqui no Porto Seguro nós raramente perdemos um aluno.

Na verdade, integramos os melhores alunos do colégio nos nossos programas mais especializados. Acreditamos em fazer um currículo sob medida para o aluno.

  • Certo — disse Seph. — Parece uma boa estratégia.

Ele não conseguia evitar que a paisagem o distraísse.

Era um garoto da cidade. Por meia hora, não viu nada além de árvores em ambos os lados da estreita faixa de concreto da estrada. Nem mesmo outros carros.

  • .. ahn... isolado.
    • Dá para se caminhar por quilômetros sem nunca deixar a propriedade — disse Leicester, como se aquilo fosse um bônus.

Agora muitas das estradas transversais eram de terra e levavam os nomes das praias. Seguindo um longo trecho ininterrupto de árvores, chegaram a uma saída com uma bela placa de tijolos e pedra que dizia: PORTO SEGURO - PROPRIEDADE PARTICULAR.

Um alto muro de pedra se estendia em ambas as dire­ções, até onde ele conseguia ver. Para impedir as árvores de andarem por aí, na certa, pensou Seph, piscando e esfregando os olhos. O muro tinha um aspecto borrado e indistinto, como se estivesse coberto por ramos de névoa.

Talvez fosse uma enxaqueca se aproximando.

Eles viraram ã direita, passaram por um alto portão de ferro trabalhado e seguiram por uma estrada asfaltada.

Ao longo da alameda, as árvores estavam tão próximas que Seph seria capaz de tocá-las se estendesse a mão. As copas cheias de folhas se arqueavam e se encontravam no alto, filtrando a luz em frágeis raios que mal colo­riam o chão. O ar pairava denso com o cheiro de coisas verdes mortas havia muito tempo e semi-decompostas. Atravessaram de carro o denso matagal até que as árvores começaram a escassear e a luz aumentou. Uns vislumbres de água e o ar mais fresco anunciaram que haviam chegado ao destino.

Pararam diante de um grande prédio de cedro e pedra, separado da água por uma larga passarela. Uma longa doca ia até o porto, onde diversos veleiros balançavam, as velas dobradas e atadas aos mastros.

— Este é o centro administrativo — explicou o dr. Leicester. — A lanchonete, o ginásio esportivo, a biblio­teca, as áreas sociais e outros serviços para os alunos estão todos aqui. — Ele conduziu o carro adiante por mais 90 metros e parou em frente a outro prédio. — Este é o Gareth Hall. A maior parte das aulas acontece aqui, com exceção de educação física, arte e música. O semestre começou há algumas semanas, por isso você tem bastante estudo pela frente.

Arte e música compartilhavam um prédio exclusivo. Não dava bem para chamar aquilo de um compus — não havia espaço aberto suficiente para isso. Cada prédio se erguia isolado em sua própria clareira, com a floresta invadindo por todos os lados, como se lutasse para mantê-los encur­ralados. Os troncos altos e fortes das árvores erguiam-se até se juntar na escuridão.

Todos os prédios tinham uma construção similar, como se a escola houvesse emergido da terra totalmente for­mada. Era um contraste gritante com St. Andrew, com suas antigas salas de aula feitas de pedra, torres com sinos e gramados verdes, as montanhas emoldurando cada paisagem. E o Colégio da Universidade de Toronto... Ele expulsou de sua mente as imagens da cidade.

  • Vocês devem ver um bocado de vida selvagem por aqui — observou Seph, pois o dr. Leicester parecia estar esperando que ele fizesse algum comentário. Aquilo era o fim do mundo, pensou ele.
    • Um pouco de tudo: alces, ursos, lobos, veados. — Leicester riu como se risos não lhe viessem com facilidade. — Os guaxinins e os ursos às vezes causam problemas.

Era difícil imaginar aquele homem presidindo um jantar de arrecadação de fundos ou recebendo pais.

Eles pararam em frente a uma estrutura mais modesta de três andares, de pedra, vidro e cedro, semelhante em estilo aos demais edifícios, mas em escala menor.

  • Este é o dormitório. — Ele entregou a Seph um cartão-chave. — A sua suíte é a 302. Precisa de ajuda com a bagagem?
    • Não, obrigado. Eu me viro.

Seph saiu da van e tirou as malas do banco traseiro.

  • Vou pedir a um dos nossos alunos para lhe mostrar todo o lugar antes de segunda-feira. Se estiver com fome, acho que pode conseguir alguma coisa na lanchonete, no prédio da administração.

Seph não estava com fome. A dor de cabeça piorara. Sentia como se alguém estivesse batendo em seu crânio.

  • A natação é às quatro e meia — disse Leicester. — Vista a sua roupa de banho e siga as placas até a enseada. Todos vão estar lá, e você vai ter a oportunidade de conhecer os outros rapazes.

O diretor não lhe deu tempo de responder. A van seguiu em frente, cuspindo cascalho de debaixo das rodas.

Seph olhou em volta. A luz do sol tingia as copas das árvores, e aqui e ali uma abertura no dossel acima a deixava penetrar até a base da floresta. Fora isso, o solo era banhado por um crepúsculo verde e fresco. Folhas se embaralhavam no alto e galhos balançavam ao vento. Um esquilo lançava-lhe um olhar furioso de um tronco próximo. Seph já estava com frio, mesmo com o abrigo que estava vestindo. Talvez aquele fosse clima para natação no Maine, mas não no lugar de onde ele vinha.

Onde quer que esse lugar fosse.

Ele pendurou as malas no ombro, ignorou o elevador e subiu três lances de escadas até seu andar. O quarto ficava numa das extremidades do prédio, bastante isolado, saindo de um pequeno corredor. Leicester não dissera nada sobre colegas de quarto, e Seph não ficou surpreso ao descobrir que tinha um quarto só para si. Os alunos de escolas caras estavam acostumados a ter seu espaço próprio e bastante amplo.

Cada escola que ele já freqüentara estava gravada em uma única imagem em sua mente: o salão cavernoso na Escola de Campo Dunham na Escócia; a vista da torre do sino em St. Andrew na Suíça; Montreal iluminada ao anoitecer no inverno, quando o sol parecia se pôr no meio da tarde.

O quarto possuía uma lareira a gás e uma varanda com tela de onde avistava a floresta. A mobília incluía uma cama de solteiro com uma sólida cabeceira de carvalho e uma colcha grossa com uma estampa de pinheiros, uma cômoda, uma escrivaninha com estante, duas cadeiras para convidados, tapetes de pano no chão e azulejos de cerâmica no banheiro.

As paredes haviam sido deixadas vazias, uma tela em branco para alguém pintar. Só que Seph não costumava mais personalizar muito seus quartos. Não havia por quê. Tinha aprendido a carregar seu senso de identidade consigo.

Uma cesta de frutas e várias garrafas d'água estavam arranjadas sobre uma pequena mesa com um bilhete, Bem-vindo, Joseph, impresso em papel de carta de cor creme com um veleiro em alto-relevo.

Os livros haviam chegado e o aguardavam em caixas na frente da estante. O computador fora desempacotado e alojado sobre a escrivaninha. Não havia telefone, porém, nem uma conexão de internet que pudesse encontrar. Pegou o celular e olhou para a tela. Sem sinal. Ele pra­guejou baixinho e o devolveu ao bolso da calça jeans.

Metodicamente, desfez as malas, guardou a escova e a pasta de dentes e o resto do material de higiene, tomou duas cápsulas de ibuprofeno. Localizou as tomadas elé­tricas, montou o tocador de MP3 em seu nicho e posi­cionou os alto-falantes. Ele tinha o melhor aparelho de som que o dinheiro podia comprar. Ligou a música bem alto, torcendo para que aquilo atraísse visitantes. Não funcionou.

As roupas ocuparam apenas três das seis gavetas. Ele passou os livros da caixa para a estante, correndo os dedos pelos títulos familiares em francês e inglês. Talvez não tivesse de carregar tantos livros com ele, também.

Com que freqüência ele lia um livro mais de uma vez? Aprendera a reduzir, a simplificar, como alguém que viaja a negócios, tentando forçar sua vida a caber numa mala de mão.

Lã pelas quatro horas, a dor de cabeça havia amenizado um pouco.

Mais do que tudo, ele queria trancar a porta e desabar na cama. Mas estava acostumado a tratar das apresenta­ções o mais cedo possível.

Não obteve resposta em nenhum dos quartos próximos, até que bateu à porta do quarto na extremidade oposta do corredor, do outro lado da escadaria. Um aluno negro, forte e de aparência atlética, vestindo apenas um calção de banho, atendeu. Um amuleto de prata pendia de uma corrente ao redor de seu pescoço: um Hamsá estilizado.

Proteção contra mau-olhado.

Seph sorriu e estendeu-lhe a mão.

  • Meu nome é Seph McCauley. Acabei de me mudar pra outra ponta do corredor.

Boas habilidades sociais, é o que sempre diziam seus históricos escolares, além de Excelentes notas.

—  Trevor Hill — respondeu o rapaz, apertando a mão de Seph, estremecendo em seguida e largando-a rapida­mente. — Ai, você me deu um choque!

Seph deu de ombros, sem se orgulhar nem se sentir culpado. Quantas vezes já ouvira aquilo?

  • Ouvi falar que alguém novo chegaria esta semana.
    • A voz de Trevor era como um rio fluindo lentamente: calorosa e forte, com um leve acento do sul norte-americano.

—  Quer entrar?

Trevor deu um passo para o lado para que Seph pu­desse entrar. Era uma imagem espelhada do quarto de Seph, mas parecia menor, pois estava abarrotado com móveis adicionais: uma pequena geladeira, uma televisão, pôsteres de esportistas. O quarto de Seph era espartano em comparação.

  • Que legal! — disse Seph. — Fez tudo isso nas últimas três semanas?
  • Não, já estou neste quarto há três anos. — Trevor olhou com nervosismo para o relógio. — Acho que temos algum tempo. Pode tirar as coisas daquela cadeira e se sentar.

Seph sentou-se na cadeira da escrivaninha.

  • Você está no terceiro ano? — perguntou ele, tentando deixar o outro rapaz à vontade. Sabia que poderia fazê-lo com um toque da mão, mas era melhor não tentar aquilo com alguém que acabara de conhecer.
  • Segundo — respondeu Trevor. — Sou de Atlanta. Da região de Buckhead. Eu não tinha nada que estar aqui, tão ao norte. Quase morro congelado todo outono.

Ele agarrou uma blusa pesada de cima da cama e ves­tiu-a por sobre a cabeça.

—  Estou no segundo ano também — disse Seph.

Trevor fez a pergunta inevitável.

  • De onde você veio?

—  Toronto, mas minha última escola foi na Suíça. Estou acostumado ao frio.

  • Suíça, hein? — Trevor deixou de parecer nervoso e começou a parecer impressionado. — Por que saiu de lá?

Seph revirou os olhos.

  • Não deu muito certo.

Trevor assentiu com a cabeça, como se a idéia não fosse inesperada.

  • O Porto Seguro foi idéia dos seus pais? — perguntou ele, indicando vagamente os arredores.
  • Meus pais morreram. Tenho um tutor. Um advogado. Foi ele quem decidiu — respondeu Seph, pensando que talvez devesse comprar uma camiseta com a inscrição ÓRFÃO DE TORONTO estampada. Pouparia tempo na­quele tipo de situação. — E aí, como é que são as coisas por aqui? O que a gente precisa fazer para se dar bem com os professores? — perguntou Seph, embora não achasse que os conselhos de Trevor fossem lhe ser úteis.

Trevor inclinou-se para a frente, pondo as mãos nos joelhos.

  • Oh, eu costumava me meter em todo tipo de encrenca antes de vir pra cá, também. Você só precisa seguir as re­gras. Faça isso e vai dar tudo certo. Eles são especialistas em garotos que já tiveram problemas em outros lugares.
  • É mesmo? — Que maravilha, pensou Seph. Fui cair em algum tipo de reformatório de alta classe. Trevor, que parecia normal, ficou lá por três anos. — Eles expulsam os que se metem em encrencas?
    • Ninguém é expulso do Porto Seguro — disse Trevor. — Você vai ver. O programa deles é bem... como eles dizem... eficaz.

Algo na maneira como ele disse eficaz soou quase si­nistro. Fez Seph querer mudar de assunto. O laptop de Trevor atraiu-lhe a atenção.

  • Estou com meu computador montado, mas não vi nenhum terminal no meu quarto. Os cabos vêm incluídos ou eu tenho de pagar pela instalação?
  • A gente não tem acesso à internet — disse Trevor.

Seph encarou-o.

  • Por que não? É tão fácil. Eles poderiam usar uma rede sem fio pra todo o campus, se não querem ter cabo.

Trevor sacudiu a cabeça.

  • Não, eu quis dizer que não temos permissão. Eles têm computadores na biblioteca. Você pode fazer pes­quisas lá se quiser, mas eles filtram os sites.
  • Isso é loucura! Não podem fazer isso. Eu tenho amigos on-line.

Seph não se lembrava de isso ser mencionado no pan­fleto lustroso.

Trevor deu de ombros e olhou para o relógio de novo.

  • Bom, é hora da natação. É melhor você ir se trocar, se não quiser se atrasar.

Seph esfregou as têmporas, que ainda doíam.

  • Eu passo. Já tive um longo dia.

Os olhos de Trevor se arregalaram de surpresa.

  • O dr. Leicester dispensou você?
  • Não exatamente.

Trevor se levantou.

  • Então é melhor se aprontar.

Parecia que a visita havia terminado, por isso Seph também se levantou.

  • Ceeerto, acho que vou me trocar, então — disse ele.
  • Eu espero, se você se apressar.

Mas Seph não se apressou o suficiente, pois poucos minutos mais tarde ouviu Trevor junto à sua porta.

  • Eu vou indo. Vejo você lá.

Seph vestiu o calção e pôs a blusa e os jeans por cima. Descendo as escadas de dois em dois degraus, ele saiu do prédio e seguiu uma trilha de aparas de madeira por entre as árvores até a praia. Não viu nenhum aluno por perto; eles provavelmente já haviam ido para a enseada. Uma placa na doca apontava para a direita, em direção à costa, para uma trilha dilapidada acompanhando as águas.

Um arrepio gelado que lhe subiu pela espinha o fez perceber que estava sendo observado. Duas vezes ele se virou e sondou o caminho atrás dele, depois deu de ombros e foi em frente. Finalmente, a trilha virou outra vez em direção à floresta.

Ele se virou de novo, e dessa vez um rapaz atarracado com óculos com aros de metal e tez avermelhada estava postado no meio do caminho. Vestia uma calça jeans tipo husky e uma blusa, e piscava rápido, como se estivesse nervoso.

  • Ei — disse Seph. — Também está atrasado pra natação?
  • Não, eu... ahn... eu n-não...

O rapaz começou a tossir, lutando para respirar. Ele enfiou a mão no bolso e tirou uma bombinha. Ele deu uma longa inspirada e voltou a guardá-la. Então, com um olhar determinado no rosto, estendeu a mão para Seph.

  • Eu me chamo Seph McCauley — disse Seph, pen­sando que talvez quem tivesse asma fosse dispensado

da natação. Ele apertou a mão do outro garoto, e então estremeceu ao reconhecer a ferroada de poder. — Ei! Você é...?

  • Eu p-preciso falar com você.

O rapaz olhava de uma extremidade à outra da trilha, enxugando o suor da testa com a manga da blusa.

  • Eu gostaria muito de falar com você — disse Seph, sem acreditar que havia encontrado dois magos no espaço de algumas semanas. — Mas tenho de ir para a natação. Será que a gente pode se encontrar mais tarde, tipo, no jantar?
  • Não. Eu n-não posso... Isso não...
    • Olá, senhores.

Seph ergueu os olhos e viu um belo jovem num casaco esporte de lã com remendos de couro nos cotovelos e que carregava uma maleta de couro surrada.

  • O-oi, Aar... sr. Hanlon.

O outro aluno parecia petrificado, como que prestes a molhar as calças. Ou a ter outro ataque de asma.

  • Você não deveria estar na natação? — in­dagou o sr. Hanlon, sorrindo.
    • Eu estava indo para lá.
    • Ótimo. É melhor se apressar. O dr. Leicester não gosta de atrasos.

Hanlon pôs a mão no ombro do garoto e empurrou-o na direção contrária.

  • Eu não sei o seu nome! — gritou Seph para o garoto.

Mas o rapaz apenas curvou os ombros e continuou andando.

"Aquele cara tem problemas", pensou Seph, seguindo o caminho. "Não sei se vai ser de muita ajuda, mas vou tentar falar com ele na hora do jantar".

Enfim, a trilha afastou-se das árvores em um ponto em que o oceano avançava sobre a costa, criando uma baía protegida, flanqueada por pedras, fora do campo de visão a partir dos prédios da escola.

Devia haver uns 60 garotos na água, as cabeças lisas e escuras contra a superfície cinzenta. Outros estavam tirando as blusas na praia. Todos eles pareciam estar com muito frio. Seph avistou Trevor andando na água a uns dez metros de distância.

O dr. Leicester estava na praia, vestindo uma pesada blusa de malha, jeans e uma jaqueta impermeável. Quando viu Seph, soprou um apito com força para chamar a atenção de todos.

  • Rapazes, este é Joseph McCauley. Este é o primeiro dia dele no Porto Seguro e ele está atrasado para a natação.

A reação a isso foi impressionante. Todos os outros garotos olharam para o outro lado ou para baixo, como se quisessem evitar qualquer conexão com a transgressão dele. Alguns deles arriscaram-se a observá-lo quando acharam que Leicester não estava vendo.

Seph sorriu, levantando as mãos em sinal de arrependi­mento.

  • Desculpem-me. Eu me confundi. Estava esperando por todo mundo no spa.

Risadas se espalharam pela água, definhando rapida­mente sob o olhar de desaprovação de Leicester. O diretor não parecia suscetível ao lendário charme de Seph.

Seph deixou suas roupas sobre umas rochas a certa distância da beira da água e caminhou com dificuldade pela praia de cascalho até a água. Tivera esperanças de que a água pudesse estar mais quente do que o ar, mas ficou desapontado. Foi como pisar em neve derretida. Os pés ficaram dormentes de imediato. Entrou na água até que esta estivesse ao nível dos joelhos, depois até da cintura, ofegando.

A água era turva e desagradável. As rochas no fundo eram escorregadias e invisíveis, de modo que mesmo na enseada as ondas ameaçavam derrubá-lo. Algo se mexeu junto ao seu pé esquerdo e ele pulou para trás, caindo inesperadamente em águas profundas. A cabeça afundou e ele engoliu água. Emergiu como uma baleia esguichando água para todos os lados.

Aquilo era o bastante para ele. Algumas braçadas o levaram novamente à parte rasa. Tremendo, os dentes batendo, ele subiu à praia. Estava quase de volta ao seu montinho de roupas quando alguém lhe agarrou o braço.

Era Trevor, a pele toda arrepiada, os lábios pálidos de frio, a água escorrendo-lhe do corpo moreno para as rochas.

— Volte para a água, Seph — disse ele, sem olhar dire­to para Seph e pondo a mão fria em seu ombro, como que para encorajá-lo. —Volte já. Vamos.

Seph piscou. Olhou por cima do ombro para o dr. Leicester, que o observava sem nenhuma expressão no rosto. Tudo bem, pensou ele. Se ele ia tentar permanecer ali por dois anos, era melhor não se envolver num conflito de poder logo no primeiro dia. Cerrando os dentes, voltou sobre os próprios passos sobre a areia e entrou na água, sem olhar para trás para ver se Trevor o seguira.

Dessa vez a água parecia quase tolerável. Talvez ele estivesse se acostumando. Sentia um formigamento nas extremidades à medida que recuperava a sensibilidade, e não tremia mais. Foi adiante com mais confiança, conti­nuando até que a água lhe batesse na clavícula. Embora o sol tivesse sumido, bloqueado pelas árvores em torno, Seph se sentia quase aquecido.

Olhou em volta. Os outros garotos estavam paralisados, olhando para a água sem poder acreditar. Mais um mi­nuto passou, e a superfície da água começou a soltar vapor no ar frio. Era como estar até o pescoço no quente mar do Caribe.

Não. Isso não pode estar acontecendo. Seph olhou para Leicester, que estava conversando com um dos garotos na praia. Ele não havia notado nada fora do comum. Seph nadou em direção a um grupo de rapazes que estavam mais para o lado, junto da margem, e posicionou-se de forma que sua cabeça fosse apenas uma de muitas pontuando a superfície cinzenta. Agora relaxe, ordenou a si mesmo, fechando os olhos, tentando soltar os músculos e esvaziar a mente.

Quanto tempo ele conseguiria resistir? Já estava encren­cado, e era só o seu primeiro dia.

Relembrou as catástrofes de sua vida escolar. Os corvos homicidas em St. Andrew. As explosões e fogos na Escócia. Os lobos que haviam assustado as freiras na Filadélfia.

Àquela altura, a água estava próxima da temperatura de um spa. Todas as conversas na enseada haviam morrido.

Os nadadores fitavam o vapor se acumulando na super­fície, subindo ao redor deles como uma névoa matinal num lago numa montanha. Ninguém disse uma palavra, nem uns para os outros nem para Leicester.

Finalmente, o garoto que estivera falando com o diretor correu e pisou na água. Ele cambaleou para trás com um grito de surpresa e caiu sentado nas rochas. Gregoiy Leicester virou-se e olhou para os meninos na água e o vapor fervilhando ao redor deles. Então começou a sondar os rostos dos meninos até que encontrou Seph.

Por mais que tentasse, Seph não conseguiu desviar o olhar. O diretor ficou imóvel, estudando-o como a um es­pécime numa lâmina de microscópio. Nada de perguntas, incredulidade, desafio ou confusão, apenas aquele escru­tínio intenso e clínico, como se estivesse vendo a alma de Seph com total conhecimento do que havia dentro. Então Leicester sorriu como se fosse Natal.

Com um tremor, Seph recuou um passo.

O olhar do diretor mudou para incluir o grupo inteiro.

— Senhores, talvez esteja um pouco frio para nadar, afinal. Estão dispensados para trabalhar em suas pró­prias atividades até o jantar.

Por um momento, ninguém se moveu. Então o êxodo começou, com todos saindo da água em silêncio como lemingues ao contrário, caminhando em massa para fora da água em vez de para dentro. Seph saiu pelo lado oposto da enseada, mantendo a maior distância possível de Leicester. Vestiu a blusa e os jeans sobre a pele molhada e apanhou os sapatos, sem nenhuma vontade de ficar ali o tempo suficiente para calçá-los. Pendurando a toalha sobre os ombros, seguiu os outros em direção à floresta.

Seph parou no meio da passada e ficou esperando, sem se voltar. O olhar do diretor pressionava-lhe a nuca.

  • Venha até o meu escritório depois do jantar. Acho que é hora de explicar um pouco mais sobre o nosso programa.

Seph assentiu com a cabeça e seguiu o caminho por entre as árvores.

 

                   Uma Cooperativa Mágica

Seph acordou com o som alto de batidas. Ainda meio grogue, foi aos tropeções até a porta e abriu-a. Era Trevor, vestido para sair, com um sorriso hesitante.

—  Seph. A ceia é às sete e meia. Temos tempo antes disso, se você quiser dar uma olhada no lugar.

Seph esfregou os olhos e olhou para a cama.

—  Claro. Valeu. Que bom que você bateu. Eu podia ter dormido direto. — Bocejou. — A gente tem que se vestir pro jantar?

—  Camisa de colarinho ou suéter. Nada de jeans ou moleton.

—  Certo. Me dê um minuto.

Trevor ficou junto à porta enquanto Seph trocava de roupas e ajeitava o cabelo com a mão. Eles desceram as escadas e saíram pela porta da frente.

A frágil luz de outono já se fora. Estava escuro como breu sob as árvores, exceto pelas luzinhas delineando os caminhos entre os prédios. Seph se preparou para per­guntas e comentários sobre os acontecimentos peculiares na enseada, mas, como nada fosse dito, ele falou:

  • Aquilo foi bem estranho. O que aconteceu na nata­ção, digo.
  • Nunca se sabe o que vai acontecer por aqui — disse Trevor, dando de ombros.

—  Como assim? Quer dizer que coisas estranhas já aconteceram antes de eu... antes de hoje?

  • Não quero dizer nada.

Trevor curvou os ombros como uma tartaruga recolhendo-se em seu casco.

—  Eu trombei com um cara na floresta. Um aluno, acho. Atarracado, com óculos e uma bombinha de asma. Você sabe quem poderia ser?

Trevor olhou-o nos olhos.

  • Não me lembro de ninguém assim.

Seph pensou em usar seus poderes. Imaginava que pudesse obter de Trevor as respostas que queria. Mas decidiu não insistir. "É meu primeiro dia", pensou ele. "Quanto mais amigos eu fizer, melhor".

Trevor levou o papel de guia a sério, indicando as atrações do campus: as quadras de tênis, o anfiteatro.

  • Tem quase cem alunos aqui. Eles vêm de tudo quanto é lugar, e muitos têm bolsas de estudos. Também tem um monte de ex-alunos que moram aqui no campus e trabalham em pesquisas com o dr. Leicester. — Eles passaram por mais prédios de dormitórios. — Todos os dormitórios são basicamente iguais. Os ex-alunos têm o deles, mais uma lanchonete e um salão só deles.
  • Por que os ex-alunos ficam por aqui depois de se formar? — indagou Seph. — Eles não vão para a facul­dade?

Trevor desviou o olhar, concentrando-se no caminho à sua frente.

—  Vai ter de perguntar pra eles.

Eles andaram pelo Gareth Hall, o prédio onde ficavam as salas de aula, passando por salas vazias.

  • As aulas já começaram há algumas semanas, por isso você vai ter de correr com as tarefas — disse Trevor. — Avise-me se precisar de ajuda em alguma coisa.

O prédio de arte e música era mais ao norte ao longo da costa.

  • Eles fazem com que todos aprendam a tocar um instrumento — explicou Trevor.

Seph assentiu com a cabeça. Típico. Ele havia trazido o saxofone.

A seguir, Trevor conduziu-o até a praia e a doca.

  • O dr. Leicester é fanático por iatismo. O nosso time não perde a Copa Estudantil da Costa do Atlântico há três anos. Todos ajudam.
  • Certo — replicou Seph, não assumindo nenhum compromisso. Não podia dizer a Trevor que esperava ir embora antes do Natal, considerando o que ocorrera já de início na enseada.
  • Esta é a casa dos barcos.

Trevor abriu a porta de uma pequena construção des­gastada pelo clima que Seph notara ao chegar. Era uma estrutura simples e quadrada, com um assoalho de tá­buas toscas. Uma estreita passarela de madeira corria ao longo do lado oposto do aposento e cercava o ancoradouro. Lá embaixo, a água subia e batia nos pilares. O prédio cheirava a gasolina e ao que Seph supunha ser entranhas de peixe.

  • Eles mantêm o barco a motor aqui a maior parte do tempo e, às vezes, os veleiros, quando precisam de conserto. Você vai ficar craque em passar verniz, pode acreditar.

Aquilo não era problema. Seph estava acostumado a trabalhar duro. Passara todos os verões fazendo faxina, arrumando as camas e lavando pratos na pensão de Genevieve.

  • Hora do jantar — anunciou Trevor, dando meia-volta em direção à costa.

O salão de jantar era no térreo do prédio da adminis­tração, com uma parede inteira de vidro que dava vista para a água. Garçons circulavam pela sala, limpando mesas e enchendo copos de água.

Além de hambúrgueres e pizza, havia rosbife fatiado, uma entrada de peixe, um refogado do dia, rolinhos ve­getarianos, bife grelhado na chapa e um bufê de saladas. Poderia ser pior. Seph havia sido educado para apreciar a boa comida, mas não era nenhum esnobe.

Seph passou os olhos pela sala de jantar, mas não viu sinal do garoto de óculos.

Trevor e ele carregaram suas bandejas para uma grande mesa retangular junto à janela. Alguns rapazes já es­tavam sentados lá. A conversa morreu quando Trevor e Seph se sentaram, mas em seguida todos se revezaram nas apresentações. Troy era um aluno negro de baixa estatura que parecia um acadêmico, vestindo uma camisa branca e uma gravata-borboleta. Harrison tinha aquele jeito de estudante alinhado e bem-comportado que muitas vezes é só fachada, enquanto James era direto e arrogante, com os cabelos tingidos de um tom excessivamente preto, vários piercings e tatuagens.

Troy era da Filadélfia.

  • Já estive em escolas públicas, escolas particulares e em todas as escolas religiosas que puderem imaginar — contou ele. — Disseram que eu era hiperativo.

Seph achou isso difícil de acreditar, dada a aparência bem-comportada. Troy estava no terceiro ano e disse que tinha esperanças de ir para Yale no ano seguinte.

Harrison e James estavam no segundo ano; Harrison viera de San Diego, e James, de Houston. Ambos admi­tiram ter um histórico festeiro pesado.

  • Eu tinha um fundo fiduciário, sabe? — disse Harrison, engolindo o último pedaço de hambúrguer e tomando um gole de refrigerante para ajudar a descer. — Por isso não via muito sentido na escola. Ficava o tempo todo chapado, cabulava bastante. Enquanto isso, meus pais passavam todo o tempo tratando do divórcio. Então meu avô disse que eu tinha de vir para cá, ou não ia ter mais dinheiro. Acho que esqueci que um fundo fiduciário tem um fiduciário — concluiu ele, rindo alto e socando Seph de brincadeira no ombro.

"Este lugar é cheio de desajustados", pensou Seph, esfregando o ombro. "Como eu".

Bom, não exatamente como eu.

Mais uma vez, ele esperou uma menção ao incidente da enseada, mas ninguém tocou no assunto. Era como se nunca tivesse acontecido.

  • E você? — James perguntou a Seph. — Como é que acabou aqui?
  • Eu tive de sair da minha última escola. — Seph se in­clinou para trás um pouco, apoiando as mãos na beirada da mesa de madeira dura, balançando-se na cadeira. — Eu e a administração tivemos uma divergência.

Troy inclinou-se para a frente.

—  Sobre o quê?

—  Eles achavam que eu devia freqüentar as aulas — respondeu Seph, fazendo contato visual com cada um deles. — Eu tinha outras prioridades.

Harrison sorriu em expectativa.

  • Tipo o quê?
  • Você sabe... Sair com as meninas. Hackear o com­putador da escola. — Ele se balançou para a frente, de modo que todas as quatro pernas da cadeira atingissem o chão com estardalhaço. — Nadar pelado na piscina dos professores.

Aquilo provocou gargalhadas de Harrison e sorrisos dos outros em volta. Era o fim da inquisição.

"Hora de mudar de assunto", pensou ele. Seph nunca tivera nenhuma dificuldade para dirigir uma conversa.

—  Como é que eu consigo o meu cronograma? Acho que eu devia ter perguntado ao dr. Leicester.

—  Eles entregam no seu quarto antes do domingo à noite, com os livros que vai precisar — respondeu Trevor.

Seph passou pelo resto de sua lista habitual de per­guntas. Todos os alunos tinham caixas de correio no prédio da administração. Ele podia retirar dinheiro no es­critório do caixa, mas não havia muito em que gastar. Ele podia usar sua carteirinha de estudante para alugar filmes e encomendar pizza pela livraria.

  • O que é que vocês fazem por aqui pra se divertir? — indagou Seph, brincando com o último pedaço de peixe em seu prato.
  • Não muito — respondeu Troy. — A gente vê filmes, se reúne. Ah, você pode ver os ursos e os guaxinins na caçamba do lixo.

Harrison acrescentou:

  • Tem bastante esporte, como esqui cross-country e snowboard. A temporada de iatismo já acabou, mas co­meça de novo na primavera. Lá no centro recreativo dá pra jogar tênis e raquetebol. — Ele deu de ombros. — É isso.
  • Não se preocupe quanto a não ter o que fazer — disse Trevor, revirando os olhos. — Eles nos fazem trabalhar bastante.
  • E quanto a garotas?

Seph havia freqüentado escolas para rapazes antes, mas geralmente em cidades, onde havia ampla oportuni­dade para socialização.

  • Vai ter de esperar até o verão — disse Harrison com tristeza. — Ou até o recesso de inverno, pelo menos.

Seph absorveu a notícia filosoficamente. N'exigez pas beaucoup et vous ne serez pas déçu. Não espere muito e nunca se decepcionará.

Uma coisa que ele realmente esperava era acesso à internet.

  • Que lance é esse de a gente não poder entrar na internet?
  • É estranho — disse Harrison. — Eles estão atuali­zados em várias outras coisas.
  • Vamos perguntar ao dr. Leicester a respeito — su­geriu Seph. Isso foi recebido com uma notável falta de entusiasmo. O que era surpreendente, pois as pessoas sempre gostavam das idéias dele. Ele tentou de novo. — A gente podia fazer uma petição. Uma manifestação de protesto.

Troy pigarreou.

—  Hmm... Acho que não é uma boa idéia.

—  Vocês não se importam? — indagou Seph, exaspe­rado. Ter acesso à internet era como ter acesso a oxigênio.

  • Você pode perguntar ao dr. Leicester — arriscou James, deixando claro que Seph estaria sozinho naquilo.
    • Mas eu não teria muitas esperanças. Acho que os ex-alunos têm internet, mas só eles.
  • Outra coisa — disse Seph. — Os ex-alunos. Qual é a deles? O que eles estão fazendo aqui no meio do nada?
    • Ele olhou para a mesa em torno, mas ninguém lhe devolveu o olhar. — Vocês não têm curiosidade?

Alguns pigarros e ombros sacudindo. Mas nenhuma resposta de verdade.

  • Vocês não têm curiosidade. — Seph pegou o celular, imaginando se a mudança de local faria alguma diferença. Não fez. — Não consigo sinal no meu celular. Eu preciso mudar de operadora?
    • Acho que não existem torres de transmissão por aqui - disse Trevor. — Nenhum celular funciona. Você vai ter de usar os telefones fixos.

Aquele era o grupo de alunos mais passivo que ele já encontrara. Era como se algo lhes houvessem roubado a fibra.

  • Tem alguma igreja católica por aqui?
    • Não tem nenhuma igreja de nenhum tipo em que dê pra chegar — disse James. — Vai ter de acertar as contas com Deus no verão.
  • Não tem nada? — Seph olhou para a mesa ao redor.
  • Não acredito.
  • Tem uma capela ao ar livre aqui. Não sei por que, com esse clima — disse Trevor. — Tem serviços ecumênicos uma vez por semana, ou aqui ou no prédio da adminis­tração.

Genevieve fora uma católica devota, por isso Seph havia freqüentado escolas de jesuítas até que ela e os padres discordaram sobre como lidar com as extravagâncias má­gicas dele. Os jesuítas haviam proposto um exorcismo. Genevieve recusara.

A igreja sempre lhe fora um refúgio. As missas em latim o relaxavam. Ele gostava da cadência reconfortante da velha língua, como feitiços antigos contra as trevas, a fumaça perfumada subindo dos incensórios, a arquitetura cavernosa dentro da qual os problemas dele pareciam pequenos e contornáveis. Ele parecia ter uma afinidade por rituais.

Nada de missas. Bom, ele não achava que fosse ficar por muito tempo.

  • Qual de vocês é Joseph McCauley?

Seph ergueu os olhos, surpreso, percebendo que a con­versa na mesa morrera. Dois jovens, aparentando idade universitária, estavam em pé junto à ponta da mesa. Um era alto e magro como um galgo, com cabelos e cílios tão claros que pareciam quase translúcidos. O outro tinha cabelos escuros, ombros largos e era musculoso. O tipo de cara que tinha dobras no pescoço e precisava se barbear duas vezes por dia.

  • Sou eu — disse Seph, levantando a mão e mexendo os dedos. — O que foi?
  • O dr. Leicester gostaria de falar com você no escri­tório dele.

Seph notou que todos os demais à mesa estavam de olhos fixos no chão. Como quando se está numa aula para a qual não se estudou e se tem medo de ser chamado pelo professor.

  • E vocês são...?
  • Meu nome é Warren Barber — disse o loiro. — Este é Bruce Hays.

Como se isso explicasse alguma coisa.

Seph olhou para o relógio. Quase oito horas e, apesar da soneca, estava morto de cansaço. Era melhor ir logo àquela reunião, a fim de que pudesse ir para a cama. Levantou-se da cadeira e sorriu para os outros à mesa.

  • Ei, foi legal conhecer vocês. Obrigado pelas dicas. Vejo vocês mais tarde.

Eles todos o fitaram como se estivessem gravando a imagem dele em suas mentes, como se pudessem es­quecer como ele era assim que ele fosse embora.

  • Boa sorte, Seph — disse Trevor baixinho.
  • Bem-vindo ao Porto Seguro — disse Hays enquanto subiam as escadas do andar da lanchonete para os escri­tórios da administração no segundo andar.
  • Ahn... Vocês são professores? — per­guntou Seph, tentando imaginar o que aqueles dois poderiam ensinar.
  • Não. Somos ex-alunos — replicou Barber. — Somos os líderes da matilha desta organização. Detesto ter de dizer isso, mas você estava jantando com as ovelhas.
    • .. ahn...

Seph não fazia idéia de como responder àquilo.

  • Cara, você vai gostar daqui — disse Hays, dando-lhe um tapa nas costas. — É uma promessa.

O escritório do dr. Leicester ocupava uma posição pri­vilegiada na frente do prédio, com a melhor vista do mar. Era diferente de todos os escritórios de diretoria que Seph já vira: brilhantemente moderno, com fax, computador, impressora e scanner. Não viu nenhum dos costumeiros diplomas, prêmios e outros lixos remanescentes de com­petições interescolares, a não ser vários troféus enormes de iatismo.

Seph olhou com saudades para o conjunto de hardware de primeira linha e apoiou os quadris contra a mesa junto à janela.

  • O que vocês fazem aqui exatamente? — per­guntou ele a Hays e Barber. — São assim... professores-assistentes?

Hays e Barber se entreolharam.

  • Acho que se pode dizer que somos, sabe como é, assistentes de pesquisa — disse Barber, sorrindo.

Seph pensou que eles pareciam mais com, sabe como é, capangas. Se alguém visse Hays e Barber na rua, atravessaria para o outro lado.

Talvez fosse difícil encontrar bons ajudantes.

  • Sobre o que é a sua pesquisa? — indagou Seph. — Vocês têm uma bolsa ou coisa assim?
  • O dr. Leicester vai explicar mais sobre a, ahn, pes­quisa — disse Hays. — O que você precisa lembrar a nosso respeito é que nós mandamos neste campus. A gente só responde ao dr. Leicester.

"Bem, se é assim, é um reino bastante remoto", pen­sou Seph. "Eu preferiria governar algumas quadras de Toronto a..."

  • Olá, Joseph.

Seph virou-se. O dr. Leicester estava em pé junto à porta.

  • Obrigado por vir. Sente-se. — Leicester indicou uma das duas cadeiras em uma mesa no canto. Seph se sentou. Leicester tomou o outro assento. — Já foi apresentado ao sr. Hays e ao sr. Barber? Ótimo.

Uma pasta de arquivo estava sobre a mesa. Leicester puxou-a para si e começou a folhear os conteúdos.

  • Joseph, hoje eu lhe disse que aqui no Porto Seguro nós nos orgulhamos de fazer um currículo sob medida para cada aluno. Com base nos seus registros e nas dificuldades que vem tendo, suspeito que você vá exigir atenção especial.

Seph deu uma olhada nas folhas entre as mãos de Leicester, tentando lê-las de cabeça para baixo.

  • Não sei bem o que quer dizer. Que dificuldades? — Confusa pela fadiga, a mente dele não estava tão sagaz quanto de hábito. — Tenho me saído muito bem. Se olhar para as cópias dos meus boletins, vai ver que...
  • Estou falando do episódio lá na enseada esta tarde.

Não admita nada: aquela era a primeira regra dele.

  • Sinto muito por ter chegado atrasado. Prometo que não vai acontecer de novo.

Leicester descartou aquela resposta com um gesto im­paciente de mão.

  • O mar quase começou a ferver. Bastante incomum, até mesmo no meio do verão. Na verdade, nunca acon­teceu antes.

Segunda regra: Apele para a lógica.

Seph olhou de Leicester para os dois ex-alunos e de novo para o diretor.

  • O que isso tem a ver comigo?
  • Acreditamos que você foi a causa. Intencionalmente ou não.

Terceira regra: Adie o inevitável.

  • Olha, estou muito cansado, e nada disso está fa­zendo sentido. Será que a gente pode conversar sobre isso amanhã?

Leicester folheou os papéis.

  • Você mudou de escola quatro vezes em três anos.
  • Às vezes leva-se tempo pra encontrar o lugar ideal.
    • Vejo que houve outros incidentes. Incêndios. Explo­sões. Ovelhas voadoras? — Leicester arqueou uma sobran­celha.

Seph estava perplexo. Se Leicester sabia o histórico dele, então por que o admitira, para início de conversa? Seph empurrou a cadeira para trás e se levantou.

  • Ovelhas voadoras? Sinto muito. Não faço idéia do que está falando. Eu realmente preciso ir.

Ele se voltou para a porta, mas Hays e Barber bloquea­ram o caminho.

  • Sente-se, Joseph — disse Leicester com calma. — Por favor. Confie em mim, é do seu interesse me escutar.

Hays e Barber não se moviam. Seph retornou à mesa e se sentou.

  • Assim é melhor.

Leicester suspirou e refletiu por um instante, como se não soubesse ao certo por onde começar. Finalmente, estendeu a mão e segurou o antebraço de Seph, que es­tremeceu, esperando o aperto esmagador característico de homens que malham religiosamente. O que foi surpreen­dente não foi a força, mas o poder puro transmitido por aquele toque. Seph respirou fundo, lutando para não fazer cara de tonto ou burro e sem ter certeza de ter obtido sucesso. Após um momento, Leicester soltou-lhe o braço. A marca da mão dele permaneceu.

O dr. Leicester também era um mago.

A voz de Leicester gotejou em seu cérebro, explodindo com um calor como o do conhaque de Genevieve.

  • Nada do que aconteceu é culpa sua, Joseph. Os magos precisam de treinamento, e imagino que você não tenha tido nenhum. Você é muito poderoso, pelo que vi. E o poder tende a encontrar... válvulas de escape. — Ele fez uma pausa, depois falou alto. — E então? Estou certo até aqui?

Sem dizer nada, Seph fez que sim com a cabeça, ainda tentando assimilar aquela súbita reviravolta.

Leicester deu-lhe um tapinha no ombro.

  • Sei que isto deve ser um pouco... estranho. — O mago se recostou na cadeira. — Antes, o sr. Hays e o sr. Barber eram como você: tinham o talento, mas não a educação. Agora estão a caminho de se tornar mestres.

Hays e Barber sorriram com modéstia.

"Se eu fosse um mestre de magia, eu cuidaria da minha aparência", pensou Seph.

  • E quanto aos outros todos? — começou ele. — São todos...?
  • A maioria não é. A maioria é apenas o que se poderia chamar de alunos desobedientes. — Leicester deu de ombros, desinteressado. — Nós recrutamos alunos que tiveram dificuldades em outros lugares porque, muitas vezes, entre eles há garotos como você. Os que têm o dom, mas não o treinamento. — O diretor brincou com um requintado anel que trazia no dedo médio da mão esquerda. — O quanto você sabe sobre as ordens e os elementos de poder?
  • Um pouco.
  • Conte-me.

Seph vasculhou a memória.

  • .. Os que têm o dom nasceram com Pedras Weir, uma fonte cristalina de poder que fica atrás do coração — recitou ele. — O poder é de família. O... ahn... tipo de Pedra Weir que cada um tem determina a natureza e a extensão do poder, e a que ordem pertence.

Quando Seph fez uma pausa, Leicester fez um gesto de cabeça, encorajando-o a prosseguir.

—  As ordens mágicas incluem feiticeiros, adivinhos, guerreiros, encantadores e magos. Nas ordens especiali­zadas, a magia é mais elementar, mais direta. Os magos são os mais poderosos, porque moldam a magia com palavras.

  • E quem contou tudo isso a você?
  • Minha mãe adotiva. Ela era feiticeira.

Genevieve dizia que prometera aos pais dele não envolvê-lo no perigoso mundo da magia. Por isso ela o havia deixado com milhares de perguntas e um poder que ele não sabia controlar.

  • E onde está a sua mãe adotiva?
  • Morreu três anos atrás.
  • Que pena. — Leicester estampou um típico olhar de simpatia. — Quer dizer que você não tem família.

—  Na verdade, não.

—  A que Casa está afiliado?

A mesma pergunta que Alicia lhe fizera. Talvez agora ele conseguisse finalmente obter algumas informações.

  • Na verdade não sei muito sobre as Casas.

Leicester estudou-o com seus olhos de rolimã, como se tentasse decidir se Seph dizia a verdade.

  • Como a ordem dominante, os magos tiveram de desenvolver sistemas para a distribuição de poder. Senão teríamos o Armagedom em nossas mãos.

Seph sentiu que Leicester havia feito aquele discurso muitas vezes antes.

  • Há duas grandes Casas de magos, a Rosa Vermelha e a Rosa Branca. As famílias de magos se alinham com uma ou com outra, e muitos desses pactos de lealdade datam desde a Guerra das Rosas na Bretanha do século XV. As interações das Casas são regidas por um documento chamado Leis de Combate, o tratado que deu fim à guerra. Por séculos, o poder vem sendo decidido entre as Casas por meio de uma série de torneios. Os membros da Ordem dos Guerreiros lutam como representantes das Rosas. A casa vencedora governa os Weirs, ou seja, as ordens mágicas, até que se realize o próximo torneio. É um sistema que tem funcionado bem.

Seph se inclinou para a frente. Seu cansaço parecia ter desaparecido.

  • Por que ninguém me falou disso antes?
  • Aqui nos Estados Unidos, muitos dos Weirs não sabem que têm o dom. Velhas conexões foram rompidas. Alguns que vieram para cá tomaram uma decisão cons­ciente de deixar as Casas para trás. — Leicester suspirou. — Suponho que as ordens inferiores viram isso como uma oportunidade para escapar do serviço. Mas, para os magos, o resultado é que jovens como você não recebem orientação nem instrução. E isso pode ser desastroso. Nosso propósito aqui no Porto Seguro é remediar isso.
  • Está me dizendo que pode me treinar em magia?

Leicester sorriu.

  • Estou dizendo isso, sim.
  • E vou aprender a controlar a magia, e a evitar... acidentes.

Depois do que acontecera no depósito, Seph desejara não ter nada a ver com magia, nunca mais. Mas não tinha escolha. No caso dele, o poder tinha maneiras de vir à tona de modo incontrolável. Ser capaz de controlar a magia, utilizá-la apropriadamente... seria um milagre.

Mas Seph era esperto o bastante para duvidar de magos oferecendo presentes.

  • E o que o senhor ganha com isso? — indagou Seph.

Leicester levantou-se e caminhou até a janela. Olhou para o porto, as mãos entrelaçadas atrás das costas. Então se virou para encarar Seph.

  • Estes são tempos difíceis para as Casas, um mo­mento de grande perigo. No verão passado, um torneio na Bretanha deu errado. As Leis de Combate foram vio­ladas. Um grupo formado em sua maioria por rebeldes das ordens servis se refugiou num santuário em Ohio. Um anarquista que chama a si mesmo de Dragão está fomentando a rebelião e atacando magos de ambas as casas por todo o mundo. Alianças estão se alterando. Se a guerra entre as Rosas começar de novo, vamos estar todos em perigo.

Ele fez uma pausa, como se esperasse uma reação, mas Seph não disse nada. Seph já reparara que aprenderia mais se ficasse calado.

  • Respondendo à sua pergunta, ainda estou nominal­mente filiado à Rosa Branca. Mas minha esperança é que, por meio do nosso trabalho aqui no Porto Seguro, nós possamos criar um novo caminho, uma nova ordem que dê fim ao derramamento de sangue e elimine o embate constante entre as Casas. Pense no que poderíamos fazer, se não estivéssemos concentrados em nos matar uns aos outros.

Aquilo fazia sentido.

  • Tem alunos de outras ordens aqui? — indagou Seph. — Como guerreiros e... e feiticeiros?
  • Eles dificilmente precisam do tipo de instrução que posso fornecer. Afinal, eles são criados com determinado propósito. — A expressão de Leicester era vagamente desdenhosa. — Não, nós nos concentramos nos magos. Nossos formandos se tornam os mais poderosos prati­cantes de magia no mundo.
  • Há quanto tempo vem fazendo isso?
  • Nossa primeira classe se formou cinco anos atrás.
  • Como é que as pessoas descobrem a existência do Porto Seguro? Faz três anos que procuro ajuda e nunca ouvi falar daqui.

Leicester abriu um leve sorriso.

  • A natureza da política dos magos exige que sejamos discretos. Talvez já tenha ouvido falar que controlamos de perto a entrada e saída de informações aqui. Existe um motivo para isso.
    • Mas não entendo por que...
    • Quando souber mais, vai entender — disse Leicester com severidade. — Não podemos arriscar sermos desco­bertos por aqueles que destruiriam nossa única esperança real de paz. Existem interessados na manutenção do status quo. Por essa razão, é importante que nenhuma palavra a respeito disso chegue aos ouvidos das Rosas.

Pelo que sabia dos magos, Seph não ficou surpreso em descobrir que Leicester tinha um plano político. Genevieve lhe infundira uma profunda suspeita sobre a política dos magos, que muitas vezes parecia envolver o sacrifício das ordens inferiores. Sem dúvida o diretor tentaria envolvê-lo mais cedo ou mais tarde. Mas Seph lidaria com isso, se pudesse conseguir a ajuda de que precisava.

  • Como é que funciona? Quem ensina? Quanto tempo leva?

Os olhos de Leicester brilharam.

  • Devemos supor, então, que você está interessado em se juntar à nossa cooperativa mágica?

A exatidão da linguagem do mago era um aviso, mas Seph não podia se dar ao luxo de dizer não.

  • Com certeza.
  • Ótimo — disse Leicester. — Achei que seria essa a sua resposta.
  • Quando começamos? — insistiu Seph.
  • Aproveite esses primeiros dias para se aclimatar e recuperar o tempo perdido nas outras aulas. Depois con­versaremos de novo. Temos técnicas que abreviam o pro­cesso.

—  Não tem nada que eu possa ler nesse meio-tempo, algum jeito de me preparar?

Leicester estudou-o por um momento.

—  Talvez. Você tem um Livro Weir?

Alicia Middleton havia mencionado Livros Weirs na festa.

  • Não sei o que é isso.
    • Cada membro das Ordens Weirs tem um Livro Weir, criado na ocasião de seu nascimento. Mesmo aqueles das ordens servis. Traz um resumo da linhagem mágica do membro e a história da família. Os Livros Weirs dos Magos incluem feitiços e encantamentos, que são passados pela família por séculos.

O diretor fez uma pausa, arqueando as sobrancelhas com ar inquisitivo.

  • Não tenho um — admitiu Seph.
  • Na verdade, você tem um — disse o dr. Leicester. — É só uma questão de localizá-lo. A verdadeira chave é o que eu disse antes a você: exigimos o compromisso total de nossos alunos magos. Você é capaz disso?
  • Sim, senhor — respondeu Seph. — O senhor não vai ficar desapontado.

Seph vivera de forma precária por anos, como alguém com uma doença terminal, que nunca pode tecer planos para mais do que alguns meses adiante. Quaisquer que fossem as conseqüências daquela decisão, ele correria o risco.

  • Ótimo — disse Leicester. — Oh, e é melhor que você não discuta nada disso com os Anaweirs. — Ante o olhar confuso de Seph, ele acrescentou: — Os alunos sem dom. Isso só causa ressentimento, e não queremos que eles espalhem boatos quando saírem do Porto Seguro. Na verdade, é melhor que você mantenha distância deles fora da sala de aula.

Seph pensou em Trevor, Harrison, Troy e os outros.

  • Não entendo. Por que nós...

Leicester agitou a mão com impaciência.

  • Oh, seja polido, é claro. Mas, com o avançar do treinamento, você vai descobrir que tem pouca coisa em comum com eles. Uma vez que você se junte ao grupo da forma adequada, vamos transferi-lo para a Casa dos Ex-Alunos.

Seph lembrou-se de como Trevor e os outros reagiram quando ele mencionara os ex-alunos.

  • Os alunos magos vivem na Casa dos Ex-Alunos?

Leicester confirmou.

—  Todos os ex-alunos têm o dom.

Seph deu uma olhada em Hays e Barber.

  • Eles são... todos eles são formados? Quero dizer, tem alguém mais da minha idade? Eu ainda vou estar na mesma classe dos outros?

Ele se sentia ligado a Trevor e aos outros, agora que os conhecera.

  • Veremos isso quando o seu treinamento estiver em andamento. — O mago se levantou, indicando que a entrevista terminara. — Agora é melhor ir para a cama. Você teve um longo dia.

E Seph compreendeu que havia sido dispensado.

 

                   Uma Visita à Casa dos Ex-Alunos

Como prometido, os livros de Seph e o cronograma das aulas lhe foram entregues no domingo de manhã cedo. Ele localizou as salas de aula no mapa do campus, verificou o plano de estudos e começou a ler o material. Sempre fora um bom aluno, por isso não achou que teria muita dificuldade para alcançar os outros. Queria adiantar o máximo de estudo possível antes que as aulas de magia começassem.

Lá pelo fim da tarde, porém, percebeu que não estava conseguindo se concentrar na história européia do século XVIII. Tentou com e sem os fones de ouvido. Passou da cama para a escrivaninha, na esperança de que o ato de sentar-se ereto lhe incutisse alguma disciplina. Mas se viu apertando teclas aleatórias no computador, desejando poder entrar na internet. Estava acostumado a passar horas on-line todos os dias com os amigos, numa estimulante mistura multimídia que incluía música, mensagens instantâneas e lição de casa.

Ele pensou em Leicester e nos ex-alunos. Perguntou-se quanto tempo levaria até obter controle sobre o seu dom, como Leicester o chamava. Como seriam as lições? Será que Leicester o ensinaria pessoalmente, para que ele pudesse alcançar o nível dos outros? Será que recitariam encantamentos na aula? Praticariam feitiços no campo de futebol? Será que o fato de ele não ter um Livro Weir o atrapalharia? Seph sempre fora popular entre os Anaweirs. E se tivesse problemas para fazer amigos entre os dotados?

Leicester havia dito que Seph tinha um Livro Weir em algum lugar. Se isso fosse verdade, Seph poderia encontrar as respostas para suas perguntas naquelas páginas.

Para algumas delas, pelo menos.

Talvez ele devesse tentar conhecer alguns dos ex-alunos de imediato. Organizar um grupo de estudo. Fazer aliados que pudessem ajudá-lo.

De preferência alguém diferente de Hays e Barber.

Acabou desistindo e afastando o livro de história para o lado. Calçou os sapatos e seguiu pelo corredor até o quarto de Trevor. A porta de Trevor estava aberta, e Seph ouviu o pulsar grave e contínuo de um baixo já no meio do corredor.

Trevor estava estirado no tapete de pele de ovelha na frente da lareira, digitando com dois dedos num laptop. Papéis e livros estavam espalhados à seu redor. Ele olhou para Seph, pestanejando, como se estivesse surpreso por vê-lo.

  • Vamos fazer alguma coisa — disse Seph.

Trevor diminuiu o volume do aparelho de som e es­treitou os olhos para Seph.

  • ..?
    • Qualquer coisa — disse Seph de modo enfático. — Vamos.
  • Sei não. Tenho um monte de tarefas. — Trevor he­sitou, observando Seph com cautela. — Está tudo bem com você? Como é que foi com o Leicester ontem à noite?
    • Ótimo. Muito bom. Nós conversamos, e tudo está bem.
  • Você está brincando, não é?

Trevor parecia tão solene que Seph teve de sorrir.

  • É, estou só brincando. Mais ou menos. Você vem? De qualquer jeito, está quase na hora do jantar.

Eles saíram caminhando sob o pôr do sol. Seph sorveu a mescla de aromas que a floresta exalava no outono. Lembrava torrada queimada.

Trevor ficou mais animado assim que deixaram o dor­mitório e a tarefa para trás.

  • Quem sabe a gente consegue uma quadra de raquetebol e joga antes do jantar? — disse ele.

Seph olhou para a calça jeans e a blusa de malha que estava vestindo.

  • A gente não precisa se vestir pro jantar?

Trevor sorriu.

  • Hoje é domingo. Regras de fim de semana. O dr. Leicester geralmente não está na escola.

Eles estavam passando pela Casa dos Ex-Alunos.

—  Ei, espere aí um segundo. Vamos dar uma olhada lá dentro.

—  Não, Seph, vamos.

Trevor agarrou-o pelo braço, mas Seph já havia passado pela porta.

O hall abria para um salão com uma enorme lareira de pedra em um dos lados, emoldurada por estantes de livros. Os sofás de couro ao redor de um tapete persa pareciam bois agachados. O lugar era de estilo semelhante ao dos outros prédios que Seph havia visto, porém mais luxuoso, decorado com objetos mais caros, agressivamente mascu­lino. Não havia ninguém lá, mas Seph conseguia ouvir o murmúrio de conversas e o tilintar de talheres vindo de uma sala próxima.

Trevor segurou o braço de Seph com força.

—  A gente não tem autorização para entrar aqui — sussurrou ele.

—  Eu só quero dar uma olhada ao redor — sussurrou Seph em resposta. — Não se preocupe. Está tudo bem.

—  Estou falando sério — insistiu Trevor. — Vamos.

Seph sondou a seção próximo à escadaria.

—  Ei, tem uma biblioteca no primeiro andar. Você já esteve lá em cima?

  • Não. Já falei. A gente não tem permissão.

—  Aposto que eles têm acesso à internet.

—  Seph, eu vou embora. Venha.

Trevor deu dois passos em direção à porta.

  • Eu já volto — disse Seph.

Seph subiu as escadas dois degraus de cada vez, fa­zendo uma pausa no patamar, e virou à esquerda na galeria, passando por fileiras de portas sem placas. Uma porta no fim do corredor estava entreaberta. Espiando lá dentro, Seph viu fileiras de estantes cheias de livros empoeirados com capas de couro. Um leve movimento à direita assustou-o. Ele deu um pulo para trás, comprimindo-se contra a parede do corredor. Então ouviu uma explosão de vozes vindo do térreo.

  • O que você está fazendo aqui? — indagou alguém.

A voz era familiar. A seguir, algo ou alguém foi jogado com força contra a parede.

Seph inclinou-se sobre o corrimão da galeria. Bruce Hays segurava Trevor prensado contra a parede. Seph ouviu um arrastar de cadeiras, depois meia dúzia de outros surgiram vindos da sala de jantar, acotovelando-se em um semicírculo em torno de Bruce e de seu prisioneiro. Warren Barber estava entre eles.

Trevor respondeu alguma coisa, mas tão baixinho que Seph não conseguiu ouvir as palavras. O que quer que fosse, não devia ter sido satisfatório, pois Bruce fez alguma coisa e Trevor gritou.

  • Ei! — Seph correu pela galeria e desceu as escadas aos saltos. Abriu caminho aos empurrões pelo círculo de magos e agarrou o braço de Bruce. — Largue-o!

Bruce recuou, soltou Trevor e se virou, as mãos er­guidas para lutar. Os olhos se arregalaram quando viu Seph.

  • O quê? Você está com ele?

Warren Barber se voltou para Trevor.

  • Você sabe que não tem permissão para entrar aqui — disse ele com voz suave.

Barber estendeu a mão, e Trevor pressionou o próprio corpo contra a parede de novo, fechando os olhos. O suor brotava da sua testa, apesar do ar frio.

  • Calma aí. A idéia foi minha — disse Seph, postando-se entre eles. Sorriu e deu de ombros, acionando o seu charme. — Eu só queria dar uma olhada.

Warren não se impressionou.

  • Esse aí deveria saber que não pode entrar assim.

A respiração de Warren fedia a cerveja, e ele falava com a determinação típica dos bêbados. Esticou o braço, passando por Seph e agarrando Trevor, e Trevor pulou para trás.

Seph empurrou a mão de Warren para longe.

  • Não vejo qual é o grande problema. O que estão escondendo aqui dentro?
    • Bom, na verdade é... — Warren esfregou a palma da mão no queixo com a barba por fazer. — É um grande problema.

Bruce pigarreou.

  • ..
    • O dr. Leicester não falou pra você ter cuidado com quem você anda? — disse Warren a Seph, indicando Trevor com a cabeça.

Seph ergueu o queixo em desafio.

  • Qual é, cara?! Você faz tudo o que o dr. Leicester manda?

O sorriso de Warren se desfez, deixando ressentimento em seu rastro.

  • O que quer dizer com isso?

Seph olhou para o círculo de magos em torno, o olhar demorando-se em cada rosto.

  • Quero dizer que sou eu quem decide sobre meus amigos.

Ninguém disse nada por um longo instante. Então Warren deu de ombros e sorriu, como que tentando negar todas as ameaças e insinuações de antes. Mas o sorriso nunca lhe chegou aos olhos.

—  Tudo bem, então — disse ele. — É só um, sabe como é, mal-entendido.

—  Tudo em paz, Joseph — disse Bruce, em tom reconfortante. — Espere até você se mudar pra cá. Vai ser ótimo. Os outros dormitórios são uma droga em comparação. A comida é bem melhor também. Ei, por que você não entra e janta conosco? A gente pode explicar algumas coisas pra você.

Era um convite que claramente não incluía Trevor.

Seph sentiu-se tentado. Seria bom receber algumas explicações. Mas percebia a necessidade de estabelecer um limite, de fazer uma declaração sobre quem ele era e o que toleraria.

  • Já tenho planos para esta noite — disse ele, sorrindo. — Quem sabe outro dia?
  • Claro — disse Bruce. — Venha pro jantar amanhã. A gente começa às sete.

Trevor olhou para Bruce, Seph e Warren.

—  Não digam ao dr. Leicester que eu estive aqui — sussurrou ele. — Por favor.

Warren arreganhou os dentes.

  • Qual é o problema? Tem medo de ganhar uma marca negativa?
  • Por favor — repetiu Trevor. — Eu sinto muito, mesmo. Só não contem pro Leicester.
  • Talvez você queira ser o meu servo particular por um mês. Hein? — disse Warren. Ele sorriu para os outros magos. — O Trevor é muito bom lavando roupa. Muito me­lhor que o serviço daqui. Deixa aquelas cores brilhando.
  • Ei, Warren — disse Seph, mantendo o tom de voz leve. — Já chega. Que parte de deixe ele em paz você não entendeu?

Warren ergueu uma mão, sorrindo.

  • Sem problemas. Vejo você amanhã.

Seph tocou Trevor no ombro.

  • Vamos, Trevor. Temos outros lugares para ir.

Uma vez lá fora, Trevor não disse nada, mas se virou e seguiu para o dormitório, de cabeça baixa, chutando as folhas com força.

Seph teve de se apressar para alcançá-lo.

  • Ei! Trevor! Olha, me desculpe. Você tinha razão. Eu devia ter escutado.

Trevor não ergueu o olhar nem diminuiu o passo. Fi­nalmente, Seph agarrou-lhe o braço, fazendo-o dar meia-volta.

  • Fale comigo, sim?

Seph meio que esperava que Trevor se soltasse, ou lhe desse um soco, ou algo assim, mas ele só ficou ali, olhando para o chão, um músculo pulsando no maxilar.

  • Eu disse que devia ter escutado você — repetiu Seph. — Aquilo foi surreal. Mas ninguém se machucou, certo?

Trevor olhou para Seph como se tivesse ouvido a piada mais suja possível.

  • Certo, claro. Ninguém se machucou.

Ele começou a se virar, mas Seph o segurou pelo braço com mais força para mantê-lo no lugar.

  • Solte-me.

Trevor manteve os olhos voltados para o outro lado, como se olhar para Seph fosse perigoso.

Seph continuou segurando.

  • O que foi? Fale.

Trevor simplesmente balançou a cabeça.

Com cuidado, Seph liberou uma quantidade mínima de poder sobre Trevor. Sentia-se mal por fazê-lo, mas precisava saber.

Sentiu que Trevor não queria responder, mas as pala­vras jorraram mesmo assim.

  • Você nunca disse que era um deles.
    • Deles quem? — indagou Seph, embora já soubesse.

Trevor voltou os olhos para a Casa dos Ex-Alunos.

  • Não sou um ex-aluno — disse Seph, num tom pouco convincente. — Estou no segundo ano. É só que estou matriculado num programa especial.

Trevor não disse nada.

  • Por quê? — indagou Seph. — O que você sabe sobre eles?

Trevor estremeceu.

  • Eu não quero saber nada sobre eles. Sobre vocês. — Ele tentou se soltar, e Seph o largou. — Vocês não se importam com o que acontece com qualquer um de nós. Alguns de nós deram ouvidos ao Jason, e...
  • Quem é Jason?
  • Ele nos disse que a gente devia resistir e lutar. A gente tentou, e agora o Sam está morto. E o Peter e o Jason estão morando na Casa dos Ex-Alunos.

Era como se Trevor estivesse falando japonês. Seph se perdera já na primeira frase.

  • Lutar contra o quê? Quem morreu? Não sei do que você está falando.

Trevor levou as mãos aos ouvidos, falando alto o bas­tante para abafar a voz de Seph. Como se tivesse medo de que Seph pudesse seduzi-lo com palavras.

—  Passei seis meses sem uma medida disciplinar, e agora...

  • Eu falo com o dr. Leicester — propôs Seph, ainda perplexo pela emoção com que estava se deparando. — Eu explico. Custe o que custar.
    • Não — disse Trevor. — Não me faça nenhum favor. Você vai piorar as coisas. Só fique longe de mim.

Ele girou e se afastou, de volta ao dormitório. Seph ficou observando-o até Trevor sumir nas sombras das árvores.

 

                   Compromisso Total

Na noite seguinte, Seph vestiu-se com esmero, escolhendo uma camisa de algodão, calças cáqui e paletó sem gravata, e passou gel no cabelo, raciocinando que era possível que o dr. Leicester estivesse presente ao jantar. Ele se dirigiu à Casa dos Ex-Alunos na hora marcada, torcendo para que a noite fosse melhor do que o encontro do dia anterior.

Falando com franqueza, ele não gostara muito de ne­nhum dos magos que havia encontrado até o momento.

O sr. Hanlon, a quem havia encontrado antes na flo­resta, saudou-o à porta da sala de jantar.

— Pode me chamar de Aaron — disse Hanlon.

Embora Seph tivesse tido o cuidado de chegar na hora, o jantar já estava sendo servido. O espaço lembrava a sala de jantar de um luxuoso hotel de esqui: teto de vigas altas, piso de ladrilhos, uma lareira gigantesca e uma parede de janelas que davam para uma queda-d'água.

Os ex-alunos estavam reunidos ao redor de uma longa mesa. Havia 15 ao todo, sem contar Seph — uma mis­tura de professores e "pesquisadores", como Warren e Bruce. Leicester não estava lá. Os garçons circulavam discretamente, servindo bebidas, passando travessas de aperitivos, recolhendo pratos e anotando pedidos de um cardápio de alta classe. Para a surpresa de Seph, cerveja, vinho e destilados corriam livremente. Seph supôs que isso se devia ao fato de quase todos os ex-alunos serem maiores de idade.

Aaron colocou Seph em uma posição de honra, no centro da mesa, e sentou-se ao lado dele, com Kenyon King, professor de educação física, do outro lado, e Bruce e Warren do lado oposto da mesa. Alguém colocou uma travessa de camarão temperado à sua frente e um copo de vinho à direita. Os ex-alunos de ambos os lados da mesa se apresentaram.

Em uma das cabeceiras da mesa estava um rapaz despenteado, com óculos e um tique, que se apresentou como Peter Conroy. Era o garoto que Seph havia encontrado na floresta dois dias antes, a caminho da natação. Seph tentou atrair a atenção de Peter, mas ele não olhava de volta. Seph deu de ombros. Aquilo parecia menos impor­tante ali, cercado por magos, do que fora no outro dia.

Seph bebericou o vinho com cautela, determinado a manter a mente alerta. O vinho tinha o aroma distinto de um Gewurz. Seph sorriu por dentro. Genevieve sempre assumira a típica atitude francesa em relação a vinhos, considerando-os menos perigosos do que a água. Assim, ele pudera desfrutar dos vinhos tanto à mesa dela quanto na Europa.

  • Fale um pouco sobre você, Joseph — sugeriu Aaron.

Todos se inclinaram para a frente.

A pergunta que ele detestava.

  • .. Nasci em Toronto, mas me mudei várias vezes. Fui criado por minha mãe adotiva. Uma feiticeira.
  • Deve ter sido divertido — disse Bruce, fazendo uma careta. — Criado por uma feiticeira. Ela fazia você caçar cogumelos na mata, triturar língua de rã e coisas assim?

Seph pestanejou.

  • Bem, não. Não posso dizer que já tenha feito isso. — Seph pensou em dizer: "A gente costumava ir aos mer­cados em Chinatown e comprar raízes e vegetais exóticos." Mas não o fez. — De qualquer maneira, não tive muito treinamento em magia. Espero que vocês possam me dizer como é o programa aqui.

—  Temos uma biblioteca ótima, reservada para o uso dos ex-alunos — disse Aaron. — Milhares de volumes sobre feitiços, encantamentos, feitiços de ataque e pro­teção, além de Livros Weir de famílias famosas.

  • O estudo é mais... independente? — indagou Seph.
  • Mais ou menos — disse Bruce. — O dr. Leicester tem um sistema mágico de atalho que permite a todos nós compartilharmos de conhecimento e poder. Com esse sistema, você vai estar por dentro de tudo em pouco tempo.

—  Atalho?

Leicester mencionou algo sobre isso em seu encontro anterior. Seph examinou a mesa: parecia haver muitos pés irrequietos e cadeiras se remexendo por ali.

—  Além disso, executamos muitas tarefas fora do campus — disse Warren. — Operações especiais.

  • Tipo o quê?
    • Bom, você sabe. — Warren pareceu desconfortável. — Acho que o dr. Leicester falou pra você do sonho dele de unir as Casas dos Magos. A gente trabalha nisso.
      • É bem legal sair por conta própria — disse Bruce. — A gente viaja por todo o mundo. Tailândia. Londres. Brasil.

Seph sentiu que ainda não estava entendendo. Era como quando as pessoas falam de sexo, dando voltas no assunto de um modo que, no fim, até o mais básico continua misterioso.

  • Quem paga por tudo isso? — perguntou ele.
    • O dr. Leicester tem patrocinadores — disse Aaron. — Vai por mim, dinheiro não é problema. A gente não paga um centavo de mensalidade, nem pelas roupas, quarto e refeições, ou qualquer outra coisa. — Ele pegou um camarão. — Como pode ver, tudo é da melhor qualidade.
  • Quanto tempo dura o programa? — indagou Seph, passando o prato para o garçom. — Por quanto tempo a maioria das pessoas fica?

Todos olharam para ele como se aquela fosse uma pergunta muito difícil.

Ele tentou de novo.

  • Digo, quando eu me formar, daqui a dois anos, vou saber tudo o que preciso saber?

Aaron foi o primeiro a se recuperar.

  • Sim — disse ele, sorrindo. — Daqui a dois anos, você vai saber tudo o que precisa saber.

Nas duas semanas seguintes, Seph se acomodou ao ritmo de vida no Porto Seguro. Por mais diferentes que fossem as escolas, elas acabavam se assemelhando. O es­tudo não era tão rigoroso quanto temera. Na verdade, era um tanto quanto superficial. Parecia que a administração no Porto Seguro não estava preocupada com os alunos Anaweirs que ocupavam a maioria das carteiras.

Era uma escola pequena; como Seph e Trevor estavam no segundo ano, tinham várias aulas juntos: álgebra II e trigonometria, física, ciências sociais e literatura inglesa. Mas a amabilidade calorosa de Trevor havia se transfor­mado em desconfiança nervosa e mal-humorada.

Trevor devia ter contado aos outros o que acontecera na Casa dos Ex-Alunos. Harrison, Troy e James ainda conversavam com Seph animadamente, mas era o tipo de conversa fiada geralmente reservada aos delatores e aos primos ricos e insuportáveis que são vistos apenas uma vez por ano. Seph sabia que poderia reconquistá-los se tentasse, mas conteve seus poderes de persuasão. Amizade não significava muito se fosse forçada. Uma ou duas vezes por semana, ele jantava na Casa dos Ex-Alunos. Ele se perguntava o que eles diziam quando não estava lá.

A princípio, os professores pareciam ser um grupo bas­tante diverso, desde o simpático Aaron Hanlon, passando pelo ranzinza Elliott Richardson e o musculoso professor de educação física Kenyon King, até o pequeno Ashton Rice, que vinha de família tradicional, de sangue azul.

Eram diferentes, mas havia também algo idêntico em todos, alguma experiência em comum.

Como os homens de Harvard. Todos carregam a marca do Porto Seguro.

Certa noite, Seph recebeu uma mensagem durante o jantar, em papel de carta com o timbre do veleiro.

POR FAVOR, ESTEJA NA CASA DOS EX-ALUNOS ÀS 21 H.

  1. LEICESTER.

Nove horas da noite era uma hora estranha para uma reunião, mas talvez aquilo significasse que o treinamento mágico estava prestes a começar. Seph sentiu uma excitação crescente, misturada com apreensão. Até então, ele não gostara muito nem de Leicester nem dos ex-alunos. Mas obteria deles aquilo de que precisava e seguiria em frente.

Aquela noite, o nevoeiro se ergueu vindo do Atlântico e condensou-se em chuva — o chuvisco frio e impiedoso que Genevieve chamava de larmes d'ange. Lágrimas de anjo. Seph vestiu um suéter grosso que ela tricotara para ele, calças jeans e uma jaqueta de couro. Protegido, caminhou entre folhas e árvores molhadas até o ponto de encontro.

Ao chegar à Casa dos Ex-Alunos, ficou surpreso ao encontrar o salão vazio, a não ser por Warren Barber, que se apoiava no console da lareira, fumando e lançando as cinzas no fogo.

Warren jogou o cigarro nas chamas e apanhou uma pilha de roupas de uma cadeira próxima.

— Os outros vão nos encontrar na capela — disse ele. — Vamos.

Seph hesitou.

  • Vamos nos reunir lá fora?

Será que aquilo era algum tipo de trote de calouro?

  • Brilhante, não é?

Seph não teve opção a não ser segui-lo. Warren con­duziu-o por dentro da floresta seguindo uma trilha de lascas de madeira com pontes cruzando várias vezes um pequeno riacho. A névoa cobria o chão até a altura da cintura em certos pontos, açoitada pela chuva. Seph enxugou a água do rosto, olhando de um lado para o outro. Temia uma emboscada.

Cerca de um quilômetro e meio floresta adentro, diminuía a quantidade de árvores, formando uma clareira e revelando um rústico anfiteatro. Fileiras de bancos de pedra voltavam-se para uma plataforma elevada com um altar ao centro, cercado por pedras e iluminado por tochas, a luz ofuscada pela névoa.

Aquilo lembrava a Seph lugares que havia visto na Bretanha, templos celtas de magia dos druidas.

  • O que é tudo isso? — murmurou ele, estremecendo.

Warren guiou-o pelo corredor central em direção à plataforma. Ao chegar lá, jogou para Seph uma trouxa de roupas.

  • Vista isso — disse ele.

Era uma túnica de lã tosca com capuz, alvejada. Seph vestiu-a sobre as roupas úmidas. Warren cobriu-se com outra túnica, de tom cinza. A escuridão sob as árvores agitou-se num redemoinho e deslocou-se, e outras pes­soas em túnicas cinzentas apareceram, subindo silencio­samente na plataforma, atrás do altar.

  • Você. — Warren puxou Seph até um ponto diante dos assentos, de frente para a plataforma. — Fique aqui — ordenou, depois se juntou aos outros no tablado.

E então, finalmente, uma figura trajando negro, alta e magra, se materializou na plataforma. O rosto estava oculto nas sombras, iluminado por trás pelas tochas, mas Seph não tinha dúvida de que aquele era Gregory Leicester.

Leicester segurava um cajado, uma alta coluna feita de bronze e ouro dispostos juntos em camadas, e com um cristal na ponta. Embutido no cristal havia algo escuro, como uma sombra ou um defeito. Um amuleto. Os olhos de Seph foram atraídos por ele; teve de se forçar a desviar o olhar.

Era, talvez, um espetáculo — algum tipo de cerimônia de iniciação para estabelecer a solidariedade. Como juntar-se a um clube. Poderia ser divertido, com toda a pompa e as vestimentas, mas Leicester não parecia muito um apresentador. Seph não gostou de ser isolado, postado diante do altar vestido como uma vítima de sacrifício. Sentiu a pele formigar e a boca ficar seca.

  • Joseph McCauley veio até nós pedindo para se juntar à nossa ordem de magos — entoou Leicester, a voz emer­gindo do capuz negro. — É essa, de fato, a sua intenção, Joseph?

Seph pigarreou, sentindo uma intensa pressão para responder.

  • .. ahn... acho que sim — respondeu ele.

Aparentemente a morna resposta não desencorajou

Leicester, que continuou:

  • Nós concordamos em considerar o seu pedido. O candidato compreende o que é exigido dele?

Outra vez, a sensação de pressão concentrada, a pressão para dizer sim. Instintivamente, Seph resistiu.

—  Não, na verdade, não — disse ele. — Pode me dizer?

Leicester fez uma pausa, como se aquela resposta fosse inesperada, e respondeu com certo embaraço:

  • Você tem de conectar a sua Pedra Weir à minha.

Em reflexo, Seph pressionou os dedos contra a pele do peito, através das dobras da túnica. Seus olhos se fixaram numa tigela rasa de pedra sobre o altar. E na faca que se encontrava ao lado dela. Ele passou a língua pelos lábios e engoliu em seco.

—  O quê?

Leicester jogou o capuz para trás.

  • Através da enunciação de feitiços e da doação do sangue.

—  Isso é mesmo necessário? — indagou Seph, lutando para manter uma expressão de polida inquirição. — Eu só quero ser treinado em magia.

Leicester arregaçou as mangas da túnica como um cirurgião se preparando para uma operação.

  • A magia se manifesta cedo — replicou ele. — A maioria começa o treinamento bem jovem. Você está muito atrasado em relação a seus colegas. Este sistema é um atalho. Permite que os seus poderes sejam usados com segurança sem um extenso treinamento de recuperação. Não temos tempo para isso.

Seph teve a sensação de que Leicester estava esco­lhendo as palavras com muito cuidado. Como se o que dizia fosse tecnicamente verdade, mas intencionalmente enganador. Seph sentiu uma pressão mais sutil, como uma corrente subterrânea de magia em ação. Seus mús­culos relaxaram, e a cabeça girou com pensamentos inarticulados.

Ele esboçou um débil protesto.

  • Quer dizer que se eu não passar por essa... hum... cerimônia, o senhor não vai me treinar em magia?
    • Quero dizer que leva anos para se desenvolver ha­bilidade suficiente para praticar a magia com segurança. Quero dizer que você está começando muito tarde. Quero dizer que este é o nosso jeito de fazer as coisas no Porto Seguro. — Leicester apanhou a faca e inclinou a cabeça para alguém atrás de Seph. — Tragam o suplicante.

Bruce Hays e Warren Barber se materializaram atrás de Seph e agarraram-lhe os cotovelos. Eles o arrastaram para a frente, quase erguendo-o degraus acima e jogando-o de joelhos diante do altar. Arregaçaram-lhe a manga e pressionaram-lhe o braço contra a pedra fria e áspera, expondo a parte interna do pulso.

Era como um sonho. Quase como assistir a algo que acontecesse com outra pessoa. Ele mal sentiu a lâmina quando esta lhe penetrou na carne e seu sangue se derramou na tigela de pedra. Devia ter ficado horrorizado quando Leicester pronunciou algumas palavras sobre a tigela em alguma língua mágica, mergulhou o topo crista­lino do cajado no sangue e então bebeu da tigela.

"Isso está errado", pensou Seph. Mas se sentia confuso e letárgico, fraco e passivo, levado pela cerimônia como uma folha pela correnteza.

  • Levante-se — disse Leicester a Seph — e repita as minhas palavras.

Barber e Hays ergueram Seph e seguraram-no em pé. As mãos dele queimavam através do tecido tosco da túnica enquanto um pensamento rasgava-lhe a mente, incendiando-a.

Aquilo era claramente algum tipo de ritual pagão. O que exatamente queriam que ele entregasse nas mãos de Leicester?

Ele pressionou o braço que sangrava contra o corpo. O topo cristalino do cajado faiscava, projetando uma luz esverdeada sobre os participantes. Algo se agitou no canto da visão de Seph, como um retalho de tecido preto. Isso aconteceu de novo, e outra vez mais, bloqueando a luz das tochas. Morcegos. Nuvens de morcegos, lançando-se sobre as cabeças dos ex-alunos, em um silencioso bom­bardeio. Muitos dos celebrantes cobriram as cabeças com os braços.

Um sinal.

Seph olhou para o lado oposto do altar, para onde um dos ex-alunos estava em pé, assistindo. Peter Conroy. O rosto dele era uma máscara de consternação. Quando viu Seph olhando-o, os olhos dele se arregalaram atrás dos óculos. Ele sacudiu a cabeça, bem de leve.

Um aviso.

Leicester falou sua frase mágica e fez uma pausa, es­perando que Seph a repetisse, como um voto numa ce­rimônia de casamento satânico. As figuras encapuzadas se inclinaram para a frente em expectativa.

  • Não — disse Seph. — Não posso.

—  Você quer que eu repita, Joseph? — indagou Leicester com suavidade, encorajador.

—  Não. Quis dizer que mudei de idéia.

Por um momento, Leicester pareceu atônito demais para falar.

—  O quê?

As palavras pareceram ecoar na névoa.

—  Eu me recuso.

Um rumor de surpresa se espalhou pelos ex-alunos, rapidamente contido. Peter fechou os olhos e suspirou, como se estivesse aliviado.

A voz de Leicester era calma e confortadora.

  • O que está incomodando você, Joseph? A parte do­lorosa já foi. Quando tivermos terminado, vamos voltar para a Casa dos Ex-Alunos, enfaixar esse arranhão e preparar a sua transferência para lá. O seu treinamento vai começar imediatamente.
  • O que está me incomodando?

Seph estremeceu. A chuva caía mais forte agora, colando-lhe o cabelo na testa e encharcando-o quase que por completo. De algum modo, aquilo pareceu clarear-lhe a mente.

O braço ainda escorria sangue, e Seph pressionou-o com força contra o corpo.

  • O senhor está bebendo o meu sangue e me pedindo pra fazer algum tipo de juramento que eu nem entendo. Não posso me envolver num ritual desses. Parece coisa tirada de filme de terror. Para ser sincero, isso tudo me dá calafrios.

Leicester emitiu um ruído de impaciência.

—  Você disse que queria aprender magia.

Seph olhou para o círculo de magos encapuzados ao redor, torcendo para que alguém falasse em sua defesa.

—  Eu quero.

—  Isso não vai acontecer, a menos que o ritual se complete.

Seph tomou fôlego.

—  Então não vai acontecer.

  • Há duas semanas, perguntei a você se estava dis­posto a assumir o compromisso total. Você me garantiu que estava.

Seph se desvencilhou de Hays e Barber.

—  Acho que o senhor precisa me dizer exatamente com o que eu estou me comprometendo.

Um músculo se retorceu no maxilar do diretor. A voz de Leicester se mantinha suave, mas havia um traço áspero nela.

  • Se você recusar, deveria se perguntar sobre as conseqüências.

Aquilo soava como uma ameaça.

  • Que conseqüências?
  • Há uma razão pela qual o treinamento dos magos começa cedo — disse Leicester. — Quando magos destreinados alcançam a adolescência, eles... se autodestroem.
  • Como assim?

—  Talvez seja uma questão hormonal — disse Leicester com delicadeza. — Talvez uma questão de desenvolvi­mento. Começa com descargas descontroladas de poder. Depois a magia se volta para o interior e destrói a mente, resultando em depressão e alucinações. Não é raro que magos destreinados enlouqueçam.

Seph pensou no depósito. A destruição da torre do sino. Parecia que ele havia tido espasmos descontrolados de poder por toda a vida. E esses espasmos pareciam estar ficando piores e mais freqüentes. Ele se examinou em busca dos sintomas. Desde o fogo no depósito, andava deprimido. Achava difícil se concentrar. Mas será que isso não era normal para uma pessoa com sangue inocente nas mãos?

  • Joseph — disse Leicester, com as maneiras de um homem que se esforçava para ser razoável —, todos os outros aqui concordaram.

Seph olhou para os rostos no círculo em volta. Hays e Barber exibiam sorrisos afetados, os olhos apertados contra a chuva. Alguns dos celebrantes encararam-no, estóicos. Outros, inclusive Peter, desviaram o olhar para os próprios pés ou para um ponto distante. Não era muito reconfortante.

  • Sinto muito — disse Seph. — Simplesmente não posso.
  • Muito bem — disse Leicester com veneno. — Então sofra as conseqüências.

O mago deu um passo em direção a Seph, estendendo o cajado. Seph recuou, mas se chocou contra alguém, Hays ou Barber, que o segurou no lugar. Leicester pressionou o topo manchado de sangue do cajado contra o peito de Seph, sobre o coração palpitante. O poder pulsou através dele como algum tipo de máquina mágica de ressuscitação cardiopulmonar.

— Não vai levar muito tempo até você vir implorando por outra chance. — Leicester se voltou para o resto dos ex-alunos. — Venham. Estamos perdendo tempo aqui.

Os ex-alunos desapareceram entre as árvores, deixando a Seph o problema de encontrar sozinho o caminho de volta na floresta molhada.

 

                   Conseqüências

Seph acordou em completas trevas, congelado e encharcado. Sentou-se, as palmas escorregando na madeira molhada e lascada. O luar entrava através de duas janelas bem altas na parede. Estava até o quadril em água fria, e mais água jorrava através de um grande buraco quadrado no chão. Ainda desorientado, levantou-se com dificuldade.

Estava na casa dos barcos. Reconheceu-a da visita com Trevor durante o passeio pelo campus. Conseguiu dis­tinguir as vagas formas do equipamento pendurado na parede e ver pequenos objetos boiando na superfície escura da água.

Ele havia voltado para o quarto após a cerimônia abor­tada na floresta. Como havia terminado ali? E de onde vinha a inundação?

A água batia contra as paredes, mais alta do que antes, quase nos joelhos de Seph. Sua mente processava as coisas devagar. A maré estava subindo? Com certeza ha­viam construído uma casa de barcos que agüentasse a maré. As pessoas que entendiam do mar sabiam dessas coisas.

As calças caqui molhadas colavam-se às pernas de um jeito desagradável. A água lhe alcançara as coxas. Com dificuldade, rumou para a porta e puxou a maçaneta. A porta não se mexeu. Puxou de novo, apoiando um pé contra o batente da porta. Emperrada. Ou trancada. Sentiu um tremor de pânico. A água subia, e ele não conseguia sair.

Não Jazia sentido. Com certeza aquele velho prédio não era fechado hermeticamente. Devia vazar como uma pe­neira. Teria ele sido drogado, enfeitiçado, carregado ali pelos ex-alunos sob ordens de Leicester? Por quê?

Tentou enxergar na escuridão, os dentes batendo de medo e frio, à procura de uma saída.

Ele poderia nadar para fora pelo poço dos barcos, embora não gostasse da idéia de mergulhar na água negra. Agora a profundidade era tão grande que somente uma pertur­bação na superfície lhe permitia discernir onde a abertura começava e o chão terminava. Ele avançou com cautela, tateando em busca da beira do chão com pés que pareciam desajeitados e dormentes com o frio. Escorregando além da beirada, afundou na água gelada, em pé. Projetou-se para a superfície, impulsionado pela corrente, e afastou o cabelo molhado do rosto. Curvando-se, tentou mergulhar fundo, mas foi jogado de volta ã tona todas às vezes, sedento por ar. Não havia escapatória por ali.

Tossindo e cuspindo água salgada, ele achou a beirada do piso novamente. Ao se levantar, a água atingia-lhe a clavícula. Precisava manter-se mais elevado. Tropeçou numa mesa de limpar peixes, impulsionou-se para o alto e conseguiu subir em cima dela. Agora estava imerso apenas até a cintura, mas bateu a cabeça no teto, e a água continuava subindo.

— Socorro! — gritou ele, em berros fracos e ineficientes. — Estou trancado na casa dos barcos! Socorro! Estou me afogando!

Em pé na mesa, só conseguia alcançar uma das pe­quenas janelas ao se esticar bastante para um dos lados. Agarrou uma grande rede de pesca que estava pendurada na parede e bateu-a contra o vidro. A rede era muito leve e, no ângulo em que estava, Seph não conseguia aplicar muita força ao golpe. Finalmente, os pés deixaram de tocar a mesa. Ele se debateu em desespero por um instante e afundou de novo.

Subiu à tona, cuspindo e jogando água para todos os lados. Então arquejou quando algo passou por ele, per­turbando a superfície da água negra como uma grande serpente, a pele áspera arranhando-o na passagem.

Seph inspirou fundo e ficou absolutamente imóvel, salvo pelo bater violento de seu coração. Por um momento, a água ficou calma. Então um grosso tentáculo musculoso tateou-lhe a perna, deslizou para cima e enroscou-se em torno da cintura de Seph.

Ele empurrou a criatura, bateu nela, tentou se libertar dela com ambas as mãos, engolindo uma boa quantidade de água na tentativa. Seus punhos não tinham nenhum efeito sobre aquela pele que lembrava couro. Chutando, o pé encontrou algo suave e flexível, e o aperto do monstro relaxou um pouco. Lançando-se para cima, Seph envolveu com os braços uma das toscas vigas de madeira que sustentavam o telhado.

Agarrou-se ali, lutando para recuperar o fôlego, mas não conseguiu se erguer completamente para fora da água. Ondulações se espalharam a partir do canto oposto quando a criatura veio à tona, os olhos pálidos e indiferentes e os dentes como lâminas expostos sob a luz que vinha da janela. Uma lula? Um polvo? Algum monstro desconhecido que se mantivera oculto nas profundezas do oceano até agora?

Mais uma vez, um tentáculo avançou, deslizando sob a água como uma grande cobra. Explorou-lhe a coxa, depois enroscou-se ao redor dos quadris.

Lenta e inexoravelmente, a criatura o arrastou. Em de­sespero, ele se agarrou com mais força á viga do teto, voltando o rosto para cima de modo que pudesse inspirar algum ar. Ele não tentava mais expulsar seu atacante, mas se agarrou a ele com toda a força. Sentiu as articulações estalarem enquanto uma força impiedosa ameaçava fazê-lo em pedaços.

De repente, o monstro projetou-se para a frente numa explosão de água e cerrou os dentes na perna direita de Seph, que gritou e tentou libertá-la, soltando-se da viga. Ele ainda conseguiu tomar fôlego uma última vez, inspirando uma mistura de ar e água do mar, antes de ser rebocado para baixo da água e para dentro de um negro desespero.

A luz acordou Seph uma segunda vez, uma luz dolorosa que o fez rolar de bruços para se livrar dela. Estava na cama. Algo terrível espreitava em sua memória, um monstro mantido acorrentado no quarto dos fundos de sua mente.

Ele engoliu em seco; a garganta estava tão seca que lhe trouxe lágrimas aos olhos. Sentia-se como se tivesse levado uma surra. Cada músculo do corpo doía. Pôs-se de joelhos com dificuldade, e então a lembrança completa da noite anterior retornou-lhe. Vomitou no chão ao lado da cama. A garganta estava pior do que nunca.

Seph deitou de costas e fitou o teto. Gradualmente, deu-se conta de que estava na sua cama, de volta à seu quarto no dormitório. Estava ensopado de suor, não de água do mar, e estava vivo. Correu a mão hesitantemente pela perna direita, depois a esquerda, e não achou sinal algum de ferimentos. Examinou duas vezes, para ter certeza. Lágrimas quentes de alívio encheram-lhe os olhos e caíram no travesseiro.

O monstro o havia despedaçado. Seph havia olhado sem esperanças para cima, para a superfície do oceano, enquanto seu próprio sangue turvava a água; ele tinha sentido gosto de sangue na boca, e as grandes mandíbulas se fechando em sua carne e rasgando-a em pedaços. Sua luta havia arrefecido à medida que ele sucumbia à falta de oxigênio e à perda de sangue.

Ainda assim, levara um longo tempo para morrer.

Ele se sentou, ergueu os joelhos em posição fetal e apoiou o queixo nas mãos, tremendo. Havia sido um sonho, então? Se era esse o caso, fora diferente de qual­quer sonho que já tivera. Fora o mais espetacular de todos os sonhos, colorido, tridimensional e com surround.

A roupa de cama estava completamente arruinada, evi­dência da luta que durara a maior parte da noite. O teto e as paredes estavam cobertos de pontos chamuscados, como se ele houvesse lançado chamas. Por sorte elas não haviam incendiado nada, ou ele teria morrido queimado.

Saiu da cama, desviando-se da sujeira no chão, foi até o banheiro e enxaguou a boca. O rosto no espelho encarava-o com um ar pálido e abatido. Com cuidado, tocou com os dedos os vasos sangüíneos rompidos em torno dos olhos. Marcas em forma de meia-lua cruzavam-lhe as palmas: as impressões das unhas.

Apanhando uma toalha, limpou o chão o melhor que pôde. Levou-a para o corredor e jogou-a no cesto da lavanderia, depois pegou toalhas limpas do carrinho de roupas de cama, movendo-se automaticamente. Deitou-se de novo na cama e virou o rosto para a parede, com medo de dormir, cansado e deprimido demais para fazer qualquer outra coisa.

As palavras de Leicester lhe voltaram.

"Não é raro que magos destreinados enlouqueçam."

 

A manhã seguinte era segunda-feira. Seph não tomou o café da manhã nem assistiu à primeira aula. Por volta das dez da manhã, quando o dr. Leicester voltou ao seu escritório, Seph estava esperando do lado de fora, sentado no chão, os braços ao redor dos joelhos.

— Joseph — disse o diretor, olhando-o de cima. — Você não deveria estar na sala de aula?

  • Preciso conversar com o senhor — disse Seph, quase num sussurro, porque falar era doloroso.
  • Por que não volta esta tarde, depois das aulas? Você não quer começar com o pé esquerdo.

—  Eu já comecei com o pé esquerdo. Preciso falar com o senhor.

  • É claro. Entre.

Ele se afastou para o lado, para que Seph entrasse no escritório. Seph moveu-se com cuidado, pois cada parte dele doía: corpo e alma.

De sua parte, o diretor parecia quase contente.

  • Sente-se — disse Leicester, fechando a porta e apon­tando para a mesa junto à janela.

—  Vou ficar em pé. Isso não vai demorar. — Seph orga­nizou seus pensamentos. — Vim dizer que isto não está funcionando. A minha situação, digo. Já que não posso ser treinado em magia aqui, vou contatar meu tutor e arranjar minha transferência.

Leicester ergueu as mãos para interromper o discurso.

—  Joseph, sente-se.

Como Seph não respondesse, ele insistiu:

—  Falei para você se sentar.

Seph sentou-se. Leicester tomou o assento em frente a ele, juntou as mãos apontando-as para cima e apoiou o queixo na ponta dos dedos.

  • Eu tinha esperanças de que você tivesse vindo me dizer que mudou de idéia.
  • E mudei. Cheguei à conclusão de que vir para cá foi um erro.
    • Tem certeza disso? Onde mais vai conseguir a ajuda de que precisa?
    • Vou encontrar alguém que me ensine.
      • Mesmo? Quem? Você mesmo me disse que vem procurando por um professor há dois anos. Creio que seu tempo está se esgotando.
    • Eu me virei bem até aqui.
    • Verdade? — O diretor estudou-o. — Está tendo sin­tomas, não é?

Seph olhou-o nos olhos.

  • Não.

Ele vinha mentindo a vida toda e era muito bom nisso.

Leicester não ficou impressionado.

  • De que tipo? Alucinações? Vozes? Sonhos? Paranóia?
    • Se estiver tendo alucinações, é por sua própria culpa. Precisa nos deixar ajudar. — Leicester se recostou e cruzou os braços. — Coopere conosco, Joseph. É só o que pedimos — acrescentou, sorrindo.

Seph lembrou-se da cena na capela: a luz tremeluzente das tochas, o altar, o sangue dele se derramando na tigela de pedra, o cajado se iluminando.

O aviso no rosto de Peter.

Seph inclinou-se para a frente.

  • Se quer me ajudar, então me ensine. Mas não vou me juntar ao seu culto, clube ou seja lá o que for.

O sorriso congelou-se no rosto de Leicester antes de desaparecer.

  • Deixe-me ser claro. Nossos inimigos estão se reu­nindo. Minha Casa, a Rosa Branca, é a atual detentora do Tesouro, ou seja, a coleção de artefatos mágicos que é transmitida há séculos por meio do sistema de torneios. Na semana passada, agentes suspeitos de trabalharem para o Dragão lançaram um ataque contra um depósito no Sudoeste da Inglaterra. Eles levaram armas de poder inimaginável. Há quem acredite que, na verdade,   os ladrões trabalham para a Rosa Vermelha. Há rumores sobre uma ação de retaliação. Como pode ver, há muitos interesses em jogo. A menor fagulha poderia desencadear uma conflagração como o mundo jamais conheceu. Creio que minha iniciativa pode ser a última grande esperança de paz. Entende por que não posso arriscar treinar alguém tão poderoso quanto você, cuja lealdade é duvidosa?

Fazia sentido. Fazia total sentido. Mas Seph vivera por conta própria por tempo o bastante para aprender a confiar em seus instintos. E seus instintos diziam-lhe que Leicester, Barber e Hays não eram pacificadores. Talvez ele estivesse louco, mas não tinha mais nada em que acreditar.

Ele deu seu melhor sorriso.

— Dr. Leicester. Eu desejo ao senhor e aos ex-alunos toda a sorte na prevenção de uma Guerra Mundial dos Magos. — Se é que é isso o que vocês estão fazendo aqui. — Mas eu, na verdade, sou... sabe como é... apolítico. Tenho um monte de questões pessoais que preciso resolver. Não posso me juntar a um movimento. Vou achar alguém para me treinar em outro lugar. Quem sabe quando for mais velho eu me sinta diferente.

Era um discurso bonito.

Seph se levantou.

  • Vou telefonar para Sloane em Londres. Eles vão marcar um vôo pra mim, mas vou precisar de transporte até o aeroporto. Tentei meu cartão de chamadas no tele­fone no meu dormitório, mas não consegui linha. Preciso telefonar esta manhã, durante o horário comercial.

—  Receio que isso não seja possível — disse Gregory Leicester.

Seph tinha certeza de que ouvira mal.

—  O senhor não vai me deixar dar um telefonema?

Leicester se levantou e apoiou os quadris contra a mesa.

  • É hora de crescer, Joseph, e entender alguns fatos. O seu tutor internou você. Você é menor de idade, e ele assinou os papéis. Sabe o que isso significa?

—  Internou-me? Como se eu fosse mentalmente incom­petente ou coisa assim?

O diretor suspirou.

—  Parece que o sr. Houghton não tem sido inteiramente franco com você. Esta é, na verdade, uma escola para adolescentes rebeldes e emocionalmente perturbados. Eu sou psicólogo.

—  O quê? — Seph pensou no panfleto lustroso com o veleiro na capa. — Houghton nunca disse nada sobre tratamento psiquiátrico.

—  O fato é que o sr. Houghton não quer mais ne­nhuma catástrofe. Ele só quer saber que você está em recuperação.

O diretor voltou para a mesa e se sentou, deposi­tando uma pasta sobre a madeira polida diante de si. Tirando uma caneta do bolso, puxou da pasta uma folha de papel em branco e rabiscou algumas notas.

  • Não acredito no senhor — disse Seph. Leicester con­tinuou rabiscando. — Eu não bebo nem uso drogas. Nin­guém nunca disse que sou um perigo para mim mesmo ou para outras pessoas.

Leicester baixou os olhos para a pasta.

  • Não é verdade que um estudante na Suíça registrou uma queixa de agressão contra você?

Seph sentiu o suor correr-lhe entre as espáduas. Secou as palmas úmidas nos jeans.

  • Foi um mal-entendido. Eles retiraram a queixa.

O diretor bateu a caneta nos papéis à sua frente.

  • Também houve um... incidente na Filadélfia.

Seph encarou-o, sem fala. Como Leicester podia saber do que acontecera na Filadélfia?

A menos que Denis Houghton lhe houvesse contado.

Após a morte de Genevieve, Seph estivera determinado a descobrir mais sobre seus pais. Como Sloane havia se mostrado evasivo, Seph começara a investigar pela in­ternet, usando as redes de crianças adotadas, os websites e grupos de e-mail de genealogia, e arquivos eletrônicos de dados vitais. Acabara encontrando sua certidão de nascimento, revelando que ele havia nascido em Toronto, filho de Helen Jacoby e Jared McCauley. Quando tentou desencavar mais dados, não encontrou nenhuma certidão de nascimento deles, nenhum avô ou avó, tia ou tio, nada listado nas listas telefônicas da Califórnia ou de Toronto, nenhuma notícia nos jornais sobre o incêndio, nenhum registro de propriedade, nada.

Era tudo apenas uma bela fachada sem nenhuma ver­dade por trás.

Ele invadira o escritório da administração da escola em que estava matriculado na época, na Filadélfia. Tivera esperanças de encontrar algum registro dos pais dele ou uma trilha de dinheiro que pudesse levar a algumas respostas. Tudo o que encontrou no arquivo foram cópias de pagamentos de mensalidades e recibos de despesas domésticas da firma de Sloane. Frustrado, Seph quebrou tudo o que havia no escritório. Por isso fora expulso uma vez mais.

  • Depois houve o incêndio no depósito, é claro. — Leicester abriu a pasta de novo e examinou um docu­mento que estava lá dentro. — Você tem um registro poli­cial considerável. Pena o que aconteceu com aquela moça.

Um calor incômodo se acumulou nas mãos e nos braços de Seph, sintomas que freqüentemente prenunciavam uma descarga. Ele lutou para controlar a raiva.

  • O Houghton não sabe nada sobre... sobre magia. Por que ele iria me culpar?
    • O sr. Houghton não acha que você seja um mago. O sr. Houghton acha que você é um jovem desordeiro e violento que gosta de incendiar e explodir coisas.

Seph lembrou-se do último encontro em Toronto, o braço de Houghton sobre os ombros dele. Mas quem sabia o que Houghton poderia fazer? A firma de Sloane vinha desperdiçando o precioso tempo de um dos sócios com os problemas de Seph McCauley.

  • Se o Houghton me internou, quero ouvir isso dele — disse Seph, enfim.

Sentia o rosto quente, os braços pesados, carregados de poder. E, naquele momento, não estava se importando em contê-lo.

Leicester deu de ombros.

—  Escreva para ele, se quiser. Telefonemas não serão permitidos na sua atual... condição instável.

—  Deixe-me mandar um e-mail pra ele, então.

—  Joseph, você precisa entender. Não posso me arriscar a chamar a atenção dos nossos inimigos para o Porto Seguro. E, dado o seu histórico, não é seguro ensinar magia a você sem algum tipo de controle. Seria como colocar uma arma nas mãos de um lunático.

Como que para sublinhar as palavras do diretor, a máquina de fax explodiu, lançando fragmentos de metal e nuvens de tinta que voaram e rolaram na direção deles.

Leicester pareceu um pouco abalado.

—  Joseph...

Uma fileira de vasos chineses estava alinhada em uma estante sobre a escrivaninha de Leicester. Eles come­çaram a vibrar até que, um por um, implodiram como alvos em uma galeria de tiro.

O diretor falou em seu tom de psiquiatra:

—  Joseph, você está fora de controle.

As luminárias piscaram e os suportes explodiram. A janela da frente se curvou para fora e espatifou-se, cacos de vidro brilhando à luz do sol ao cair no porto.

—  Vou procurar as Rosas — disse Seph. — Eles vão me dar o treinamento de que preciso.

Leicester estendeu a mão e pronunciou um feitiço. Algo se chocou contra Seph, como um míssil de uma arma de ar comprimido, e ele caiu de costas no chão, incapaz de se mover.

Leicester falou lá de cima:

—  Chamamos isso de feitiço de submissão.

Seph não disse nada.

—  Dada a atual situação política, não posso me arriscar a que você alerte as Rosas sobre o que está acontecendo aqui. Eles nos matariam a todos. — Leicester fez uma pausa, mas Seph permaneceu calado. — Eu o deixarei levantar-se quando houver se controlado.

Seph ficou deitado por um momento, sem fôlego, e então disse:

  • Está bem.

Leicester murmurou algumas palavras em latim, e Seph conseguiu sentar-se e levantar-se.

—  Quer dizer que vai me manter prisioneiro aqui?

Leicester girou o anel da mão direita.

—  Escreva uma carta, Joseph, se precisa mesmo, e nós vamos enviá-la. E considere cuidadosamente a escolha diante de você. Se não aprender a controlar o seu poder, ele vai destruí-lo. Não vou perder meu tempo com alguém que não está disposto a se comprometer com a nossa causa e se submeter à minha liderança. É uma pena, mas é assim que as coisas são. Até que você complete a cerimônia, nada acontecerá.

—  Há muitos advogados no mundo. Se Denis Houghton me internou sem uma avaliação apropriada, vou pro­cessar vocês dois, seus desgraçados!

Seph saiu em passos decididos, batendo a porta e descendo ruidosamente as escadas.

Quando teve certeza de que o rapaz havia saído, Gregory Leicester pegou o telefone e apertou o botão de uma extensão.

  • Joseph McCauley pode tentar dar um telefonema para fora da propriedade — disse ele. — Assegure-se de que ele não tenha sucesso.

Pensou por um momento e acrescentou:

  • Encontrem-me em meu escritório em dez minutos. Todos vocês.

Quando recolocou o telefone no gancho, estava sorrindo de novo. Ele caminhou até a janela. Era um belo dia de outono. O sol cintilava sobre as ondas no porto, e as árvores no promontório estavam todas em cores quentes, os vermelhos e dourados que atraíam os turistas. Ele suspirou, flexionando as mãos. Precisava arrumar tempo para velejar de novo antes que o tempo mudasse.

Joseph era incrivelmente poderoso. Leicester percebera isso assim que lera as cartas de recomendação do ga­roto, escritas com palavras cuidadosamente escolhidas. Leicester tinha um instinto, após todos aqueles anos. Mas havia sido ávido demais. Tentara ir muito rápido, e o rapaz recuara. Ele devia ter preparado o terreno, devia tê-lo amaciado antes de pedir-lhe que se comprometesse.

Ainda assim, Leicester achava que Seph poderia ser controlado, apesar da falta de treinamento. Naquele mo­mento ele estava mais zangado do que assustado. Mas isso poderia mudar. Leicester lhe quebraria o espírito, poria rédeas naquele poder selvagem e o usaria. O diretor fechou os olhos, e sua respiração se apressou um pouco.

Teria sido mais fácil se McCauley fosse mais jovem.

Doze anos era o ideal, mas com 16 poderia dar certo. Leicester jamais vira seu sistema falhar, exceto uma vez. No ano anterior, havia acolhido um aluno mais velho que havia recebido algum treinamento em outro lugar. Aquilo havia sido um erro. O rapaz ainda estava no Porto Seguro, mas talvez não por muito mais tempo.

Escutou uma batida à porta.

— Entrem! — disse Leicester.

Os ex-alunos entraram, todos os 15, todos magos talentosos. Mas nenhum tão poderoso quanto Joseph McCauley. Leicester estudou-os, analisando o que havia em suas mentes. Estando conectado a eles, sabia mais sobre eles do que jamais suspeitariam.

Warren Barber detestava servir a qualquer um. Isso, além do fato de ele ser o mais poderoso do bando, o tornava perigoso. Mas sua crueldade e falta de compasso moral o tornavam útil.

Bruce Hays adorava ter poder sobre os outros. Servia, se, em troca, outros o servissem.

Aaron Hanlon era afável e articulado, um mestre da magia mental. Kenyon King era razoavelmente poderoso, fisicamente forte e habilidoso em operações secretas. John Hughes era inestimável como especialista de sistemas. Eles formavam o núcleo.

Wayne Eggars havia aceitado o papel de médico. Ashton Rice e Elliott Richardson serviam, apesar de relutantes. Eram homens razoáveis. Já haviam realizado muito.

Martin Hall e Peter Conroy eram os fracotes. Não era uma questão de falta de poder, mas relutância em agir sem piedade quando necessário. Conroy, em especial, era imprevisível, mas ambos contribuíam com poder para o grupo.

  • Bom dia, senhores — disse ele. — Joseph McCauley ainda se recusa a se juntar a nós.

Um murmúrio de surpresa passou pelos ex-alunos, mas foi rapidamente contido.

  • Ele ameaçou procurar as Rosas. Isso é inaceitável. Creio que uma abordagem de igual para igual pode ser eficiente. Encarrego vocês de o convencerem a se juntar a nós, por quaisquer métodos necessários. Quando ele se conectar a nós, serão ricamente recompensados. Se ele continuar a resistir, bem, acho que todos vocês entendem que haverá conseqüências.

Todos olharam para os próprios pés, com medo de que Leicester usasse um deles como exemplo. Ele o fizera antes.

  • Deixem-no comigo — sugeriu Warren. — Eu faço com que ele mude de idéia em um dia.

Leicester suspirou.

  • Se fosse uma questão de força bruta, Warren, eu já teria resolvido. Isto exige sutileza. Criatividade. Sedução. Não é o seu forte, receio. — Ele esfregou as palmas uma na outra. — Vamos nos encontrar de novo em duas semanas para discutir o assunto. Alguma pergunta?

Ninguém tinha nenhuma.

 

No dia seguinte, depois de outra noite de sonhos tortu­rantes, Seph foi até o prédio de arte e música e encontrou um telefone na área de alimentação no porão. Tirou-o do gancho e discou zero. Quando a secretária no prédio da administração atendeu, ele disse:

  • Gostaria de fazer uma ligação externa, usando um cartão de chamadas.

Ele lhe passou as informações do cartão e o número de telefone, inclusive o código do país. Houve uma breve pausa.

  • O seu nome, por favor?
  • Joseph McCauley — respondeu Seph, a esperança murchando.
    • Você precisa conseguir a aprovação da administração — disse ela bruscamente. — Devo passar para o dr. Leicester?

- Não, obrigado — disse Seph, e desligou.

A rotina da sala de aula era reconfortantemente familiar, um pequeno remanso em meio à loucura da vida no Porto Seguro. Explanação, discussão, tarefa, exames. Todas as costumeiras ferramentas estavam presentes: carteiras de madeira e metal alinhadas em fileiras; quadros-negros; pias, bicos de gás e tubos de ensaio no laboratório de quí­mica. Livros novos que cheiravam a tinta, com lombadas que estalavam quando eram abertas. Como os alunos em todos os lugares, os alunos do Porto Seguro reclamavam da lição de casa.

Seph estava na aula de matemática, o queixo apoiado na mão, vendo o sr. Richardson rabiscar equações no quadro. Richardson era um dos que estavam no templo ao ar livre com longas túnicas cinzas, ajudando a presidir aquele sacrifício mágico. Em retrospecto, parecia um pesadelo. O que o havia assustado? A chuva, a névoa, os morcegos e o teatro todo.

E o fato de que aquilo parecia importante demais para Leicester.

Na música, o sr. Rice disse a Seph que ele podia marcar aulas particulares fora do período regular para praticar piano, saxofone ou outro instrumento. Ele encorajou Seph a juntar-se a um conjunto de sopro.

O maldito conjunto de sopro. Era tão normal. Tão difícil conciliar com o medo dele de dormir, o terror de ir para a cama!

Após a última aula e antes do jantar, Seph voltou para o quarto e ligou o computador. Decidira ir em frente e escrever a carta.

 

       PARA: Sr. Denis Houghton, Tutor de Joseph McCauley

       DE: Joseph McCauley

       ASSUNTO: Situação no Porto Seguro

Quando cheguei ao Porto Seguro, fui informado de que eu havia sido internado aqui para tratamento psiquiátrico. Não sei quais eram suas intenções, mas a equipe não é qualificada e os métodos são cruéis, arbitrários e incoe­rentes e, assim, dificilmente se mostrarão eficazes.

Este colégio não atende às minhas necessidades. Soli­cito uma transferência imediata, de modo que eu perca o mínimo de aulas possível. Estou disposto a aceitar ser ma­triculado em uma escola pública com terapia particular, se for mais fácil, em qualquer local geográfico. Farei tudo o que puder para que isso dê certo.

É fundamental que esse pedido seja atendido de ime­diato. Pelo menos precisamos nos reunir para discutir minha situação e obter uma segunda opinião. Se o senhor acredita que a terapia pode me ser benéfica, acredito que há opções melhores.

 

Ele releu a carta e pôs em negrito a parte sobre fazer tudo para que desse certo. Achou que a carta soava, digamos, racional. E não acusatória. Ele a deixou pronta para ser enviada e enfiou-a na caixa de correio no prédio da administração quando saiu para o jantar.

 

Os sonhos vinham como relâmpagos no verão, sonhos terríveis que lançavam luz sobre aqueles lugares na alma de Seph que ele preferiria que permanecessem no escuro. A violência às vezes era física, às vezes emocional, ou­tras vezes ambas. Todos os seus medos e inseguranças vinham à tona e transformavam-se em armas contra ele. O pior de tudo era que ele nunca sabia o que esperar. Às vezes ele lutava para permanecer acordado, então caía no sono nas primeiras horas da madrugada e dormia sem ser perturbado até que o despertador tocasse. Às vezes sonhava três noites seguidas, e depois nada acontecia durante três dias.

As ocorrências bizarras que sempre haviam seguido Seph pareceram se intensificar. Ele tocava um interruptor de luz no quarto e três prédios ficavam sem força elé­trica. Os bolos abetumavam e o leite azedava na pre­sença dele. Falcões e águias-pescadoras se reuniam no telhado do dormitório e o acompanhavam até a sala de aula, mergulhando sobre os professores no caminho. A água congelava nos canos do prédio da administração, e árvores floriam fora de estação. Uma matilha de lobos cercou o campus por um tempo, e suas sombras cinzentas espreitavam entre as árvores.

Seph questionava constantemente a decisão que to­mara. Sabia que não havia garantia de que encontraria ajuda fora do Porto Seguro. Talvez a oferta de Leicester fosse a única opção que tivesse. Talvez aquelas mani­festações mágicas se ampliassem até que eles fossem obrigados a matá-lo como a um animal enlouquecido.

As folhas dos álamos estavam mudando de cor quando Seph enviou a primeira carta à firma de Sloane. Elas jaziam como pó de ouro no solo quando ele mandou a segunda. Ele começou a escrever várias vezes por semana, para sentir que estava fazendo alguma coisa. Desistiu do tom são e não-acusatório e partiu para o desesperado e ameaçador. Nunca recebeu qualquer resposta.

Tentou telefonar para fora do campus uma meia dúzia de vezes, de vários telefones e usando nomes falsos. Era sempre interceptado pelos polidos empregados do colégio, que lhe diziam para falar com o dr. Leicester.

Seph continuou a jantar na Casa dos Ex-Alunos. Eles eram sua única fonte potencial de informação, a única possibilidade de esperança. Haviam sido treinados em magia; já sabiam como controlar seus poderes. Ele ima­ginava que, se conseguisse ganhar a confiança de alguns deles, eles poderiam compartilhar o segredo que impediria os sonhos.

Concentrou-se em especial em Peter Conroy. Naquele primeiro dia, Peter se mostrara ansioso para falar com ele; obviamente tinha informações que queria partilhar. Mas agora Peter praticamente corria na direção contrária quando Seph se aproximava. Quando conseguia encur­ralá-lo, algum dos outros ex-alunos intervinha. Algo havia acontecido que assustara Peter.

Outros dos ex-alunos se esforçavam para conquistar a confiança de Seph. Eles não compartilhavam com ele nenhum segredo útil sobre magia, mas o abordavam com ofertas de comida, bebidas alcoólicas e drogas ilícitas. Professores e ex-alunos socializavam-se em festas em que ele parecia ser o recalcitrante convidado de honra. Talvez, pensou ele, drogas e álcool pudessem ajudar.

Mas algo lhe dizia que não.

Bruce Hays referiu-se, em voz baixa, ao poder ilimitado que estava ao alcance de Seph.

  • É verdade que você se subordina ao dr. Leicester — explicou Hays. — Mas, se pensar bem, o resto do mundo se subordina a você.

Aaron Hanlon aconselhou-o dizendo que, dada a pre­cária situação política atual, era melhor abrigar-se sob a proteção de um mago poderoso.

  • Vai haver derramamento de sangue — avisou ele — apesar de o dr. Leicester estar fazendo o possível para evitar que isso aconteça. Como na época medieval, ter um amo não é má idéia.

Era como ser assediado por uma fraternidade desespe­rada e diabólica. Mas, como Trevor e os outros Anaweirs o evitavam, Seph passava cada vez mais tempo na compa­nhia deles.

Seph estava no depósito, cambaleando em meio à escu­ridão, e pressionava a camisa molhada contra o rosto para se proteger da fumaça oleosa. A garganta doía de tanto gritar e de respirar o ar tóxico. Não conseguia ver nada, ouvir nada, a não ser pelo clamor das chamas e o ranger do velho prédio enquanto a madeira queimava.

Maia! Maia, está me ouvindo?

Os bombeiros haviam chegado e jogavam água sobre o telhado. Seph andava com água pelo joelho enquanto a pele na parte superior do corpo criava bolhas e queimava. Ele se abaixou, molhou a camisa novamente e pressionou-a contra o rosto. Sentiu o cheiro de cabelo queimado e deu-se conta de que era o dele próprio.

Estava num corredor agora. Estendendo os braços, podia sentir as paredes em ambos os lados. Ele devia estar na área dos escritórios, nos fundos. Talvez ela tivesse se refugiado ali quando a saída fora bloqueada. Passou por várias portas, fechando-as cuidadosamente atrás de si, a fim de manter as chamas à distância por um pouco mais de tempo.

Então ele escutou um débil grito de algum lugar adiante.

- Socorro!

Ele seguiu aos tropeções, tocando as paredes de vez em quando para se orientar. As paredes estavam quentes, a tinta grudava em sua mão.

- Maia!

Ele passou por mais uma porta.

- Seph!

A voz era fraca e fina, mais próxima agora, apenas alguns metros à frente e à direita.

- Continue falando, Maia. Vim tirar você daqui.

Seph engatinhou pelo chão, tateando com as mãos, até os dedos tocarem em um tecido. Ela estava aninhada num canto, para onde recuara na tentativa de manter o rosto sob a fumaça.

Ele tentou tomá-la nos braços, mas, quando a tocou, a pele dela se incendiou e transformou-se em cinzas, caindo em espiral ao chão. Ele tentou de novo, e a carne dela se esfarelou em suas mãos, revelando os ossos. Ele gritou e largou-a, e ela caiu.

- Maia — murmurou ele, deslizando para o chão, to­mando o corpo sem vida em seu colo, ninando-a tão gen­tilmente quanto podia. — Maia, eu sinto muito.

O calor era abrasador. As lágrimas dele se evaporavam, sibilando, assim que emergiam.

 

Ele foi acordado por batidas incessantes. Bombeiros. Não respondeu. Resolvera ficar e morrer queimado. Em algum lugar, uma porta se abriu e fechou.

  • Seph?

Como é que eles sabiam seu nome?

Todos sabiam. Todos sabiam que ele era o culpado.

—  Vá embora — sussurrou ele, segurando o corpo de Maia com força. — Chegou tarde demais.

Alguém segurou o braço dele, sacudindo-o.

  • Seph! Vamos! Saia dessa.

Seph abriu os olhos e viu o rosto preocupado de Trevor. Ele olhou por cima do ombro de Trevor. Estava em seu próprio quarto. A luz do sol manchava o piso de madeira de lei. Ele não fazia idéia de que horas eram.

  • — Ele forçou a palavra a sair, gemeu e enroscou os dedos nos lençóis. — Estou bem agora. Por favor, deixe-me sozinho.

Madeira arranhou madeira quando Trevor puxou uma cadeira para junto da cama. Rangeu quando ele se sentou nela.

—  Não entendo — disse ele.

Seph virou o rosto para o outro lado. Não havia sentido em fingir. Sentia-se um lixo e sabia que era assim que parecia. O quarto ainda fedia a vômito e terror.

Quando era mais jovem, diziam que ele fora possuído. De certa maneira, preferia ser chamado de louco. Mas sabia o que acontecia quando as únicas pessoas que se importavam eram pagas para isso. Acabava-se em lugares como aquele. Ele precisava de um plano, de uma estratégia. Mas primeiro precisava se livrar de Trevor.

  • Fiquei acordado vomitando a noite inteira, entendeu?

Trevor pigarreou e desviou o olhar.

  • Eu ouvi.
  • Por isso não estou a fim de companhia.

Trevor não se moveu, mas ficou ali, mordendo o lábio inferior.

  • Não entendo — repetiu ele. — Você é um deles.

Seph piscou, passou as costas da mão pelos olhos e voltou a se concentrar no rosto de Trevor.

  • O quê?

—  Você é um deles. Você tem passado o tempo na Casa dos Ex-Alunos. Então por que você acorda gritando todas as noites? Eu tenho de pôr meus fones de ouvido pra conseguir dormir.

  • Desculpe. Tenho pesadelos quando fico doente. Só isso.
  • O que você fez? Você deve ter aprontado de verdade.
  • Do que você está falando?

Seph deitou-se de costas, olhando para o teto.

Trevor aproximou-se, sussurrando as palavras no ou­vido de Seph, como se estivesse com medo de que alguém mais escutasse.

  • Ele chama isso de terapia. — Trevor olhou para as próprias mãos. — Os sonhos, quero dizer.

A mente cansada de Seph agarrou-se àquilo, procu­rando uma revelação.

—  Está me dizendo que o Leicester tem algo a ver com... com...

A expressão no rosto de Trevor era um sim.

—  É tipo... qualquer coisa de que você tenha medo, é o que ele usa.

Seph sentou-se parcialmente na cama, recostando-se contra a cabeceira entalhada.

—  Está dizendo que ele faz as pessoas terem alucinações? Sonhos? Pesadelos?

  • É o que eu estou dizendo.
  • Isto aconteceu com você? — Seph fez um gesto vago, indicando o quarto bagunçado.

Trevor engoliu em seco. Seu rosto moreno estava quase cinzento, os olhos castanhos turvos com a lembrança da dor, as mãos entrelaçadas com força.

  • Eu era bem rebelde quando cheguei.
  • Ele usa isso... como punição?
  • Ele chama de terapia — repetiu Trevor. — Se você não coopera, acho que ele pensa que você precisa de mais terapia. Por isso... de certo modo...
  • E outras pessoas têm sonhos? Os Ana... outros alunos? Não só nós?
  • Todos têm sonhos, pelo menos no início. Ele diz que os sonhos são uma maneira de lidar com a própria hostilidade. Só que eu percebi que você é diferente. Quero dizer, você é como ele. Você e os ex-alunos. Vocês todos têm... algum tipo de poder. Senão, por que os ex-alunos ficariam? Eu iria embora o mais rápido que pudesse.

Seph escutava apenas parcialmente. Ele não estava louco. Não era o seu próprio poder que estava destruindo sua mente. Era um feitiço. Tinha de ser. Leicester o estava enfeitiçando, fazendo-o pensar que estava louco, deixando-o desesperado o bastante para concordar em... em... fazer o quê?

  • Só faça o que ele mandar — disse Trevor, como se lesse a mente dele. — Qualquer coisa que ele pedir. Sei, por experiência própria, o que vai acontecer se você tentar resistir. A escolha é sua, mas meu conselho é se levantar e tocar em frente, seja lá como for. Bajular não é tão difícil, uma vez que você aprende o jeito.
  • Ninguém se queixa? — indagou Seph.
    • O que você diria? — Trevor ergueu as mãos, as palmas para cima. — Você teve um pesadelo na escola e a culpa é do dr. Leicester? Quem vai acreditar numa história dessas vinda de alguém com um histórico como o meu?
    • O Leicester disse que este lugar é para... casos psi­quiátricos. Disse que a gente estava tendo alucinações.
    • Acho que é possível. Eu era meio violento antes de vir pra cá, mas ninguém nunca me disse que eu era louco. Antes de vir pro Porto Seguro, eu só sonhava com garotas.
    • Os seus pais não podem tirar você daqui, se você pedir?

Trevor riu com amargura.

  • Olha, meus pais adoram o Porto Seguro. Esta é a pri­meira escola que não me expulsou em seis meses. Todos os meus maus comportamentos foram... qual é o termo?... Estou tirando boas notas. Provavelmente vou entrar na faculdade. Não sou mais um problema. Como vou convencê-los a me deixar voltar pra casa? Algumas vezes vi pais virem aqui no campus, revoltados contra alguma coisa de que ouviram falar. O Leicester se reúne com eles, e eles vão embora satisfeitos. Ou, pelo menos, vão embora. Ele pode ser bem persuasivo, acho. Qualquer um que reclame paga por isso mais tarde. — Ele pigarreou. — Além disso, não é tão ruim, se você não lhe der motivo pra mexer com você.

Seph lembrou-se da visita deles à Casa dos Ex-Alunos, Trevor implorando a Warren para não contar ao dr. Leicester.

  • O que o Leicester e os ex-alunos estão tramando?

Trevor sacudiu a cabeça.

  • Não sei nem quero saber. Pra dizer a verdade, ele não parece interessado nos outros alunos. Não tenho certeza se ele me reconheceria numa fileira de suspeitos. Mas não sou idiota. Descobri que se cabulo aula, provoco os professores ou fumo no vestiário, eu pago por isso. Então parei. E desde então ele me deixou em paz.

Seph puxou para trás o cabelo emaranhado e suado.

  • Escuta, como eu posso dar um telefonema pra fora daqui?
    • Você pode usar qualquer um dos telefones do campus — disse Trevor. — Se você tem um cartão de chamada, o escritório faz a chamada pra você.
  • Não, preciso de um telefone que eu possa usar por conta própria.
  • Tem um tipo de código pra chamadas diretas. O escritório faz as chamadas. — Trevor hesitou. — Pra quem vai telefonar?
  • Tenho de contatar o meu tutor. Tenho de sair daqui. O Leicester não deixa minhas chamadas saírem.
  • Tenha cuidado, Seph. O Leicester sabe de tudo. O que ele não sabe, ele arranca de você de algum jeito.
    • Se ele perguntar a você sobre essa conversa, vai contar pra ele?

Trevor ergueu as mãos, as palmas para cima.

  • Olha, cara, não me culpe. Tipo, não dá pra evitar. Ele é um hipnotizador ou coisa assim.

Ou coisa assim. É claro. O que significava que Seph não podia confiar em ninguém, nem pedir ajuda a ninguém.

—  Você mencionou alguém chamado Jason. O que ele fez? O que aconteceu com ele?

—  Esquece que eu falei qualquer coisa sobre ele.

Seph apoiou a mão de leve sobre o ombro de Trevor, olhando-o nos olhos.

  • Conte-me.

Trevor engoliu em seco, como que tentando conter as palavras.

  • Ele estava revirando as coisas. Queria que as pessoas lutassem contra o dr. Leicester. Ele, o Sam e o Peter. Então o Sam se afogou, e o Peter e o Jason estão com os ex-alunos agora.
  • Sam se afogou? — repetiu Seph. — Você acha que...
  • Eu não acho nada. — Trevor olhou para Seph com determinação. — E não force, porque isso é só o que eu sei.

Seph tinha de encontrar um jeito de escapar. Leicester havia deixado claro que não permitiria que ele fosse embora até conseguir o que queria. Com Leicester tortu- rando-o todas as noites, Seph não sabia por quanto tempo poderia continuar dizendo não.

 

Após a conversa com Trevor, Seph começou a travar uma guerra frágil e desigual contra o Porto Seguro. Tentou fugir três vezes em outubro, mas eles pareciam ter a estranha habilidade de rastrear seus movimentos. Es­condeu-se num caminhão de entrega, mas foi intercep­tado no portão. Tentou roubar a van da escola, mas o sistema elétrico entrou em curto quando pôs a chave na ignição.

Sua freqüência às aulas caiu. Ele pegou um engradado de cerveja da Casa dos Ex-Alunos e bebeu até desmaiar, na esperança de se anestesiar. No início de novembro, pôs fogo no prédio de arte e música durante a noite. Quando eles o arrastaram até o escritório de Leicester, Seph disse:

— Expulse-me.

Em vez disso, eles o confinaram ao quarto, e os sonhos se intensificaram.

Noite e dia começaram a se fundir numa seqüência longa e dolorosa. Se ficasse acordado a noite toda, tinha alucinações durante o dia. Várias vezes, desesperada- mente confuso, implorou a Trevor para que lhe dissesse se estava acordado ou dormindo.

Trevor parecia ter perdoado Seph pelo pecado de ser dotado. Tentava ajudar em todos os experimentos de Seph. Sob a teoria de que os sonhos eram desencadeados por algo em seu quarto, Seph passou a noite no chão do quarto de Trevor. Os sonhos o seguiram. Trevor ficou no quarto de Seph, para acordá-lo quando os sonhos começassem. Mas era impossível acordar Seph de seus pesadelos, e Trevor não agüentava ficar nas proximidades enquanto eles se desenrolavam.

Enquanto isso, Leicester e os ex-alunos o observavam como predadores espreitando a presa, esperando que ele vacilasse para que pudessem se aproximar para a matança.

Gregory Leicester estava sentado em sua cadeira favo­rita olhando para o mar, mal-humorado. Estava estra­nhamente escuro para aquela hora do dia, e as luzes já estavam acesas na doca. Estavam prevendo ventos vindo do nordeste, os primeiros da estação. Leicester sempre conseguia detectar a queda na pressão quando uma tempestade estava a caminho.

Joseph McCauley era tão extraordinariamente poderoso quanto incrivelmente resistente. Estava no Porto Seguro havia mais de três meses sob intensa pressão. Com ex­ceção de um único caso anterior, ninguém jamais resistira por tanto tempo. Será que Joseph tivera algum contato com Jason? Não. Leicester tivera o cuidado de manter os dois separados.

Como sempre, Leicester estava impaciente com o pro­cesso, ainda mais neste caso, dado o prêmio que estava logo ali ao seu alcance. O recrutamento era complicado e descontrolado, e havia sempre a possibilidade de que o alvo escapasse, tirando a própria vida. Nessas condições, a rebelião contínua era um aviso. Ele decidiu mandar a equipe ficar mais atenta a Joseph.

Tinha certeza de que a questão poderia ser resolvida com mais eficiência. Não tinha dúvidas de que poderia conseguir rapidamente o que queria, se lhe dessem carta branca para lidar com o rapaz. Fora D'Orsay quem insis­tira naquela abordagem sutil, os sonhos que marcavam a alma e não o corpo. D'Orsay acreditava que seria difícil para o Conselho dos Magos rastrear aquele tipo de veneno de ação lenta e, se chegasse a isso, atribuir-lhes a autoria. Era uma tarefa delicada, mas assim era o trabalho de um político.

Leicester gostaria de ter o Livro Weir de Joseph. O Livro Weir lhe daria mais informações sobre ele, sobre suas forças e fraquezas. Poderia lhe dar alguma idéia, sugerir uma estratégia. Ele ansiava pela oportunidade de colocar aquele poder impressionante em ação.

Esvaziou o copo, sentindo-se um pouco melhor. O rapaz sabia que havia uma saída; não conseguiria evitar a tentação de usá-la, passado algum tempo. Talvez fosse preciso um pouco de pesquisa, um pouco mais de pressão, mas Leicester estava confiante de que, no fim, teria sucesso.

 

                     Jason

Você não precisa entender. Só precisa sobreviver, disse Seph a si mesmo. Ele sonhava todas as noites agora, e os pesadelos eram mais longos e intensos do que antes. Sentia-se exausto mental e fisicamente, mas se forçava a sair da cama e ir até a lanchonete tomar o café da manhã. Às vezes ele ia à aula, às vezes, simplesmente, voltava para o quarto e ficava olhando para o teto.

Eles vinham durante o dia também, atacando de sur­presa, arrancando-o por completo da realidade num ins­tante. Ele acordava gritando na aula de matemática, ber­rando na de organização social e política, resmungando e se retorcendo na de química. Quase explodiu o prédio quando pôs fogo nas substâncias químicas no laboratório.

Todos fingiam não notar. Era como se ele andasse pelo campus terrivelmente desfigurado e alguém houvesse dito a todos ao seu redor para não olhar e apontar para ele. Era impossível aprender qualquer coisa. Ele não resistia mais, não traçava mais planos contra eles. A fagulha da resistência se extinguira nele, salvo por sua recusa em lhes dar a única coisa que queriam. Ele era como um prisioneiro sob tortura que se recusava a revelar a senha muito tempo depois de ter esquecido o porquê. Tudo o que podia fazer era estar no mundo.

A única coisa que ajudava era caminhar. Enquanto se mantivesse em movimento, os demônios não poderiam alcançá-lo. No começo, ele caminhava nervosamente de um prédio a outro. Mais tarde, passou a calçar sapatos para a neve e a caminhar por quilômetros pela floresta. Certa vez chegou até o muro que cercava a propriedade. Contudo, não conseguiu encontrar o portão nem achar apoio para escalá-lo antes que viessem para levá-lo de volta.

Ou talvez aquilo tudo tivesse sido um sonho.

O Natal se aproximava, mas Seph não estava entusias­mado com isso. Trevor convidara Seph para passar o Natal em Atlanta, mas Leicester vetou a idéia. A condição de Seph era muito delicada, dissera o diretor. Seph teve de admitir que qualquer um que o visse teria de concordar. A aparência dele estava terrível. Continuava a perder peso, apesar de comer tudo o que conseguia.

Havia começado a pensar em modos de se matar: mé­todos inteligentes, à prova de falhas que fizessem com que acabasse na enfermaria. Imaginava que estava trancado numa sala com duas portas. A morte estava atrás de uma delas, Gregory Leicester e sua oferta atrás da outra. Não havia outra saída, pelo que podia ver.

Trevor Hill estava preocupado com Seph. Sabia, por experiência própria, que uma noite de "terapia" virava a vida de cabeça para baixo. Pelo que vira e ouvira, Seph havia agüentado 40 ou 50 delas. Contudo, parecia haver algo duro como ferro em Seph, algum teimoso instinto de sobrevivência que o mantinha funcionando.

No entanto, Trevor podia ver que Seph estava enfra­quecendo. Ele parecia frágil, imaterial, como alguém cujo espírito estivesse devorando a carne. Àquela altura, ele talvez estivesse mesmo mentalmente doente, o cérebro danificado por dias e noites de tortura. Trevor sentia-se culpado por não ter sido capaz de oferecer qualquer ajuda. Culpado por estar aliviado de que aquilo esti­vesse acontecendo com Seph e não com ele. Confuso por não conseguir compreender por que Seph era um alvo. Seph não era como os outros ex-alunos, que tratavam Trevor e os outros como lixo, isso quando lhes notavam a existência.

No último dia de aulas, Trevor convidou Seph para ir a seu quarto e fazer-lhe companhia enquanto aprontava as malas. Trevor havia encomendado presentes de Natal pelo correio para levar para casa. Havia embrulhado alguns livros para Seph e insistiu para que ele os abrisse.

Seph se estirou de costas na cama de Trevor num es­tado crepuscular permanente. Abriu e fechou os punhos, agitando-se numa hora e estremecendo na outra, fitando o mundo com olhos mutáveis como se pudesse enxergar coisas que ninguém mais via. Às vezes ele tocava a cruz que sempre trazia pendurada ao pescoço e murmurava algo em francês.

—  Olha — disse Trevor enfim. — Dê-me o nome da firma de advocacia em Londres. Vou telefonar pra eles da casa dos meus pais quando eu estiver lá.

Por um momento, Trevor pensou que o outro não tinha ouvido. Então Seph se mexeu.

  • Não vai adiantar nada. Eu escrevi pra eles uma centena de vezes. Eles nunca responderam.

—  Bem, quem sabe ajuda se ouvirem isso de outra pessoa — insistiu Trevor.

—  Está certo. Eu passo o número pra você.

Trevor fitou-o.

—  Ei! — disse ele com suavidade. — Você vai ficar bem?

Seph não respondeu por um momento, e aquela hesi­tação deixou Trevor ainda mais preocupado.

  • Vou estar bem — disse ele, afinal. — Não sei o que mais eles podem fazer comigo.

 

O campus ficou assustadoramente silencioso após a partida dos outros alunos. O serviço regular de refeições foi interrompido durante as férias, mas a sala de jantar na Casa dos Ex-Alunos continuava funcionando. Seph passou a fazer as refeições lá, com os professores e outros ex-alunos que permaneceram no campus.

Não fazia sentido. Eles não tinham famílias? Não tinham lugar melhor para passar as férias?

Seph folheou os livros de Trevor planejando refugiar-se no mundo da ficção, mas não conseguia se concentrar.

Dias inteiros desapareceram da memória. Continuava a caminhar quando dava vontade.

A firma de Sloane mandou uma enorme cesta de pre­sentes e um generoso cartão-presente, um cartão com o nome dele impresso. Em setembro, Seph estava conven­cido de que seria expulso do Porto Seguro até o Natal. Agora só conseguia pensar em fugir.

A ceia de Natal foi servida à luz de velas no elegante salão de jantar de dois andares dos ex-alunos. Bruce Hays e Warren Barber, os dois assistentes, sentaram-se um de cada lado de Seph. Os outros 13 ex-alunos sentaram-se ao redor da mesa. Seph esforçou-se por recordar seus nomes, e ficou satisfeito ao se lembrar da maioria deles. Não sonhava havia vários dias, e a cabeça estava mais lúcida do que de costume.

Martin Hall assumira o papel de sommelier, andando à volta da mesa, abrindo vinhos e servindo. Todos podiam se servir de bebida à vontade, e um vinho diferente acom­panhava cada prato. Leicester não estava lá.

A tensão espreitava na sala como um cão feroz, e Seph não conseguia deixar de pensar que ele era a causa. Os outros o observavam quando achavam que ele não estava olhando e sussurravam entre si nos cantos da mesa.

  • Onde está o dr. Leicester? — indagou ele a Bruce, quando o prato de peixe foi levado embora.

Hays limpou a boca com as costas da mão.

  • Partiu há dois dias. Voltou pra casa na Inglaterra, acho. Vai estar fora por uma semana.
    • Por isso, beba, Joseph. — Barber pôs o cálice de vinho na mão dele. — O gato está fora.

Seph vinha, de fato, controlando o próprio ritmo, fin­gindo bebericar o vinho, ignorando o uísque que Barber colocara próximo à sua mão direita. Os outros bebiam com uma intensidade desesperada.

Após a sobremesa, Ashton Rice sentou-se ao piano e começou a martelar canções de Natal. Vozes ergueram-se num coro bêbado e desafinado. Hays e Barber não can­tavam. Colocaram uma garrafa de uísque entre eles e se revezavam ao se servir de mais.

  • Ninguém vai pra casa no Natal? — perguntou Seph, oprimido pela alegria forçada, mas torcendo para que pudesse aprender algo útil.
  • Casa não é mais... relevante — murmurou Hays, pa­recendo surpreso por ter lembrado aquela palavra. Piscou gravemente para Seph. — Você vai descobrir. Vai ver. Somos como... irmãos de sangue. Sangue... — Ele pegou a garrafa. — Irmãos siameses.

Barber bateu com o copo na mesa, fazendo a louça chacoalhar.

  • Só que o Joseph é bom demais para se juntar a nós, lembra?

A cantoria esmoreceu, e Seph era, mais uma vez, o relutante centro das atenções. Ele pigarreou.

  • Quem sabe se vocês me disserem o que está aconte­cendo...
  • Ele prefere ficar louco. — Barber agarrou a frente da camisa de Seph e forçou-o a se levantar. — O resto de nós obedece ao Leicester. Mas Seph tem seus princípios.

Seph viu-se nariz a nariz com o rosto por barbear de Warren.

  • Ei, me solta! — Seph tentou se libertar, e ouviu o som de tecido rasgando-se. — Qual é o seu problema?

Hays tentou dar um tapinha no ombro de Barber.

—  Qual é, Warren?! Joseph vai ser um cara legal. Dá um tempo pra ele.

  • Enquanto isso, a gente paga por isso. — Barber empurrou Seph contra a parede. — Talvez a gente não tenha explicado direito... os benefícios de ser um membro. Somos os seus únicos amigos agora, está me ouvindo? Além de nós, você não tem ninguém.

Seph sentiu o ardor do poder crescendo dentro de si.

—  Solte-me. Estou avisando.

  • .. — disse Hays, em tom preocupado.

Eggars se levantou como se quisesse intervir, embora não tivesse certeza de como proceder. Os outros se agru­param ao redor deles, descontentes.

—  O Leicester está pegando no nosso pé... desde se­tembro — arquejou Barber, pontuando a fala batendo Seph contra a parede. — O que é que a gente precisa fazer?

—  Deixe-me... em paz!

Seph estendeu ambas as mãos. Meses de medo e frus­tração pareceram extravasar de seus dedos, e um estam­pido como o de um tiro de revólver lançou Barber por sobre a mesa. Ele deslizou de costas e caiu do outro lado, espatifando cálices de vinho e pratos de sobremesa. Seph correu até ele, saltou por sobre a mesa e pulou sobre Barber enquanto este jazia no chão. Eles lutaram brevemente, Seph golpeando o rosto de Barber com o punho, Barber bêbado demais para se desviar. E então vários deles arrastaram Seph para trás, contendo-lhe os braços, as mãos quentes e elétricas contra a sua pele.

Barber se pôs em pé com dificuldade e cambaleou na direção de Seph, com uma expressão assassina no rosto, porém a ajuda surgiu de um canto inesperado. Martin Hall se colocou entre eles, segurando uma faca de açougueiro que havia sido usada no assado de costela. A lâmina tremia em sua mão, mas era bem grande.

  • Para trás, Warren. Você está fora de si.
  • Saia do caminho! — disse Barber, aproximando-se.

—  E se o dr. Leicester volta e descobre que você matou ele de pancada?

Barber foi desacelerando, até estancar.

—  Pare, Warren! Já não houve derramamento de san­gue suficiente? — Martin balançou a faca perigosamente, e Barber recuou. Martin se virou para Seph, e Seph ficou surpreso ao ver o rosto dele manchado de lágrimas. Ele gesticulou com a faca. — Soltem-no. Vocês sabem tão bem quanto eu que ele não é o inimigo.

Após um momento, Seph sentiu os braços sendo soltos. As mãos quentes se afastaram.

—  Qual é o problema com vocês? — Seph se virou de forma a poder olhar nos rostos de todos, ocultos e revelados pela luz de velas. — Por que ficam aqui? Que tipo de influência ele tem sobre vocês?

Barber cerrou os punhos.

—  Quem diabos você pensa que é, dando um sermão na gente?

Seph não se importava mais.

  • Ele se foi. Está na Inglaterra. Esta é a nossa chance. Vamos sair daqui. Ou, se vocês gostam tanto daqui, então deixem-me ir.

Martin falou com solenidade e tristeza:

  • Não podemos fazer o que nos pede, Joseph. Volte para o seu quarto e tranque a porta até que os meus colegas estejam sóbrios de novo.

Todos eles ficaram olhando enquanto Seph saía do salão de jantar, partindo com mais perguntas do que respostas.

 

Apesar do episódio na Casa dos Ex-Alunos, Seph dormiu tranqüilamente na véspera e no dia de Natal, durante quase 24 horas completas. Presumia que fosse porque Leicester estava ausente. Em resultado, sentia-se mais lúcido do que estivera por muito tempo, e estar na Casa dos Ex-Alunos lhe deu uma idéia.

Sabia que as cartas para a firma de Sloane estavam sendo interceptadas. Afinal, Seph era um cliente valioso com um grande fundo fiduciário cujo controle seria seu um dia.

O que o fazia pensar em e-mails de novo.

Certamente os ex-alunos tinham internet. Devia ser por isso que eles tinham a sua própria biblioteca. Se não houvesse acesso à internet na biblioteca, ele invadiria o quarto de alguém. Talvez Trevor houvesse telefonado para a firma, mas Seph havia decidido que não podia se dar ao luxo de esperar até o reinicio das aulas para descobrir. Àquela altura, Leicester teria retornado, e Seph não teria mais fácil acesso à Casa dos Ex-Alunos.

Ele esperou até o dia seguinte ao Natal, após a terceira boa noite de sono em um mês. Tomou o café da manhã tarde com Martin e Peter na sala de jantar da Casa dos Ex-Alunos. Fez questão de se sentar com eles e tentou fazer-lhes perguntas, mas não chegou a lugar algum.

Estavam terminando de comer quando Barber entrou se arrastando, com o que parecia ser uma ressaca das grandes. Seph pulou quando Barber lhe deu um tapinha no ombro, mas Barber agia como se não se lembrasse do confronto no jantar. E talvez não lembrasse, bêbado como estivera.

Quando a sala de jantar começou a esvaziar, Seph foi para o lavatório e ficou um bom tempo lá dentro. Finalmente, esgueirou-se pelo corredor até a escadaria dos fundos. A porta que levava à escadaria trazia a placa, SOMENTE PROFESSORES E EX-ALUNOS. Ele respirou fundo. O que eles poderiam fazer, chutá-lo para fora da escola? Enviar-lhe outro pesadelo?

A porta no topo das escadas abria para um pequeno patamar circular, com corredores partindo de cada lado e a escadaria para o segundo andar diretamente em frente. Os corredores eram flanqueados por cornijas de madeira brilhante, castiçais sombrios presos às paredes, fileiras de portas fechadas. Não parecia haver ninguém por ali.

Tentaria primeiro a biblioteca. Sua presença ali seria mais fácil de explicar.

O corredor que levava para a esquerda tinha salas de aula dos dois lados, com a biblioteca na extremidade oposta. Felizmente, a porta de madeira pesada estava destrancada. Ele deu uma rápida olhada por sobre os ombros antes de entrar e fechar a porta atrás de si.

A biblioteca cheirava como o sótão de Genevieve: a poeira, mofo e papel se desintegrando. Ele conteve um espirro. Os livros no primeiro grupo de estantes pareciam ser bem velhos, com capas de couro escuras e gravadas em letras douradas. Curioso, Seph puxou o primeiro volume da estante, inclinando-o para que o título ficasse visível sob a luz. Parecia ser em latim. Transformare. O próximo era intitulado Extraten Poysoun 1291. Não era latim, exatamente. Ele havia estudado latim com os jesuítas. Mas era parecido. Inglês medieval? Avançou mais alguns passos dentro da sala, na esperança de encontrar o que estava procurando nos fundos.

Dirigiu-se até a parede de trás. Mais livros velhos e alguns novos. Pegou um dos mais novos. Sujeição Mental: A Arte de Influenciar Outros. Aqueles eram os livros que ele deveria estar lendo. Fileiras e mais fileiras de grandes volumes acomodados juntos, livros que pareciam seme­lhantes. Os títulos eram similares também. Weir Smythe John Arthur. Weir Thompson Harold Franklin. Weir Huntingdon Bru Amfeld.

Livros Weir. Só podia ser isso. Seph pegou um e fo­lheou-o. A primeira parte era ocupada por uma árvore genealógica, toda escrita a mão, remontando a séculos no passado, com iluminuras em cores brilhantes. Uma outra seção do livro era intitulada "Feitiços e Encanta­mentos". Algo naqueles livros invocou em Seph uma vaga lembrança de algo que ele não conseguia discernir. Com relutância, devolveu o livro ao seu lugar na estante.

Finalmente encontrou o que estava procurando, sob as janelas no fundo da sala. Havia seis computadores alinhados sobre mesas e em rede, com um cabo ligado a uma tomada na parede. Eles compartilhavam a mesma impressora.

Seph não conseguia afastar a sensação de que estava sendo observado. Sentiu o cabelo na nuca eriçar-se e os braços se arrepiarem. O prédio rangia sob o assalto do vento. Olhou para trás e viu apenas livros, poeira e corredores estreitos entre as estantes. Dando de ombros, ele apertou o botão de força de um dos computadores. O ruído da máquina sendo ligada soou horrivelmente alto em meio ao silêncio.

O computador nem havia terminado a rotina de inicia­ção quando Seph ouviu os passos de alguém correndo. Praguejando baixinho, apertou o botão de força outra vez e a tela escureceu. A porta escancarou-se, e as luzes acima piscaram, depois se acenderam.

  • Vi alguém se movendo por aqui — disse alguém, sem fôlego.
    • Fique junto à porta — replicou o outro. — Eu vou dar uma olhada.

Seph esgueirou-se entre as fileiras de estantes e enga­tinhou pelo corredor junto à parede em direção à saída. Peter Conroy esperava junto à porta, sondando nervosa­mente os corredores, a testa brilhando sob a luz vinda do alto.

  • Tem certeza de que não está vendo coisas outra vez? — A outra voz era familiar e estava surpreendentemente próxima. — É melhor não ter me arrastado até aqui pra nada.

Seph ouviu o som de pés se movendo na direção dele. Estava encurralado.

Alguém tapou-lhe a boca com a mão e agarrou-o pelo braço, empurrando-o contra a parede.

  • Fique quieto! — sussurrou uma voz no ouvido dele, que disse também mais alguma coisa que Seph não con­seguiu entender.

Naquele momento, Warren Barber apareceu dobrando a esquina e caminhou na direção deles. Ele ainda parecia meio esverdeado da bebedeira da noite anterior. Seph não tentou resistir. Ficou quieto, perguntando-se qual seria o castigo por invadir a biblioteca dos ex-alunos.

Para seu espanto, Barber passou direto por eles rumo à frente da biblioteca.

  • Não tem ninguém aqui.
  • Juro que vi alguém junto do monitor.

—  É? Bom, quem sabe ele voou pela janela. Como se alguém fosse invadir a droga da biblioteca!

—  Parado! — sussurrou a voz de novo.

Seph virou a cabeça de leve de modo a ver quem o segurava. Para seu espanto, não viu nada além das prate­leiras de livros atrás dele. Não havia ninguém lá. A mão sobre a sua boca apertou com mais força, sufocando-lhe a exclamação de surpresa.

Sentia-se nauseado. Estava alucinando de novo. Tinha de estar. Suas palmas estavam frias e úmidas de suor, e ele as secou nos jeans.

Barber e Conroy se encontraram na frente da sala, depois andaram de um lado para o outro das estantes de novo, passando a centímetros de Seph e do ser invisível que o mantinha preso. Barber ainda fedia à cerveja.

  • Está delirando, Conroy — disse Barber, sacudindo a cabeça. — Você deve estar vendo filmes de ficção científica demais.

Conroy ainda protestava quando saíram e fecharam a porta atrás deles.

  • Agüente aí um minuto — disse o interlocutor invisível de Seph. — Para ter certeza de que eles já foram mesmo.

Seph ficou tão imóvel quanto podia, embora estivesse começando a tremer, o coração batendo disparado. Após um minuto, a mão foi removida de sua boca.

  • Venha — disse a voz. Alguém empurrou Seph pelo corredor até a frente da sala, depois para a direita, em di­reção a uma porta com a placa "Depósito de Audiovisual". — Aqui dentro.

Seph abriu a porta. Era um grande closet, cheio de equi­pamentos de projeção, mesas móveis com aparelhagem de vídeo e som e alguns computadores velhos. Seph entrou e a porta foi fechada atrás dele.

  • Não tem câmeras aqui — explicou a voz, antes de acrescentar algo que soava como latim.

De repente, materializando-se em pleno ar, ele pôde ver o corpo ligado à voz. Ele parecia ter 17 ou 18 anos, estatura mediana, e vestia camiseta preta e jeans. O cabelo era negro, mas havia sido descolorido nas pontas e tinha um corte espetado, um trabalho amador. Trazia dois brincos em uma orelha e um na outra. Sorria como se estivesse muito satisfeito.

—  Então você é o novato — disse ele. — Ouvi dizer que você estava aqui. Não que qualquer um se oferecesse para nos apresentar, é claro. — Ele apontou para uma das mesas móveis. — Bem-vindo às catacumbas — disse ele com gravidade. — Sente-se.

Seph deixou-se tombar em uma cadeira e pôs as mãos na cabeça. Pensara que estava lúcido depois de duas noites de sono. Aparentemente, estava errado.

  • Você está bem?

Seph ergueu os olhos e viu o estranho encarando-o.

—  Eu... não tenho certeza — respondeu Seph com cau­tela. — Eu... ahn... não venho me sentindo bem.

O rapaz se apoiou contra a parede.

—  Permita-me dar-lhe boas-vindas atrasadas ao Porto Seguro... onde todos os seus sonhos se tornam pesadelos.

Seph riu, apesar de tudo. Deu-se conta de que fazia uma eternidade que não dava uma risada, e uma eternidade desde que ouvira alguém contar uma piada.

  • Meu nome é Seph McCauley. — Ele hesitou. — Como fez aquilo? Você é um dos ex-alunos? Não me lembro de você no jantar de Natal.

O estranho revirou os olhos.

  • Não, não tenho planos de me juntar àquele clube. Sou só o poltergeist desta casa mal-assombrada. Sou Jason Haley.

Jason. Segundo Trevor, havia sido ele quem instigara a rebelião fadada ao fracasso. Que havia provocado a morte de Sam.

  • Você tem o dom, mas não é um deles?
  • Não foi isso o que ouvi dizer.
    • Pois ouviu errado. A propósito, se vai sair espionando por aí, é melhor saber que eles têm câmeras em quase todos os lugares. Aliás, se eu fosse você, não faria ou diria nada no seu quarto que não quisesse compartilhar.
  • Então você é um aluno? — insistiu Seph.
    • Por assim dizer — disse Jason secamente. — Eu também não deveria estar aqui em cima, mas estou fa­zendo um pouco de pesquisa independente.
    • O que foi que você fez lá dentro? Era como se a gente estivesse invisível.
    • Oh, melhor que invisível — replicou Jason. — A gente estava imperceptível. — Ele riu como se aquilo fosse uma ótima piada. — Há quanto tempo está aqui, Seph?
    • Desde setembro.
      • Está aqui há quase quatro meses e ainda não cedeu? — Um tom de respeito despontou na voz de Jason. — E eles vêm mexendo com você? — perguntou ele, tocando na cabeça com a ponta do dedo.

Seph entrelaçou os dedos e fitou o chão.

  • Quase todas as noites agora.
  • Você deve ser duro de dobrar — disse Jason. — Mas eles estão afetando você, não é?

Seph fez que sim com a cabeça, sem erguer os olhos.

  • E você não faz idéia do que está acontecendo. — Não era uma pergunta.
  • É como se eles estivessem tentando me deixar louco.
  • Se acha que estão tentando deixar você louco, é porque estão. Louco o bastante para se juntar a eles. — Jason se afastou da parede e veio se sentar junto a Seph na mesa. Ele o encarou de perto por um longo minuto. — A sua família não pode tirar você daqui?

Seph sacudiu a cabeça.

  • Não tenho nenhuma família de verdade. Só um tutor. Um advogado em Londres.
  • O que estava fazendo na biblioteca?
  • Estava tentando contatar meu tutor. O dr. Leicester não me deixa telefonar pra ele. Eu mandei cartas, mas não tive resposta. Então pensei em mandar um e-mail pelos computadores da biblioteca.

Jason balançou a cabeça.

  • Não vai funcionar. Eles juntam tudo e examinam todas as mensagens antes de enviar, até na Casa dos Ex-Alunos. Você precisaria usar uma das máquinas da administração. E pode esquecer as cartas. Se não foram direto para o picador de papéis, é porque o Leicester está lendo-as na cama.

Seph pestanejou. Jason Haley era direto, confiável, convincente.

—  E quanto a você? Por que você não se juntou?

Jason se levantou.

  • Olha, me avisaram para não ter nenhum contato com você. Se descobrirem que estivemos juntos, vai ser o diabo.
  • Está dizendo que posso acabar como o Sam?

Jason esfregou o alto do nariz como se doesse.

  • E eu também. — Ele pigarreou. — De qualquer modo, foi bom conhecer você, Seph. Boa sorte.

Ele se virou. Seph interpôs-se entre Jason e a saída, e encostou as costas na porta.

  • Não. Me diga o que está acontecendo. Não posso lutar contra eles se não souber contra o que estou lutando. Se eu ficar aqui por muito mais tempo, vou — Ele olhou em redor em busca de uma arma. — Se não me ajudar, vou contar pra eles sobre o lance da invisibilidade. Não tenho nada a perder.

Jason ficou parado, as mãos nos bolsos, os lábios aper­tados, olhando para o lado como se pudesse encontrar uma resposta escrita na parede.

  • Escute — disse ele após uma longa pausa. — Deixe-me pensar a respeito. Encontre-me na floresta junto à capela ao ar livre, às seis. E é melhor não deixar ninguém seguir você.

Seph concordou com um gesto de cabeça e se afastou. Jason passou por ele e foi embora.

 

Na noite seguinte, Seph saiu do dormitório, evitando as trilhas e cortando caminho pela floresta. O ar estava frio e límpido, fazendo-lhe cócegas no nariz, e sua respi­ração emergia em nuvens de vapor. O sol de inverno já se pusera, e a lua ainda não havia nascido, mas a neve refletia qualquer luz e tornava fácil encontrar o caminho através das árvores.

Trevor havia dito que Jason estava com os ex-alunos. Mas Jason dissera que não, e Seph não o tinha visto na cerimônia na floresta nem no jantar. Era como se houvessem escondido Jason de Seph, e talvez de todos. Por que haviam dito a Jason para ficar longe dele?

Agora Jason queria que Seph o encontrasse na capela ao ar livre. Seph não podia deixar de se perguntar se não era uma armadilha.

Ele se aproximou da capela pelo lado direito da floresta. Cercada por altos pinheiros, tinha a aparência de uma catedral primitiva. Alguém havia estado lá antes dele. A neve cobriu os bancos nos fundos, mas várias fileiras de pedras na frente haviam sido limpas. A clareira era cruzada por trilhas, e na neve em torno dos assentos viam-se marcas de muitos pés. A idéia de uma armadilha retornou.

Ele subiu na plataforma de pedra. Havia sinais de atividade recente ali também. Alguém havia construído um anel de pedras cinzentas desgastadas no centro e deixado restos enegrecidos de uma fogueira dentro dele. Teria sido outra cerimônia? A fogueira devia ter sido feita naquela semana, pois havia nevado alguns dias antes do Natal.

Seph estremeceu, e não devido ao frio. O vento suspirou por entre as árvores.

Ele pegou um galho caído e mexeu nas cinzas e carvão na lareira improvisada. Algo reluziu sob o pálido luar filtrado pelas árvores. Seph pescou o objeto com o galho e ergueu-o. Era uma corrente de ouro com um pingente, escurecido pelo calor do fogo. Parecia familiar, mas não conseguiu se lembrar de onde o vira. Ele o guardou no bolso.

  • Alguém estava celebrando o solstício.

Seph virou-se e viu Jason a poucos metros de distância. A lua estava por trás dele, ocultando-lhe o rosto, proje­tando uma sombra alta e angulosa que se estendia por sobre a pedra em direção a Seph. O cabelo cheio de gel pairava sobre a cabeça como uma coroa. Parecia um xamã de uma tribo antiga, vestindo uma jaqueta de couro e calça jeans.

  • O solstício?

Jason assentiu com a cabeça.

  • É a melhor época para conjurar a magia antiga. É melhor o Leicester ter cuidado ou pode acabar se queimando. — Agachando-se, ele pegou um pedaço de madeira do fogo e guardou-o no bolso da jaqueta. — Estou surpreso de que não tenham limpado isso.

Ele se sentou em um dos bancos de pedra, sua sombra se comprimiu, e então Jason gesticulou para que Seph se sentasse junto a ele. Com cautela, Seph obedeceu.

Jason fitou a lareira fria por um longo instante, um mús­culo pulsando no maxilar. Mas quando começou a falar, as palavras jorraram, como se ele já houvesse tomado uma decisão e só quisesse acabar logo com aquilo.

  • Vou contar algumas coisas pra você. Mas é melhor que saiba que vou ser morto se o Leicester sequer suspeitar disso. Deus sabe o que ele vai fazer com você. Depois do que aconteceu com o Sam e o Peter, jurei que trabalharia sozinho. — Ele fez outra pausa. — Por isso o que estou dizendo é que, se eu ajudá-lo, e você abrir a matraca quando o Leicester torcer o seu braço, eu te mato.

Jason abriu os olhos e olhou diretamente para Seph, que acreditou no que Jason Haley dissera.

—- Portanto, a pergunta é: você é forte o bastante pra dizer não a ele?

Os olhos de Jason eram como cristais azuis brilhantes.

Seph fez que sim com a cabeça. Já havia dito não a Leicester e estava pagando o preço por isso, todas as noites.

  • Ótimo — disse Jason. Ele ficou pensando por um mo­mento, como se não tivesse certeza de por onde começar. — O quanto você sabe sobre as ordens mágicas?
  • Um pouco. Ninguém me treinou, se é o que quer dizer.

Jason sorriu.

  • Sem brincadeira, eu vi o seu trabalho. Muito bom o que você aprontou no laboratório de química.
  • Você me disse que tinha algo a me dizer.

O sorriso de Jason se foi.

  • Muito bem. O Leicester está tentando obter o controle sobre magos jovens e ignorantes como você. — Jason lançou-lhe um olhar de esguelha. — Magos nascidos em famílias de Anaweirs. Em geral, ele consegue o apoio dos desordeiros típicos. Muitos são enviados pelos tribunais. O programa aqui funciona bem pra eles. O Leicester mostra a eles alguns de seus vídeos noturnos e eles se acomodam. Por isso a taxa de sucesso é bem alta. — Jason ergueu-se do banco de pedra, andando de um lado para o outro na frente do estrado. — Mas de vez em quando ele encontra uma pérola dentro da ostra. Como você, Seph.

Seph indicou a plataforma de pedra com a cabeça.

  • Ele me trouxe aqui depois que eu cheguei. Eu era o convidado de honra em algum tipo de... de ritual.

Jason apoiou a mão no altar.

  • É Magia Antiga. Ele quer que você se conecte a ele. Você viu os professores e os ex-alunos. Todos antigos alunos, todos magos, todos sob o controle do Leicester. Acho que é fácil convencer a maioria deles. O cara é ado­lescente, esteve encrencado por quase a vida toda, e ele promete fazer dele "um dos mais poderosos praticantes de magia da nossa era". Ou seja, para que ler as letrinhas miúdas?

Jason havia imitado com perfeição o sotaque pomposo de escola particular britânica do dr. Leicester, e Seph não pôde conter uma risada.

  • O que ele quer com eles?
  • Não sei exatamente — admitiu Jason. — Mas só com uns dois ou três magos já se tem um exército. E ele treina alguns deles. É para isso que serve a biblioteca. Só magia, venenos e encantamentos. Uma seção enorme sobre feitiços de ataque. Alguns dos ex-alunos passam anos estudando lá. O Leicester não tem pressa, pois os magos vivem por muito tempo. Ele encontra o pote de ouro provavelmente a cada dois ou três anos. Eu cheguei no ano passado como uma espécie de bônus, mas as coisas não deram muito certo comigo. Mas você... — Jason deu um sorriso torto. — Poderoso como você? Ele nunca vai deixá-lo ir embora.

Seph sentiu-se absurdamente lisonjeado.

  • Por que você acha que sou poderoso?
  • Vai por mim. É por isso que você vem tendo tantos problemas. Quando não se sabe usar ou dissipar a magia, ela acumula e, depois de um tempo, explode. É como sacudir uma garrafa de refrigerante.
    • Mas o que ele vai fazer com um exército de magos? — insistiu Seph.
  • Você soube o que aconteceu na Ravina do Corvo?

Ravina do Corvo. Aquela garota, Alicia, havia mencio­nado aquele nome no depósito.

  • Algum tipo de torneio?

Jason acomodou-se no banco.

  • Detesto ter de dizer isso a você, mas, em regra, os magos são pessoas horríveis. São poderosos, capri­chosos, cruéis, egoístas, acostumados a conseguir o que querem. Estou sendo generoso. Existem duas grandes Casas de Magos: a Rosa Vermelha e a Rosa Branca. Elas começaram a lutar lá no tempo da Guerra das Rosas, se você conhece a história britânica. Depois de uns dois séculos de derramamento de sangue, elas adotaram um documento chamado Leis de Combate. Sem ele, elas teriam se exterminado. Por centenas de anos, a única luta aprovada que eles vêm travando é por meio do jogo. Até nos torneios a luta é travada pelos guerreiros, não pelos magos. É uma luta até a morte. Eles usam armas medievais, e tudo é realmente organizado conforme as regras. A casa vencedora controla o Tesouro: artefatos mágicos e coisas assim. Mas existe muito derramamento de sangue não-oficial e intriga rolando nos bastidores. Eles chamam isso de política dos magos.
  • Teve esse torneio na Ravina do Corvo na última pri­mavera — continuou Jason. — Um exército de fantasmas apareceu, os jogadores se revoltaram, e as regras foram alteradas. Eles estabeleceram um santuário... em Ohio, imagine só. Numa cidadezinha chamada Trinity. Desde então, as Rosas vêm conspirando, tentando descobrir como manter o controle do Tesouro e recuperar o controle sobre as outras ordens. — Ele fez uma pausa. — Você sabe sobre as outras ordens?

Seph assentiu.

  • Feiticeiros, adivinhos, guerreiros e encantadores. Sei bastante sobre feiticeiros. Mas menos sobre os outros.
  • Eles têm sido dominados pelos magos, porque os magos conseguem moldar a magia com feitiços. Mas cada um deles tem seu talento especial. Os feiticeiros são bons com materiais, objetos mágicos, poções, plantas e essas coisas. Os adivinhos têm o dom da profecia. Os guerreiros arrasam numa luta. Os encantadores... — Aqui ele deu um sorriso sonhador. — Os encantadores têm o dom do carisma. Eles confundem a mente e estimulam os... ahn... sentidos.

Seph jamais ouvira as ordens sendo descritas daquele jeito antes.

  • Nunca encontrei uma encantadora —- disse Jason, melancólico. — Enfim, é isso. As Rosas criaram algo chamado Conselho dos Magos, supostamente para fa­cilitar o planejamento do Conselho das Ordens exigido pelas novas regras. Também tem uma rede inter-ordens clandestina liderada por alguém chamado Dragão. Eles conseguiram manter as Rosas ocupadas lutando entre si. Eles interceptam mensagens, plantam mensagens falsas, explodem coisas. Depois que o Conselho se recusou a abrir mão do Tesouro, os agentes do Dragão começaram a invadir arsenais secretos por todo o mundo. Quando eu sair, vou me juntar a ele. Ou ela. Imagino que qualquer inimigo do Leicester seja meu aliado.
  • Então o Leicester está trabalhando para as Rosas? — indagou Seph. — Fiquei com a impressão de que não.
  • O Leicester está mancomunado com um outro mago poderoso chamado D'Orsay, que é o Mestre de Jogos do Conselho. Eles têm reuniões aqui de vez em quando. Estão planejando algo, e com certeza tem algo a ver com os ex-alunos. Pode ser a guerra dos magos, tudo de novo.
  • Como você veio parar aqui? — indagou Seph.

Jason encurvou os ombros e desviou o olhar.

  • Sou o produto de um casamento híbrido. Minha mãe era mestra em Magia Restrita. Uma especialista em espiritualidade e Magia Antiga. Meu pai era Anaweir. Ele não se sentia muito confortável com o oculto, por isso ela era discreta ao utilizar seu dom. Quando eu pedia, ela me ensinava alguns feitiços simples, tipo como usar talismãs. Coisa de criança, em geral. Levei muito tempo pra entender que a magia estava em nós e não nas ferramentas e encantamentos. Ela morreu quando eu tinha 13 anos. Bem jovem para uma maga. — Ele parecia estar escolhendo as palavras com cuidado. — De qualquer maneira, meu pai se casou de novo, dessa vez com uma mulher Anaweir. Eles eram felizes, mas eu estava furioso. Minha mãe tinha largado essa carga enorme sobre mim e não havia ninguém com quem eu pudesse conversar, ninguém pra me ensinar. Eu não me dava bem com a minha madrasta.

O rosto dele se contorceu com a lembrança de uma dor antiga.

  • Os dois agiam como se eu fosse louco ou perigoso, ou algo assim. Provavelmente tinham razão. Eu sabia como ficar longe de encrenca, mas não fiquei. A coisa acabou nos tribunais. Então eles me mandaram pra cá. Eu pensei mesmo que poderia ser... melhor. Fugir daquilo, digo. — Ele riu com amargura. — Eu estava errado.
  • Há quanto tempo está aqui?
  • Estou no terceiro ano. Cheguei no meio do segundo.
  • Por que voltou pra cá? — indagou Seph. — Eu faria qualquer coisa pra sair daqui.
    • Eu nunca saí. Eles me mantiveram aqui por todo o verão, em nome de um suposto trabalho de recuperação. — Jason revirou os olhos. — Aquilo foi uma delícia. Eu, o Leicester e os zumbis do Clube dos Ex-Alunos. Ele me pegou tarde demais. Eu sei demais sobre Magia Antiga pra concordar com qualquer tipo de conexão. — Ele remexeu no bolso da jaqueta, puxou um maço de cigarros. As mãos tremiam, e ele precisou de três tentativas para acender um fósforo. A chama realçou os traços angulares do rosto dele. — Você vê, eu sou como você, Seph. Ninguém para acender a droga da luz da varanda para mim.

Não havia nada a ser dito em resposta àquilo, por isso Seph não disse nada.

Jason agitou a mão para afastar a fumaça e a emoção.

  • Não tinha a intenção de ficar todo sentimental. Enfim. Não vou ficar por muito tempo. Estou aqui por dois motivos. Um, estou aprendendo magia, e a biblio­teca é fantástica. Dois, estou tentando descobrir o que o D'Orsay e o Leicester estão planejando. Se quero me juntar ao Dragão, imagino que seja melhor eu levar algo para contribuir.

Seph estudou-o com ceticismo.

  • Como vai fugir? Tenho tentado sair desde setembro. Mesmo quando consigo chegar nos limites do campus, não consigo passar do muro.
    • É um muro mágico. Uma barreira mágica — explicou Jason, que parecia gostar do papel de especialista. — Nunca vai conseguir chegar perto o bastante para escalar, e pode esquecer a idéia de achar o portão.
  • Então como é que vai fugir?
    • Essa é uma das coisas que estou pesquisando. Aquele maldito não vai me segurar aqui quando eu estiver pronto para ir.

Jason tinha uma confiança despreocupada que Seph invejava.

Seph repassou sua lista mental de perguntas.

  • Se a sua mãe era maga, quer dizer, se mulheres podem ser magas, por que o Leicester abriu uma escola só para rapazes?

Jason riu com desdém.

  • Isso provavelmente tem mais a ver com a atitude do Leicester em relação às mulheres do que qualquer outra coisa. Ele não é nenhum defensor da igualdade, se entende o que quero dizer.
  • Como é que você faz aquela coisa na biblioteca? O lance da invisibilidade.
  • É um feitiço que age no obser­vador. Uma diferença sutil. O que é invisível? Você? As suas roupas? As coisas que você está carregando? O fei­tiço de imperceptibilidade exige um talismã. Um artefato de magia. O Barber e o Conroy não perceberam a gente, mas nós não mudamos. O único problema é que não dá pra lançar feitiços quando se está imperceptível. Já que feitiços são perceptíveis, é claro.

É claro.

  • Como é que o Leicester faz aquilo? Os pesadelos, digo.

Jason deu de ombros.

  • Ele é mago. É um feitiço de algum tipo, provavel­mente falado. Não deve ser tão difícil, acho, já que é usado contra pessoas sem nenhum treinamento.
  • Não entendo. Ele é um mago treinado. Tem de haver uma outra maneira de conseguir o que ele quer.
  • Ele pode usar a Alta Magia para enlouquecer você, mas não para fazer você ceder. Conexões são complicadas. Precisam ser voluntárias. Além do mais, as conexões são mútuas. Por isso há sempre o risco de que ele encontre um mago mais poderoso do que ele, e aí ele vai estar frito.

Ante o olhar de incompreensão de Seph, Jason acres­centou, com impaciência:

  • Isso é Magia Antiga. Ele usa porque outros magos não conhecem muito bem, mas ele também não é um especialista.
  • Qual é a diferença entre Magia Antiga e Alta Magia?
    • Magia Antiga é mais básica, é o que os especialistas em Magia Restrita e os magos de segunda categoria usam. Envolve sacrifícios de sangue e esse tipo de coisa.
  • Tem aquele cajado que ele usa na cerimônia.
    • É. Provavelmente tem algum elemento mágico nele. Você sabe, uma escama de dragão ou algo assim.

Seph não sabia dizer se ele estava brincando ou não. Enfiou as mãos geladas nos bolsos.

  • O que aconteceu com o Sam e o Peter?
    • Sam e Peter. — Jason desviou o olhar e chutou uma massa de gelo que se formara sob o banco. Ela explodiu em fragmentos de gelo cintilante. — Eu tinha planejado uma revolução. Era evidente que os ex-alunos se sentiam mal e que os Anaweirs estavam com medo. Imaginei que, se todos nos juntássemos, poderíamos vencer. O Peter era o único outro aluno dotado que não tinha se juntado. O Sam era o melhor amigo do Peter. Anaweir, mas destemido. Eles concordaram. — Jason ficou em silêncio por um momento, fitando os assentos, desolado. — Estávamos condenados desde o princípio. Os ex-alunos estavam totalmente sob o controle do Leicester. Magicamente, pelo menos. Mais do que inúteis. Alguém contou ao Leicester. Ele ameaçou matar o Sam, e o Peter se rendeu e concordou com a conexão. — Jason sorriu com amargura. — Depois disso, o Peter precisava aprender uma lição, e o Sam era descartável, por isso foi morto por eles. — Ele ergueu o olhar para Seph. — Antes que pergunte, não, não tenho como provar. Mas é verdade.
  • O que ele fez com você? — Parecia uma pergunta pessoal, mas Seph tinha de perguntar.
    • .. Ele não me matou. Sou valioso demais como um trunfo, potencialmente, pelo menos. Além disso, ele e os amigos dele são bastante espertos para usar punições físicas que deixem marcas. Mas, como você sabe, ele pode ser bem criativo.

Jason engoliu em seco e fitou a neve no chão.

Seph estremeceu, olhando para capela em torno.

—  Como você consegue? Como durou tanto tempo? Ele tem ficado em cima de mim noite e dia, com sonhos e alucinações. Estou literalmente enlouquecendo. Não sei quanto tempo mais consigo agüentar.

Saber que Leicester voltaria em poucos dias não o fazia se sentir nem um pouco melhor.

—  Você prometeu que não cederia, lembra? Nós dois vamos estar fritos se você ceder.

  • Estou fazendo o melhor que posso.

Jason fumou em silêncio por alguns minutos, lançando as cinzas na neve. Parecia se debater sobre uma decisão importante. Finalmente, ele deu de ombros.

—  Está bem. Já que comecei, é melhor ir até o fim. — Ele fitou os céus. — Olha, Seph, eu posso ensinar você a lidar com os sonhos. Mas se o Leicester descobrir que estou ajudando você, nós dois vamos acabar no exército de zumbis dele.

Seph endireitou-se, subitamente esperançoso.

—  Se eu pudesse pelo menos dormir um pouco, acho que poderia segurar as pontas indefinidamente — disse ele.

Jason deu uma longa tragada no cigarro, soltando uma espiral de fumaça.

  • Como posso saber que você não é um espião do Leicester?

Seph deu de ombros.

  • Eu estava pensando a mesma coisa de você.

Jason pôs a mão no ombro de Seph e olhou-o nos olhos.

  • Acho que você é o que diz ser — disse Jason por fim. — Você não tem aquele olhar abobado que estou acostumado a ver. Tudo bem. — Ele se levantou, dando um sorriso torto, e apagou o cigarro. — Agora vou levar você até o meu covil.

Eles caminharam pela floresta em direção à Casa dos Ex-Alunos, seguindo a trilha que Seph abrira na neve ao sair. Quando o vento alcançava os topos dos pinheiros, a neve caía em cascata, e parte dela se insinuava por sob o colarinho da jaqueta de Seph. Sob o céu límpido, o calor do corpo dele era drenado para fora, e ele tremia.

A jaqueta leve de Jason estava aberta, e ele não reagia ao frio de modo algum. Parou próximo ao limiar da flo­resta.

  • Segure o meu braço e fique quieto. — Jason mur­murou as palavras da magia e desapareceu, mas Seph podia sentir o braço dele sob os dedos. — Ninguém vai notar você também — disse a voz.

O invisível — ou melhor, imperceptível Jason — guiou Seph para fora da floresta e através do gramado da Casa dos Ex-Alunos. Eles entraram no saguão da frente e passaram pelo salão. Martin e Peter estavam estirados em frente à televisão, jogando cartas, mas não os viram passar. Jason levou Seph para a escadaria nos fundos do prédio, e eles desceram até o porão.

Havia salas de musculação ao pé da escadaria, depois mais escritórios e depósitos. Jason passou por eles se­guindo por dois corredores que se entrecruzavam até uma porta. Esta se abriu, e Seph foi empurrado para dentro. A porta bateu atrás dele, e um ferrolho fechou-se por dentro. Escutou mais um pouco de latim embaralhado e Jason reapareceu, rindo da expressão surpresa no rosto de Seph.

  • Se eles têm câmeras em todos os lugares, não tem medo de sermos encontrados aqui? — indagou Seph, olhando para o quarto em redor.
    • Oh, eu dei um jeito nisso. Forneci a eles som e vídeo alternativos. Os magos chamam isso de É um feitiço sensorial que funciona quer você esteja lá, quer não.

Jason apertou um botão no tocador de CD e música ir­rompeu dos alto-falantes. Apesar de ser no porão, o quarto era confortável. Jason tinha sua própria geladeira e um banheiro privativo. Ladrilhos de cerâmica cobriam o piso, e uma série de prateleiras, a maioria vazia, alinhava-se nas paredes. Uma mesa de computador ficava contra a parede oposta. As paredes vazias estavam cobertas de pôsteres de música.

Jason apontou para uma cadeira estofada.

  • Sente-se.

Seph deixou-se cair na cadeira.

  • Por que você está aqui, se não é um dos ex-alunos?
    • O Leicester precisa me manter longe de novatos como você. Eles acham que podem ficar de olho em mim desse jeito. Até onde sabem, passo a maior parte do meu tempo me remoendo no meu quarto. — Ele abriu a geladeira e remexeu lá dentro. — Quer beber alguma coisa?

—  Refrigerante está bom.

Seph pegou a lata de refrigerante de laranja que Jason lhe estendeu.

Jason sentou-se na cama e apontou para a prateleira de CDs junto do aparelho de som.

  • Escolha alguma outra coisa, se não gosta de punk irlandês.

Havia um tom ansioso na hospitalidade dele que sugeria que Jason também se sentia sozinho.

  • Isso aí está ótimo. — Seph fez um gesto indicando o quarto. — Belo lugar.
    • Para uma prisão. — Jason se inclinou para a frente. — Agora, sobre os seus sonhos. Se eu ensinar a você como eles podem ser bloqueados, não pode haver mudança alguma no seu comportamento, entende? Você tem de convencer o Leicester de que continua no limite e está co­meçando a ceder. Se você começar a saltitar pelo campus, feliz e despreocupado, ele vai saber que alguma coisa está acontecendo.

—  Não acho muito provável que isso aconteça.

  • O lance é que você tem de seguir as instruções, senão pode acabar morto.

Jason enfiou a mão no colarinho da camisa e tirou um objeto preso a uma corrente ao redor do pescoço. Ele o tirou por sobre a cabeça e passou-o para Seph.

Era um círculo de pedra, mais pesado do que Seph esperara, a julgar pelo tamanho, num tom opaco de preto. Estava coberto de leves marcas rabiscadas na superfície.

Havia uma sensação de profundidade naquilo, como se Seph estivesse olhando por uma janela. Mas, quando espiou pelo centro, estava olhando para... nada. Quando moveu a mão por trás dele, continuava não havendo nada.

  • O que é isso? — indagou ele, tentando devolver o objeto a Jason.

O outro sacudiu a cabeça.

  • O termo genérico é dyrne seja, que significa pedra do coração, ou pedra secreta. São objetos que agem como dispositivos de auxílio aos dotados. Foram feitos por fei­ticeiros há muito tempo. Os feiticeiros são especialistas, quando se trata de materiais. Mas ninguém sabe mais como fazer uma dyrne seja. — Jason foi em frente, empolgando-se com o assunto. — Este aqui é chamado de "portal". É uma peça da coleção da minha mãe. É magia bem antiga, não muito conhecida hoje em dia. Nem sei todas as coisas que pode fazer. E posso garantir a você que não tem nada sobre isso na biblioteca dos ex-alunos. — Jason bufou em desdém. — O dr. Leicester se considera um acadêmico, mas se mete com coisas que não entende.
  • Mesmo?

Seph tocou o talismã com a ponta do dedo, como se o objeto pudesse mordê-lo.

  • Os portais são usados para ilusões e viagens espiri­tuais — explicou Jason. — Eu uso pra lançar o feitiço de imperceptibilidade. Os sonhos são só um tipo de química mental. Você vai usar isso para se afastar do seu corpo e assim poder fugir dos encantamentos do Leicester. Vou repassar o feitiço até você aprender. Coloque o portal na mesa enquanto estiver praticando. A gente não quer que nenhum acidente aconteça.

Seph apressou-se em depositar a peça sobre a mesa, resistindo ao impulso de limpar as mãos nos jeans.

In terrenus sanctum. O feitiço era num tipo de latim bastardo. Não era muito difícil. Seph sempre tivera faci­lidade com línguas. Não levou muito tempo para dominar o encantamento. Teve de dizê-lo umas cinco vezes corretamente antes que Jason estivesse satisfeito.

  • O que significa? — perguntou Seph.
    • Para dentro do santuário — respondeu Jason. — Da maneira que entendo, você recua pra dentro da sua Pedra Weir. Onde o Leicester não pode se intrometer. O talismã permite que você vá e volte. Antes de ir, precisa decidir quando quer retornar. Se não fizer isso, bem, você nunca volta. Agora coloque o portal por baixo da camisa — disse ele, apontando para a dyrne seja.

Seph pegou o portal de cima da mesa e passou a corrente ao redor do pescoço. Enfiou a pedra por dentro do colarinho da blusa de modo que lhe tocasse no peito. Ele esperava que fosse fria, mas a sentiu quente e pesada contra a pele.

Jason apontou para a cama.

  • Agora deite-se e me diga por quanto tempo quer dormir.
  • Temos de fazer isso agora? — disse Seph, obedecendo ainda assim.
    • Não se preocupe — sussurrou Jason. — Confie em mim.
  • Uma hora, então.
    • Uma hora. — Jason correu o dedo pelas runas na dyrne seja. — Essas inscrições podem ser lidas como números, se souber como ler. Por exemplo, este aqui é o um. Você pode escolher uma, duas, três horas, e assim por diante. Eu consigo fazer isso até no escuro, mas não recomendo que você tente. — Ele sorriu. — A magia é um tipo de lance antitecnológico. O que significa que não é exata. Mas o tempo passa rápido. Agora diga o feitiço. Não precisa dizer em voz alta.

"Muito bem", pensou Seph. Escolher uma hora e dizer o feitiço. Ele tocou o círculo de pedra como Jason fizera, encontrou o símbolo para uma hora e pronunciou o feitiço cuidadosamente, movendo os lábios sem emitir som.

Seph sentiu como se tivesse sido mergulhado numa piscina gelada. O choque arrancou-lhe a respiração e o sangue do corpo. Então o frio sumiu e Seph sentiu-se leve, muito leve, um vapor, uma idéia no vácuo, um brilho na escuridão. Livre. Estava consciente de um limite, um confinamento, nada mais que uma maior densidade do ar.

Percebeu um calor que se espalhava, um formigamento nas extremidades, sensações que fluíam. Abriu os olhos e viu Jason estirado na cadeira, de fones de ouvido, os dedos unidos formando uma torre, estudando-o.

  • Não funcionou — disse Seph.

Jason riu e tirou os fones de ouvido.

  • Você apagou por uma hora. Olhe no relógio.

Seph olhou. Passava das nove horas. Ele piscou, abriu a boca, fechou-a novamente.

Jason parecia satisfeito com a reação de Seph.

  • Não é bem como dormir, mas é parecido o suficiente. Dá pra descansar um pouco. A mente fica a salvo do Leicester.
    • E dá pra fazer isso por oito horas?
    • Ou dez — disse Jason. — Aqui, eu mostro pra você. — Ele apontou para os símbolos relevantes no portal. — Mas é melhor que ninguém descubra que você apagou, já que vai parecer que você está morto. Então é bom trancar a porta antes de usar o feitiço e não planejar dormir demais.

"Jason tinha razão", pensou Seph. Dormir sem sonhar. Era um milagre. Mas não teria certeza até que tentasse passar a noite. Sua mão encontrou a pedra, traçou o formato dela sob a blusa.

  • Você tem mais desses? — indagou ele, sentindo-se esperançoso pela primeira vez em muito tempo.
    • Fique com esse. Eu tenho outra coisa que posso usar. Só não vá perdê-lo. Como eu falei, não se faz mais dessas pedras. — Ele franziu o cenho, mordendo o lábio inferior. — Vamos ter de construir um glamour para que Leicester se convença de que você continua sonhando.

Seph se empertigou.

  • Pensei que você não soubesse muito sobre magia.
  • Minha mãe se especializou em ilusões, glamoures, espiritualidade, viagem fora do corpo usando talismãs — replicou Jason. — Eu cresci no meio disso tudo. Infeliz­mente, ela nunca me ensinou muito sobre como matar pessoas.

Seph ergueu os olhos, assustado, mas Jason fitava as próprias mãos, e Seph não pôde lhe ver a expressão.

—  O que mais você pode me ensinar? — perguntou Seph.

Jason deu de ombros.

—  Como eu falei, não sei muito. Posso ensinar o que sei com prazer. Mas você não pode sair pelo campus se exibindo. Lembre-se do que eu disse: no que se refere ao Leicester e todos os outros, você precisa continuar parecendo assustado e estúpido.

  • Tudo bem — replicou Seph.

 

                     O Portal

Jason passou uma hora ou mais no quarto de Seph, caminhando de um lado para o outro, tecendo o tal glamour, como ele chamava. Pri­meiro bloqueou as câmeras, depois construiu um com­plicado feitiço de múltiplas camadas, parcialmente ligado ao feitiço de sonho que era lançado sobre Seph. Quando terminou, o quarto de Seph era uma fortaleza contra olhos curiosos, e os sonhos de Seph voltaram a pertencer a ele mesmo.

Seph usava o portal quando ia para a cama. Deitava-se, escolhia a duração de sua ausência e construía o feitiço em sua cabeça. Às vezes ele acordava quando o feitiço perdia o efeito e ficava quieto no escuro. Às vezes continuava dormindo. Jason avisou-o para não usar o feitiço duas vezes na mesma noite.

— Você sabe quando você vai apertar o botão de soneca do despertador e erra? Se você errar esse, nunca vai acordar.

Quer fosse a magia da pedra, quer o feitiço que Jason lhe ensinou, ou ambos, o processo dava resultado. O portal era o talismã que mantinha os sonhos à distância, e Gregory Leicester fora da cabeça de Seph enquanto o feitiço estivesse atuando. Às vezes os sonhos vinham perto da manhã, depois que ele retornava. Às vezes o apanhavam no meio do dia. Mas conseguir dormir tran­qüilamente por seis ou oito horas e manter os pesadelos distantes quando queria fazia toda a diferença. Antes do encontro na biblioteca, Seph sentira que estava se esvaindo, como se fosse deixar de existir em pouco tempo. Agora se reconstruía aos poucos, e a mente estava mais lúcida do que estivera desde o Dia de Ação de Graças.

Jason tinha um segundo pingente de pedra, de forma hexagonal, e que servia para alguns dos mesmos propó­sitos. Ele usava o feitiço de imperceptibilidade para perambular por todo o campus — na espreita, como ele dizia —, enquanto os glamoures convenciam os administradores da escola de que ele estava entocado no quarto. Ele passava a maior parte do tempo na biblioteca, estudando os feitiços que Leicester havia reunido para os ex-alunos.

Seph nunca sabia quando Jason estaria esperando do lado de fora de seu quarto de manhã, ou quando tocaria em seu ombro ao cruzar o campus.

— Imperceptível é melhor que invisível — dizia Jason. — Age no observador e não no observado. Desse jeito quem está imperceptível não deixa pegadas.

Assim, o feitiço de imperceptibilidade foi o segundo feitiço que Jason lhe ensinou, para que pudessem voltar escondidos ao quarto no porão. Jason aconselhou Seph a pronunciar o feitiço fora do campo de visão das câmeras onipresentes. Já era fato conhecido que Seph tinha o hábito de caminhar na floresta. Ele adentrava alguns metros na floresta, cada vez em uma direção diferente, dizia o feitiço e depois voltava para a Casa dos Ex-Alunos.

Eles geralmente se encontravam no quarto de Jason, onde ele mantinha anotações e papéis sobre sua pesquisa, além de livros sobre feitiços. Jason parecia quase tão ávido por companhia quanto Seph, pois não ia às aulas e não interagia nem com os ex-alunos nem com os Anaweirs. Ele vivia nas sombras — estudando magia tanto quanto podia nos livros e espionando Leicester e seus comparsas.

Seph não tinha interesse em entrar em guerra contra ninguém. Sabia que, passadas as distrações dos feriados, Leicester voltaria sua atenção total a ele. Embora Seph se sentisse mais forte após apenas uma semana de sono ininterrupto, ele receava não conseguir ocultar o fato do diretor.

Os alunos foram retornando durante o último fim de semana das férias de inverno. Ao fim do período de outono, Seph havia se sentido dentro de um abismo. Agora estava ansioso para ver Trevor; perguntava-se se o amigo havia contatado a firma de advocacia e qual fora a resposta. Passara no quarto de Trevor diversas vezes, mas este não havia chegado até tarde da noite de domingo.

Uma mensagem fora passada pela rede interna de com­putadores informando que haveria uma assembleia dos alunos no auditório do prédio de arte e música, de manhã cedo, no primeiro dia de aulas do semestre. Assim, na manhã de segunda-feira, Seph bateu à porta de Trevor logo antes das oito horas para irem juntos à assem­bléia. Ainda nenhuma resposta. "Provavelmente já foi, com medo de se atrasar", pensou Seph, enquanto andava pesadamente pela neve até o prédio de arte.

Quando Seph chegou, o auditório estava quase lotado, por isso ele se sentou nos fundos. O salão reverberava com as vozes que resmungavam sobre estar de volta à escola e trocavam histórias sobre as férias de inverno. Seph acenou com a cabeça para Troy e Harrison, que estavam sentados mais ao centro. Até Jason se esgueirou para dentro da sala no último minuto, ocupando um assento junto à porta.

Gregory Leicester subiu ao palco e pediu silêncio. Ele olhou para os alunos, como se mapeasse os rostos na multidão. Seph achou que o diretor olhara para ele de um jeito especial antes de começar a falar. Perguntou-se se ele notara Jason nos fundos.

  • Esta manhã devo saudá-los de volta ao Porto Seguro com uma triste notícia. Lamento informar a vocês que perdemos um de nossos alunos em um trágico episódio durante as férias de inverno.

Seph soube de quem se tratava antes de as palavras serem ditas. Quis sair correndo da sala antes de ouvi-las, mas era como se estivesse pregado à cadeira.

  • Trevor Hill tirou a própria vida em casa durante os fe­riados. — Leicester fez uma pausa. — Trevor era um rapaz com um grande futuro à sua frente. Estava no segundo ano, tirava boas notas, tinha um ótimo desempenho no Porto Seguro. Era especialmente conhecido por sua ge­nerosidade de espírito, por sua disposição em ajudar os outros sem se preocupar com a própria segurança. — O olhar de Leicester se fixou em Seph. — Não temos como saber o que ele tinha em mente no momento de sua morte. Mas seu falecimento representa uma grande perda para a escola e para os muitos amigos que possuía. Façamos agora um minuto de silêncio em memória de Trevor Hill.

O silêncio caiu sobre o auditório. Alguns dos alunos fecharam os olhos; outros se entreolharam, atônitos. Seph afundou na cadeira, os olhos arregalados, observando o homem na frente da sala.

Após um momento, Leicester voltou a falar.

— Nós enviamos um buquê de flores em nome dos professores e dos alunos. Também temos o endereço de contato para aqueles que quiserem enviar um cartão ou uma mensagem à família. Obrigado por terem vindo.

E então Leicester saiu pela porta lateral.

Seph ficou sem se mexer enquanto o resto dos alunos saía arrastando os pés. Uma série de cenas desconexas corria-lhe pela mente, como um vídeo que se repetia interminavelmente. Chegou a ter esperanças de acordar e descobrir que tudo fora um sonho.

Lembrava-se da última vez que vira Trevor no quarto dele, antes de partir para as férias: Trevor se oferecendo para contatar a firma de advocacia a partir da casa dos pais, e Seph concordando. Depois Jason lhe dizendo que todos os quartos dos alunos eram "grampeados" pela administração. Por fim, a noite no anfiteatro, em que encontrara a corrente de ouro e o pingente nos restos da fogueira. Agora Seph sabia onde os tinha visto antes.

Levantou-se da cadeira e forçou o caminho através de pequenos grupos de alunos que ainda permaneciam nos fundos do auditório, cochichando com escândalo e pesar voyeurístico. Saiu e rumou para o prédio da adminis­tração a passos rápidos, as botas esmagando a neve, a respiração formando nuvens no ar límpido.

Mal passara pela Casa dos Ex-Alunos quando alguém o alcançou e agarrou-lhe o braço, puxando-o por uma porta.

  • Aonde você pensa que vai?

Era Jason, é claro... O imperceptível Jason.

Seph tentou livrar o braço.

  • Deixe-me em paz.
  • Aonde você vai?
  • Ver o Leicester.

Seph golpeou o ar, mas parecia que Jason tinha mais do que a cota normal de braços e pernas. Era como lutar com um polvo invisível.

  • Não, não vai. E é melhor se acalmar ou eu enfeitiço você.

Seph parou de lutar.

  • Vamos lã para baixo, onde podemos conversar — disse Jason, ainda segurando firme o braço de Seph, manobrando-o pela escadaria.

Uma vez em seu quarto, Jason materializou-se.

  • Sente-se — ordenou.

Seph afundou numa cadeira, medindo a distância até a porta, tentando pensar num jeito de passar por Jason.

  • Agora me conte — disse Jason, plantando-se no caminho.

Seph tremia de raiva e remorso.

  • O Leicester matou Trevor Hill porque ele ia tentar contatar o meu tutor. É minha culpa.

Jason inclinou a cabeça para um lado.

  • Por que o diretor mataria alguém por contatar o seu tutor?
  • Você sabe melhor do que ninguém.

Jason se inclinou para a frente e pôs ambas as mãos nos ombros de Seph, os olhos azuis faiscando.

  • Se você entrar no escritório do Leicester com um monte de acusações, a primeira coisa que ele vai pensar é: "O que aconteceu com o Ingênuo? Com quem ele anda conversando? Não poderia ser com o Jason Haley, poderia?".

Seph tentou desviar o olhar, mas Jason ainda o segu­rava.

  • E digamos que você confronte o Leicester e descubra que a sua teoria é verdadeira? O que vai fazer a respeito?

Seph não disse nada.

  • Não está vendo? Cada pedaço de informação que der a ele é uma arma. E não há nada que você possa fazer contra ele. Nada.

Jason soltou Seph e recuou.

  • Você não entende — disse Seph, as imagens voltando-lhe à mente: a carne de Maia se desintegrando sob seu toque. O amuleto carbonizado de Trevor em meio às cinzas no anfiteatro. — O Trevor tentou me ajudar, e agora ele está morto.

Jason deixou-se cair numa cadeira e fechou os olhos.

  • Se está me perguntando se acho que o Leicester faria isso, eu diria que sim, numa fração de segundo. E por razões menos importantes também. Ele faria isso porque o Trevor era seu amigo e apoiava você, enquanto o Leicester está tentando deixar você louco. — Jason sacudiu-se, como se estivesse tentando afastar uma lembrança. — Nunca se pergunta por que eu não ando com os outros alunos? Não acha que estou cansado de ficar sozinho o tempo todo?

Jason soltou um suspiro, um som longo e magoado.

  • É porque o Leicester pode atingir a gente por eles. Eu convenci o Sam e o Peter a ficarem contra ele. Agora o Sam está morto, e o Peter... — A voz de Jason sumiu.
  • Você tem medo dele.
    • É claro que eu tenho, e você deveria ter também. Os Anaweirs são tão frágeis... — Ele agarrou os braços da cadeira, como que se segurando no assento. — Na última primavera, eu reclamei deste lugar para o meu pai. Eu me queixei tanto que ele decidiu investigar. Ele telefonou para o dr. Leicester, fazendo perguntas, e até veio pra uma visita, mas não descobriu muita coisa. Todos aqui eram felizes menos eu, blablablá. Mesmo assim, meu pai prometeu conversar com alguns psicoterapeutas, descobrir se o que acontece aqui está conforme as leis. Em menos de um mês, e antes de conseguir chegar muito longe, ele morreu de um ataque cardíaco.
  • Você acha que o Leicester teve alguma coisa a ver com isso?

Jason fez um gesto impaciente com a mão.

  • O Leicester nunca se deu ao trabalho de tentar es­conder suas intenções, porque eu já sabia demais quando cheguei aqui. No dia em que o meu pai morreu, o Leicester me chamou no escritório dele e me disse quando, como e onde aconteceria. Então ele me fez esperar lá até que o telefonema chegasse.

Seph engoliu a revolta que lhe subiu à garganta.

  • Meu Deus.
    • Ele pensou que tinha achado um jeito de me quebrar. E quase conseguiu, porque eu sabia que era minha culpa. — Jason fechou os olhos de novo, e Seph pôde ver lágrimas se formando nos cantos das pálpebras. — Se eu não tivesse sido tão imbecil quando o meu pai se casou pela segunda vez, não teria terminado aqui. Se eu não tivesse reclamado para o meu pai, ele estaria vivo hoje.
  • Como pode achar que é culpa sua? — sussurrou Seph. — O Leicester é um monstro.
  • Se eu não puder me culpar, então você também não pode. Mas acho que você entende que, se alguém tem um motivo pra tentar pegar o Leicester, sou eu.
  • Eu não sabia — disse Seph baixinho. — Como você agüenta?
  • Eu agüento porque sei que vou encontrar um jeito de pegar o Leicester e o D'Orsay no final. Vou conse­guir ou morrerei tentando. Continuo aqui porque preciso aprender o suficiente pra conseguir. E aí vou me juntar a alguém poderoso e organizado o bastante pra me ajudar. Nesse momento, parece que é o Dragão, se eu o encontrar.

Ele olhou para Seph.

  • O Leicester gosta de fazer as pessoas sentirem dor. Eu tenho sido uma fonte de entretenimento pra ele. Ele acha que vai me dobrar, no final. Ele tem tempo. Sou órfão que nem você. Ninguém liga pro que acontece comigo. Fique longe dele. Você, pelo menos, pode dizer a si mesmo que não tem certeza sobre o Trevor, porque você não tem. Se não puder fazer nada a respeito, é melhor não saber.

Jason se levantou e começou a andar de um lado para o outro, um gato na pequena jaula que era o quarto. Ele nunca conseguia ficar parado por muito tempo.

— Se o Trevor foi morto porque ia falar com o seu tutor, então o Leicester não queria que isso acontecesse. Aposto que toda a história sobre eles internarem você é falsa, e o Leicester está preocupado com o que poderia acontecer se você contatasse a firma. Talvez a firma seja a sua chave para sair daqui.

 

Com a morte de Trevor Hill, a velha culpa voltou. Trevor havia encontrado um meio de sobreviver no Porto Seguro até a chegada de Seph. Mesmo sendo Anaweir, ele havia arriscado tudo por Seph. Agora os pesadelos de Seph eram, em sua maioria, sobre Trevor.

Com a culpa veio um ódio por Leicester, que fumegava e ardia sob o peito como um incêndio numa mina sub­terrânea. Ele começou a usar o pingente de Trevor com a pedra-portal e a cruz de Maia. Imagens de vingança se alternavam com sonhos de fuga.

Seph seguiu os conselhos de Jason e manteve dis­tância dos outros alunos. Às vezes ele almoçava com Troy, Harrison, James e alguns dos outros, mas nunca aceitava os convites deles para jogar raquetebol ou tênis ou para ir assistir a filmes no auditório. Passava o tempo livre no quarto, lendo, ou perambulando pelo campus sozinho.

Seph fazia o melhor possível para projetar a imagem de estar quase sempre fora da realidade. Parou de cuidar da aparência. Os cabelos ficaram compridos e cheios de cachos por falta de corte, e raramente se penteava. Ainda tinha alucinações durante o dia; elas chegavam e iam embora sem aviso. Às vezes ficava ausente durante longos períodos.

Ele resmungava sozinho nos corredores, fugia de fan­tasmas e assistia às aulas como se estivesse num transe. Alguns dos outros alunos começaram a vê-lo como uma mosca capturada numa teia perigosa: chegue perto de­mais e pode acabar preso também. Por isso, deixavam-no completamente sozinho.

Por outro lado, os ex-alunos continuavam a manter um indesejável interesse em Seph. Aonde quer que ele fosse, surgia Warren Barber, oferecendo-lhe ajuda com a tarefa, downloads de música, pílulas, schnapps de hortelã e maconha "da boa" da América do Sul para acalmar os nervos de Seph. Bruce Hays e Aaron Hanlon o convidavam para comer com eles na sala de jantar dos ex-alunos ou se exercitar no centro de musculação no porão. Sob ordens de Leicester, sem dúvida.

Seph aceitava, na esperança de colher informações que pudessem ser úteis. Mas os ex-alunos eram mais resis­tentes à magia mental do que os Anaweirs.

Agora que sabia o que estava em jogo, Seph tomava extremo cuidado ao usar magia em público. Mantinha distância de Leicester, por medo de que o diretor pudesse ver a verdade em seus olhos. Ele e Jason passavam o maior tempo possível na biblioteca dos ex-alunos. Jason registrava toneladas de notas em uma minúscula agenda eletrônica, enquanto Seph usava seus conhecimentos de latim para decifrar os manuscritos em inglês medieval.

Passavam horas experimentando encantamentos nos cantos ocultos do campus, em geral feitiços de ataque, proteção e influência. Ganhando maior controle sobre o próprio corpo, Seph passou a emitir menos "faíscas", como Jason chamava as descargas involuntárias de poder. Quando Seph notava a tensão mágica se acumulando, encontrava meios de usá-la ou dissipá-la.

Jason era impulsivo e imprudente no que dizia respeito a experimentos mágicos. Ele lançava poderosas combina­ções de feitiços sem uma noção clara das conseqüências. Às vezes Seph se perguntava se Jason queria morrer.

Por sua vez, Seph tentava combinar o conceito de magia com matemática e física: a teleologia que ele sempre tomara como verdade. Pelo que sabia, a magia física era mais útil para gerar energia: luz, calor e correntes de ar, o movimento das moléculas que já eram frouxamente agrupadas.

O outro importante papel da magia era influenciar pes­soas. Como Jason dizia, os Anaweirs tinham pouca pro­teção contra os magos naquele aspecto.

— As mulheres Anaweirs não conseguem resistir aos magos. Todo aquele poder mal contido... Elas podem sentir, você sabe. O toque de um mago deixa as mulheres loucas. Esse tipo de magia física direta é chamado de persuasão. — Jason sorriu e entrelaçou os dedos atrás da cabeça. — Pode trazer grandes complicações.

Jason aparentemente se dava bem com aquele tipo de complicação.

Seph pensou nas meninas que lhe respondiam ao toque, ao poder que lhe escapava dos dedos. Ele não tinha usado aquilo inapropriadamente, tinha?

Sentia-se mais confortável com os feitiços falados, pois podia controlar melhor o resultado. Seph adorava a ca­dência da língua da magia. Ele saboreava os feitiços antigos, conjurando as palavras dos antigos magos. Às vezes as palavras vinham de dentro, como uma fonte borbulhando de um lago mais profundo. Nunca antes estivera tão convencido do poder da linguagem, o salto do símbolo para a realidade.

Ele percebia que Jason o observava quando tirava fei­tiços da página e os moldava, como chamas cintilando no ar.

— Você realmente tem o dom, Seph — disse Jason certa vez. — Você é mais poderoso do que jamais serei. Se encontrasse um professor, aposto que você conseguiria acabar com o Leicester.

O forte de Jason estava na área dos glamoures: imagens e visões ilusórias sem nenhum poder de fogo, exceto a capacidade de confundir, distrair, surpreender e assustar. E isso era o suficiente. Às vezes, na floresta, Seph acabava entrando em um dos sonhos febris de Jason Haley. Ele encontrara um grifo pastando nas samambaias, um fauno ou uma fênix empoleirada no galho de um carvalho, ou um grande navio passando pelas árvores, tripulado por sereias incrivelmente belas.

Seph perguntou sobre os Livros Weir.

  • Você tem um em algum lugar — disse Jason. — Foi criado pela Ordem dos Feiticeiros quando você nasceu e não pode ser destruído. Se puder encontrar o seu, vai ver que ele contém tudo o que você quer saber sobre a sua família.

Jason mostrou a Seph seu próprio Livro Weir. O nome de Jason estava gravado na última página, com os dos pais e avós. A genealogia remontava até o século X. Ele o mantinha trancando, protegido por uma série de feitiços complicados.

  • Ninguém quer que o Livro Weir caia nas mãos do inimigo. Com ele, eles saberiam o seu histórico, os seus pontos fortes e fracos.

Seph ficou fascinado com a idéia de que, em algum lugar, a história dele estava entre as capas de um livro. Se ao menos pudesse botar as mãos nele!

Pelo fim de abril, a primavera visitava o Porto Seguro em frustrantes idas e vindas. A neve derreteu, deixando manchas nos locais onde as nevascas mais fortes haviam ocorrido, e narcisos reluziam entre as árvores. Gregory Leicester tinha visitas também. Alguns carros alugados e outros com placas de outros estados apareceram no es­tacionamento, trazendo participantes para o que parecia ser uma série de pequenas reuniões. Certa manhã, Jason interceptou Seph no caminho para a aula, puxando-o para uma escadaria.

  • D'Orsay está aqui — sussurrou ele. — O Mestre de Jogos do Conselho. Vamos.

Em segundos, estavam ambos imperceptíveis, cruzando o terreno em velocidade, rumando para o prédio da admi­nistração.

Aquela era uma reunião bastante privada: apenas Leicester e D'Orsay, no escritório de Leicester no segundo andar, com Hays e Barber postados diante da porta como seguranças de um clube exclusivo. Seph e Jason tiveram de esperar no corredor por duas horas até Martin Hall chegar com o almoço. Eles conseguiram se esgueirar pela porta atrás de Hall quando ele empurrou o carrinho para dentro.

D'Orsay e Leicester estavam sentados à mesa junto à janela, os corpos tensos, os rostos rígidos, como um casal em briga interrompido no meio da disputa. Papéis estavam espalhados pela mesa, e havia um notebook entre eles.

Claude D'Orsay era um mago alto, com cabelo grisalho cortado bem rente e roupas feitas sob medida. Exibia uma pesada corrente de ouro ao pescoço, o emblema de seu posto entre os magos.

Quando a porta se fechou atrás de Martin, Leicester sussurrou:

  • Não posso acreditar que o Dragão seja assim tão difícil de achar. Ele publica mensagens novas todos os dias. Escute isso. — Leicester puxou o laptop para si e leu o que estava na tela. — "É de se perguntar que jogos o Mestre de Jogos anda jogando. Fontes informaram ao Dragão que D'Orsay marcou uma série de reuniões secretas em antecipação à Conferência das Ordens. Se você não recebeu um convite, sugiro que tome cuidado." De onde ele tira essas informações?
  • Suposições e especulação — sugeriu D'Orsay, beberi­cando o vinho.
  • É mesmo? Ele continua mencionando datas, partici­pantes e locais de três das reuniões.
  • Deixe-me ver isso.

D'Orsay girou a tela de modo que se voltasse para ele. Então praguejou baixinho e pegou um celular. Discou um número e falou em voz baixa e urgente. Jason deu uma cotovelada em Seph.

Quando D'Orsay guardou o telefone, Leicester disse:

  • O tempo está se esgotando para nós, Claude. Graças a ele, as duas Rosas estão assassinando uma à outra nas ruas. Quanto tempo até que elas venham atrás de nós? Ele sabe que estamos nos encontrando fora dos canais usuais. Você prometeu que o pegaria antes da Conferência.
  • Quase o pegamos em Londres. Vamos apanhá-lo da próxima vez. Nora Whitehead está trabalhando nisso.

Leicester franziu o cenho.

  • Nora? Isso é importante demais para confiar a ela. Por que você mesmo não está lidando com isso?
  • Eu estou lidando com isso. Nora trabalha para mim.
  • Ela não tem nenhuma chance, se tiver de enfrentá-lo num duelo. Se for quem pensamos que é, ele vai fazê-la em picadinho. E aí o que vai ser de nós?

Leicester não parecia tão preocupado com Nora quanto com a idéia de que a presa pudesse escapar.

D'Orsay deu um peteleco num fio solto imaginário em suas calças.

  • Não seja tão dramático. Não estou planejando um duelo. Não há ninguém que nós possamos mandar contra ele, um contra um.
  • O sujeito não tem família? Alguém que possamos usar para tirá-lo do esconderijo?
  • Ouvi dizer que todos foram assassinados há muito tempo — disse D'Orsay franzindo a testa, como se isso fosse bastante inconveniente. — Aparentemente, essa é a origem do fanatismo dele. Mas achamos que talvez tenhamos encontrado uma vulnerabilidade.
  • Uma vulnerabilidade? — Leicester arqueou uma sobrancelha, cético. — Qual?

D'Orsay olhou em volta, como se pudesse haver espiões escondidos dentro das paredes. Estava claro que a divul­gação daquela reunião o havia perturbado.

  • .. vamos ver no que isso dá. Vamos descobrir muito em breve.
    • Muito em breve? — Leicester revirou os olhos. — Investimos anos neste projeto. Eles já estão perto demais de você. Se nos rastrearem até aqui...

A expressão de D'Orsay mudou de desapontamento para irritação.

  • Diferentemente de você, tenho outras responsabili­dades. Enquanto você brinca de diretor de escola, eu estou tentando agradar sete outros lados, tentando evitar que todo esse esquema se desmonte. Lembre-se de que há vantagens em ter o Dragão por aí. Quando desaparecem objetos do Tesouro, ele sempre leva a culpa.

Ele se levantou e largou o guardanapo na mesa.

  • Ninguém quer apanhar o Dragão mais do que eu. Mas, no momento, eu preciso ir e remarcar três reuniões antes que nossos colegas caiam numa armadilha.

Os dois magos olharam-se com antipatia, emitindo leves faíscas.

  • Eu avisarei quando a lista estiver completa — disse D'Orsay, enfiando um maço de papéis numa valise.

Seph e Jason conseguiram se esgueirar para fora atrás de D'Orsay quando este saiu pela porta.

De volta ao quarto de Jason, este borbulhava de excitação e preocupação, andando de um lado para o outro.

  • Você ouviu aquilo? "Se você não recebeu um convite, sugiro que tome cuidado." E você escutou o D'Orsay? Eles não sabem quem mandar contra ele... Ele é bem poderoso. O Dragão opera com uma rede de espiões no mundo todo...
  • Você acha que eles sabem mesmo quem ele é? — indagou Seph. — Pareciam bem confiantes.
    • Eu ouvi boatos. — Jason deu de ombros. — Acho que o Dragão estaria morto a esta altura, se eles soubessem.
    • Então o Leicester tem internet — murmurou Seph para si mesmo, examinando uma pilha de CDs. — Ele deve ter uma rede sem fio no escritório, no mínimo.
      • Mas eles acham que têm uma informação sobre ele. — Jason se apoiou contra o batente da porta. — Eu queria ter um meio de avisar o Dragão.

Seph escolheu um CD e inseriu-o no aparelho de som.

  • Se eu conseguisse entrar no escritório do Leicester, aposto que eu poderia invadir o sistema dele.
  • Para avisar o Dragão?
    • Não. Pra mandar um e-mail à firma de advocacia e poder sair daqui. E não olhe para mim deste jeito. Não quero mesmo me envolver na, ahn, política dos magos, como você diz. Você não tem informações suficientes para avisar o Dragão, de qualquer jeito. O que você diria? "Tome cuidado, eles estão na sua cola? Fique de olho?"

Jason não estava realmente escutando.

—  Talvez seja hora de ir embora. Talvez eu possa sair e tentar encontrar o Dragão. Contar da reunião aqui, dos ex-alunos e tudo o mais. Ver o que ele descobre a partir disso. — Ele repuxou a orelha. — Por outro lado, posso ficar por aqui, ver o que mais consigo descobrir. Eu gostaria de saber quando vai ser essa Conferência das Ordens da qual eles estavam falando.

Seph agarrou-se à idéia de ir embora.

  • Como você passaria pelo muro?

Jason sorriu.

—  Acho que finalmente entendi aquilo. Barber é o ar­quiteto. Eu o ouvi se gabando disso quando eu estava espionando na sala de jantar dos ex-alunos. Aí eu revirei o quarto dele e achei alguns livros sobre o assunto.

  • Como é que funciona?
  • É um muro real, físico, recoberto com feitiços de confusão. Por isso ninguém consegue se concentrar o suficiente pra passar por cima ou dar a volta. Eu juntei uns contra-feitiços que devem funcionar.
  • Devem funcionar — disse Seph com ceticismo. — Então vamos tentar.

Jason sacudiu a cabeça.

  • Não quero dar bandeira para o Leicester antes de estar pronto pra ir embora.
    • Se você pode ir embora, então deve ir de uma vez. Antes que alguma coisa aconteça.
  • Eu realmente não ligo para o que acontecer comigo. Desde que eu pegue o Leicester.

Jason acabou decidindo permanecer por mais algum tempo para tentar juntar mais notícias que pudesse levar ao Dragão. Mas Leicester e D'Orsay não se encontraram novamente.

Algumas semanas mais tarde, em certa noite de meados de maio, Seph levou seu equipamento de musculação para a Casa dos Ex-Alunos, com a intenção de encontrar Jason, a fim de estudarem alguns livros que haviam tirado da biblioteca. Ele jantou com Martin e Peter, depois passou pelo salão e foi para a escadaria. Deu uma olhada rápida em torno e pronunciou o feitiço de imperceptibili­dade. Naquele momento, a porta atrás dele se escancarou.

Era Warren Barber. Ele devia ter seguido Seph desde o salão. Barber olhou em redor, perplexo. Seph acabara de passar pela porta, e agora havia sumido. Seph se perguntou se Barber ouvira-o dizer a parte final do feitiço.

Barber ficou imóvel por um momento, escutando, então desceu as escadas a passos largos com Seph seguindo-o como um fantasma. Quando Barber chegou ao porão, olhou de um lado para o outro do corredor vazio. Seph entrou na sala de musculação. No momento seguinte, quando Barber abriu a porta, Seph havia desativado o feitiço e estava ajustando os pesos do aparelho de remo seco. Felizmente, não havia mais ninguém lá.

  • O que você está fazendo aqui? — indagou Barber, vasculhando a sala, as sobrancelhas pálidas franzidas juntas numa expressão de desconfiança.

Seph travou os pesos no lugar e olhou para Barber, arqueando uma sobrancelha.

  • .. hummm... malhando?

Barber se apoiou contra o batente da porta e acendeu um cigarro.

  • É? Bom, não está ajudando. Você parece um saco de ossos.

Seph deu de ombros.

  • Me ajuda a dormir.
  • Eu tenho coisas que vão ajudar você a dormir. Do que você precisa?
  • Não, obrigado.

Barber soltou uma baforada de fumaça.

  • O que você está tentando provar?

Seph parou de lutar contra o aparelho e voltou-se para encarar Barber.

  • Não entendo. Por que isso é tão importante pra você? Você ganha um bônus se eu me conectar ao Leicester?
  • É mais porque ele vai tornar nossa vida um inferno até você se conectar.

Cuidado. Você não sabe de nada.

  • Por que ele quer tanto isso? — indagou Seph. — Não, falando sério — acrescentou ele quando Barber revirou os olhos. — Eu quero saber.
  • Você não passa de um garoto rico de sangue azul. Acha que pode recusar o convite do dr. Leicester como se ele tivesse convidado você pra uma festa. Ele não vai aceitar um não como resposta. Se não puder usar você, vai destruí-lo.

Barber apagou o cigarro, girou nos calcanhares e saiu.

Seph esperou por meia hora. Quando espiou o corredor, não havia sinal de Barber nem de mais ninguém. Ele seguiu pelo corredor até o quarto de Jason.

—  Desculpe o atraso — disse Seph depois que Jason fechou a porta atrás dele. — O Barber quase me pegou.

Seph explicou o que acontecera enquanto Jason tirava livros e papéis de uma cadeira para que o visitante pu­desse se sentar.

Jason tirou duas latas de refrigerante da geladeira e passou uma para Seph.

—  Ele acreditou em você? — perguntou Jason, fran­zindo a testa

  • Acho que sim. Quer dizer, ele saiu meia hora atrás.

Jason começou a dizer algo mais, mas então ergueu a cabeça bruscamente e o sangue fugiu-lhe do rosto.

  • Estamos ferrados!

Ele estendeu o braço em direção a Seph, lançando um feitiço de imperceptibilidade. No mesmo instante, a porta se escancarou, a tranca caindo no ladrilho com um som abafado. Gregory Leicester estava à porta.

—  Dr. Leicester — disse Jason, quase engasgando com as palavras. — Não ouvi o senhor bater.

—  Olá, Jason — disse o diretor, o olhar vagando pelo quarto, pousando nas duas garrafas de refrigerante ainda sobre a mesa, nas pilhas de livros e papéis na escriva­ninha.

Ele ficou onde estava, bloqueando o espaço da entrada, como que para impedir qualquer tentativa de fuga.

Jason e Gregory Leicester se encararam. O ar treme- luziu com a tensão entre eles. Jason estava mortalmente pálido.

  • Jason, o que você sabe sobre Joseph McCauley? — A voz mesclava fogo e gelo, magia e ameaça.

Jason remexeu no brinco, franzindo a testa, fingindo esforçar-se para se lembrar.

  • Ele é aquele de quem o senhor me falou, certo? Ele passou um bocado de tempo neste prédio durante as férias de inverno. Acho que o vi na sala de musculação.
  • Nós temos trabalhado nele o ano inteiro, mas não estamos fazendo o progresso que esperávamos. Ele está tendo alucinações. Ilusões. Demonstrando sintomas pe­rigosos. Mas recusa a nossa ajuda. E agora houve uma mudança no comportamento dele que me faz pensar que ele tem passado tempo com você. — A voz era gentil na superfície, mas havia aço por baixo. — Você se lembra da nossa discussão sobre a sua influência negativa nos outros rapazes?
  • Não sou bobo.
  • Espero que não esteja enchendo a cabeça dele com um monte de conversas sobre conspirações — continuou Leicester. — Ele está extremamente vulnerável agora.

Jason fitou o chão. Não disse nada.

  • Já se esqueceu das conseqüências sobre as quais conversamos, tanto para você quanto pra ele?
    • Não esqueci — respondeu Jason. Ele olhou Leicester nos olhos. — Pode acreditar.
  • Ótimo — disse Leicester com suavidade.

Leicester deu outra olhada no quarto, depois foi embora.

Seph suspirou.

  • Graças a Deus — disse ele, meio em voz alta.

Seph contou até cinco, então desativou o feitiço. Jason não parecia aliviado. Estava ainda sentado na beirada da cama, fitando o nada. O rosto tinha uma cor pastosa, e ele tremia.

  • Bem, essa foi por pouco — disse Seph.

Jason ergueu os olhos como se houvesse despertado subitamente de um devaneio.

  • Isso não foi por pouco, Seph. Foi bem no alvo.

Ele se levantou e foi até o armário, vasculhando o interior e retirando uma mochila. Puxou o zíper e abriu-a sobre a cama.

  • O que está fazendo?
  • Tenho de sair daqui.
    • O quê?
    • Ele sabia que você estava no quarto, Seph. Barber deve ter ido buscar ele assim que saiu do centro de musculação. Todo aquele negócio sobre a sua condição delicada... Aquilo foi para você ouvir.

Jason enfiou seu Livro Weir na mochila, com a agenda e as anotações da biblioteca.

Seph observou o amigo fazendo as malas. Estava le­vando bem pouco: uma fotografia de uma mulher numa moldura, uma blusa.

  • Como você sabe?
  • Vai por mim. Nós nunca tivemos uma conversa como essa. Nunca! — Jason fechou o zíper da mochila. — Se você não estivesse aqui, eu provavelmente estaria morto agora. Ele não tem certeza do quanto você sabe. Ele tem esperanças de que eu não tenha arruinado você. Do jeito que as coisas estão, eles provavelmente vêm me pegar hoje à noite. Vão esperar até que você esteja no seu quarto.

Seph sentou-se de novo na cadeira.

—  Vou ficar aqui, então.

Jason riu.

—  Você é inacreditável, sabia? Vai por mim, você não quer fazer isso. Além disso, estou caindo fora.

  • Então eu vou com você.

Jason balançou a cabeça.

  • Não. Você está mais seguro aqui do que estaria comigo. Eles devem estar esperando por mim, mas não vão matar você enquanto acharem que podem convencê-lo. Faça com que eles continuem pensando assim.

Seph procurou uma alternativa.

  • Estamos estudando magia de ataque há meses. Podemos derrotá-lo, se trabalharmos juntos.
  • Olha, cara, estou lisonjeado. É você que tem o talento. Sou esperto pra danar, mas simplesmente não sou tão po­deroso assim. Seriam dois contra 16, e eles têm treinado há anos. O Leicester canaliza os outros de algum modo. Não temos chance nenhuma. Não vou causar a morte de mais ninguém.

—  Prefiro morrer a ficar aqui.

Jason sacudiu a cabeça.

  • Escute, você é durão. Você se agüentou sozinho por quatro meses, lembra? Eu ainda não sei como conseguiu. E agora você tem a dyrne seja. — Ele fez uma pausa. — Olha, se eu sair, tiro você daqui. Prometo. Vou contatar a firma de advocacia, o que precisar.

Seph engoliu em seco.

  • Sinto muito, Jason. Fui eu quem fez você ser desco­berto. Primeiro o Trevor, e agora você.
  • Seph, receio que eu não tenha orientado você de maneira apropriada para o seu novo papel.
  • Como assim?

Jason sorriu.

  • Magos nunca se desculpam... a respeito de nada. — Jason lhe deu um rápido abraço. — O que quer que aconteça, foi bom conhecer você, Seph. Nunca pense diferente.

Seph ficou sem fala por um momento, a garganta blo­queada pela tristeza. Então perguntou:

  • Aonde você vai? Como posso encontrar você?
    • Se você sair, procure pelo Dragão. Se não conseguir sair, virei atrás do Leicester, mais cedo ou mais tarde.

Ele vestiu a jaqueta, pendurou a mochila nas costas, pronunciou um feitiço e desapareceu.

 

                   Medidas Extremas

O ritmo normal de vida no Porto Seguro, após a partida de Jason, continuou para todos, com exceção de Seph. Para a maioria dos alunos, Jason jamais existira, de modo que ninguém notou sua ausência.

Os dias se passaram e não houve notícias dele, nem a firma de advocacia deu indicação de ter sido contatada. Seph estava cada vez mais preocupado. Será que Jason tinha conseguido passar pelo muro? Não obteve nenhuma pista de Leicester nem dos ex-alunos. Eles não lhe fizeram nenhuma pergunta sobre o desaparecimento de Jason, o que Seph encarou como um mau sinal.

Seph continuou a visitar a biblioteca dos ex-alunos, mas era um gesto inútil. Não parecia haver futuro naquilo, nenhum objetivo para a magia que ele guardava na me­mória. Seph sentia-se mais sozinho do que antes. Jason havia sido seu primeiro professor de magia.

Seu único professor.

O clima continuava a esquentar. Os alunos se agru­pavam sob os pavilhões no intervalo das aulas, discutindo ansiosamente os planos para o verão. Frisbees voavam sobre as pequenas áreas gramadas, e as regras de ves­tuário da escola eram desafiadas todos os dias. Seph verificava o correio regularmente, na esperança de pelo menos ter notícias da firma sobre a programação de verão.

Certa tarde, após a aula, Gregory Leicester chamou Seph a seu escritório. Seph foi com relutância. Supunha que uma audiência com Leicester não poderia lhe trazer boas notícias. Tinha razão.

O diretor afastou-se do computador quando Seph entrou.

  • Entre, Joseph — disse ele. — Sente-se.

Ele fez um gesto em direção à mesma mesa a que se haviam sentado na noite da chegada de Seph. Seph empoleirou-se na beira do assento, apoiando as palmas nos braços da cadeira como se estivesse pronto para decolar. Leicester sentou-se do outro lado da mesa.

  • Estamos preocupados, Joseph — disse ele. — Eu tinha esperanças de que a deterioração contínua o con­venceria a cooperar, a submeter-se ao tratamento.

Seph fixou o olhar sobre os ombros de Leicester, mi­rando o horizonte.

  • Não preciso de tratamento. Preciso de treinamento.

Leicester sacudiu a cabeça, como se a idéia fosse absurda.

  • Não posso me arriscar a treinar um mago que esteja tão fora de controle. Seria como dar um lança-chamas a uma criança. Você precisa de limites e de cuidadosa orien­tação, a fim de desenvolver seus poderes com segurança.
    • Deixe-me ir, então. Eu encontro alguém.

Leicester suspirou.

  • Acho que é hora de mudarmos a nossa abordagem. Vou pedir ao seu tutor para deixar você aqui conosco durante o verão. Terei mais tempo, então, e você não estará em aula. Vamos lidar com os seus problemas, nós dois juntos, Joseph. Vamos fazer um pouco de terapia individual intensiva, um pouco de imagística orientada. O que acha disso?

Seph podia imaginar que tipo de imagens Leicester compartilharia com ele. E, com o mago presente, ele não poderia usar o talismã.

Sem dúvida Houghton concordaria com a proposta de Leicester. Os advogados ficariam contentes por não ter de encontrar um lugar para ele passar o verão.

A menos que Jason chegasse a eles primeiro. Seph ainda cultivava aquela esperança, embora ela fosse cada vez mais tênue.

Duas semanas antes do fim do semestre, Seph decidiu que não podia esperar mais por Jason e que devia tentar contatar novamente a firma de advocacia por conta pró­pria. Para isso, precisaria invadir o escritório de Gregory Leicester. Se algum computador tinha acesso irrestrito ao mundo exterior, seria o dele.

Seph passou a vigiar os movimentos do diretor. Às vezes Leicester trabalhava no escritório até tarde da noite. Normalmente, porém, ia até o prédio dos ex-alunos para jantar por volta das oito horas. Por várias noites conse­cutivas, Seph marcou a saída dele do prédio da adminis­tração, a chegada na Casa dos Ex-Alunos, a caminhada de volta ao escritório. Leicester sempre passava pelo menos uma hora fora, às vezes uma hora e meia. Era tempo suficiente.

Nas escolas em que estudara anteriormente, Seph ficara famoso por ser um tipo de hacker. Achava que provavel­mente conseguiria invadir o sistema de e-mails da escola, dependendo do provedor, do sistema operacional e do nível de segurança. Talvez fosse até capaz de entrar no sistema pela "porta da frente", sem quebrar o código, se Leicester fosse negligente com suas senhas. O que ele talvez fosse. Esse tipo de ataque talvez não fosse esperado em um lugar como o Porto Seguro, onde a magia era a arma preferida.

Ele escolheu uma noite de domingo, no fim de maio. Sentado na ponta da doca, voltado para o lado, podia vigiar a atividade no prédio da administração. O escritório estava iluminado, e Seph podia ver Gregory Leicester à escrivaninha, de frente para o porto.

Por volta das 19h45, Leicester vestiu um casaco e apagou as luzes do escritório. Seph deixou a doca e deu a volta pela frente do edifício, pronunciando um feitiço de imperceptibilidade quando alcançou a sombra na lateral do prédio. Leicester saiu pela porta da frente, as botas esmagando o cascalho do estacionamento. Estava a ca­minho da Casa dos Ex-Alunos.

Seph virou a esquina e entrou no prédio da adminis­tração. Imperceptível, passou pela lanchonete onde os alunos ainda estavam comendo a sobremesa e subiu os degraus para o segundo andar. Cruzando o corredor escuro, tentou abrir a porta do escritório de Leicester.

Estava destrancada. Ele ficou escutando por um longo instante e, como não ouviu nada, entrou e fechou a porta atrás de si.

Ele só queria resolver tudo o mais rápido possível. Foi até o computador e sentou-se à mesa. Apertou uma tecla; a tela se iluminou. Leicester havia saído do sistema, mas deixara o computador ligado. O nome do usuário era gleicester.

Seph conectou seu pen drive à porta USB e executou o programa que havia escrito anteriormente no computador em seu quarto. O programa começou a testar senhas rapidamente. Enquanto aguardava, Seph deu uma busca nas gavetas, que estavam quase vazias. Olhou para o telefone sobre a escrivaninha, mas decidiu não tentar uma chamada externa. A firma estaria fechada àquela hora de qualquer maneira. Estava remexendo os armários de arquivos quando ouviu o computador passando pela rotina de inicialização. Estava "dentro".

Seph abriu o navegador, depois digitou a URL de uma empresa de busca na internet que oferecia serviço de e-mails gratuito. Em poucos minutos, ele registrou uma nova conta e um nome de usuário. Sabia que não enga­naria ninguém, se fosse descoberto. Tudo o que Leicester teria de fazer era ver o destino da mensagem. Mas pelo menos aquilo poderia impedir que qualquer mensagem de resposta chegasse ao diretor. Ele entrou na conta sob seu novo nome, Dragão.

Os dedos de Seph voavam por sobre o teclado. Ele digitou o endereço de e-mail do portal da firma de advo­cacia e acessou o livro de endereços on-line desta. Seleci­onou todas as caixas de e-mails pessoais da lista, Sloane, Smythe, Houghton e todos os outros sócios.

  1. HOUGHTON E SÓCIOS: Estou sendo mantido prisioneiro aqui na escola Porto Seguro no Maine. Informaram-me de que a sua firma me internou legalmente para tratamento mental, mas não me permitiram con­firmar isso com os senhores. Embora eu tenha escrito a vocês pelo correio diversas vezes, não recebi nenhuma resposta. Não me é permitido acesso ao telefone ou a e-mails.

Tenho sido submetido a terríveis torturas emocionais e mentais desde minha chegada em setembro, o que não agüento mais. Se não houver nenhuma resposta a este e-mail dentro de três dias, eu vou me matar. Falo com toda a seriedade. JOSEPH MCCAULEY

A propósito: Não respondam a este e-mail. Não tele­fonem. Venham pessoalmente e não vão embora sem me ver.

Ele examinou o e-mail e ficou satisfeito. Nenhum advogado podia deixar de responder a uma mensagem daquelas. Respirou fundo, trêmulo, e clicou no botão de enviar. Um aviso apareceu. SUA MENSAGEM FOI ENVIADA. Estava feito.

Sabia que devia partir, mas o programa de correio de Leicester era tentador. Talvez ele descobrisse alguma menção a Jason ou ao Dragão, ou a outras partes da conspiração que Jason descrevera. Ele abriu o programa de correio e rolou o texto da caixa de entrada para baixo. Ali havia alguma coisa: RE: ARQUIVOS ENCONTRADOS NA BASE DE LONDRES DO DRAGÃO, uma mensagem enviada por D'Orsay.

Naquele momento, Seph ouviu uma porta bater e pés se aproximando. As luzes se acenderam na ante-sala do escritório. Com o coração acelerado, ele saiu do programa de correio e da conta, deixando a área de trabalho como a encontrara. Saltou da cadeira e foi até a porta, comprimindo-se contra a parede.

Era Leicester, é claro, de volta do jantar. O diretor atirou uma pasta na escrivaninha e sentou-se ao computador. Seph esgueirou-se até a porta e saiu. Estava no centro da antessala quando se lembrou de que havia deixado o pen drive conectado à porta do computador de Leicester. Pensou em recuperá-lo mais tarde, mas decidiu não fazê-lo. Não havia nada que o ligasse a Seph especificamente. Seria menos arriscado deixá-lo do que tentar recuperá-lo, imperceptível ou não.

Passou pela série de escritórios e desceu as escadas. Alguns minutos mais tarde, ele estava a caminho do dormitório, uma sombra entre muitas na escuridão sob as árvores.

 

Passava um pouco das seis horas da manhã de terça-feira quando vieram buscá-lo. Seph ainda estava na cama, mas ele tinha o sono leve agora, sempre que não usava o portal. Acordou ao ouvir a chave girar na fechadura. Ele havia fechado a tranca, o que lhe deu tempo de garantir que a pedra portal estivesse dentro da camisa antes de a porta se escancarar. Eram Warren Barber e Bruce Hays.

Seph se apoiou nos cotovelos.

  • O que está acontecendo?
  • Em pé, Joseph — disse Warren. — Precisa vir com a gente.
  • Estou atrasado pra alguma coisa? — Seph olhou de um para o outro em busca de uma pista. Eles haviam as­sumido aquela expressão impassível, como se seus rostos fossem de pedra. Seph virou as pernas para o lado da cama e pôs os pés no chão. — Tudo bem se eu me vestir?

Eles recuaram para deixá-lo sair da cama e ficaram esperando enquanto ele vestia os jeans e achava os sa­patos e as meias do dia anterior sob a cama. Como eles estavam usando casacos, Seph vestiu uma blusa. Algo lhe disse que eles não esperariam até que escovasse os dentes. Correu uma mão pelo cabelo desgrenhado e disse:

Warren e Bruce, cada um segurando-lhe um braço, empurraram-no pela porta e escada abaixo. Uma vez lá fora, eles o guiaram até o prédio da administração.

Seph decidiu tentar de novo.

  • O que está rolando?
  • Eu tentei avisá-lo, Joseph — disse Warren.

Devia ser o e-mail, pensou Seph. A menos que fosse Jason. A pergunta crucial era se a firma de advocacia havia respondido ou não. Ocorreu-lhe que aquele dia po­deria trazer ou uma grande melhora ou uma deterioração dramática em suas possibilidades.

Não havia muitos alunos no campus àquela hora, exceto por algumas almas audazes que rumavam para o ginásio de esportes. O ar era ameno, o céu estava pálido e a luz se intensificava. Uma leve névoa pairava sobre o porto. Seria um lindo dia. Para alguém.

Seph e sua escolta entraram no prédio da administração e subiram pela escadaria até o segundo andar. Eles o levaram diretamente ao escritório de Gregory Leicester e o empurraram para dentro.

Leicester estava próximo à magnífica janela, com as mãos entrelaçadas às costas, observando o sol nascer sobre as águas. John Hughes estava sentado em frente ao PC de Leicester, digitando comandos freneticamente. Hughes era um dos ex-alunos, um homem corpulento com 20 e tantos anos de idade e um princípio de calvície. Ele ocupava a função de administrador de sistemas da escola.

Era o e-mail, então.

Warren pigarreou, nervoso.

  • Aqui está o Joseph.

Leicester não olhou para eles, voltando-se em vez disso para Hughes.

—  E então?

Hughes deu meia-volta na cadeira e sacudiu a cabeça.

  • Alguns deles já foram abertos. Foram enviados na noite de domingo. Nenhuma resposta.

Hughes olhou rapidamente para Seph, depois desviou o olhar.

—  Certo. — Leicester suspirou e encarou o mar de novo por um instante, depois se virou para o trio na entrada. — Então, Joseph. Parece que você cometeu um erro.

Seph se lembrou do conselho de Jason. Você precisa continuar parecendo assustado e estúpido. Tentou bancar o estúpido.

  • Já? — Ele ergueu os ombros de leve. — Eu mal saí da cama.

A mão de Leicester se ergueu. O golpe veio tão rápido que Seph não teve tempo para reagir. Um golpe de ar atingiu-o em cheio no rosto como se fosse um punho e jogou-o para trás contra a porta, os pés literalmente saindo do chão. A cabeça chocou-se com força contra o batente antes de Seph deslizar para o chão. O olho direito nadava em lágrimas, e ele sentiu o gosto de sangue na boca, onde o lábio se cortara. Limpou o nariz com as costas da mão, e esta ficou coberta de sangue.

Ele ergueu os olhos e viu que Leicester não havia se movido de sua posição próximo à janela. Warren e Bruce haviam se separado um para cada lado, fora da área de alcance.

Leicester estendeu a mão na direção dele mais uma vez. O golpe seguinte pegou Seph logo abaixo das costelas, jogando-o contra a parede e arrancando-lhe todo o ar. Ele rolou, tentando rastejar para fora dali, mas o terceiro golpe atingiu-o em cheio nas costas. Cada golpe parecia uma marreta contra carne e osso. Seph dobrou-se no chão, encolhendo-se para se expor menos. Depois de mais dois golpes, ele se perguntou se Leicester tinha a intenção de espancá-lo até a morte.

Seph lutou para forçar o ar de volta aos pulmões. Doía respirar, e ele suspeitava que as costelas estivessem que­bradas. Leicester aproximou-se e falou a Seph, que estava no chão, lá de cima de sua altura descomunal.

— Quem você pensa que eu sou? Um diretor de colégio? — Ele cuspiu as palavras com desdém. — Achou que ia receber uma detenção? — A voz crescia em volume a cada frase.

Apesar da dor, Seph conseguiu se colocar numa posição parcialmente sentada, apoiando-se contra a parede. Sa­cudiu a cabeça, tentando clarear os pensamentos, lan­çando sangue num pequeno arco. O lábio inchava, e todo o lado direito do rosto parecia dormente, o que provavel­mente era uma bênção. As pernas formigavam, e ele se perguntou se a medula espinhal havia sido atingida pelo golpe nas costas.

  • Por que não me deixa ir embora? — sussurrou ele.
    • Ninguém sai do Porto Seguro sem minha permissão. Você devia saber disso a essa altura.

Seph sabia que deveria ficar quieto, mas não conseguiu se conter.

  • Jason Haley foi embora — disse ele.
    • Ah, sim. Jason Haley deixou o Porto Seguro, de fato. — Leicester sorriu. — Você achou que eu deixaria que ele saísse vivo?

Era um daqueles momentos em que o corpo parece agir sem ouvir o conselho ou esperar a aprovação da mente consciente. Seph McCauley apoiou-se nas pernas trêmulas e lançou-se contra Gregory Leicester. Atingiu-o com força no estômago. Foi como bater num muro de concreto, mas Seph conseguiu encaixar pelo menos dois bons socos antes que Leicester lhe pregasse os braços aos flancos com um braço enorme e lhe envolvesse o pescoço com o outro, cortando-lhe o suprimento de ar. Leicester aumentou a pressão até que pontos negros começassem a aparecer diante dos olhos de Seph, então relaxou o bastante para impedir que Seph desmaiasse por completo.

Assim que Seph reuniu ar suficiente, lançou um dos feitiços de ataque que ele e Jason haviam memorizado na biblioteca. Mas foi interrompido no meio da frase por uma dor excruciante como um choque, que lhe incendiou o corpo e deixou-o inerte e trêmulo ao, finalmente, acabar.

  • Não seja idiota — disse Leicester.

Mas a raiva de Seph o tornara imprudente.

  • É melhor me matar — arquejou. — Porque, se não me matar, eu juro que mato você.

Leicester falou-lhe ao ouvido:

  • Por que eu mataria você, Joseph, quando tenho tantas outras opções? — Ele riu com suavidade. — Você acha que tem tido sonhos? Eu posso dar a você um pesadelo que dure uma semana. Ora, eu posso dar a você um pesadelo que dure o resto da vida. Chamamos isso de enlouquecer. A pergunta é se precisamos manter você por aqui no caso de alguém responder à sua mensagem. Acho que não. Você não vai estar em condições de falar com eles, de qualquer maneira. Você ameaçou se matar, Joseph, e acho que você vai ter sucesso. Vai deixar de existir no que concerne à firma de advocacia. Pense nisso. Teremos você só para nós. Pelo tempo de vida de um mago. Sem mais burocracia, sem mais correspondência irritante indo e vindo. — Ele tocou o rosto ferido de Seph, correndo o polegar pela linha do queixo. — Nenhuma necessidade de manter você bonitinho no caso de alguém vir visitar.

Leicester segurou-o com mais força e lançou um feitiço. As chamas atravessaram Seph mais uma vez, e ele gritou; todos os músculos se contorceram num espasmo de dor. Ele não saberia dizer quanto tempo aquilo levou, mas Leicester largou-o de repente, e Seph caiu ao chão como uma boneca de pano, gemendo, sugando ar em desespero.

— Finalmente talvez você esteja começando a entender. Veja como tenho me contido. Agora não precisamos mais de luvas de pelica. Não vou cometer o mesmo erro que cometi com o Jason. Você vai implorar pela oportunidade de me dar o que tem. Prometo não me apressar. Vamos aprender muito, você e eu, sobre as suas capacidades. Você tem sido um osso duro de roer, moleque. Agora vamos descobrir quão duro você é.

Seph ficou caído com o rosto contra a madeira envernizada, a respiração saindo em arfadas irregulares, o co­ração martelando nos ouvidos. A pele estava escorregadia de suor, e ele tremia. Só conseguia pensar em uma saída para a situação dele: tinha de achar um meio de fazer com que Leicester o matasse.

Gradualmente, tomou consciência de uma agitação na ante-sala. Vozes altas, como em uma discussão. Seph virou a cabeça de leve para poder enxergar. Leicester se voltou para a porta. Peter Conroy entrou no escritório e falou, baixinho e com urgência, com Leicester. O diretor escutou, mantendo os olhos em Seph. Ele assentiu com a cabeça, disse algumas palavras, e Conroy saiu de novo.

Leicester ergueu uma cadeira estofada como se não pesasse nada e colocou-a diante da porta. Então passou as mãos sob os braços de Seph e arrastou-o até ela. Seph mordeu o lábio para impedir-se de berrar. Tentou refugiar-se na cadeira, enroscar-se em torno de seus muitos machucados como um animal ferido. Mas o diretor agarrou-lhe o queixo com força e ergueu-lhe a cabeça, de modo que Seph não tinha escolha a não ser olhá-lo nos olhos.

  • Parece que há uma resposta para a sua mensagem. A firma mandou alguém para investigar a sua situação.

Leicester deixou as mãos quentes caírem sobre os om­bros de Seph. O poder atravessou-lhe o corpo de novo, mas de modo diferente, extraindo-lhe a força dos mús­culos e dos ossos, deixando-o totalmente consciente, mas indefeso: fraco demais para levantar a cabeça. Um feitiço de imobilização. Seph não conseguia falar, nem mover um músculo sequer.

Leicester arranjou o corpo de Seph na cadeira, sem nenhum esforço para ser delicado. Afastou os cachos de Seph de cima dos olhos e examinou-o, aparentemente satisfeito.

  • Agora você pode escutar enquanto eu a despacho. — Ele fez uma pausa. — E, quando eu voltar, prometo fazer você desejar nunca ter nascido.

Leicester saiu da sala, seguido pelos três ex-alunos.

Então a firma havia enviado uma mulher. Seph torcera para que mandassem alguém que ele conhecesse, nem que fosse Denis Houghton. Ele não conhecia nenhuma mulher que fosse sócia da firma. Seph engoliu seu de­sespero. Aqueles magos poderiam enganar ou dominar qualquer advogado. Ele não queria ter de ouvir.

O grupo do lado de fora devia ter se movido para mais perto da porta, ou talvez Leicester tivesse usado de algum estratagema, pois de repente as vozes soaram claras. Primeiro uma voz de mulher.

  • Nós recebemos a mensagem dele em nossos escritó­rios no domingo à noite. Não saio daqui sem conversar com ele.
  • Receio que isso não seja possível no momento — replicou Leicester.
  • Como assim? — indagou a mulher.
  • O Joseph desapareceu. Ninguém o viu desde o jantar ontem à noite. Ele deixou isto no quarto dele.

Houve um breve silêncio, como se a mulher estivesse lendo algo.

  • Isso não parece coisa dele. Como sabe que foi ele que escreveu?
  • Estava no quarto dele, srta...
  • Downey — disse a mulher.
  • A senhorita é parente dele? — indagou Leicester, como um legista procurando o parente mais próximo.
    • Sou a tutora do rapaz — disse a mulher. — Isso é tudo o que o senhor precisa saber. Não consigo entender como o senhor pode ter perdido o meu pupilo de um dia para o outro.
  • Um dos barcos desapareceu — disse Leicester. — Ele deve ter saído com ele na noite passada.
    • Acho isso difícil de acreditar — respondeu a mulher. — Seph nunca gostou do mar.

Havia algo estranhamente convincente naquela voz. Era como uma canção que não se consegue tirar da cabeça. Seph estranhou o fato de ela usar seu apelido e a con­fiança que demonstrava ao falar sobre ele. Ela havia alegado ser a sua tutora. Mas Denis Houghton era seu tutor. Downey? Ele nunca ouvira aquele nome antes.

  • Por que não chamou a polícia? — indagou ela. — Por que não nos telefonou antes?
    • Nós acabamos de descobrir que ele está desaparecido. Estamos efetuando uma busca. Não era incomum ele desaparecer por horas. Ele gostava de caminhar na floresta — explicou Leicester, já se referindo a Seph no passado.
  • Primeiro o senhor sugere que ele saiu de barco no escuro, agora o senhor me diz que ele passa as noites caminhando pela floresta. Os seus alunos nunca ficam na cama?

A mulher era persistente, mas isso não adiantaria. Ela não tinha como forçá-los a apresentá-lo, se alegavam que ele estava sumido. E Seph sabia que jamais seria encontrado.

  • Por que não vem comigo até a lanchonete e tomamos um café? — sugeriu Leicester. — As equipes de busca voltarão aqui para trazer os informes. Assim que tivermos qualquer notícia...
  • O Seph disse que o senhor não nos deixaria vê-lo. Disse que o senhor o estava mantendo prisioneiro aqui.

Seph quase pôde ver Leicester dando de ombros.

  • Não sei de onde ele tirou essas idéias. Francamente, srta. Downey, temos feito o melhor possível para lidar com o Joseph. Dá pra ver pelo bilhete que ele deixou que ele é instável. Na verdade, chegamos à conclusão de que ele é psicótico. Mas não nos disseram nada disso quando o admitimos aqui.
  • O senhor fala como se ele tivesse sido um problema desde setembro — disse ela. O som de papéis sendo folheados chegou até Seph. — Eu tenho todos os relatórios de avaliação dele que vocês me enviaram, e eles não sugerem nada desse tipo.

Muito em breve, a festa chegaria ao fim. Eles a levariam para fora do escritório, para a lanchonete lá embaixo. Então eles o enfiariam em algum lugar fora do caminho, e aquela oportunidade estaria perdida. Ele havia sacrificado tanto, talvez tudo, para conseguir que a firma mandasse alguém resgatá-lo!

Não posso deixar que ela vá embora sem me ver, disse ele a si mesmo. Tentou se mover, dobrar um dedo, mas nada aconteceu. A frustração cresceu dentro dele, depois uma outra sensação, mais familiar. Focalizou sua atenção na porta, concentrando-se, forçando a energia para as ex­tremidades. E então aconteceu. Uma cascata de chamas azuis irrompeu de seus dedos e derrubou a porta entre os escritórios com um estampido igual a um tiro de revólver.

Houve um breve silêncio atônito.

  • Que diabos foi isso? — gritou a mulher.

Um clamor de vozes irrompeu. Explicações e protestos. Alguém apareceu à entrada.

Ela era pequena, com os cabelos curtos e em camadas, como prata e ouro tramados juntos. Vestia um conjunto preto sob medida, com uma saia bem curta, e tinha pernas incrivelmente longas para uma pessoa tão pe­quena. Quando ela se moveu, Seph achou impossível desviar o olhar. Ela parecia cintilar, espalhando faíscas em todas as direções. Não se parecia com nenhuma advogada que Seph já houvesse visto.

  • Graças a Deus — disse ela.

Ele percebeu que ela o reconhecera de imediato. Ela se livrou de Leicester e aproximou-se dele. Os outros a seguiram como a cauda de um cometa. Warren e Bruce trombaram um com o outro na ânsia de chegar perto dela.

Aquele foi um momento deliciosamente embaraçoso: os magos, a mulher, o perdido e subitamente encontrado Seph. De sua parte, Gregory Leicester parecia prestes a assassinar Seph, naquele mesmo instante e local, apesar das testemunhas e da representante da firma.

Os olhos da mulher não saíam do rosto de Seph. Agora que ela estava mais perto, ele viu que eles eram de um azul profundo arroxeado, com pontos dourados.

  • Meu Deus, o que eles fizeram com você?

Seph estava louco para responder, mas tudo o que conseguia fazer era encará-la, indefeso.

Gregory Leicester encontrou sua voz.

  • Nós... ahn... não queríamos que a senhorita o visse assim. Ele está sob forte medicação. Ele tem se com­portado de forma incontrolável e autodestrutiva nesses últimos dias.

Leicester parecia desconcertado, algo que Seph jamais esperara ver.

Ela estava finalmente ao alcance do braço de Seph, mas retribuiu ao olhar de Leicester pela primeira vez.

  • Entendo o que quer dizer. Ele espancou brutalmente a si mesmo. Bastante atípico.

Ela parecia preocupada, angustiada, furiosa, mas não estava fazendo tanto alarde sobre a aparência dele como ele esperara. "Ela não estava chocada", pensou ele. Nem mesmo surpresa. Como se ela soubesse o que estava acon­tecendo. Isso deu a Seph um fragmento de esperança.

  • Olá, Seph. Meu nome é Linda Downey.

Seph ficou encarando-a, enviando-lhe apelos silencio­sos. Descubra um jeito de me tirar daqui. E então as lágrimas transbordaram-lhe dos olhos e correram por sua face.

Linda Downey assentiu com a cabeça, quase que imperceptivelmente, como se tivesse ouvido e entendido. Ela se inclinou, deu-lhe um leve beijo na testa e sussurrou, de forma que apenas ele pudesse ouvir:

  • Coragem, Seph. — Então ela se virou para Leicester e os outros. — É óbvio que interná-lo aqui foi um desastre. Vou levá-lo para consultar o terapeuta outra vez. Espero que ele não precise ser hospitalizado.

Terapeuta?

Ela gesticulou para Hays e Barber.

—  Vocês dois. Ajudem a levá-lo para o meu carro.

Eles se adiantaram, obedientes. Mas Leicester sacudiu a cabeça.

  • O rapaz fica aqui — disse ele. — Como pode ver, ele não está em condições de viajar.

A mulher suspirou e mudou de tática.

  • Leicester, acho que é hora de sermos francos um com o outro. Acredito que todos vocês sejam magos e estejam mantendo este rapaz sob um feitiço.

Ela poderia muito bem ter dito que a firma de advocacia de Sloane, Houghton e Smythe acreditava em fadas. Seph estreitou os olhos para ela sem poder acreditar. Os ex- alunos se remexeram e murmuraram, mas Leicester não parecia impressionado.

  • E daí? — disse ele, deixando a palavra cair entre eles como um desafio. Estava deixando claro que o que Linda Downey sabia ou não sabia era irrelevante.

Ela sacudiu a cabeça e olhou para Leicester com pena.

  • O senhor faz alguma idéia de quem é este rapaz?

Leicester franziu o cenho, abriu a boca e depois a fechou de novo, olhando de Linda para Seph.

  • Obviamente, o senhor não sabe. — Ela pôs as pontas dos dedos sob o queixo de Seph e inclinou-lhe a cabeça para cima. — Olhe para ele! Olhe para os olhos dele, o formato do nariz.

Leicester estudou Seph, mas sua carranca dizia que estava tão perdido quanto antes.

  • Acho difícil de acreditar que não tenha percebido. — Ela pigarreou. — Joseph McCauley é filho natural de um dos seus colegas no Conselho dos Magos. Uma questão delicada, já que ele é casado com alguém que não é a mãe do rapaz. — Ela fez outra pausa. — A esposa dele é uma maga poderosa, e foi impiedosa em relação a tais transgressões no passado. O menino foi mantido no escuro sobre o próprio passado por medo de que a história viesse à tona. Mas o pai de Seph tem um grande interesse no bem-estar e na educação dele. Seph é seu único filho.

Ela sabe quem é o meu pai. A despeito de Leicester e dos ex-alunos, de sua situação desesperada, a despeito de tudo, Seph aguardou, segurando a respiração, contendo o fôlego que Linda Downey dissesse o nome.

Leicester parecia estar consultando algum tipo de lista mental.

  • Quem é? — indagou ele. — Fale. Quem é o pai dele?

Linda não disse nada.

  • Não está falando do... Ravenstock? — O rosto do mago passou da incredulidade para a convicção perspicaz. — É ele, não é?

Ela hesitou, então disse:

  • Isso não é da sua conta. Mas vai descobrir muito em breve, se não soltar o garoto e deixá-lo ir. O pai veio de avião até Portland ontem. O senhor pode imaginar a reação dele quando lhe encaminhei a mensagem do Seph. Se eu não aparecer com o filho dele em Portland esta tarde, o pai dele vai destruir este lugar, pedra por pedra, até encontrá-lo. Nenhuma desculpa vai ser boa o bastante para satisfazê-lo. E o senhor pode ter certeza de que ele levará a questão ao Conselho na semana que vem.

Leicester cerrava e descerrava os punhos.

  • Por que o Ravenstock não veio pessoalmente, se está tão preocupado?

Ravenstock. Joseph Ravenstock. Oi, me chamo Seph Ravenstock. Seph experimentou o nome mentalmente.

  • Considerando a posição que ocupa, ele deseja manter a questão em sigilo. Por isso ele me mandou como representante. Se houvesse esperado um problema, tenho certeza de que teria vindo pessoalmente.
  • Como posso saber que está dizendo a verdade?

Seph percebeu que Leicester não queria acreditar nela.

  • Sou a tutora do rapaz. Posso lhe mostrar os docu­mentos, se quiser.

Ela enfiou a mão na maleta, puxou para fora um maço de papéis e passou-os a Leicester. Ele os examinou des­contente e devolveu-os.

Mas o Houghton é o meu tutor. Não é?

  • Veja — disse Linda. — Estamos contando com a sua discrição. O pai de Seph não se importa com o que quer que o senhor esteja fazendo aqui. Mas a tolerância dele não se estende ao próprio filho. O menino foi cruelmente espancado, privado de alimentação e torturado. Se isso vier à tona, será natural para o Conselho supor que o senhor escolheu o filho dele como alvo por alguma razão. Uma razão política.
  • E por que eu deveria permitir que a senhorita saísse daqui contando histórias? — indagou Leicester.

Ele deu um passo na direção dela, estendendo a mão para apanhar-lhe o pulso. Ela deu um passo atrás, desviando-se habilmente da mão.

  • Estão esperando que eu volte com o Joseph esta noite — disse ela com calma. — Como propõe explicar o nosso desaparecimento?

Leicester parecia desolado, como se o aniversário dele houvesse sido cancelado. Era evidente que estava ten­tando pensar em alguma alternativa para não deixar Seph partir. Mas também era óbvio que as ameaças da mulher haviam sido eficientes. Ele não queria o Conselho envol­vido, não queria atrair nenhuma atenção desnecessária para o Porto Seguro. Tinha de pesar o risco em potencial de soltar Seph contra os danos da exposição garantida.

Enfim, deu de ombros, sem nenhuma elegância na derrota.

  • Muito bem. Espere na ante-sala por um momento. Preciso falar com Joseph em particular.

Ela não queria ir. Seph tinha certeza disso. E ele também não queria que ela fosse. Mas ela foi, olhando para trás como se aquela pudesse ser a última vez que o veria.

Leicester apontou para Seph e murmurou o contra-feitiço. Seph remexeu-se na cadeira e tentou, inutilmente, se levantar. O diretor agarrou-o pela frente da blusa e o colocou em pé, de modo que seus rostos ficassem a centímetros de distância.

  • Então, Joseph, você vai voltar para o seu pai. Espero que tenham uma reunião maravilhosa. Apenas se lembre de uma coisa: se um simples murmúrio do que está acontecendo aqui alcançar qualquer membro do Conselho, quer seja atribuído a você, quer não, eu farei com que minha missão na vida seja caçar cada membro da sua maldita família e cada amigo que tiver, até o flerte român­tico mais efêmero, e matá-los da maneira mais dolorosa possível. E, quando tiver acabado com eles, irei atrás de você, e nós retomaremos as coisas de onde paramos.

Seph devolveu-lhe o olhar.

  • Posso ir agora? — perguntou, pensando: "Venha atrás de mim e estarei preparado da próxima vez".

Leicester soltou-o e recuou um passo. Mantendo as costas retas, sentindo o olhar hostil de Leicester na nuca, Seph andou mancando até a ante-sala, onde Linda Downey o aguardava. Embora ele a sobrepujasse em altura, ela passou a mão por sob o cotovelo dele para apoiá-lo. A magia fluiu para ele, algo poderoso que fez sua cabeça girar, ainda que de um modo diferente do que estava acostumado.

Leicester e os ex-alunos o seguiram ao sair do escri­tório. O diretor parecia querer localizar Linda dentro do esquema político geral.

  • Suponho que a senhorita seja a mais recente... amante do Ravenstock?
  • Assistente — disse ela, guiando Seph em direção à porta.

Seph virou-se para olhar para Leicester, marcando a imagem a fogo na memória para usar mais tarde. "De algum modo, vou fazer você pagar", pensou ele. Pelo Sam, quem quer que ele fosse e poderia ter sido. Por Trevor. E, acima de tudo, por Jason.

Ele arrastou os pés dolorosamente até a porta, com a mão de Linda em seu cotovelo, e depois para fora, até as escadas. Desceram as escadas a custo e cambalearam em direção à porta da frente.

O BMW esperava no estacionamento. Linda abriu a porta do passageiro para Seph, ajudou-o a entrar e fechou-a assim que ele entrou. Ela se sentou ao volante. Embora parecesse calma, sua mão tremia, e só na segunda tenta­tiva conseguiu encaixar a chave na ignição.

Seph recostou-se no banco. Linda Downey dirigia rápido e de maneira agressiva, mudando as marchas com vio­lência, sacolejando pela estrada de terra numa velocidade imprudente, reavivando em Seph a lembrança de cada um de seus ferimentos. Ele olhou para ela. Havia manchas avermelhadas nas maçãs do rosto, e os olhos apareciam e desapareciam alternadamente sob a luz mutável embaixo das árvores. Aquela era a namorada do pai dele?

Seph tentou ficar confortável, ainda sem conseguir acre­ditar que estava finalmente deixando o Porto Seguro.

  • Quer dizer que estamos indo para Portland?

Mal conseguia forçar as palavras por entre os lábios inchados. A língua tateou um ponto irregular, onde um dente havia se quebrado.

Ela confirmou com um gesto de cabeça.

  • É o caminho mais rápido para fora do Maine. Mas primeiro precisamos achar um médico pra você. — Ela o examinou, mordendo o lábio. — O hospital mais próximo provavelmente é em Portland.

O escrutínio de Linda deixou Seph desconfortável.

  • Eu estou bem. Mesmo. Parece pior do que é. Prefiro não ter de responder a nenhuma pergunta.
  • Seph, eu sinto tanto! Não fazia idéia do que estava acontecendo. — A voz dela falhou. — Quando nós rece­bemos o seu e-mail,..
  • Quem é Ravenstock?
  • Esqueça ele. Não é nenhum parente seu.

Ele não ficou surpreso, de certo modo, mas ficou um pouco desapontado. Apagou Ravenstock de seu arquivo mental, o lugar onde mantinha as pistas sobre quem ele era.

—  Você não estava se arriscando demais, agora há pouco?

  • Não tive muita escolha. Eu tinha esperança de que você se parecesse com alguém no Conselho.
  • .. por vir... quando veio — disse ele. — Eles iam me matar. Ou coisa pior.

Ela o olhou de relance.

  • Por quê?
  • Acho que ele gosta. De machucar pessoas, digo.

A ameaça de Leicester estava fresca em sua mente. Seph não diria muito até descobrir quem e o que ela era.

Linda pigarreou.

  • Não sei muito bem o quanto você sabe... sobre as ordens mágicas.

Ela olhava direto em frente, como se estivesse emba­raçada. Como se estivesse prestes a lhe contar como os bebês nascem, ou algo assim.

  • Eu sei tudo a respeito — disse ele, olhando pelo es­pelho retrovisor pela décima quinta vez. — Weir, Anaweirs, magos e feitiços. Se é disso que você está falando.

Ele a havia surpreendido.

  • Quem lhe contou? Foi o Leicester?

Ele sacudiu a cabeça.

  • Minha mãe adotiva me contou um pouco. O resto eu aprendi aqui.

Seph pensou em Jason, e o ar entrou com dificuldade ao inspirar. Fechou os olhos, tentando se lembrar de como se sentira ao golpear Leicester. Desejava ter conseguido lançar um feitiço.

  • Tem certeza de que está bem?
    • Estou ótimo — disse Seph. — Perfeito. — Ele a olhou de esguelha. — Então você é maga?

Ela sacudiu a cabeça.

  • Não. Encantadora. — Ela disse a palavra rapida­mente, como que insegura da reação dele.

Uma encantadora! Jason era fascinado por encanta­doras, mas havia dito que jamais encontrara uma. Seph se lembrou de algo que Jason dissera e, antes de poder pensar duas vezes, deixou escapar:

  • É verdade que um encantador pode encantar qual­quer mago, não importa quão poderoso?

Então ele tapou a boca. Não era uma pergunta a se fazer a alguém a quem acabara de conhecer.

  • Bem, suponho que depende do encantador, e do mago, e das precauções que este toma contra encanta­mentos. É claro que, como regra geral, os magos são mais poderosos que os encantadores. Mas se pego um mago desprevenido... — Ela soltou o volante e flexionou os dedos como um gato mostrando as garras.
  • E quem é você? Trabalha mesmo para a firma?
  • Não. Eles trabalham pra mim. O que eu disse lá dentro era verdade. Sou a sua tutora.

Algo disse a Seph que ela não estava sendo completa­mente sincera. Era como se ela fosse translúcida: de vez em quando a luz a atravessava, iluminando-a, revelando fragmentos de verdade, como ouro brilhando na areia.

  • Você conheceu... conhece os meus pais? — per­guntou, incerto a respeito do tempo verbal que de­veria usar.
    • Anos atrás — disse ela.

Outra mentira. Ele se endireitou. Linda Downey sabia a verdade sobre ele, Seph tinha certeza disso. Descobriria um jeito de arrancá-la dela, não importava quão horrível fosse essa verdade.

  • Se você é minha tutora, como é que eu nunca ouvi falar de você?
  • Eu me tornei a sua tutora depois que os seus pais morreram. Eu... eu viajo muito, e queria algo estável para você. Por isso Genevieve LeClere concordou em adotar você.
  • Mas quem eram os meus pais? — insistiu Seph. — Como se chamavam? Onde viviam? Como morreram? Eu tenho algum outro parente?

Era uma cascata de perguntas. As perguntas de uma vida inteira.

Ela passou a língua pelos lábios.

  • Com certeza a Genevieve lhe contou tudo isso. O seu pai... era um engenheiro de Houve um incêndio.
  • Não me venha com essa história da carochinha. Eu sou apenas uma pessoa inventada. Minha certidão de nascimento é falsa. Não tem nenhuma notícia a respeito de um incêndio. Nenhum registro de óbito na Previdência Social. Não sou idiota.
    • Ninguém disse que você era. — Ela manteve os olhos na estrada, como se fosse perigoso olhar para ele. — A verdade é que não posso contar o que você quer saber. Por isso não me pergunte mais.

O tom dela era ríspido, as articulações dos dedos brancas contra o volante. Houve um breve e tenso silêncio. Então ela continuou:

  • Eu entreguei você a Genevieve quando você era bebê, porque eu sabia que ela cuidaria bem de você. Você gostou de lá, não foi? — perguntou ela repentinamente, como se estivesse pedindo por uma confirmação.
  • Eu gostei de lá. — Seph olhou pela janela. — Eu adorava a Genevieve.
  • Acho que não agi muito bem nos últimos dois anos. Sabe... o meu sobrinho estava com problemas, e... eu me distraí. Aconteceram muitas coisas. O Houghton me ga­rantiu que você estava indo bem. Até que ele me telefonou contando do e-mail... — A voz dela foi ficando mais fraca até se extinguir.
    • Para onde estamos indo, afinal?
    • Para uma cidade chamada Trinity. Fica em Ohio, no lago Erie.
  • Trinity, Ohio.

Jason havia mencionado aquele nome. Uma imagem lhe ocorreu. Celeiros e silos. Da floresta primitiva para a fazenda do Meio-Oeste. Ele tentou não fazer uma careta. Doía fazer caretas.

Qualquer lugar é melhor do que aquele de onde eu saí, disse ele a si mesmo. Naquele momento, ele queria se enterrar no Meio-Oeste, aninhar-se sob as terras férteis de Ohio como se fosse um cobertor.

  • Por que Trinity? — perguntou ele. — Tem uma outra escola lá?
  • Minha irmã mora lá. Além do mais, Trinity foi decla­rada um santuário após o torneio na Ravina do Corvo.

Certo. Jason havia dito alguma coisa sobre um san­tuário, "em Ohio, imagine só".

  • Por que um santuário?
  • Estão acontecendo muitas coisas — disse ela de novo, como se aquilo explicasse algo.
  • Tem algum mago em Trinity? — indagou ele.

Ela assentiu.

  • Sim, conheço pelo menos dois. Provavelmente há outros. Por que pergunta?
  • Eu preciso de mais treinamento.
    • Suponho que a sua falta de treinamento seja minha culpa. Genevieve era... era maravilhosa, mas não gostava muito de magos. — Ela fez um gesto de cabeça novamente, como se confirmando algum pensamento não enunciado. — Sim, imagino que podemos encontrar alguém em Trinity para treinar você.
  • Ótimo.

Ele se recostou e fechou os olhos, mas podia sentir a pressão do olhar dela.

  • Se acha que está preparado, por que não me conta o que aconteceu no Porto Seguro?

Ele manteve os olhos fechados.

  • Acho que não estou preparado.

Ela ficou em silêncio. Ela guardava segredos, e ele também. A ameaça de Gregory Leicester permanecia no fundo da mente dele. Talvez a única pessoa a quem ele devesse contar aquela história fosse o Dragão. Alguém poderoso o suficiente para fazer algo a respeito.

Linda Downey lhe salvara a vida, e ele era grato por isso. Se ela quisesse mais do que isso, teria de conquistar sua confiança.

Mais tarde naquela noite, Gregory Leicester estava sen­tado na doca, apoiando-se contra o metal frio do elevador de barcos. Nem mesmo a suavidade da noite de primavera era capaz de acalmá-lo. Estava bebendo conhaque, como vinha fazendo com freqüência, e dessa vez mais do que de hábito.

O rapaz o havia feito de tolo. Primeiro invadira o escri­tório dele e enviara os e-mails. Depois se atrevera a atacá-lo. E havia ido embora quase sem nenhum arranhão. Não era uma boa lição para os ex-alunos que estavam lá assistindo a tudo.

Leicester se consolava com a expectativa do verão por vir. Haveria uma reunião do Conselho na semana seguinte. Perguntava-se se poderia usar a informação sobre o filho bastardo de Ravenstock para influir sobre o voto dele na questão constitucional.

Uma vez que os outros alunos houvessem partido, ele precisaria de tempo para trabalhar com os ex-alunos. Na verdade, seria bom não ter a distração de tentar subjugar o garoto e depois treiná-lo. Mesmo após a perda de dois de seus candidatos mais recentes, Leicester tinha 15 magos conectados a ele. Isso deveria ser o bastante, supondo que esses fatos pudessem ser mantidos ocultos do Dragão e dos outros por um pouco mais de tempo.

Ele revirou o líquido cor de âmbar no copo, sentindo-se melhor. O celular preso ao cinto tocou, e Leicester pensou em ignorá-lo. Mas o número fora dado apenas a uns poucos escolhidos. Por isso decidiu atendê-lo.

Era Claude D'Orsay. A voz dele estava tensa de excitação, algo pouco comum para o reservado Mestre de Jogos.

  • Você tem um aluno chamado Joseph McCauley.

Não era uma pergunta, era como uma acusação. Joseph McCauley de novo. Leicester esvaziou o copo.

  • O que tem ele?
  • Chego ao Maine amanhã. Mantenha-o confinado até eu chegar.
  • Do que você está falando?
  • Você sabe quem é esse rapaz?

Oh, isso. Leicester fungou.

  • Soube disso hoje. É o filho bastardo do Jeremy Ravenstock. Aparentemente, o Ravenstock está tentando manter isso em segredo. Não está tendo muito sucesso, receio.
  • Ravenstock? Não, a menos que Ravenstock seja o Dragão, o que é absurdo. Nós dois sabemos a verdadeira identidade do Dragão. Achamos que o menino é filho dele.

Por um longo momento Leicester não conseguiu dizer coisa alguma.

  • Tem certeza?
    • Encontramos o nome dele em arquivos no esconde­rijo do Dragão em Londres quando o invadimos alguns meses atrás. Procuramos em todas as nossas bases de dados, registros da Previdência Social e por aí afora, mas levou um tempo até o encontrarmos. O rapaz nasceu no Canadá. A certidão de nascimento é falsa. Os pais nunca existiram. Alguém teve muito trabalho para es­conder quem ele é de verdade.

Aquele realmente não havia sido um bom dia para Gregory Leicester, e o conhaque não estava mais fun­cionando. O rosto de Joseph McCauley estava diante dele agora, e ele viu a semelhança imediatamente. Era inegável. A marca do diabo estava claramente na sua prole. Confirmava tanto o pai como o Dragão quanto o filho como seu sangue.

—  Ele se foi, Claude — sussurrou ele, incapaz ele mesmo de acreditar naquilo.

—  Como assim, se foi?

—  Partiu essa manhã. A tutora dele veio buscá-lo.

  • A tutora? Quem?

—  Uma advogada chamada Linda Downey. Ela disse que representava o Ravenstock. O garoto agiu como se nunca tivesse posto os olhos nela antes.

—  Linda Downey — repetiu D'Orsay. — Eu me lembro dela. Ela estava no torneio no último verão. Uma encanta­dora.

—  Uma encantadora!

O copo se estilhaçou na mão de Leicester, e ele fitou o sangue que lhe corria pela palma. De repente, ficou claro o motivo pelo qual ele não conseguira resistir a ela.

D'Orsay ainda falava sobre Linda Downey.

  • Ela é inesquecível. Cativante mesmo. Eu me per­gunto qual é a ligação dela com o Dragão. — Ele ficou calado por um momento. — Quer dizer que ela encantou você e o fez entregar o rapaz?
    • Não importa o que ela fez. Como é que eu ia saber quem era ele?

A verdade era que, em retrospecto, ele não conseguia se lembrar de como ela o persuadira a abrir mão de algo que quisera tanto manter.

Tão jovem. Tão poderoso. Tão resistente à persuasão. Ele devia ter suspeitado desde o princípio que o rapaz era um espião. Mas por que o Dragão se arriscaria a colocar o filho num esquema daqueles, quando havia tido tanto trabalho para ocultar-lhe a identidade?

  • Acho que podemos supor que a essa altura o Dragão sabe tudo sobre o Porto Seguro — disse D'Orsay. — Você vai ter de cair fora.
  • Vou reforçar as barreiras. íamos partir em breve, de qualquer jeito. Não há motivo para mudar nossos planos. O garoto se recusou a se conectar comigo, por isso não sabe muita coisa. E, se pudermos encontrá-lo, poderemos usá-lo para atrair o Dragão para fora do esconderijo.
    • Eles disseram para onde iam? — perguntou D'Orsay.
      • Não. — Provavelmente não para Portland, no Maine. — De onde ela é?
    • Não sei onde ela vive, mas posso descobrir. Ela tem alguma conexão com o Santuário que foi estabelecido depois do desastre no último torneio. Alguma cidadezinha no Meio-Oeste. Pode ser um bom lugar para começar.
      • Deixe que eu procure por eles. Vou tentar interceptá-los antes que cheguem ao Santuário. — Leicester tinha seus motivos pessoais para fazê-lo. — Eu tenho vídeos do Joseph e talvez tenha algumas fotografias. Vou enviá-los a você por e-mail.

E assim foi combinado.

 

                   A Teia Weir

Seph alternava a contemplação da paisagem com os breves e profundos cochilos com que se acos­tumara no Porto Seguro. Ele era como um animal para quem um momento de desatenção podia significar a diferença entre a vida e a morte.

Linda observava-o quando achava que ele não estava olhando.

Eles seguiram o longo círculo da via I-95 em torno de Boston antes de entrar na rodovia oeste, que atravessava Massachusetts.

Na rodovia, pararam em um daqueles shoppings em que os incansáveis viajantes podiam comprar qualquer coisa de que necessitassem. Ele escolheu duas camisetas do time de hóquei Toronto Maple Leafs e uma blusa do time canadense de beisebol Blue Jays, dois pares de calças de abrigo, roupa de baixo e uma escova de dentes. A soma total de suas posses naquele momento. Tirou a camisa arruinada e limpou cuidadosamente o sangue do rosto no lavatório, e sua pele ardia com o horrível sabonete líquido.

Eles deixaram a rodovia em Stockbridge, em Massachusetts, logo antes da fronteira com Nova York. Linda seguiu em direção às montanhas, bem acima da cidade, até uma pensão que ela conhecia. Jantaram em uma pequena sala que dava para uma cascata e alugaram dois quartos sob o nome O'Herron, coincidentemente Linda estava com uma identidade falsa. Ele não ques­tionou aquilo, nem se importou em telefonar para Denis Houghton para confirmar a história de Linda Downey. Não parecia haver muito sentido em fazer isso.

Seph não usou a pedra portal quando deitou entre as cobertas naquela noite. Estava apreensivo, porém, sem saber se Gregory Leicester poderia alcançá-lo mesmo aquela distância. Teve um sono agitado, mas os sonhos foram normais.

 

Na manhã seguinte, partiram antes que o sol nas­cesse, quando a pensão estava ainda encoberta pelas sombras das montanhas. Cruzaram os limites estaduais e entraram no longo corredor do Estado de Nova York, atra­vessaram o rio Hudson e passaram para a Via Expressa de Nova York próximo a Albany.

Linda percebeu, pelo modo como Seph se movia, que ele estava dolorido e com os músculos enrijecidos. Ele man­tinha os cotovelos baixos, junto ao corpo, como se prote­gesse o torso. O lábio estava partido e inchado, e todo o lado direito do rosto estava machucado. Ele não se queixava, porém, e dava respostas evasivas às perguntas de Linda.

Linda estava feliz em poder olhá-lo de perto após tantos anos observando-o a distância. Fitou os cachos escuros, mais longos do que de costume e sem gel, as sobrancelhas que seriam espessas quando ele se tornasse adulto e os ossos do rosto sob a luz mutável. Ele precisava ser tratado, ela sabia, mas ela não tinha o remédio para o que o atormentava. Consultaria Nick Snowbeard a respeito quando chegassem a Trinity.

Ela se perguntou como poderia mantê-lo longe das trevas que se acumulavam. O Santuário seria mais seguro do que qualquer outro lugar, mas também poderia atrair a atenção daqueles que não o haviam notado até agora.

Hastings saberia das notícias por intermédio do Con­selho dos Magos, mas ela deveria ter cuidado com ele, com o que ela perguntasse e como perguntasse.

Leander Hastings não precisava saber sobre Seph McCauley.

 

Eles deixaram a via I-90 a oeste de Cleveland. Àquela altura, passava das sete horas, e o estômago de Seph lembrou-o de que não haviam almoçado. Linda olhou-o de relance.

  • Estamos chegando — disse ela. — Quer parar para comer ou esperar até chegarmos na cidade?

Seph deu de ombros.

  • Vamos direto pra lá.

Estavam passando junto à margem do lago. Seph viu placas de vinícolas, de hotéis e da Faculdade de Trinity.

Quando fizeram uma curva, ele viu a cidade em si, do outro lado de uma pequena baía, como um cenário de cartão-postal. Estranhas fachadas de lojas e casas vito­rianas se aglomeravam junto às águas, os campanários de puro branco das igrejas erguendo-se por detrás, um porto e uma marina pitorescos flanqueados de barcos. Mais veleiros estavam ancorados logo além da margem.

A cidade cintilava sob a luz oblíqua do sol, como se um véu iridescente a cobrisse, algum truque peculiar da luz. O carro diminuiu de velocidade, e Seph olhou rapidamente para Linda. Ela franzia a testa, a cabeça inclinada, como se estivesse vendo algo de que não gos­tava. Ela removeu os óculos escuros e inclinou-se para a frente, forçando os olhos para ver além do pára-brisa, e então virou rapidamente para a esquerda no cruzamento seguinte e rumou para o sul.

  • Qual é o problema? — indagou Seph.
  • Não sei.

Eles seguiram o desvio para o sul por alguns quilôme­tros, depois viraram em direção ao oeste e de volta para o norte, de modo que se aproximaram da cidade pelo sul. Alcançaram uma cumeeira, talvez uma antiga costa do lago e, mais uma vez, a cidade aparecia reluzente diante deles, com o lago além. Indistinta, de um rosa arroxeado, como uma ilustração mal impressa numa revista de papel barato. Linda sacudiu a cabeça, resmungando para si mesma, fez uma súbita curva para a direita, entrando no estacionamento de uma pequena lanchonete, e parou o carro.

  • Vamos comer aqui — disse ela. — Entre e escolha uma mesa. Peça o que quiser, mais uma salada pra mim. Preciso dar um telefonema.

Ela pegou um celular e gesticulou para que ele se afastasse.

Perplexo, Seph entrou no restaurante, que estava quase vazio, talvez porque não fosse fim de semana. O único empregado à vista estava enxugando os copos atrás do balcão. Ele levou Seph para uma mesa nos fundos, fitando-lhe o rosto machucado com franca curiosidade, como se esperando que o convidado pagasse pelo jantar com uma história sobre a recente surra.

Quando Linda entrou, a comida já havia chegado.

  • Para quem você telefonou? — perguntou ele.
    • Para o meu sobrinho, Jack — explicou Linda. — Ele vai nos encontrar aqui. A minha irmã, Becka, é advogada. Ela também dá aula de literatura na Faculdade de Trinity. O Jack é filho dela. Ele é um pouco mais velho do que você.

Seph deu de ombros, confuso com a mudança de planos.

—  Tudo bem.

  • Ele é guerreiro — continuou Linda. — Um dos Weirlinds.

Seph parou de mastigar e ergueu os olhos. Jason havia dito que os guerreiros eram extremamente raros. Como uma espécie em extinção.

  • Um guerreiro? Está esperando problemas?

Linda deu de ombros.

  • Não sei. Espero que não. Talvez ele traga junto algumas outras pessoas.
    • Qual é o problema? — indagou Seph.
  • Tem uma barreira mágica em torno da cidade. Uma Teia Weir. Quero saber há quanto tempo está lá e quem a construiu.

Uma Teia Weir. Um frio correu-lhe espinha abaixo. Seph se lembrou da barreira em torno do Porto Seguro, com sua aparência borrada e iridescente. O véu sobre Trinity era similar. Seria uma coincidência?

Eles terminaram a comida, e Seph pediu uma fatia de torta de maçã com sorvete. Ele a estava dissecando, saboreando-a em centenas de pequenas mordidas, quando a porta se abriu e três pessoas entraram.

Um deles era um velho muito magro, com uma barba branca bem cuidada e olhos negros brilhantes. Ele se apoiava numa bengala com uma intrincada cabeça de urso esculpida no topo. Embora os magos não conse­guissem reconhecer automaticamente a própria espécie, aquele parecia ser um protótipo.

Ele era diferente dos outros magos que Seph conhecera. Havia algo de bondoso e tranqüilizador em seu rosto, nas rugas em torno dos olhos.

Os outros dois tinham mais ou menos a idade de Seph. Um era um adolescente alto de aparência atlética, com reluzente cabelo vermelho dourado e olhos azuis que lembravam os de Linda. Vestia jeans e uma camiseta que revelava o peito e os ombros largos, e os braços musculosos. Ele sorriu ao localizá-los no canto e cruzou o espaço entre a porta e a mesa a passos largos.

"Eu nunca vi alguém de 17 anos com esse corpo", pensou Seph. Esse deve ser Jack, o guerreiro. Ele baixou os olhos de relance para o próprio corpo, envergonhado de quão magro estava.

  • Tia Linda!

O rapaz ruivo pôs as mãos nos ombros dela, inclinou-se e beijou-a no rosto.

O terceiro membro do trio era uma garota, quase tão alta quanto o rapaz, mas de cabelos castanhos. Havia certa graça física e confiança nos dois. O puro poder físico deles parecia empurrar todos os demais para a periferia. Se Jack é guerreiro, pensou Seph, então ela também é.

  • Oi, tia Linda.

A garota também abraçou Linda Downey, com um pouco mais de timidez. Seph começava a se sentir deixado para escanteio em meio ao encontro e às saudações. Mas sentiu os olhos do mago sobre ele e, no momento seguinte, os guerreiros o notaram também. Jack deu um passo para trás, e a mão direita da garota voou para o cinto como se ela pudesse encontrar uma arma ali.

Seph levantou-se.

  • Meu nome é Seph — disse ele, estendendo a mão para o mago.

Seph sentiu o poder bem controlado, mas sólido por trás do aperto. Teve a sensação de que o velho já sabia exatamente quem ele era.

Linda indicou o mago com a cabeça.

  • Desculpe, Seph. Este é Nicodemus Snowbeard. E o meu sobrinho, Jack Swift, e uma amiga, Ellen Stephenson. — Ela pôs a mão no ombro de Seph. — Este é Seph McCauley — disse ela, sem defini-lo de modo algum.

"Jack Swift", pensou Seph. "Onde foi que eu ouvi esse nome antes?"

  • Você não me falou que ele era mago — disse Jack, não se preocupando em ocultar a surpresa. Todos os três olhavam com curiosidade para o lábio cortado e inchado e para o rosto machucado de Seph. — Desde quando um mago precisa de santuário? — perguntou-lhe, com certo tom de desafio.

Seph ergueu o queixo e olhou Jack nos olhos. Ele era quase da altura do guerreiro, embora Jack provavelmente pesasse 50% a mais.

  • Por quê? Você é o porteiro?
  • Jack, você melhor do que ninguém deveria saber que não é difícil fazer inimigos, não importa quem você seja — apressou-se em dizer Linda.

Era isso. Jack Swift era o guerreiro que lutara no famoso torneio na Ravina do Corvo. O rebelde por trás das mudanças nas regras. E ele era o sobrinho de Linda Downey.

Seph lembrou-se do que ela dissera no carro. O meu sobrinho estava com problemas, e... eu me distraí. Seph estudou Jack com novo interesse, como se houvesse subi­tamente descoberto uma celebridade sentada a seu lado num cinema.

Os recém-chegados puxaram mais cadeiras ao redor da mesa.

  • Como passaram pela barreira, Nicodemus? — in­dagou Linda.

Snowbeard indicou os dois guerreiros com a cabeça.

  • Jack e Ellen trouxeram as espadas deles. Conse­guiram abrir caminho para nós.
  • Tivemos visitas, antes de terminar a travessia. — Jack esticou as longas pernas no espaço entre as mesas.
    • Quatro magos apareceram. Estavam bem agitados, a princípio, mas perderam o interesse quando viram quem éramos.
  • Os magos que montaram a teia podem detectar qual­quer distúrbio nela. Como uma aranha esperando pela presa — disse Snowbeard. — Quem quer que tenha feito isso tem um grande talento e um poder impressionante. É inacreditável que ela tenha sido montada tão rápido.

Seph afastou para o lado os restos da torta, perdendo o interesse nela.

  • Qual era a aparência desses magos?
    • Eram todos bem jovens, talvez alguns anos mais velhos do que nós — disse Ellen.
    • Eles perguntaram sobre uma encantadora e um jovem mago, e a descrição combinava com vocês — acrescentou Jack, fixando Seph com um olhar implacável.
  • Eram magos típicos, arrogantes e mandões, mas acho que decidiram não se meter em confusão.

O guerreiro flexionou as mãos e pousou-as sobre os joelhos, sugerindo que ele não teria se importado em se meter em confusão.

—  Eles mandaram a gente deixar a teia em paz — acrescentou Ellen.

  • Como funciona uma Teia Weir? — indagou Seph.

O velho coçou a barba.

  • É uma barreira maleável e seletiva que bloqueia os Weirs, as pessoas que carregam uma pedra. Os Anaweirs conseguem passar por ela sem nem notar nada. Para nós, é uma armadilha embaraçosa. Ela segura você apertado, se tocar em qualquer parte dela. Com algum tempo, eu poderia forçar uma abertura. Mas ela é projetada para resistir a feitiços.

Barber havia montado o muro mágico no Porto Seguro. Mas como eles poderiam tê-los rastreado até ali tão rapi­damente? E por que o deixaram sair, se iriam atrás dele depois?

  • A Teia Weir é uma escolha de armas interessante — disse Snowbeard, pensativo. — Era usada freqüentemente nas guerras dos magos no século XVI. Os magos prendiam os Weirs de Casas adversárias nessa armadilha e então os matavam à vontade, ou os tomavam como prisioneiros. É um bom trabalho. Não vejo nada assim há séculos.

Seph piscou ante o comentário do mago. Quão velho era ele, afinal? Jason dissera que os magos viviam quase que para sempre, mas Seph pensara que ele estivesse exagerando.

  • Bem — continuou Snowbeard —, vamos ter de supor que alguém quer impedir vocês de chegarem ao Santuário. O uso da teia sugere que eles querem vocês vivos. De outro modo, teriam montado um outro tipo de armadilha.
  • Então — disse Jack, apoiando-se sobre a mesa, fa­lando diretamente a Seph —, andou deixando alguém nervoso ou o quê?
    • Quer relaxar? — disse Ellen, franzindo o cenho para Jack. — Não dá pra ver que ele passou por maus bocados?

Seph empurrou a cadeira para trás.

  • Ei, se não podemos entrar, eu vou pra algum outro lugar. Não quero atrapalhar ninguém.

Linda pôs a mão no braço dele.

  • Não. Eu quero você no Santuário.

Ela olhou feio para os outros em torno da mesa, desa­fiando qualquer um a discordar.

  • O que tem de especial nesse Santuário? — perguntou Seph.
  • A magia de ataque não é permitida dentro de seus limites — respondeu Snowbeard. Ele cobriu a mão de Linda com a dele e murmurou algo para ela. — É melhor irmos. Vai levar algum tempo para atravessar a teia, e acho que não queremos ter de entreter quatro magos enquanto fazemos isso. Por isso, sugiro que criemos uma distração.

Ele se inclinou para a frente.

  • Vamos nos dividir. O Jack e a Ellen vão abrir caminho para o Seph. Os magos conhecem o seu carro, não é, Linda? Então você e eu vamos criar uma ilusão com o carro. Com alguma sorte, eles virão atrás de nós. Quando descobrirem o erro, vocês já estarão lá dentro. — Ele fez uma pausa. — Esperemos que sim. Pelo menos isso vai dividi-los. Posso criar uma distração fantástica, se me permitem dizer. Sou o que tem a maior probabilidade de ter sucesso e voltar vivo e, se eu não conseguir, tenho quase 492 anos. — Ele se voltou para Linda. — Tem alguma coisa que você gostaria de tirar do carro?

Linda pagou a conta, e eles caminharam até o estaciona­mento juntos. Um Subaru preto estava num ponto isolado nos fundos do restaurante. Jack abriu o porta-malas e ergueu duas espadas ornadas, passando uma para Ellen, com o cuidado de voltar o punho da espada para ela.

As armas iluminaram o estacionamento — faíscas bri­lhantes ao pôr do sol que se aproximava. A de Jack era a maior das duas e tinha um grande rubi vermelho no punho. Jack manejava-a como se não pesasse nada. Ele afivelou um cinto de couro com uma bainha, que lhe cruzava as costas na diagonal.

'Talvez aquelas fossem peças mágicas da era de ouro da magia, como a dyrne sefa", pensou Seph.

— Vamos sincronizar os relógios. São 7h55 — disse Snowbeard. — Linda e eu vamos invadir a teia às 8h15. Esperem alguns minutos depois disso e então atravessem vocês.

Snowbeard deslizou para trás do volante do BMW, com Linda no lado do passageiro. Jack, Ellen e Seph entraram no Subaru, alojando as espadas entre os assentos.

Os carros rodavam um atrás do outro, com Snowbeard ditando o caminho por estradas rurais, fazendo tantas curvas quanto necessário para que se mantivessem pró­ximos da fronteira tremeluzente, que parecia se estender tão longe quanto podiam ver, formando um arco sobre a cidade. Seria fácil trombar com ela, se não se prestasse atenção.

Cerca de um quilômetro e meio a oeste, Jack se afastou da estrada rumo à beira de um campo. Os três saíram do carro, Jack e Ellen carregando as espadas. Snowbeard foi em frente e desapareceu por trás da elevação seguinte.

Eles escolheram um ponto onde a barreira atravessava um campo. Havia uma velha casa de fazenda junto à estrada, a pintura acinzentada pelo clima. Os alicerces da casa haviam sido cobertos por rosas selvagens, ramos de flores vermelhas e brancas com centros amarelos. No pasto, o gado passava de um lado para o outro da bar­reira, sem se dar conta dela. O sol de fim do dia incidia obliquamente no curral junto ao celeiro.

Eles passaram pela casa, esgueirando-se por trás do celeiro, onde haveria menos probabilidade de serem vistos da estrada. Ali, entre o celeiro e o pasto cercado, a grama chegava quase à altura do joelho e abrigava perigos ocultos: pedaços enferrujados de maquinaria velha da fazenda e montes de estrume de vaca.

De perto, a barreira se revelou uma rede intrincada de fios quase translúcidos, tão grossos quanto o dedo mindinho de Seph. Havia menos de três centímetros de espaço entre os fios em qualquer ponto da teia. Havia algo de matemático naquele padrão, como os raios de uma teia de aranha. Era como se fosse uma presença maléfica, como se a teia estivesse viva e observando-os. Seph não saberia dizer quão espessa era.

Jack andava de um lado para o outro com impaciência, golpeando com a espada como uma foice, aparando as pontas do mato. Seph e Ellen se sentaram na grama e esperaram. Insetos zuniam junto a seus rostos.

Às 8h15, eles formaram um fila junto à barreira, com Jack na frente, depois Ellen, seguida por Seph.

— A gente só vai conseguir abrir uma picada estreita — avisou Jack a Seph. — Essa coisa é dura de cortar e parece que vai fechando o espaço por trás. Por isso tenham cuidado pra não tocar em nenhuma parte dela.

À distância, eles ouviram um estrondo e viram chamas irrompendo no ar como uma série de velas romanas gigantescas. A distração havia começado.

"Eles vão ter sorte se não atraírem a polícia local também", pensou Seph.

A espada de lâmina azul de Jack mordeu a teia, lan­çando fragmentos de fios para todos os lados. A teia respondeu de imediato, encolhendo-se diante deles. Um murmúrio cresceu vindo da Teia Weir, como o som de uma multidão furiosa. O som cresceu até se tornar um grande clamor choroso.

Jack olhou para trás, fazendo uma careta.

— Difícil de agüentar, não é?

Ele voltou ao trabalho. Movia-se de uma posição a outra como um esgrimista, a espada como um borrão brilhante, cantando enquanto a teia se lamentava. O jogo de espada do guerreiro era pura poesia, embora a camiseta logo lhe grudasse ao corpo e o suor lhe escorresse pelo rosto. Ellen seguia atrás, eliminando as gavinhas3 soltas e alargando o caminho atrás de Jack. Eles trocavam de posição a cada poucos minutos. Seph vigiava a retaguarda em busca de sinais de perseguidores.

Eles haviam cortado uma trilha de cerca de nove metros teia adentro quando aconteceu. Uma das gavinhas que Jack partiu ricocheteou, e Ellen deu um passo para o lado para se desviar. O braço dela roçou em uma das gavinhas soltas na lateral da picada. A teia reagiu rapidamente, lançando-lhe três novos fios ao redor da cintura.

- Jack!

Ellen cortou os fios com a própria espada, mas uma linha se embaraçou ao redor de suas pernas, e ela caiu. Mais fios se enroscaram em torno do braço com que ela segurava a espada, aparentemente atraídos por seus violentos esforços para se libertar.

  • Quer ficar quieta? — Jack mergulhou na rede que crescia ao redor dela, cortando os fios que lhe mantinham o corpo prisioneiro. Ele usava a lâmina como um cirurgião, retalhando a teia, milagrosamente sem derramar sangue. Ellen ficou imóvel como uma pedra, sem se esquivar, embora resmungando palavrões bastante criativos. Mas a teia respondeu atirando mais fios. Jack precisava tomar cuidado para não ficar preso também. Não estava fazendo nenhum progresso visível. Ele sacou uma faca de uma bainha no cinto e olhou para Seph. — Escute, você é bom com uma faca?

Seph não tinha talento algum com uma faca, mas a agarrou e começou a cortar as grossas gavinhas, cons­ciente do tempo que passava, trabalhando tão rápido quanto possível ao mesmo tempo em que tentava ficar longe de órgãos vitais. Em torno deles, a teia parecia gargalhar em triunfo.

Após cinco minutos, Ellen continuava tão presa quanto antes. Ela ergueu os olhos para Jack e Seph.

  • Vão em frente — disse ela. — Vocês já perderam tempo demais.
    • Não — disse Jack com teimosia, cortando os fios junto à cintura dela, seus cabelos empapados de suor.
      • A Linda nos disse para levar o Seph para o Santuário. Leve-o e volte para me buscar. Eu posso me cuidar.

—  Sei — grunhiu Jack. — Contra magos. Quando você está entrouxada aí como um...

—  E de quem é a culpa? Quero dizer, se você fosse um pouco menos desajeitado com essa sua espada...

—  Nem pense que vai conseguir me deixar furioso o bastante para abandonar você aqui.

—  Eu conheço aquelas pessoas — disse Seph, cortando o fio que prendia os tornozelos dela. — A gente não vai deixar você aqui.

—  Brilhante. Vamos ser capturados, todos os três.

Como eles não respondessem, ela acrescentou:

  • Vocês sabem que eu tenho razão.

—  Está certo! — Jack enxugou o suor que lhe corria pelo rosto. — Venha cá, você! — disse ele a Seph. — Quanto mais rápido a gente atravessar, mais rápido eu posso voltar.

Jack deu as costas a Ellen num giro e começou a cortar de novo com fúria, lançando gavinhas para todos os lados. O choro lamurioso recomeçou. Eles avançaram rapidamente. Eram provavelmente outros 18 metros até a parede interna da barreira, e depois 800 metros até os limites da cidade.

Quando chegaram ao outro lado, Seph se virou e olhou para trás, para Ellen. Ela estava quieta, sem lutar mais. Quando o viu olhando para ela, Ellen fez uma carranca e acenou para que fossem embora.

  • Vá buscá-la — disse Seph. — Eu vou o resto do caminho sozinho.

Jack sacudiu a cabeça. Eles estariam em campo aberto desde a borda da barreira até os limites da cidade.

— Vamos.

Jack começou a atravessar o campo correndo, as longas pernas cobrindo a distância em grandes saltos. Seph se­guiu, determinado a acompanhar-lhe o passo, apesar das queixas dos músculos torturados e do corpo machucado.

 

Assim que eles passaram pela borda da barreira, Ellen não conseguiu mais enxergar Seph e Jack, nem ouvir os sons do progresso deles, apenas o sussurro satis­feito da teia em torno dela. Tentou ignorar o ruído. Era desconfortável, mas ela permaneceu parada, pois a teia apertava-se ao redor dela toda vez que se mexia. Uma vaca passou pela barreira e parou a alguns metros de distância, encarando-a com curiosidade. A vaca ergueu a cabeça e olhou para o outro lado da trilha. Ellen escutou algo também. Alguém se aproximava.

Era um dos quatro jovens magos que eles haviam en­contrado ao sair da cidade. Tinha cabelos loiros, quase brancos, penteados para trás e uma barba por fazer tão clara que era quase translúcida. Os olhos eram de uma cor diluída, como uma fina camada de cal sobre azul.

Ele pareceu surpreso ao ver Ellen, como se fosse incon­cebível que ela desobedecesse às suas ordens.

— Você, de novo! Eu falei pra não tocar nisso.

As gavinhas que compunham a barreira responderam à presença dele como serpentes encantadas por um faquir, enroscando-se em seus ombros e deslizando entre seus pés, e murmuravam com excitação.

—- Eu só estava tentando voltar pra cidade e fiquei presa.

Ellen assumiu o que esperava ser uma expressão neutra e estúpida. Havia passado uma vida inteira mentindo para magos. A arrogância deles facilitava bastante.

  • O que é isso? — O mago libertou gentilmente a es­pada de Ellen do nó de cipós e examinou-a, virando-a sob a luz. Ele ensaiou alguns golpes, segurando-a como um taco de golfe. — Isto é fantástico. Onde conseguiu?
  • Comprei de um mercador.

—  Você tem mais peças como esta?

Ellen sacudiu a cabeça, vendo o mago brandir a espada e desejando poder pôr as mãos nela.

—  Você ê o quê, uma feiticeira?

  • Não sei do que você está falando.

O mago revirou os olhos.

  • Qual é o seu nome?

Não era boa idéia dar a um mago informações pessoais.

  • Com dois Ks e um I. Qual é o seu?

—  Warren Barber. — Ele a olhou com suspeita. — Olha, amorzinho, eu sei que está acontecendo alguma coisa. Fogos. Explosões. Pessoas correndo por aí com espadas mágicas. Velhotes em carros esporte.

—  Tem sido assim desde que eles montaram o San­tuário. Ele atrai todo o tipo de ralé. Costumava ser uma cidadezinha tranqüila. — Ela ergueu os olhos para ele. — E aí? Será que dá para me tirar desta teia?

Barber depositou a espada no chão com cuidado, fora do alcance de Ellen, e começou a cantarolar feitiços, seduzindo os fios para longe do corpo de Ellen até que as pernas dela estivessem livres. Ele manteve as mãos dela atadas com firmeza. Ela estendeu os pulsos presos.

  • Para que isso?
  • Tenho a sensação de que você sabe mais do que está dizendo. Acho que, com um pouco de persuasão, você vai me contar o que é.

Ele sorriu e estendeu as mãos.

Ellen sabia bem quão doloroso o toque de um mago podia ser. Lá se ia a coexistência pacífica. Ela dobrou as pernas e usou a cabeça como aríete contra o rosto de Barber, sentindo o nariz dele se esmigalhar com o impacto. Ela aterrissou rolando e agarrou o punho da espada com as mãos presas. Balançando a lâmina para cima, apontou-a contra o tórax do mago, as chamas dançando avidamente na ponta. Mas ele pulou para fora de seu alcance, tecendo com as mãos fios adicionais que serpentearam ao redor do corpo de Ellen, apesar dos esforços dela de cortá-los. Eles se contraíram até que ela ficou totalmente imóvel, e então Barber arrancou a espada de suas mãos e colocou-a de lado.

Ele se ajoelhou e inclinou-se sobre ela, o sangue jor­rando do nariz quebrado, o rosto pálido salpicado de roxo devido à fúria. Ele pôs as mãos quentes de mago ao redor da garganta dela e apertou. Ela se contorceu e revirou sob o peso dele, mas não conseguiu se libertar. Pontos dançavam diante de seus olhos e se fundiram, mergulhando-a nas trevas.

Algo se chocou contra eles. O peso do mago não estava mais sobre ela, e a traqueia estava milagrosamente livre. Ellen inspirou grandes lufadas de ar até que a visão clareou. Ergueu os olhos e viu Jack e Barber circulando um ao redor do outro como lutadores pagos pelo número de rounds disputados.

  • Você está bem, Ellen? — indagou Jack, sem tirar os olhos de Barber.
    • Estou ótima — resmungou ela, sentindo-se estúpida, caída ao chão, amarrada como um presunto de festa. — Me solte quando tiver um tempinho, sim?

Jack estendeu a mão por cima do ombro e desembainhou a espada, a Sombra Assassina, com um delicioso som sibilante. Ele mantinha os pés um pouco afastados, a espada apontada para o mago.

Barber recuou um passo, para fora do alcance imediato da lâmina, e lançou a mão no sentido de Jack. Chamas jorraram em direção ao rosto de Jack, mas ele as bloqueou com a espada.

Barber lançou um feitiço de imobilização, porém antes que este lhe saísse da boca, Jack falou o contra-feitiço, tropeçando um pouco nas palavras. Barber passou a língua pelos lábios.

  • Você é mago?
  • Talvez — respondeu Jack, mantendo-se em posição de prontidão, os olhos azuis duros e frios.

Barber fingiu que ia na direção de Jack e lançou uma rajada de chamas contra Ellen. Jack postou-se diante das chamas, empurrando Ellen para o lado. Línguas de fogo engolfaram o braço com que ele segurava a espada.

A Sombra Assassina escorregou-lhe da mão, caindo com um baque na grama alta. Praguejando, Jack saltou atrás da espada, mas Barber teceu longos fios que se enras­caram nas pernas de Jack e envolveram-lhe o corpo.

Quase com indolência, Barber ergueu as mãos para des­ferir um golpe fatal. Subitamente uma expressão peculiar se estampou em seu rosto. Ele oscilou, depois tombou para a frente na grama e ficou imóvel.

Finalmente livre, Jack recuperou a espada e se pôs de pé diante do mago, ambas as mãos segurando o punho da arma, a ponta da lâmina pressionando a nuca de Barber. Mas Barber estava totalmente apagado.

Seph McCauley se materializou diante dos olhos dele, como se surgisse em pleno ar, segurando um enorme galho como um bastão de beisebol. Quando ele viu que Barber estava realmente fora de ação, jogou o galho para o lado.

  • Foi o melhor que pude fazer — disse ele, em tom de desculpas. — Não posso lançar feitiços enquanto estou imperceptível. De qualquer modo, não sei muita magia.
    • Bom, está na cara que você aprendeu alguma coisa — disse Ellen, estendendo os pulsos para que Jack os soltasse.
  • Sem querer ser ingrato, que diabos você está fazendo aqui? — indagou Jack a Seph. — Eu falei pra você ficar onde estava.

Seph afastou os cabelos dos olhos.

  • Falou? Eu devo ter entendido mal. — Ele cutucou Barber com o pé. Nenhuma resposta. Seph olhou em torno. — Ei, a muralha se foi.

Ellen ergueu os olhos. A muralha estava se desinte­grando, dissolvendo-se em fiapos rasgados de névoa.

  • Acho que ela precisa de algum tipo de atenção cons­ciente de Barber para se manter intacta. — Seph deu de ombros. — Os outros magos vão saber que ele está fora da jogada. Agora parece um bom momento para a gente se mandar.

Com relutância, Jack afastou a lâmina do pescoço de Warren Barber e enfiou-a no boldrié. Estava pálido, suan­do e obviamente sentindo dor. O braço estava coberto de bolhas desde o pulso até o cotovelo, onde Barber o havia queimado.

  • Esse seu braço está horrível — disse Ellen. — Talvez o Nick possa dar uma olhada antes que a sua mãe veja.

Eles começaram a caminhar em direção à cidade, dessa vez cruzando os campos e pomares sem obstáculos.

Jack enxugou o suor da testa com a mão que não estava ferida.

  • Quem era aquele cara? — perguntou ele a Seph.
  • Meu colega de escola — disse Seph. — No Porto Seguro.
    • Deve ser um lugar fantástico, esse Porto Seguro — disse Jack com sarcasmo. Ele parecia estar de mau humor, provavelmente agravado pela dor no braço. Olhou de esguelha para Seph. — Não entendo por que estamos nos envolvendo numa briga entre magos.
  • Vamos nos envolver, quer você goste disso ou não — disse Ellen. — Você sabe disso.

Seph franziu o cenho.

  • Não espero que nenhum de vocês se envolva. Se depender de mim, não vou causar mais problemas pra vocês.

Estava completamente escuro àquela altura. Eles co­meçaram a caminhar ao longo da estrada em direção ao centro da cidade. Haviam caminhado cerca de um quilômetro e meio quando viram um carro frear e parar no acostamento. Era o Subaru preto, com Nick Snowbeard atrás do volante e Linda ao lado.

  • Ei! — disse Jack, tirando um conjunto de chaves de carro do bolso de trás. — Como deu partida no meu carro? — indagou, fingindo espanto. — Você pelo menos tem carteira de motorista?
  • Se eu tivesse, eles provavelmente a revogariam de­pois desta noite — respondeu Snowbeard.

 

Eles seguiram de carro até um pavilhão num parque junto ã margem do lago e se reuniram ao redor de uma surrada mesa de piquenique para o relatório da missão. Snowbeard acendeu uma luz mágica no centro, proje­tando uma iluminação suave sobre todos os participantes.

Linda estendeu o braço e tocou gentilmente a mão de Jack.

  • O que aconteceu com o seu braço?

Eles relataram a Snowbeard e Linda o encontro com Warren Barber.

  • Você pode fazer alguma coisa por ele, Nick? — pediu Linda.

Snowbeard estudou o ferimento, depois se inclinou na direção de Jack e segurou-o pelo pulso e ombro, com cuidado para não tocar a área coberta de bolhas. O poder fluiu em ondas por entre as mãos do velho mago, como um riacho fresco correndo sobre a pele de Jack. As bolhas diminuíram, embora a área continuasse com um tom vermelho berrante.

Jack soltou um longo suspiro e conseguiu abrir um sorriso.

  • Obrigado, Nick. Está bem melhor.
  • A probabilidade de infeccionar diminuiu agora, Jack, mas a área vai ficar sensível pelos próximos dias — disse Snowbeard. Ele se voltou para Ellen. — E quanto a você, minha querida?

Ellen tinha um colar de manchas roxas em torno do pescoço, mas ignorou a pergunta de Snowbeard. Seph tinha a impressão de que ela não era do tipo de pessoa que gostava de ser resgatada.

Jack se voltou para Snowbeard.

  • O que aconteceu com os outros magos? Cadê o BMW?

Snowbeard sorriu, girando a bengala nas mãos.

  • Eu consegui perfurar uma passagem considerável na teia com fogo mágico e outros truques do gênero. Aí lancei alguns fogos de artifício espetaculares. Quando os magos chegaram, pegamos o carro e corremos. Eles, é claro, presumiram que fossem Linda e Seph. Eles eram jovens e bastante entusiasmados. Nós os atraímos para uma longa perseguição, sem nunca entrarmos realmente no Santuário. Então estacionei no shopping junto ao cruzamento na rodovia. Nós entramos e nos misturamos à multidão. O carro de Linda ainda está lá.
  • Como vocês voltaram pra cidade? — indagou Ellen.
  • Encontramos uma família generosa disposta a nos dar uma carona — disse Snowbeard com naturalidade. — Dissemos a eles que havíamos perdido o último ônibus.
  • Achamos que íamos ter problemas para passar pela Teia Weir, mas ela já havia caído — acrescentou Linda.
  • Então — disse Seph. — O que vocês acham que está acontecendo?

Linda pigarreou.

  • O Leicester quer você de volta. Por algum mo­tivo. Barber trabalha para um mago chamado Gregory Leicester — explicou ela aos outros. — Ele era o diretor dessa escola particular no Maine em que o Seph estudava.

Ela olhou de relance para Seph e ele desviou o olhar.

  • Leicester também está no Conselho dos Magos — acrescentou Snowbeard, pensativo.
  • Eles não têm como ter certeza de que o Seph está aqui — disse Linda.

—  Eles viram o BMW — disse Ellen. — E viram você.

  • Mas não viram o Seph — retrucou Linda.

Snowbeard disse:

  • Estou me dando conta de que não há nada que a gente possa fazer para impedi-los de entrar na cidade e olhar por aí. E, dependendo de como se lê as Leis de Combate, eles poderiam encontrar um jeito de levar você ou o Seph para fora da cidade, utilizando truques ou força, desde que não usem magia.
    • Mas eu posso usar magia para me defender, certo? — Seph deu de ombros. — Supondo que eu encontre alguém pra me treinar.
    • Eu posso ensinar a você — disse Snowbeard, olhando de Seph para Linda e de volta para ele. — Dependendo do que você quiser aprender.
      • Ótimo. Obrigado. — Seph se voltou para Jack. — Hum... onde você aprendeu a usar uma espada daquele jeito?
    • Meu professor foi um mago chamado Leander Hastings — respondeu Jack. — Ele é especialista em treinar guerreiros. Ele me ensinou a lutar.

Hastings.

  • Ele mora em Trinity? — indagou Seph.
  • Não — respondeu Linda por Jack.
  • Eu adoraria aprender a lutar desse jeito — disse Seph.

Linda pôs a mão sobre o braço dele.

  • Seph, você não é guerreiro. Você sabe disso.
  • A maioria dos magos consegue o que quer sem lutar com ninguém — disse Jack. Ele olhou para o relógio e levantou-se da mesa. — É melhor eu ir pra casa. Tenho prova amanhã.
    • O que vocês dois vão fazer? — perguntou Ellen.
  • Vamos ficar na casa do Jack — disse Linda.
  • A gente não devia telefonar avisando primeiro, ou algo assim? — Seph olhou para Linda e depois para Jack.

Jack sacudiu a cabeça.

  • Minha mãe está acostumada a ver a tia Linda apa­recer inesperadamente. Se ela não aparecesse sem avisar, ela nunca apareceria.
  • Não se preocupe, Seph — disse Linda. — Pode acre­ditar, não vai ter problemas.

Quando voltaram para o carro, Jack sentou-se ao vo­lante, empurrando o assento para trás para acomodar as longas pernas. Snowbeard sentou-se ao lado dele, e os outros atrás.

  • Snowbeard mora num apartamento em cima da ga­ragem do Jack — explicou Linda. — Ele é um tipo de zelador de meio período. Foi o professor de magia do Jack também. Tem cuidado do Jack desde que ele era bebê.
  • Se os magos não precisam aprender a lutar, por que um guerreiro precisa de um professor de magia? — perguntou Seph.
    • Acho que se pode dizer que sou um tipo de mestiço — disse Jack, revirando os olhos. — Um mago com uma pedra de guerreiro. Ou um guerreiro com o corpo de um mago.

Outra longa história, aparentemente.

Jack e Ellen moravam a duas casas de distância uma da outra na Jefferson, uma rua de tijolos flanqueada por altas árvores frondosas e por enormes casas velhas as­sentadas sobre vastos gramados naturais. Eles deixaram Ellen em casa primeiro. O Subaru parou junto ao meio-fio, e Ellen desceu e tirou sua espada do porta-malas. Uma sombra se destacou da escuridão na varanda da frente da casa e veio na direção deles.

  • Oi, Will — disse Jack. — Esperando pela Ellen?
    • Oi, Jack. — Will se inclinou sobre a janela do passa­geiro. — Quando vejo a Ellen sair correndo de casa com um grande sorriso no rosto, carregando a espada, sei que significa encrenca. — Ele tinha a estatura de um jogador de futebol americano, talvez um zagueiro de linha. Tinha o cabelo escuro cortado rente e vestia shorts e uma regata. — Tia Linda! — Will a avistou no banco traseiro. — Eu devia saber. Deve haver feitiçaria em ação!
  • Oi, Will — disse Linda. — Este é Seph McCauley — continuou ela, pousando a mão no ombro de Seph. — Ele vai passar o verão na casa do Jack. — Ela disse aquilo como se fosse algo já combinado. — Seph, este é Will Childers, amigo do Jack. Não sou a tia dele de verdade, mas os amigos do Jack me chamam assim. Ellen veio morar com ele e os pais dele no ano passado, depois da Ravina do Corvo.

"Certo", pensou Seph. Vai ver é assim que são as coisas nas cidades pequenas: todos aparentados com todos, mo­rando nas casas uns dos outros. Talvez Trinity fosse sim­plesmente uma grande comunidade. Ele tentaria relaxar e ir com a maré.

  • Prazer em conhecer você, Seph — dizia Will. — Vejo você amanhã, Jack. Eu apareço lá pelas sete.

Will e Ellen caminharam na direção da casa. Os outros passaram com o carro por mais duas casas e viraram numa entrada de cascalho. Indo até os fundos de uma imensa casa vitoriana, pararam na frente de uma velha garagem separada da casa. Jack desligou o motor. Linda se virou para Seph.

  • A mãe de Jack, minha irmã, é Anaweir. Ela não sabe de nada desse negócio de magos e guerreiros. Tudo bem?

Seph assentiu.

Jack pegou sua arma no porta-malas. Snowbeard desejou-lhes boa-noite e subiu lentamente uma escada até andar sobre a garagem. Um instante depois, uma luz se acendeu na janela superior. Linda e Seph subiram os degraus de madeira atrás de Jack até alcançarem a porta de trás da casa, passando entre dois arbustos de hortênsias repletos de folhagens.

"Nós três devemos parecer bem assustadores", percebeu Seph, subitamente embaraçado. Embora o braço de Jack estivesse bem melhor do que antes, ele estava coberto de lama e grama, e Seph parecia ter estado no lado perdedor da briga. A muda de roupas nova dele ainda estava no BMW.

Uma escada estreita subia, conduzindo à escuridão logo além da porta de trás. Jack pôs o dedo sobre os lábios e desapareceu escada acima, retornando de mãos vazias e sem o boldrié. Então ele chamou:

  • Mãe! Está vestida? Eu trouxe convidados!
    • Estou no escritório — respondeu uma mulher. — É alguém que conheço?
  • Sim e não.

Linda e Seph seguiram Jack até o interior da cozinha. Era enorme, com piso de ladrilhos de cerâmica e uma grande mesa de jantar em estilo campestre. Caixas de comida encomendada de restaurantes enchiam o balcão junto à pia, com pratos sujos empilhados ao lado.

Uma mulher alta de cabelos loiro-avermelhados entrou no aposento com uma caneca de café na mão. Era óbvio de quem Jack puxara a cor do cabelo. Ela vestia calças jeans desbotadas, sólidas sandálias de estilo hippie e uma blusa com a inscrição PÃO E ROSAS. Havia nela aquele tipo de beleza madura, natural e franca.

  • Oi, Becka — disse Linda.
    • Linda! Quando chegou à cidade? — Becka saudou a encantadora, inclinando-se para um abraço rápido e forte. — Quanto tempo vai poder ficar?

Linda olhou para Seph.

  • Não tenho certeza.
  • Por que me dou ao trabalho de perguntar? Você sempre responde isso. — Ela se virou para Jack. — Jack, por onde andou? Você sabe que tem prova amanhã!

—  Ele estava comigo — disse Linda. — Desculpe.

Becka finalmente notou Seph, que ainda hesitava junto à entrada da cozinha.

  • Oh! — disse ela, pondo a mão na boca ao perceber os sinais da surra recente. Então ela sorriu e aproximou-se dele, estendendo as mãos. — Olá. Eu sou Becka Downey.
  • E eu, Seph McCauley — disse ele. — Prazer em co­nhecê-la.

Ele estendeu a mão, que ela tomou entre as suas e segurou por um minuto. Havia algo de reconfortante no gesto, como se ela já estivesse do lado dele. E, felizmente, ela não fez nenhuma pergunta. Sobre o rosto dele, pelo menos.

Becka virou-se para os restos de comida sobre o balcão, às suas costas.

  • Vocês já comeram?
    • Oh, sim, bastante — disse Seph, sentindo-se emba­raçado de novo.
  • Então vou buscar algo para beber, pelo menos. Tenho alguns refrigerantes lá embaixo na adega.
    • Eu vou com você — disse Linda.

Ambas as irmãs desapareceram escada abaixo.

  • É melhor você se sentar — disse Jack em tom irônico, apontando para as cadeiras em torno da mesa.

Seph sentou-se. Jack tirou quatro copos do armário, encheu-os com gelo e levou-os com cuidado para a mesa. Virou uma cadeira e sentou-se nela, apoiando os braços às costas e fitando Seph. Houve um silêncio constran­gedor.

  • É só você e a sua mãe? — perguntou Seph.

Jack fez que sim com a cabeça.

  • Meu pai mora em Boston. Eles são divorciados. Acho que, quando compraram a casa, pensaram que ficariam aqui para sempre. — Ele esfregou o queixo. — De onde você é?
  • Toronto, na maior parte do tempo — disse Seph automaticamente. — Mas me mudei várias vezes.

De repente, sentiu-se muito cansado.

  • Está em que ano, segundo?

Seph assentiu.

  • A tia Linda disse que os seus pais morreram?

Seph ignorou a implicação da pergunta, a que ele, de qualquer modo, não sabia responder. Felizmente, bem naquele momento, Becka e Linda emergiram da adega com garrafas de root beer, um tipo de refrigerante feito de raízes, reluzindo devido à condensação. Elas enfileiraram as garrafas no balcão e as abriram. Depositando uma garrafa na frente de Seph, Becka sorriu e pousou a mão sobre seu ombro. Seph perguntou-se sobre o que elas haviam conversado lá embaixo. Não teve de esperar muito para descobrir.

  • Seph, a Linda me disse que você precisa de um lugar pra ficar neste verão. Jack e eu adoraríamos ter você aqui. Vai nos dar um pretexto pra acabar de pôr o papel de parede no quarto do segundo andar.

Seph sentiu o sangue subir-lhe às faces.

  • Sério, eu...

Becka foi adiante, sem recuar.

  • Seria ótimo. A gente vai poder ver a Linda mais vezes, já que eu sei que ela quer passar algum tempo com você. E o Jack pode apresentar você aos amigos dele.

Seph olhou de relance para Jack, que provavelmente sabia que não valia a pena objetar.

  • Eu realmente não quero incomodar...
  • Se isso fizer você se sentir melhor, você pode ajudar o Nick com o papel de parede. Tem sempre bastante trabalho a ser feito por aqui. Por favor, diga que vai ficar.

Sem palavras, Seph concordou com um gesto de cabeça. Era difícil dizer não à mãe de Jack.

  • Então está tudo combinado. — Ela sorriu para Seph. — Por que não traz as suas coisas?

Seph olhou para Linda em busca de auxílio. Ela inter­feriu rapidamente.

  • Não temos muita coisa, porque nós... ahn... está­vamos com pressa. Vamos arranjar algumas roupas pra você amanhã, Seph.
  • Aposto que algumas das roupas velhas do Jack vão servir em você — sugeriu Becka. — Aquelas de antes do surto de crescimento do ano passado. — Ela riu. —Temos roupas em três tamanhos lá em cima. Mal foram usadas.

Eles mudaram de assunto. Linda perguntou sobre o trabalho de Becka e sobre pessoas de quem Seph nunca ouvira falar. As vozes se esvaíram gradualmente num tipo de zumbido. Seph abriu os olhou e viu que todos o encaravam. Ele adormecera à mesa.

  • Desculpem-me — murmurou ele, mortiflcado. — Não é que vocês sejam entediantes. Juro.

Todos riram.

  • Jack, por que você não leva o Seph lá pra cima e o ajuda a fazer a cama? — sugeriu Becka. — E você precisa ir dormir também. Espero que tenha tido tempo pra estudar antes da chegada da sua tia.

Jack levou o copo para a pia, depois fez um gesto de cabeça indicando a escadas dos fundos. Eles subiram a escadaria estreita até o primeiro andar. Jack apanhou uma pilha de lençóis e toalhas em um armário de roupas de cama no corredor, e eles subiram outro lance de escadas até o segundo andar.

Havia quatro quartos no segundo andar, três dos quais estavam entulhados do chão até o teto com mobília velha, armários de arquivos e caixas de livros. O quarto maior estava mobiliado apenas com uma cama de casal, uma estante de livros e uma penteadeira. Uma parede e meia estava recoberta de papel com uma estampa de William Morris. Mais rolos de papel e uma bandeja para rolo es­tavam apoiados contra a parede. Havia um banheiro num dos lados. A cama não estava feita, e tudo estava coberto com uma fina camada de poeira. Era sufocantemente quente e abafado.

  • Eu planejava me mudar pra cá se ficasse termi­nado algum dia — explicou Jack. — Quem sabe agora finalmente aconteça. Espero que você não seja alérgico a poeira. — Ele largou os lençóis na cama e forçou uma das janelas para que se abrisse enquanto Seph foi lutar com a outra, que parecia ter sido selada com tinta. Com as janelas abertas, uma brisa fresca trouxe para dentro os sons suaves da noite de verão.

Jack e Seph enrolaram a colcha e estenderam o lençol sobre o colchão. Seph trabalhava com rapidez e eficiência, apesar de semi-adormecido. Ele havia feito milhares de camas na vida.

  • Olha — disse ele a Jack enquanto ajeitava o lençol no canto com perfeição. — Sinto muito por me mudar pra sua casa desse jeito.

Ele não parecia se lembrar de que os magos nunca pedem desculpas.

Jack terminou o lado dele também, com menos habili­dade.

  • Tudo bem. Mesmo. Não quis ser rude. Eu só preciso me acostumar com a idéia. Acho que se pode dizer que tive um bocado de problemas com magos. — Ele olhou para Seph, do outro lado da cama. — Quer dizer que você e a tia Linda se conhecem há muito tempo. — Havia uma pergunta oculta naquela declaração.

—  Vi sua tia ontem pela primeira vez — replicou Seph.

  • Ela disse que é minha tutora há anos, mas isso foi novidade pra mim.

Jack franziu a testa.

  • É, bem... — a voz dele sumiu. — Tenho certeza de que existe uma boa explicação para isso.
  • Suponho que sim. — Seph deu de ombros. — É verdade que você namorou a Alicia Middleton?

Jack se endireitou, quase batendo a cabeça no teto.

  • Quê?
  • Eu trombei com ela em Toronto, só isso. Ela mencionou o seu nome. — Ele arqueou uma sobrancelha.

—  Ela me pareceu ser do tipo que traz encrenca. Jack encarou Seph. Depois balançou a cabeça.

  • Olha, também não sei o que está acontecendo. Mas vou dizer isto: tive um ano infernal dois anos atrás. Co­meçou com a Leesha e terminou com o torneio na Ravina do Corvo. A Ellen foi a única coisa boa que saiu daquilo. Ela e a criação do Santuário. — Ele se apoiou no espaldar da cama, e os músculos se salientaram ao longo de seus braços. — Este último ano tem sido bom e tranqüilo. Em Trinity, pelo menos. Não sei quanto tempo vai durar, mas só espero que não seja você quem vai atrapalhar as coisas.
    • Ele sorriu, como se tentasse amainar a rispidez da frase, mas os olhos azuis eram frios e diretos. — Vou buscar um calção para você dormir.

Quando Jack subiu de novo as escadas com uma pilha de roupas, Seph já dormia profundamente sobre a colcha.

 

                   O Santuário

Quando Seph acordou, o sol se insinuava por entre os galhos, iluminando todo o quarto. Ele precisou de um momento para se lembrar de onde estava. Fazia muito tempo que não dormia tanto e tão profundamente. Estava ainda deitado sobre a colcha.

Havia um monte de roupas empilhado ao pé da cama. Ele encontrou uma escova de dentes, toalhas e sabonete no banheiro, e era óbvio que alguém tinha limpado o lugar. Lavou o rosto com cuidado. O inchaço no lábio havia diminuído, mas o resto ainda parecia bem ruim, tendo passado de vermelho e roxo para roxo e amarelo. O que ele realmente queria era tomar um longo banho quente. Em vez disso, experimentou as roupas até encontrar um par de jeans que desse para usar. Vestiu uma camiseta que dizia FUTEBOL DE TRINITY e desceu as escadas.

A casa se esvaziara enquanto ele dormia. Havia copos e xícaras sujas de café na pia, caixas de cereal sobre o balcão e um jornal aberto sobre a mesa. Ele se serviu de suco.

  • Seph, é você? — Linda apareceu à porta, descalça, vestindo jeans e uma regata. Ela não parecia muito mais velha do que Seph. — Estamos na varanda.

Seph saiu à varanda cercada de tela. O piso de pedra es­tava frio sob seus pés descalços. Linda e Nick Snowbeard sentavam-se em duas cadeiras de vime. Linda tinha uma caneca de chá diante de si sobre a mesa de vidro.

—  Oi.

Seph fez uma pausa. Ainda não havia se decidido sobre como deveria chamar Linda Downey. Ela percebeu a hesi­tação.

—  Por que não me chama de tia Linda? — sugeriu ela. — É o que todos os outros fazem. Acho que sou uma ótima tia — acrescentou ela, como se tentando assegurar a si mesma.

Seph pôs o suco na mesa e puxou uma cadeira.

—  Cadê todo mundo? — perguntou ele.

—  O Jack está na escola. A Becka, na universidade. — Linda pôs os pés sob o corpo e acomodou a caneca de chá no colo. — Por isso estamos só nós.

Seph tomou um gole de suco. Os lábios e a língua ainda pareciam inchados e desajeitados.

—  O que você disse à sua irmã a meu respeito?

—  Disse que você estava fugindo de uma família vio­lenta. Os seus pais batiam em você. E que eu não consegui tirar você da casa, por isso raptei você.

—  Isso não é ilegal? — indagou Seph.

—  A Becka nem sempre joga segundo as regras. Ela tem um fraco por crianças com problemas. Eu sabia que ela ia acolher você.

  • Finalmente consigo uma família, e eles me batem.
    • Seph olhou de esguelha para Linda. — Bem. Se vou ficar aqui todo o verão, gostaria de achar algum tipo de emprego de meio período.

Ela franziu a testa.

  • Se você precisa de dinheiro, eu...
  • Estou acostumado a trabalhar. Quero ganhar para, pelo menos, pagar o que gastar.

Seph queria uma fonte de renda que não passasse por Linda Downey. Que não envolvesse perguntas e explica­ções e contatos com a firma de advocacia.

  • Quem sabe ele possa trabalhar para o Harold Fry - sugeriu Nick. — O Jack vai trabalhar para ele como tripulante neste verão, então talvez ele precise de alguém nas docas e no escritório.
  • Quem é Harold Fry? — indagou Seph.
  • Ele dirige uma agência de excursões de pesca na baía oeste do lago Erie — explicou Nick. — É um dos meus parceiros de xadrez. Eu posso falar com ele.
    • Pode mesmo? Não sei muito sobre pesca, mas estou disposto a aprender. Obrigado. — Seph estava contente de ver que o velho mago estava disposto a ajudá-lo. Ele se voltou para Linda e continuou com o polido interrogatório.
      • Quer dizer que o Jack foi o guerreiro que lutou no famoso torneio na Ravina do Corvo.
    • O Jack e a Ellen Stephenson.
      • O Jack e a Ellen lutaram um contra o outro? Esses torneios não são até a morte?
        • Bem, eles se recusaram a matar um ao outro. Isso começou tudo. — Ela sorriu com ironia ante a expressão no rosto de Seph. — Os Juízes de Campo cometeram o erro de tentar alterar as regras durante o torneio. Foi a primeira vez que fizeram isso, em quase mil anos. Eles não perceberam que quebrar o pacto os deixaria vulneráveis. Foram forçados a fazer outras mudanças também. As velhas regras estabeleciam o reinado dos magos sobre os Weirs. Os guerreiros, encantadores e feiticeiros podem ser poderosos em relação aos Anaweirs, mas sempre es­tivemos à mercê dos magos, tratados como brinquedos, gladiadores e escravos. As novas regras acabaram com a velha hierarquia e exigem a participação de todas as ordens no processo de decisão. — Ela deu de ombros. — É por isso que está havendo tanto tumulto. Ninguém sabe bem como implementar isso. Há uma desconfiança considerável entre as ordens. Os outros Weirs não estão ansiosos para se sentar numa sala com um bando de magos. Eles temem por suas vidas.
      • Nem todos os magos são assim — retrucou Seph.

Linda concordou com a cabeça.

  • Especialmente aqui nos Estados Unidos, as famílias são misturadas. Jack é guerreiro; eu sou encantadora. Leander Hastings é mago; a irmã dele era guerreira. Há muitos magos como Hastings, que odeiam o velho sistema. Eles gostariam de fazer o novo sistema funcionar.

Seph empurrou a tigela de cereal para o lado e se recostou na cadeira de vime.

  • Como é a relação entre o Jack e a Ellen agora?
  • Oh, eles brigam o tempo todo. Dentro e fora do campo. — Linda riu. — Guerreiros apaixonados.

Seph refletiu sobre aquilo por um momento, então de­cidiu mudar de assunto. Voltou-se para Snowbeard.

  • Quando posso começar o meu treinamento? Já li muita coisa.

Pensou na biblioteca no Porto Seguro, todas aquelas fileiras de livros antigos.

Os olhos de Snowbeard pousaram brevemente sobre Linda. Ela assentiu com relutância.

  • Há um Livro Weir para nós usarmos? — indagou o mago.

Uma outra troca de olhares significativos entre Linda e Snowbeard.

Ele também sabe o segredo, seja lá qual for.

—  Vocês podem usar o do Jack — sugeriu Linda.

  • O Livro Weir de um guerreiro pode me ajudar em alguma coisa? — perguntou Seph. O Livro Weir de Jason incluía páginas de feitiços e encantamentos. — Os guer­reiros não usam feitiços, usam?

Linda fitou as próprias mãos.

  • Na verdade, é um livro de mago. Lembre-se: o Jack era um mago nascido sem uma pedra. Uma maga im­plantou uma pedra de guerreiro nele. É por isso que ele também consegue fazer um pouco de magia. Nick ensinou-o também.

Seph sacudiu a cabeça.

  • Não entendi.
    • O Jack estava morrendo, por isso eu encontrei uma médica, uma maga chamada Jessamine Longbranch — disse Linda, em um tom um tanto defensivo. — Ela me enganou e implantou a pedra errada, torcendo para que isso não o matasse. Ela planejava usar o Jack no Jogo, se aquilo funcionasse. Foi assim que ele acabou no torneio no verão passado.

Seph estava começando a entender Jack um pouco melhor. Mas, naquele momento, ele não tinha vontade de ser cooperativo.

  • E se eu quiser usar o meu próprio Livro Weir? — perguntou, em tom propositalmente abrupto.

Ele sustentou o olhar dela, experimentando forçar um pouco a mente, aplicando um pouco de pressão. Ela pareceu surpresa, depois zangada, e então empurrou de volta com força. Ela era mestra da magia mental, não havia a menor dúvida.

  • Não tente isso comigo — protestou ela. — Vai ter de trabalhar com o que temos.

"Ela sabe onde o livro está", pensou Seph. Tinha certeza disso.

  • Podemos começar hoje, se quiser — disse Snowbeard, voltando-se para Linda em busca de instruções.
  • Seph, que tal eu mostrar um pouco da cidade pra você primeiro? Aí nós três podemos ir buscar o meu carro. Você e o Nick podem começar depois do almoço. Dá pra esperar até lá? — perguntou ela, com sarcasmo.
  • Sem problemas — disse Seph. — Vou buscar os meus sapatos.

Ele levou os pratos para a cozinha.

  • A gente deve estar de volta em torno de uma hora. — Linda enfiou os pés nas sandálias e se levantou. —Vamos.

Era um lindo dia de fim de primavera. Agora, sob a luz do sol, Seph viu que a rua Jefferson era ladeada por adoráveis casas velhas de estilo vitoriano em cores au­tênticas, vistosamente decoradas, belamente restauradas. Muitas delas eram cercadas por jardins plantados com flores tradicionais: peônias, íris, corações-de-maria e esporinhas. Cones azuis e roxos de tremoceiros decoravam a entrada da casa do outro lado da rua. "A cidade deve ter sido rica uns cem anos atrás", pensou ele, para ter dado origem a um bairro como aquele. O lugar lembrava-lhe Cabbagetown, em Toronto.

Jack havia deixado o Subaru para que eles o usassem. Enquanto dirigia pela rua, Linda cumprimentou com a cabeça um homem de cabelos brancos curtos e camadas de jóias prateadas que apanhava o jornal à entrada da garagem. Do outro lado da rua, uma mulher mais velha com nuvens de cabelo grisalho trabalhava no jardim. Ela vestia calças folgadas e uma jaqueta curta de estilo oriental. Ela acenou para Linda como se a reconhecesse, mas pareceu estar examinando Seph.

Seph se virou para olhá-los após terem passado por eles.

  • Você os conhece? — indagou, voltando-se de novo para a frente.

Linda assentiu.

  • Mercedes Foster é feiticeira e tecelã. Blaise Highbourne é adivinho e artesão; ele trabalha com prata. Temos uma comunidade interessante aqui na rua Jefferson: magos, feiticeiros, adivinhos e guerreiros. Há mais Weirs na cidade do que nunca. O estabelecimento do Santuário tornou Trinity atraente para os Weirs Anamagos, as ordens dos que não são magos e que costumavam ser controladas pelos magos. — Ela freou para permitir que um gato gordo, malhado de cinza e negro, atravessasse a rua. — Trinity sempre foi um refúgio para artistas e pessoas da contracultura ligadas à universidade. Por isso os Weirs se encaixam muito bem.

Ela lhe mostrou o colégio, um prédio relativamente novo no extremo oeste da cidade. Como era semana de provas, grupos de alunos se aglomeravam no estacionamento, conversando ou esperando por caronas.

Seph pensou no Porto Seguro. A escola estaria em funcionamento por mais uma semana, depois os Anaweirs se dispersariam, voltando a seus lugares de origem, dei­xando os magos para trás. Ele se perguntou que história teriam inventado para explicar o desaparecimento dele. Se é que haviam dado alguma explicação.

O centro da cidade tinha uma aparência familiar, eu- ropeia. Era construído ao redor de uma grande praça, cercada pelos edifícios de pedra do século XIX da Faculda­de de Trinity. Pequenas lojas contornavam o campus: lojas de arte e livrarias, galerias e restaurantes. Linda explicou que tanto Blaise como Mercedes tinham lojas naquela área. Eles estacionaram em uma vaga junto ao gramado.

O ar estava fresco sob as árvores, e os sapatos de Seph logo ficaram encharcados devido à grama molhada. Um grupo de pessoas estava reunido em torno de um pavi­lhão de tijolos e pedra no centro da praça, concentradas numa estrutura em mármore que se estendia acima de suas cabeças. Vozes excitadas se espalhavam por sobre o gramado.

  • É só uma fonte — disse Linda, parecendo perplexa. — Uma obra neoclássica. Não consigo imaginar por que todos possam estar tão interessados nela. Talvez alguém esteja fazendo um discurso.

Curiosos, eles mudaram de direção e rumaram para a fonte. Haviam quase chegado lá quando foram intercep­tados.

  • Downey?

Era um homem grande, corpulento, com cabelo cor de areia e um bigode grisalho, vestindo um casaco esporte marrom puído nos cotovelos. O tecido estava esticado nos ombros e costas.

  • Downey — repetiu ele. — Achei que era a senhorita. Talvez não se lembre de mim. Ross Childers. O filho do meu irmão Bill, o Will, é amigo do seu sobrinho, Jack. Nós... ahn... nos conhecemos depois daquele incidente no colégio no ano passado.

Linda sorriu.

  • É claro. É bom vê-lo de novo, sargento.

—  Por favor, me chame de Ross.

Ela assentiu.

—  Ross.

  • Está aqui de visita, imagino? — Ele estreitou os olhos para Seph. — Meu Deus! O que aconteceu com o seu rosto, meu filho?

Seph quase tinha se esquecido de sua aparência, e a pergunta o pegou de surpresa. Ele pestanejou e falou:

  • Fui atingido por uma bola rápida.
  • Me desculpe — disse Linda, afobada. — Eu devia fazer as apresentações. Seph, este é Ross Childers. Ele é sargento da polícia de Trinity.

Childers enfiou as mãos nos bolsos das calças.

—  Investigador agora, na verdade.

  • Investigador — corrigiu ela. — Ross é tio do Will. Você se lembra, o amigo do Jack? Você o conheceu quando deixamos a Ellen em casa ontem à noite. Ross, este é Seph McCauley. Ele vai passar o verão na casa da Becka.

—  McCauley?

O investigador franziu o cenho e virou-se para olhar para o grupo de pessoas em torno da fonte, depois se voltou de novo para Seph.

  • O que está acontecendo ali? — indagou Linda, se- guindo-lhe o olhar.
  • Houve algum tipo de vandalismo durante a noite — respondeu Ross. — Meio bizarro. Venha dar uma olhada.

Para a surpresa de Seph, o investigador pousou uma mão sobre o ombro dele e empurrou-o rapidamente em direção à fonte. Linda teve de se apressar para acom­panhá-los.

O grupo se abriu o suficiente para deixá-los passar. Todos pareciam conhecer o investigador da polícia, mas olhavam com curiosidade para Seph e Linda.

A fonte era feita de mármore branco, uma coleção de cenas da mitologia grega. No centro do tanque, erguia-se uma estátua de Perseu segurando a cabeça da Medusa. A Medusa decapitada estava caída aos pés dele, e ao lado dela jazia um outro corpo sem cabeça, vestido com uma camiseta dos Toronto Blue Jays e calças jeans. Havia respingos de sangue por todos os lados sobre o mármore branco, drenado do corpo quando a água o atingia. O sangue jorrava da fonte e caía no tanque sangrento lá em baixo com um som suave, como chuva.

No caso de aquilo não ser claro o bastante, uma men­sagem em letras grandes e fortes estava rabiscada em sangue nas costas do banco de mármore que circundava a fonte. McCauley.

Seph tentou se afastar da carnificina, mas o braço de Ross Childers o manteve no lugar.

  • Uma sujeirada. — O investigador fitou Seph com olhos astutos. — Não acha?

De algum modo, Seph conseguiu fazer as palavras saírem, num engasgo.

  • O senhor... o senhor sabe quem é?

Ross deixou-o esperar por um longo minuto, depois disse:

  • É um manequim. Eles o vestiram e cortaram a cabeça fora. Então mataram algum tipo de animal... um porco, talvez... e deixaram o sangue pingar na fonte. Bem doentio. — Ele fez uma pausa. — Você assina o seu trabalho, Seph?
  • Eu nunca pensei que o senhor fosse idiota, investi­gador, mas acho que me enganei — protestou Linda.

Ross assentiu com a cabeça, mal-humorado.

  • Até onde posso julgar, isso foi uma completa surpresa pra ele. — Ele suspirou como se estivesse infeliz com aquela missão. — Mas isso não significa que ele não possa nos ajudar a descobrir quem fez isso. Ele chega na cidade e, de repente, alguém apronta uma encenação maluca no parque e assina o nome dele. Deve ser al­guém que ele conhece. — Ele se moveu para o lado, na esperança de se dirigir a Seph diretamente, mas Linda colocou-se no meio, de modo que ele teve de falar por sobre a cabeça dela. — Blue Jays. Esse é o seu time, Seph? — Seph apenas baixou o olhar para as próprias mãos. — Conhece alguém que poderia fazer algo assim? Você costuma brincar com magia negra?
  • Sou católico — replicou Seph num sussurro. — Não faço essas coisas.

Linda olhou de esguelha para Seph e mudou de tática.

  • Veja, essas roupas aí são do Seph. Deixamos o meu carro no shopping na entrada da cidade, na noite passada, enquanto o Nick, o Jack e eu mostrávamos a cidade para o Seph. As roupas estavam lá. O plano era ir buscar o carro hoje. Alguém deve ter arrombado e levado as roupas. Como é que vamos saber quem foi? Seph acabou de chegar de uma escola na Nova Inglaterra. Ele nunca esteve aqui antes e não conhece ninguém daqui, não é?

Linda olhou para Seph, e ele concordou com um gesto de cabeça. Seph é que não iria reclamar de ela estar inventando uma história.

Ross massageou as têmporas.

  • Talvez nós três devêssemos dar uma olhada no carro — sugeriu ele.

Linda não concordou.

  • Só você e eu. Vou levar o Seph para casa.
  • Eu me desculpei, não foi? — Ross parecia mesmo arrependido. — Escute, eu apanho você na casa da Becka lá pelas duas.

Seph não teve muito a dizer no caminho de volta à rua Jefferson. Nada, na verdade.

  • O que foi? — disse Linda, enfim.

Seph pigarreou. Ele não queria parecer ingrato. Afinal, Linda Downey o havia resgatado do Porto Seguro apenas dois dias antes.

  • Achei que aqui era um santuário.

Linda voltou-se para ele.

  • E é. Este é o lugar mais seguro pra você.
    • Então por que eu não me sinto seguro? — Seph tocou na dyrne sefa com a ponta dos dedos e apoiou a testa contra a janela lateral. — Eles já estavam nos esperando quando chegamos aqui. Eles foram atrás da Ellen. Agora isso. Não faz sentido. Leicester me deixou ir, não foi? Ou você simplesmente pôs um feitiço nele, e agora passou o efeito?
  • Pense um pouco. Por que acha que ele tentou impedir você de chegar a Trinity? Enquanto as regras valerem, ele não pode atacar você aqui. Infelizmente, as regras não os proíbem de tentar matar você de susto.

A outra possibilidade era que Gregory Leicester esti­vesse reforçando o aviso a Seph para não revelar nada sobre suas experiências no Porto Seguro.

  • Bem, eles sabem exatamente onde estou. Não gosto de ficar esperando por uma emboscada. Quem sabe eu deva ir embora. Achar um acampamento de verão pra mim no Canadá, talvez. Estou acostumado a me virar sozinho.
    • É exatamente isso o que eles estão torcendo pra que você faça. Prometa que vai ficar na cidade.

Seph deu de ombros. Não ia prometer nada. Mas ele precisava mesmo de treinamento em magia e, naquele momento, Nick Snowbeard era a única opção de que dispunha.

Era quase uma hora quando estacionaram na garagem.

Snowbeard os aguardava na varanda. Linda contou ao velho sobre a bizarra cena na fonte. Ele fez algumas per­guntas detalhadas e poucos comentários. Linda subiu a escada e voltou com um livro em capa de couro.

  • Este é o Livro Weir do Jack — explicou ela, abrindo-o na última página e apontando para o nome dele inscrito no fim de uma árvore genealógica.

Ela o entregou a Seph. Ele examinou a genealogia e passou rapidamente para a seção sobre feitiços e encanta­mentos.

Ouviu-se uma batida na porta da frente. Linda se le­vantou e apanhou a bolsa.

  • Ross Childers e eu vamos pegar meu carro e, provavelmente, passar na delegacia para fazer um boletim de ocorrência. Isso deve dar a vocês dois tempos para a lição.

E então ela saiu das sombras da varanda para a luz brilhante do sol.

Seph achou que Snowbeard lhe pediria uma demons­tração de que tipo de magia ele já sabia, mas não o fez. Em vez disso, o velho mago juntou os dedos das mãos em forma de torre e falou numa voz suave, quase formal.

  • Você pode me chamar de Nick. Devo chamá-lo de Seph?

Seph assentiu.

  • Vamos começar pelo princípio, Seph, e firmar os alicerces. Você talvez já saiba um pouco disso, mas é bom repetir. Este não é o tipo de educação que se deva receber em pequenas doses, como aconteceu com você.

Ele fez uma pausa momentânea, como que ordenando uma miríade de arquivos mentais.

  • Os magos podem invocar três tipos de magia: corpórea, pelo corpo, incorpórea, pela mente, e langue d'charme, por palavras de poder, os encantamentos. Os magos dominam há muito tempo as outras ordens mágicas, em virtude de um pacto enganoso imposto a elas na Ravina do Corvo, na Bretanha, séculos atrás. Com a exceção dos magos, cada ordem opera num campo específico de magia, e cada uma é superior em seu próprio campo. Por exemplo, os guerreiros como o Jack e a Ellen são superiores no mundo físico e corpóreo da guerra. A magia deles depende de proximidade e força física. Não há magia mental nisso. Numa luta física justa, um guerreiro vai derrotar um mago todas as vezes. — Ele sorriu com tristeza. — Naturalmente, um mago não enfrentaria um guerreiro numa luta justa. Nós temos outros modos de dominar.
  • Encantadores como a Linda se especializam na magia mental e nas emoções — prosseguiu Nick. — Mais uma vez, eles são supremos em seu próprio campo. Até os magos têm dificuldade de resistir a um encantador, e os Anaweirs são especialmente vulneráveis a eles. Os feiticeiros se especializam na magia material. Criam ferramentas, misturas, materiais que podem realizar tarefas mágicas ou aumentar a magia de outros. Eles costumavam ser bem mais poderosos do que são hoje em dia. Muitos dos segredos dos feiticeiros se perderam com o passar do tempo. É por isso que os talismãs dos tempos antigos são altamente valorizados.

Seph sentiu intensamente o peso da dyrne sefa sob a camisa.

  • Os adivinhos são provavelmente os menos poderosos dos Weirs. Eles vêem o futuro, mas muitas vezes não con­seguem interpretar as visões a tempo de fazer qualquer coisa. Alguns deles usam talismãs... espelhos, cristais e coisas assim... para focalizar e concentrar o poder, para torná-lo mais eficiente, para entender melhor suas visões. Se um mago vier atrás de você, ele pode usar qualquer um dos três campos. Por exemplo, ele pode usar a magia mental para influenciar você a fazer alguma bobagem. É um truque sutil nas mãos dos magos, bastante eficaz sobre os Anaweirs. Ou ele pode usar o poder físico. Os magos podem infligir dor com um toque.

Seph levou a mão ao rosto, pensando em Gregory Leicester.

  • Você pode ser treinado para resistir a um ataque físico; e você é poderoso o bastante para fazê-lo, creio. Sobra o uso de feitiços. — O mago arqueou as sobran­celhas. — Você me disse que recebeu algum treinamento nesse sentido.

E assim Seph repassou o seu magro repertório, de­monstrando aqueles feitiços que sabia executar impecavelmente... magias pequenas e toscas que podiam ser praticadas num quarto de dormitório.

Nick inclinou a cabeça em aprovação quando ele ter­minou.

—  Há dois componentes do poder de um mago no que se refere aos feitiços: a força da pedra que ele carrega e o poder da palavra articulada. Recebeu algum treinamento em contra-feitiços?

Seph sacudiu a cabeça.

—  Então vamos começar por aí. O feitiço de um mago é como qualquer outra arma. Você precisa estar alerta o tempo todo. E, quando o ataque vier, precisa reagir antes que o sangue seja derramado, por assim dizer. Se o mago completar o feitiço, pode ser tarde demais. — Nick marcou algumas passagens no Livro Weir. — Passe algum tempo estudando estes feitiços. Vamos revisar os feitiços e os contra-feitiços amanhã.

  • Quer dizer que já acabou?

Nick sorriu.

  • Já são quase cinco horas. Estou surpreso que o Jack não tenha chegado em casa ainda.

Seph andara folheando o Livro Weir de Jack, ainda aberto em seu colo.

  • Tenho uma pergunta.
    • O que é?
      • Todos dizem as mesmas coisas sobre os magos. Nós nos aproveitamos dos Anaweirs. Tratamos as outras or­dens como lixo. Estamos sempre armando uns contra os outros. O que eu quero saber é: isso é algum tipo de traço inato? Se é, por que você não é assim? Eu tinha um amigo na escola, e ele também não era.

Nick se recostou na cadeira e pensou por um momento.

  • O problema com os magos é que o poder deles se manifesta quando ainda são jovens. Os jovens não de­veriam ter tanto poder, pois não têm a sabedoria e a disciplina. Eles crescem mimados, acostumados a ter tudo do jeito que querem. — Ele fez uma pausa. — Dá para se comparar os magos aos vinhos. Os vinhos de melhor qualidade são pungentes e fortes quando jovens. Mas os bons vinhos melhoram com a idade. Um vinho de má qualidade nunca melhora. Às vezes fica pior. Os magos são iguaizinhos. — Ele se inclinou para a frente. — Às vezes acho que seria melhor se todos os magos fossem criados por Anaweirs, como você foi, ignorando seus poderes até terem crescido. Talvez assim eles fossem mais tolerantes em relação aos outros.

"Há desvantagens nisso", pensou Seph. Os Anaweirs nem sempre são tolerantes para com os magos.

De certo modo, era fácil conversar com Nick. Ele era como a terra, sábia e antiga, sem emitir julgamentos.

  • Você conhece o Gregory Leicester? — indagou Seph, baixando o olhar para o Livro Weir, a fim de evitar os olhos do mago.

Nick assentiu.

  • Conheço. Ele é um dos que não melhorou com a idade. Mas é muito poderoso.
  • Ele assassinou dois dos meus amigos. Foi minha culpa — acrescentou Seph, relembrando os meses de tortura nas mãos de Leicester, a morte de Trevor, e a última e culminante tragédia de Jason.
  • Por que acha que foi culpa sua? — perguntou Nick gentilmente.
  • Eles estavam tentando me ajudar. Se não fosse por mim, ainda estariam vivos.
  • Talvez essa tenha sido a escolha deles, não sua.

Seph traçou os nomes da genealogia de Jack com o dedo indicador, com inveja dos laços de família.

  • Eles não escolheram serem assassinados.

Nick estudou-lhe a expressão.

  • E agora você pretende se vingar do dr. Leicester.

Seph não respondeu, mas afundou mais na cadeira.

Nick alisou o bigode com o polegar e o indicador.

  • Um projeto de alto risco, com certeza.

Para a surpresa de Seph, o velho mago parecia levá-lo a sério, mas não lhe deu um sermão nem tentou dis­suadi-lo.

  • E quanto ao Dragão? Você sabe onde ele está? — perguntou Seph.
  • Uma confissão arriscada de se fazer, hoje em dia — disse Nick.

Seph notou que ele não respondera realmente à per­gunta.

  • Eu tenho informações que podem ser úteis pra ele.

Nick pigarreou.

  • Talvez você deva pensar no Dragão mais como um ícone representante de um movimento do que como um in­divíduo.
    • Eu gostaria de falar com o ícone que vem roubando armas mágicas das Rosas, libertando membros das subordens e publicando os segredos do Leicester na internet.

Naquele instante, eles ouviram uma porta bater em algum lugar da casa e o avançar barulhento de alguém pela cozinha.

  • Olá? — disse uma voz familiar.

Era Jack.

  • Estamos na varanda — respondeu Seph.

Um momento mais tarde, Jack se juntou a eles.

  • Oi, Nick. Oi, Seph. Acho que tirei dez na minha prova de organização social e política, mesmo não tendo estudado.

Ele se estirou numa das cadeiras de jardim, parecendo preencher o espaço da varanda com sua mera presença física.

  • Ei — disse Jack —, vocês souberam que teve um tipo de sacrifício satânico na praça?

Eles contaram a Jack as notícias.

  • Quer dizer que o tio do Will acha que você é um praticante da Antiga Religião?
  • Antiga Religião? — Seph olhou de um para o outro em busca de uma explicação. — Como a Magia Antiga?
    • Não. A Antiga Religião é um tipo de magia de sangue que antecede a magia propriamente dita — explicou Nick. — Remonta ao politeísmo que existia antes de os anglo-saxões chegarem à Bretanha. As cerimônias deles se con­centravam no sacrifício de animais, às vezes no sacrifício humano. — Seph estremeceu, e o velho lhe deu um sorriso reconfortante. — Não se preocupe, Seph. Assim como os outros dons dos Weirs, a magia não é uma religião. É um dom, um talento e uma vocação. É compatível com o catolicismo ou com qualquer outra fé. Você ficaria surpreso em saber quantos defensores famosos da fé eram Weirs.

Talvez. Mas quando Seph pensou na cena que vira na praça, lembrou-se do ritual no anfiteatro no Porto Seguro e da corrente de Trevor em meio às cinzas.

A situação não melhorou nem um pouco quando Ross Childers trouxe Linda para casa no fim da tarde e contou que o BMW estava totalmente arruinado.

— Nunca vi nada assim — disse ele, sacudindo a ca­beça, observando Seph para ver sua reação. — Eles cor­taram os assentos e puseram fogo na coisa toda. Como fizeram para queimar, eu não faço idéia. O calor era tão grande que os pneus derreteram em quatro poças no asfalto. Seria até difícil dizer a marca do carro, mas eles escreveram o seu nome no asfalto, assim como fizeram na fonte. — Ele assobiou, como se estivesse feliz que não fosse com ele. — Você tem inimigos, Seph?

Uma vez acabadas as aulas, Jack, Ellen e seus amigos, Will Childers e Harmon Fitch, passaram a entrar e sair da casa o dia inteiro. Fitch era alto e magro, com cabelo loiro tingido, óculos e a misteriosa habilidade de falar com computadores na linguagem deles. Ele passou vários dias ajudando Seph a construir um novo sistema de computador para repor o que deixara no Porto Seguro.

Fitch tinha seu próprio negócio de consultoria de com­putadores e desenvolvimento de websites, tendo entre seus clientes o Conselho Escolar, a Faculdade de Trinity, o governo municipal e a Câmara de Comércio, além de grandes corporações em Cleveland.

Seph começou a trabalhar para Fitch em meio período, escrevendo código HTML básico, tirando fotos digitais para sites e contatando fregueses, já que o visual radical de loja barata de Fitch assustava alguns dos clientes empresariais.

Eles trabalharam durante várias semanas para instalar o hardware da primeira rede sem fio que abrangeria toda a cidade. Fitch dançava nos telhados como um tipo de maestro digital maníaco com um fone de ouvido wi-fi, balançando os braços e gritando:

— Mais força! Precisa de mais força!

Fitch alugou um espaço no andar de cima da loja de Blaise, já que seus quatro irmãos e irmãs tornavam-lhe impossível trabalhar em casa. O escritório estava repleto de servidores e telas planas. Nas noites de segunda-feira, ele era o anfitrião da Megafesta Mundial dos Maníacos por Monstros em Multimídia (5M).

Apesar de Fitch não ser membro de nenhuma das ordens mágicas, foi ele quem fez Seph se dar conta de que havia muitos tipos de dons. Fitch tinha o poder de desligar as luzes no condado inteiro ou mudar qualquer nota no Colégio de Trinity.

Seph também trabalhava em meio período para Harold Fry nas docas, ajudando no escritório e nos estaleiros. Ele descobriu que gostava do trabalho físico no porto. A pele resistia ao sol, como sempre, mas o corpo se desenvolveu, transformando-se de mirrado em esbelto e musculoso.

Certa noite, Jack e Ellen convidaram Seph para algo que chamavam de uma plaisance no denso bosque do Parque Perry. Jack estacionou o Subaru num local recluso, e ele e Ellen apanharam as espadas no porta-malas. Os três caminharam por mais de um quilômetro e meio através do bosque até uma clareira escondida. Jack andou ao redor da clareira, lançando um tipo de barreira mágica com gestos rápidos e impacientes, enquanto Seph o seguia, anotando mentalmente os feitiços que ele usava.

Ellen ficou em pé, impassível, aguardando no centro do campo, o sol do fim do dia cintilando na lâmina da espada. Quando Jack terminou, aproximou-se dela, parando a uma curta distância, encarando-a. Ambos inclinaram as cabeças, sorrindo como se estivessem prestes a se casar. Seph tinha suas instruções e, quando viu que estavam prontos, disse:

— Podem começar.

Era a dança impressionante de dois atletas talentosos, bem equilibrados. Eles dominavam a clareira, movendo-se energicamente para a frente e para trás, golpe e bloqueio, ataque e depois recuo, gritando desafios um para o outro, trocando insultos e promessas. A floresta retinia com o choque das lâminas, e chamas giravam e faiscavam entre as árvores. Seph os interrompia para um intervalo a cada 15 minutos. Após quatro embates, eles terminaram empatados.

Embora o calor do dia houvesse se dissipado, estavam ambos encharcados de suor, praticamente fumegando.

Ellen tomou goles imensos de sua garrafa de água e secou a boca com o braço enluvado.

  • Está se sentindo bem, Jack? O seu estilo está ente- diante, de maneira geral. Eu tinha esperanças de dar um espetáculo melhor para o Seph.

Jack testou o fio da espada com o polegar.

  • Na verdade, Ellen, eu estava me perguntando se você está ficando doente. Você estava completamente letárgica. Eu quase caí no sono uma ou duas vezes.
  • Bom, isso explica tudo. Você parecia estar dormindo mesmo.

Com isso, eles atiraram as armas no chão e tudo se dissolveu num embate de luta livre. No final estavam se beijando.

Era com certeza um tipo diferente de namoro, mas havia uma química, um entendimento, uma familiaridade entre Jack e Ellen que Seph invejava.

 

A colônia Weir da rua Jefferson o acolheu, e ele apro­veitou a oportunidade ao máximo, armando-se para uma batalha que talvez nunca ocorresse.

Mercedes Foster, tecelã e feiticeira, convidou-o para ir até o jardim dela, tendo o cuidado de avisá-lo sobre as plantas venenosas que cresciam ali. Na cozinha do chalé, ela fazia tinturas e poções de amor e curas para a memória. Logo Seph a estava ajudando com as poções e os extratos, estudando as receitas de venenos e hipnóticos, memorizando-as. Ele fazia perguntas sobre talismãs como a dyrne sefa e levava emprestados alguns livros dela sobre o assunto.

Ela foi menos cooperativa quando ele lhe perguntou sobre a Chama, a droga que Alicia lhe dera em Toronto. Eles estavam na cozinha, secando plantas no forno.

  • Ouvi dizer que os feiticeiros fazem para vender — disse Seph. — Também é chamado de Queima-Mente.

Mercedes fixou-o com seu olhar penetrante como o de um pássaro e pôs as mãos nos quadris ossudos.

  • Não sei como fazer, e não ia contar pra você se soubesse. Não acredito em trocar o próprio futuro por um pouquinho de poder extra no presente.

Ela se recusou a dizer qualquer coisa mais a respeito, mas ele descobriu várias receitas da droga em textos antigos, escritos em latim.

Blaise Highbourne, adivinho e artesão da prata, de­monstrou a arte de fundição por cera perdida e mostrou a Seph como fazer jóias de prata. Também explicou a ironia da profecia: o fato de que é sempre verdadeira, mas muitas vezes enganadora. Íris Bolingame, maga e artesã do vidro, mostrou-lhe como capturar o espaço com o vidro soprado, envolver pedaços de vidro com lâminas de cobre e soldá-los juntos. Ela também compartilhou os feitiços e encantamentos de seu Livro Weir. Enquanto Nick filtrava cuidadosamente as informações que passava a Seph, Íris não o fazia.

Não demorou muito para que uma caminhada pela rua Jefferson se transformasse num corredor polonês. Mercedes tinha uma planta nova para lhe mostrar, ou frutas silvestres para enviar a Becka. Blaise queria em­prestar-lhe um livro, e íris tinha algum outro truque de magia para ele tentar. Seph não conseguia fazer nada fora de casa sem que relatórios voassem até Becka e Linda.

  • Bem-vindo à vida de cidade pequena — disse Jack, irônico. — Onde todo mundo faz questão de se meter na sua vida.

Os responsáveis pelo sacrifício na praça nunca foram encontrados. Ross Childers aparecia de vez em quando para manter Linda e Seph informados, mas a investigação não deu em nada. Seph não viu mais sinal dos ex-alunos.

Seph se agregou a St. Catherine, a igreja católica pró­xima ã universidade. Ele freqüentava as missas de sexta à noite, que eram celebradas em latim.

Embora Jack houvesse dito que Linda nunca ficava por muito tempo em Trinity, ela não parecia ter nenhuma pressa em partir. Seph ajudou Nick a acabar de pôr o papel de parede no quarto do andar superior, e Jack ajudou-o a escolher um novo sistema de som.

Linda ainda se recusava a deixar Seph sair do Santuário. Quando Becka convidou Seph para ir até a cidade de Niágara sobre o Lago com ela e Jack ao Festival Shaw de Teatro, Linda segurou Seph em Trinity com ela.

Ele discutiu com Linda, querendo que ela o deixasse ir ao Canadá.

  • Você não acha que é seguro agora? Não posso ficar trancado aqui para sempre.

Fazia mais de um mês desde o encontro deles com os ex-alunos, e não havia sinal de invasão do Santuário. Mas Linda se manteve irredutível.

Quando não estava trabalhando, logo que o clima es­quentou, Seph começou a passar longos dias na praia com Jack e os amigos dele. A praia era cercada por penhascos, com água límpida e fria e areia empedrada que cintilava com o quartzo quando a água recuava. Jack ensinou Seph a praticar windsurf, e Seph descobriu que era bom em manter a frágil prancha em pé e avançar em longos slaloms, paralelos à costa.

O melhor de tudo era que, após o longo período de estiagem no Porto Seguro, choviam garotas. "As mulheres Anaweirs não conseguem resistir aos magos", dissera Jason. No passado, aquela idéia havia feito Seph se sentir desconfortável. Agora ele utilizava a magia de todas as maneiras possíveis.

Ele flertava com as residentes e as veranistas, comia seus biscoitos com gotas de chocolate e as saladas de frutas e passava-lhes protetor solar na pele aquecida pelo sol. Dançava com elas no pavilhão da praia nas noites de sexta e sábado, roubava beijos sob o píer. Ficava fora até tarde, já que Linda não estava acostumada a ditar toques de recolher.

Apesar de voltar para casa a altas horas da noite, na maioria das manhãs ele se levantava cedo e ca­minhava até o lago, lutando com as memórias que o impediam de dormir. Jason, o pai de Jason e Trevor estavam mortos, mas Gregory Leicester ainda vivia, tecendo intrigas, tornando Seph um prisioneiro dentro do Santuário. Seph estava construindo seu arsenal de magia, mas não tinha meios de utilizá-lo contra o inimigo, nem sabia como entrar em contato com o Dragão, que poderia usar as informações de que Seph dispunha.

Quando ele caminhava de manhã, via freqüentemente uma garota sentada nas pedras à beira d'água, a cabeça loira inclinada sobre o caderno de desenho, um joelho levantado, o outro reto, os pés descalços apoiados contra a pedra. A mão dançava sobre a folha, espalhando forma e cor. Ela franzia a testa ao se concentrar, mordendo o lábio inferior. Às vezes ela enxugava o rosto com as costas da mão, deixando uma mancha de cor.

Ele começou a procurar por ela, e ela estava lá quase todos os dias. Ela normalmente trazia o caderno de dese­nho, mas às vezes se sentava e lia, o livro inclinado para apanhar a luz oblíqua, bebendo café de um copo térmico de viagem. Certos dias ela vestia jeans e camiseta; em outros, longas saias floridas em camadas e blusas de puro algodão que lhe deslizavam dos ombros.

Ele achava que ela o notara, mas que tomava o cuidado de não olhar para ele. Algo na expressão e linguagem corporal dela o mantinha a distância. Ele começou a levar livros consigo, um pretexto para se demorar, comparti­lhando do mesmo trecho da praia. Finalmente, após uma longa e frustrante manhã sob o sol quente, ele decidiu se apresentar.

Assim que a sombra dele caiu sobre ela, ela apertou o caderno contra o corpo como que para protegê-lo.

— Você está bloqueando a minha luz — disse ela, sem voltar o rosto.

O sotaque dela lembrava a Seph o de Trevor, com as suaves vogais sulistas.

—  Desculpe-me. — Ele deu a volta, agachando-se junto a ela. Ela tinha puxado a saia para cima até o meio da coxa, expondo as pernas ao sol. O vento havia soltado do elástico as mechas de seus cabelos, e ela as prendeu atrás das orelhas. De perto, ele viu que os cabelos dela tinham várias cores diferentes, como manteiga, açúcar e caramelo, pintadas pelo sol. — Eu vejo você aqui sempre. Estava me perguntando o que você estava desenhando.

Os olhos dela eram azul-aquarela sobre o rosto bron­zeado.

—  O fato de você estar curioso não faz com que isso seja da sua conta, faz?

Seph piscou e sentou-se de pernas cruzadas.

— Bem, não, acho que não...

Ela riu.

  • Você devia ver a sua cara. Não está acostumado com garotas dizendo "não" pra você, está?

Ele deu de ombros e apoiou os braços nos joelhos.

—  Nós nem chegamos às perguntas difíceis ainda.

—  Poupe essas para outra pessoa. Eu venho aqui pra desenhar, não pra flertar com os veranistas.

  • Você não é daqui, é?

Não era possível. Ele não podia acreditar que dissera aquilo.

—  Não. Não sou.

A areia aderia-lhe às longas pernas e aos pés. Seguindo o olhar dele, ela fez uma careta e redistribuiu o tecido da saia, cobrindo-se até o tornozelo. Ela trazia um laço com um camafeu familiar em torno do pescoço, e ele subitamente se deu conta de onde o havia visto antes.

  • Você trabalha na Lendas?

A Lendas era uma pensão e restaurante em uma mansão vitoriana que dava para o lago. Linda e Becka gostavam de ir lá para o brunch.

  • Sou garçonete lá, falou? Sou do Condado de Coalton, um lugar do qual tenho certeza de que você nunca ouviu falar.

Ela agarrou o estojo de pastéis e fechou-o, enfiando-o numa sacola com o bloco de desenhos.

Seph observou tudo isso sem saber o que fizera de errado.

  • Olha, desculpe-me. Não quis expulsar você daqui.

Por que ele estava sempre se desculpando?

  • Deixa pra lá. A luz mudou, meu humor azedou e meu turno está prestes a começar.

Ela se levantou, limpando com as mãos a areia na parte de trás da saia.

Uma pilha de desenhos estava próxima, presa por uma grande pedra. Seph estendeu a mão para pegá-los.

  • Não! Largue isso!

Ela o empurrou com força, e as folhas voaram, sopradas pela brisa da costa.

Perplexo, ele correu atrás delas, resgatando algumas quase já em meio às ondas. Quando pegou todas, virou-se e descobriu que ela não havia esperado por ele. Na verdade, ela já estava a uma boa distância, caminhando pela praia, os ombros curvados, a cabeça inclinada para a frente.

  • Que diabos...?

Ele baixou o olhar para o maço de papéis em sua mão. O desenho de cima era um rosto em carvão, um perfil de três quartos, com cabelos longos, escuros e cacheados, maçãs do rosto altas, um nariz de estilo romano, um meio sorriso, olhos sob uma mancha de sobrancelhas escuras.

O rosto dele.

Ele folheou os outros. Seph McCauley deitado de costas ao sol em roupa de banho, os músculos salientados sob a pele do peito, um braço descansando sobre os olhos. Seph caminhando ao longo da costa, uma silhueta alta e angulosa destacando-se contra a água brilhante. Seph estendido nas rochas ã beira d'água, olhando em di­reção ao Canadá. Estudos das costas e dos ombros dele, dos braços e das pernas, tendões e músculos fielmente retratados.

Em todos os desenhos, ele estava cercado por uma nuvem de luz, como se irradiasse luz de seu interior. Como imagens dos santos nos velhos manuscritos. Eram todos desenhos dele, com exceção de algumas naturezas-mortas de conchas e rochas. Pensamentos vieram à tona, como em uma piscina turva.

Por que ela está me desenhando?

Ela sabe que sou mago.

Ele saiu a correr pela praia atrás dela, saltando sobre rochas e pedaços de madeira meio submersos. Estava a cerca de 30 metros dela quando ela o ouviu se aproximar. Ela não olhou para atrás, mas apressou o passo até que também ela estava correndo. Os cabelos se soltaram do elástico e voaram para trás, enquanto ela se desviava de troncos de árvores e pessoas que caminhavam pela praia no fim do dia.

Ele era mais rápido.

Já estava quase alcançando-a quando ela tropeçou numa raiz de árvore e caiu, deslizando para a frente na areia.

Ele caiu de joelhos junto dela. Pôs a mão em seu ombro, e ela estremeceu sob seu toque.

  • Você está bem?

Ela não respondeu, mas se encolheu como se quisesse desaparecer. Ele a rolou até que ficasse deitada de costas e limpou-lhe a areia do rosto com a bainha da camiseta. Ela fechou os olhos com força, como se pudesse fingir que ele não estava ali. A blusa branca de renda estava suja de areia molhada, o peito arfando enquanto ela lutava para respirar.

  • Quem é você, na verdade? — indagou ele.
  • .. falei... pra você. Sou garçonete.
  • Qual é o seu nome?
  • Madison Moss.
  • Leicester mandou você?

Ela abriu os olhos e fitou-o.

  • Não sei do que você está falando.
  • Como sabia que sou... mago?

Ela não disse nada.

Ele pousou as mãos sobre as clavículas dela, as pontas dos dedos pressionando levemente a pele. O fato de ela ter lhe roubado a imagem fazia com que ele se sentisse autorizado a fazer aquilo.

  • Agora você vai me contar a verdade — resmungou ele.

Seph lançou seu poder sobre ela, uma suave persuasão. A princípio a sensação foi agradável, como um longo sus­piro exalado. Um gotejar no início, a seguir uma corrente. Depois ele tentou se afastar e não conseguiu. Aquilo foi ficando cada vez mais intenso, até deixá-lo exausto, nau­seado e tonto, como se a sua própria essência estivesse sendo extraída pelas pontas dos dedos.

Por fim, ela ergueu os braços e afastou as mãos dele, depois o deitou de costas, dobrando-lhe as mãos sobre o peito como um corpo num caixão. Pontos negros giravam na visão dele como abutres, bloqueando o sol.

Ela se inclinou sobre ele. Tocou-lhe a face gentilmente e beijou-o na testa.

— Adeus, menino bruxo — sussurrou ela.

Ela se levantou, recuperou a bolsa, pendurou-a no ombro e foi embora, sem nenhuma pressa dessa vez, como se soubesse que ele não poderia segui-la.

Ele não saberia dizer com certeza quanto tempo ficou deitado ali, incapaz de se mover. Como um bêbado na calçada. Ou uma criatura que havia sido levada pela água numa tempestade. Finalmente, ele se ergueu sobre os cotovelos. A cabeça girava. Por um instante, achou que fosse vomitar, mas o enjôo passou. Seph rolou até ficar de quatro. Vários dos desenhos haviam ficado presos sob seu corpo. Ele os dobrou com cuidado e enfiou-os nos bolsos de trás. Levantou-se, cambaleando um pouco, sacudindo a areia do cabelo. Sentia-se vazio. Olhou de um lado para o outro da praia. Passava do meio-dia, e a praia estava cheia. Nenhum sinal de Madison Moss.

Ele se arrastou, subindo a escada de madeira da praia como um velho. Encontrou Jack, Ellen, Fitch e a namo­rada de Fitch, Miriam, sentados às mesas de piquenique sob as árvores, tomando sorvete de casquinha.

Miriam era de Cleveland, e a família dela tinha um chalé perto do lago em Trinity. Ela usava na praia roupas de veludo amassado preto, lápis delineador e meias arrastão. Seph achava legal, de um jeito pouco prático.

  • Oi, Seph. Quer jogar tênis mais tarde? — indagou Ellen quando o avistou. Então ela franziu a testa, fazendo sombra sobre os olhos. — Você está bem? Parece que teve uma insolação ou coisa assim.

Seph deixou-se cair no banco ao lado dela, exausto com a subida desde a praia.

  • Estou bem.

—  Aqui. Coma um pouco.

Ela lhe passou a casquinha. Ele lambeu metade e de- volveu-a.

  • Quem era a garota com quem você estava dançando no pavilhão na noite passada? — perguntou Fitch.
  • Christy Laraway. Ela está estudando no Instituto.

Ele fechou os olhos, tentando se lembrar do rosto dela.

  • Cara, achei que você estivesse namorando a Julie Steadman.
  • Eu fiquei com a Julie algumas vezes — disse Seph, sem abrir os olhos. — Não estou namorando

Jack terminou a casquinha dele e lambeu os dedos.

—  As garotas daqui estão felizes da vida de encontrar alguém que não odeiam desde o primeiro ano.

  • Qual é, Jack, é mais do que isso — disse Ellen. Ela passou para um falsete agudo abobado. — Ele é muito .. É praticamente europeu. Quer dizer, ele viveu no mundo todo. E ele fala francês. — Ela cutucou Seph com o ombro. — E você viu os olhos dele? Eles mudam de cor, e ele tem aqueles cílios longos e escuros. E o jeito que ele beija. — Ela revirou os olhos.
  • Cale a boca, Ellen — disse Seph.

A conversa era necessariamente filtrada devido à pre­sença de Miriam, que não sabia de nada do subtexto mágico.

  • E então? Qual é o segredo de um grande beijo, Seph? — perguntou Jack. — É a técnica, a duração, a intensi­dade ou o poder?

Seph soltou um suspiro dramático.

  • Oh, está certo, Jack. Eu beijo você. Mas só desta vez.

Seph rolou para o lado para se desviar do tabefe não muito forte. Jack estava sempre criticando-o. Como se pensasse que Seph estava tirando vantagem da persuasão.

—  Alguns caras estão reclamando do rival forasteiro — comentou Jack, tirando a camiseta e enxugando o rosto com ela.

Seph deu de ombros.

—  Você não acha que todos contribuem de algum modo para o jogo?

  • Como assim?

—  Todos nós usamos os nossos talentos. Por exemplo, algumas pessoas são bem musculosas. — Seph olhou de esguelha para Jack. — Ou sabem conversar muito bem. Jogam futebol americano ou estão numa banda de blues. Escrevem poesia, pintam ou são bons ouvintes. Têm cabelo bonito, pernas bonitas, um monte de dinheiro e um barco. Ou têm aquele je ne sais quois...

  • Ou aquele je sais muito bem quois, em certos casos — retrucou Jack.
  • Cale a boca, Jack — disse Seph, apertando a base da mão contra a testa. A cabeça estava latejando.
  • Algumas pessoas diriam que o amor não é um jogo — ponderou Ellen. — Eu nunca engoli aquela coisa de que "vale tudo no amor e na guerra".

Seph deu de ombros, rendendo-se.

  • De qualquer jeito, não posso jogar tênis hoje à noite. Vou trabalhar pro Harold esta tarde, e à noite vou encon­trar alguém na Lendas.
  • Vai se encontrar com outra garota? — indagou Miriam.

Seph se levantou para ir embora.

  • Não exatamente. Ela não sabe que vou estar lá.

 

O gerente da Lendas contou a Seph de boa vontade a que horas Madison Moss saía do trabalho. Ele estava até disposto a deixá-la sair mais cedo, mas Seph disse que não, que esperaria. Seph comprou café no balcão e achou um banco no parque do outro lado da rua que permitia uma boa visão da entrada. Ela saiu pela porta da frente bem na hora, olhando para um lado e para o outro da rua como se ainda não houvesse decidido o que fazer a seguir. Ela pulou e deu um grito de susto quando ele saiu das sombras e tocou-lhe o ombro.

  • Oh, é você — disse ela, quando ele se voltou em direção à luz. — Você quase me mata de susto.

Ela havia trançado novamente os cabelos, mas ainda vestia a blusa e a saia sujas da praia.

  • Eu preciso falar com você.
  • Oh, bem. Sinto muito. Eu... ahn... tenho planos. Preciso ir — disse ela, sem fazer nenhum esforço para ser convincente.
  • Não vai levar muito tempo. Prometo. — Ele segurou-a pelo cotovelo, com cuidado para não deixar o menor pingo de magia escapar. Ele não tinha certeza de que tinha alguma sobrando, de qualquer modo. — Você quer conversar aqui ou em algum outro lugar?
  • Eu não vou a lugar algum com você.

Ele a conduziu de volta ã lanchonete, até o terraço que dava para o lago. Escolheu uma mesa distante, de frente para os jardins. A garçonete se aproximou, sorrindo e arqueando as sobrancelhas para Madison.

—  Posso ajudar?

Madison manteve o olhar fixo à frente, mal-humorada e tamborilando os dedos na borda da mesa. As unhas estavam pintadas de roxo.

  • Dois cafés e duas porções de biscoitos de nozes — disse Seph.
    • Eu queria chá — disse Madison quando a garçonete já havia se afastado.

—  Você estava bebendo café na praia.

  • Neste momento, eu prefiro chá.
  • Da próxima vez, fale.
    • O que faz você pensar que vai haver uma pró­xima vez?

Seph tirou os desenhos dela do bolso do jeans e alisou- -os sobre a mesa.

Madison contraiu os lábios e olhou para o lago.

  • Sabia que levei uma bronca pelo estado do meu uniforme, menino bruxo?
  • O meu nome é Seph.
  • Que espécie de nome é esse?
  • Apelido de Joseph.
  • É um nome de família?
    • Não faço idéia. — O perfume de jasmim elevava-se dos jardins, e vaga-lumes faiscavam no gramado. — Não conheço realmente a minha família.

Ela torceu o nariz.

  • Às vezes isso não é ruim. Com quem você está morando?
  • Rebecca Downey. Ela é irmã da minha tutora.
    • Oh, eu conheço ela. Ela vem bastante aqui. — Madison lançou-lhe um olhar avaliador. — Ela é muito legal.

A entrelinha era: ao contrário de você.

  • E quanto a Madison? De onde vem esse nome?
    • Fui batizada com o nome de um condado em Kentucky. Onde os meus pais... ahn... se conheceram.

A garçonete serviu duas xícaras de café e pratos de biscoito.

  • Ei, esses estão muito bons! — disse a garçonete, apontando os desenhos para Seph.

Madison gesticulou em direção às folhas amassadas.

  • Quer guardar isso?

Seph não disse nada.

  • Olha — disse ela, envolvendo a xícara com os dedos. — Desculpe-me por desenhar você sem pedir permissão.

Seph aguardou.

  • É só isso? — perguntou ele, enfim.
    • O que você quer?
    • Bom, para começar, o que você fez comigo na praia hoje?
    • Quer dizer, depois que você me atacou?

Ele assentiu com cabeça, admitindo a verdade da obser­vação dela com rancor.

  • Sinto muito por aquilo — disse ele. — É que eu pensei que você talvez... tivesse intenções ocultas.

Ele não podia dizer: "Há magos atrás de mim e pensei que você pudesse estar conspirando com eles".

  • Bem, você veio até mim, você sabe. Eu estava cui­dando da minha própria vida.
  • Eu sei. Mas o que você fez comigo? — insistiu ele.

Os cantos da boca de Madison se retorceram.

  • Beijei você.
  • Antes disso. Você me deixou caído de costas.

Agora ela abriu um sorriso franco.

  • Isso soa inadequado.
    • Não é uma piada. Quero saber o quê... quem é você e o que está tramando. — Seph apontou para os desenhos.

— Por que a aura? Por que você fica me chamando de menino bruxo?

  • Porque é isso o que você é.
  • O que faz você pensar isso?

Ela lançou um olhar que dizia que ele não a estava enganando nem um pouquinho.

  • Há pessoas neste mundo que conseguem tudo o que querem, que podem convencer você a entregar todo o dinheiro que têm e ficar felizes com isso. Alguns têm a sabedoria, ou a segunda visão. De onde eu venho, chamamos esses de bruxos.

Eu os chamo de magos.

  • Por que acha que eu sou... um bruxo? Nunca falei com você até hoje.
  • Nem precisava. Sempre fui capaz de reconhecer. Você brilha como uma casa iluminada para uma festa.

Ela estendeu uma mão na direção dele, parando a dois centímetros de seu rosto, como alguém que hesita em tocar num forno quente.

  • O que aconteceu na praia hoje? — insistiu Seph.
  • Não sei, na verdade. — Ela deu de ombros. — Parece que eu simplesmente sou imune à feitiçaria.

Seph inclinou-se para a frente.

  • Foi mais do que isso. Foi como se você tivesse me espremido ou algo assim.

Madison deu uma mordida num biscoito.

  • Esta é uma conversa totalmente absurda, Seth, ou Seph, ou seja lá qual for o seu nome.
  • Dá para usar? O poder, digo. Depois de extrair de uma pessoa?

Ele lhe segurou a mão.

Ela arrancou a mão das dele.

  • Você é o bruxo, não eu. — Ela olhou para o relógio. — Escute, eu trabalho amanhã cedo. Preciso dormir um pouco.

Seph ignorou a indireta.

  • Por que você fala como alguém do Sul?
  • Porque sou de lá. O Condado de Coalton fica junto do rio. Sul de Ohio.
  • Por que está trabalhando aqui, então?
  • A minha prima Rachel é dona da Lendas. Ela preci­sava de uma garçonete, eu precisava de dinheiro, e achei que poderia acrescentar algumas paisagens de praias ao meu portfólio.

Seph pôs algumas notas de dinheiro sobre a conta.

  • Mas você não está desenhando paisagens. Está dese­nhando a mim.

Ela enrubesceu e desviou o olhar.

  • .. eu achei que você daria um bom tema. Você tem um rosto interessante. E desafiador. Quero dizer, você realmente cria a sua própria luz.

Ela se levantou, indicando que a conversa estava aca­bada.

Seph seguiu Madison pela lanchonete. Na entrada, ela se virou e estendeu-lhe a mão.

  • Prazer em conhecê-lo, Seph McCauley. E obrigada pelo café.

Ele apertou a mão dela, mas ela não reagiu ao toque da maneira como outras garotas o faziam.

  • Onde está hospedada? — perguntou ele.
  • Eu? — Ela indicou as escadas com a cabeça. — Aqui mesmo, na pensão.
  • Se amanhã você vai trabalhar no café da manhã, isso significa que vai sair cedo?

Ela libertou a mão.

  • Não. Vou fazer turno duplo.
    • Quando é o seu dia de folga? Talvez a gente possa se encontrar.
    • Eu tenho visto você no pavilhão. Parece que você tem uma longa lista de espera.

Cidades pequenas.

  • Estou tentando encerrar as inscrições.

Ela ergueu o queixo.

  • O que sou eu, um desafio pra você ou algo assim?

Ele deu de ombros.

  • Foi você quem me beijou. — Ele soube que havia dito a coisa errada quando ela lhe deu as costas e rumou para as escadas. — Ei! Madison! Desculpe-me, está bem? Será que a gente não pode simplesmente se encontrar? Não precisa assinar nada. A gente faz o que você quiser.
    • .. — Ela fez uma pausa, um pé no primeiro degrau, a mão no corrimão. Virou-se para ele, pensativa. — Faz muito tempo que não vou a um piquenique.

 

                       Hastings

O dia seguinte estava terrivelmente quente. Seph deixou a praia cedo e parou no mercado a caminho de casa. Madison havia concordado com um piquenique, e Seph havia concordado em levar a comida. Ele pretendia levar pratos simples: focaccia, queijo, frios, frutas. E uma torta de nozes com açúcar queimado pela qual qualquer um venderia a alma.

A princípio, ele achou que não havia ninguém em casa. Entretanto, ao tirar uma garrafa de chá gelado do refrigerador, ouviu vozes na varanda. Andou até lá esperando ver Linda e Becka. Becka estava lá, mas sentada em frente a um estranho.

Ele era alto e magro, porém musculoso, e tinha traços fortes... aquele tipo de feio que as mulheres acham atraen­te. Tinha olhos verdes e cabelos escuros rebeldes. Estava vestido com uma roupa adequada ao clima: camisa de algodão e calças cáqui. Uma garrafa de cerveja estava posta sobre a mesa à sua frente. Havia algo de cativante nele, um poder concentrado que atraía o olhar.

  • Oh, olá, Seph. O Jack está com você? — indagou Becka, olhando por cima do ombro dele.

Seph sacudiu a cabeça.

—  Vim direto da praia sozinho.

Ele encarou o homem, que o fitava com curiosidade. Becka percebeu.

  • Seph, este é Leander Hastings, um amigo da família. Ele está de visita, vem de fora da cidade. Leander, este é Seph McCauley. Ele está passando o verão aqui conosco.

Seph estendeu a mão para Hastings, e houve a troca elétrica típica entre magos.

—  Eu estava ansioso por conhecê-lo — disse Seph. — Ouvi falar muito sobre o senhor.

Hastings sorriu.

—  Não acredite em tudo o que ouvir.

Os olhos dele estavam fixos em Seph, avaliando-o. Havia algo nele que fazia com que Seph se lembrasse de Gregory Leicester. Tinha a mesma capacidade de intimidar, de impressionar. Mas, naquele momento, ele parecia um pouco perplexo.

—  Você é amigo do Jack? — perguntou Hastings.

  • Não — Becka apressou-se em explicar. — Ele era convidado da Linda, originalmente, mas nós conse­guimos roubá-lo dela. Ele vem de uma situação familiar complicada.

—  Entendo.

Seph precisava achar um jeito de conversar com o mago, fazer perguntas em particular. Provavelmente ele era alguém que poderia levá-lo até o Dragão.

  • Vai ficar muito tempo em Trinity, sr. Hastings? — perguntou Seph, torcendo por um sim.

Hastings sacudiu a cabeça.

—  Apenas alguns dias, receio. E alguns dias em Trinity nunca são o bastante. — Ele fez uma pausa. — De onde você é, Seph?

Hastings tinha certo sotaque, como se fosse britânico ou tivesse aprendido inglês na Inglaterra.

—  Nasci no Canadá — respondeu Seph. — Mas me mudei várias vezes.

Becka olhou para o relógio.

—  Minha nossa, sinto muito, Leander. Preciso estar na escola em meia hora. Mas o Jack deve chegar logo, e espero que você fique para o jantar. Você e o Seph podem ficar esperando um pouquinho?

Ela parecia atrapalhada, o rosto mais rosado do que se poderia atribuir ao calor.

—  Fico bem sozinho, Becka, você sabe disso. É minha culpa aparecer assim, sem avisar. Vou ficar para o jantar, se não se importar, mas tenho certeza de que o Seph tem outras coisas a fazer além de me entreter. Posso ler um pouco — disse ele, apoiando a mão numa pilha de livros sobre a mesa.

—  Oh, não é problema, sério — disse Seph, afobado.

Becka apanhou o laptop e seus papéis, beijou Seph no topo da cabeça e partiu, batendo a porta de tela.

Hastings a viu partir e um instante depois voltou a atenção a Seph. Ele parecia alguém que havia esquecido algo importante e estava tentando se lembrar.

—  Quer dizer que você chegou aqui com a Linda?

Seph pôs o chá na mesa e acomodou-se na cadeira em frente a Hastings. Decidiu responder às próximas três perguntas todas de uma vez, antes de serem feitas.

  • Ela é minha tutora. Disseram que meus pais mor­reram. E eu não sei de onde sou. Não de verdade.

Hastings pareceu surpreso.

  • A Linda nunca...
    • Eu sei, ela nunca mencionou nada a meu respeito — interrompeu Seph. — Só nos conhecemos algumas semanas atrás. Mas ela tem sido... ótima. Assim como todo mundo aqui em Trinity.
  • Quem eram os seus pais? — indagou Hastings, inclinando-se para a frente na cadeira. Um anel nada comum reluziu em sua mão direita quando ele se moveu.

Seph hesitou, sem saber se devia passar a mentira adiante ou não.

  • Eu nunca soube muito sobre eles. Fui criado por uma mãe adotiva. Uma feiticeira — acrescentou ele.
  • Talvez a sua mãe adotiva lhe conte sobre eles, se você perguntar.

O sentido era claro. Nenhum feiticeiro podia resistir a um mago fazendo perguntas.

  • Ela já se foi também — disse ele.

"Há algo perigoso neste homem", pensou Seph. No mundo dos magos, às vezes era difícil distinguir os mocinhos dos bandidos.

Seph decidiu que era hora de fazer algumas perguntas antes que fossem interrompidos. Inclinou-se para a frente.

  • O Jack me contou que você o ensinou a lutar.

Hastings confirmou com a cabeça.

  • Você pode me ensinar também?
    • O Jack é guerreiro. É o dom dele. Você é mago. Não tem permissão de lutar, segundo as regras.
    • Mas nem todos jogam conforme as regras, não é? — disse Seph baixinho.

Hastings pegou o copo de cerveja e bebeu-a até o fim.

  • Por que quer aprender a lutar? — indagou ele, revi­rando a garrafa entre as mãos.
  • Eu tenho inimigos.
  • Quem?
  • Gregory Leicester — disse Seph, observando Hastings à procura de qualquer reação àquele nome. Não houve nenhuma, nem mesmo uma piscadela, embora o mago tivesse feito uma pausa por um momento antes de falar de novo.
  • O que você tem contra o Gregory Leicester? — per­guntou ele, como se estivessem falando sobre o clima.
  • Ele assassinou dois dos meus amigos.

Hastings não pareceu surpreso com a notícia.

  • Sinto muito — disse ele. — Eles eram magos?
  • Um era mago. O outro era Anaweir.
  • Você pode provar que foi ele quem os matou?

Seph pensou a respeito.

  • Provavelmente, não.

Hastings suspirou e correu uma mão pelo cabelo, dei­xando-o ainda mais bagunçado do que antes.

  • O dr. Leicester sabe que você pretende matá-lo?

"Ele está caçoando de mim", pensou Seph, embora não houvesse nenhum traço de humor na voz ou nas maneiras de Hastings.

  • Eu disse a ele que vou matá-lo — admitiu Seph.

Hastings sacudiu a cabeça e inclinou-se para a frente.

  • Vou lhe dar um conselho, Seph. Se você realmente quer matar um homem, não diga a ele o que está tra­mando. E não diga a ninguém mais também. Soa mais como se você estivesse tentando convencer a si mesmo. — Ele abriu um sorriso em que não havia sinais de inimizade. — Para todos os efeitos, Gregory Leicester e eu somos velhos amigos.
  • Mas vocês não são — disse Seph. — São?
  • Não — concordou Hastings, sem parar para pensar a respeito. — Mas o conheço bem o suficiente para sugerir que você reconsidere a idéia de se meter com ele.
  • A escolha não é minha. — Seph passou para a sua pergunta principal. — Você sabe onde eu posso encontrar o Dragão?
    • O Dragão?
  • O líder da facção de magos que se opõem ao Gregory Leicester. O Leicester está mancomunado com alguém chamado Claude D'Orsay.
    • E como você sabe de tudo isso?

De repente, Seph percebeu que ainda era ele mesmo que estava respondendo à maioria das perguntas. E, apesar de passar o dia na praia, ele já estava todo suado de novo, enquanto Hastings parecia refrescado e relaxado. Como é que ele faz isso?

  • Eu estive numa escola chamada Porto Seguro du­rante vários meses, até junho — disse Seph, irritado. — Os amigos que ele matou eram alunos lá. O Leicester era o diretor. Então, você conhece o Dragão ou não?

Agora Hastings estudava-o com mais interesse do que antes.

  • Ouvi falar do Dragão, é claro, embora eu seja novo no Conselho dos Magos. O Dragão não está realmente no Conselho. Ele mantém sua identidade oculta, mas tem influência considerável. Por que pergunta?
  • Quero me encontrar com ele. Tenho algumas infor­mações que podem ajudar.

Seph tinha a intenção de se apropriar da missão de Jason. Só que Seph era ainda mais jovem do que Jason, como Hastings imediatamente apontou.

—  Você é jovem demais para se envolver na política dos magos. Não é um jogo para crianças. Eu já tenho a reputação de ser descuidado com as vidas de crianças — acrescentou Hastings, esfregando o queixo.

—  Não sou criança — disse Seph, irritado.

—  Tenho certeza de que não é. Não depois de um ano no Porto Seguro.

Hastings estava prestes a dizer mais, quando um som de engasgo, como uma inspiração profunda, veio da en­trada, e Seph percebeu que não estavam mais sozinhos. Ambos ergueram os olhos e viram Linda Downey ali em pé.

  • Lee! O que você está fazendo aqui? — indagou ela, olhando de Seph para Hastings e de volta para Seph.

Hastings levantou-se calmamente.

—  É bom ver você também, Linda.

Ele deu um passo à frente, estendendo ambas as mãos, mas ela recuou, por isso ele as deixou cair após um momento. Ele era bem mais alto que a encantadora, e o ar entre eles vibrava como se duas frentes climáticas estivessem se encontrando. Seph arquivou a informação para mais tarde.

  • Não sabia que você vinha — disse ela, finalmente. — Que surpresa — acrescentou, sem dar expressão à voz.

Hastings inclinou a cabeça.

  • Eu também não sabia que você estaria aqui. Apareci sem avisar, mas a Becka foi gentil em me convidar para o jantar. Eu estava trocando umas idéias com o Seph aqui.
  • Pensei que você estivesse na praia — disse ela a Seph, num tom que o fez desejar que estivesse mesmo lá.
  • Voltei mais cedo — explicou ele, às pressas. — Jack deve chegar em casa logo.

Enquanto ele falava, eles ouviram alguém à porta dos fundos.

  • Seph? Você está escondido aqui? Tenho cinco men­sagens pra você. — Jack estava rindo quando chegou à varanda. Estancou ao ver Hastings. — sr. Hastings! Não sabia que estava aqui. Eu teria voltado pra casa mais cedo. — Aquele era um mago que Jack parecia feliz em ver. — Mamãe sabe que está aqui?
  • Eu já falei com ela — disse Hastings. — Eu trouxe para ela da Inglaterra alguns livros antigos que achei que ela ia gostar.

Seph olhou para Jack, Hastings e Linda Downey. Tinha certeza de que o jantar seria interessante.

O jantar foi interessante. Becka pôs salmão no defumador, e havia vegetais grelhados, pão quente da padaria e milho verde fresco. Ela havia comprado framboesas e chantilly, por isso Seph fez crepes de sobremesa.

A fartura não era só de comida, mas também de segredos. E todos eles giravam em torno de Leander Hastings. Linda estava tristonha por algum motivo e não falou muito com ninguém. Seph percebeu rapidamente que Jack e Hastings tinham algum histórico do qual Becka não sabia nada a respeito. Ela e Hastings se meteram numa discussão animada sobre arqueologia celta que durou quase toda a refeição. Apesar disso, Becka parecia hesitante, insegura de si no que se referia ao mago. Seph notou Hastings olhando para ele atentamente diversas vezes.

Se tivera esperanças de mais tempo sozinho com Hastings após o jantar, Seph ficou decepcionado. Os adultos se sentaram na varanda, conversando e bebendo vinho até tarde. Ao final, Hastings agradeceu a Becka por recebê-lo e despediu-se de Jack e Seph. Quando se aproximou de Linda, tomou-lhe ambas as mãos com firmeza e colocou-a em pé.

— Você pode me acompanhar até o carro, Linda?

Era mais uma ordem do que um pedido. Seph se per­guntou o que o mago estava tramando. Talvez ele fosse contar a Linda sobre os planos de Seph de encontrar o Dragão.

Sentia-se desapontado. Estava convencido de que Hastings sabia onde encontrar o Dragão, mas obviamente não iria compartilhar a informação.

O ar lá fora estava fresco com a brisa do lago. Quando Linda e Hastings chegaram ao carro de Hastings, ele abriu a porta do passageiro.

  • Entre — disse ele, e caminhou até o outro lado sem esperar por uma resposta.

"Certo", pensou ela. Isso lhe daria a oportunidade de dizer a Hastings o que pensava. Ela entrou.

Hastings sentou-se no banco do motorista, mas não pôs a chave na ignição.

  • Quero falar com você sobre o rapaz — disse ele.
  • Se está falando do Seph, eu também tenho algo a dizer pra você. — Ela o olhou nos olhos. — Fique longe dele, Leander. Não o envolva em nenhum dos seus esquemas. Mesmo que ele queira. Ele já foi ferido, e não quero vê-lo se machucar ainda mais.
    • Meus esquemas? — Hastings arqueou uma sobran­celha. Linda olhou feio para ele, por isso ele suspirou e se recostou no assento, pondo os braços por sobre o volante. — Quão bem você o conhece?
  • Conheci Seph durante toda a vida dele — respondeu Linda. — Por quê?
  • Ele diz que só conheceu você esse verão — disse Hastings, em tom ameno. — E estou me perguntando por que eu nunca ouvi falar dele antes.

Linda hesitou.

  • Bem, talvez o nosso relacionamento tenha sido um pouco... unilateral.

Hastings esfregou o queixo com a mão.

—  Quer dizer que você o conhece, mas nunca realmente conversou com ele?

  • Sou a tutora dele desde que ele era bebê — disse Linda bruscamente. — Por quê? Onde está querendo chegar com isso?
  • Se você é a tutora dele, então por que diabos o menino acabou no Porto Seguro?

Linda remexeu-se desconfortavelmente no assento.

  • .. Não fui eu que coloquei ele lá. Eu nunca... eu nunca fiz a conexão. Não sabia que ele estava com problemas até o fim do ano escolar.

A culpa dominou-a.

Hastings foi brusco.

  • Não acredito em coincidências. Conheço Gregory Leicester e sei o que ele faz com os alunos dele. Se Seph McCauley passou um ano lá, então você precisa supor que o Leicester tem controle sobre ele agora.
  • Isso é impossível — disse Linda categoricamente. — Ele estava péssimo quando o encontrei. Por pouco não consegui tirá-lo de lá. O Leicester estava prestes a matá-lo. E depois eles tentaram nos impedir de chegar a Trinity.
  • Como foi que você o tirou da escola? — perguntou Hastings.

Ele havia afastado o rosto da luz, e ela não podia ver-lhe a expressão no escuro.

—  Ele enviou um e-mail pedindo socorro.

Hastings ficou em silêncio.

  • Qual é, Leander?! Você não acha que isso é algum tipo de armadilha, acha?
  • Aqui pode ser exatamente o lugar onde o Leicester quer que ele esteja, bem no meio do Santuário, junto de você, do Nick, do Jack e da Ellen: todas as pessoas que arruinaram o torneio deles no ano passado e provocaram a mudança das regras.
  • Como eles poderiam saber que ele acabaria aqui? Foi como eu lhe disse. O Seph nem sabia a meu respeito até eu aparecer na escola.
  • O que ele contou a você sobre a escola?
  • .. bem... ele não me disse muita coisa. Mas dá para ver pelo jeito dele que...
  • Não seja ingênua. Assim que me viu, ele começou a fazer perguntas sobre o Dragão e onde ele poderia encontrá-lo. Disse que queria ajudá-lo. O rapaz é só uma criança, mas é poderoso. Poderoso o bastante para do­miná-la. Não está vendo? É muito arriscado deixá-lo aqui.

Linda emitiu um som irritado.

  • Você está certo sobre uma coisa. Ele é uma criança. Ele é só um menino sem treinamento que viveu um inferno nesse último ano. E agora ele precisa se curar.

Hastings se virou e tomou as mãos de Linda. Ela es­tremeceu e tentou resgatá-las, mas ele segurou firme, exercendo pressão.

  • Deixe-me levá-lo comigo. Prometo que não vou machucá-lo. Com algum tempo, talvez eu possa desfazer o dano. Isso pode nos ajudar a aprender mais sobre o que o Leicester está planejando, e como ajudar as vítimas dele.

—  É isso o que você quer, não é? — disse ela com amargura. — Tem esperanças de usar o Seph para ajudar você a vencer.

—  Nós temos de vencer, Linda — disse Hastings com suavidade e urgência, olhando-a nos olhos. — Você sabe disso tão bem quanto eu.

Ela retirou as mãos das dele.

—  Sim, nós sabemos — concordou ela. — Mas não sobre o cadáver desse menino. Não vou deixar que ele saia do Santuário. — Quando viu a expressão dele, ela empertigou os ombros e ergueu o queixo. — Nem tente me amedrontar. E não tente agir quando eu não estiver olhando, também. Se tocar um dedo nele, ou convencê-lo a fazer qualquer coisa, vai haver guerra entre nós, prometo a você.

Ela abriu a porta do carro e saiu para a escuridão.

 

Na manhã seguinte, Seph foi acordado por uma batida leve à porta do quarto. Ele vestiu os shorts e abriu-a. Era Linda.

  • Vamos sair para o café da manhã — sugeriu ela.

Seph deu de ombros.

  • Está bem.

Ela estava com olheiras, como se não houvesse dormido bem. Seph se perguntou qual seria o motivo. Ele vinha dormindo cada vez melhor com o passar do verão e o dissipar das lembranças do Porto Seguro.

Ele vestiu a camiseta e apanhou os chinelos, descendo as escadas descalço. Saíram pela porta de trás, e ele se sentou na varanda para calçar os chinelos. Ele podia prever que seria mais um dia quente, mas a manhã estava silenciosa, fresca e perfumada com o cheiro das hortênsias que cercavam a casa.

Eles pararam numa cafeteria próximo à universidade para comprar croissants, suco e café, e depois foram de carro até a praia, que estava quase deserta, exceto por algumas pessoas passeando. A lanchonete estava em silêncio no topo do penhasco. Eles desceram a antiga es­cadaria até a areia e caminharam até o fim do quebra-mar. Lá se sentaram, tiraram os sapatos e balançaram os pés sobre a água. Gaivotas rodeavam por sobre suas cabeças, na esperança de algum donativo. Bem longe à direita, o sol fulgia sobre o horizonte, transformando as cristas das ondas em ouro. O ar trazia consigo o cheiro do Canadá, fresco e limpo, do outro lado da água.

Ele pensou em Toronto, distante ao norte e a leste. Perguntou-se quem estaria morando na velha casa agora, se ainda recebiam hóspedes, se haviam conservado o grande fogão industrial e o papel de parede de estampa minúscula.

  • Está gostando de Trinity? — perguntou Linda afinal.
  • .. Eu nunca pensei que gostaria de morar numa cidade pequena, mas eu gosto. A Mercedes, o Blaise e os outros vizinhos se metem demais na minha vida, mas gosto deles. O Jack e a Ellen são muito legais. Eles me levam com eles quando saem com os amigos deles, e eu conheci um monte de gente. Na praia — acrescentou ele, pensando em Madison. — Nick é fantástico.

Linda inclinou a cabeça de leve, como se estivesse satisfeita.

  • Estou pensando sobre a escola no outono.

Ela fitou a água se infiltrando nas rochas.

—  Tenho certeza de que vou ficar bem, aonde quer que eu vá — disse Seph. — Agora que tenho mais treinamento.

—  Você tem de ser sempre tão cordato a respeito de tudo?

Seph não disse nada. Não conseguia se lembrar de ninguém usando aquele termo para descrevê-lo antes.

  • O que você acha de ir à escola aqui em Trinity?

Ele ergueu o olhar, surpreso.

  • Isso seria ótimo. Claro. — Os únicos contatos que tinha com a Ordem dos Magos eram Leander Hastings e Gregory Leicester. E a conexão com Hastings passava direto por Trinity. — Mas... como eu poderia? Não posso ficar na casa da Becka pra sempre.
  • Provavelmente pode. Becka adora você, Seph. — Ela fez uma pausa. — Eu poderia arranjar uma casa aqui, também. Não posso prometer passar todo o meu tempo em Trinity, mas você poderia ficar comigo quando estou aqui e com a Becka quando estou fora.

Seph não conseguiu esconder a surpresa. Ele tivera a impressão de que Linda nunca ficava muito tempo num lugar, nem mesmo queria dizer por quanto tempo ficaria ao visitar. Achara que ela estava pronta para voltar a Londres, e que só a preocupação com ele a mantinha em Trinity.

  • Isso daria certo. Só que... — Ele fez uma pausa, e então despejou de uma só vez. — Vou ter de deixar o Santuário algum dia. Eu gosto daqui, mas não quero ser um prisioneiro. Estou acostumado a cidades grandes, e não fui a lugar algum o verão todo. Não acha que é seguro agora?

—  Não sei — disse ela, fitando a água como se pudesse encontrar respostas nas ondas. — Eu me sentirei melhor quando o ano terminar. Talvez você possa ir à escola aqui este ano, depois veremos. — Ela escovou as migalhas de croissant do colo e juntou as mãos. — Venho me pergun­tando como você está. Quero dizer, se você conseguiu... superar o que aconteceu na escola este ano. Se você... gostaria de conversar a respeito.

Ele olhou direto para Linda e disse:

—  Eu estou bem, dadas as circunstâncias.

E essa era pura verdade.

Ela recuou.

—  Está bem. Vou matricular você no colégio e aí a gente vê o que acontece.

Seph sorriu. Nunca lhe haviam dado a oportunidade de participar desse tipo de decisão antes, e ele gostou disso.

—  Pra mim está ótimo — disse ele.

  • Mais uma coisa, Seph. — Ele ergueu os olhos. — Tenha cuidado com Leander Hastings.

—  Como assim?

Ele se lembrou de Linda e Hastings saindo juntos na noite anterior e perguntou-se sobre o que eles haviam conversado.

—  Ele e os aliados dele têm feito muito esforço pra manter pessoas como Gregory Leicester sob controle. Ele sempre se concentrou no quadro geral. Mas às vezes ele atropela pessoas inocentes no caminho.

  • Ele falou que tem a reputação de ser descuidado com as vidas de crianças — disse Seph. — O que ele quis dizer?
    • Oh, ele falou isso pra você? Mas não explicou, é claro. No ano passado, no torneio, ele foi o patrono do Jack no Jogo. — Linda tomou um gole de café. — O Leander o convenceu a lutar. No final, tudo deu certo. Mas ele é um jogador. Arrisca a vida de outras pessoas. — Linda pôs a mão sob o queixo de Seph e virou-lhe o rosto de modo a poder ver os olhos dele. — Você poderia ser o próximo.
  • Oh, não acho — disse Seph. — Ele não pareceu muito interessado em mim.

Linda sacudiu a cabeça.

  • Está enganado. Você não o conhece tão bem quanto eu. Não se esqueça do que lhe falei.

 

Mais tarde, durante a lição de magia, Seph tinha uma pergunta para Nick.

  • Por que a Linda Downey detesta tanto o Leander Hastings?

O mago olhou-o com intensidade.

  • O que fez você pensar isso?

Eles estavam sentados na cozinha do apartamento de Nick. Um grande ventilador de piso zunia aos pés deles.

  • Ela me avisou pra ter cuidado com ele. Ela não confia nele.

Nick suspirou.

  • Os sentimentos da Linda pelo Leander são complexos. Ela não confia inteiramente nele, isso é verdade. — Ele fez uma pausa, como se ponderando o quanto deveria revelar.
  • A Linda e o Leander estiveram... ahn... envolvidos anos atrás.
  • O quê? — Seph olhou para o professor com surpresa.
    • Não dá pra notar.
      • Bem, sim, Seph, daria pra notar, se você fosse mais velho e só um pouquinho mais sábio. O passado deles faz com que seja difícil para os dois lidarem um com o outro no presente.

Seph se lembrou da tensão entre o mago e a encanta­dora, a faísca e a energia. Pensou sobre o aviso de Linda.

  • O Hastings é um cara mau?
  • Não, eu não diria que ele é um cara mau. Ele é um daqueles magos que melhorou com a idade. Ele era bastante perigoso e impulsivo quando jovem. Ainda é perigoso, suponho. — Nick ficou em silêncio por um momento, franzindo o rosto ante alguma velha lembrança.
    • O pai do Leander era mago, e a mãe era Anaweir. A irmã mais velha, Carrie, era guerreira. A família fez o máximo que pôde para mantê-la longe dos torneios, mas as Rosas acabaram encontrando-a, e ela foi morta. O pai dele morreu em defesa dela. A mãe nunca mais foi a mesma. O Leander tinha dez anos na época. Quando ele tinha a sua idade, já estava travando uma guerra pessoal contra a hierarquia dominada pelos magos e o sistema de torneios. Ele nunca teve medo de uma briga. Nunca teve medo de morrer, também.
  • .. se a tia Linda e o sr. Hastings concordam sobre os torneios e tudo? — insistiu Seph, querendo entender.

Nick sorriu.

  • Estes são tempos difíceis. A Linda e o Leander podem concordar sobre os fins, mas com freqüência discordam a respeito dos meios. — Ele pôs a mão no ombro de Seph. — São ambos pessoas poderosas, cada um do seu jeito. Cada um vai tentar puxar você para o seu lado, Seph, quer você queira, quer não. No final, você vai ter de decidir por conta própria.

 


                       Um Pequenique no Rio

Seph não viu mais Leander Hastings, o que re­forçou a sua crença de que o mago não tinha interesse especial nele. O dia seguinte era quinta-feira, dia de folga de Madison: o dia do piquenique. Ela dissera que conhecia um bom lugar, e o carro era dela. Sugeriu que ele levasse roupa de banho, por isso ele presumiu que seria em algum lugar próximo ao lago.

A casa se esvaziara cedo. Jack fora jogar futebol com Will e Harmon, tentando superar o calor do dia. Becka estava no tribunal, e Linda estava procurando uma casa para comprar.

Seph estava prestes a carregar a caixa térmica quando Madison bateu à porta de tela.

— Entre — disse ele. — Estou quase pronto.

Ela estava usando um vestido de batique verde sobre o traje de banho, um chapéu de aba larga e sandálias. Os cabelos lustrosos estavam em parte trançados e ornados de contas, em parte soltos, caindo-lhe em ondas pelas costas.

  • Esta é uma ótima vizinhança — disse ela. — Eu gostaria de pintar essa rua toda. É como uma estante inteira de bolos de casamento, um mais enfeitado que o outro. — Ela olhou a cozinha em torno, depois as bolsas e pacotes de Seph. — Quem mais você convidou? — perguntou ela, surpresa.

Ela o ajudou a carregar aquilo tudo para a sua velha picape. Puseram a comida atrás, sob uma lona.

  • Você vem de uma família grande, para viver numa casa tão grande? — perguntou ela.

Ele sacudiu a cabeça, entrando pelo lado do passageiro e afivelando o cinto de segurança.

  • Sou só eu. Como falei, esta é a casa da Becka. Estou passando o verão aqui, no mínimo.

Ela entrou ã esquerda na Jefferson, em direção ao centro, engatando as marchas com força. Seph gostou de ver que ela dirigia um carro com câmbio manual.

  • Você está em que ano, terceiro? — indagou ela.

Ele assentiu.

  • Vou estar. E você?
  • Vou entrar no terceiro também. Mas vou ter aulas na Faculdade de Trinity no outono. No Instituto de Arte.

Ela baixou a cabeça ao dizer aquilo, como se ele pudesse questionar seu direito de estar ali.

  • Uau! Parabéns! Ouvi dizer que é difícil entrar lá. Mas como é que você pode ter aulas na faculdade se ainda está no ensino médio?
  • Aqui em Ohio a gente pode ter aulas gratuitas na faculdade enquanto ainda está no ensino médio. O distrito escolar paga por isso. — As faces de Madison ficavam

rosadas à medida que ela se animava com o assunto. — Minha professora de arte no Colégio de Coal Grove acertou tudo. Ela disse que eu melhoraria bastante com um bom professor, e eu posso ganhar créditos na faculdade sem ter de pagar por isso. Vou morar com a minha prima e trabalhar na pensão, por isso...

Ela deu de ombros, embaraçada, e Seph se deu conta de que ela devia estar nervosa porque ia ser uma aluna do ensino médio numa faculdade particular de elite como a Faculdade de Trinity.

  • Becka leciona literatura inglesa na Trinity. Eu assisti a algumas das aulas dela. Os alunos parecem bem à vontade. Aposto que você vai gostar de lá.

Após tantos anos freqüentando escolas, Seph ficara surpreso com o jeito como os alunos se vestiam na Trinity: camisas e blusas de flanela e jeans no inverno, camisetas e shorts no verão.

Ele estava tão concentrado na conversa com Madison que não percebeu que estavam indo para o sul em vez de para o norte, até que chegaram a um cruzamento na estrada. Quando o carro acelerou para entrar na rodovia, Seph se sentou mais ereto, olhando pela janela, lutando contra um mau pressentimento.

  • Não imaginei que a gente fosse sair da cidade — disse ele.

Madison assentiu com a cabeça.

  • Pois é. Tem uma reserva natural bem legal no rio Vermilion. No Condado de Huron. Não é longe.

Ela o estava olhando de um jeito um pouco estranho.

Está tudo bem, disse ele a si mesmo. Não precisa fazer uma cena. Ele não havia visto magos de fora da cidade durante todo o verão. Não era possível que os ex-alunos estivessem esperando nos limites da cidade para inter­ceptá-lo, vigiando todas as rotas que saíam da cidade. Além disso, era improvável que o avistassem dentro de um carro desconhecido.

Eles passaram pelos limites da cidade sem incidentes. O parque ficava a cerca de meia hora de distância. Era remoto, densamente arborizado, cercado por um grande anel da garganta do rio e adornado com riachos rochosos que fluíam até o rio. O estacionamento estava vazio.

  • Como achou este lugar? — perguntou Seph, pas­sando a alça da caixa térmica sobre o ombro.
  • Eu vim pescar aqui algumas vezes. — Ela sorriu. — Pescaria é um pretexto pra me sentar próximo à água e não fazer nada. Perfeito. — Eles caminharam uma curta distância rio acima até uma pequena clareira, encoberta por árvores altas e circundada por plantas com largas folhagens, semelhantes a guarda-sóis, que Madison disse serem mandrágoras americanas. Eles estenderam uma colcha, e Seph serviu a comida.

Era um dia quente, mas estava fresco sob as árvores próximo à água. Isto está tão bom, disse Seph a si mesmo quando havia finalmente comido o suficiente. Ele olhou para Madison e sorriu. Mais do que bom.

Madison tirou o chapéu e colocou-o de lado, remexeu dentro da bolsa e tirou o caderno de desenho e o carvão.

  • Você arruinou os meus outros desenhos, por isso vai ter de posar de novo.

Seph sentou-se mais perto dela.

  • Eu já cozinhei para você. Quer dizer que preciso posar também?

Ele tomou o queixo dela nas mãos, puxou-a para si e beijou-a. Seus lábios tinham gosto de açúcar mascavo e manteiga, e os cabelos cheiravam a frutas cítricas e lavanda. A luz do sol ondulava sobre a colcha enquanto as árvores se moviam lá em cima como se estivessem sob a água.

  • Madison — sussurrou ele.
    • Os meus amigos me chamam de Maddie. — Ela se soltou dos braços dele. Ajeitando o caderno de desenho no colo, apontou com o queixo para a margem do rio. — Você. Vá se sentar lá.

Resmungando baixinho, Seph se levantou e foi se sentar entre as rochas à beira do rio. Madison ficava lhe dando ordens.

  • Meia-volta. Incline a cabeça para a esquerda. A perna direita reta. Pare de fazer carranca.

Seph pensou consigo mesmo que ela havia se saído bem no passado, desenhando-o sem a cooperação dele. Ele posou por uma hora na sombra matizada, com os pés na correnteza do rio Vermilion, até que ela teve pena dele e sugeriu que fossem nadar no rio.

Eles guardaram as coisas do piquenique no carro, de­pois caminharam por mais de um quilômetro até o desfiladeiro. Seph tirou a camisa e Madison, o vestido, e deixaram as roupas na margem do rio. A água era fria, mas refrescante no calor da tarde. Era bem límpida, diferentemente da enseada no Porto Seguro. Seph mexeu nas pedras, perturbando salamandras e camarões de água doce, apanhando-os nas mãos em concha. Ele não sabia que havia lagostas em miniatura em Ohio. Depois os dois se sentaram na parte rasa, deixando o rio correr por sobre eles.

  • Você tem irmãos e irmãs? — perguntou Seph.
  • Tenho um irmão mais novo, John Robert. E uma irmã mais nova, Grace — disse ela com ardente afeição, como se eles precisassem ser defendidos.
    • Os seus pais não se importam de você ter vindo para cá sozinha?
      • Só tem a Carlene, minha mãe. Ela não ficou muito animada com a idéia, principalmente porque sou eu que cuido das crianças. Mas posso ganhar mais dinheiro trabalhando para Rachel do que em qualquer lugar em Coalton. E a Rachel cuida mais de mim do que a Carlene jamais cuidou.
    • Então — disse Seph, tentando entender. — Você mora numa... numa fazenda?
    • Moro em Booker Mountain. A minha família vive lá desde antes de Ohio ser um Estado. É um lugar bonito, mas receio que não seja grande coisa como fazenda, a não ser que se queira cultivar pedras. — Ela fez uma pedra ricochetear e cair na margem oposta do rio. — Suponho que você tenha morado em tudo quanto é lugar.
    • É, mais ou menos.
    • Como é a Europa? — Ela revirou os olhos. — Imagino que isso seja como perguntar como é o oceano.
    • É. — Ele pensou por um momento. — Tem menos espaço na Europa. Parece que tudo fica amontoado, em comparação com o Canadá ou os Estados Unidos. Mas é preciso prestar mais atenção. Está tudo em camadas. Como uma tapeçaria feita com um monte de cores e pontos muito pequenos. Ou... como uma pintura impres­sionista — acrescentou ele, contente de ter pensado em exemplos artísticos.

Ela o estudou como se ele fosse uma espécie exótica.

  • Já foi ao Museu d'Orsay? Em Paris?

Ele fez que sim com um gesto de cabeça.

  • É um banquete, se você gosta dos impressionistas.
    • Eu vou lá algum dia — disse ela com convicção. — Vou visitar todas as galerias em Paris e todas as igrejas em Florença. E comer gelato todos os dias.

Quando ficaram entorpecidos e tremendo, saíram da água para as rochas e tomaram sol como tartarugas. Madison correu os dedos pela dyrne sefa que pendia do pescoço de Seph.

  • O que é isso?
  • Um amigo da escola me deu — respondeu Seph. — Acho que se pode dizer que aumenta a magia. Permite aos que tem o dom fazer coisas que eles não poderiam fazer de outro modo. — A lembrança de Jason lhe trouxe dor, como sempre o fazia, mas naquele momento o Porto Seguro parecia muito distante. — Você mencionou ter encontrado... bruxos onde você vive.
  • Bem, há uma forte tradição de magia por lá. O pes­soal que colonizou aquela área veio da Irlanda, Inglaterra e Gales. A minha avó lia a sorte e dava conselhos. As pessoas costumavam procurá-la para que ela lesse a sorte delas.

Ela ficou em silêncio por um momento, como que per­dida em lembranças.

"Uma adivinha", pensou Seph.

  • Também havia magos em Coalton?

Ela refletiu por um momento.

  • Tem pessoas com auras. Como você. Pessoas com poder. Trinity está cheia delas. Que tipo de poder, não sei dizer. E acho que a maioria deles não sabe que tem.
    • Há outros que nem você?

Ela riu.

  • É bem difícil de dizer. Eu não tenho uma aura, nem magia. Eu só absorvo a magia. Algo assim.

Quando o sol começou a tostá-los e eles ficaram sonolentos, vestiram as roupas secas.

Ao voltarem, as sombras estavam mais profundas do que antes. Eles seguiram uma trilha rio acima ao longo da margem até alcançar um lugar onde a ravina se erguia abruptamente nos dois lados, forçando-os para dentro do rio. Seph acabara de tomar a mão de Maddie para ajudá-la a passar sobre algumas pedras escorregadias, quando ergueu os olhos e viu alguém no leito do rio adiante, entre eles e o sol. O contraste entre luz e sombra dificultava a visão, mas havia algo de familiar naquela silhueta. Quando Seph protegeu os olhos contra a luz, viu que era Warren Barber. E, atrás dele, Kenyon King, do Porto Seguro.

Madison parou ao lado de Seph e olhou com curiosidade para Barber, que estava em pé, sorrindo, bem no caminho deles.

  • Olá, Joseph — disse Barber, sua voz entremeada com magia para sedar e nublar a mente.

Seph olhou em volta. Em ambos os lados, as margens eram íngremes demais para escalar. Atrás deles, mais dois magos avançavam pelo leito do rio. Aaron Hanlon, que ensinava ciências sociais, e Bruce Hays.

  • Quem é esse? — começou a dizer Madison, mas quando viu o rosto de Seph, as palavras morreram. Ela virou o rosto para olhar para Hays e Hanlon, e de volta para Seph.
  • A gente estava achando que você nunca ia deixar o ninho — disse Barber.

Devia haver uma pergunta não formulada no rosto de Seph, pois Barber acrescentou:

  • Eu usei um tipo diferente de teia desta vez. Algo que deixa você sair, mas amarra uma linha em você. Desse jeito, foi fácil rastreá-lo.

Seph passou as mãos pelo corpo, como se quisesse se livrar da corda invisível.

Barber flexionou os dedos, preparando-se para usá-los.

  • A gente veio levar você de volta, Joseph — disse ele. — Não tem sido o mesmo desde que você partiu.

Seph falou para Maddie sem tirar os olhos de Barber, tendo plena consciência dos magos atrás dele:

  • Está tudo bem. Eles eram meus colegas de escola. Volte para a picape.

Madison virou o rosto para olhar para trás. Hays e Hanlon haviam parado a uma pequena distância, como se aguardassem um sinal.

  • O que está acontecendo?
  • Vá. Se eu não estiver lá em meia hora, vá embora sem mim.

Quando ela não se moveu, ele a empurrou com força, e ela tropeçou alguns passos para a frente. Ela olhou para trás, o rosto ainda cheio de perguntas. Então se virou e se afastou dele, subindo o leito do rio, os punhos cerrados ao lado do corpo. Entretanto, ao tentar passar por Barber e King, este estendeu um longo braço e a agarrou pelo cabelo, puxando-a para si e envolvendo-a com o braço. Ela lutou por um momento, agitando os joelhos e cotovelos, então ficou parada, os olhos arregalados de surpresa e terror.

  • Solte a garota — disse Seph, tentando manter a voz calma e regular. — Ela não está envolvida nisso.

Barber sorriu.

  • Mas você está envolvido com ela, certo? Você não correria e a deixaria com gente como nós, não é? Então coopere e talvez a gente deixe ela ir.

Seph sabia que a sua vantagem principal era a surpresa e a confiança excessiva dos ex-alunos. Se não fosse por isso, já estaria imobilizado. Se não fizesse algo logo, per­deria a oportunidade.

Mas Madison não esperou que ele decidisse: contorceu-se como uma enguia e acertou a virilha de King com o joelho. Ele berrou e dobrou-se. Ele deve ter lançado poder mágico sobre ela, pois após alguns segundos ele caiu como se houvesse levado uma cacetada na cabeça.

Seph apontou para Barber e lançou um feitiço de imobilização. Girou e lançou feitiços sobre os outros dois magos, mas eles já estavam erguendo escudos e murmurando contra-feitiços. Barber estava petrificado, um olhar incré­dulo no rosto.

  • Saia daqui! — Seph gritou para Madison, que havia se libertado de King. — Já!
  • Mas eu posso ajudar!
  • Não quero a sua ajuda! — disse Seph, mantendo os olhos nos três magos.

Ele não queria que nada do Porto Seguro contaminasse Maddie Moss. Não queria que o maldito Warren Barber fizesse perguntas sobre ela. Não queria que ela se machucasse.

Ela se virou e subiu o rio, respingando água para todos os lados, indo em direção ao estacionamento, pulando obstáculos como um cervo. Ela perdera o chapéu, e este flutuou pelo rio na direção deles, girando na correnteza.

Hays desfez o feitiço de imobilização que Seph havia posto em Warren Barber. O problema era esse: a menos que Seph pudesse derrubar todos os três de uma só vez, eles continuariam ajudando uns aos outros.

  • O que é isso? — disse Barber, parecendo mais bem- humorado do que preocupado. — Parece que o garoto andou estudando fora da escola. — Ele olhou para onde Madison se fora, como que indeciso se devia ir atrás dela. Deu de ombros. — Que pena. Eu estava começando a gostar dela! — Ele cutucou King com o pé, franzindo o cenho. — O que é que há, Ken? Vai cantar como soprano de agora em diante?

King ficou caído de costas, ainda estonteado.

Barber sinalizou aos outros, e os magos remanescentes se separaram, avançando para Seph de três direções diferentes.

Seph escalou parte da lateral da garganta rochosa e voltou-se para encará-los. O caminho para o estaciona­mento estava bloqueado, e ele não tinha esperança de escalar o resto do caminho sem ser dominado ou imobi­lizado.

Estava assustadoramente silencioso na garganta. Os pássaros estavam calados, e ele não conseguia escutar o som da água correndo pelas pedras. Tudo o que podia ouvir era a respiração ofegante dos três magos que avan­çavam para ele.

  • Você pode achar que é um mago agora, Joseph — disse Warren. — Mas a gente acha que você tem muito a aprender. E a gente pode ensinar a você, lá na escola. — O tom dele se tornou tranqüilizador. — Vamos fazer assim. Você não se mistura mais com os outros alunos. A gente deixa você ficar na Casa dos Ex-Alunos. Vamos ser seus melhores amigos.

Seph estendeu as mãos.

  • Para trás. Não quero machucar você, mas não vou deixar que me levem.
  • Por favor, não nos machuque, Joseph — caçoou Barber.

Enquanto falava, Barber gesticulou, e uma rede de sombras deslizou sobre Seph. Este olhou para cima, viu a rede descendo sobre ele e estendeu as mãos, pronun­ciando um contra-feitiço. Seph havia passado um tempo considerável estudando defesas contra a Teia Weir. A rede se dissolveu em fragmentos brilhantes de prata que caíram, inofensivos, ao redor de seus ombros. Seph traçou um grande arco com o braço, lançando uma parede de chamas azuis montanha abaixo. Os ex-alunos se atiraram de cara no rio enquanto as chamas passavam sobre eles.

Seph arrancou terra da encosta do morro, provocando uma avalanche de rochas, depois lançou um jorro d'água garganta abaixo. Em desespero, recorria a feitiços que jamais experimentara antes. Alguns funcionavam, outros, não. Tinha de manter os ex-alunos ocupados. Se fosse atingido uma única vez, estaria perdido.

Sua única vantagem era que Leicester o queria vivo. Ele mesmo não tinha esse tipo de restrição, embora não tivesse realmente nenhum desejo de feri-los: eram vítimas tanto quanto ele. Com exceção de Warren Barber. Seph estava começando a achar que Barber era maligno até os ossos. "Eu devia ter matado você quando tive a oportuni­dade", pensou ele.

Seph subiu o leito do rio lentamente em direção ao estacionamento, lutando com os ex-alunos a cada metro de terreno. Sentiu mais do que ouviu o feitiço de submissão lançado por Barber, e respondeu com o contra-feitiço. Warren teceu mais fios de aranha com as mãos, fios giratórios e iridescentes que ameaçavam enlaçar Seph, mas eles se dissolveram com o mesmo contra-feitiço que ele usara na teia.

Eles forçaram as barricadas que ele erguia, procurando fraquezas, e derrubaram arbustos no declive acima, os galhos tombando em torno dele. Quando lançaram nuvens de vapor em sua direção, pássaros caíram do céu, inertes. Seph estava ficando cansado. Perguntava-se quanto tempo eles iam levar para planejar algo do qual ele jamais ouvira falar, ou simplesmente vencê-lo pela exaustão.

Os magos estavam ensopados, cobertos de lama e san­grando. Era óbvio que haviam esperado uma presa fácil.

  • O dr. Leicester se importa se ele estiver danificado ou quebrado? — arquejou Hanlon.
  • Acho que vamos ter de causar alguns estragos nele. Talvez seja inevitável.

Como para reforçar essas palavras, Barber sacudiu o punho, reunindo pedras do leito do rio numa nuvem mortal que voou em direção a Seph. Seph armou um escudo e conseguiu rechaçar a maior parte delas, mas uma pedra do tamanho de um punho atingiu-o na so­brancelha direita, aturdindo-o momentaneamente, quase derrubando-o. Ele cambaleou para trás, porém conseguiu ficar em pé.

Barber disse alguma coisa para os outros dois, e os três se aproximaram, apontando para ele e lançando feitiços, um depois do outro. Seph lutou para ficar alerta, sabendo que, se perdesse o foco por um instante, tudo estaria acabado. Tocou a dyrne sefa com os dedos e pensou em desaparecer, mas aquilo não lhe adiantaria nada se não pudesse continuar lançando feitiços. Ele poderia acabar imóvel e imperceptível, perdido na garganta do rio Vermilion para sempre.

De repente, percebeu algum movimento logo atrás dos ex-alunos na ravina, um clarão de luz refletido no metal, e uma figura familiar movendo-se rapidamente. Os três magos estavam tão concentrados em sua vítima que só perceberam o perigo em que estavam quando já era tarde demais.

Ellen Stephenson brandiu sua espada faiscante num potente golpe com as duas mãos que fatiou a caixa torácica de Aaron Hanlon até a espinha, quase cortando-o em dois. Hanlon gritou e tombou de cara no rio. Ele ficou imóvel, o sangue turvando a água. Ela golpeou de novo, o metal cantando, cortando o ombro de Warren Barber. Se o ângulo tivesse sido um pouco diferente, teria arrancado o braço dele. Ele se virou, praguejando, agarrando o ferimento com uma mão.

Seph desceu o declive para se juntar a ela, os pés escorregando no xisto solto. Ellen ofegava, mas sorria, triunfante. Agora era dois contra dois, com um ferido do outro lado.

  • Você está bem, Seph?

Ela mantinha a espada erguida, os olhos nos dois magos.

  • Ellen, estou muito feliz de ver você — disse Seph, apreciando os benefícios de ter uma guerreira do seu lado.

Seph enviou uma salva de feitiços de imobilização sobre os dois magos remanescentes. Ellen lançou chamas em espiral, que saíram da ponta da espada e avançaram sobre eles com implacável determinação. Warren Barber cambaleou para trás, sentindo os efeitos do ferimento. Agora eram os ex-alunos que estavam na defensiva.

Seph sabia que era melhor aproveitar ao máximo a van­tagem temporária. Podia haver mais ex-alunos esperando nos bastidores.

  • Ellen! — Ele se aproximou de modo que pudesse lhe falar baixinho. — Vou deixar você invisível. — Ele tirou a dyrne sefa do pescoço e pendurou-a em torno do dela. Agarrando-lhe o braço, pronunciou o feitiço da imperceptibilidade. — Não me deixe perder contato com você. Agora vamos! — sussurrou ele, puxando-a pelo declive abaixo e pela água até o outro lado.

Os dois magos restantes giraram, jogando chamas aleatoriamente, resmungando palavrões, vasculhando as late­rais do canal e os arbustos da margem do rio. Frustrados, eles se fecharam em torno do ponto onde Seph fora visto pela última vez, marcando-o com fogo mágico. A fumaça encheu a garganta quando a grama e o mato começaram a arder. Barber lançou outra chuva de pedras redemoinhando pela garganta abaixo, e Ellen deu um chiado de dor quando várias atingiram o alvo.

  • McCauley! — berrou Barber, o rosto roxo de fúria. — Sabemos onde você mora. Estivemos na maldita rua Jefferson. Vamos encontrar a Linda Downey e a irmã dela, Rebecca. Vamos encontrar a sua namorada. Vamos encontrar a sua amiga guerreira. E, no fim, vamos encon­trar você.

Os ex-alunos desceram rio abaixo numa corrida inútil, convencidos de que a presa deles estava escapando. Seph e Ellen seguiram pelo rio na direção oposta, rumo ao estacionamento. Arrastaram-se em desespero pela garganta, arranhando-se nos espinheiros e galhos, a água e a lama puxando os chinelos de Seph, a espada de Ellen prendendo-se nos arbustos. Ele não conseguia ouvir nenhum ruído de perseguição atrás deles, apenas a respiração acelerada de ambos e a barulheira que faziam ao abrir caminho através das árvores.

Atravessando os últimos arbustos, irromperam no estacionamento. Madison estava em pé próximo ao carro, digitando números freneticamente no celular, quando Seph e Ellen se materializaram em pleno ar, Ellen carregando a espada ensangüentada.    

Madison ergueu os olhos.

- Você o achou! — Ela enfiou o celular na bolsa. — Graças a Deus! Você está bem?

Ela segurou os cotovelos de Seph, examinando-lhe o rosto com ansiedade, tocando-lhe a testa onde a rocha o atingira. Então ela olhou por cima do ombro dele para Ellen e disse com ferocidade:

  • Espero que você tenha picado aqueles caras em pedacinhos.
  • Vocês duas se conhecem? — indagou Seph, olhando para Madison e Ellen.

Ellen estava em posição de prontidão, encarando o início da trilha, em busca de sinais de perseguição.

  • Vamos sair daqui. Podemos bater papo mais tarde.

Havia outros dois carros estacionados que não estavam lá quando Seph e Madison haviam chegado. Um era o velho jipe que Will e Ellen compartilhavam. O outro não era familiar: uma minivan preta com um adesivo de uma locadora de veículos. "Devia estar sendo usado pelos ex-alunos", pensou Seph. Esperava que fosse deles, pois derreteu todos os quatro pneus.

Seph foi com Madison na picape. Ellen seguiu atrás no jipe. Madison parecia acostumada com estradas rurais: dirigia rápido, raramente freando nas curvas.

Que desastre. Havia sido um tolo ao se arriscar com Madison. Se não fosse pela estranha resistência dela aos magos, ela poderia ter sido morta, ferida ou raptada.

Se Ellen não houvesse aparecido, ele talvez estivesse voltando ao Porto Seguro àquela altura.

  • Você não pareceu surpresa ao ver a Ellen. E a es­pada dela.

Madison olhou-o de relance, depois voltou a fitar a estrada.

  • É esse o nome dela? Quando eu voltei ao estaciona­mento, ela saiu do meio das árvores com aquela coisa e exigiu que eu contasse onde você estava. Eu achei que ela estava de vigia para aqueles caras. Ela achou que eu tinha levado você até algum tipo de armadilha. Demorou algum tempo até a gente se entender. Então ela saiu derrubando a trilha atrás de você, e eu fui até o carro telefonar pra emergência. Só que não consegui fazer o meu celular funcionar. Parecia em curto.

Ela ultrapassou uma van que se movia devagar.

  • O que diabos aconteceu lá trás, afinal? Esse tipo de coisa acontece com você o tempo todo?

Seph estava arranhado, esfolado e machucado, e a cabeça latejava. Ele a apoiou contra o banco e fechou os olhos.

  • Não com muita freqüência. Digamos apenas que eu cometi um erro.
  • Aqueles homens eram todos bruxos.
  • Tanto faz. E aí? Você está metido em alguma guerra de gangues mágicas?

Ele a fitou com tristeza, desejando que ela fosse susce­tível à magia para que ele pudesse simplesmente apagar-lhe a mente.

  • Eles eram meus colegas de escola. Agora estão atrás de mim. Não sei por quê.

Ele torceu para que eles não tivessem notado nada de especial em Maddie. Torceu para que nem pen­sassem nela.

  • Você quer ir direto para a delegacia? Ou a gente pode procurar um telefone público...

Ele sacudiu a cabeça, os olhos fixos em frente.

  • A polícia não tem como ajudar. — Ela abriu a boca para falar, e ele ergueu a mão. — O que eu poderia dizer aos policiais? Fui atacado por magos que tentaram me capturar com uma teia de aranha? Aí a simpática Ellen Stephenson, que joga de atacante no time de futebol feminino, cortou dois deles em pedaços com sua espada mágica? — Ele pensou em Ross Childers e imaginou a reação dele. Nada simpática. — É melhor você me levar pra casa.
  • Você acha que eles vão desistir depois de hoje?
    • Não.
    • Então você não pode simplesmente esperar que eles tentem de novo!
    • Essa não é a minha intenção.

Ele não tinha nenhuma opção real. Soubera disso o tempo todo. Poderia continuar no Santuário como prisioneiro, esperando que Leicester mirasse em alguém de quem ele gostasse, ou poderia agir.

Ela pôs a mão no braço dele.

  • Estou preocupada com você.

—  Você deveria se preocupar com você mesma. As pes­soas que se envolvem comigo tendem a se machucar.

—  Talvez eu possa ajudar você.

Ele não conseguia acreditar. Eles haviam acabado de se conhecer e haviam tido um encontro que se transformara em pesadelo, e ela ainda estava do seu lado.

  • Não depende de você.

Àquela altura, eles haviam atravessado os limites da cidade, pelo elegante portão de pedra da Faculdade de Trinity e a placa que dizia COLÉGIO DE TRINITY, CAM­PEÃO ESTADUAL DE FUTEBOL DA III DIVISÃO. Seph se perguntou se a tênue barreira funcionava em ambos os sentidos, se os ex-alunos sabiam que ele havia retornado ao Santuário. Talvez eles pudessem rastreá-lo o tempo todo. Sentiu um arrepio na nuca.

Madison fez uma curva abrupta e parou na entrada da garagem de Seph. Ellen estacionou atrás deles, mas não fez nenhum movimento para sair do carro, dando-lhes um instante de privacidade.

Madison ajudou a descarregar as coisas do piquenique na calçada.

—  Vamos, eu ajudo você a carregar isso pra dentro.

—  Não precisa, eu me viro.

Madison se apoiou na picape, torcendo uma das minús­culas tranças entre os dedos.

  • Tenho de admitir, este foi o piquenique mais movi­mentado de que participei em muito tempo.

Seph desviou o olhar e engoliu em seco.

—  Sem dúvida.

Ela lhe segurou as mãos e olhou-o no rosto.

—  Mas eu me diverti, antes da... ah... antes daquela confusão toda.

Seph sacudiu a cabeça, estupefato.

—  Não entendo. Eu praticamente tive de subornar você para que saísse comigo.

—  Quem disse que estou saindo com você? — Ela puxou os cabelos para trás, e as contas se chocaram com um barulho suave. — Para começar, o meu desenho não está pronto. Preciso que você pose mais pra mim. — Ela lhe tocou o rosto com delicadeza, como se estivesse mapeando a estrutura óssea por baixo. — Além disso, acho que talvez a gente possa ser amigos. Você não é tão arrogante quanto pensei no início. — Ela sorriu. — É melhor me telefonar, menino bruxo, ou virei atrás de você. Agora sei onde você mora.

Ela entrou no carro. Seph ficou olhando até a picape desaparecer ao dobrar a esquina no fim da rua.

Ellen saltou por sobre a lateral do jipe.

—  Precisa de ajuda?

Ela passou a alça de uma das caixas térmicas sobre o ombro e enfiou a colcha embaixo do braço. Eles conse­guiram carregar tudo até a cozinha em uma viagem. Nin­guém estava em casa, mas, a julgar pelo lixo deixado para trás, Jack e seus amigos haviam passado por lá. Ellen bebeu duas garrafas d'água enquanto Seph guardava a comida.

Ellen estava horrível, coberta de lama e com as roupas rasgadas. Tinha um corte feio acima de um dos olhos, e a maçã do rosto estava ficando roxa devido a uma pe­drada que havia levado. Parecia também exultante. Seph começava a compreender que não havia nada de que Ellen gostasse mais do que uma boa luta, bem concluída. Ele trouxe o kit de primeiros socorros do banheiro do andar de baixo, e eles se sentaram à mesa, tratando metodicamente os ferimentos um do outro.

—  Você se saiu muito bem hoje — disse Ellen, tirando a dyrne sefa do pescoço e passando-a a Seph. — Perdi a conta dos feitiços voando por lá. Aqueles caras levaram a pior, sem dúvida. Pena que a gente teve de se mandar. Acho que podíamos ter acabado com eles.

—  É. — Seph empurrou para trás as mechas à altura do queixo dos cabelos de Ellen e limpou-lhe a orelha ensangüentada. — Não que eu não seja grato, mas... o que você estava fazendo no parque? — indagou Seph.

  • Eu estava... sabe como é... caminhando.
  • Não acredito em você.

Ellen abriu a geladeira, apanhou um punhado de gelo, jogou dentro de um saco plástico e passou-o a Seph.

  • Ponha isso na cabeça — sugeriu ela.

Ele pressionou o saco de gelo contra o galo na testa.

  • E então?

Ellen lambeu o dedo e esfregou-o num respingo de sangue no braço dela.

  • Era o meu dia de vigiar você, está bem?
  • O quê?
  • Nós nos revezamos. O Jack, o Nick, a Linda e eu. Hoje o Jack estava jogando futebol, a Linda estava fora comprando uma casa, o Nick tinha passado dois dias seguidos vigiando você e... — disse ela, a voz diminuindo até sumir.
  • Está me dizendo que vocês vem me seguindo o verão inteiro?

Ellen pigarreou.

  • Linda estava com medo de que algo assim aconte­cesse, ou de que eles encontrassem um jeito de assustar você a ponto de você resolver fugir. Então..

Ela deu de ombros.

  • Não acredito! — protestou Seph.
  • Pode acreditar, não estava sendo o trabalho mais ex­citante, até hoje. O Seph vai à igreja. O Seph vai à sinfonia. O Seph vai à praia para ser cantado pelas meninas. — Ellen mordiscou uma unha quebrada. — Esta tarde, eu me senti uma vela, seguindo você e a sua namorada. Por isso fiquei bem mais pra trás. Suponho que não devia ter feito isso.

—  Talvez eles pudessem ter visto você, se você estivesse mais perto.

—  Talvez. Olha, eu sinto muito pelo seu... ah... en­contro.

—  Você salvou a minha vida. Obrigado. — Seph estava feliz de ter sido Ellen e não Jack. — Você nunca me tratou como se eu fosse, sabe como é, o inimigo.

Ellen terminou de arrancar pedaços de cascalho dos joelhos esfolados e apanhou a esponja de banho.

  • A gente tem muito em comum, sabe — disse ela, inclinando a cabeça como que para se concentrar no que estava fazendo. — Também nunca conheci meus pais. Fui criada para os torneios pelos magos da Rosa Vermelha.
  • Eles tinham algum tipo de escola para guerreiros? — perguntou ele.

Ela soltou um riso sarcástico.

  • Não sobrou o suficiente de nós pra encher uma es­cola. Eu era treinada por um Mestre dos Guerreiros. Quer dizer, um mago especializado em treinar guerreiros. Um treinador diabólico. Estávamos sempre nos mudando, sendo caçados pela Rosa Branca. Por isso eu sempre fui a forasteira. A garota nova na escola. Meio como você.

Ela sacudiu para trás o elmo de cabelos reluzentes, inspirando tanta piedade quanto um leopardo inspiraria.

  • Então como é que você conheceu o Jack?
    • Os magos da Rosa Vermelha descobriram que a Rosa Branca tinha um guerreiro escondido aqui em Trinity. Eu vim aqui para matar esse guerreiro — disse ela, como se fosse algo natural. — Só que eu não sabia quem matar, e ele não sabia quem eu era. Ele se sentava atrás de mim na sala de chamada, imagine só. Ele era... sabe como é... olhei para ele e fiquei, uau! Acho que eu estava completa­mente apaixonada. Eu nunca tinha ficado com ninguém, na verdade. Ele tinha acabado de romper com aquela... aquela Alicia Middleton. — A inflexão dela emprestava ao nome novos sentidos. — Não sei muito bem lidar com pessoas. E ele era, tipo, o cara mais popular da escola. Mas a gente meio que clicou, e uma coisa levou à outra... — disse Ellen, a cor subindo-lhe às faces.
  • Quando vocês descobriram?
  • O Jack deu bandeira numa briga de rua antes de sairmos de Trinity. Ele não percebeu quem eu era até a gente se encontrar no campo na Ravina do Corvo. Eu nunca vou esquecer a expressão no rosto dele.

Sorrindo, ela carregou a bacia de água ensaboada até a pia e esvaziou-a.

  • Acho que ele não gosta muito de mim — disse Seph.
  • Oh, eu não diria isso. O Jack não é mais tão aberto quanto costumava ser, antes da Ravina do Corvo. Leva mais tempo para se conquistar a confiança dele. — Ela se sentou à frente de Seph de novo. — Sabe como é, ele levava uma vida perfeita aqui em Trinity. E então, ao longo de poucos meses, ele descobre que cada pessoa que conhece é alguém completamente diferente. A cirurgiã dele é uma maga que fez com que ele se transformasse numa aberração mágica. A tia é uma encantadora com um passado obscuro. O velho zelador que mora em cima da garagem é um mago guarda-costas de 400 anos de idade. A ex-namorada é uma mercadora traiçoeira, dedo-duro, que o mantinha sob feitiço.

Seph mordeu o interior das bochechas para se impedir de rir.

  • Até o mestre dele, Hastings, tinha um plano secreto: fazer ele participar do Jogo e obter o domínio sobre as Casas dos Magos. O Jack vai até o torneio e descobre que o adversário dele é a garota com quem ele estava saindo, que, a propósito, veio a Trinity para matá-lo.

Seph balançou a cabeça, sem fala.

  • Apesar de tudo isso, eu nunca encontrei alguém que fosse tão... tão puro. Não quero dizer que ele seja um santo ou coisa assim — acrescentou ela rapidamente, revirando os olhos. — Ele apenas... sabe quem ele é e no que ele acredita. Ele não muda a história dele de um dia para o outro, nem de uma semana para a outra. Ele é o tipo do cara que você quer ter do seu lado quando coisas ruins acontecem.

Seph desejou ter a mesma certeza, a mesma sensação de que estava no caminho certo. Ele havia perdido algo importante no rio. Algo que não percebera que possuía antes de perder: uma sensação crescente de segurança.

Ele havia deixado o Porto Seguro com a intenção de se vingar de Gregory Leicester, mas se permitira ser seduzido pela magia de uma cidadezinha do Meio-Oeste. Leicester o avisara para não falar e, de modo geral, ele não falara.

Leicester não desistiria. Era apenas uma questão de tempo até que ele tentasse de novo.

A menos que Seph o pegasse primeiro.

  • Então, o que é que aqueles caras queriam? — in­dagou Ellen. — Você nunca disse.
  • Disseram que vieram me levar de volta pra escola.
  • Não entendo — admitiu Ellen. — Você acha que eles vêm seguindo você esse tempo todo? Por quê?
  • Acho que nem os ex-alunos sabem — disse Seph.
  • Os o quê?
  • Os ex-alunos. Aqueles que nos atacaram hoje. Eles foram alunos no Porto Seguro e, depois que se formaram, passaram a trabalhar para o dr. Leicester. Não acho que eles façam idéia de por que ele está atrás de mim. — Ele tomou fôlego. — Mas a tia Linda sabe.
  • Do que você está falando?
  • Acho que a tia Linda sabe por que eles estão atrás de mim. É por isso que ela mandou vocês me vigiarem todos os dias. — Ele jogou o saco de gelo de uma mão para a outra. — Imagino que o que aconteceu hoje não possa ficar só entre nós.
  • De jeito nenhum. Está maluco? — Ellen esticou as longas pernas. — Qual é, Seph?! Você está em perigo e precisa de ajuda. Não acha que a Linda merece saber que os instintos dela estavam certos? — Ela parecia encabulada. — Passamos semanas dizendo a ela que isso era paranóia e que não era necessário seguir você.
  • Eu já me sinto um prisioneiro — disse Seph. — Se ela descobrir o que aconteceu, vai ficar pior. Podem me seguir o quanto quiserem. Prometo que não vou sair de Trinity. Não vou pôr você em perigo de novo. Você podia ter morrido hoje. — Ele estendeu o braço e fechou a mão sobre a dela, olhando-a nos olhos. — Ellen, por favor, não conte.

Os olhos dela se arregalaram, e ela tentou retirar a mão.

  • Ei!

Ele aumentou a pressão gentil, o fluxo de persuasão, sentindo-se culpado ao fazê-lo. Finalmente, ela assentiu.

  • Está bem. Fica sendo um segredo entre nós.

E Seph sorriu, satisfeito.

 

                     O Conselho dos Magos

Linda Downey esteve na cidade por apenas alguns dias nas duas semanas seguintes. Ela parecia distraída e muito nervosa. Talvez fosse a idéia de estar presa, pensou Seph. Ela havia comprado uma casa na rua Washington, a um quarteirão de distância da Jefferson, com vista para o lago. Era uma pequena casa vi­toriana, um velho chalé de verão que precisava de reparos consideráveis. Ela ficou na cidade tempo suficiente para contratar uma equipe de pedreiros e encarregou Seph de supervisioná-los.

— Você é bom nesse tipo de coisa — disse ela. — Escolha a tinta e o papel de parede, e mantenha-os na linha.

Assim, ele passou bastante tempo na casa nova, além de trabalhar com Fitch e Harold. Evitava a praia de manhã cedo, e, quando Madison deixava mensagens no seu celular, não ligava de volta. No que dizia respeito a manter segredos, ele tinha a experiência de uma vida inteira em que se apoiar. Estava determinado a não deixar nem Madison nem ninguém mais se envolver em sua guerra pessoal. Ele se lembrava dos avisos de Leicester.

Mas as garotas no pavilhão já não eram atraentes. A imagem de Madison sempre se intrometia: o chapéu flexível com o longo laço, as longas saias e as blusas de seda de estilo antigo, as sardas e o cabelo tingido pelo sol. Até o modo como ela o olhava, empinando o queixo quando achava que ele estava sendo arrogante.

Leander Hastings retornou à cidade na segunda semana de agosto. A reunião do Conselho dos Magos havia sido marcada, enfim. Seria realizada em Trinity.

Ele havia passado uma tarde na clareira com Jack e Ellen, treinando-os. Era um dia quente, e a atividade fora intensa. Agora os guerreiros estavam caídos nas cadeiras de jardim na varanda da frente, depois de beber uns quatro litros de chá gelado. Hastings estava sentado no concreto frio dos degraus da varanda, com Seph junto a ele.

Estavam conversando sobre a reunião que se aproxi­mava. Jack desaprovava o local.

  • Criar um santuário para o resto de nós e aí escan­carar as portas para os magos. Que bela idéia!
  • Na verdade é uma boa coisa. Deve ser, já que o Gregory Leicester e o Claude D'Orsay são contra — re­plicou Hastings, pousando seu olhar sobre Seph por um momento.
  • Por que é uma boa coisa? — indagou Seph, usando uma pequena dose de poder para afastar os minúsculos mosquitos de fim de verão que o cercavam.
  • Há uma considerável pressão sobre o Conselho neste momento. Alguns dos membros querem jogar fora as Leis de Combate e sufocar a rebelião. — Ele sorriu para Jack e Ellen. — Entrar em guerra contra os Anaweirs. Pôr esses guerreiros e encantadores nos seus lugares. — Ele fez uma pausa. — Outros querem reunir uma Conferência das Ordens, como as novas regras ordenam, e chegar a um acordo viável. Aqui em Trinity, há a probabilidade de que todas as vozes sejam ouvidas, sem nenhuma trapaça, feitiçaria ou magia negra envolvida. Bem, trapaça talvez — acrescentou, sorrindo de novo.
  • Onde vai ser? — indagou Ellen, puxando os cabelos suados para trás das orelhas.
  • Na Pensão Lendas.
  • Quantos magos virão? — perguntou Seph.
  • Serão 20 ao todo. É muito poder e agitação para uma cidade pequena.
  • O Dragão vai estar? — perguntou Seph, sem conse­guir se conter, vendo a reunião do Conselho dos Magos como o clássico exemplo da montanha vindo a Maomé.

Hastings se virou e encarou Seph, apoiando as mãos nos joelhos.

  • Não sei, Seph. Por que pergunta?

Seph se mexeu desconfortavelmente sob o exame do mago.

  • É como eu falei. Eu gostaria de me encontrar com ele.
  • — Hastings continuou a fitar Seph até este desviar o olhar. — Como eu disse antes, o Dragão não está no Conselho dos Magos. Ele prefere trabalhar nos bastidores.

Hastings não havia respondido à pergunta de Seph, e, obviamente, não tinha a intenção de fazê-lo.

Seph estava determinado a encontrar o Dragão se ele viesse a Trinity. Com certeza viria. Mas, nesse caso, Seph não o reconheceria se o visse na rua.

  • Eu tinha a esperança de que você me apresentasse a ele.
    • Se eu o vir, talvez eu lhe diga que você o está procurando.
    • Gregory Leicester vai estar lá? — insistiu Seph.
    • O dr. Leicester está no Conselho, sim. Apesar de desaprovar o local, tenho certeza de que ele não vai faltar.

Talvez houvesse uma oportunidade de pegar Leicester de surpresa.

Hastings o observava, os olhos verdes atentos sob as sobrancelhas negras. Era quase como se ele pudesse ler a mente de Seph.

  • Acho que vocês todos deveriam ficar longe da Lendas durante a reunião.

Ele disse isso a todos os três, mas a mensagem era dirigida a Seph. Ellen e Jack assentiram, porém Seph apenas se recostou nos degraus, fechando os olhos. Havia tido uma revelação: Leander Hastings não confiava nele. Essa era a questão.

 

No primeiro dia da reunião do Conselho, Seph ajustou o despertador e acordou cedo no ninho-de-águia que era seu quarto. Desde o malfadado piquenique, ele vira os guarda-costas de Linda seguindo-o a todos os lugares

e fingira não notar. Hoje, tinha esperanças de se livrar de suas sombras saindo de casa antes que todos acor­dassem.

Vestiu uma bermuda e uma camiseta, depois remexeu no canto do fundo da gaveta de roupa de baixo, tirando um pequeno frasco de cerâmica com uma rolha de cristal. Enfiou-o no bolso e desceu as escadas. Quando chegou ao primeiro andar, viu que a porta de Jack estava aberta e que a cama dele estava feita. Seph olhou de um lado para o outro do corredor, entrou no quarto de Jack e fechou a porta. Agachou-se próximo à cama.

A espada de Jack, a Sombra Assassina, estava embaixo dela, dentro do estojo. Seph sabia que não devia tocá-la. Will e Fitch haviam ajudado Jack a desenterrá-lo do túmulo de uma guerreira. Fitch dissera que quase havia sido incendiado quando tentara abrir o estojo.

Seph enfiou a mão entre o colchão e o estrado e puxou para fora uma faca curta numa bainha. Não era a arma favorita de Jack, mas ele a havia usado no dia em que Seph chegara a Trinity. Seph prendeu-a sob a camiseta, na cintura da calça jeans. Ele gostou de tê-la ali. Fazia-o sentir como se fosse finalmente tomar uma atitude, em vez de ficar esperando por outro ataque.

Ele estivera na Lendas na semana anterior, estudando a disposição dos aposentos do lugar. Hoje planejava desco­brir onde os magos se encontrariam e, em especial, onde dormiriam.

Seph se esgueirou pela escada de trás, na esperança de sair de casa pela porta dos fundos, mas trombou com Becka, que estava de saída, vestida para o tribunal.

  • Bom dia, Seph. Acordou cedo — disse ela, sorrindo. — Linda está em casa. Ela e o Jack estão na cozinha.

Becka falara em voz alta, de modo que Seph sabia que Linda estaria esperando que ele aparecesse. Sacudindo a cabeça, ele foi para a cozinha.

Linda e Jack estavam terminando o café da manhã. Eles pararam de falar abruptamente quando Seph entrou no aposento. Linda parecia pálida e cansada. Trajava o mesmo conjunto preto formal que vestira no dia em que resgatara Seph no Porto Seguro.

  • Acho que você cresceu — disse ela. — Toda vez que vou embora, você cresce dois centímetros!
    • Bem-vinda ao lar, tia Linda.

Seph serviu-se de café e trouxe-o para a mesa.

  • Como vão os meus pedreiros, Seph? Vou me encon­trar com eles daqui a pouco.

Os pedreiros eram absolutamente fascinados por Linda Downey. Dave Martin, o empreiteiro, estava sempre consultando Seph a respeito de alguma melhoria, para descobrir se ele achava que Linda aprovaria. Eles nunca questionavam o fato de estar trabalhando para um me­nino de 16 anos. Era outra daquelas estranhas relações entre Weirs e Anaweirs.

  • Eles parecem estar dentro do prazo — disse ele. — Dave pensou numas mudanças que ele quer sugerir a você. Os desenhos revisados estão na mesa de jantar.

Seph receava que ela fosse sugerir que ele também fosse à reunião, mas ela não o fez. Ele achava que, depois do período de ausência, poderia ser o dia dela de vigiá-lo, mas não era, pois ela foi buscar as plantas na sala de jantar e apanhou a maleta.

—  Divirtam-se hoje, meninos. Comporte-se, Seph.

E então ela partiu.

Jack estudou Seph como se ele fosse um problema a re­solver. Seph podia sentir a faca "emprestada" espetando-o na coxa. "Acho que é o dia de Jack me vigiar", pensou ele.

—  A gente vai velejar hoje — disse Jack abruptamente.

O coração de Seph se contraiu. A família Swift-Downey tinha um pequeno veleiro que mantinha na água por todo o verão. Jack vinha prometendo levar Seph para velejar no lago. Mas nunca dera certo. Até agora.

  • Hoje? — Seph procurou por uma desculpa. — Sabe, hoje realmente não é um dia muito... Quer dizer, eu não...
    • A gente não vai muito longe — disse Jack, lançando-lhe aquele olhar certeiro. — Só vamos subir e descer a costa. O Will e o Fitch também vão. Minha mãe embalou o almoço. Está tudo acertado.

Seph fora apanhado, e sabia disso. Ele se perguntou de quem havia sido a idéia. O plano fora claramente elaborado para mantê-lo longe da pensão.

  • "Certo" — disse Seph, forçando entusiasmo. — Ótimo!

Will e Fitch aguardavam no ancoradouro, conversando com Harold Fry, quando o grupo chegou ao porto.

Harold saudou Jack e Seph com um gesto de cabeça.

  • Bom dia, rapazes. — O velho observou Jack saltar agilmente para dentro do bote e carregar o equipamento. — Quando você vai arranjar um barco de verdade, Jack?
  • Tudo bem, Harold. Por enquanto não sei lidar com nada maior do que isso — disse Jack, firmando o bote enquanto Seph, Will e Fitch subiam a bordo.
  • Estou emocionado — disse Fitch enquanto remavam para onde o Windego estava ancorado no porto. — Eu fiquei o verão todo dando indiretas sobre ir velejar.

Todos pareciam felizes com a excursão, menos Seph.

Estava um dia lindo. O lago tinha uma cor verde-garrafa translúcida, e apenas algumas nuvens altas interrompiam o azul infinito do céu quando Jack ligou o motor para tirar o barco do porto. Dezenas de velas brancas pontilhavam o horizonte.

Quando estavam em mar aberto, Seph se resignou à situação, trabalhando duro como tripulante sob a direção de Jack. Ele até que sabia um pouco manejar as velas, lembrando-se das vezes em que velejara com Warren Barber. Jack era um capitão esperto e agressivo, pelo menos na opinião de Seph. Depois de um tempo, Jack deixou a vela principal a cargo de Seph enquanto ma­nejava a vela da proa. O vento soprava veloz do oeste e, quando os atingiu diretamente, o barco voou sobre a água, atravessando as grandes ondas preguiçosas. Ele e Jack trocavam de posição, enquanto Will e Fitch pareciam preferir ficar sentados à proa do barco sob o borrifar das águas e trabalhar o mínimo possível.

Eles ancoraram em uma das praias mais vazias a leste de Trinity e foram nadar. Seph deixou a faca de Jack cuidadosamente escondida entre as roupas. A água ainda estava fria, mesmo em agosto, mas era um dia quente e, depois de apenas um breve período no convés, eles estavam prontos para voltar à água.

Após almoçarem sem pressa e nadarem mais um pouco, deram uma cochilada no convés, com o barco balançando suavemente nas ondas, antes de seguirem de volta para a cidade. Moviam-se contra o vento desta vez e tiveram de fazer algumas manobras difíceis. Levaram muito mais tempo para voltar do que haviam levado para ir.

  • Está contratado, Seph — disse Jack, sorrindo quando Seph acertou uma complicada manobra para virar o barco contra o vento. — Melhor do que esses dois fracassados — acrescentou, indicando Will e Fitch com a cabeça.

Fitch ergueu uma lata de refrigerante num brinde.

  • À tripulação.

Era fim de tarde quando Jack ligou o motor para que pudessem chegar ao porto. Um dia perfeito, mas Seph não pôde deixar de se perguntar se as reuniões na Lendas ainda estariam em andamento. Ele já havia desperdiçado o primeiro de dois dias.

Os outros três ficaram de roupa de banho, mas ele voltou a se vestir, prendendo a faca de novo por dentro da cintura da calça.

Quando o bote estava perto o bastante, Jack saltou para o quebra-mar e prendeu a corda. Ele e Seph carregaram a caixa térmica para fora do barco e levaram o equipamento escada acima até o estacionamento da marina.

Jack se virou em direção ao escritório da marina.

  • Vou ver que tipo de isca o Jerry tem — explicou ele. — Quem sabe amanhã a gente possa ir pescar.

Ele desceu a escada de novo.

"E isso acaba com o dia de amanhã", pensou Seph. Agora talvez fosse a única oportunidade de escapar. Assim que Jack saiu de seu campo de visão, Seph falou, como se tivesse acabado de pensar naquilo:

  • Acabei de me lembrar, eu tinha de ter me encontrado com a tia Linda lá na casa às quatro e meia. Já estou atrasado. Digam ao Jack que precisei ir embora.

Sem esperar uma resposta, ele correu pelo estaciona­mento e virou a esquina.

A pensão Lendas ficava cerca de 400 metros a oeste da marina, em uma ponta de terra que formava uma das laterais do porto. Seph se perguntou se Jack adivinharia aonde ele havia ido e se viria atrás dele. Seph teria de se mover rápido o bastante para ficar à frente dele.

A porta da frente da Lendas abria para a sala de visitas, onde ele havia marcado o piquenique com Madison Moss. Graças àquela primeira visita, Seph sabia que as salas de reunião e as de jantar ficavam logo atrás. Ele parou no balcão da recepção e sorriu para a moça com uma blusa vitoriana de gola alta.

  • Você pode me dizer se eles ainda estão em reunião? — perguntou ele, em tom polido.

Ela estudou Seph de cima a baixo ceticamente, desapro­vando as roupas que ele vestira para velejar.

  • As reuniões terminaram por hoje. Eles interrom­peram os trabalhos há cerca de meia hora.
  • Eu tenho uma mensagem para um dos participantes, o sr. Gregory Leicester. Pode me dizer em que quarto ele está?
  • Qual é o seu nome?

—  Aaron Hanlon.

Ela estendeu a mão.

  • Eu passo a mensagem a ele.
  • Preciso entregar pessoalmente.
  • Devo avisar que você está aqui?

Ela levou a mão ao telefone sobre o balcão.

—  Não é necessário — Seph apressou-se em dizer. — Se ele não estiver lá, passo o recado por baixo da porta.

Ela hesitou. Era óbvio que havia uma norma. Seph estava começando a pensar que teria de usar maneiras mais diretas de persuasão. Mas, aparentemente, ela não viu grande ameaça em Seph.

  • Ele está no quarto 210. Segundo andar. O elevador fica ali — disse ela, apontando.

Em vez de pegar o elevador, ele decidiu subir as escadas, raciocinando que seria menos provável encontrar alguém que conhecesse. Isso também lhe permitiria ganhar um pouco de tempo. Ele poderia pensar em matar Gregory Leicester durante todo o caminho até se encontrar com o mago. Então a imagem falhou. Não era um bom presságio. "Vous devez envisager le sucèss", dissera-lhe Genevieve com freqüência. É preciso visualizar o sucesso.

Ele percebeu que estava deixando pistas evidentes para qualquer um que quisesse segui-lo. Mais do que isso, sabia que assassinato era um pecado mortal, do tipo que levava uma pessoa direto para o inferno. Mas ele não tinha opção. Leicester havia matado Trevor e Jason, e demons­trava ainda ter planos para Seph. Planos dolorosos, sem dúvida.

Você tem sido um osso duro de roer, moleque, Leicester havia dito. Agora vamos descobrir quão duro você é. Fragmentos de pesadelos lhe voltavam como vidro moído por baixo da pele. Quase o haviam apanhado no rio; poderiam ter sucesso da próxima vez.

Sabemos onde você mora, Barber havia dito. Vamos encontrar a Linda Downey e a irmã dela, Rebecca. Vamos encontrar a sua namorada. Vamos encontrar a sua amiga guerreira. E, no fim, vamos encontrar você.

Seph parou na escadaria e aprontou as armas.

A mão direita encontrou a faca sob a camiseta e empu­nhou-a. Ele tirou o frasco do bolso, arrancou a rolha e mo­lhou a lâmina generosamente com o conteúdo. Mercedes Foster o avisara de que era mais potente do que o veneno de qualquer cobra, e indetectável pela medicina Anaweir. Com cuidado, guardou a faca na bainha. Devolvendo o frasco ao bolso, ele buscou o portal que lhe pendia do pescoço. Sabia que não era boa idéia atacar Leicester di­retamente. Ele esperaria, despercebido, como uma víbora na grama, até que o diretor chegasse ao alcance de seu ferrão.

O imperceptível Seph emergiu da escadaria e caminhou rapidamente pelo corredor em direção ao fim, onde sabia que o quarto 210 devia estar.

— Seph! Seph McCauley, é você?

Ele girou, segurando a faca, a respiração presa na garganta. O primeiro pensamento que teve foi que o sempre confiável feitiço de imperceptibilidade não havia funcionado.

Mas não. Era Madison Moss numa saia longa, suéter de algodão sem mangas e sandálias de tiras, o cabelo exuberante preso numa rede adornada com imitação de diamantes. Sentiu o coração vacilar quando a viu. Ela andou na direção dele, tão bonita e perigosa quanto uma tempestade de verão sobre o lago. Parecia que Madison era tão imune aos feitiços de imperceptibilidade quanto a outras magias.

  • Por onde você andou? — sussurrou ela. — Eu deixei mensagens, passei na sua casa...

Ele ergueu as mãos como se pudesse afastá-la.

  • Madison, a gente não pode... Esta não é uma boa hora.
  • Acho que não existem horas boas e ruins. Pensei que fôssemos amigos. Se está se referindo ao que aconteceu no rio, acho que tenho o direito de fazer as minhas próprias escolhas.

Ela continuava avançando, e ele recuou até que ela o acuou em uma pequena recâmara no fim do corredor. Desesperado para conter o fluxo de palavras, ele agarrou o pulso dela e puxou-a para si, tapando-lhe a boca com a mão.

  • Escuta, algumas das pessoas que vimos no rio estão aqui na pensão. Não tem nada que eles gostariam mais do que terminar o que começaram.

Madison se afastou dele e olhou para os dois lados do corredor. Então se aproximou dele e baixou a voz.

  • Então por que está aqui? — perguntou, a voz tre­mendo um pouco.

Um pergunta que Seph não podia responder. Ele a segurou pelos cotovelos.

  • Eles não vão me notar. Vou ficar bem, a não ser que você me denuncie.

Ela pestanejou.

—  Você espera que eu acredite que você está invi­sível? Sei.

Apesar do que dissera, ela soara um pouco insegura. Então ele ouviu passos. Olhou sobre o ombro de Madison e viu alguém alto e esguio caminhando na direção deles pelo corredor, como um espírito vingador.

Era Leander Hastings.

Seph apontou para Hastings com a cabeça.

  • Ele está procurando por mim. Por favor, não diga nada — disse ele, e recuou para dentro da recâmara.

Madison não se virou. Caminhou até a janela e fingiu olhar para fora, apoiando as mãos no parapeito. Hastings se aproximou, examinando os números dos quartos dos dois lados. Parou quando chegou ao 210, virou de lado, pôs a orelha contra a porta e bateu. Não houve resposta. Ele se endireitou e ficou ali, observando Madison por um instante.

—  Por favor — disse Hastings.

Madison estremeceu e virou-se para ele, segurando a saia de ambos os lados.

—  Viu um jovem mais ou menos da sua idade, alto e magro, cabelo escuro encaracolado? — perguntou Hastings, plantando-se à entrada da recâmara, impedindo definitivamente uma fuga.

  • Não, senhor, não vi. — Ela o encarou com os olhos brilhantes, corada. — Se ele é um hóspede da pensão, o senhor pode perguntar no balcão da recepção.

Os olhos dela pousaram de relance sobre Seph, como para verificar que ele ainda estava lá. Então se voltaram para Hastings.

  • Ele não é um hóspede, mas tenho motivos para acreditar que ele possa ter vindo até aqui. — Hastings se apoiou contra o batente da porta, franzindo o cenho. — Ele passou pelo balcão da recepção dez minutos atrás.

Madison deu de ombros.

  • Não vi. Agora, se me der licença, tenho de trabalhar.

Hastings não se moveu. Ele sondou a recâmara com os olhos, então olhou de novo para Madison. Ela voltou a olhar de relance para Seph, que sacudiu a cabeça, pondo o dedo sobre os lábios. Hastings pôs a mão no bolso das calças, tirou uma pequena bolsa, abriu-a e, de repente, jogou o conteúdo desta sobre Seph. Era um pó leve e cintilante que se aglutinou ao redor de Seph como um halo. Hastings tateou no meio daquilo e seus dedos se fecharam sobre a corrente em torno do pescoço de Seph. Os elos se dissolveram sob o toque do mago, e a dyrne sefa soltou-se, caindo ao chão.

O imperceptível Seph era perceptível mais uma vez.

  • Vejam só. — Hastings recolheu a dyrne sefa e co­locou-a no bolso. Depois pousou uma mão pesada sobre o ombro de Seph, girando-o, e o prensou contra a parede. — Notei, na casa da Becka, que você estava usando uma pedra do coração. Evidentemente, você aprendeu como usá-la. — Os olhos dele eram frios e verdes como o gelo que se forma nos lagos mais profundos do Canadá. — Quem você está procurando, Seph? Talvez eu possa ajudar.

Era difícil falar e difícil não fazê-lo, com toda a pressão mágica sobre ele.

  • Diga-me — murmurou Hastings. — Ainda está pro­curando pelo Dragão?

A mão dele pressionou de leve a traqueia de Seph, vibrando de poder. Mesmo a pequena pressão tornava difícil a respiração.

  • .. eu estou procurando por Gregory Leicester — disse Seph num fraco sussurro.
  • Está procurando pelo seu mestre, então? Tem algo a contar a ele, é isso?
    • .. ele... em paz, me ouviu?

No calor do momento, Seph quase que se esquecera de Madison. Agora Hastings e Seph voltaram-se ambos para ela. Seph piscou para clarear a visão, e Hastings até diminuiu um pouco a pressão com que o segurava.

Ela agarrou o braço de Seph. O poder deslizou por Seph como metal quente através da carne, de Hastings para Madison, limpando o cérebro de Seph de pensamentos coerentes. Seph caiu, quebrando a conexão entre eles, tombando de lado.

Praguejando baixinho, Maddie se ajoelhou junto a Seph, amparando-lhe a cabeça nos braços. Seph queria con­fortá-la, mas não conseguiu achar as palavras. Tudo o que era capaz de fazer era olhar para ela, boquiaberto.

Ela estava furiosa. Foi a primeira coisa que ele notou. Mas se o pó cintilante revelava o poder de Seph como uma aura, envolvia-a em sombra. Empanava-lhe os braços quando ela se movia, cobria-lhe o cabelo reluzente, tor­nando-a etérea como um espírito, uma imagem negativa para a positiva de Seph.

Hastings desmoronou, sentando-se contra a parede, respirando pesado, igualmente sem forças. Ele estreitou os olhos em direção a Madison e sacudiu a cabeça.

  • Uma extratora — sussurrou ele. — É o que você deve ser. Não achei que existissem de verdade.
  • Não sei do que você está falando, mas se o machucar de novo, eu vou...

Ela estendeu as mãos em direção a Hastings, que re­cuou rapidamente, como se temesse ser queimado, ainda fitando Madison com assombro.

  • Ora, ora. O que eu estou interrompendo aqui?

Como se fossem cúmplices, todos eles ergueram o olhar

ao mesmo tempo. Gregoiy Leicester estava em pé na entrada da recâmara, segurando um balde de gelo que pingava com a condensação. Ele olhou de Seph para Madison e finalmente para Hastings, esfregando o queixo, pensativo.

  • Estávamos falando justamente de você, Gregoiy — disse Leander Hastings, em tom controlado, apesar de sua posição no chão. Ele olhou de Leicester para Seph como se tentasse discernir a ligação entre eles.
  • Talvez você queira entrar e tomar uma bebida, Leander — sugeriu Leicester. — Eu estava prestes a servir uma para mim. Você poderia celebrar a sua vitória hoje.
  • Não foi minha vitória — disse Hastings, pondo-se em pé. — Há um apoio considerável no Conselho à nova constituição.
  • Mas você a defendeu com tanta eloqüência! Se bem que eu não tenho a menor idéia de por que você quer dar poder a adivinhos, encantadores e guerreiros — disse Leicester, como se dissesse "lixo, gentalha e escória da terra".
  • Não sei do que você acha que está abrindo mão. Fora a habilidade de manobrar as pessoas.
  • Então não vai se juntar a mim para uma bebida? — Leicester pareceu notar Seph pela primeira vez. — Olá, Joseph. O Warren me disse que encontrou você no parque no outro dia.

Seph se desvencilhou dos braços de Maddie e se le­vantou.

  • Fique longe de mim. E diga ao Barber e aos outros pra fazer o mesmo. Ou ninguém escapa da próxima vez.
  • E, ainda assim, aqui está você, à espreita próximo à minha porta. — Leicester olhou de relance para Hastings, como se esperasse por uma intervenção. — Talvez você tenha finalmente compreendido que o seu lugar é conosco.
  • Eu nunca vou voltar.
  • — O mago olhou por cima do ombro de Seph para Madison. — Não vai me apresentar à sua amiga?

Fervendo de raiva, Madison tentou avançar, mas Seph estendeu o braço para impedi-la.

  • Fique longe dela — disse Seph.
  • Não importa. Sei como encontrá-la. Madison, não é? Um nome tão incomum... — disse Leicester, virando-se, passando o balde para a curva do braço e encaixando a chave na fechadura.

Seph buscou pela faca, desembainhou-a e lançou-se sobre Leicester. Hastings segurou-o por trás e agarrou-lhe o pulso, arrastando-o, passando o outro braço em torno do corpo dele, aumentando a pressão e o poder até que a mão de Seph ficou dormente e a faca caiu no tapete. Hastings cobriu-a com o pé.

Hastings manteve Seph imóvel até que Leicester, sem perceber nada, entrasse no quarto e fechasse a porta. Hastings apanhou a faca e, agarrando a nuca de Seph, empurrou-o pelo corredor até o quarto 206. Destrancou a porta e empurrou-o para dentro. Madison seguiu-os e fechou a porta atrás dela.

O quarto parecia um estranho cenário para Hastings: cheio de tecidos e detalhes vitorianos, era mobiliado com peças antigas de diversas eras. A janela dava para o lago. Havia uma mala aberta sobre uma das camas. Uma mesinha junto à janela estava coberta com os restos de uma reunião: xícaras, pires, copos e papéis.

Hastings olhou para Madison, como se desejasse ser capaz de fazê-la desaparecer. A expressão e a linguagem corporal dela diziam que ela não tinha intenção alguma de partir. Seph gostaria de ver Hastings tentar expulsá-la, depois do que ela havia feito com ele no corredor.

Em vez disso, Hastings se apoiou contra a porta, os braços cruzados sobre o peito.

  • O que vamos fazer com você, Seph?
  • Isso não é da sua conta. Por que não me deixa em paz? — Seph se levantou, os pés separados, respirando pesado. Ele gesticulou com a cabeça para Madison. — É melhor você ir.

Madison sentou-se na cama, determinada.

  • Não vou embora desta vez.

Hastings ignorou aquele diálogo.

  • Eu disse a Linda que era arriscado demais deixar você ficar aqui. Parece que eu estava certo. Quando o Jack me telefonou, eu sabia exatamente onde o encontrar.
  • Se é um problema, é só me dar uma carona até a saída da cidade. Os ex-alunos vão ficar felizes de me tirar das suas mãos.

A cabeça de Hastings se levantou.

  • Os ex-alunos?
    • Os magos escravos do Leicester. Eles me querem de volta na escola, parece.

Hastings estreitou os olhos, aparentemente confuso. Então ele se sentou em uma das cadeiras junto à mesa.

  • Fale-me sobre a escola.
  • O Porto Seguro? Eles tem dois mil maravilhosos quilômetros quadrados perto do oceano Atlântico. Vencem a copa de iatismo todos os anos. — Seph estava dando uma de espertinho, e sabia disso. — Você tem alguma pergunta específica?

—  Acontece que eu sei algumas coisas sobre o Porto Seguro — disse Hastings. — Pode me explicar como você sobreviveu por um ano naquele lugar? Pode me dizer por que você não está com eles?

Seph teve o forte e súbito desejo de ganhar a confiança do mago. Estava cansado de se preocupar com os ex-alunos, cansado de manter segredos, cansado de tentar resolver seus problemas sozinho, cansado de brigar com um mago poderoso que deveria ser seu aliado. Se não era capaz de encontrar o Dragão, talvez Hastings servisse.

  • Eu usei a pedra do coração. A dyrne sefa.

Hastings tirou o talismã do bolso e devolveu-o a Seph.

  • Onde a conseguiu?
  • Um outro aluno me deu e me ensinou como usá-la. O nome dele era Jason Haley. — Seph enfiou a pedra no bolso do calção. — Ele era meu amigo. Estava me ajudando. Por isso o mataram. — Ele começou a andar de um lado para o outro. — Uma semana atrás, o Leicester mandou alguns dos ex-alunos para me raptar. Eu saí do Santuário, e eles me atacaram. — Ele indicou Madison com a cabeça. — Se não fosse pela Madison e pela Ellen, eles teriam me levado. — Ele esfregou as têmporas. — Não agüento mais. Eles me torturaram por meses. Assas­sinaram meus amigos. Por que não me deixam em paz?

Ele foi até a janela e apoiou as mãos no parapeito, olhando para a água. Uma cadeira raspou o chão de madeira, e então Hastings estava ao lado dele. Ele segurou o queixo de Seph e forçou-o a virar o rosto até que pudesse olhá-lo nos olhos. Aquilo fez Seph lembrar-se de Jason, na noite em que este lhe explicara sobre os Weirs. Após um momento, Hastings o soltou e se virou.

Algo havia mudado, mas Seph não estava certo do quê ou como. Ele se sentou na cama ao lado de Madison e tomou-lhe a mão, segurando-a entre as dele.

  • Desculpe-me, Madison. Fui um imbecil. É que... eles ameaçaram... Não quero que você se machuque.
  • Há mais de um jeito de machucar uma pessoa, me­nino bruxo — disse ela, olhando para as mãos deles, unidas. — E tipos diferentes de riscos. — Ela ergueu o olhar para Hastings. — Do que foi que você me chamou no corredor?

O mago se virou e se apoiou contra o banco da janela.

—  Uma extratora.

Ela fez uma careta.

  • O que é isso? Soa como algo pelo qual se pode ser preso.
  • Não é comum o bastante pra ser ilegal. — Hastings estudou-a com franco interesse. — Na verdade, embora eu tenha ouvido falar de extratores, nunca havia encontrado um antes.
  • O Jason nunca mencionou extratores quando des­creveu as ordens — disse Seph.

Hastings assentiu.

  • Os extratores não são Weirs, já que não têm Pedras Weir. Mas têm a habilidade de extrair a magia, de sugá-la de outros. E, é claro, são resistentes a feitiços. Como você provavelmente já adivinhou a essa altura — acres­centou ele.
  • Eles são resistentes só aos magos ou aos Weirs Anamagos também?

Hastings brincou com o anel em sua mão direita.

  • Meu entendimento é que eles sugam a magia de todos os tipos.
    • O que acontece com o poder? — indagou Seph. — Apenas se dissipa ou um extrator pode usar o poder por conta própria?

Hastings deu de ombros.

  • Não sei.

Madison olhava de Seph para Hastings como se eles subitamente houvessem passado a falar em francês.

  • Não faço idéia do que vocês dois estão falando. Alguém pode me ajudar aqui?

Seph traçou as linhas na palma da mão dela.

  • Os Weirs são pessoas nascidas com dons mágicos. Magos como nós têm maior diversidade de poderes. Ou­tros são especialistas; por exemplo, eles podem ver o fu­turo ou fazer ferramentas e remédios mágicos. Os bruxos que você conhecia na sua terra natal eram provavelmente magos ou encantadores.
  • Como vocês dois se conheceram? — perguntou Hastings.

Madison tirou as sandálias e afundou os dedos do pé no tapete.

  • Seph me cantou na praia uma manhã.
  • Ela trabalha aqui na pensão — acrescentou Seph.

Ao ouvir isso, ela olhou para o relógio e gemeu.

  • Meu supervisor vai me matar. Estou de serviço. — Ela enfiou os pés nos sapatos e se levantou. — Preciso ir.
  • Eu telefono para você — disse Seph.

E ela saiu pela porta.

Hastings viu-a sair, pensativo.

  • Existe um outro termo para os extratores — disse ele.
    • Qual é?
  • — Ele sorriu com secura. — Criado pelos magos, sem dúvida. Embora não tenham magia própria, são criaturas bem perigosas. Tem certeza de que pode confiar nela? Infelizmente, não há jeito de deter­minar se ela está contando a verdade.

Ele queria dizer por intermédio do toque de um mago, sem dúvida.

  • Então acho que vamos ter de simplesmente confiar no nosso julgamento, não é? Como os Anaweirs — re­trucou Seph, olhando Hastings nos olhos.

O mago ergueu a mão.

  • Tudo bem. Você é o melhor juiz nesse caso, suponho. — Ele fez uma pausa, como se hesitasse sobre o que dizer a seguir. — Olha. Não importa atrás de quem você está ou quão forte é a sua justificativa. Você não pode atacar ninguém na Conferência. Este não foi um bom dia para o Gregory Leicester. Ele aproveitaria qualquer desculpa para desfazer o que foi feito.
  • O que aconteceu?
  • O Conselho aprovou a convocação de uma Confe­rência das Ordens para discutir uma nova constituição baseada em regras revisadas. Se o Leicester e o D'Orsay não conseguem o que querem dentro de um Conselho de pares, é ainda menos provável quando houver guer­reiros e encantadores representados. Seph, você tem de me prometer que não vai fazer nada para atrapalhar a Conferência. Isso favoreceria o Leicester.
  • Matar o Leicester é a melhor coisa que poderia acontecer, parece-me. — Seph olhou para a carranca de Hastings. — Está bem, eu prometo — acabou dizendo, com relutância.
  • Vai precisar ficar com o Jack amanhã o dia inteiro, ou vou saber a respeito. E não deve chegar perto da pensão. Se violar qualquer uma dessas condições, não importa o que a Linda disser, eu ponho você onde não possa causar mais prejuízos.

 

Seph assentiu. Não tinha muita escolha.

  • Está certo.
  • Vou levar você para casa, então — disse Hastings.

 

No dia seguinte, Jack e Seph saíram às quatro da manhã para ir pescar na bacia oeste. Seph aprendeu a pôr isca no anzol, lançar a linha e limpar peixe. Quando voltaram, a reunião na Lendas já terminara, e o Conselho se dispersara. A maioria dos participantes deixou o San­tuário o mais rápido possível.

Naquela noite, Leander Hastings, Ellen Stephenson e Madison Moss vieram para o jantar. Becka fora assistir a um concerto no Instituto. Era uma daquelas noites quentes de fim de verão, cheias de promessas engana­doras. Seph e Madison empanaram os peixes que pes­caram no lago e os fritaram, enquanto Linda e Jack preparavam saladas e assavam o milho. Embora todos estivessem ansiosos para ouvir o relato do que aconte­cera na Lendas, Linda não permitiu que se discutisse os eventos da Conferência até que a sobremesa fosse servida.

— Então, como é que foi? — indagou Jack, quando a proibição foi finalmente revogada. Todos estavam tomando sorvete na varanda. Seph e Madison haviam ocupado o balanço de vime e estavam agradavelmente aninhados.

  • Eu diria que hoje o resultado foi misto — respondeu Hastings. — Leicester e D'Orsay propuseram uma cons­tituição alternativa e conseguiram incluí-la na pauta a ser discutida na Conferência das Ordens. — Ele balançou a cabeça. — Não creio que vá passar. É um documento horroroso. Pior do que as regras originais. — Ele olhou para Linda, como se quisesse ver uma reação, mas ela parecia perdida em pensamentos. — Uma questão preo­cupante é o local da Conferência. Eles não conseguiram mudar a composição do Conselho das Ordens, mas argu­mentaram contra realizar a próxima reunião no Santuário. Dizem que este é um ambiente hostil, que a sua própria criação foi algo imposto ao Conselho dos Magos no torneio do verão passado. O que é verdade. — Hastings deu de ombros. — O Leicester e o grupo dele já perderam em várias questões importantes. Creio que o Conselho dos Magos achou que devia fazer uma concessão para acalmá-los.
  • Onde vai ser a reunião? — perguntou Seph.
  • Second Sister. É uma ilha no lago Erie, na bacia oeste, no Canadá — explicou Hastings. — Propriedade privada.
  • Second Sister? — Jack arqueou uma sobrancelha. — Achei que não houvesse nada lá.
  • Tem uma velha vinícola, um grande castelo de pedra. Está sendo reformada para servir de hospedaria. A sen­sação da maioria era a de que seria um bom meio-termo. Perto do Santuário, conveniente para todos.
  • Eles não quiseram se reunir na Ravina do Corvo? — perguntou Jack.

A Ravina do Corvo fora o local do torneio no verão pas­sado, na Inglaterra. Era o lar ancestral de Claude D'Orsay, uma fortaleza dos magos. D'Orsay era, por linhagem, o Mestre de Jogos dos torneios. Seph soube disso tudo por Jack e Ellen.

Hastings sacudiu a cabeça.

  • Francamente, nenhum dos outros Weirs poria os pés na Ravina. Já vai ser duro o bastante convencê-los a se sentar na mesma sala com os membros do Conselho dos Magos. Eles também insistiram para que os membros do Conselho dos Magos estejam presentes como observa­dores. Essa idéia agradou aos magos, é claro, pois nos dois lados há quem queira acompanhar os debates. Só espero que não tenhamos desistido de algo importante. O local foi sugerido por Adam Sedgwick. Ele é um aliado do D'Orsay. E D'Orsay e Leicester apoiaram a sugestão de imediato.
    • Você descobriu quem é o dono? — indagou Linda.

Ele deu de ombros.

  • Um grupo de investidores de Detroit. Amigos do Sedgwick.
  • Quando vai ser a reunião? — perguntou Seph.
  • Daqui a duas semanas — disse Hastings. — Os con­vites serão enviados em uma semana. Um subcomitê vai decidir quem é convidado. Os membros são Ravenstock, Leicester, D'Orsay e eu.

Seph ficou alerta à menção de Ravenstock.

  • Espero que Ravenstock esteja do nosso lado — disse ele.
  • Ele está conosco agora. Por isso o subcomitê está dividido igualmente. Não vai ser fácil chegar a um acordo sobre quem deve participar.
  • Não acho que os magos deveriam escolher os parti­cipantes — disse Linda, parecendo estar saindo de um transe. — Seria melhor se as outras ordens escolhessem seus próprios representantes.
  • Seria — concordou Hastings. — Só que elas não estão bem organizadas. Até este ano, estavam ou se escondendo dos magos ou a serviço deles. — Ele se voltou para Jack e Ellen. — Não fiquem surpresos se forem nomeados para o Conselho das Ordens.

Ellen sentou-se mais ereta, parecendo consternada.

  • Você não pode encontrar outra pessoa? Como é que eu vou negociar com um bando de magos?
  • Não se preocupe. — Hastings sorriu para ela. — Vai haver todo um time lá. Além disso, acho que você está se subestimando.

Seph ouviu essa conversa como se estivesse a distância, distraído pelo corpo de Madison pressionado contra o seu, pelos longos cabelos roçando-lhe o braço e pelas costas nuas salpicadas de sardas. Sabia que não tinha de se preocupar em ser convidado para a reunião do Conselho. Ele era peixe miúdo no mundo dos magos.

Ele se perguntou se os resultados daquele processo fariam alguma diferença em sua situação pessoal. Talvez uma nova constituição tirasse Leicester da sua cola e lhe desse algo mais para mantê-lo ocupado, já que as regras atuais não haviam feito nada para desencorajá-lo. Era algo pelo qual torcer, mas Seph não estava otimista.

Ele tinha uma outra carta na manga. Olhou para Linda Downey. A cada dia as habilidades mágicas dele cresciam. Algum dia desses, ele faria as perguntas que queria, e ela teria de responder.

 

                     A Tempestade

No dia após a Conferência, Hastings partiu para Nova York, onde o subcomitê se reuniria. Tudo estava acontecendo muito rápido. Os convidados não teriam muito tempo para tomar decisões. Talvez isso fosse parte da estratégia.

As aulas deveriam começar em poucas semanas, mas era difícil se concentrar nisso com tantos eventos ocor­rendo no universo paralelo dos Weirs. Seph já havia se matriculado no colégio. Nunca antes freqüentara uma es­cola pública, mas estava ansioso por isso, especialmente agora que poderia até mesmo ficar por lá e se formar.

Esperava-se que a casa de Linda ficasse pronta no Halloween. Ela e Seph faziam visitas diárias para moni­torar o progresso. O quarto dele tinha banheiro próprio e uma pequena torre com uma escada em espiral, um outro toque especial sugerido pelo empreiteiro.

Madison tinha um intenso horário de trabalho na Lendas, mas Seph costumava ir encontrá-la para o café da manhã antes que o turno dela começasse. Às vezes caminhavam na praia de manhã cedo ou nas noites úmidas e quentes de verão depois que ela saía do trabalho. Iam a inaugurações de exposições na Galeria da Capela de Trinity. Quando ela fazia turno duplo, iam a matinês no cinema com ar condicionado no centro da cidade e piscavam como animais noturnos ao emergir para a luz brilhante do sol.

Ela impôs limites que sugeriam o desejo de que fossem apenas amigos. Seph estava torcendo por algo mais. Ela parecia considerar Seph uma janela para um outro mundo.

Havia uma urgência melancólica nos passatempos de verão nos últimos dias antes do início das aulas. Jack fez planos para sair com o veleiro, já que era improvável que houvesse tempo para velejar depois que as aulas começassem. Assim, uma semana após o fim do Conselho dos Magos, Jack convidou Ellen, Seph e Madison para irem velejar uma última vez.

Era um lindo dia de fim de verão, não muito quente, com nuvens altas e uma brisa refrescante vinda do oeste. Havia ondas espumantes além da enseada do porto. Os borrifos atingiam-lhes as faces ao seguirem contra o vento, em direção a Sandusky. Madison nunca velejara antes; ela não sabia nadar, na verdade. Seph obrigou-a a vestir um colete salva-vidas cor de laranja antes de saírem das docas. Ela estava pálida e irritadiça, mas determi­nada a ir.

Agora a apreensão dela parecia ter diminuído. Estava sentada no canto traseiro direito do barco, uma mão deslizando pela água, o rosto voltado para cima para apanhar os respingos. Havia puxado os cabelos para trás num rabo de cavalo, sob um boné de beisebol dos Reds de Cincinnati.

As habilidades de Ellen como marinheira estavam à altura das de Seph. Ela nunca velejara antes de chegar a Trinity, tendo passado todo o tempo treinando para matar pessoas. Mas ela era forte e determinada, e logo Seph e Ellen estavam fazendo o barco voar sobre as ondas, enquanto Jack supervisionava tudo de um banco na lateral.

Seph adorava capturar o vento, fazer o que queria com ele. A brisa o fazia se sentir como se estivesse voando. De repente, deu-se conta de que se sentia à vontade na água, após um verão em Trinity. O contraste com a temporada no Porto Seguro era impressionante.

Passava das duas quando partiram, e às quatro já estavam muitos quilômetros a oeste de Trinity. O tempo parecia estar mudando. Grandes torres de nuvens haviam se empilhado a oeste, e o céu outrora azul escurecia rapidamente.

— Não me lembro de ter ouvido nenhum aviso sobre tempestades — disse Jack, perplexo. — É melhor vol­tarmos.

Seph e Ellen deram a volta com o barco, esperando que as velas inflassem com o vento refrescante, mas este morreu imediatamente, depois mudou de direção, agora soprando com força do leste. Eles continuaram manobrando para trás e para a frente, descobrindo que era tão difícil voltar quanto fora partir, contra o vento.

  • Que estranho — disse Jack. — Especialmente o que está vindo do oeste. — Ele virou a cabeça para trás, apreensivo. As bordas irregulares da orla de nuvens estavam alcançando-os. Os ventos de superfície sopravam numa direção, e os ventos acima em outra. — É melhor usarmos o motor ou nunca vamos ultrapassar isso. Vou levar o barco mais pra perto da costa.

Jack sentou-se no banco do capitão e tentou ligar o motor. Não houve resposta. Nenhum som, a não ser o da água batendo no casco do barco.

Jack ergueu a capota do motor, espiou entre o emara­nhado de metal, fez alguns ajustes e tentou de novo. Nada ainda. Ele sacudiu a cabeça.

  • Essa coisa funcionava bem duas horas atrás, quando saímos do porto.

Ele se levantou com cuidado e olhou em volta, sondando o horizonte. Os poucos barcos que restavam estavam muito à frente deles, correndo para a costa.

O estranho vento oriental soprava com mais força do que nunca, e o barco começou a balançar nas ondas pesadas. Madison se agachou no canto, segurando o chapéu com uma mão, agarrando o finca-pé com a outra. Jack ajudou Seph e Ellen a erguer o estai de tempo e assumiu o controle das velas. Apesar dos esforços de todos e da habilidade de Jack, o barco parecia estar parado na água enquanto a tempestade os alcançava. Jack vestiu o colete salva-vidas e fez com que todos fizessem o mesmo.

A luz havia sumido, e o lago mudara de um azul pro­fundo para uma cor de ardósia cinzenta, salpicada com espuma branca e amarela. O barco empinava e balançava à medida que as ondas cresciam. Raios cortavam o céu e trovões rugiam, não muito distantes.

  • Tente o rádio — ordenou Jack a Ellen.

Ela mexeu no aparelho por alguns minutos. Não havia estática. Nada.

  • Ou eu não estou fazendo isso direito, ou não está funcionado — disse ela.

Deixando as velas nas mãos de Seph por um momento, Jack tentou ele mesmo. O rádio estava morto.

Àquela altura o vento se transformara em ventania. O barulho do vento e da água eram tão altos que eles não conseguiam escutar uns aos outros, mesmo gritando. Jack se movia rapidamente de um lado do barco para o outro, abaixando-se sob a retranca, dando-lhes instru­ções por meio de gestos. Algumas gotas grandes de chuva chapinharam no convés, embora àquela altura houvesse tanta água a bordo que era difícil ter certeza.

Seph deu-se conta de que o barco estava sendo em­purrado para trás na água, pela popa, impulsionado pelo vento em direção ao oeste. Ele olhou para Jack, que havia parado de mexer nas velas e fitava, com uma mão na cana do leme, a traseira do barco. Escorregando e deslizando no convés molhado, eles baixaram as velas nos mastros. Enquanto o barco progredia, a água se derramava sobre a popa, ameaçando afundá-los. Jack usou o leme para virar o barco. Eles ganharam velocidade, atravessando o topo das ondas como se estivessem com todas as velas içadas. Em direção a noroeste.

E então uma revelação atingiu Seph: Você não está mais no Santuário. Você não está em lugar nenhum, mas está indo para algum lugar, e está levando três pessoas com você.

A chuva tombava em torrentes, agulhas geladas contra a pele. As roupas e cabelos deles estavam colados aos corpos, e o som da tempestade era um clamor constante. Madison, concentrada, transferia o peso do corpo de um lado para o outro para manter o barco nivelado. Jack ainda manejava o leme, enquanto Seph e Ellen soltaram uma pequena vela dos rizes. O barco voava em direção a um destino desconhecido. Para longe de Trinity.

Seph teve uma idéia, uma idéia desesperada. Cuidando de manter uma mão firme no parapeito, dirigiu-se até a popa, onde havia um compartimento de armazenagem sob o assento. Forçou a porta até abri-la e puxou para fora um objeto cilíndrico flexível, de um amarelo vivo. Cambaleou até o parapeito, segurando seu trunfo contra o corpo.

  • O que você está fazendo com o bote salva-vidas? — indagou Jack.

Seph segurou o parapeito com ambos os braços e passou uma perna por cima.

  • Seph, não!

Madison soltou o parapeito que vinha segurando com força e deixou-se escorregar na direção de Seph. Naquele momento o barco deu um pulo, e ela perdeu o equilíbrio e caiu, deslizando pelo convés molhado. Ela se agarrou ao parapeito e sentou-se. Um corte acima do olho direito se abriu, o sangue escoando na chuva tão rapidamente quanto surgia.

  • Fique onde está! — gritou ele, erguendo a outra perna por cima do parapeito.

Ele se segurou no lado de fora do barco, grandes ondas quebrando sobre ele, tentando colocar o bote na posição correta.

  • Seph! — Madison aproximava-se dele centímetro por centímetro. — O que há de errado com você?
  • Não está vendo? A tempestade é para mim — disse Seph.

Jack lutava com o leme, tentando impedir o barco de virar transversalmente com o vento.

  • Se acha que isso é magia, está enganado! Nem mesmo um mago pode controlar o clima.
  • Explique isso, então! — Seph teria gesticulado com o braço, mas não se atreveu a se soltar. — Vou me mandar. Talvez assim vocês fiquem bem.
  • Qual é, cara! — disse Jack, desesperado. — Volte pro barco. A gente está indo bem até aqui.
  • Não é só a jornada, é com o destino que você deveria se preocupar.

O barco ainda voava rumo a oeste, como se fosse em­purrado por um motor invisível. A parte seguinte seria complicada. Seph precisava dar um jeito de entrar no bote salva-vidas. Dando as costas para o parapeito, agarrou o fio no cartucho de dióxido de carbono com os dentes e deu um violento puxão. O bote inflou como uma bomba ama­rela explodindo, e Seph largou do parapeito no momento em que um corpo se chocou contra o dele.

Ele tombou em uma confusão de braços e pernas. O bote caiu na água, e Seph e seu atacante caíram sobre ele um instante mais tarde. A água corria por sobre eles, e o bote subiu à tona como uma rolha. Seph lutou para se libertar, rolou e se sentou, cuspindo água.

Madison estava deitada ao lado dele, tossindo e cus­pindo. Ele passou a mão por sob os braços dela e ergueu-a, batendo-lhe nas costas para expulsar a água dos pulmões. Os cabelos delas estavam emaranhados, os dentes batiam, e ela parecia morta de medo.

— Por que foi fazer isso? — perguntou ele, genuina­mente atônito.

Ela se limitou a menear a cabeça. Ele a puxou para perto, tentando aquecê-la com o próprio corpo. O veleiro não estava à vista. Ele, Madison e o bote ainda voavam com o vento.

Jack viu o bote por um instante, um ponto amarelo na água escura, antes que fosse tragada pela tempestade. Ele ficou em pé junto ao parapeito onde tentara segurar Seph no último minuto. Ellen estava ajoelhada, aturdida, no fundo do barco.

O barco balançava e estremecia à medida que as ondas batiam contra ele. Jack arremessou-se no sentido do leme e o segurou, virando o barco em direção ao vento, enquanto Ellen se levantava e sondava a água em torno em busca do bote.

A tempestade parecia estar passando. O vento acalmou, a chuva diminuiu e parou. O balançar nauseante do barco cessou. Ellen soltou o parapeito, recuperando alguma cor. Jack olhou a oeste, onde uma cortina escura recuava do outro lado das ondas raivosas. À leste, o céu se iluminava.

Não havia sinal de Seph McCauley ou de Madison Moss.

Seph logo percebeu que o que ele fazia ou deixava de fazer não tinha absolutamente nenhuma influência sobre a trajetória ou velocidade do bote. Ele se recostou, segurando com força as alças flexíveis nas laterais, com Madison aninhada junto a ele, a cabeça apoiada em seu ombro. Quando atingiram uma onda particularmente violenta, a água cascateou sobre eles, mas não podiam ficar mais molhados do que já estavam. A tempestade os assolava, mesmo com o fato de Seph estar cooperando da única maneira que podia.

Aonde quer que estivessem indo, tinha certeza de que haveria problemas; entretanto, se a idéia era levá-lo para o Porto Seguro, estavam indo na direção errada.

Ele baixou o olhar para Madison. Ela estava imóvel, os olhos arregalados, a mão esquerda ainda agarrada ao colete salva-vidas. Depois de algum tempo, como um animal recuando ante estímulos demais, ele adormeceu.

Quando acordou, estava escuro, e a tempestade con­tinuava; os relâmpagos feriam-lhe os olhos e os trovões retumbavam como o som de uma batalha se distanciando. Mas não foi o trovão ou o relâmpago que o acordou, e sim o rangido de quando o fundo do bote atingiu a areia.

Olhando para o lado, ele viu que o bote salva-vidas havia sido levada até as águas rasas de uma praia. Era uma típica praia de lago, uma mistura de areia e pedras. A superfície da água em torno do barco estava suja com algas e detritos, levados para lá pela tempestade.

Ele sacudiu Madison para que acordasse. Ela piscou, então se remexeu um pouco, tentando se sentar. Agar­rando-lhe o pulso, ele a ajudou.

  • Chegamos em algum lugar. Eles provavelmente sa­bem que estou aqui, mas duvido que saibam sobre você.

Seph desceu do bote para dentro da água, que lhe batia no joelho, e ajudou Madison a sair também. Andaram até a praia empurrando o bote à sua frente. Seph estava coberto de machucados, cortes e arranhões.

Arrastaram o bote pela areia até um local em que não corria o risco de boiar para longe. Seph pôs uma grande pedra no centro para ancorá-la. Ela teria dado um bom abrigo, mas um bote amarelo seria chamativo demais.

Uma densa floresta cobria a praia em três lados. A areia estava salpicada de destroços devido à tempestade, ponti- lhada pela chuva, nenhuma pegada. Seph estremeceu. O ar estava frio, e ele estava encharcado até os ossos. Havia quase parado de chover.

Seph estava ansioso por sair da praia aberta. Os bos­ques de fim de verão eram escuros e atravancados com arbustos. Jorrava água da copa das árvores enquanto eles abriam caminho através da vegetação. Seph avançou, forçando os olhos em meio à escuridão de ambos os lados. Finalmente encontrou um lugar onde duas árvores haviam se inclinado uma contra a outra, formando uma espécie de caverna razoavelmente seca e parcialmente co­berta de folhas. Não era o melhor, mas naquele momento ele não podia ser exigente.

  • Por que não fica aqui? — disse ele a Madison. — Se você se enterrar nas folhas, talvez fique mais quente.

Ela afastou os cabelos para trás.

  • Acho que é melhor ficarmos juntos. Eu posso ajudar você.
    • Se eles estão procurando por mim, é melhor a gente se separar. Vou tentar descobrir onde estamos e o que está acontecendo. Depois venho buscar você. Se eu não voltar até o nascer do sol, tente encontrar uma casa ou uma delegacia.

Com sorte, alguém que não seja Leicester ou os ex-alunos. Era o único plano em que Seph conseguia pensar.

Franzindo a testa, ela estendeu a mão e tirou as folhas dos cabelos embaraçados dele.

  • Se você não voltar, menino bruxo, eu vou atrás de você — disse e engatinhou para dentro das sombras entre as grandes árvores.

Raciocinando que aqueles que o caçavam provavel­mente o procurariam na praia em que haviam desem­barcado, Seph seguiu em direção a leste, para longe dali. Uma trilha coberta de vegetação acompanhava a linha da costa. Era mais fácil seguir a trilha do que passar através dos nós de árvores, espinheiros e hera venenosa. O ar úmido havia refrescado com o passar da tempestade, e o clima havia esfriado consideravelmente. As nuvens seguiam para o leste, impulsionadas por um vento ligeiro, e algumas estrelas pontilhavam o céu a oeste. Os pássaros iniciavam o coro que precedia a aurora.

Havia caminhado quase um quilômetro e meio quando se deparou com uma doca desmantelada e uma cabana trancada com cadeados e tábuas de madeira. Imaginou que seria um abrigo melhor para uma pessoa molhada e com frio do que o buraco entre as duas árvores. Não apenas isso, mas o cadeado parecia frágil. Seph abaixou - -se e pegou uma pedra da trilha.

Um leve som atrás dele alertou-o do perigo. Ouviu uma voz nervosa, engrolando palavras na língua da magia. Ele se virou, ainda agachado, tentando se fazer um alvo menor, e atirou. A pedra atingiu Peter Conroy na testa, espatifando-lhe os óculos e pondo um fim imediato ao fei­tiço. Seph abraçou-lhe os joelhos e derrubou-o, e os dois rolaram pelo declive até a água. Lutaram na parte rasa, lançando feitiços e contra-feitiços até que Seph agarrou a cabeça de Peter e segurou-a embaixo da água por tempo suficiente para lançar um feitiço de imobilização sobre ele. Depois ergueu Peter pelos ombros e arrastou-o até a praia — não era uma tarefa fácil, já que Peter era bem mais pesado do que ele.

Peter estava agitado, ofegando, com o rosto vermelho.

— Inalador! — arfou ele.

Seph enfiou a mão no bolso da jaqueta de Peter, en­controu o inalador e deixou-o inalar o ar. Peter passou a ofegar menos, e não parecia mais como se estivesse se asfixiando, embora ainda parecesse aterrorizado.

Apesar do ar frio, o suor brotava-lhe na testa e escorria- -lhe pelo rosto.

  • Por favor, não conte ao dr. Leicester — implorou ele.
  • Não vou dizer nada, se me disser o que está aconte­cendo — disse Seph. — Onde estamos?
  • S-s-Second Sister. Estamos em Second Sister.

Seph sentou-se de pernas cruzadas.

  • Second Sister? Não é a ilha onde vai ser a Confe­rência das Ordens?

Peter fez que sim com a cabeça, desolado.

  • O dr. Leicester queria que a gente trouxesse você antes que todos chegassem aqui.
  • Vocês me trouxeram aqui? Como fizeram isso? Pensei que os magos não conseguissem controlar o clima.
  • Geralmente, não conseguem. Mas o dr. Leicester, ele nos usa, ele se conecta Com todos nós juntos, ele consegue fazer o que quiser.
  • Como assim, ele se conecta com vocês? — Jason havia usado esse termo, mas Seph não tinha certeza do que significava. — Assim como o que ele queria fazer comigo na capela?
    • É um feitiço. Lá na escola, eu... eu nem sabia nada de magia. E estava tendo aqueles pesadelos horríveis. Aí o dr. Leicester disse que, se eu concordasse em me conectar a ele, os pesadelos iam parar. E pararam, só que... ele simplesmente assume o controle, e faz a gente fazer coisas terríveis. É como ser p-possuído. — Ele engoliu em seco. — Sinto muito o que aconteceu com o Trevor. No Natal, você veio pro jantar, e a gente tinha acabado de matá-lo; e lá estava você, sem saber de nada.

Seph se lembrou do bizarro jantar de Natal, a bebedeira monumental. Warren Barber acusando-o de se achar bom demais para se juntar ao resto deles. Martin Hall man­tendo Barber à distância com uma faca, lágrimas correndo-lhe pela face, dizendo: "Já não houve derrama­mento de sangue suficiente?".

  • Vocês não podem ir embora? Ou se unirem contra ele? — disse Seph.

Os olhos pálidos de Peter nadavam em lágrimas.

—  Ele está conectado a nós. Todo o tempo, ele está conectado às nossas pedras. Se tentarmos resistir, é como se ele pusesse fogo nas nossas entranhas. — As lágrimas escorreram. — Eu costumava pensar que os sonhos eram ruins.

Seph estremeceu, pensando no que poderia ter sido. No que ainda poderia acontecer.

—  O que o Leicester está planejando fazer? O que isso tem a ver comigo?

—  Não sei. Mas estamos todos procurando por você.

Seph não conseguiu se conter e olhou para trás, son­dando a costa escura.

—  Quem está aqui?

—  O dr. Leicester. E os 14 de nós que sobraram. Aaron Hanlon morreu, depois que... ahn... depois que ele, Warren e o Bruce tentaram trazer você de volta.

Uma imagem de Hanlon caído de bruços no rio Vermilion veio à mente de Seph.

—  O que mais tem aqui nesta ilha?

Peter piscou, surpreso.

  • A vinícola, é claro. E algumas cabanas abandonadas e acampamentos de pesca. Ele é dono da coisa toda.

Lá se ia a idéia de encontrar ajuda.

  • Como chegou aqui? Tem um barco?
  • O dr. Leicester tem um barco — disse Peter. — Tem uma doca na vinícola. E alguns de nós vieram de avião.
  • Como eu chego à vinícola daqui?

—  Você pode continuar seguindo a trilha da costa. Mas eles estão esperando por você. Tem também uma trilha que atravessa a ilha. Provavelmente estão vigiando essa também.

—  Alguma sugestão?

—  Se entregar?

Seph pensou em Madison escondida na praia onde ha­viam desembarcado. Ele devia voltar e encontrá-la, levá-la para um lugar seguro. Onde quer que isso fosse.

Peter era um problema a resolver. Leicester poderia suspeitar de que Seph estivesse na ilha, mas não tinha certeza. Seph preferia manter as coisas assim.

Peter se agitou, lendo algo na expressão de Seph.

  • Não me deixe desse jeito. Se o dr. Leicester me encontrar, vai saber que eu falhei.
  • O que eu devo fazer com você? — perguntou Seph.
  • — Peter tentou pensar em uma saída. — Você pode me matar.

No final, Seph deixou Peter vivo, amarrado e escon­dido na cabana trancada com tábuas. Ele sabia que Leicester e os ex-alunos poderiam vistoriar o lugar, mas não conseguiu pensar em outra solução. Após algum tempo, raciocinava ele, talvez Peter pudesse se libertar.

Seph voltou a passos largos pela trilha em direção ao esconderijo de Madison. Eles achariam um abrigo menos movimentado mais perto da hospedaria, e então talvez encontrassem um modo de roubar o barco, ou telefonar para fora da ilha, ou algo assim.

Ele encontrou o lugar onde as duas árvores se apoi­avam uma contra a outra; entre elas, uma caverna era formada pelo espaço entre elas. Mas o esconderijo estava vazio. Madison havia sumido, deixando apenas um lugar pisoteado onde o corpo dela estivera deitado. Ele mal teve tempo para registrar aquele fato quando o feitiço de imobilização o atingiu.

Seph caiu entre as folhas e foi agarrado por uma dúzia de mãos. Elas o ergueram, e ele viu um caleidoscópio de rostos familiares: Bruce Hays, Kenyon King, Martin Hall, Wayne Eggars. Então Warren Barber assomou diante dele. Barber agarrou a frente da camisa de Seph e colocou-o em pé num puxão. Apoiando Seph contra uma árvore, socou- -o uma, duas, três vezes. Rosto, estômago, rosto de novo.

Finalmente, Barber o soltou. Seph caiu ao chão com violência e ficou caído, a perna curvada num ângulo desconfortável, o mundo girando. Alguém o chutou.

Ele ouviu sons de luta, Barber praguejando, dizendo algo sobre Hanlon, e King dizendo:

— Warren! Ei, Warren! Está maluco? Você sabe que o dr. Leicester quer ele vivo.

Por que Leicester o queria vivo? E onde estava Madison?

Ele teve pouco tempo para especular. Eles o viraram de bruços e amarraram-lhe as mãos atrás das costas, bem apertado. Muitas mãos puxaram-no para que fi­casse em pé. E logo todos estavam seguindo a trilha rumo à hospedaria. Eles o carregavam, mãos sob seus braços, segurando-lhe a cintura do jeans. Ele pendia como uma marionete desengonçada, totalmente sob o controle deles.

Luzes se infiltravam pelas árvores gotejantes. Cem me­tros adiante, ele avistou uma imensa massa de pedra. Era uma casa enorme, um castelo que lembrava uma grande erupção da própria rocha. Passagens e jardins decorativos a cercavam, iluminados por minúsculas luzes que cintilavam como estrelas através da folhagem.

Eles o conduziram por uma entrada lateral, que levava a um longo corredor pavimentado em pedra e ladeado por requintados castiçais de parede em metal e janelas estreitas. O interior era decorado com veludos e tapeçarias feitas à mão que retratavam cenas de caça. Passaram por vários corredores e abriram uma porta, terminando num amplo escritório com estantes de livros e uma lareira de pedra num dos lados. Tapetes orientais cobriam o piso. Uma escrivaninha e uma mesa auxiliar dominavam um lado do aposento, atulhadas com um computador e equipamento de comunicação.

  • Leicester? — Hays pigarreou. — A gente o encon­trou.

Leicester se materializou das sombras no canto do quarto como um predador com camuflagem perfeita.

Ele examinou Seph com indiferença. Seph estava pen­durado entre Hays e Eggars, ensopado e sujo de sangue, areia e lama, uma anomalia no aposento elegante.

  • Desfaçam o feitiço e afastem-se.

Hays quebrou o feitiço e pôs Seph em pé.

Leicester abriu uma gaveta na escrivaninha e retirou uma câmera digital. Tirou várias fotografias de Seph de diferentes ângulos, depois depositou a câmera junto ao computador. Apanhando uma faca da gaveta, ele a es­tendeu para Eggars, com um saquinho plástico.

—  Corte uma mecha de cabelos dele. Depois solte-o e tire a camisa dele.

Eggars separou cuidadosamente uma mecha do cabelo de Seph, cortou-a e deixou-a cair no saco plástico. Então cortou as amarras das mãos de Seph.

Seph girou os ombros e esfregou os pulsos esfolados.

—  Sinto muito, Joseph — murmurou Eggars, sem mover os lábios.

Ele e Hays tiraram a camiseta imunda e manchada de sangue de Seph. Leicester estendeu um saco plástico maior, e eles a colocaram dentro.

  • Arranjem alguma outra coisa para ele vestir — disse Leicester, e Martin Hall deixou a sala.

Seph ficou em pé, tremendo, enquanto Leicester abria um pequeno armário em um dos lados da lareira, escolhia dentre as garrafas agrupadas e servia uma boa dose de uma bebida cor de âmbar em um copo.

—  Gostaria de alguma coisa, Joseph? — indagou ele, sem se virar.

Seph não disse nada.

Leicester riu.

—  Quer relaxar? Pode acreditar, estou planejando manter você razoavelmente intacto. Pelo menos por mais alguns dias.

Martin retornou com uma blusa azul-marinho puída e passou-a a Seph. Ele a vestiu.

  • Esperem lá fora — disse Leicester.

Os ex-alunos saíram obedientemente em fila.

  • Muito bem — disse o diretor, de um jeito que sugeria que as coisas estavam exatamente como deveriam ser. — Bem-vindo a Second Sister. — Ele fez uma pausa, esperando por uma reação. Pareceu desapontado quando esta não veio. — Sim. O local da Conferência das Ordens. Estamos bem ansiosos para exibi-lo.
  • Por que me trouxe aqui? Não tenho nada a ver com isso.
  • Você vai passar alguns dias aqui, pelo menos até o seu pai aparecer.

Pai. Uma percussão começou no peito de Seph, reverberando-lhe na garganta.

Leicester interpretou errado sua expressão.

  • Falando sério, por quanto tempo esperava manter isso em segredo?

A velha mentira lhe voltou. Engenheiro de softwares. Morreu num incêndio...

  • O meu pai está morto.
  • Ele mandou você ao Porto Seguro para me espio­nar, certo? E depois mandou Linda Downey tirá-lo de lá quando você estava prestes a ser exposto.
  • O quê?

Era exatamente como quando ele estava na escola e era acusado de coisas. Exceto que naqueles dias ele era sempre culpado.

  • Embora eu esteja surpreso que o Dragão tenha co­locado o próprio filho em risco. Ele deve ter confiança considerável nas suas habilidades. — Leicester girou o líquido no copo. — Muitas vezes eu me perguntei por

que você resistia tanto à persuasão. Você e Jason Haley foram os únicos recrutas que recusaram a minha oferta. Eu devia saber que você estava recebendo ajuda.

  • Você acha que o Dragão é meu pai.

Leicester sorriu, retornou ao armário, tornou a encher o copo.

  • Por quê? O que faz você pensar isso? — perguntou Seph.
  • Nós lançamos uma operação contra o esconderijo do Dragão em Londres. Ele escapou, infelizmente, mas encontramos um arquivo sobre você, Joseph McCauley. Correspondência para uma firma de advocacia, papéis de admissão de uma escola na Escócia. Dunham's Field, acredito que era.

Dunham's Field. Ele durara seis meses em Dunham's Field.

  • Quando examinamos o seu histórico, descobrimos certas... discrepâncias. — Leicester bebericou sua bebida. — Você vê, nós desenvolvemos consideráveis recursos científicos que vão tornar mais fácil rastrear as ordens in­feriores, a fim de fazê-las sair de suas tocas. Chegaremos ao poder num mundo diferente. Você deixou uma grande quantidade de sangue no meu escritório. Nós fizemos uma comparação de DNA.

O ritmo do pulso de Seph acelerou-se.

  • Uma comparação com quem?
  • Agora suponho que nós vamos ver se o seu pai sente qualquer tipo de responsabilidade em relação a você.
    • Uma comparação com quem?
  • Já que você e o Dragão têm trabalhado juntos, talvez você possa nos dizer onde encontrar os outros envolvidos na sua organização. Aqueles que não vão participar da Conferência.
  • Bem, sabe como é, não acho que o Dragão exista de verdade. Acho que vocês todos o usam como bode expiatório. Alguém para culpar pelas coisas.
    • Eu tinha esperanças de que, a essa altura, você ti­vesse entendido o preço da resistência. De que você qui­sesse cooperar.

Leicester não parecia desapontado, porém, a expressão dele era a de um homem sentado para um banquete. Leicester pôs o copo vazio na mesa e andou na direção dele. Seph recuou um passo, depois outro, e então se manteve firme, o corpo tenso com a lembrança da dor. Buscou na memória as lições de Snowbeard. Contra-feitiços. Concentração.

Leicester agarrou-lhe os ombros. Os lábios se moveram, pronunciando o feitiço, mas Seph não o escutou. Es­tava formando o contra-feitiço. Chamas se agruparam nas pontas dos dedos de Leicester, mas, quando ele as lançou, Seph recolheu-as e reenviou-as de volta.

Leicester berrou e soltou-o como se tivesse sido escal­dado. Conseguiu, porém, erguer um escudo, uma sólida parede de ar, a tempo de desviar a rajada de chamas que Seph desferiu. Seph montou seu escudo, solidificou- -o, pressionou-o contra a barreira de Leicester, forçou o diretor a recuar até ficar de costas contra a parede. Prensou-o contra a parede; pressionou mais. Eles ficaram frente a frente, os escudos transparentes entre eles. Os olhos de Leicester se arregalaram de surpresa, o branco visível em torno dos núcleos de rolimã. O suor corria pelo rosto do diretor, a mandíbula apertada com o esforço. As mãos dele se ergueram, as palmas pressionando contra o escudo, tentando forçar Seph para trás. Chamas corriam de ambos os lados, como água da chuva escorrendo por uma janela, procurando ansiosamente uma brecha para passar.

"Jason", pensou Seph. "Jason, Trevor, o pai de Jason, e eu." Quantos torturados, quantas vidas destruídas? Os ex-alunos, um dia estudantes como ele, transformados em monstros. Empurrou com mais força, tentando es­premer a vida para fora de Leicester, prensá-lo como a uma uva.

Os ex-alunos irromperam na sala e arrastaram-no para trás, golpeando-o com feitiços até que ele caísse inde­feso nas pedras frias do chão. Eles o agarraram pelos cabelos, levantaram-lhe a cabeça e derramaram-lhe gar­ganta abaixo um líquido doce e denso. "Deve ser Antiweir", pensou ele, reconhecendo-o a partir da coleção de poções de Mercedes. Para desativar a Pedra Weir. Ele tossiu, cuspiu e rolou a cabeça de um lado para o outro, mas eles conseguiram fazê-lo engolir a maior parte.

— Por que não me deixam acabar com ele? — mur­murou Seph. — O que há de errado com vocês?

Ele ouviu a voz de Leicester dando ordens. Eles o er­gueram, carregaram-no para fora do escritório. Desceram uma escada estreita, dando voltas, sem muito espaço para manejar o corpo dele, que não cooperava. O ar esfriou, cheirando a pedra úmida. Luzes brilharam acima deles, afastando a escuridão. Passaram por uma entrada em arco para uma pequena câmara rústica. Agora o ar cheirava a umidade, levedura e fermentação. Barris se alinhavam contra a parede.

Era uma velha vinícola. Não havia dúvida alguma.

Eles o deitaram sobre uma mesa, imobilizaram-no e desapareceram. Seph ficou deitado de costas, contraindo os olhos ante o brilho ofuscante de uma lâmpada nua em uma armação de metal. A Antiweir estava fazendo efeito. Os pensamentos dele vagavam, colidindo aleatoriamente, sem grande propósito.

Madison. Onde estava Madison Moss? Ninguém a havia mencionado. Estaria morta? Teria sido aprisionada? Ou teria escapado? Se tivesse escapado, para onde teria ido? Quão grande era Second Sister? Haveria lugares para se esconder?

Se você não voltar, menino bruxo, eu vou atrás de você.

Ele torceu para que ela se mantivesse distante.

Leicester dissera que o Dragão era o pai dele. E dissera que havia provas. Se fosse verdade, por que ele jamais o reclamara?

Ele ouviu um som, a porta se abrindo e fechando, passos. Leicester apareceu em seu campo de visão e inclinou-se sobre ele. A mão esquerda do diretor estava envolta em gaze até metade do antebraço. Acima da atadura, a pele estava vermelha e coberta de bolhas. Obra de Seph.

Os olhos cinzentos haviam mudado também. Não eram mais indiferentes, opacos, metálicos. Agora queimavam de ódio.

Ele colocou uma bolsa de couro sobre a mesa junto a Seph. Afastou o cabelo de Seph da testa, um gesto íntimo que fez a pele de Seph arrepiar-se. — Agora — disse o diretor — vamos conversar.

 

                     Velhas Histórias

“Estar em casa era insuportável", pensou Jack. A casa na rua Jefferson se transformara num lugar lúgubre, onde as pessoas falavam com irritação umas com as outras e a culpa pairava no ar, sem que pudesse ser atribuída a alguém especificamente.

Fazia três dias que Seph e Madison haviam desapare­cido. No primeiro dia, helicópteros da Guarda Costeira procuraram até escurecer, mas não haviam encontrado sinal do bote. As buscas haviam sido retomadas nos dias subseqüentes, em círculos cada vez mais amplos em torno do ponto em que haviam desaparecido. Era difícil permanecer otimista com o arrastar das horas.

Depois que a tempestade passou, Jack tentou ligar o motor de novo e este funcionou bem, assim como o rádio. Quando contatou a Guarda Costeira, teve de dizer que Seph e Madison haviam caído pela lateral do barco durante a tempestade, a alguns quilômetros da costa. Ele e Ellen haviam sido interrogados e passado por testes para verificar o consumo de drogas e álcool pela equipe da polícia, que parecia suspeitar que o acidente tivesse uma explicação mais mundana do que a dada por eles.

A Guarda Costeira se referia à tempestade como uma "linha de instabilidade". Pelo menos havia aparecido no radar. Todos concordavam que o lago Erie podia ser trai­çoeiro no outono. Mas nenhum outro barco havia ficado preso na tempestade. Apenas o deles.

Se a Guarda Costeira e a polícia eram ruins, Linda e Hastings os interrogavam de modo ainda mais impla­cável. Eles utilizavam o apartamento sobre a garagem de Snowbeard como um posto de comando. Linda ficava sen­tada, imóvel e concentrada, o rosto pálido como porcelana. Hastings andava de um lado para o outro como um tigre enjaulado.

  • É o Leicester. Você sabe que é — disse Linda.

Jack jamais vira a tia tão desolada. Ela parecia... apa­gada.

Hastings sacudiu a cabeça.

  • Nenhum mago é forte o bastante para controlar o clima. — Ele se voltou para Jack. — É possível que vocês tenham enfrentado uma tempestade natural e que Seph tenha apenas entrado em pânico, pensando que era magia?

Jack olhou para Ellen, arqueando as sobrancelhas. Ela deu de ombros e desviou o olhar.

  • Tudo é possível no lago Erie — disse ele. — Mas eu velejo há anos e nunca vi nada assim. A gente estava literalmente voando de costas através da água sem ne­nhuma vela. Assim que o Seph e a Madison pularam, a tempestade parou.

Ellen se apoiou no balcão.

  • O que eu me pergunto é: se foi o Leicester, por que ele queria tanto o Seph? Quero dizer, primeiro o lance no parque, e depois...

A voz dela se esvaiu, e ela pareceu um pouco confusa.

  • Que lance no parque? — perguntou Jack.

Ellen franziu o cenho.

  • Não sei, aconteceu alguma coisa que tinha a ver com o Seph e o Leicester e o parque... e eu meio que esqueci. — Ela pressionou os dedos contra a testa como se pudesse rearranjar os pensamentos do exterior. — Os magos atacaram o Seph no rio Vermilion — disse ela com hesitação. — Eles disseram que iam levá-lo de volta para o Porto Seguro. — Ela ergueu os olhos arregalados. — Eu matei um deles.
  • E você esqueceu? — indagou Linda.

Ellen parecia totalmente perdida.

  • Eu não sei, eu...

Hastings praguejou baixinho, batendo o punho na palma aberta.

  • Ele deve ter usado magia mental em você. Leicester disse alguma coisa pra ele na Lendas sobre o parque. Seph disse ao Leicester para ficar longe dele. O Leicester o ignorou, e Seph tentou atacá-lo.

Ellen balançou a cabeça, resmungando consigo mesma. Jack tomou-lhe a mão e apertou-a entre as dele.

  • Se encontrarmos o Leicester, vamos encontrar o Seph — disse Linda.
  • Onde mais devemos procurar? — disse Hastings, transbordando de poder e impaciência. — Sabemos que

não estão no Maine. O Leicester e os aprendizes dele se foram, e a escola está fechada. Ele não está na casa dele na Cornualha, e eles não estão na Ravina do Corvo. São três lugares em que eles não estão.

  • Nós vamos nos encontrar com ele na Conferência em dez dias — disse Jack em tom seco.

O subcomitê havia se reunido, e as escolhas haviam sido feitas. Ellen Stephenson e Jack Swift representariam a Ordem dos Guerreiros; Linda Downey, a dos encanta­dores; Blaise Highbourne, a dos adivinhos; e Mercedes Foster, a dos feiticeiros. Havia outros que Jack não co­nhecia. As reuniões aconteceriam durante um fim de semana em Second Sister.

  • Tem algo que me incomoda — continuou Jack. — Leicester e D'Orsay aprovaram a ida de todos nós. Foi o que você disse.
  • É o que parece — disse Hastings.
  • Por que eles fariam isso? — indagou Jack, como se de alguma maneira aquilo fosse culpa de Hastings. — Eles nos odeiam. A Ellen e eu começamos essa coisa toda, quando nos recusamos a matar um ao outro no torneio.
    • Bom, no caso de vocês, eles provavelmente não ti­veram muita escolha.

Jack soltou um riso sarcástico.

  • E quanto à tia Linda? — Ele a indicou com o queixo. — Ela já causou um bocado de problemas pra eles. Você acha que eles não conseguiram encontrar um outro en­cantador para nomear? Alguém mais fácil de manejar?
  • No que é que você está pensando?
  • Que eles nos deixaram escolher os nossos próprios representantes para o encontro para poder juntar todos os inimigos deles num único lugar — disse Jack. — É uma armadilha.

Linda concordou.

  • Mas, seja como for, eles nos têm na palma da mão. Se não formos, eles vencem. Se formos...
    • Se formos, vamos descobrir o que estão planejando — despejou Hastings. — O truque vai ser fazer isso e sobreviver.

Jack tentou de novo.

  • Se cada ordem tem um voto, então só precisamos realmente de um representante por ordem. Eu posso ir, e Ellen fica aqui.
    • O quê? -— Ellen se empertigou, apoiando as mãos nos joelhos. — Por quê? Acha que eu não dou conta?
  • Você disse que não queria se sentar e negociar com um bando de magos — retrucou Jack. — Pelo menos se houver um ataque de algum tipo, posso usar magia. Talvez isso sirva de proteção.

Ellen se levantou, exibindo seu elegante porte de guer­reira. A camiseta e o jeans não demonstravam, mas Jack sabia que ela estava em condições de lutar. Haviam se enfrentado em combate três dias antes, e ele ainda estava sentindo os efeitos.

As faces de Ellen estavam queimando.

  • Se acha que vou ficar aqui em Trinity enquanto você sai para pôr o pescoço numa forca, você está louco! Quem é que estava caído de costas na ponta da minha espada no último verão, me fala?

Ellen quase nunca mencionava aquilo. A não ser uma ou duas vezes por semana.

Jack se voltou para a tia, em busca de uma aliada.

  • É preciso que seja você a representante, tia Linda? Não tem um monte de encantadores que podem ir?
    • Eu tenho de ir, Jack, confie em mim. — Pareceu que ela ia dizer mais, mas então parou e diminuiu o volume de voz. — Nós começamos isso e agora temos de terminar. Além do mais, você gostaria que eu enviasse outra pessoa a uma armadilha?

Ellen revirou os olhos.

  • Percebe que ele sempre quer deixar as mulheres em casa?

Jack se levantou e encarou-a.

  • Eu gostaria de manter duas pessoas de quem eu gosto fora de perigo — disse ele com franqueza. — Não é minha culpa que as duas, por acaso, sejam mulheres.

Jack e Ellen ficaram em pé, face a face e olhos nos olhos, o poder girando em espiral em torno deles. Então Jack estendeu a mão e pousou-a na nuca de Ellen, puxando-a para os seus braços. Eles se abraçaram por um longo tempo.

Na noite seguinte, Linda foi até a nova casa depois de os pedreiros terem saído. Eles haviam terminado a maior parte do trabalho externo e passado para o interior. Rolos de papel e latas de tinta estavam empilhados na lavanderia. Seph havia selecionado a maioria deles.

Ela subiu as escadas para o andar superior e entrou no quarto de Seph. Já tinha um ar vazio, abandonado. Todos os sonhos que ela tivera estavam acabando naquele pesadelo. Havia sido uma tola em pensar que poderia protegê-lo, com ou sem santuário. Havia sido egoísta, e aquele era o resultado.

Se ao menos Seph nunca houvesse ido para o Porto Seguro! Se ao menos ela tivesse permitido que ele deixasse o Santuário e se escondesse em algum outro lugar! Ela imaginou Seph e Madison abraçados no bote, voando através da escuridão.

Linda se sentou no chão num canto do quarto, envolveu os joelhos com os braços e chorou enquanto a luz se esvaía.

Após um tempo, ela ergueu os olhos, percebendo subi­tamente que não estava mais sozinha. Leander Hastings estava à porta do quarto, o rosto envolto em sombras.

— Então você está aqui — disse ele.

Ele se aproximou, estendeu a mão e deixou algo cair no colo dela. Era um saco plástico contendo duas fotos, algum tecido entrouxado e uma mecha de cabelo, escuro, levemente cacheado. Cabelo que poderia ser de Leander Hastings, mas não era.

Ela olhou primeiro para as fotos. Tinham vindo de uma impressora. Era Seph numa camisa verde imunda e calças jeans, olhando cautelosamente para a câmera. Numa das imagens, ela podia ver que as mãos dele es­tavam amarradas às costas. Ela tirou o tecido do saco. Era a camisa que ele estava vestindo na fotografia, manchada de sangue e lama.

Ela olhou para Hastings, esperando que ele explicasse.

  • Gregory Leicester me contatou. Ele está com o Seph. Ele quer me encontrar e negociar.

A voz dele. Algo na voz dele. Mas os pensamentos de Linda já redemoinhavam loucamente.

Seph estava vivo! Pânico, esperança e medo invadiram-na um após o outro. E então, a pergunta: Por que o Leicester contatou o Hastings?

Hastings agachou-se de modo que seu rosto ficasse quase na altura do dela. Perto. Ela pressionou as costas contra a parede, mas não conseguiu aumentar a distância entre eles.

  • Agora vem a parte estranha. Ele me disse que está com o meu filho. — Ele fez uma pausa. — E eu fiquei confuso, porque eu não tenho filho algum.

Linda desviou o olhar.

Ele já sabe a verdade. Assim que ele ouviu, deve ter entendido. Tudo o que ele precisara fora de uma pista. Ela estava acuada, literalmente, em todos os sentidos, as costas contra a parede. Sabia que era inútil fingir.

  • Sinto muito, Lee.
  • Você desapareceu. Eu procurei por você por mais de um ano. Quase enlouqueci. Então, de repente, no ano passado, como que saindo do túmulo, você me chama. Nada além de negócios, como se o passado nunca tivesse acontecido. Será que eu podia ajudar o seu sobrinho guerreiro Jack e salvá-lo dos magos? — Ele fez um ruído irritado. — Imagino que você sabia onde eu estava o tempo todo.

Ela hesitou ao falar:

  • Bem, você tem de admitir que você abre uma trilha bem larga.

O mago sentou-se no chão e se apoiou contra a parede junto a Linda. Olhou de esguelha para ela.

—  Você nunca contou para a sua família sobre o bebê? Nem mesmo pra Becka?

Ela sacudiu a cabeça.

  • Ninguém sabe. A não ser o Nick. Genevieve LeClerc me ajudou. Eu a conhecia, de uma das redes. Fiquei com ela até o parto. Ela foi uma dádiva de Deus — disse Linda.

—  Ela cuidou muito bem do Seph.

  • Então você simplesmente foi embora e o deixou com essa mulher?

A intenção dele era que aquilo soasse cruel, e soava mesmo.

  • Seph precisava de um tipo de estabilidade que eu não podia dar. Eu não podia arriscar que alguém o ligasse a nós. Foi a coisa certa a fazer — disse ela, em tom defensivo.
  • Ele devia ter ficado com os pais dele. Você tomou essa decisão por nós dois. Não foi justo. E não foi justo para o Seph.
    • Não vê que esta é a prova de que eu estava certa? Alguém descobriu quem são os pais dele, e agora ele está pagando por isso. — Lágrimas escorreram-lhe pelo rosto.

—  Para manter Seph a salvo, desisti de tudo. Primeiro de você. Depois dele.

Por um momento, ela não conseguiu falar. Finalmente, esfregando com força as lágrimas com as costas das mãos, Linda perguntou:

  • O que o Leicester quer?
    • Quer que eu viaje até Nova York amanhã, e que eu vá sozinho. Ele vai me contatar lá e me dizer os termos. — Ele massageou a testa como se doesse. — Sabe como é, ele acha que eu sou o Dragão. Já faz um bom tempo. Eu deixei que ele pensasse isso.
  • E se ele descobrir que não é você?

Hastings deu de ombros.

  • Não sei.
  • Deixe que eu vá encontrar o Leicester — disse Linda rapidamente. — Deixe que eu fale com ele. Você sabe que é uma armadilha.
  • O que faz você pensar que seria uma substituta aceitável? — Ele sacudiu a cabeça. — Ele não vê você como uma figura política. Leicester vai acabar com dois reféns em vez de um. A mensagem foi mandada para mim, Linda. Se eu não aparecer amanhã, Leicester diz que vai me enviar outro pedaço do meu filho, algo que não vai crescer de novo.

Linda escondeu o rosto nas mãos.

Hastings acariciou-lhe as costas, reconfortando-a.

  • Além do mais, eu não fiz nada pelo garoto em 16 anos. Quero que o Seph saiba quem é o pai dele.

 

                     Novas Ameaças

Cada vez que Seph emergia, a dor retornava, por isso ele mergulhava fundo e ficava lá pelo maior tempo possível. Parecia que tudo virara ao contrário. No tempo que passara no Porto Seguro, passara a temer a descida no abismo do sono. Agora era um refúgio do que parecia ser anos de tortura nas mãos de Leicester.

Contudo, mãos o sacudiam, e vozes o incomodavam implacavelmente.

Ele desistiu, abriu os olhos e viu o rosto preocupado de Martin Hall.

—  O que você quer? — ele quis dizer, mas soou mais como um grunhido de dor.

Estivera gritando, como se estivesse num pesadelo. Mas não era um sonho. Era real. O pensamento divertiu-o, e ele tentou rir. Fracassou. Soou mais como um chiado.

  • Vamos, Joseph — disse Martin. —Você precisa comer alguma coisa. Está dormindo há três dias.

Martin pegou um pão doce e o balançou tentadoramente sob o nariz de Seph. Os odores misturados de fermento e açúcar reviraram-lhe o estômago.

  • Vá embora, Martin. Estou falando sério.

Seph tentou franzir o cenho, mas o corpo não obedecia aos comandos. Sentia-se como se tivessem arrancado sua pele e exposto sua carne. Até a pressão do lençol era quase insuportável.

Mas Peter apareceu do outro lado e, juntos, eles o ergueram a uma posição quase sentada. Peter agarrou-lhe a mandíbula, forçou-o a abrir a boca, e Martin despejou a poção Antiweir. Seph ofereceu uma resistência apenas simbólica. Àquela altura, aquilo já era uma rotina.

Mas dessa vez foi diferente. Eles lhe trouxeram uma bacia de água morna, sabonete e uma esponja de banho. Peter segurou-o enquanto Martin removia-lhe com cui­dado a blusa e lavava-lhe o sangue do corpo. Eles tiraram-lhe os jeans, enrijecidos e fedendo à água do lago, suor e terror, e vestiram-no com roupas limpas, enquanto ele mordia o lábio para conter os gemidos.

  • Qual é o lance, Peter? — perguntou ele, sentindo-se um pouco tonto. -— Vou pra forca hoje ou o Leicester finalmente decidiu se render a mim?

Era uma piada fraca, mas Peter se animou mesmo assim.

  • Ele está bem f-furioso, você sabe, porque não con­segue tirar nada de você.

Seph revirou os olhos. A única parte dele que não doía.

  • Eu não sei É por isso que ele não consegue tirar nada de mim.
    • Mas você não d-desistiu também — disse Peter, a admiração evidente em seu rosto. — Você não quer se conectar a ele. Isso o deixa 1-louco.
  • É, bom, não vou agüentar para sempre.

Seph respirou fundo algumas vezes, lutando contra o desespero. Não adiantava nada que os ex-alunos fizessem dele um herói. Três fatores o levavam a resistir. Primeiro, os meses de tortura mental e emocional no Porto Seguro o haviam tornado menos sensível. Segundo, ele sabia, por intermédio de Peter, que a rendição a Leicester era apenas o princípio de uma vida inteira de tormento. E, terceiro, sabia que ceder seria trair a presença de Maddie em Second Sister.

  • Ele está com medo de você — confidenciou-lhe Martin. — É por isso que ele mantém você dopado com Antiweir.
  • Foi tão 1-legal — disse Peter. — Quando nós entramos e você estava com ele prensado contra a parede, e os olhos dele estavam s-saindo pra fora. Ele estava praticamente b-borrando as calças.

Seph passou os dedos por seus cachos embaraçados.

  • É mesmo? Então por que não me deixaram acabar com ele?
  • Estamos conectados — disse Martin. — Se o Leicester morrer, nós também morremos.
  • Tem de haver um jeito de quebrar isso.

Seph olhou de Peter para Martin, mas eles desviaram o olhar. Seph soltou um longo e exasperado suspiro.

  • Vocês estão mantendo mais alguém aqui embaixo?

Martin e Peter se entreolharam e sacudiram as cabeças.

  • Só você — disse Martin.

Ou seja, Maddie não estava nas mãos de Leicester. Então onde ela estava? "Fique escondida", pensou ele. "Fique escondida até que tudo tenha terminado."

Ele deu um puxão na camisa limpa.

  • Por que isso tudo?

Peter olhou em torno com cautela, como se alguém os estivesse espionando.

  • Acho que você tem visita.

Quando ele estava mais ou menos apresentável, eles o levaram de volta pela estreita escadaria acima e pelos corredores silenciosos até o escritório onde ele se en­contrara com Leicester na noite de sua chegada. Meia dúzia de ex-alunos andavam de um lado para o outro, nervosos. Eles se incumbiram de Seph quando ele chegou, fazendo-o sentar-se e amarrando suas mãos aos braços da cadeira. Seph se submeteu sem protestar. A Antiweir estava funcionando, e ele não tinha o que fazer, em desvantagem numérica e sem magia.

Leicester entrou, vestindo jeans e uma camisa branca impecável. Falou brevemente com Bruce Hays, depois se postou atrás de Seph, apoiando as mãos nos ombros dele. Àquela altura, Seph era capaz de ler, pelo toque do mago, as emoções que o assaltavam. Poder e excitação e, sim, medo fluíam pelas pontas dos dedos de Leicester.

  • O que está havendo? — indagou Seph, tentando não reagir.
  • O seu pai veio. Está exigindo provas de que você ainda está vivo.

Antes que Seph tivesse tempo de processar essa infor­mação, a porta se abriu e Warren Barber entrou, seguido por outro homem. Era Leander Hastings.

Hastings avançou rapidamente em direção a eles até que Leicester ergueu a mão, detendo-o a vários metros de distância. Hastings examinou Seph daquela distância, como se quisesse se assegurar de que ele estava inteiro.

Leander Hastings, o pai dele. Podia ser verdade? Seph estava sentado preso à cadeira, pés no chão, as costas retas, inalando como se pudesse absorver a imagem dian­te dele: a estrutura do rosto, um tanto parecida com a dele, porém mais magra, mais definida de perfil. Os cabelos escuros desalinhados, rebeldes, familiares. As sobrancelhas grossas sombreando olhos profundos. Seph quis se lançar para a frente. Leicester deve ter sentido os músculos se contraírem sob as mãos dele, pois apertou com mais força e disse:

  • Não.
  • Eu vim, como combinado — disse Hastings. — Esse foi o acordo. Uma troca: eu pelo garoto.

Seph encontrou a voz.

  • Não negocie com ele! Ele não é confiável!

Leicester apertou mais, e uma nova dor atravessou-o, interrompendo-lhe realmente a fala e trazendo-lhe lágrimas aos olhos.

A expressão de Hastings não se alterou. Ao contrário, cristalizou-se, os olhos verdes como poças envoltas em sombras e não perturbadas por qualquer movimento de ar.

Leicester não pareceu notar.

—  O que os rebeldes vão fazer sem o Dragão? Ninguém para puxar os fios da rede de espiões. Ninguém para preparar armadilhas para os descuidados.

—  Eles vão dar um jeito, não tenho dúvida — disse Hastings, parecendo escolher as palavras com cuidado. — Solte o Seph.

Hastings deu um passo à frente, e Leicester ergueu a mão de novo.

  • Vou precisar imobilizar você primeiro.

Leicester fez um gesto de cabeça para os ex-alunos. Estes convergiram para o mago, mas pararam a pouco mais de um metro de distância, como se batessem contra um muro, incapazes de se aproximar.

Leicester suspirou e comprimiu a mão direita de Seph contra a mesa junto à cadeira. Ele isolou o dedo mindinho, puxando-o para longe dos outros, então apanhou uma faca da mesa, a mesma que usara antes. Seph observava com horrorizada fascinação, a respiração acelerada e rasa, sua mão rósea e vulnerável contra a madeira alvejada do tampo da mesa.

Hastings viu o que Leicester tinha em mente.

—  Eu me rendo — apressou-se em dizer.

  • Assim é melhor — disse Leicester.

Os ex-alunos algemaram as mãos de Hastings com uma pesada corrente.

Leicester fez um gesto de cabeça em direção a Martin Hall.

—  O torque.

Martin abriu uma caixa ornada com pedras preciosas sobre a mesa e retirou uma tira de ouro reluzente, gravada com runas e decorada com pedras preciosas. Ele rodeou o pescoço de Hastings com aquilo, tomando o cuidado de não tocar no mago. As mãos de Martin tremiam, e ele precisou de várias tentativas para fechá-lo. Uma vez afivelado, o metal ficou imediatamente manchado e as jóias escureceram, como estrelas que se apagam.

Hastings correu um dedo sob a coleira.

  • Esta é uma peça rara, Gregory. De quem você a roubou?

Leicester sorriu.

  • Veio do Tesouro, é claro. Vou realmente sentir falta de ter o Dragão à solta. Ele sempre leva a culpa por tudo o que desaparece. O curador me assegurou de que isto manteria você bem dócil pelo tempo que lhe resta.

O peso de Leicester se deslocou, e ele apertou mais ainda a mão de Seph sobre a mesa. Seph teve tempo de fechar os olhos antes de a lâmina descer. Uma dor terrível atravessou-lhe a mão direita, e ele precisou lidar com ela por um tempo, convencer a si mesmo de que era a mão de outra pessoa e a dor de outra pessoa, perder a afeição pelo que lhe havia sido tomado.

Levou um minuto, e várias respirações profundas, mas quando abriu os olhos ele pôde olhar para a mão com certo desapego. Não era o seu dedo mindinho que fora cortado, mas as pontas dos dedos médio e anular, sobre as unhas, emparelhando os dedos com o indicador. San­gravam em profusão, o sangue manchando a madeira áspera da mesa.

Seph respirou fundo mais uma vez, ergueu o queixo e olhou direto para Hastings do outro lado da sala. O mago sustentou o olhar por um momento. O rosto dele estava impassível, mas Seph podia sentir a fúria, como uma fera agachada na sala.

Hastings desviou o olhar para Leicester.

  • Não vou me esquecer disso — disse ele baixinho.
  • Essa é a idéia — disse Leicester, sorrindo. — Eu preci­sava ter certeza de que as correntes funcionam. Entenda, não posso soltar o rapaz ainda. Tenho planos para ele.

Os olhos de Hastings passaram rapidamente pelos ex- alunos e por Seph, voltando a se fixar em Leicester.

  • Planos?
  • Eu ofereci a Joseph um lugar na minha cooperativa. Posso ser bastante persuasivo. — Ele limpou a faca man­chada de sangue na camisa de Seph e largou-a descuidadamente sobre a mesa ao lado dele. — Uma vez que cheguemos a um acordo, ele vai desempenhar um papel especial na Conferência que se aproxima.
  • O que você tem em mente?
  • Vou usá-lo para destruir os participantes da Confe­rência. A começar por você.

Quando chegaram ao porão, Seph estava prestes a desmaiar. Permanecia em pé apenas graças aos esforços de Martin e Peter, que lhe seguravam os cotovelos. Peter amarrou um retalho da camisa de Seph em torno da mão que sangrava, aplicando pressão.

Hastings examinou o porão, franzindo a testa como um hóspede num hotel de baixo nível: o colchão de Seph num canto, próximo a este a pilha de roupas dele, a horrível mesa de trabalho de Leicester como a peça central. O aposento tinha o aspecto de uma caverna, aproximada­mente quadrado, talvez seis por seis metros, com o piso úmido de pedra e um cheiro de mofo. Num canto havia sido montado um cubículo tosco com chapas de gesso acartonado, contendo um chuveiro e um vaso sanitário. Condutores elétricos cruzavam o teto até uma luminária no centro, com quatro lâmpadas que projetavam uma luz forte sobre o centro do quarto. Os cantos estavam envoltos em trevas.

  • Esperemos que o resto da hospedaria seja um pouco mais confortável. — Hastings se virou para a meia dúzia de ex-alunos que os haviam escoltado para baixo. —Vamos precisar de curativos, gaze e antisséptico. Tragam roupa de cama, toalhas e sabonete; e uma muda de roupas pra ele. — Dava ordens tão tranqüilamente como se fosse o dono da casa dando as boas-vindas a um hóspede, em vez de um prisioneiro. Virou-se para Seph. — O que você gostaria de comer?

Seph sacudiu a cabeça e deslizou parede abaixo até ficar sentado contra ela. Fechou os olhos, pousando a mão ferida sobre o coração.

  • Tragam alguma coisa, de qualquer maneira — or­denou Hastings aos alunos. — Vou ver se consigo persuadi-lo a comer.
    • Sim, senhor.

Os ex-alunos se retiraram meio de costas, inclinando-se em reverência. Seph ouviu um ferrolho se encaixando do outro lado da porta.

  • Os alunos do dr. Leicester não estão acostumados a pensar por conta própria — disse Hastings. Ele se ajoelhou junto a Seph. — Agora deixe-me ver a sua mão.

Seph manteve a mão dobrada com força contra o peito, ignorando o sangue ensopando-lhe a camisa.

—  É verdade?

Hastings sentou-se de pernas cruzadas.

  • Sou o seu pai, sim. Sinto muito que o nosso primeiro encontro como pai e filho aconteça nestas circunstâncias.
  • Há quanto tempo você sabe sobre mim?
  • Descobri a seu respeito três dias atrás. Infelizmente, pelo Gregory Leicester.

Seph manteve os olhos no rosto de Hastings, sorvendo cada detalhe.

—  Alguém sabia sobre mim.

  • Sim, alguém sabia.

O mago tomou a mão de Seph e desdobrou os dedos en­sangüentados, envolveu-os no retalho da camisa, aplicou uma pressão gentil.

  • Quem?

—  A sua mãe — disse o mago com simplicidade, sem nada do drama justificado por aquela revelação.

  • Minha mãe. — Com medo de que fosse morrer na­quele instante antes de fazer a pergunta, Seph foi em frente. — Quem?

—  Talvez seja melhor discutir isso quando você não estiver nas mãos do Leicester. — Hastings disse aquilo como se o resgate fosse apenas questão de horas. — Ele não parece saber quem é a sua mãe, e eu prefiro manter as coisas assim.

Seph libertou a mão num violento puxão.

  • Não. Eu já esperei tempo demais. Gregory Leicester teve de me apresentar ao meu pai, mas você vai me dizer quem é a minha mãe.

Hastings inclinou a cabeça levemente.

  • Está bem. — Ele teceu um fio transparente a partir das pontas dos dedos, fino como uma teia de aranha, lançando-o em um grande círculo no piso em torno deles até que cercasse metade do quarto. Ante o olhar perplexo de Seph, ele disse apenas — Desencoraja bisbilhoteiros.

O mago massageou a testa com o polegar e o indicador, como se fosse um homem que achasse difícil desistir de segredos.

  • É Linda Downey.

Linda Downey. Que parecia conhecer tão bem a ele e seus hábitos, suas comidas favoritas. Que havia fingido ser sua tutora. Que estava construindo uma casa para eles em Trinity.

As palavras de Nick Snowbeard lhe retornaram: A Linda e o Leander estiveram envolvidos anos atrás.

Seph mal percebeu quando Hastings tomou-lhe a mão de novo. Ele sentiu um leve formigamento agora, substi­tuindo a dor. Hastings sacou um pequeno frasco de uma bolsa no cinto, tirou a rolha e passou-o para Seph. Seph tomou um pequeno gole cauteloso.

  • Beba tudo — ordenou Hastings.

Seph esvaziou o frasco. O líquido se espalhou por seu corpo, aquecendo-o.

Hastings sentou-se junto a Seph, ombro a ombro, contra a parede, ainda segurando-lhe a mão. A força do mago fluía por ele, a dor fugindo diante dela.

Hastings sorriu.

  • Acho que ainda tenho um pouco de poder em mim, apesar do torque.
    • Como assim? O que o torque faz?

Hastings deu de ombros.

  • Drena o poder.
  • Eles me deram Antiweir.
  • Parece que somos um par perigoso.

Seph gostou da idéia de ser perigoso, com o pai.

Hastings voltou ao assunto dos relacionamentos.

  • A sua mãe gosta muito de você. Ela tem estado transtornada nesses últimos dias.
    • Se você diz...
    • Ela só estava tentando proteger você, Seph.
    • Foi para o meu próprio bem. Agora entendo por que fui órfão toda a minha vida.

Eles haviam mentido para ele. Todos haviam mentido. Genevieve. Sua própria mãe.

Hastings fechou os olhos, como se tentasse invocar as palavras certas.

  • Ela não era muito mais velha do que você quando nos conhecemos. Mas ela havia passado por muito sofrimento nas mãos dos magos. Já ouviu falar do Mercado?

Seph sacudiu a cabeça.

  • É um mercado de escravos clandestino, gerenciado por magos, para a compra e venda dos que têm o dom. Guerreiros e encantadores, na maioria. A Linda ficou presa lá por um tempo. Foi como nos conhecemos. Eu já lutava contra o Mercado. Ela se juntou a mim. Era um negócio perigoso. Já estávamos nos movimentando,atuando com a nossa rede de espiões, vivendo sob nomes falsos. A Linda era especialmente boa nisso, já que os magos tendem a subestimar os encantadores. Provavel­mente seríamos capturados depois de um tempo. Mas quando se é jovem a gente acha que é imortal. E, em tempos de guerra, a gente não pensa realmente sobre o futuro. Então ela desapareceu. Eu tinha certeza de que ela havia sido levada de volta ao Mercado. Mas, na verdade, ela descobriu que estava grávida de você.

Seph tentou imaginar uma Linda Downey bem jovem.

  • Ela sabia que você seria um alvo se os nossos ini­migos soubessem da sua existência. Por isso ela abriu mão de você.
  • Por que ela não contou pra você?

Hastings deu de ombros.

  • Ela não acreditava que eu fosse apoiar essa decisão, e ela estava certa. A minha família... a sua família... meu pai, irmão e irmã foram todos assassinados pelas Rosas. Não sobrou ninguém. Eu teria me recusado a abrir mão da única família que tenho. Meu filho. Ela também não conseguiu abrir mão de você totalmente. Ela vigiava você, providenciou a sua educação, recebia boletins sobre o seu progresso. Foi assim que Leicester e D'Orsay descobriram sobre você.

Seph recostou a cabeça contra a parede.

  • Toda a minha vida, eu sonhei com isso. Finalmente encontro os meus pais, e agora... o Leicester vai me tor­turar até que eu concorde em me conectar a ele. Quando eu fizer isso, ele vai me forçar a assassinar você e todos os outros de quem eu gosto.

Hastings tocou-lhe o braço.

  • Coragem, Seph.

Seph ergueu os olhos, surpreso. Era a mesma frase que Linda Downey havia usado no dia em que o resgatara do Porto Seguro.

  • Ele nunca deveria ter me trazido aqui — continuou Hastings. — Ele devia ter me matado assim que teve a oportunidade. A necessidade de se exibir, o desejo de atormentar e intimidar pessoas vai ser a derrota dele.
  • Mas ele tem o que quer — disse Seph. — Todos estão a caminho da armadilha que ele montou, e não há nada que a gente possa fazer.
  • Não vou deixar que Gregory Leicester ponha as mãos em você de novo — disse Hastings, olhando-o nos olhos.

A despeito de todas as evidências em contrário, Seph acreditou nele.

—  Tem mais uma coisa — disse Seph. — A Madison está aqui. A garota da Lendas. A... ahn... extratora.

Hastings se sentou mais reto.

  • Onde ela está?

Seph sacudiu a cabeça.

  • Não sei. Não a vi mais, desde a noite em que che­gamos. Não acho que eles saibam que ela está aqui.
  • Não podemos deixar o Leicester apanhá-la. — Hastings refletiu a respeito. — Por vários motivos.

Naquele instante, eles ouviram o som do ferrolho se deslocando. Martin e Peter entraram, trazendo roupa de cama, suprimentos de primeiros socorros e duas pequenas camas de armar. Também trouxeram uma muda de roupas para Seph e uma bandeja de sobras do jantar. Eles armaram as camas lado a lado num canto e estenderam cobertores por cima. Carregaram para dentro uma pequena mesa de madeira e duas cadeiras e serviram a comida. Havia até uma garrafa de vinho para Hastings, que Martin abriu.

  • É um Zinfandel do ano passado de Second Sister — explicou Martin. — Depois me diga o que o senhor achou.

A seguir eles saíram, recolocando o ferrolho. Hastings olhou para Seph. Os cantos de sua boca se curvaram.

  • Já estive em acomodações melhores, mas as coisas estão progredindo.

Usando as mãos acorrentadas juntas, Hastings en­volveu a mão ferida de Seph com gaze, amarrando-a bem. Depois desabotoou a camisa ensangüentada de Seph e, num esforço conjunto, despiram-na pelos ombros. Seph pôs as mãos cuidadosamente dentro das mangas da nova camisa e conseguiu vesti-la e abotoá-la.

  • Quer se sentar à mesa?

Hastings se levantou, um pouco desajeitado. Havia cerca de sete centímetros de folga na corrente entre as mãos dele.

Seph sacudiu a cabeça. Tudo o que acabara de desco­brir fizera-o sentir-se saciado, e pensar no que estava para perder o deixava nauseado.

  • Não estou com fome.
  • Eu insisto em que você coma alguma coisa — disse Hastings. — Numa situação como esta, é sábio comer quando se pode.

Seph se perguntou quão freqüentemente o pai estivera numa situação como aquela. Os pais dele eram assas­sinos, espiões, agentes, no centro da rebelião. O que Jason diria disso?

Hastings preparou um prato, separando um pedaço de frango para que Seph pudesse comer facilmente com uma mão, acrescentou queijo, uvas, uma fatia de pão, e levou até onde Seph estava sentado, junto à parede. Depois lhe passou um copo de vinho. Seph olhou para ele, surpreso.

  • Vá em frente e beba, Seph. Pode melhorar as coisas, se for bom.

Apesar da situação desesperada, Seph sentiu-se bem tratado.

Hastings sentou-se perto dele, equilibrando o próprio prato nos joelhos, a garrafa de vinho ao lado.

  • De onde veio o nome "Dragão"? — perguntou Seph.
  • Conhece a lenda de como as ordens mágicas foram fundadas?

Seph sacudiu a cabeça. Nunca lhe haviam contado aquilo.

  • Supostamente as ordens foram criadas por cinco primos, que perambulavam por um vale mágico no Norte da Bretanha séculos atrás. Lá eles encontraram um pode­roso dragão que guardava um fabuloso tesouro. A maior parte dele consistia em pedras preciosas extraídas de minas do próprio vale, artefatos mágicos e coisas assim. O dragão lhes deu as boas-vindas ao vale e os tratou como convidados de honra. Mas os primos eram gananciosos e queriam tomar o tesouro do dragão para eles mesmos. Certa noite, eles entraram no quarto do tesouro próximo ao dragão adormecido. Quando o dragão acordou, eles en­goliram as jóias que haviam roubado. Essas se tornaram as primeiras Pedras Weir, e concederam aos primos dons mágicos únicos.

O vinho estava começando a fazer efeito. Seph deitou a cabeça no ombro de Hastings. Se alguém houvesse lhe dito que um dia ele se sentaria numa masmorra em Second Sister ouvindo o pai contar-lhe contos de fadas, jamais teria acreditado.

Hastings terminou o vinho que havia em seu copo e tornou a enchê-lo. A mão tremia um pouco, respingando vinho no chão de pedra. Pela primeira vez, Seph notou que o mago parecia tenso e exausto, com profundas linhas de cansaço gravadas no rosto.

  • Você está bem? — indagou Seph, preocupado.
  • Este está sendo um longo dia — disse Hastings.

Então Hastings continuou a história. Ele era um con­tador de histórias surpreendentemente talentoso.

  • Um dos primos havia engolido a pedra que conferia o dom do feitiço falado. Esse era o mago, é claro. Então o mago elaborou um plano para dominar o dragão e assumir o controle do vale mágico. Ele enfeitiçou os outros para que se submetessem a ele, pois precisava dos talentos dos outros primos. O feiticeiro preparou uma poderosa poção, o encantador cantou para que o dragão dormisse, o guerreiro despejou a mistura na boca do dragão, e assim por diante. Há várias versões da história. Alguns dizem que o dragão foi morto imediatamente. Outras, que ele dorme na montanha até hoje. Alguns dizem que a história é só uma fábula. Alguns alegam que um dia o dragão vai acordar e reparar o mal que foi feito pelas ordens mágicas e matar todos nós. Outras, que o dragão vai acordar e libertar as subordens do domínio dos magos. Daí o nome.

Eles comeram em silêncio por alguns minutos. Então Hastings recostou a cabeça contra a parede, olhando para o teto. Quando falou, era quase como se estivesse falando consigo mesmo.

  • Fico pensando no que um pai deveria dizer ao filho numa hora dessas. — Ele pôs as mãos nos joelhos, as cor­rentes retinindo suavemente. — Passei a vida em busca de grandeza. Grandes feitos de coragem, atos audaciosos de vingança, grandes demonstrações de ódio. Até grandes atos de amor, quando a oportunidade se apresentou. — Ele sorriu. — A sua mãe me acusa de ser obcecado com a idéia de me vingar das Rosas pela perda da minha família. E é verdade. Os males que me fizeram têm sido um pretexto para tudo o que tenho feito: assassinato, traição, sedução, roubo. Tudo pela causa. Muito conveniente. Eu estava disposto a sacrificar qualquer coisa e qualquer um. Foi só recentemente que percebi ao que eu tinha renunciado. Relacionamentos são uma série de pequenos sacrifícios diários. Negociações, acordos e meios-termos. Fica-se enredado. Não é bom para alguém numa missão.

Seph mudou de posição no chão duro. Será que Hastings estava tentando se desculpar por não ter sido um pai melhor? Mas até alguns dias atrás ele nem sabia da existência de Seph!

  • Por que está me dizendo isso?
  • Eu me vejo em você. Não quero que cometa os mesmos erros que cometi. Tenho de achar que é possível sofrer um grande mal e se afastar disso. Construir uma vida de pequenos momentos de grande importância.
    • Mas eu ainda não...
    • Apenas me prometa que vai pensar no que eu falei.

Hastings ficou em silêncio. Seph olhou para ele alguns minutos mais tarde e percebeu que o mago havia adorme­cido, apoiado contra a parede. Talvez o cansaço e o vinho houvessem inspirado o discurso.

Colocando o prato de lado, Seph se esticou na cama mais próxima da parede. A poção de Hastings, o que quer que fosse, estava fazendo efeito. Com isso e mais o vinho, Seph mal podia manter os olhos abertos.

Havia sido um dia horrível e fantástico. Fora fantástico porque havia encontrado seu pai e descoberto quem era sua mãe. Tentou não pensar sobre a parte horrível, mas ela estava lá, de qualquer forma, e parecia que mais coisas horríveis o aguardavam. Porém as palavras do pai lhe voltaram, aquecendo-o.

Eu teria me recusado a abrir mão da única família que eu tenho. Meu filho.

E, assim, ele adormeceu.

 

                     Reencontros

Primeiro ele notou o brilho intenso das lâmpadas nuas contra as pálpebras. Depois tomou consciência do som de vozes sussurrando por perto. Por algum motivo, a mão direita o incomodava, sentia os dedos grossos como lingüiças, excessivamente sensíveis. Por alguns minutos abençoados, Seph se esqueceu de onde estava. E então ele se lembrou, e tudo fez sentido com exceção das vozes, por isso ele abriu os olhos.

Duas pessoas estavam sentadas à mesa, que havia sido empurrada para as sombras em um dos cantos. A pessoa que estava mais perto de Seph era Hastings. Não conseguia ver quem era a outra, por isso ele se apoiou nos cotovelos, tentando enxergar na escuridão. Ainda não se sentia à vontade para assumir a relação com Hastings e chamá-lo de qualquer outra coisa que não o nome dele, portanto chamou-o em voz alta:

  • Hastings?
  • Ele vive — disse o outro, rindo baixinho.

A voz e a risada eram familiares, e Seph achou que es­tivesse morto ou sonhando, pois sabia que jamais ouviria aquela voz de novo. O dono da voz ergueu-se, atravessou o quarto e postou-se diante dele, uma silhueta contra a luz.

  • Oi, ingênuo — sussurrou ele, a luz refletindo no ouro na orelha direita. — Andou malhando ou o quê? Acho que você cresceu.

Impossível. Era impossível.

  • Jason? — Seph disse o nome mais alto do que pretendera, e Jason Haley pôs um dedo sobre os lábios.

—  Cuidado! Não queremos atrair os ex-alunos pra esse reencontro. Eles estragariam tudo, com certeza.

Jason abriu um sorriso torto. Seus cabelos haviam cres­cido um pouco, mas continuavam irregulares onde antes eram espetados. Havia só leves sinais de descoloração nas pontas. Onde quer que ele houvesse estado após deixar o Porto Seguro, não conseguira manter o estilo habitual. Estava vestindo jeans desbotados e uma blusa. Parecia mais magro do que Seph se lembrava, embora mais vivo, como se houvesse perdido em físico para que o espírito brilhasse com mais intensidade.

—  Leicester disse que você estava morto — sussurrou Seph, como parecia apropriado ao falar com um fantasma.

  • Até onde ele sabe, eu estou.

Jason sentou-se na beira da cama. Seph o acompanhou e o abraçou.

Jason deu-lhe uns tapinhas nas costas, sem jeito.

  • Ei, alguém já disse a você que se parece com o seu pai?

—  O que aconteceu? Como você escapou?

Seph soltou Jason e apoiou-se contra a parede, es­perando por uma explicação que o convencesse de que aquilo era verdade.

Jason fitou o espaço.

  • Dizer que eu escapei seria um pouco de exagero. Eles me apanharam na Teia Weir. Tinham mudado a configuração da barreira, por isso os meus contra-feitiços não funcionaram. — Ele fez uma pausa, aparentemente revisando sua história e escolhendo o que compartilhar com Seph. — Leicester deve ter decidido que um afogamento seria o mais fácil de explicar. Então, quando acabaram de... ahn... conversar comigo, eles me levaram para a enseada.

Seph estremeceu. Desde o sonho que tivera sobre a casa dos barcos, a experiência de se afogar nunca esteve muito distante.

Jason prosseguiu, usando frases curtas e concisas.

  • Felizmente, Leicester não me imobilizou. Acho que ele queria me ver chutando e me debatendo. Eles me seguraram embaixo d'água. Lutei com eles por um tempo, e aí usei a dyrne sefa pra me afastar. Eu parecia morto, mas nem aspirei nada da água do mar. Eles "encontraram" o corpo, telefonaram pra minha madrasta com as más notícias e me despacharam no dia seguinte num saco de defunto.
    • A gente nunca soube de nada — disse Seph baixinho. — Você simplesmente desapareceu. Achei que você tivesse escapado, até o Leicester me dizer.
  • Eu me safei no aeroporto, assustei algumas pessoas quando abri o zíper do saco. — Ele sorriu. — Tive de apagar algumas mentes por causa daquilo. Então fui para casa pra ajeitar as coisas e impedir a minha família de telefonar pro Porto Seguro quando o meu corpo não aparecesse. — Ele sacudiu a cabeça. — Graças a Deus pelos Anaweirs. Você nunca tem de explicar nada pra eles, se não quiser. Eu telefonei pra firma de advocacia, mas eles disseram que você tinha saído da escola, que estava com a sua tutora. Pensei que tivessem matado você. Então procurei um hacker amigo meu do colégio. O Dragão estava publicando mensagens na internet na época... segredos, mensagens em código, esse tipo de coisa. Eu pedi ao meu amigo pra rastrear, encontrar a máquina de onde aquilo estava vindo.

Jason sorriu.

  • No entanto, o que aconteceu foi que o seu pai aqui rastreou a mim. Ele me colocou contra a parede e queria saber para quem eu trabalhava e por que estava tão interessado no Dragão.

Hastings deu de ombros, um leve sorriso no rosto. Mesmo após uma noite de sono, ele ainda parecia pálido e cansado. O torque ao redor do seu pescoço estava quase preto, como uma peça de prata exposta aos ele­mentos.

  • É claro que eu tinha ouvido falar do Leander Hastings. Todo mundo já ouviu. Não foi fácil convencer o cara de que não precisava me matar. Eu contei sobre o Porto Seguro, o que o Gregory e a gangue estavam tramando, mostrei pra ele o portal e como funcionava. Naturalmente, ele ficou bem interessado, depois que se convenceu de que eu não estava do lado do inimigo.
  • É por isso que você sabia sobre os ex-alunos — disse Seph, olhando para Hastings. — E você não ficou surpreso quando lhe mostrei a pedra-portal, na Lendas.

Hastings assentiu.

  • Presumi que você estivesse trabalhando com o Leicester, até eu descobrir que o Jason tinha ajudado você. Depois da nossa conversa na Lendas, perguntei ao Jason sobre você e confirmei que você estava dizendo a verdade.

Seph sacudiu a cabeça, incrédulo.

  • E você me deixou pensando que o Jason estava morto?

Hastings hesitou.

  • É importante que o Leicester e os ex-alunos não descubram que o Jason está vivo.
    • Agora vamos ver o que o velho desgraçado fez com você — disse Jason, mudando de assunto. Relutante­mente, Seph estendeu a mão direita. Jason examinou-a gentilmente e virou-a, tendo cuidado com os dedos feridos. — Ele deu a você uma mão de bruxo, Seph — disse ele baixinho.
  • Mão de bruxo? — Seph puxou a mão de volta — Do que você está falando?

—  Três dedos médios, todos do mesmo comprimento. Magia Antiga. Mão de bruxo — disse Jason solenemente.

Naquele momento, ouviram o ruído do ferrolho da porta deslizando, e Jason tornou-se imperceptível quando ela abriu. Eram Martin Hall e Bruce Hays.

Martin carregava uma bandeja com o café da manhã. Ele a depositou sobre a mesa.

  • Como estava o vinho? — indagou ele a Hastings.
  • Perfeito — respondeu o mago, indicando a garrafa vazia sobre a mesa. — Meus cumprimentos.

Martin pareceu satisfeito. Tirou os óculos, poliu-os na camisa e colocou-os de novo.

  • Não é muito frutado?
    • Perfeito — disse Hastings de novo.

—  Espero que gostem do café da manhã — disse Martin. — Vou trazer outra garrafa hoje ã noite. Os outros hós­pedes vão chegar amanhã à noite, por isso vou estar muito ocupado depois disso — disse ele, quase em tom de desculpas.

Os ex-alunos saíram, e eles ouviram o som do ferrolho sendo recolocado no lugar. Ficaram em silêncio por um momento, para ter certeza de que os outros haviam par­tido, e então Jason reapareceu.

Seph e Hastings comeram à mesa, enquanto Jason sentou-se em uma das camas. Jason não comeu muito antes de largar o prato no chão. Ele se levantou, andando de um lado para o outro como um leão numa jaula.

  • Então o que você está fazendo aqui? — perguntou Seph, empurrando o próprio prato para o lado. Descobriu que comer com a mão esquerda era complicado. Havia comido um bolinho sem manteiga porque não achou que seria capaz de manejar a faca e não queria pedir auxílio. — Como chegou até aqui? Está só visitando os prisioneiros ou o quê?

Jason parou de andar. Houve mais uma troca de olhares com Hastings.

  • Seu pai e eu temos trabalhado juntos.

Seph sentiu uma ponta de ciúme por Jason ter com­partilhado dessa experiência com o pai dele. Jason conti­nuou:

  • Quando trouxeram ele para cá, eu peguei uma carona.

Jason hesitou, olhando para Hastings de novo, como se pedisse permissão para continuar. Hastings moveu a cabeça em assentimento.

  • Embora não saibamos exatamente qual é o plano deles, Jason e eu vamos fazer o que pudermos para arruiná-lo. A primeira coisa que vamos fazer é tirar você daqui — disse Hastings, indicando o lugar onde estavam com um gesto de mão.

Seph olhou de um para o outro.

  • Como assim?

A gente não quer que eles revistem a ilha procurando por você. É pequena demais — disse Jason. — Por isso, o lance é o seguinte: a gente vai ter de matar você.

Martin percebeu algo diferente assim que entrou no porão. Estava mais vazio, de certo modo, e mortalmente silencioso. Antes de avançar mais para dentro do quarto, esperou até que os olhos se ajustassem à luz turva da parte mais externa da câmara. Finalmente, enxergou duas figuras deitadas nas camas. No entanto, ninguém se er­gueu para saudá-lo.

Ele carregou a bandeja do almoço para a mesa e co- locou-a no chão para poder remover os pratos do café da manhã. Bruce Hays permaneceu junto à porta. Ele não gostava de bancar o mordomo, mas Martin não se importava. Na verdade, considerava um privilégio servir o Dragão. Ele transferiu o almoço para a mesa e os pratos do café para a bandeja.

—  Hora do almoço! — gritou ele. Havia trazido sopa e não queria que esfriasse.

Hastings falou baixo, sem se mover:

  • Não quero nada.

—  E quanto ao Seph?— perguntou Martin, gesticulando em direção à outra cama.

—  Ele não vai precisar de nada também. — Hastings fez uma pausa. — Não mais. O rapaz está morto.

Martin ficou congelado por um momento.

—  O que o senhor disse? — indagou ele.

Bruce Hays deu um passo cauteloso para dentro do quarto, como se esperasse um ataque. Martin foi até a cama de Seph. Seph estava deitado de costas, o rosto pálido como cera contra os lençóis, o cabelo escuro caído sobre o travesseiro, as mãos enfaixadas dobradas, uma natureza-morta. Martin pôs os dedos sob o queixo de Seph, buscando uma pulsação. Não havia nenhuma, e ele estava frio ao toque. Mesmo sob a luz turva, Martin pôde ver o hematoma na base do pescoço.

Martin mal podia falar. Ele gostava de Seph, sempre gostara dele. E admirava Leander Hastings, alguém com poder e que conhecia e apreciava um bom vinho. Agora estava tudo arruinado.

Ele se sentou de pernas cruzadas.

  • Vá buscar dr. Leicester — disse ele a Bruce Hays, que ainda aguardava junto à porta.

Hays hesitou.

—  Você não deveria ficar aqui sozinho com...

Ele não terminou a frase. Martin sacudiu a cabeça com impaciência.

—  Vá logo.

Bruce deu de ombros e saiu, trancando a porta atrás dele.

  • Como é que o senhor pôde? — perguntou Martin, fitando o rosto de Seph. — Ele era seu filho.

Hastings não disse nada.

Eles ouviram alguém remexer na porta, parecendo apressado. A porta se abriu e Gregory Leicester entrou em silêncio, seguido por Bruce Hays, Warren Barber e Peter Conroy. Hastings sentou-se e aguardou, com as mãos nos joelhos.

Sem olhar para Hastings, Leicester se ajoelhou junto à cama de Seph e correu os dedos sobre ele. Buscou uma pulsação, ergueu as pálpebras, tocou as marcas de dedos preto-azuladas na base do pescoço. Enfim, balançou a cabeça, e tinha uma máscara de raiva estampada no rosto.

  • Não tão paterno afinal, não é, Hastings? — disse o mago, cuspindo as palavras enquanto se erguia.

—  Achei que ele estivesse acorrentado — disse Warren Barber, a voz ganhando volume. — Achei que ele não podia fazer nada.

  • Não é tão difícil matar um menino — disse Hastings, como se falasse por experiência. — Acorrentado ou não.
  • Eu esperava que você achasse difícil matar este me­nino — disse Leicester. — Acho que eu estava enganado.

— Havia uma admiração relutante nos olhos cinzentos opacos. — Agora o seu calcanhar de Aquiles se foi, não serve mais para nada. Mas por que vir até aqui matar o seu filho, quando nós o teríamos feito por você?

Hastings sacudiu a cabeça.

  • Não. Eu vim para pagar o resgate dele, lembra? E você não cumpriu o acordo. Ele estava com medo do que teria de enfrentar. Pediu para eu salvá-lo disso, e foi o que eu fiz. — Ele devolveu o olhar de Leicester sem remorso. — Eu já rezei pela alma dele, mas será que podemos arranjar um padre?

Leicester sacudiu a cabeça.

  • A alma imortal dele é problema seu, Hastings, já que decidiu libertá-la.
  • Então me deixe cuidar do corpo, pelo menos — re­trucou Hastings.

Leicester hesitou, abalado pela perda do refém. Martin se perguntou se o diretor decidiria que chegara a hora de matar Hastings, antes que a Conferência começasse. Não importava quão poderoso era Hastings, sabia que poderiam fazê-lo, todos eles juntos, da maneira como Leicester os usara antes.

Não, o dr. Leicester tinha outros planos. Ele olhou para Hastings, mas falou para os outros no quarto:

  • Hastings provou ser perigoso, apesar das correntes. Agora que o rapaz está morto, acho que é melhor acor­rentá-lo à parede. O Bruce e eu cuidaremos disso. Warren, você, Martin e Peter devem levar o corpo, amarrar pesos a ele e jogá-lo no lago. Não queremos que ele volte à superfície enquanto nossos hóspedes estiverem aqui.

 

                     Second Sister

Warren Barber desejou que Leicester tivesse dado a algum outro a tarefa de se desfazer corpo de Joseph. Talvez Leicester achasse que Hall e Conroy acabariam fazendo algo tolo e senti­mental. Tipo o quê? Rezar um rosário próximo ao corpo? O garoto estava morto, afinal.

Eles carregaram o corpo pela trilha, pelos bosques além do arvoredo, até o lado oposto da ilha, onde um despenhadeiro não muito alto descia diretamente até águas profundas. Era bastante distante da doca e do complexo vinícola. Embora o corpo não fosse pesado, formava um pacote longo e desengonçado, difícil de manobrar através da vegetação rasteira e do terreno irregular. Estavam com calor, suados e exaustos quando finalmente deitaram o fardo junto à borda do despenhadeiro.

E agora, o que usar como pesos? Haviam levado um rolo de corda com eles, mas não conseguiram encontrar nada adequado no topo do despenhadeiro. Então Warren se lembrou dos blocos de concreto que haviam sido usados no trabalho de restauração.

  • Vão buscar dois daqueles blocos de cimento dos fundos da vinícola — ordenou ele aos outros dois. — Um para a cabeça e outro para os pés. Vou ficar de olho no Joseph, aqui.
  • Por que nós é que temos de ir? — resmungou Conroy, esmagando um mosquito.

Hall postou-se diante do corpo como se estivesse pronto para encarar uma briga.

  • Nós ficamos com o Seph. Você vai.

Hall havia estado mal-humorado e pouco cooperativo por todo o caminho através da ilha.

Warren não havia esquecido que Hall havia brandido uma faca contra ele no Natal, quando se metera na briga com McCauley. Então suspirou e revirou os olhos.

  • Escutem, seus idiotas, ele não vai a lugar algum. Vamos todos juntos. Podemos buscar algo gelado para beber enquanto estivermos por lá.

Eles arrastaram o corpo para o meio da vegetação rasteira junto ao despenhadeiro e caminharam de volta ao prédio da vinícola.

Retornaram 45 minutos mais tarde, cada um carre­gando um bloco. Cortando dois pedaços de corda, eles os passaram por um dos furos de cada bloco e os amarraram apertado. Mas, quando foram apanhar o corpo, ele havia sumido. Warren procurou por toda a vegetação das redon­dezas, só para ter certeza.

  • V-você acha que algum tipo de animal arrastou ele embora? — indagou Peter, o suor correndo-lhe pelo rosto gorducho enquanto aspirava o ar do inalador.

—  Como diabos eu vou saber? — disse Warren, irritado. — Está me achando com cara de Tarzan?

  • Não acho que haja nada tão grande por aqui. — Martin estava com uma expressão grave no rosto, como se estivessem discutindo algum assunto vagamente inte­ressante. — Coiotes, águias e águias-marinhas, talvez.

Por um momento, o único som que se ouviu foi o vento nas árvores e a respiração ofegante de Peter. Então Warren disse:

  • Não digam nada disso pro Leicester. Não vou descer ao inferno por ter perdido um cadáver. Para todos os efeitos, nós jogamos o McCauley no lago. Entenderam?

Hall e Conroy assentiram com a cabeça, os olhos arre­galados.

Seph acordou de súbito, consciente apenas de que havia alguém pairando sobre ele. Ele golpeou com o punho, sem muito jeito, e seu pulso foi agarrado com firmeza.

  • Vai se arrepender se me socar com esta mão — disse-lhe Jason. Quando Seph relaxou, ele o soltou. — Já estava na hora de você se juntar aos vivos.

Seph estava deitado numa pilha de cobertores num chão sujo. A princípio pensou que ainda estava no porão, já que as paredes e o teto do local eram feitos de pedra. Mas a luz penetrava de uma fonte invisível atrás de um canto, e ar frio e úmido roçava-lhe o rosto. Ele se sentou.

Estava numa caverna que havia sido transformada em moradia. Latas e caixas de comida estavam estocadas contra a parede, e havia um fogão portátil no canto. Roupas estavam empilhadas no topo de uma caixa de madeira, distantes da sujeira. Três grandes lâmpadas de querosene cercavam o perímetro. Livros e mais caixas amontoavam-se nos fundos.

  • Quase tão luxuoso quanto o seu antigo quarto no Porto Seguro — disse Seph.

Junto a ele, em contraste com o resto da bagunça, estava um saco de dormir bem enrolado, com um boné de beisebol do Reds de Cincinnati por cima.

  • Bom dia, menino bruxo.

Ele se virou tão rápido que bateu o cotovelo contra a parede da caverna.

  • Madison!

Ela trajava uma camisa masculina e calças jeans com as bainhas dobradas. Tinha os cabelos presos com um elástico e um lenço vermelho amarrado no pescoço. Foi tudo o que ele teve tempo de ver antes que ela passasse os braços em torno dele.

  • Nunca mais me assuste assim de novo, ou vou ar­rancar o seu couro, pedacinho por pedacinho — disse ela.
  • Assustar você? — Ele lhe agarrou os ombros, segurando-a para inspecioná-la. — Assustar você? Você desapareceu. O que aconteceu? Por onde andou?
  • O que aconteceu com a sua mão? — Ela puxou-lhe a mão coberta de gaze para examiná-la. — Você me trata como se eu fosse indefesa, mas você...

Ele ouviu a voz de Jason por trás dele.

  • Vocês dois querem parar de flertar? Estão fazendo com que eu me sinta uma vela. Não que eu não aprove. Se for parar na costa de uma ilha, é melhor levar uma mulher junto.

Maddie olhou feio para Jason.

  • ..?

Seph esfregou o cotovelo.

  • Estou falando sério. Como você e o Jason se encon­traram?

Maddie sentou-se e envolveu os joelhos com os braços.

  • Depois que você me deixou no esconderijo, uma meia dúzia de bruxos começou a bisbilhotar, por isso eu tive de cair fora. Eu vi quando eles agarraram você, mas não havia nada que eu pudesse fazer contra todos eles.

Jason se espichou sobre uma pilha de cobertores.

  • Achei a sua amiga aqui se esgueirando pelo castelo depois que deixei você na noite passada. E qual não foi a minha surpresa ao descobrir que ela conseguia ver a minha imperceptível pessoa! Adivinhei logo quem ela era, com base na descrição que o Hastings me deu. Então eu a convidei para se hospedar no meu palacete aqui. — Ele revirou os olhos. — Não foi fácil convencer essa sua amiga. O que você tem na cabeça, Seph? Envolver-se com uma vampira que suga a magia de magos inocentes?
  • Eu não incomodo os inocentes — resmungou Madison. — Guarde a sua magia para você mesmo e vamos nos dar bem.
  • Onde estamos? — sussurrou Seph. Sentia os mús­culos enrijecidos e doloridos, e estava todo esfolado, como se tivesse sido arrastado por espinheiros. — O que acon­teceu?

Jason sorriu.

  • A pedra portal funcionou tão bem como... um passe de mágica! Exatamente como lá na enseada. Precisa muito sangue-frio para um pai matar o próprio filho. Se eu não estivesse por dentro da coisa toda, teria chorado também. Leicester ficou furioso! Você sempre escorrega pelos dedos dele, de um jeito ou de outro. Morrendo e sabe lá o que mais. O Leicester mandou os caras jogarem o seu corpo no lago. Eu atrapalhei os planos deles.

Seph ergueu os olhos, assustado.

  • Você o quê?
  • Achei que eu ia ter de pescar você da água, mas eles largaram você sozinho, enquanto foram buscar umas bebidas.
  • Quando Leicester souber disso, vai saber que tem alguma armação.
  • Confie em mim. Ele não vai saber de nada. Leicester não perdoa mancadas. — Jason sorriu, esticando o corpo magro. — Não sei por que eu não posso ser o tipo de herói que mora no castelo. Comigo é sempre no porão ou na caverna.
  • Mas onde nós estamos? — perguntou Seph de novo.
  • Estamos no lado norte da ilha, numa caverna na face do despenhadeiro. Antes da Guerra Civil, eles escondiam aqui os escravos que estavam fugindo para o Canadá. Depois, as bebidas alcoólicas ilegais durante a Lei Seca. Agora nós. Dê uma olhada se quiser. — Jason fez um gesto em direção à entrada.

Seph se ergueu sobre pés instáveis, mancou até a entrada e espiou para fora. A abertura dava direto para o lago — na direção do Canadá, supôs. Mais abaixo, as ondas se chocavam contra as rochas. Havia um íngreme penhasco de ambos os lados. Era um dia sombrio e nublado, e o ar estava impregnado pelo cheiro de chuva.

  • Como você chegou aqui?
  • Tem uma trilha — disse Jason, que, com Maddie, se juntara a Seph na entrada da caverna.
  • Se é um local tão histórico, não tem medo de que alguém mais descubra? — perguntou Seph.

Jason sacudiu a cabeça.

  • Estava descrito num velho manuscrito no Museu dos Grandes Lagos. Eu roubei. — Ele se apoiou contra a face rochosa. — Escute. Tem um barco vindo de Trinity tra­zendo os delegados para a Conferência hoje. Isso significa que vai voltar depois, esta tarde.

Seph deu de ombros.

  • E daí?

—  Vamos tornar você imperceptível e botar você a bordo, e aí você vai pra longe daqui.

—  Por que eu?

—  Eu prometi ao Hastings.

—  E quanto a Maddie?

  • — Jason coçou a cabeça. — A gente não tem como deixar a Maddie imperceptível. Não vejo como ela poderia entrar a bordo em segredo, bem na frente da vinícola.

Seph olhou de Jason para Maddie.

—  Você acha que eu vou embora e deixá-la aqui? É por minha culpa que ela está aqui, pra início de conversa.

—  Eu pulei no bote atrás de você. — Maddie tocou-lhe o braço. — Eu fiz uma escolha.

  • Se afogar no lago é uma coisa. Gregory Leicester é outra. Você não sabia no que estava se metendo.

Os fios de cabelo soltos pelo vento se encaracolavam em torno do rosto dela.

—  E você, sabia?

Jason ergueu ambas as mãos.

  • Seph, na minha opinião, salvar alguém é melhor do que não salvar ninguém. Todos eles acham que você está morto. Como eu. Vai por mim, é bom se sentir livre. Dá para ir aonde você quiser. Sem se preocupar que o Leicester e os outros cacem você.

—  Não.

  • Isso pode dar em massacre. Se partir agora, você pode evitar tudo. Mais tarde, vai poder se vingar. Eles não vão estar à espera. Não vão saber quem foi que os atacou.

Seph franziu o cenho.

  • Não quero me vingar de um massacre. Quero impedir que ele aconteça.

Jason fitou o horizonte.

—  Mais fácil dizer do que fazer.

—  A gente não pode encontrar o barco quando ele chegar e avisar? — sugeriu Maddie. — Aí nós todos vamos embora juntos.

  • O que vai impedir o Leicester de conjurar outra tempestadezinha? — disse Jason. — Ele poderia trazer o barco de volta pra cá, ou pôr fogo nele, ou mandar ele pro fundo do lago. Tudo muito conveniente.
    • — Maddie pensou por um momento. — Então vamos telefonar pra eles e dizer para não virem.
      • O meu celular não funciona. Não vi nenhuma linha fixa na ilha, nem mesmo na vinícola. — Jason remexeu no bolso à procura de um cigarro e soltou um jato de fumaça ao vento. — Para falar a verdade, não sei se podemos deter o Leicester. Temos de romper o vínculo entre ele e os ex-alunos de algum jeito. Enquanto estiver conectado a eles, ele vai vencer qualquer disputa envolvendo magia. A gente teria de ser mais inteligente do que ele.
    • Então é isso o que a gente vai fazer. Eu não vou embora — disse Seph.
    • Hastings vai ficar furioso.
    • Que fique. — "O cara descobre que é meu pai e começa a me dar ordens", pensou Seph. Ele tocou a dyrne sefa em torno do pescoço com a ponta dos dedos. — A gente pode pelo menos libertar o Hastings, digo, o meu pai, não é?

Jason sacudiu a cabeça.

  • Se a gente tentar libertar o Hastings, eles vão saber que estamos aqui. Se começarem a procurar, vão nos encontrar.

Maddie removeu o elástico do cabelo, penteando-o com as mãos e prendendo-o de novo.

  • Está me dizendo que você e o sr. Hastings apare­ceram por aqui sem nenhum tipo de plano?

Jason apagou o cigarro na parede da caverna e jogou a bituca numa lata de café.

  • Este é o plano, sinto dizer. — Ele se voltou para Seph. — O seu pai tomou uma decisão consciente de vir atrás de você. Sabendo que era improvável sobreviver.

Seph se lembrou do discurso de Hastings no porão. Lembrava, realmente, aquele tipo de conselho que se dá no leito de morte.

  • Quer dizer que ele vai simplesmente desistir?
  • Acho que ele vê você como um tipo de legado. Assim, mesmo que ele se vá, bem... — Jason pigarreou e desviou o olhar. — Você viu aquela coisa que eles puseram no pescoço dele. É chamada de gefyllan de sefa. Foi criada durante as guerras dos magos para combater a Alta Magia.
  • O que é? — indagou Seph. — Hastings disse que dre­na a magia.
  • Significa "matadora do coração": ela desativa a pedra de mago. Uma vez colocada, só o mago que a colocou pode tirá-la. Ela mata um mago em cerca de cinco dias.

"Parece mesmo um castelo", pensou Linda, olhando para a construção. O caminho da doca até a vinícola era decorado por crisântemos e zínias em vasos. Alguém tivera um trabalho considerável para tornar o lugar atra­ente, mesmo sendo o fim da estação.

Abrindo-se a porta da frente, entrava-se em um enorme vestíbulo. Um jovem mago postado junto a uma mesa tinha chaves para todos. Ele se apresentou como Martin Hall, explicando que era o vinicultor dali. Na verdade, o lugar estava cheio de jovens magos muito bem-educados: o pequeno homem nervoso que tocava o piano de cauda no vestíbulo e o que a guiou até o quarto dela. Linda teve a sensação de que Seph teria reconhecido todos eles.

Ela perguntou a Martin Hall se o dr. Leicester havia chegado. Após um momento de educada perplexidade, ele disse que sim, que ele havia chegado. Então Leicester já estava lã havia algum tempo. Isso poderia significar que Seph estava em algum lugar na propriedade. Se é que ainda estava vivo.

Mas onde estava Hastings? Ela não soubera mais nada. dele desde que ele partira para se encontrar com Leicester.

— Você poderia dizer ao dr. Leicester que eu gostaria de me encontrar com ele esta noite, antes do início da Conferência? — Ela entregou a Martin um cartão de visitas. — Ele vai reconhecer o meu nome.

O quarto era mobiliado com peças antigas e réplicas, uma cama de quatro colunas cercada por cortinas de veludo. A janela dava para o lago, embora Linda não conseguisse ver muita coisa, por conta do clima e da hora tardia. Mas, quando abriu a janela, escutou o som da água batendo nas rochas em algum lugar lá embaixo.

Ela instalou o laptop e espalhou os papéis que trouxera na maleta sobre a escrivaninha, incluindo as duas pro­postas de constituição que haviam sido apresentadas na reunião do Conselho na Lendas: a deles mesmos e a de Leicester e D'Orsay.

Seus pensamentos se desviavam para bem longe da tarefa imediata. Leicester provavelmente não faria um acordo. Por que o faria? Ele tinha todas as cartas na mão.

Alguém bateu à porta. Era Martin Hall.

  • Leicester pergunta se agora seria uma hora con­veniente para o encontro.

Ora, ora. Leicester certamente estava ansioso.

  • Agora está ótimo — disse Linda.

Ela apanhou a pasta e seguiu Martin escada abaixo e por um corredor nos fundos. Dobraram dois corredores e então ele a levou até uma biblioteca com painéis de nogueira.

  • Leicester virá encontrá-la em um instante — disse Martin, inclinando-se ao sair.

Linda olhou para o aposento ao redor. Estantes cobriam as paredes, e havia uma escrivaninha com equipamento de computação de um lado. Alguém havia acendido o fogo na lareira de pedra, e tapetes caros estavam estendidos no piso. O cenário parecia familiar.

Ela abriu a pasta e tirou as fotografias de Seph que Leicester havia enviado para Hastings. Sim. Haviam sido tiradas ali, na biblioteca. Então Seph estivera ali recente­mente, talvez havia apenas um ou dois dias. Ela estudou as fotos. Ele estava em pé próximo à porta, parecendo vulnerável e com frio, o cabelo molhado e colado à cabeça.

  • Bem-vinda a Second Sister.

Linda deu um pulo ao ouvir a voz de Leicester atrás de si. Ela se virou e viu Gregory Leicester emoldurado pelo batente da porta, vestindo um suéter, calças jeans e tênis náuticos sem meias. Ele não fez tentativa alguma de esconder o fato de que se sentia totalmente em casa. Por instinto, ela se deslocou para o centro do quarto, onde havia mais espaço para manobras, menos probabilidade de ser acuada contra a parede. Ele foi até o armário, esco­lheu uma garrafa, tirou a rolha com um gesto experiente e serviu dois cálices. Passou um para Linda.

  • É um Sauvignon blanc. Uma novidade para nós.

Ela deu um pequeno gole.

  • Um pouco doce pra mim.

"Este é o seqüestrador do seu filho", pensou ela. O torturador de crianças.

  • Vou pedir a Martin que sirva algo mais seco amanhã à noite — disse Leicester. Ele fez uma pausa. — Fiquei feliz em saber que vinha.
  • Imaginei que ficaria, já que arquitetou tudo isso — Ela virou o cálice de vinho nas mãos. — Onde está Seph?

Houve um cintilar nos olhos opacos e cinzentos, mas ele não disse nada e esperou que ela continuasse. A intenção havia sido intimidá-la, mas na verdade aquilo exercera o efeito oposto. Se ela tivesse um revólver, teria atirado nele. Em vez disso, ela bebeu todo o conteúdo do cálice e colocou-o de lado.

  • Você o seqüestrou. Você pediu ao Hastings para vir encontrá-lo, disse que queria fazer um acordo. Quero saber onde ele está.

Mais um brilho nos olhos. Divertimento. Expectativa. E, de repente, ela sabia o que ele estava prestes a dizer. Ela não queria ouvir; não podia olhá-lo no rosto quando ouvisse, por isso ela lhe deu as costas.

Ele ficou em pé logo atrás dela, bem próximo. Ela sentiu a respiração dele no pescoço.

  • Joseph está morto — disse ele baixinho. — Hastings o matou.

Ela deu uma volta para se afastar dele e tornar a encará-lo.

    • Não desta vez. — Uma pausa. — Não quer saber como ele o fez?
  • Não.
  • Ele o estrangulou.

Uma imagem daquelas mãos fortes em torno da gar­ganta de Seph, as articulações dos dedos brancas, aper­tando, veio-lhe à mente.

  • Onde está Hastings? Deixe que ele mesmo me conte.

Leicester olhou com firmeza para ela, sem dizer nada.

  • Mostre-me o corpo do Seph — disse ela. — Aí vou acreditar em você.
  • No lago.
    • Então não temos nada sobre o que conversar.

E ela o empurrou, afastando-o do caminho para chegar ao corredor.

De volta a seu quarto, Linda se atirou na cama e ficou deitada de costas, fitando o escuro ainda mais profundo da abóbada sobre sua cabeça. Sentia-se vazia e gelada, como uma garrafa que tivesse sido entornada vezes demais. Ela passara a semana inteira chorando. E, agora, quando a verdade era pior do que imaginara, os olhos dela estavam secos.

Poderia acreditar em Leicester quando ele dissera que Seph fora morto pelas mãos de Hastings? Não havia dú­vida de que Hastings era capaz de matar. Mas conseguiria tirar a vida do próprio filho? Talvez. Para salvá-lo de Leicester.

Ela não queria pensar na segunda possibilidade. A possibilidade de que Hastings quisesse ter certeza de que Linda não faria nenhum acordo por conta própria.

De um jeito ou de outro, Leicester era um idiota. Ele havia caído direitinho no jogo de Hastings. Ele deveria tê-la mantido no escuro e com esperanças durante toda a Conferência. Agora ela não tinha nada a perder.

Madison se ajoelhou quando alguém entrou, mas se deixou cair de novo contra a parede quando viu que era Seph.

  • Oh, é você. Não achei que fosse voltar tão cedo. — Tremendo, ela apertou o cobertor em torno dos ombros. Estava frio, e ela não tinha casaco. — O que o seu pai falou?
  • Eu não falei com ele.

Ele se sentou no chão da caverna, deslizando de costas até que estivesse apoiado contra a parede oposta à de Madison. Estava chovendo forte. Seph estava ensopado, a água pingando-lhe do cabelo e descendo-lhe pelo pescoço.

Jason emergiu das sombras no fundo da caverna e passou uma toalha a Seph.

  • O que aconteceu?
  • Não consegui entrar. Eles teceram uma teia ao redor de toda a vinícola, cercando o terreno. Se ela for rompida, vão saber que estamos aqui.

Jason praguejou baixinho.

  • Se descobrirem que estamos aqui, não vai ter buraco fundo o bastante pra gente se esconder nesta rocha.

Seph afastou o cabelo molhado do rosto.

  • Mas por que eles ergueram uma barreira? Quem eles estão impedindo de entrar, se não sabem que es­tamos aqui?
  • Eles devem estar tentando impedir todo mundo de sair — sugeriu Madison, remexendo nos parcos supri­mentos de comida de Jason com mau humor.
  • Enquanto isso, a gente não faz idéia do que está acontecendo lá dentro. E o meu pai vai estar morto em quatro dias.

Jason se sentou na entrada da caverna e acendeu um cigarro.

  • Hastings acha que Leicester vai esperar pra ver o que acontece nas sessões da Conferência amanhã. Talvez primeiro eles tentem obter o que querem mediante as táticas costumeiras: intimidação e magia mental sutil. Todo o Conselho dos Magos vai estar lá, supostamente pra garantir que está tudo em ordem. Provavelmente eles estão por dentro da jogada. Seja ela qual for.

—  Você e o Hastings tinham algum plano para a Confe­rência?

Jason fitou o lago.

  • O meu plano era me infiltrar no salão de conferências.

Quando a coisa ficasse preta, eu ia distrair todo mundo com um glamour e matar o Leicester e o D'Orsay.

  • Isso soa mais como suicídio do que um plano. Você me disse que não há jeito de ele ser derrotado enquanto estiver conectado aos ex-alunos.
  • Bem, é o melhor que posso fazer, está bem? — Jason tragou o cigarro, soltou uma baforada de fumaça. — Vou matá-los de medo, de qualquer jeito.

Seph se deu conta de que todo o tempo ele estivera contando com Jason ou Hastings para aparecerem com um plano, uma saída daquela confusão. Algum modo pelo qual ele pudesse ajudar sem assumir a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso.

Mas Hastings estava acorrentado na vinícola, seus poderes definhando. Depois do verão que passara com Snowbeard, Seph havia ultrapassado as habilidades de Jason em magia, tanto em concentração de poder quanto no uso de feitiços aprendidos. Os glamoures de Jason eram mais do que convincentes, mas não passavam de ilusão. Não representavam uma ameaça física. Tudo o que Leicester precisava fazer era identificar a fonte e destruí-la.

Cada vez mais parecia que Leicester venceria, a menos que Seph descobrisse um meio de detê-lo. A única espe­rança que tinham era tomá-los de surpresa; e agora isso não aconteceria.

  • Não vamos conseguir nos infiltrar na Conferência sem sermos notados — disse Seph. — Não dá pra passar pela Teia Weir do Barber sem que eles percebam.
  • Eu consigo passar.

Tanto Seph quanto Jason se viraram para olhar para Madison. Ela abrira uma caixa de enlatados e estava remexendo no conteúdo.

—  Do que você está falando? — perguntou Seph.

  • Eu consigo passar pela Teia Weir. Eu posso ajudar vocês. — Ela pegou uma lata de sopa, tirou a tampa e passou-a para Seph. — Aqui, menino bruxo. Es­quente isso.

Seph aqueceu a sopa entre as mãos e devolveu-a para ela.

—  Não gosto disso — disse Jason. — Não é só uma questão de poder mágico. Se eles apanharem você...

—  Então não vou deixar que eles me apanhem. — Ela sorveu a sopa quente. — É melhor do que o seu plano.

—  Nisso ela está certa — disse Seph.

—  O quê? — indagou Jason. — Você realmente quer que ela entre lá sozinha?

Seph balançou a cabeça.

—  Olha. Todas as pessoas de quem eu gosto estão aqui nesta ilha. Estou prevendo que vai haver um banho de sangue se não fizermos nada. Se acontecer o pior, a gente não pode se esconder nesta caverna pra sempre. Mais cedo ou mais tarde seremos pegos. A gente tem talento e o elemento-surpresa. Temos de pensar num jeito de fazer isso funcionar contra eles.

 

                     O Conselho das Ordens

Jack examinou a sala de conferências com um olhar crítico. Era um grande salão de três andares com uma galeria que corria ao longo de três lados no andar central. Havia uma longa mesa polida no centro da sala, cercada por cadeiras. Outras cadeiras estavam alinhadas junto às paredes. A mesa tinha monitores de tela plana embutidos no tampo à frente de cada assento, com teclados em gavetas por baixo. Em um dos lados da sala, havia uma lareira tão grande que um homem alto poderia entrar nela sem se abaixar. Na outra extremidade, alguém havia servido café, sucos, salgadinhos e bolos.

Jack não tivera a oportunidade de conversar com tia Linda desde que haviam chegado. Fora até o quarto dela, mas ou ela não estava ou não atendera à porta. Ela passara a manhã inteira fechada com Nick.

Jack deu uma olhada no monitor mais próximo. Dizia "Jackson Swift, Ordem dos Guerreiros". Ele circulou a mesa, observando os nomes e as ordens, comprovando o que lhe havia sido informado na noite anterior. O subcomitê havia escolhido dois representantes de cada ordem. Os adivinhos eram representados por Blaise Highbourne de Trinity e Aaron Biyan de Staffordshire, da Inglaterra. Os feiticeiros eram Mercedes Foster de Trinity e Kip McKenzie, da Escócia. Os guerreiros, é claro, eram Jack e Ellen. Além de Linda, a outra encantadora era uma mulher negra alta, Akana Moon, que Jack conhecera na noite anterior.

Dois delegados para cada uma das cinco ordens, exceto a dos magos, que contava com quatro representantes: Leicester, D'Orsay, Ravenstock e Nick. Além de todos os membros do Conselho dos Magos, presentes como observadores. Membros das outras ordens também ha­viam sido convidados, mas nenhum se atrevera a com­parecer. As lembranças do Mercado ainda permaneciam entre os membros das chamadas "ordens servis".

"Magos", pensou Jack com mau humor. Exatamente o que menos precisamos. E só um no qual ele sabia que podia confiar.

Ellen pôs a mão no braço dele.

  • Eles continuam tendo apenas um voto, Jack.

Ele desejou que Hastings estivesse ali. Desejou saber onde Hastings estava. E Seph e Madison. Queria ser otimista, para o bem de Ellen, pelo menos. Ela ainda se culpava pelo ataque no parque.

  • Você acha que eles estão aqui em algum lugar? — perguntou Ellen, como se pudesse ler a mente dele. — O Seph e a Madison?
  • Quem sabe?

Jack encarara a perda de seus passageiros de modo bastante pessoal. Ele derrubaria o prédio, se achasse que poderia encontrá-los.

Um homem alto e calvo, vestindo um suéter cinza fol­gado e calças jeans pretas, emergiu de uma porta lateral e tomou o lugar dele à cabeceira da mesa. Jack estudou-o com interesse, sabendo que devia ser o infame Gregory Leicester. O diretor da antiga escola de Seph. O mago olhou em volta da mesa, sorrindo. Seus olhos se demo­raram em Linda. Ela ergueu a cabeça e enfrentou o olhar dele diretamente. Ele estremeceu um pouco ante o que quer que fosse que viu no rosto dela.

  • Se pudermos todos nos sentar, é melhor começarmos — disse Leicester. — Já estamos um pouco atrasados.

O baixo murmúrio de vozes cessou. Jack e Ellen se­guiram com relutância para suas cadeiras. Linda ignorou o que a tela exibia e sentou-se junto a Nick. Estava pálida e tinha sombras arroxeadas sob os olhos. Ainda assim, parecia séria e determinada, e bastante profissional num terno de riscas finas. Jack e Ellen se sentaram do outro lado de Nick, e Akana Moon sentou-se ao lado de Linda.

As cadeiras contra a parede se encheram de membros do Conselho dos Magos. Jack reconheceu alguns rostos familiares. Geoffrey Wylie, o treinador de Ellen no torneio e que havia tentado raptá-lo em Trinity no verão passado. Jessamine Longbranch, a maga-cirurgiã que implantou a pedra de Jack, salvando-lhe a vida a fim de sacrificá-lo no Jogo. E outros que ele não conhecia.

A mão de Ellen se aproximou sorrateiramente e cobriu a dele sob a mesa. Ela havia insistido em ir, embora tivesse bons motivos para desconfiar de magos. Passara a maior parte da vida sob o controle deles. Se ela era capaz de lidar com aquilo, ele também era. E, para ser sincero, ele estava feliz de ter a força de Ellen a seu lado.

Os participantes do Conselho das Ordens foram todos apresentados, e Leicester leu a pauta, que consistia apenas na discussão de duas diferentes propostas constitucionais: a que Hastings havia apresentado no Conselho dos Magos e a defendida por Leicester e D'Orsay. Leicester pediu a aprovação da pauta, e Nick ergueu a mão.

  • Primeiro, proponho que elejamos um presidente e um secretário — sugeriu o velho mago, a cabeça de urso montada em seu cajado reluzindo suavemente.

Haviam tentado tirar-lhe o cajado à entrada da sala de conferências. Ele dissera que então teria de se sentar no corredor, pois era um velho de 492 anos e precisava de seu apoio. O ex-aluno à porta não era páreo para ele, e Nick conservou o cajado.

Leicester deu de ombros. Ele havia assumido automati­camente o papel de presidente.

  • Talvez um dos nossos observadores do Conselho de Magos esteja disposto? — perguntou, olhando para os magos na galeria.
  • Proponho que o presidente seja alguém que não um mago — disse Nick rapidamente. — Acho que isso ajudaria a assegurar a alguns dos nossos participantes Anamagos que este é um processo justo.
  • Eu apoio a proposta — disse Aaron Biyan, o adivinho, sem esperar por um convite. Nick havia conversado com todos na noite anterior, preparando as intervenções.
  • Que proposta? — perguntou Leicester, parecendo confuso.
  • É uma proposta — explicou Nick — em várias partes.

Imediatamente, Jack sentiu uma pressão quase física vinda dos magos nos assentos dos espectadores. Os Weirs Anamagos olharam ao redor, nervosos. Os magos não estavam acostumados à democracia. Deixava-os ansiosos.

  • Uma proposta foi apresentada ao plenário — disse Leicester. — Haverá debate?
  • É uma boa idéia — disse Jeremy Ravenstock, um dos representantes dos magos. —Talvez isso nos deixe a todos mais confortáveis.

Ravenstock franziu o cenho para Leicester e sondou a galeria. Até então, notou Jack, os magos haviam sido responsáveis pela maior parte das intervenções.

Não houve mais debate. O Conselho das Ordens votou, e a proposta foi aprovada. Até os magos votaram a favor.

Leicester suspirou.

—  Alguma indicação ou voluntário para presidente?

Blaise Highbourne levantou-se, as pulseiras e colares de prata que eram a marca registrada dele cintilando sob a luz dos castiçais de parede.

  • Eu indico Linda Downey.
  • Uma encantadora? — Leicester arqueou uma sobran­celha. — Está falando sério?
    • Eu apoio a indicação — disse a encantadora Akana Moon, sem se levantar da cadeira. Parecia nervosa, e sua voz tremeu, mas ela falou mesmo assim.
      • Nós nem sabemos se a moça aceita exercer a função — disse Leicester. — Afinal, é pedir demais de uma...
    • Eu aceito — disse Linda. — Sob a condição de que as regras sejam bem entendidas. Prometo ser imparcial como presidente da reunião. Mas quero deixar claro que pretendo defender as questões nas quais tenho maior interesse.
      • É claro — disse Leicester, divertindo-se. — Todos a favor? — A indicação foi aprovada. — Está decidido então. A encantadora é a presidente.
    • Meu nome é Linda Downey — disse Linda, em voz clara. — Tome nota disso, dr. Leicester.

Leicester ergueu os olhos, surpreso, o sorriso desapare­cendo. Linda voltou-se para o resto dos participantes.

  • Algum voluntário para secretário? — Houve outra longa pausa durante a qual ninguém se ofereceu. Nenhum dos magos queria ser secretário, e nenhum dos represen­tantes Anamagos se atrevia a ser voluntário. — Jack, você é bom de digitação. Pode me ajudar?
  • Está bem.

Jack puxou a gaveta para fora, feliz de fazer algo em que tinha alguma habilidade.

  • Obrigada, Jack — disse Linda. — Agora vamos rever nossa pauta. Há alguma alteração nos itens? — Não havia nenhuma. — Bem, eu tenho algo a acrescentar. Antes de votarmos nas propostas de constituição que temos diante de nós, sugiro que discutamos a questão que conduziu à discussão de uma nova constituição: a agressão dos magos contra os Weirs Anamagos.

Houve um silêncio atônito. Então Claude D'Orsay se ergueu.

  • Não acho que isso seja construtivo, Linda Downey — disse ele enfaticamente. — Nosso tempo aqui é limitado e, afinal, nos reunimos aqui como pacificadores. Para que trazer à tona assuntos antigos que, com certeza, causarão ressentimentos?
  • Algumas dessas questões são bem novas — disse Linda com calma. — Algumas delas são absolutamente — Ela cuspiu a palavra. — Aqueles entre nós que não são estudantes de história estão condenados a repeti-la.

A pressão mágica vinda das laterais estava aumentando. Linda cambaleou um pouco, como se tivesse sofrido um golpe físico. Ela inclinou a cabeça e disse algo a Nick. Ele se levantou e pôs o braço em torno dela, firmando-a. O cajado dele se iluminou intensamente.

Após um instante, Linda conseguiu falar.

  • Se os observadores do Conselho não conseguem re­sistir à tentação de interferir no processo, nós teremos de esvaziar a sala.
  • Isso é uma piada — rosnou o mago Geoffrey Wylie de sua cadeira contra a parede.
  • Eu não lhe dei a palavra, sr. Wylie — disse Linda com frieza. — O senhor é um observador, e não um delegado neste processo. Fale de novo e será mandado embora. Pense de novo e será mandado embora.

Os Weirs Anamagos fitaram Linda com um misto de admiração e assombro. Jack desconfiava que os magos na sala já estavam arrependidos da escolha da encantadora como presidente.

Os observadores se aquietaram, ainda furiosos, mas a pressão se dissipou um pouco.

—  Há uma proposta de acréscimo desta questão à pauta? — indagou Linda, olhando para a mesa em torno.

—  Eu apresento a proposta — disse Akana Moon, que parecia ter encontrado a coragem, e voltou os olhos desa­fiantes em direção ao Conselho dos Magos.

—  Eu apoio — disse Jack.

Ah, bem, pensou ele. Talvez todos nós acabemos mortos, mas vamos enfrentar os caras até lá. Ele estava preocu­pado com a tia, porém. Ela quase parecia estar tentando provocar uma briga.

A proposta foi aprovada.

Gregory Leicester falou:

  • A fim de poupar tempo, sugiro que adiemos este esforço de descobrir a verdade até depois de termos dis­cutido as questões constitucionais.

—  Isso é uma proposta, dr. Leicester? — perguntou Linda.

Leicester espumou de irritação. Formulou a sugestão como proposta, apoiada por D'Orsay. Não foi aprovada.

—  Se quiser apresentar uma proposta, dr. Leicester, podemos também reservar tempo para uma discussão sobre os ataques de membros das outras ordens contra magos — sugeriu Linda afavelmente.

—  Isso levaria dois minutos — murmurou Jack a Ellen.

Leicester sacudiu a cabeça, tamborilando os dedos sobre o tampo da mesa.

  • A questão é a agressão de magos contra outros Weirs. — Linda olhou para a mesa em torno. — Existe alguém que tenha algo a declarar sobre esse assunto?

Jack se levantou.

  • Meu nome é Jackson Swift, guerreiro. Na verdade, eu deveria ser um mago, mas a dra. Longbranch aqui implantou fraudulentamente uma pedra de guerreiro em mim. — Ele apontou para Jessamine Longbranch, depois para Geoffrey Wylie. — O sr. Wylie tentou me raptar, para me impedir de participar do Jogo. E então a dra. Longbranch tentou me matar quando eu me recusei a jogar para ela.
  • Seu mestiço ingrato de sangue impuro! Você nem estaria vivo hoje se não fosse por mim — vociferou Longbranch, ajeitando a cabeleira negra com as unhas pintadas de vermelho. Pareceu que ela ia dizer mais, mas se conteve, lançando um olhar a Linda Downey.
  • Os guerreiros são criados para os torneios — disse D'Orsay com frieza. — Esse é o seu propósito, finalidade, razão de ser e meta. É um bom emprego de seus talentos naturais. Não sei qual é a razão de toda esta lamúria.
  • E precisamente por isso que precisamos ter este diálogo — disse Linda Downey. — Alguém mais?

Quase todos tinham uma história, e ganharam cada vez mais confiança para contá-las com o progredir da manhã. Jack estava espantado de ver como tia Linda influenciava o grupo sem parecer que o fazia. Incentivava mais deta­lhes aqui, fazia uma pergunta lá, rechaçava um protesto dos magos na sala.

"Ela já fez isso antes", pensou Jack. "É algo natural para ela". O grupo estava se aglutinando em um só corpo, em uma justa revolta contra ofensas comuns a todos. Um corpo disposto a tentar um novo começo.

Finalmente, Ellen Stephenson levantou-se e pigarreou.

—  Eu tenho algo a dizer — declarou, a mão deslizando para o flanco, tateando por uma arma que não estava lá.

  • Prossiga, Ellen — disse Linda.

Ellen ergueu o queixo, empertigou-se e encarou Geoffrey Wylie, que não parecia feliz com o rumo que a discussão estava tomando.

—  Meu nome é Ellen Stephenson, guerreira. Fui raptada da casa dos meus pais por magos quando eu era bebê, para que pudesse ser treinada para os torneios. Eles roubaram minha infância e me transformaram numa assassina. — Ela olhou para Jack, e ele assentiu com a cabeça, encorajando-a. — Quando eu me recusei a matar o meu amigo Jack, eles me atacaram no campo do torneio e tentaram me assassinar. — Ela olhou para D'Orsay.

  • Alguns de vocês sabem de tudo isso, pois estavam diretamente envolvidos — disse ela baixinho.

Ela se sentou. Os outros Weirs assentiram e sussur­raram entre eles.

  • Alguma pergunta para Ellen Stephenson? — indagou Linda.
  • Eu tenho uma pergunta — disse Claude D'Orsay.

—  Por que essa menina não contrata um terapeuta, em vez de desperdiçar o tempo do comitê se queixando a respeito de sua infância difícil?

Os participantes da Conferência protestaram em altos brados.

— Eu tenho uma história também — disse Linda, igno­rando D'Orsay. Ela olhou para a sala em torno, fazendo uma pausa até ter a atenção de todos. — Na verdade, há várias histórias que eu poderia contar, mas gostaria de falar a vocês sobre o meu filho.

 

Madison hesitou junto à orla do bosque, examinando o terreno da vinícola. Não havia ninguém por ali. Naturalmente, Leicester e os outros estavam reunidos na sala de conferências. Além disso, estava um dia frio, chuvoso e lúgubre. Um bom dia para ficar dentro de casa.

  • Está vendo? — sussurrou Seph. — Ela dá a volta em toda a clareira.

Ele estendeu a mão, então a retirou, como se estivesse com medo de tocar em alguma coisa.

  • Se você diz, eu acredito.
  • Sabe por quem você está procurando?

Ela confirmou com a cabeça.

  • O cara loiro do piquenique, com o cabelo penteado pra trás.
  • Ele vai estar em algum lugar tranqüilo, vigiando a barreira. Não se esqueça de que você não quer que ele apanhe você. Você quer uma descarga de energia. Não deixe ele pensar que pode pegar você sem uma descarga.

—  Já falamos sobre isso — resmungou Maddie.

Você se ofereceu pra fazer isso, ela recordou a si mesma. Mas agora ela só queria que tudo terminasse. Estava com medo de desapontar Seph e Jason. E mais todo mundo.

Seph agarrou o braço dela como se pensasse que ela poderia sair correndo antes que ele terminasse de falar. As sobrancelhas escuras dele estavam franzidas juntas, e os olhos mudavam sob a luz, de verde para azul e então para dourado. Entretanto, nem uma gota de poder saiu dos seus dedos. Ela jamais encontrara um bruxo com tanto controle.

Por outro lado, Seph McCauley não precisava de ne­nhuma magia para fazer com que ela se derretesse. Ela respirou fundo e tentou se concentrar no que ele estava dizendo.

  • Se ele apanhar você, lute como o diabo. Faça-o pensar que tem de usar o poder para impedir que você escape.
  • Ele provavelmente vai reconhecê-la do parque. Então você sabe qual é a sua história?
  • Você vai me matar de tanta falação ou o quê? — Os dentes dela batiam. — Estou congelando aqui.
  • Desculpe-me — Ele lhe soltou o braço, parecendo embaraçado. — Só não quero que nada aconteça com você, está bem?
  • Está bem.

Ela ia se virar, mas ele a puxou para si e beijou-a na testa.

  • Para dar sorte — disse ele.

Ela atravessou o pátio, esperando ser aquele tipo de garota cuja sorte aumentava com beijos. Entrou pela porta dos fundos, que estava destrancada, sacudindo o excesso de água do cabelo. Parou na cozinha deserta, cercada por restos do preparo da refeição. Examinou o aposento em busca de armas, tirou uma grande faca de trinchar da tábua de carne e manteve-a junto ao corpo.

Onde estaria Warren Barber? Será que ele precisaria ficar em algum lugar perto do muro? Ela rezou para que ele não estivesse na sala de conferências, onde a reunião ocorria.

Ela se moveu como um fantasma pelos aposentos do andar térreo, ao redor do grande salão. Nada do Barber. A respiração dela ficou mais forte e a pulsação se acelerou. O tempo estava passando. Ela decidiu tentar o jardim. Talvez ele não fosse esperto o bastante para se abrigar da chuva.

Assim que ela pisou no pátio de pedra, ouviu alguém falando. Cantarolando, como para uma criança pequena ou um animal de estimação. Ela andou na direção do som, seguindo um caminho de cascalho, entre sebes podadas de buxo e canteiros repletos de crisântemos de bordos denteados, através de um caramanchão entrelaçado com glicínias.

E lá estava Warren Barber, executando uma grotesca mímica de jardineiro, cuidando de seu muro mágico invi­sível. Fazendo pequenos ajustes e reparos, endireitando nós, retorcendo novos fios para acrescentar nos devidos lugares. "Ele deve ser poderoso", pensou Madison. Ainda estava chovendo, um chuvisco gelado, mas ele iluminava todo o canto do jardim. As roupas dele estavam secas — soltando vapor, na verdade. Estava usando algum tipo de feitiço para manter a umidade à distância.

Estava tão concentrado que ela já o havia quase alcan­çado quando ele ergueu os olhos e a notou.

  • Ora, ora — disse ele. — O que é isso?

Madison tentou parecer assustada e determinada ao mesmo tempo. O que não era difícil, já que era assim mes­mo que se sentia.

  • O que você fez com o Seph?

Barber olhou-a de cima a baixo e sorriu, revelando dentes tortos. Os olhos azuis eram tão pálidos que eram quase incolores, as pestanas invisíveis.

  • Eu me lembro de você. Você estava no rio com o McCauley.
  • Onde ele está? — indagou ela, a voz tremendo um pouco.
  • Como diabos você chegou aqui? — perguntou Barber.
  • .. eu vim no bote com ele.

—  Veja só — disse Barber, avançando na direção dela, as mãos estendidas. — É assim que funciona: seja boazinha comigo, e talvez eu conte a você onde ele está.

Madison mostrou a faca que trazia às costas.

—  Diga onde ele está e eu não uso isso.

Os olhos de Barber se arregalaram ante a visão da faca. Então ele sorriu.

—  Não é assim que você vai me conquistar, amorzinho.

Ele estendeu as mãos na direção dela e pronunciou um feitiço.

Seph e Jason se agachavam entre as árvores, os olhos fixos no muro mágico.

—  Espero que ela esteja bem — murmurou Jason, talvez pela terceira vez. — Quem sabe um de nós devia ter ido atrás dela. Sabe como é, o Barber é um desgraçado filho da...

—  Ela sabe o que está fazendo. — Seph olhou para o relógio. Quase onze horas. Madison tinha partido havia meia hora, e o muro ainda estava em pé. Com certeza ela levaria algum tempo até achar Barber e pôr o plano em prática. Mas e se ela encontrasse outra pessoa no caminho, ou várias outras pessoas?

  • O que pode estar demorando tanto? — Jason en­xugou a água da chuva do rosto. — E se ela não encontrar o Barber?
  • Se ela não encontrar, vai continuar procurando.

Seph verificou as horas de novo. Onze horas. Onde ela poderia estar? Talvez eles devessem ir atrás dela.

Voltou a olhar para a vinícola. Piscou e olhou de novo. A Teia Weir estava enfraquecendo, desbotando-se, dissolvendo-se em tufos de névoa que se rompiam e rodopiavam contra a construção. Por um momento, a teia pairou como um vapor sobre as pedras. Depois sumiu.

Seph e Jason sorriram um para o outro como idiotas.

—  Eu sabia que ela ia conseguir — disse Jason, con­tente.

Eles se levantaram e atravessaram o terreno correndo, chapinhando nas folhas molhadas. Abaixaram-se à en­trada que Madison havia usado.

Madison encontrou-os na cozinha, vibrando de alívio.

—  Ele está lá fora no jardim — avisou, apontando com uma grande faca, cortando o ar como uma cimitarra.

Barber estava caído de costas no caminho de cascalho, totalmente drenado, ensopado de suor e furioso. Ele es­taria soltando fumaça, se conseguisse reunir energia para tanto. Quando viu Seph e Jason, os olhos dele se arrega­laram de espanto e medo.

—  De volta do mundo dos mortos — disse Jason, sor­rindo. — Buuu!

—  Quanto tempo você acha que isso vai durar? — in­dagou Seph, olhando para Barber com indiferença.

Madison deu de ombros.

  • Você é o bruxo. Não faço idéia.

—  É melhor a gente garantir que ele fique quietinho — disse Seph.

Seph se ajoelhou junto a Barber, pôs as mãos sobre a clavícula dele e lançou o feitiço de imobilização sobre ele. Barber estremeceu, depois ficou imóvel.

Seph viu Madison encarando-o, os olhos azuis desta­cando-se sobre o rosto pálido.

—  O que você...?

—  Não se preocupe. Ele só vai dormir por um bom tempo.

Seph e Jason arrastaram o corpo inerte de Barber para os arbustos, onde era menos provável que o encontrassem num momento inoportuno.

Seph se virou para Madison.

  • Agora Jason e eu vamos nos tornar imperceptíveis, entrar no salão e ver o que está acontecendo. Tem um pequeno corredor que leva da copa até o salão. Fique escondida lá até que a gente vá buscar você.

Madison franziu a testa e passou os dedos no cabelo, que estava começando a secar em longas ondas.

  • Não gosto disso. Acho que a gente devia ficar junto.

Seph tocou-lhe o braço, tentando tranqüilizá-la.

  • Infelizmente, não tem jeito de pôr você lá dentro sem que os outros percebam. Por favor, Madison.

Ela acabou assentindo, a testa ainda franzida.

Bruce Hays e Kenyon King estavam postados à en­trada do grande salão. Ocasionalmente um dos outros ex-alunos entrava ou saía para buscar mais bebidas para os participantes ou entregar uma mensagem a Leicester. Em uma dessas vezes, os imperceptíveis Seph e Jason se esgueiraram pelas portas atrás deles e entraram na sala de conferências. Eles cruzaram toda a extensão da sala e ficaram em pé na grande lareira, da qual tinham uma boa visão do plenário.

Os representantes Weir estavam sentados em torno de uma mesa de carvalho polido. Os membros do Conselho dos Magos, em cadeiras na parte externa da sala, junto às paredes. Para a surpresa de Seph, Linda Downey estava à cabeceira da mesa, dirigindo a reunião. Ela parecia zangada, pálida e cansada.

  • Qual delas é a sua mãe?

A voz de Jason o assustou, surgindo do nada.

  • É aquela que está falando.

Era a primeira vez que Seph a via desde que descobrira que ela era sua mãe. Ele a observou, à procura de algo de si mesmo nela. Imaginou que se parecia mais com o pai, embora talvez algo nos olhos...

—  Ei — sussurrou Jason. — Ela está falando de você.

  • Eu tive um filho chamado Joseph Downey McCauley
    • estava dizendo Linda. — Leander Hastings era o pai dele.

Ela estava falando no pretérito.

E então Seph finalmente entendeu. Ela acha que estou morto. Por isso é que ela está tão zangada.

  • Escondi o meu filho para mantê-lo fora de perigo, para mantê-lo longe de magos que poderiam usá-lo como uma arma contra o pai dele. Abri mão dele para protegê-lo.

—  Ela fez uma pausa. — No ano passado, ele foi parar na escola particular de Gregory Leicester. O dr. Leicester o torturou por quase um ano.

  • McCauley era mago — protestou Leicester, também no pretérito. — O que quer que tenha acontecido, essa é uma questão entre magos.
  • Um ataque contra o meu filho é um ataque contra mim — disse Linda Downey. — Eu consegui resgatá-lo do Porto Seguro. Na semana passada, contudo, o dr. Leicester o raptou de novo.
  • Não seja ridícula! — bradou Leicester. — O menino se perdeu numa tempestade no lago. Não tive nada a ver com isso. É impossível, na verdade.

Linda ignorou-o.

  • O dr. Leicester fez isso para impedir que Leander Hastings viesse à Conferência.
  • Você não tem prova de que eu estava por trás disto — objetou Leicester.

Linda passou um pen drive para Jack.

  • Você poderia exibir essas imagens?

Jack acoplou-o à porta do computador. Pressionou al­gumas teclas e, em poucos minutos, uma imagem se materializou nas telas, substituindo a pauta. Era Seph, as mãos amarradas às costas. Seph na biblioteca.

  • O dr. Leicester enviou essas fotografias ao Hastings. Foram tiradas aqui na vinícola. Se quiserem, posso lhes mostrar o local exato.

Leicester se recostou na cadeira e pôs as mãos espal­madas sobre a mesa.

  • Não entendo qual é o propósito disto — disse ele. — Afinal, eu não matei o rapaz. Foi o Hastings que o matou.

Ao dizer aquelas palavras, ele confirmava tudo. Mais uma vez, a sala ficou em silêncio. Jack estava pálido, as articulações dos dedos brancas nos pontos em que ele segurava os braços da cadeira. Ellen enxugou lágrimas do rosto e olhou furiosa para Leicester. Blaise e Mercedes fitavam a mesa.

  • Qual é o meu propósito? — Havia manchas de cor nas faces de Linda, e o dourado voltava a seus olhos. — Nós vamos analisar duas possíveis constituições Weir para substituir a que foi revogada na Ravina do Corvo no ano passado. Uma delas praticamente ressuscita o velho sistema. A outra introduz uma nova ordem. Foi dito a vocês que o sistema atual não precisa ser consertado.

Quero ter certeza de que todos os representantes das or­dens se lembram da nossa história, e do preço que temos pagado por todos esses anos de dominação dos magos. Também quero que eles entendam quem exatamente são essas pessoas.

  • Estou gostando cada vez mais da sua mãe — disse Jason.

Seph apenas concordou com um gesto de cabeça, sem dizer nada.

Linda retornou à pauta.

  • Agora daremos aos defensores de cada uma das propostas de constituição dez minutos para apresentar os méritos e a lógica de suas constituições. Dr. Leicester, sr. D'Orsay?

Ainda parecendo um pouco perturbado, D'Orsay se levantou e se dirigiu aos representantes. A essência do argumento dele era que, apesar de algumas falhas, a velha hierarquia era um sistema bom, que atendia às necessidades de todos. O papel das várias ordens era claro e compatível com os talentos de cada um. As Leis de Combate haviam criado um tipo de Pax Romana que durara séculos, mantendo o derramamento de sangue e os conflitos ao mínimo. Embora tivesse havido alguns excessos lamentáveis aqui e ali, no todo os magos haviam sido governantes benevolentes.

No final, Leicester propôs que a nova constituição fosse aceita. D'Orsay apoiou-a. Foi levada à votação e comple­tamente derrotada, por quatro a zero, com os magos se abstendo por estarem divididos no voto, dois a dois.

Jeremy Ravenstock apresentou a segunda proposta de constituição, já que era o único presente que a apoiara no Conselho dos Magos. Ele era um orador franco e brusco, nada poético. Nick disse algumas palavras em apoio também, e então Linda assumiu.

Ela olhou para a mesa ao redor, nos olhos de cada um dos participantes.

— Eu sei que isto tem sido difícil. Todos vocês assu­miram um grande risco ao concordar em participar. O fato de estarem aqui prova que sabem o que está em jogo. Compreendo que vocês não estão acostumados a dizer não aos magos. Mas quero que pensem em como eram as nossas vidas sob a velha hierarquia. Quero que pensem em tudo o que ouviram aqui esta manhã. Esta é a nossa oportunidade de garantir que será diferente para os nossos... filhos. — A voz dela falhou. — Que vergonha para nós se a desperdiçarmos!

Seph fitou a mãe. Ela era uma mulher pequena, e não era maga, mas mantinha cativa toda a Conferência das Ordens, tanto os magos quanto os Weirs Anamagos. De alguma maneira, ela fazia a liberdade parecer possível para os Weirs Anamagos, que haviam sido oprimidos por anos.

A constituição Hastings-Downey foi aprovada pelo Con­selho das Ordens, de novo por uma votação de quatro a zero.

Leicester fez um gesto, e Bruce Hays deixou a sala.

Seph olhou para as janelas da galeria acima, tentando imaginar que horas eram. Provavelmente não era ainda meio-dia, mas a luz que entrava pelas janelas dimi­nuíra, e a chuva intermitente havia se transformado em tempestade.

Entretanto, Linda não havia terminado. Ela olhou sobre as cabeças daqueles à mesa e falou aos representantes do Conselho dos Magos alinhados contra a parede.

  • O dr. Leicester alega que o assassinato do meu filho é uma questão entre magos. Muito bem. As Leis de Combate há muito tempo proíbem a guerra entre os magos. Se o dr. Leicester testemunhou o assassinato do meu filho pelas mãos do Hastings, então o que ele fez a esse respeito? Onde está o Hastings? Hastings é um colega de vocês, um membro do Conselho dos Magos. Talvez se deva permitir que ele fale em defesa própria.

Os magos na galeria se remexeram. Murmúrios cor­reram entre eles como vento atravessando o capim alto.

  • Onde está o Hastings? — indagou Longbranch. — Estou surpresa que ele tenha perdido este evento, já que foi um de seus arquitetos.
  • Estou surpreso que você se permita ser dirigida e interrogada por uma encantadora — disse Leicester com acidez. — Este é um negócio entre magos, como falei.
  • Mas o Hastings é um membro do Conselho dos Magos — retrucou Ravenstock. — E merece tanta pro­teção das regras quanto o resto de nós.
  • Leander Hastings é um assassino, um maquinador e um traidor de sua gente — disse Adam Sedgwick.
  • Como qualquer outro mago — resmungou Jason.

Seph lembrou que Sedgwick era um aliado de Leicester, que o havia apoiado na reunião na Lendas. Era um homem alto de aparência aristocrática, provavelmente o mago mais jovem no Conselho.

  • Ele tem encorajado essa rebelião das ordens servis trabalhando como porta-voz e instigador — continuou Sedgwick. — Acham que eles teriam tido sucesso a esse ponto sozinhos, sem o apoio de magos?
  • Então onde ele está? — perguntou Geoffrey Wylie, olhando ao redor num gesto incisivo. — Se isto é uma maquinação dele, cadê o maquinador?
  • Se este é o triunfo dele, então por que ele não está aqui para saboreá-lo? — acrescentou Ravenstock, empolgando-se. — Como membro do Conselho ou participante, ele deveria estar aqui.
  • Talvez devêssemos realizar uma busca na área — su­geriu Linda. — Talvez o Conselho dos Magos gostasse de perguntar ao dr. Leicester por que ele tem recrutado, tortu­rado e escravizado mais de uma dúzia de jovens magos na escola que ele chama de Porto Seguro. Talvez o Conselho se interesse em saber o que o Leicester e o D'Orsay planejam fazer com esse tipo de poder. Vocês realmente acreditam que ele planeja utilizá-lo contra encantadores, guerreiros, feiticeiros e adivinhos?

O baixo zumbido vindo das laterais cresceu até se tornar um rumor. Seph estremeceu.

  • Vou contar a eles onde o Hastings está — disse ele.

Jason segurou-lhe o braço.

  • Alguma coisa vai acontecer. Deixe primeiro eles mos­trarem as cartas que têm na mão.

Bruce Hays retornou e entregou a Gregory Leicester um rolo de pergaminho. Leicester pigarreou.

  • Discutiremos essas questões num instante. Mas, antes de nos desviarmos do assunto, por que não termi­namos o que começamos? Temos uma nova constituição para assinar.
  • Isso não faz sentido — disse Jason. — Ele não pode estar ansioso para assinar a nova constituição.

Em resposta, Seph ergueu o olhar para a galeria. Sem que os demais participantes da Conferência percebessem, os ex-alunos estavam se alinhando ao longo do corrimão, olhando para baixo. Todos menos Warren Barber, que jazia imóvel no jardim.

Leicester falava de novo.

  • Precisamos que um representante de cada ordem assine. Vocês podem decidir entre vocês quem terá essa honra. — Ele fez uma pausa. — Vamos começar pela Ordem dos Adivinhos.

Blaise Highbourne e Aaron Biyan estavam sentados juntos numa das laterais da mesa. Hays levou o per­gaminho até eles e colocou-o diante dos dois. Biyan apanhou a caneta, mas Blaise estava lendo. Ele pôs o dedo na página, releu uma passagem.

Seph, que estava observando o rosto dele, viu algo mudar. Blaise olhou para Leicester.

  • Este não é o documento no qual votamos.

Leicester deu de ombros.

  • O documento é diferente daquele que discutimos previamente. — A voz dele endureceu. — Mas vocês vão assiná-lo mesmo assim.

Jeremy Ravenstock se levantou.

  • Nós já escolhemos uma constituição — disse ele friamente. — Não vamos assinar nenhuma outra.

Leicester olhou para os ex-alunos na galeria acima, depois novamente para Ravenstock. Ele estendeu a mão, e um raio de chamas azuis irrompeu-lhe das pontas dos dedos. Por um momento, Ravenstock era uma silhueta, girando com a força do golpe, delineado em chamas. E, no momento seguinte, ele estava caído imóvel ao chão, o piso de pedra chamuscado sob seu corpo. Um tufo de fumaça subiu em espiral, e o ar se encheu com o odor de carne queimada. Houve um silêncio atônito.

  • Preciso de apenas um mago — disse Leicester. — E eu vou assinar. Todos os demais são dispensáveis. O nosso experimento sobre governo representativo chega à sua conclusão.

A um gesto de D'Orsay, todas as portas do salão se fecharam e se trancaram.

Vários membros do Conselho se puseram em pé.

  • O que pensa que está fazendo? — indagou Wylie, furioso.
  • — Absorvendo a força dos ex-alunos na galeria, Leicester lançou um feitiço de imobilização que caiu sobre todos na sala, paralisando-os e pregando-os aos assentos. As exceções eram Claude D'Orsay, Adam Sedgwick e uma mulher que Seph não conhecia, que haviam erguido es­cudos antes de o feitiço ser lançado. Além, é claro, de Seph e Jason, que recuaram para o fundo da lareira.

D'Orsay tomou o lugar dele ao lado de Leicester. Sedgwick e a maga se juntaram a eles, sorrindo.

  • Quem é a mulher junto do Sedgwick? — indagou Seph a Jason.
  • Nora Whitehead. Não é flor que se cheire — res­pondeu Jason.

D'Orsay falou:

  • Estimados colegas, membros do Conselho dos Magos, eu gostaria de agradecer a todos vocês por comparecerem a esta pequena reunião. Isso tornou a nossa tarefa bem mais fácil.

Ele sorriu.

  • Vocês pensaram realmente que eu me empenharia tanto assim para satisfazer à classe dos servos? — Ele balançou a cabeça. — Foi a desculpa perfeita para reunir os membros mais poderosos da Ordem dos Magos num único lugar. Nós, magos, não podemos mais nos dar ao luxo de debater interminavelmente e lutar entre nós. Entendam, nós nos tornamos fracos com o passar dos anos. Sem garra. Que outra explicação existe para essa rebelião das subordens? Ela deveria ter sido sufocada de imediato e sem piedade. Acreditamos que é hora de nos unirmos sob um pacto novo e mais simples, com regras de sucessão claras.

Leicester desenrolou o pergaminho, alisou-o contra a superfície de nogueira da tribuna, pigarreou e começou a ler para a audiência cativa.

Estava tudo lá. A restauração da hierarquia das ordens. A codificação do status subserviente daquilo que Leicester chamava de as ordens inferiores. A abolição do Santuário. A implementação de um programa de procriação de guer­reiros, com a futura retomada dos torneios.

Entretanto, sob o novo regime, os torneios seriam man­tidos em nome da tradição, apenas para fins de entreteni­mento. O papel que os torneios exerciam na distribuição de poder não seria mais necessário. Gregory Leicester e Claude D'Orsay seriam nomeados mestres de ordem vita­lícios, com controle sobre os artefatos mágicos de ambas as casas de magos, e seus cargos seriam transmitidos por descendência linear para os filhos do sexo masculino. Os ex-alunos formariam o núcleo de uma força disciplinar ligada a Leicester e D'Orsay. Eles julgariam quaisquer disputas entre os magos e administrariam punições aos outros magos como achassem apropriado.

Quando Leicester terminou de ler, olhou para a sala em torno.

  • Alguma pergunta?

Um dos magos do Conselho, um homem mais velho vestindo um casaco bordado com rosas vermelhas e que Seph não conhecia, falou:

  • Sim, eu tenho uma pergunta. Vocês dois perderam a cabeça?

D'Orsay inclinou a cabeça para Leicester, e este in­cinerou o velho ali mesmo. Não houve mais nenhuma pergunta.

  • Então — disse Leicester. — Vamos prosseguir com as assinaturas. — Ele dirigiu a atenção aos adivinhos, Aaron Bryan e Blaise Highbourne. — Sr... Biyan, não é? Vejo que já está com a caneta na mão. Sr. Hays?

Bruce Hays empurrou o pergaminho para a frente dele.

Bryan deixou a caneta cair na mesa e sacudiu a cabeça com teimosia, olhando para os outros à mesa em busca de apoio. Hays agarrou-lhe o ombro, atingindo-o com seu poder, através da mão. O adivinho arquejou de dor, o sangue deixando-lhe o rosto. Hays se inclinou e falou-lhe baixinho ao ouvido. Levou apenas alguns minutos. O adivinho assinou.

Leicester sorriu.

  • Isso não foi difícil, e não tem de ser doloroso. De­pende de vocês.

Eles passaram para a Ordem dos Feiticeiros, e Hays focalizou seus poderes de persuasão em Kip McKenzie, em vez de Mercedes. Trinity havia sido um foco de rebelião por um longo tempo. Leicester e D'Orsay aparentemente ti­nham esperanças de que os outros representantes fossem mais fáceis de intimidar.

Kip não agüentou por muito mais tempo do que Aaron Bryan. Qualquer um podia ver que era uma causa perdida. A ilusão de poder que todos haviam saboreado por tão pouco tempo se dissipava como a suave brisa do lago. Eram somente os magos, mais uma vez, criando todas as regras, manipulando as pessoas.

Hays levou o pergaminho para Akana Moon. Mas Leicester sacudiu a cabeça. Ele caminhou ao longo da mesa até estar em pé atrás de Linda Downey. Pousou as mãos de leve nos ombros dela, como quem toma posse formalmente.

  • Talvez Linda Downey queira ter a honra — sugeriu Leicester, enfatizando o nome. — Já que ela teve um papel tão importante nas discussões de hoje.

Linda fitou direto em frente, uma máscara de indife­rença no rosto.

"Ela vai preferir morrer a assinar o documento do Leicester", pensou Seph. Ele olhou para a sala em volta. Todas as portas estavam magicamente seladas. Não havia maneira de pôr o plano deles em execução.

—  Temos de alcançar a Madison — disse ele a Jason.

  • Não temos como atravessar paredes.

Seph espiou pela chaminé e sacudiu a cabeça. Nem mesmo o corpo magro de Jason passaria por ali.

À mesa, Akana Moon olhou de Leicester para Linda. Ela puxou o pergaminho para si.

—  Eu assino — disse ela rapidamente.

E o fez.

Só restavam Jack e Ellen, os dois guerreiros, ambos da facção de Trinity.

  • Quem vai ser? — perguntou Hays, sorrindo.

Ellen e Jack olharam um para o outro, como se estabe­lecessem um pacto de resistência entre eles.

Hays olhou de Jack para Ellen, em dúvida. Após um momento de indecisão, escolheu Ellen e pôs as mãos nos ombros dela. Uma energia crepitante penetrou-a. Ela ficou rígida, arfando um pouco, os olhos arregalados, mas sem dizer nada. Ele se inclinou e sussurrou no ouvido dela. Jack, observando, parecia prestes a saltar da própria pele, mas Ellen sacudiu teimosamente a cabeça.

  • Ellen — disse Linda em tom apático. — Por favor, não faz diferença. Você pode muito bem assinar.

Ellen balançou a cabeça, e Hays atacou-a novamente com as chamas. Todo o sangue foi drenado do rosto de Ellen. Ela mordeu o lábio até sangrar, ainda sem dizer nada. Aquilo pareceu durar uma eternidade. Então ele a soltou, e a cabeça dela caiu para a frente, o suor pingando-lhe do rosto sobre a mesa. Jack deu um longo suspiro.

Hays olhou para Leicester, dando de ombros sem saber o que fazer.

  • Tenho receio de que... se eu fizer mais, ela possa morrer.

Leicester suspirou.

  • Você está lidando com isso de maneira totalmente errada. Dê a caneta ao rapaz. Mate a garota se ele não assinar.

Hays pareceu intrigado com a idéia, mas não teve de pensar muito, pois Jack rabiscou o nome dele no docu­mento e jogou-o de volta para Hays. Ellen olhou furiosa para ele, porém ele não a encarou. E assim estava feito.

Àquela altura, Seph e Jason haviam atravessado o salão, testando todas as portas, só para ter certeza. Todas trancadas. Leicester e D'Orsay queriam assegurar-se de que ninguém escaparia da festa mais cedo. Mas, quando Seph olhou para os ex-alunos na galeria acima, percebeu que alguns deles estavam faltando.

Depois que a constituição foi "aprovada" houve uma breve pausa enquanto Leicester examinou-a e assinou-a com um floreio em nome dos magos.

  • Agora, tudo o que resta é levar esta nova constituição para a Ravina do Corvo e consagrá-la — disse Leicester. — Mas primeiro temos uma questão de disciplina a resolver.

 

                     Justiça de Magos

O tempo passava lentamente no quarto no porão atrás da câmara de fermentação. Não havia um jeito claro de marcar a sua passagem, ne­nhuma evidência relacionada ao clima ou aos eventos no mundo lá fora. Martin trouxera o café da manhã a Hastings no dia anterior, mas não aparecera desde então. Por isso, Jason não havia conseguido voltar para falar com ele.

Hastings não estava com fome, de qualquer maneira. Dormia cada vez mais, para o corpo conservar as energias, resistir à drenagem do poder de sua pedra.

Era algo a que não estava acostumado, deixar-se apa­nhar em armadilhas. Ele havia passado uma vida inteira evitando-as. Contudo, Seph estava a salvo, fora de perigo, pelo menos por enquanto. Àquela altura, ele deveria estar em Trinity. Hastings se consolava com isso. A linhagem dele era antiga e continuaria por intermédio de Seph. Durante mais de cem anos de risco e intriga, aquilo nunca parecera importante. Até aquele momento.

Um leve som à porta alertou-o da chegada de alguém. O ferrolho deslizou, e seus olhos foram ofuscados quando o interruptor foi ligado e a lâmpada se acendeu. Alguém se aproximou e ficou em pé junto dele, iluminado por trás pela lâmpada.

  • Hastings.

—  Martin? Que surpresa agradável!

Aquelas poucas palavras pareceram consumir-lhe todo o fôlego. Martin se ajoelhou ao lado dele.

  • Eles já vêm buscar o senhor. Só temos alguns minutos.
  • Eles vêm me buscar? — Hastings tentou demonstrar uma fagulha de interesse. — Para quê?
  • Para matar o senhor. Já tem dois magos mortos. — Martin fitou o chão. — E acho que vamos matar mais algumas pessoas depois do senhor.
  • Quem morreu?
  • E Hadrian Brennan, do Conselho dos Magos.
  • Do Conselho dos Magos? — A mente vagarosa de Hastings tentou encaixar aquilo em algum esquema. — Por que vocês os estão atacando? O que está acontecendo?

Os olhos de Martin se voltaram para longe.

  • O dr. Leicester escreveu uma nova constituição. Todos acabaram de assinar. Ele e o D'Orsay são reis vitalícios. Algo assim.

—  Entendo. Então, Martin, por que você está aqui?

  • Eu queria dizer que sinto muito por tudo o que aconteceu.

Hastings suspirou.

—  Se veio fazer uma confissão, não vejo como eu possa lhe dar a absolvição.

Mas Martin foi em frente.

—  Eu entendo por que o senhor matou o Joseph. Foi um ato de coragem. O dr. Leicester estava... estava torturando ele. Leicester é um covarde. Tinha medo do Joseph. Até... até com a nossa ajuda. É por isso que manteve ele dopado com Antiweir. E ele tem medo do senhor. É por isso que me mandou colocar o torque.

E então, inesperadamente, ele sorriu. Os olhos casta­nhos se iluminaram atrás dos óculos.

—  Somente o mago que coloca a gefyllan de sefa pode retirá-la — disse ele, estendendo as mãos para a coleira.

Hastings ergueu uma mão.

  • Tem certeza de que quer fazer isso? Provavelmente não vai fazer muita diferença no fim.

—  Faz pra mim.

—  Leicester vai matar você.

—  Eu realmente não ligo.

Mais uma vez, Martin estendeu as mãos na direção de Hastings, segurou a coleira e mexeu no fecho. O torque caiu, retinindo no piso de pedra. Estava preto como fuligem, manchado e irreconhecível como a coleira ornada de pedras preciosas que Martin colocara nele três dias antes.

O efeito imediato foi tudo menos agradável. O pouco poder que sobrara em Hastings retornou com força à pedra, protegendo a fonte acima de tudo o mais. Por um momento, Hastings achou que ia vomitar em cima de Martin Hall. Ele se recostou contra a parede, respirando fundo.

  • Não é que eu seja ingrato, mas é uma pena que você não tenha feito isso um ou dois dias antes.

Martin apanhou a coleira.

  • Agora vou reverter o feitiço. Mas receio que leve algum tempo pra restaurar o poder da pedra por com­pleto. E...

Martin olhou em direção à porta. Hastings ouviu também. Alguém se aproximando.

Martin afivelou de novo a coleira em torno do pescoço de Hastings, com pressa. Hastings não pôde fazer nada além de se submeter. Teria preferido morrer livre. Martin murmurou o contra-feitiço enquanto a porta se abria.

Leicester havia mandado apenas três dos ex-alunos para buscá-lo, um reflexo dos poderes supostamente re­duzidos de Hastings e da necessidade de vigiar aqueles reunidos no salão. O líder, Bruce Hays, parou ao ver Martin.

  • O que você está fazendo aqui?
  • Eu pedi ao sr. Hastings para nos perdoar por tudo o que fizemos — disse Martin, sem hesitação. — Queria que ele entendesse que não tivemos escolha.
  • Oh, por favor. — Hays revirou os olhos. — Não en­tende quão poderosos vamos ser sob a nova constituição? Vamos ser aqueles que aplicam as punições. Vamos ter todos os brinquedos à nossa disposição. Acesso ilimitado às ordens servis.

Hastings podia sentir o poder retornando, um leve go­tejar, como um bom conhaque descendo-lhe até as entra­nhas. Muito devagar.

Hays soltou as correntes da parede. Eles o puseram em pé e o empurraram em direção à porta. Martin Hall seguia atrás. Eles quase o carregaram escada acima, para fora do porão, e para o ar mais fresco lá em cima.

Hastings olhou rapidamente ao redor quando entraram no salão. Os representantes Weir estavam sentados em torno de uma grande mesa no centro da sala, com os corpos presos aos seus lugares. Cerca de 30 membros do Conselho dos Magos estavam alinhados junto à parede, similarmente incapacitados.

Linda estava sentada à cabeceira da mesa. Leicester estava em pé logo atrás dela, as mãos pousadas sobre seus ombros. Linda exibia no rosto sua máscara de encan­tadora, a expressão cuidadosamente vazia que podia signi­ficar absolutamente qualquer coisa. Hastings podia ver que isso frustrava Leicester, e conteve um sorriso.

Mas então Linda viu Hastings, e a máscara escorregou um pouco. A expressão dela era complexa: surpresa, medo, uma pergunta. "Ela acha que eu matei o nosso filho", recordou-se Hastings. E deu-se conta de que ela poderia nunca descobrir a verdade.

A extremidade oposta da sala era dominada por uma enorme lareira. Uma espécie de cepo — como aqueles usados antigamente para decapitação, só que de pedra — fora colocado logo em frente a ela. Os jovens magos de Leicester se agitavam a seu redor. Aquele, então, seria o destino deles.

Hays posicionou Hastings logo atrás do cepo. Os ex-alunos dispuseram-se em dois arcos em cada lado da lareira com a pedra no centro, voltados para a mesa de conferência. Os magos na faixa externa do salão e os outros Weirs à mesa se remexiam e sussurravam como uma classe ao fim da aula.

Leicester encarou o público.

— Sob a nova constituição, a punição para atividades desleais será rápida e direta, como era nos séculos pas­sados. Isso será bom para todos nós. Por anos, um mago traidor que se intitula Dragão tem interferido na adminis­tração das Leis de Combate e incitado as ordens servis à rebelião contra os seus senhores e mestres legítimos. O fato de ele ter sobrevivido por tanto tempo comprova o nosso fracasso em organizar sistemas de punição. Por meio dos nossos esforços, capturamos o Dragão e desa­tivamos o dom que ele desonrou e usou impropriamente. Vamos agora administrar a justiça diante dos olhos de vocês.

Um rumor de excitação e horror passou pelo público: muda excitação dos magos na periferia e horror ao redor da mesa.

Dois dos ex-alunos se adiantaram, carregando um manto de veludo decorado que colocaram sobre os ombros de Leicester. Dois mais vieram à frente trazendo um longo estojo ornado de pedras preciosas. Eles se ajoelharam diante de Leicester e abriram o estojo. Ele retirou de dentro um cajado elaborado, que segurou no alto com as duas mãos.

  • Leander Hastings, conhecido como o Dragão, você foi condenado por traição e por incitar a rebelião entre as ordens servis. Tem algo a dizer antes da sentença?

Hastings arqueou as sobrancelhas.

  • Eu fui condenado? Acho que perdi esse julgamento. Por qual tribunal?

—  Você é um traidor, Hastings. Não merece um julga­mento formal.

Hastings olhou-o de cima a baixo.

—  Você sempre gostou de espetáculo, Gregory. Vá em frente, então.

  • Por esses crimes, você está sentenciado à morte. Sentença a ser executada imediatamente.
  • Leicester! Pode me conceder a palavra? — perguntou Linda.

Hastings praguejou baixinho.

  • Linda, não. Deixe pra lá.

Linda ignorou-o.

—  Tenho algo a dizer em relação aos crimes deste homem.

—  Acabe com isso de uma vez, está bem? — disse Hastings a Leicester. — Você não tem outros assassinatos a cometer ainda hoje à noite?

Hastings olhou para os magos contra a parede, e eles se remexeram, nervosos.

Leicester sorriu.

  • Não, Hastings, acho que ela merece ser ouvida. Afi­nal, você assassinou o filho dela. — Ele se voltou para onde Linda estava sentada, colocou-a em pé com um

puxão e levou-a para a frente da sala, virando-a para o acusado. — Fale!

Mas Linda não falou a Hastings. Em vez disso, virou-se para dirigir-se à assembléia.

  • Leicester e D'Orsay merecem elogios. Deus sabe que eles são eficientes. Arriscando a vida, eles seqüestraram um adolescente para que pudessem atrair o Dragão aqui para Second Sister. Capturaram o notório Leander Hastings, trancaram-no numa adega e, em poucas horas, condenaram-no por um crime capital. Agora eles se propõem a executá-lo sumariamente. Quais são os crimes do Dragão? Ele é conhecido pelo hábito de fazer perguntas difíceis. Ele é um mestre espião que revira pedras e expõe o que há por baixo delas. Ele revela segredos. Algumas vezes, seus seguidores roubaram objetos mágicos e explodiram coisas. Mas me parece que o maior crime do Dragão tem sido o de revelar a verdade por trás da hierarquia das ordens.

Seria possível ouvir o bater das asas de uma borboleta no salão. O murmúrio da neve sendo peneirada pelos galhos das árvores.

D'Orsay sacudiu a cabeça como se não pudesse acre­ditar no que estava ouvindo.

Linda prosseguiu.

  • A tirania é a forma mais eficiente de governo. Mas eu diria que um julgamento formal tem seus méritos. Que há uma diferença entre eficiência e justiça. Porque Leander Hastings não é o Dragão. Eu sou.

Assim que ela o disse, Seph soube que era verdade. Pela maneira elegante pela qual ela havia exposto Leicester e D'Orsay. Pelo olhar no rosto de Leander Hastings. Pelos tantos mistérios finalmente explicados.

A solução para um quebra-cabeça parece óbvia, uma vez que se saiba qual é.

Jason deu-lhe uma cotovelada.

  • Então, Seph. Parece que você é o filho do Dragão, afinal — disse ele, com ironia.

Leicester e D'Orsay fitavam Linda como se nunca a ti­vessem visto antes. E como se nunca fossem subestimá-la outra vez.

  • Então — disse Leicester, tentando recobrar o equi­líbrio —, temos aqui o cérebro e o corpo da rebelião. Estamos muito gratos por ter falado, srta. Downey, a tempo de impedir um sério erro da justiça. Parece que duas execuções são necessárias, em vez de uma.
  • Ora, vamos, Gregory — disse D'Orsay, afobado. — Certamente, não. Tanto desperdício, quero dizer, uma encantadora? Com certeza ela pode ser reabilitada.
  • Temos de fazer alguma coisa — murmurou Seph. — Mesmo que não dê pra fazer o que a gente havia planejado.
  • Vamos nos dividir e tomar os nossos lugares — sus­surrou Jason. — Vou subir até a galeria.

Seph se escondeu na recâmara adjacente à copa. Ele se virou e bateu de leve à porta protegida por feitiços, tor­cendo para ser ouvido por Madison, mas não por Leicester ou D'Orsay.

  • Madison!

Nenhuma resposta. Seph voltou-se para o salão e espiou do seu esconderijo junto à lareira.

Leicester havia vencido, pois os pais de Seph estavam sendo escoltados para a frente da sala por um grupo de nervosos ex-alunos, enquanto o diretor aguardava em pé com o cajado. Parecia ser o mesmo que ele usara naquela noite na capela ao ar livre, quando tentara recrutar Seph. Aquilo parecia ter ocorrido uma década atrás.

  • Quem sabe, só desta vez, possamos abdicar do "pri­meiro as damas" — disse Leicester, sorrindo. — Assim você vai poder assistir à execução do homem que assas­sinou o seu filho.

Eles forçaram Hastings a se ajoelhar. Leicester segurou o cajado com ambas as mãos, erguendo-o bem alto.

Então Martin Hall disse:

  • Olhem!

Os olhos de Martin estavam voltados para algo sobre o ombro de Leicester. Este se virou e sentiu a agitação de ar atrás dele se aglutinar rapidamente em uma pre­sença aterradora, que se estendeu do piso até quase o teto do grande salão. Chamas se espalharam em todas as direções, contorceram-se contra o teto e lamberam o piso de pedra. Chuvas de faíscas cascatearam sobre a assembléia e explodiram nas galerias. A imagem mudava continuamente de formato, mas era tão brilhante que era impossível se olhar para ela por muito tempo. Embora fosse o meio do dia, a luz vinda das janelas nas galerias pa­recia ter sido apagada. A sala era iluminada apenas pelo Dragão, cujas asas cintilantes iam de parede a parede.

Os ex-alunos recuaram, deixando os prisioneiros so­zinhos junto ao cepo. Hastings levantou-se e encarou o dragão, empurrando Linda para trás de si. Ele tinha o cenho franzido, como se estivesse intrigado, mas não parecia especialmente assustado.

Leicester olhou fixamente para a imagem diante dele, o rosto pálido por causa do brilho. Seph sentiu a mente do diretor procurando, tentando descobrir e destruir o mago por trás da imagem, mas não encontrando nada, nenhum traço de magia, nenhuma pedra, nenhuma carne ou osso na qual mirar.

Jason Haley, o manipulador da marionete, estava escon­dido a salvo na galeria lá em cima.

A voz do dragão reverberou pelo salão.

  • Quem se atreve a fraudar a constituição consagrada na Ravina do Corvo no último Solstício de Verão?

Os ex-alunos estremeceram e resmungaram, recuando ainda mais.

  • Bicho de estimação interessante esse seu, Hastings — disse Leicester. — Ele tem um nome?

Hastings olhou do dragão para Leicester e sacudiu a cabeça.

  • Não é meu.
  • É preciso muito pouco poder pra conjurar uma ilusão. Aparentemente não arrancamos tudo de você ainda. Vejamos se ele desaparece quando você estiver morto. — Ele se voltou aos ex-alunos. — É apenas um artifício. Não pode nos ferir. Prossigam.

Os ex-alunos avançaram arrastando os pés, sem entu­siasmo.

Agora era hora de dar dentes ao dragão. Seph desativou o feitiço de imperceptibilidade e recuou para o escon­derijo parcial na copa. Ele se concentrou em Leicester, recolheu o poder de todas as suas extremidades nos braços e dedos e usou de todo o seu poder para fazer o dragão lançar chamas. As chamas chocaram-se contra Leicester, correram em riachos furiosos sobre sua pele, carbonizaram-lhe as roupas elegantes e queimaram o piso em torno dele antes de serem absorvidas para dentro da cabeça do cajado, deixando Leicester ainda em pé, atônito, mas ileso. Conectado como estava com os ex-alunos, ele era simplesmente forte demais.

Seph havia causado impressão, mesmo assim. No que dizia respeito aos ex-alunos, o "artifício" inofensivo de Leicester acabara de cuspir fogo de um lado a outro do salão. Aos empurrões, eles fugiram em direção ao fundo da sala.

Se o fogo mágico não causou nenhum estrago, talvez algo mais o fizesse. Um enorme candelabro pendia do teto à frente da sala. Seph incendiou o cabo, mirando o calor nos elos de metal até que ficassem brancos. O cabo finalmente se partiu, e o candelabro se espatifou no chão. Leicester conseguiu se desviar por pouco.

As chamas nos castiçais junto às paredes se acen­deram e correram pelo teto, carbonizando as vigas. A se­guir, Seph reuniu cargas de ar, endureceu-as e lançou-as contra as janelas da galeria. Estilhaços de vidro retiniram no piso de pedra. O ribombar da tempestade foi subita­mente amplificado, e a chuva despencou sobre eles.

O dragão falou de novo.

  • Magos escravos de Leicester! É hora de reclamar o que lhes foi roubado. Vocês são mais poderosos do que qualquer mago, se trabalharem juntos, como lhes foi ensinado. Vocês acreditam que são possuídos por um outro, mas pertencem a mim, acima de tudo!

Seph não estava certo de que aquilo fosse verdade, mas foi o bastante para enfurecer Leicester. Este berrou para os ex-alunos, encolhidos de medo:

  • Isto é magia, seus idiotas! É um mago por trás de tudo isso! Vou mostrar a vocês.

Girando, ele apontou o cajado para a frente. Chamas jorraram da ponta cristalina e atingiram Hastings, lançando-o para trás no piso de pedra, onde ele ficou caído imóvel, as roupas fumegantes.

Houve um silêncio mortal, rompido pelo uivo do vento e o martelar da chuva.

Linda se ajoelhou junto a Hastings e aninhou-lhe a cabeça no colo.

Leicester se virou para olhar para o dragão, que pairou sobre eles tristemente por um longo momento, as pontas das asas caindo um pouco, então se ergueu, abrindo a boca para revelar dentes do tamanho de estalactites.

O fogo jorrou para a frente, envolvendo Leicester. A respiração quente do dragão se estendeu até a extremidade oposta da sala, escurecendo os painéis de nogueira ao redor da entrada e ateando fogo aos papéis sobre a mesa de conferências. Fumaça e confusão enchiam o salão. As pessoas berravam, gritavam ordens, exigindo serem soltas.

Mas, quando as chamas esmoreceram, Leicester estava em pé, embora visivelmente chamuscado e preocupado.

— É bom você nos soltar antes que sejamos incinerados nestas cadeiras! — exigiu Wylie da lateral. — Isto obvia­mente não é obra do Hastings, a menos que o homem possa conjurar do túmulo.

Leicester se concentrou no dragão, estendendo o ca­jado, lançando raio após raio de fogo mágico sobre a besta. O dragão permaneceu ileso, mas a parede da sala de conferências começou a se desintegrar sob o ataque. Seph se abaixou dentro da copa para se proteger do gesso que caía. A enorme lareira de pedra foi reduzida a montes de cascalho, e ele pôde ver os corredores além da sala de conferências.

Seph buscou outros alvos. Claude D'Orsay havia achado um lugar para se abrigar quando os fogos começaram. Sedgwick e Whitehead não estavam à vista.

Seph bateu o punho contra a parede em frustração e dor. O pai dele jazia morto no chão da sala de conferências. Ele e Jason estavam pondo abaixo a vinícola, mas isso não adiantaria de nada se não conseguissem derrubar Leicester. Mais cedo ou mais tarde, o diretor perceberia o que estava acontecendo e os apanharia. A única coisa em que pôde pensar foi ir atrás dos ex-alunos, tentar derrubá-los um por um, diminuindo o poder de Leicester.

Mas ele sabia que pelo menos alguns dos ex-alunos, se não todos, participavam com relutância dos esquemas de Leicester. Pensou no nervoso Peter Conroy com seu inalador e em Martin Hall, o vinicultor com princípios. Wayne Eggars, o médico, e o pequeno Ashton Rice, o professor de música. Ele se forçou a fazer uma lista mental, colocando-os em ordem de prioridade. Barber teria sido o primeiro, é claro, mas estava lá fora no jardim. Então Bruce Hays, que parecera se divertir em torturar Ellen e os outros.

Enquanto isso, ele travava um ataque constante contra Gregory Leicester, mantendo a ele e aos outros ocupados, dirigindo o fogo de modo a parecer que vinha do dragão de Jason. Com cautela, ele se inclinou para fora do esconderijo, procurando por Bruce Hays, e foi recebido por um golpe de fogo mágico que mal conseguiu rechaçar ao erguer um escudo e voltar para o esconderijo.

  • Ah — disse Leicester, soando aliviado. — Acho que descobrimos o culpado.

Seph recuou para dentro da copa, tentando desesperadamente pensar num plano. E trombou com alguém que lhe agarrou a cintura.

  • Menino bruxo! Isso aqui virou um pandemônio. Por que não veio me buscar?

Era Madison.

Seph não desperdiçou palavras.

  • Portas bloqueadas. E agora fui descoberto.

Leicester continuou a atacar o esconderijo dele. Seph jogou Madison contra a parede e a cobriu com o seu corpo, enquanto o gesso caía sobre sua cabeça e seus ombros. Um grande pedaço bateu no cotovelo direito com uma força incrível, e o braço ficou dormente.

  • Olha, é melhor você sair daqui. Pode ser resistente à magia, mas se uma parede cair sobre você, você morre.

Ela sacudiu a cabeça. Fragmentos de escombros es­tavam presos ao cabelo dela, e o rosto estava coberto de gesso em pó.

  • Não. Temos de executar o plano.
  • .. Como se isso fosse possível!

Seph avançou com cautela, tendo Madison logo atrás dele. Assim que ele chegou à entrada do salão, Leicester o chamou.

  • Joseph! Pare com essa tolice e saia! A sua mãe quer falar com você.

Erguendo um escudo, Seph postou-se à entrada e olhou para dentro da sala de conferências.

Leicester estava em pé em meio às ruínas, um braço em torno de Linda Downey, o outro segurando-a pela garganta.

  • Renda-se e eu a deixarei viver.

Seph hesitou, olhando de relance para Madison.

  • Vai libertar a minha mãe?

Leicester sorriu, mostrando os dentes.

  • É claro. Não tenho rixa com encantadores.

Linda gritou:

  • Seph! Não se atreva!

Leicester silenciou-a.

  • E quanto a ela? — Seph apontou sobre o ombro para Madison, que estava sacudindo a cabeça. — Vai deixar minha amiga em paz também?

Se Leicester ficou surpreso ao ver Madison, não demons­trou.

  • Você tem a minha palavra.
    • Está certo.

Seph saiu da copa e, respirando fundo, baixou o escudo.

Leicester esperou até que ele tivesse passado da porta. Ainda usando Linda como escudo, ele ergueu o cajado. Uma catarata de chamas correu em direção a Seph, um ataque que deveria tê-lo reduzido a cinzas. Em um dos gestos mais difíceis que já fizera, Seph se colocou atrás de Madison Moss, deixando que ela recebesse todo o impacto do ataque.

Seph observou Leicester. A princípio, o mago sorria, os olhos cintilantes, orgulhoso e triunfante. Então o rosto mudou, assaltado pela dúvida e, depois, o terror. Ele cambaleou para a frente, as mãos ainda estendidas, preso a Madison pela força do feitiço. Ele lutou para se libertar, para soltar o cajado, contorcendo-se e revirando-se à medida que o poder fluía dos ex-alunos para ele, depois para fora de seu corpo e para o de Madison.

Por toda a sala, os ex-alunos cambalearam e caíram à medida que eram drenados, da mesma maneira como Seph havia tombado naquele dia na praia. Leicester caiu de costas, tremendo violentamente, os olhos arregalados, lançando faíscas como um cabo de força partido. A co­nexão com os ex-alunos estava rompida. Seph passou por Madison e correu na direção dele.

Mas Jason foi mais rápido: saltou por sobre o corrimão da galeria, pairou no alto por um momento, e então aterrissou no chão junto a Leicester. Ajoelhando-se ao lado do corpo do mago em convulsões, avançou para tocá-lo, mas Seph puxou-o para trás.

— Não toque nele diretamente, a menos que queira ser sugado também.

Olhando em volta em busca de uma arma, Jason se abaixou e agarrou um enorme pedaço de pedra que havia caído da lareira. Num esforço conjunto, Jason e Seph conseguiram levantá-lo.

Eles esmagaram a cabeça de Leicester com a pedra. Os calcanhares dele tamborilaram no pavimento por um longo minuto antes de se aquietarem.

  • Isso é pelo meu pai, John Haley — disse Jason, ofegante.
    • E pelo meu pai, Leander Hastings, e por Trevor Hill e por todos os estudantes do Porto Seguro, dotados ou não — acrescentou Seph, que desviou o rosto e estremeceu. Jason deixou-se cair no chão entre os escombros e es­condeu o rosto entre as mãos.

Seph sabia que devia terminar o que tinha começado, que devia descobrir quais eram as intenções dos ex-alunos, encontrar Claude D'Orsay e fazer algo a respeito de Warren Barber no jardim. Mas não fez nada disso.

Sentia-se cansado demais para dar outro passo; ainda assim, mancou até o outro lado da sala, onde Madison estava em pé contra a parede, os olhos arregalados, os punhos cerrados, como em estado de choque. Ele estava coberto de sangue, o cotovelo estava inchado e deformado onde havia sido atingido pelos escombros. Ele a puxou para junto de si. Podia sentir o coração dela batendo contra seu peito, a respiração rápida e curta.

Ele ficou dizendo que estava tudo bem e que sentia muito, de novo e de novo. Ela começou a soluçar no ombro dele, e ele lhe acariciou as costas, fazendo pequenos círculos com a mão.

Finalmente, ele recuou e tomou-lhe a mão, levando-a para onde sua mãe segurava o pai dele nos braços. Ele se ajoelhou junto a ela, cheio de pesar, mas sem palavras para expressar seus sentimentos.

Ela o saudou com um sorriso radiante, embora lágrimas corressem pelo rosto.

  • Você está vivo! — disse ela, mudando a posição de Hastings para poder segurar a mão de Seph.

Ele piscou para conter as próprias lágrimas.

—  Mãe — disse ele, as palavras pesadas e desajeitadas em sua boca. Então a voz dele falhou. — Sinto muito — disse ele, rouco.

Mas ela ainda sorria, um sorriso marejado de lágrimas.

—  Eu devia ter dito: "Vocês estão vivos". Vocês dois.

Era impossível. Inclinando-se para frente, Seph baixou o olhar para o pai e estendeu a mão para tocar-lhe o rosto. Estava quente, pela circulação do sangue. Hastings franziu a testa e se mexeu de novo, grunhindo. As pálpebras se agitaram, depois se abriram, os olhos fitando o rosto de Seph.

Seph sacudiu a cabeça, ainda incapaz de acreditar.

—  Não entendo! O Leicester incendiou você. Ninguém poderia ter sobrevivido àquilo. — Ele estendeu a mão e tocou a coleira em torno do pescoço do pai. — Não nas condições em que você estava.

—  Foi o Martin Hall. — A voz de Hastings era um sussurro rouco. — Ele removeu a coleira e reverteu o feitiço antes de entrarmos no salão. — Ele fez uma pausa, tomou fôlego. — Eu ainda estava fraco, mas consegui erguer um escudo. Esperava que ele fosse atacar a sua mãe ou a mim.

Os cantos da boca de Hastings se retorceram num sorriso.

  • Devo dizer que fiquei surpreso quando o dragão veio nos visitar. Eu não tinha idéia de onde o Jason ia com aquilo. — Ele lutou para se sentar, com a ajuda de Linda. — Você não deveria estar em Trinity?

Jason falou às suas costas:

  • O cara não é mais tão fácil de intimidar. Algum imbecil andou ensinando magia pra ele.

Seph se virou para olhar para ele, e Jason inclinou-se em uma reverência razoavelmente cortês.

  • Sempre sonhei em conhecer o Dragão — disse ele, sorrindo para Linda. — Mas, por algum motivo, eu ima­ginei que ele fosse um mago com uma longa barba cin­zenta. Acho que gosto mais assim!

Com a morte de Leicester, vários feitiços foram rom­pidos. Os feitiços de imobilização se dissolveram, e os de­legados à Conferência das Ordens e o Conselho dos Magos se juntaram em dois grupos distintos que se olhavam mutuamente com cautela. Alguns se organizaram em uma brigada de bombeiros improvisada e começaram a apagar as chamas que ainda ardiam pela sala.

Ellen recuperou o cajado de Leicester e segurava-o junto ao flanco. Jack tirou uma faca de aparência sinistra de algum lugar e a afiava contra um pilar de pedra.

Nick Snowbeard veio cuidar de Hastings, e Seph imediatamente se sentiu mais confiante.

Madison ainda parecia estar em choque, um fantasma com olhos de aquarela, tremendo e com os dentes batendo. Seph sentou-a em uma das cadeiras à mesa de conferên­cias, desejando saber como ajudá-la.

Wylie e Longbranch se separaram do resto do Conselho e vieram na direção deles.

  • Onde está o D'Orsay? — indagaram eles, olhando furiosos para Seph.

Boa pergunta.

  • Como é que eu vou saber? — retrucou Seph. — Eu estava meio ocupado, sabe.
    • A constituição também desapareceu. Se ele conse­guir levá-la até a Ravina do Corvo, vai ser um desastre — protestou Wylie, como se aquilo fosse, de algum modo, culpa de Seph.
  • Então é melhor irem atrás dele, não acham? — disse Seph. — Talvez ele ainda possa ser alcançado na doca.
  • Primeiro vamos lidar com os associados dele — disse Longbranch.

Os conspiradores do Conselho não estavam à vista, mas os ex-alunos estavam onde haviam caído, tão indefesos quanto Seph estivera na praia. Porém estavam vivos, pelo menos. A conexão com Leicester havia sido rompida quando Maddie drenara o poder do mago.

Antes que Seph percebesse a intenção dela, Longbranch andou até Ashton Rice, ajoelhou-se e enfiou os dedos sob o queixo dele.

  • Ei! — Seph agarrou o pulso da maga com a mão que não estava ferida e afastou-a dali. — O que acha que está fazendo?

Ela olhou para ele com surpresa e irritação.

  • Estes jovens são colaboradores. Aliados do D'Orsay e do Leicester. É melhor destruí-los enquanto podemos.
  • Eu não diria que eles eram aliados, exatamente — disse Seph. — Eram mais vítimas, a maioria deles.
    • Não entende o que está acontecendo? — Longbranch falava como se ele fosse um deficiente mental. — Isto é guerra. A trégua entre os magos acabou. De que lado você está?

De repente, Jack e Ellen estavam junto a ele, um de cada lado. Jason e Madison se aproximaram por trás.

  • Não estou do seu lado nem do lado do D'Orsay. Vai ter de fazer a sua guerra sem mim — disse Seph.
  • Veremos — disse Longbranch. Ela estendeu a mão, e ele deu um passo atrás, fora do alcance daquelas longas unhas vermelhas. — Você é poderoso, eu concordo. Nisso você puxou ao seu pai. Vai ter de decidir se vai segui-lo em outros aspectos.

Ela olhou para Madison, estudando-a como se fosse um espécime especialmente interessante.

  • Qual é o nome da sua namorada? — indagou ela, brincando com a grande esmeralda que pendia de uma corrente em seu pescoço.

Seph não honrou aquela pergunta com uma resposta.

Longbranch estalou a língua.

  • Você vai desperdiçar a vida como ama-seca das or­dens servis ou aprender a mover-se no mundo dos magos, onde está o verdadeiro poder? Pense a respeito.
  • Não tenho de pensar — disse Seph, mas Longbranch já havia se afastado.

Jack e Ellen olhavam com curiosidade para Jason. Com a morte de Gregory Leicester, algo da intensidade e do espírito de Jason parecia ter sido drenado. Ele se apoiou contra um pilar de pedra, parecendo frágil e cansado, quase doente. Seph se lembrou do seu primeiro dia em Trinity, quando era ele o forasteiro.

  • Jack Swift e Ellen Stephenson, este é Jason Haley — disse Seph. — Ele é um amigo meu do Porto Seguro. Ele salvou a minha vida.

Leicester ainda jazia no chão onde tombara. Seph não sentia nenhuma alegria com o modo como ele morrera, apenas um intenso alívio, e a convicção de que a morte do mago era uma questão de sobrevivência para ele e para as pessoas de quem gostava.

Acima na galeria, o recém-liberto Warren Barber olhou para os sobreviventes da batalha na sala de conferências abaixo. Ele sentia uma alegria incrível. Estava por conta própria outra vez, sem ter mais que responder a qual­quer autoridade. Até pouco tempo atrás, Leicester tinha parecido ser o cavalo no qual se apostar. Mas ele mor­rera como qualquer um. O resto dos ex-alunos estavam caídos ao chão como tantas carcaças. "Eles mereciam ser governados", pensou ele. Mas não Warren Barber. Ele não poderia deixar isso acontecer, nunca mais.

Ele pensou na namorada de McCauley, e a respiração dele se acelerou. Primeiro ocorrera o episódio no rio, quando ela nocauteara King. Então Warren havia tentado enfeitiçá-la no jardim, e ele tombara como uma pedra. Leicester e os ex-alunos não haviam se saído melhor. Seria ela uma maga com uma pedra poderosa ou es­taria carregando um amuleto de algum tipo? Warren não era nenhum especialista, mas imaginou que conseguiria descobrir.

Não conseguiu resistir à tentação de deslizar a mão para dentro da camisa, sentindo o pergaminho junto à pele. Fora bem fácil surrupiá-lo da escrivaninha onde Hays o escondera. Ele conhecia todos os esconderijos em Second Sister.

Não havia decidido o que fazer com aquilo, mas sabia que representava poder. D'Orsay daria qualquer coisa para pôr as mãos nele. Isso valia também para qualquer um no Conselho. Por outro lado, por que Warren Barber não podia ser rei?


 

                     Trinity e Cúmbria

- Como pode ver, temos uma grande família na Bretanha, Seph. — Hastings fez um gesto amplo indicando as lápides desgastadas que irrompiam entre as urzes açoitadas pelo vento. — Infeliz­mente, estão todos debaixo da terra.

Seph parou e apanhou um pedaço quebrado de granito. Raspou o musgo que ocultava a inscrição na lápide mais próxima até que ela se revelou. HASTYNGS. Ele traçou as letras com os dedos e olhou para a grande casa de pedra. Ela despontava em resplendor boreal em meio às montanhas, plantada num vale retalhado por muros de pedra. A luz diminuía, embora fosse apenas fim de tarde. O anoitecer vinha cedo por ser Norte. Cúmbria. Lar dos seus ancestrais. Hastings, seu pai, dissera-lhe que a casa havia estado na família por gerações.

Enquanto Seph observava, Jason saiu de dentro da casa, acenou para eles e voltou para dentro.

— Acho que o jantar está pronto — disse Seph. Ele enfiou as mãos enluvadas nos bolsos. — Eu me sinto como se tivesse encontrado uma família e um lar, e o Jason perdeu os dele.

Hastings voltou o olhar na direção da Escócia, o rosto frio e quieto como as montanhas castigadas pelo clima.

— Prometi ao Jason que, se ele ficasse em Trinity e terminasse a escola, eu o introduziria na política dos magos. — Sem desviar o olhar, ele respondeu ã objeção não enunciada de Seph. — Pode acreditar em mim, sei tudo sobre o preço de se apegar ao ódio, mas não consigo fazê-lo mudar de idéia. Ele ainda quer ir atrás do D'Orsay.

O futuro político das ordens Weir ainda era nebuloso. O Conselho que se reunira em Second Sister havia assinado a constituição de Hastings-Downey antes de debandar, mas não estava claro como o documento seria consagrado. O paradeiro da constituição de Leicester-D'Orsay era des­conhecido. E, pela primeira vez em 500 anos, os magos estavam oficialmente em guerra.

Linda e Hastings discutiam estratégias em casa freqüentemente, até tarde da noite. Às vezes Hastings continuava refletindo naquilo até de manhã.

O papel de homem de família não era fácil para Hastings. Muito do tempo de Hastings e Seph juntos era investido em treinamento: revisões de feitiços e contra-feitiços, aulas de Magia Antiga. Seph percebia que o pai estava fazendo o melhor que podia para afiar as habilidades de Seph em magia, para que ele pudesse se proteger. Aquilo era amor, oferecido daquele jeito implacável de Hastings.

Madison continuava trabalhando na Lendas e freqüen­tava as aulas na Faculdade de Trinity. Apesar da apreen­são dela, entrosara-se bem com o estilo grunge sofisticado dos estudantes de arte. Seus trabalhos chegaram a ser exibidos em uma das galerias perto do campus.

Ela andava receosa em relação a Seph desde o episódio em Second Sister. Mantinha-se distante, guardando se­gredos como se visse um novo risco no relacionamento deles, que não havia enxergado antes. Era amigável, mas ele sentia que ela evitava ficar sozinha com ele. Linda se oferecera para levá-la de avião para a Bretanha no Natal, mas, em vez disso, ela fora para a casa dos pais, no Condado de Coalton.

Seph havia comprado um presente para ela: quatro desenhos emoldurados de catedrais que encontrara numa galeria em Londres.

Hastings interrompeu-lhe o devaneio.

— É melhor voltarmos. Não é bom nos atrasarmos para o jantar na véspera de Natal.

O jantar foi servido à luz de velas no grande salão. Rosbife, salada e pudim de Yorkshire: um banquete para quatro pessoas, e todos haviam ajudado a prepará-lo. Depois disso, comeram queijo Stilton e peras, e beberam vinho junto ao fogo, enquanto a neve caía lá fora. Mais tarde, enfrentariam o mau tempo para assistir à missa do Galo na igreja católica na cidade. Seph torcia para que estivesse nevando. Hastings havia prometido levar o trenó.

Pacotes cheios de intrigantes possibilidades, embru­lhados em papéis brilhantes, aguardavam sob o alto pi­nheiro no canto da lareira.

Hastings foi primeiro. Para Seph, havia dois livros sobre feitiços da coleção particular de Hastings. Para Jason, um par de botas de alpinismo inglesas, apropriadas para caminhadas de inverno nas montanhas. Para Linda, um pingente com a cor cinzenta opaca de uma peça de feiti­ceiro, engastado em granada.

Linda dera um casaco para Hastings, um pesado suéter de lã escocesa para Jason. E um pacote misterioso para Seph. Quando ela o entregou em suas mãos, e Seph sentiu o peso do pacote, soube o que era antes de rasgar o papel. Era o seu Livro Weir: a história dele em suas mãos.

Quando Seph se recordava dos acontecimentos do verão e do outono, percebia que a sua filosofia pessoal mudara. "Não espere muito e nunca se decepcionará", dissera sempre, em um tipo de feitiço de auto-proteção.

Ele nunca planejara ou esperara ter pais, muito menos uma dupla complicada como Linda Downey e Leander Hastings. Como uma família, eles ainda eram uma reu­nião de estranhos. Quem sabe o que vai acontecer? Mas ele não podia deixar de se sentir otimista.

Madison ainda era um mistério para ele, mas um mis­tério que tinha esperanças de resolver. Descobriria um jeito de fazer aquilo funcionar, pois finalmente entendia que, às vezes, é preciso elevar as expectativas. E às vezes é preciso reivindicar o mundo e as pessoas que se ama para se conseguir o que mais se deseja.

 

 

[1] Vela romana é um tipo de fogo de artifício. (N.E.)

 

                                                                                Cinda Williams Chima  

 

 

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