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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HISTORIADOR / Elizabeth Kostova
O HISTORIADOR / Elizabeth Kostova

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HISTORIADOR

Primeira Parte

 

           Oxford, Inglaterra, 15 de Janeiro, 2005

 

Compreender-se-á claramente, pela leitura destes apontamentos, a razão por que foram colocados na ordem que apresentam. Eliminaram-se as coisas desnecessárias, de modo a que surgisse como fato verdadeiro uma história quase em completo desacordo com as crenças habituais.

Não há nenhuns pormenores em que a memória corresse perigo de se enganar, pois tudo foi anotado dia a dia e por aqueles que o podiam testemunhar.

                     Bram Stoker, DRÁCULA, 1897

 

Em 1972 eu tinha dezesseis anos demasiado jovem, dizia o meu pai, para viajar com ele nas suas missões diplomáticas. Ele preferia saber que eu estava sentada a seguir atentamente as aulas na Escola Internacional de Amsterdã; naquela época, a sede da fundação do meu pai era em Amsterdã, onde eu morava há já tanto tempo que quase esquecera a nossa vida anterior nos Estados Unidos. Hoje, acho estranho ter sido tão obediente na minha adolescência, enquanto a minha geração experimentava drogas e protestava contra a guerra imperialista no Vietnã, mas fui criada num ambiente tão resguardado que fez a minha vida adulta e acadêmica parecer decididamente aventurosa. Para começar, era órfã de mãe, e os cuidados que o meu pai tinha comigo foram aumentados por uma dupla noção de responsabilidade, de modo que ele me protegia mais do que se as circunstâncias fossem outras. A minha mãe morreu quando eu era bebê, antes de o meu pai fundar o Centro para a Paz e a Democracia. O meu pai nunca falava dela e esquivava-se discretamente sempre que eu fazia perguntas; muito cedo compreendi que era demasiado doloroso para ele tocar nesse assunto. Em contrapartida, cuidava muito bem de mim com a ajuda de diversas preceptoras e governantas que contratou com esse fim o dinheiro não era obstáculo quando se tratava da minha educação, apesar de vivermos com simplicidade no dia-a-dia.

A última dessas governantas foi Mrs. Clay, que tomava conta da nossa casa holandesa do século dezessete perto do Raamgracht, um canal no centro histórico da cidade. Mrs. Clay abria-me a porta todos os dias quando eu chegava da escola e era uma espécie de parente quando o meu pai viajava, o que acontecia com frequência. Era inglesa, mais velha do que a minha mãe teria sido, hábil com um espanador de pó e desajeitada com adolescentes; às vezes, olhando para o rosto dela durante o jantar e vendo a sua expressão de pena exagerada e os dentes demasiado compridos, tinha a impressão de que ela pensava na minha mãe e detestava-a por causa disso. Quando o meu pai estava fora, a linda casa ecoava como se estivesse vazia. Não havia ninguém para me ajudar com os problemas de álgebra, ninguém para admirar o meu casaco ou pedir-me um abraço, nem para se admirar de como eu estava a ficar alta. Quando o meu pai voltava de algum daqueles lugares cujos nomes estavam escritos no mapa da Europa que fora pendurado na parede da nossa sala de jantar, cheirava a outros tempos e lugares, um cheiro pungente e cansado. Passávamos as férias em Paris ou Roma, a visitar e a estudar diligentemente tudo o que o meu pai achava que eu deveria ver, mas eu suspirava por aqueles outros lugares para onde ele desaparecia, aqueles estranhos lugares antigos onde eu nunca estivera.

Quando ele partia, eu ia e voltava da escola, atirando os meus livros com estrépito para cima da mesa polida da entrada. Nem Mrs. Clay nem o meu pai me deixavam sair à noite, exceto para um cinema de vez em quando, para ver um filme cuidadosamente aprovado, com amigos aprovados com igual cuidado, e para meu espanto, agora que recordo esse tempo nunca trocei dessas regras. Talvez a razão principal tenha sido o fato de eu preferir a solidão; era o elemento em que fora criada e no qual me sentia à vontade Sobressaía nos estudos mas não na vida social. As raparigas da minha idade apavoravam-me, especialmente as sofisticadas do nosso meio diplomático, que falavam com desenvoltura e fumavam sem parar, perto delas, achava sempre que o meu vestido era comprido de mais, ou curto demais, ou que deveria ter vestido algo totalmente diferente. Os rapazes desorientavam-me, embora sonhasse vagamente com homens. Na verdade, ficava mais feliz sozinha na biblioteca do meu pai, uma bela e ampla divisão no rés-do-chão da nossa casa.

É possível que a biblioteca do meu pai tivesse sido anteriormente uma sala de estar, mas ele sentava-se apenas para ler e considerava uma ampla biblioteca mais importante do que uma ampla sala de estar. Há muito tempo que ele me dera livre acesso a sua coleção de livros. Durante as suas ausências, eu passava horas a fazer os trabalhos de casa na mesa de mogno ou a passar os olhos pelas estantes que cobriam todas as paredes. Compreendi mais tarde que o meu pai esquecera em parte o que se encontrava nas prateleiras superiores ou o mais provável presumira que eu jamais conseguiria alcançá-las; e, certa noite, não só trouxe para baixo uma tradução do Kama Sutra, como também um livro muito mais antigo e um envelope cheio de papéis amarelados.

Até hoje não sei dizer o que me fez tirá-los de lá. Mas a figura no centro da capa do livro, o cheiro a antigo que o volume exalou e a descoberta de que os papéis eram cartas pessoais, tudo atraiu fortemente a minha atenção. Sabia que não devia examinar os papéis particulares do meu pai, ou de quem quer que fosse, e também receava que Mrs Clay pudesse aparecer de repente para limpar o pó a mesa já limpíssima — deve ter sido isto o que me fez olhar por cima do ombro para a porta. No entanto, não consegui deixar de ler o primeiro parágrafo da carta que se encontrava no cimo da pilha, segurando-a por alguns minutos enquanto estava parada junto às estantes.

 

               12 de Dezembro, 1930 Trinity College, Oxford

 

Meu caro e desventurado sucessor:

É com pesar que o imagino, quem quer que seja, a ler o relato que me sinto na obrigação de registrar nesta carta. O pesar é em parte por mim próprio porque estarei no mínimo em dificuldades, talvez morto, ou pior, se esta carta estiver nas suas mãos. Mas o pesar é também por si, meu amigo ainda desconhecido, porque só por alguém que precise de uma informação tão odiosa esta carta será lida um dia. Se não é o meu sucessor em qualquer outro sentido, será em breve meu herdeiro e lamento ter de legar a outro ser humano a minha talvez inacreditável experiência pessoal com o mal. Por que motivo fui eu a herdá-la, não sei, mas espero acabar por descobrir talvez enquanto lhe escrevo ou talvez no decorrer de acontecimentos futuros.

 

Nesse ponto, o meu sentimento de culpa e algo mais, também — fez-me voltar a colocar apressadamente a carta no seu envelope, mas pensei nela o dia inteiro e ainda no dia seguinte. Quando o meu pai voltou da sua última viagem, procurei uma oportunidade para lhe perguntar sobre as cartas e sobre o estranho livro. Esperei por uma ocasião em que ele estivesse disponível, em que ficássemos sozinhos, mas ele esteve muito ocupado naqueles dias e alguma coisa relacionada com o que tinha encontrado fazia com que eu hesitasse em aproximar-me dele. Finalmente, pedi-lhe que me levasse na sua próxima viagem. Era a primeira vez que eu lhe escondia alguma coisa e a primeira vez que insistia em fazer alguma coisa.

Relutantemente, o meu pai concordou. Conversou com os meus professores e com Mrs. Clay, lembrou-me de que eu teria tempo suficiente para os trabalhos de casa enquanto ele estivesse nas suas reuniões. Não me surpreendi; os filhos dos diplomatas estão habituados a esperar. Fiz a minha mala azul-marinho, levando os meus livros escolares e demasiados pares de meias pelo joelho. Em vez de sair para a escola naquela manhã, parti com o meu pai, andando ao lado dele, calada e alegre, rumo à estação. Um comboio levou-nos até Viena; o meu pai detestava aviões, que alegava tirarem à viagem a sensação de viajar. Lá, passamos uma curta noite num hotel. Noutro comboio, atravessamos os Alpes, para além de todas as elevações azuis e brancas do nosso mapa de casa. À saída de uma empoeirada estação amarela, o meu pai arrancou no nosso carro alugado e eu sustive a respiração até nos depararmos com os portões de uma cidade que ele me descrevera tantas vezes que já a via em sonhos.

O Outono chega cedo no sopé dos Alpes Eslovenos. Antes mesmo de Setembro, as colheitas abundantes são seguidas de uma chuvada repentina e intensa que dura muitos dias e faz cair as folhas das árvores nas ruas das aldeias.

Hoje, aos cinquenta anos de idade, dou por mim deambulando de tempos a tempos por essas paragens, revivendo a minha primeira visão do campo esloveno. É uma terra antiga. A cada Outono amadurece um pouco mais, aeternum, e cada um deles começa com as mesmas três cores: uma paisagem verde, duas ou três folhas amarelas caindo numa tarde cinzenta. Imagino que os Romanos que deixaram ali as suas muralhas e as suas arenas colossais no litoral, para oeste — tenham visto o mesmo outono e sentido o mesmo arrepio. Quando o carro do meu pai passou pelos portões da mais antiga das cidades julianas, dei um abraço a mim mesma. Pela primeira vez, fui acometida pela excitação do viajante que olha de frente o rosto subtil da história.

Por ser essa a cidade onde a minha história começa, vou chamar-lhe Emona, o seu nome romano, para a proteger um pouco do tipo de turistas que andam atrás de desgraças com um guia na mão. Emona foi construída sobre pilares da Idade do Bronze, ao longo de um rio hoje ladeado por arquitetura art-nouveau. Durante os dois dias seguintes iríamos passear, passando pela mansão do presidente da Câmara, por residências do século dezessete adornadas comfleurs-de-lys prateadas e pela sólida parede dourada do edifício de um grande mercado, cujos degraus começavam junto a velhas portas fortemente trancadas e desciam até a superfície da água. Durante séculos, cargas de mercadorias transportadas pelo rio tinham sido levadas para aquele lugar para alimentar a cidade e, onde outrora cabanas primitivas haviam proliferado nas margens, cresciam agora sicómoros os plátanos europeus, formando uma imensa cintura acima dos paredões do rio, e soltavam pedaços encaracolados das suas cascas na corrente.

Perto do mercado, a praça principal da cidade abria-se sob o céu pesado. Emona, como as suas irmãs do Sul, exibia florões de um passado camaleónico: art déco vienense no alto, na silhueta dos prédios contra o céu; grandes igrejas vermelhas da Renascença dos seus católicos de língua eslovena; capelas medievais escuras com grossos contrafortes e formas típicas das Ilhas Britânicas. (São Patrício mandou missionários para esta região, fechando o círculo do novo credo ao voltar às suas origens mediterrânicas, de modo que a cidade se orgulha de ter uma das mais antigas histórias cristãs da Europa.) Aqui e ali, um elemento otomano salientava-se num batente de porta ou na moldura pontiaguda de uma janela. Perto do mercado, os sinos de uma pequena igreja austríaca chamavam para a missa vespertina. Homens e mulheres vestidos com idênticos casacos azuis de algodão caminhavam de regresso para casa no fim de mais um dia de trabalho socialista, segurando guarda-chuvas sobre os seus embrulhos. Ao aproximarmo-nos do centro de Emona no nosso carro, atravessamos uma linda ponte antiga, guardada em cada extremidade por dragões de bronze esverdeados.

— Lá está o castelo — disse o meu pai, abrandando a marcha na orla da praça e apontando para cima através de um véu de chuva. — Já sei que vais querer vê-lo.

Queria mesmo. Estiquei-me e estendi o pescoço até vislumbrar o castelo por entre os galhos encharcados de uma árvore torres castanhas carcomidas numa elevação íngreme no centro da cidade.

— Século catorze — disse o meu pai, pensativo. — Ou será treze? Não sou muito bom com estas ruínas medievais, pelo menos ao ponto de acertar no século exato. Mas havemos de ver no guia.

— Podemos ir até lá e explorá-lo?

— Vamos saber depois das minhas reuniões de amanhã. Aquelas torres não devem aguentar sequer o peso de um passarinho, mas nunca se sabe.

Estacionou o carro perto da Câmara Municipal e ajudou-me a sair do banco do passageiro, galante, a mão ossuda dentro da luva de couro.

— É um pouco cedo para nos registramos no hotel. Queres tomar um chá quente? Ou podemos lanchar naquela gastronomia. Está a chover com mais intensidade — acrescentou, indeciso, olhando para o meu casaco e a minha saia de lã. Peguei rapidamente no impermeável com capuz que ele me trouxera de Inglaterra no ano anterior. A viagem de comboio de Viena demorara quase um dia e eu já estava outra vez com fome, apesar do nosso almoço no vagão-restaurante.

Mas não foi a gastronomia, com as suas luzes vermelhas e azuis a brilhar debilmente através da janela encardida, as criadas de mesa com sandálias azul-marinho de plataforma e a indiscutível e carrancuda imagem do Camarada Tito, que nos atraiu. Abrindo caminho entre os transeuntes molhados da chuva, o meu pai começou a andar em frente.

— Vamos!

Segui-o a correr, com as abas do capuz a baterem-me no rosto, quase a taparem-me a vista. Ele tinha avistado a entrada de uma casa de chá art-nouveau, uma grande janela decorada com desenhos de arabescos e cegonhas a voar entre eles, portas de bronze esverdeadas com a forma de centenas de caules de lírios. As portas fecharam-se pesadamente atrás de nós e a chuva transformou-se em névoa, vapor na janela, vista através dos pássaros prateados como uma mancha de água.

— É incrível isto ter sobrevivido nestes últimos trinta anos — disse o meu pai, enquanto tirava o seu impermeável London Fog. — O socialismo nem sempre é tão benevolente com os seus tesouros.

Numa mesa perto da janela, tomamos chá com limão, escaldante nas chávenas grossas, comemos sardinhas em pão branco com manteiga e até umas fatias de torta.

— É melhor pararmos por aqui — disse o meu pai.

Ultimamente, eu passara a não gostar daquela forma que ele tinha de soprar o chá uma e outra vez para o arrefecer, e também a recear o inevitável momento em que ele dizia que deveríamos parar de comer, parar de fazer qualquer coisa agradável e nos pouparmos para o jantar. Olhando para ele, bem vestido com o seu casaco de tweed e camisola de gola alta, senti que negara a si próprio qualquer aventura na vida com exceção da diplomacia, que o consumia inteiramente. Teria sido mais feliz se vivesse um pouco a vida, pensei, para ele, tudo era demasiado sério.

Mas fiquei calada, porque sabia que ele detestava as minhas críticas e porque tinha uma coisa para lhe perguntar. Tinha de o deixar acabar primeiro o seu chá, e assim recostei-me na cadeira, mas apenas o suficiente para que o meu pai não me pedisse para, por favor, me sentar com as costas direitas. Pela janela salpicada de prata via uma cidade molhada, melancólica no final da tarde, e pessoas passando apressadas sob uma chuva que caía horizontalmente. A casa de chá, que deveria estar cheia de senhoras com vestidos compridos de gaze cor de marfim ou de cavalheiros com barbas pontiagudas e casacos com golas de veludo, estava vazia.

Não me tinha apercebido de como a viagem de carro me cansou o meu pai pousou a sua chávena e apontou para o castelo, que mal se distinguia através da chuva. Foi daquela direção que viemos, do outro lado daquela colina.

— Vamos poder ver os Alpes lá do alto.

Lembrei-me das montanhas de encostas nevadas e senti que elas respiravam por cima daquela cidade. Estávamos agora juntos e sozinhos do lado oposto delas. Hesitei, respirei fundo.

— Pode contar-me uma história?

As histórias eram um dos mimos que o meu pai sempre proporcionara à sua filha sem mãe; algumas tirava-as da sua agradável infância em Boston e outras das suas viagens exóticas Outras ainda, inventava-as para mim no momento, mas nos últimos tempos eu cansara-me destas, achando-as menos surpreendentes do que em tempos pensara.

— Uma história sobre os Alpes? — perguntou o meu pai.

— Não — e senti uma inexplicável onda de medo. — Encontrei uma coisa sobre a qual gostaria de lhe fazer uma pergunta.

Ele virou-se e olhou para mim com brandura, as sobrancelhas grisalhas arqueando-se por cima dos olhos cinzentos.

— Foi na sua biblioteca — disse eu. — Desculpe, mas.. eu estava a bisbilhotar e encontrei uns papéis e um livro. Não olhei... muito.. para os papéis. Pensei que...

— Um livro? — o tom era ainda brando, ele olhava para o fundo da sua chávena de chá a procura de uma última gota, parecia não estar a prestar muita atenção.

— Pareciam... o livro era muito velho, com a imagem de um dragão no centro.

Ele inclinou-se para a frente, ficou muito quieto e depois estremeceu visivelmente. Aquele estranho gesto pôs-me imediatamente alerta. Se houvesse uma história, seria diferente de todas as outras que ele me contara. Lançou-me um olhar de relance por baixo das sobrancelhas e espantei-me ao ver como parecia abatido e triste.

— Ficou zangado? — agora, era eu que olhava para o fundo da minha chávena.

— Não, querida — suspirou profundamente, desgostoso. A pequena criadinha loira encheu-nos de novo as chávenas, mas ele ainda demorou bastante para começar a falar.

 

— Como sabes — disse o meu pai —, antes do teu nascimento, eu dava aulas numa universidade americana. Antes disso, estudei durante muitos anos para ser professor. A princípio, achava que iria estudar literatura. Então, descobri que gostava mais das histórias verdadeiras do que das imaginárias. Todas as histórias literárias que lia me levavam a uma espécie de... exploração... da História. E assim acabei por me render a ela. E fico muito satisfeito por também te interessares por História.

"Numa noite de Primavera, quando eu ainda era estudante de pós-graduação, estava no meu compartimento de estudos na biblioteca da universidade, sentado sozinho, já muito tarde, entre fileiras e fileiras de livros. Ao levantar os olhos do meu trabalho, notei que alguém havia deixado um livro cuja lombada nunca vira no meio dos meus livros, que ficavam numa prateleira acima da minha escrivaninha. A lombada desse livro mostrava um pequeno dragão de desenho elegante, verde sobre um fundo de couro claro.

Não me lembrava de ter visto aquele livro ali ou em qualquer outro lugar, por isso peguei nele e folheei-o sem pensar muito. A encadernação era de couro macio, esmaecido, e as páginas pareciam muito antigas. Abriu-se com facilidade, justamente no meio. Ocupando essas duas páginas centrais, vi uma xilogravura com a imagem de um dragão de asas abertas e uma comprida cauda enrolada, uma fera à solta, enraivecida, as garras à mostra. Das garras do dragão pendia um estandarte no qual havia uma única palavra escrita em caracteres góticos: DRÁKULA.

Reconheci logo a palavra e pensei no romance de Bram Stoker, que ainda não tinha lido, e nessas noites da minha infância, no cinema do bairro, com Bela Lugosi contemplando o alvo pescoço de alguma estrela de cinema de então. Mas a grafia da palavra era estranha e o livro visivelmente muito antigo. Além disso, eu era um acadêmico, profundamente interessado na História européia e, depois de olhar para aquilo por alguns segundos, lembrei-me de algo que lera. O nome derivava da raiz latina significando dragão ou demônio, o título honorífico de Vlad Tepes — o Empalador — da Valáquia, um senhor feudal da região dos Cárpatos que torturava os seus súbditos e prisioneiros de guerra de formas incrivelmente cruéis. Eu estava a estudar o comércio na Amsterdã do século dezessete, portanto não havia razão para um livro sobre aquele assunto estar metido entre os meus, e concluí que fora deixado ali por acaso, talvez por alguém que estivesse a trabalhar sobre a história da Europa Central ou sobre símbolos feudais.

Folheei o resto das páginas quando se lida com livros o dia inteiro, cada livro novo que aparece é um amigo e uma tentação. Para minha surpresa, o resto do livro todas aquelas belas páginas antigas, cor de marfim estava totalmente em branco. Não havia sequer uma página com o título, muito menos informações sobre onde e quando o livro fora impresso, mapas, páginas de guarda ou outras ilustrações. Não tinha o carimbo da biblioteca da universidade, nem qualquer ficha, selo ou etiqueta.

Depois de contemplar o livro por mais alguns minutos, pousei-o na minha escrivaninha e desci para examinar o ficheiro no rés-do-chão. Havia de fato uma ficha temática para "Vlad III ("Tepes") da Valáquia, 1431-1476 Ver também Valáquia, Transilvânia, e Drácula". Pensei que devia começar por procurar um mapa; depressa descobri que a Valáquia e a Transilvânia eram duas antigas regiões situadas onde hoje fica a Romênia. A Transilvânia parecia muito mais montanhosa, com a Valáquia a limitá-la a sudoeste. Nas estantes, encontrei o que parecia ser a única fonte da biblioteca sobre o assunto, uma estranha tradução de 1890 para o Inglês de uns folhetos sobre "Drakula". Os folhetos originais tinham sido impressos em Nuremberg nas décadas de 1470 e 1480, alguns anos antes da morte de Vlad. A referência a Nuremberg deu-me um calafrio; poucos anos antes, acompanhara atentamente os julgamentos dos líderes nazis ali realizados. Tinha menos um ano que a idade mínima exigida para entrar na guerra quando esta acabou e interessei-me pelas suas consequências com todo o fervor dos excluídos. O volume de folhetos tinha um frontispício, uma xilogravura tosca do busto de um homem, um homem de pescoço taurino e olhos negros e fundos, bigode comprido e um chapéu enfeitado com uma pluma. A imagem era surpreendentemente vívida, tendo em conta o método primitivo de impressão.

Sabia que devia prosseguir o meu trabalho, mas não pude deixar de ler o começo de um dos folhetos. Tratava-se de uma lista dos crimes de Drácula contra o seu próprio povo e contra alguns outros grupos também. Sou ainda capaz de repetir de cor o que dizia essa lista, mas prefiro não o fazer era extremamente perturbador. Fechei o pequeno volume com um gesto brusco e voltei para o meu local de estudo. O século dezessete ocupou-me a atenção até quase à meia-noite. Deixei o estranho livro fechado em cima da escrivaninha, na esperança de que o seu dono o encontrasse ali no dia seguinte, e fui para casa dormir.

Na manhã seguinte, tinha uma reunião. Estava cansado da longa noite anterior mas, no fim das aulas, bebi duas chávenas de café e voltei à minha pesquisa. O livro antigo ainda lá estava, agora aberto e exibindo o turbulento dragão. Depois da minha curta noite de sono e do café que me serviu de almoço, aquilo deu-me a volta à cabeça, como se dizia nos romances antigos. Olhei de novo para o livro, com mais cuidado. A imagem central era sem dúvida uma xilogravura, talvez um desenho medieval, um excelente trabalho do gênero. Achei que o livro devia ser valioso do ponto de vista financeiro, ou talvez tivesse valor pessoal para algum estudioso, já que era óbvio que não se tratava de um livro da biblioteca.

Entretanto, no estado de espírito em que me encontrava, não gostei de o ver ali. Fechei o livro com uma certa impaciência e sentei-me para escrever sobre guildas de comerciantes até ao final da tarde. Ao sair da biblioteca, parei no balcão da entrada e entreguei o livro, explicando o que acontecera. O bibliotecário prometeu colocá-lo no armário dos achados e perdidos.

As oito horas da manhã seguinte, quando entrei no meu compartimento para trabalhar um pouco mais no meu tema, lá estava o livro outra vez em cima da escrivaninha, aberto e exibindo a sua única e terrível ilustração. Desta vez, aborreci-me e achei que o bibliotecário me entendera mal. Coloquei rapidamente o livro numa das minhas prateleiras e passei o dia inteiro sem me permitir olhar para ele. No fim do dia, tinha um encontro com o meu orientador e, ao recolher os meus papéis para os examinarmos juntos, peguei no livro misterioso e acrescentei-o à pilha. Foi um impulso; não pretendia ficar com ele, mas o professor Rossi gostava de mistérios históricos e imaginei que pudesse diverti-lo. Além disso, talvez ele conseguisse identificá-lo, com os seus vastos conhecimentos sobre a história da Europa.

Eu tinha o hábito de me encontrar com Rossi no fim da sua aula da tarde e gostava de me esgueirar para dentro da sala antes que ele acabasse, para o ver em acção Naquele semestre, estava a dar um curso sobre o Mediterrâneo antigo e eu acompanhara o final de várias das suas palestras, todas brilhantes e teatrais, imbuídas do seu grande talento para a oratória. Desta vez, sentei-me discretamente numa cadeira do fundo a tempo de o ouvir concluir uma discussão sobre o restauro do palácio minóico de Creta por Sir Arthur Evans. A sala, um enorme auditório que comportava quinhentos alunos, estava mergulhada na penumbra. O silêncio era digno de uma catedral. Ninguém se mexia, todos os olhares estavam fixos na sua elegante figura.

Rossi estava sozinho no palco iluminado. Às vezes, andava de um lado para o outro, explanando idéias em voz alta como se estivesse a ruminar para si mesmo na privacidade do seu gabinete. De vez em quando, parava repentinamente, fixando os seus alunos com um olhar intenso, um gesto eloquente, uma declaração surpreendente. Ignorava o estrado, desdenhava os microfones e nunca usava anotações, embora uma vez por outra mostrasse slides, dando pancadinhas secas com um ponteiro na tela imensa para reforçar a sua argumentação. Em certas ocasiões, ficava tão entusiasmado que levantava os dois braços e atravessava metade do palco a correr. Contava-se que certa vez chegara a cair da frente do palco num arroubo sobre o florescimento da democracia grega e voltara a subir sem perder o fio à meada. Nunca me atrevi a perguntar-lhe se isso era verdade.

Naquele dia, estava pensativo, caminhando de lá para cá com as mãos atrás das costas.

— Sir Arthur Evans, façam o favor de se lembrar, restaurou o palácio do rei Minos em Cnossos em parte de acordo com o que lá encontrou e em parte de acordo com a sua própria imaginação, com a sua visão de como teria sido a civilização minóica.

Olhou fixamente para a abóbada acima de nós.

— Os registros eram escassos e ele estava a lidar principalmente com mistérios. Em vez de se colar a uma exatidão limitativa, usou a imaginação para criar um estilo de palácio de uma veracidade emocionante e falsa. Estaria errado ao agir assim?

E fez uma pausa, olhando com um ar quase melancólico para o mar de cabeças despenteadas, poupas, cortes à escovinha, casacos deliberadamente surrados e jovens e graves rostos masculinos (lembra-te que na época só os rapazes iam para uma universidade como aquela, ao passo que tu, querida filha, provavelmente vais poder matricular-te onde quiseres). Quinhentos pares de olhos estavam voltados para ele.

— Vou deixá-los refletir sobre esta questão.

Rossi sorriu, virou-se abruptamente e afastou-se da ribalta.

Todos respiraram fundo; os alunos começaram a conversar e a rir, a reunir os seus pertences. Rossi costumava ir sentar-se na beira do palco depois da palestra, e alguns dos seus discípulos mais ávidos acorriam para lhe fazerem perguntas a que ele respondia com seriedade e bom humor até o último aluno ir embora, e então eu aproximava-me para o cumprimentar.

— Paul, meu amigo! Vamos subir e falar holandês! — deu-me uma pancadinha afectuosa no ombro e saímos juntos.

O gabinete de Rossi divertia-me sempre porque contrariava o padrão do gabinete do professor lunático: os livros alinhavam-se em ordem nas prateleiras, uma pequena cafeteira muito moderna junto à janela satisfazia-lhe o vício do café, plantas que nunca ficavam sem água enfeitavam a secretária e ele próprio estava sempre vestido com esmero, com as suas calças de tweed e camisa e gravata impecáveis. O seu rosto tinha traços nitidamente ingleses, bem marcados, e olhos intensamente azuis; contou-me certa vez que do seu pai, um imigrante toscano que fora para o Sussex, herdara apenas o amor pela boa comida.

Olhar para o rosto de Rossi era vislumbrar um mundo tão definido e ordenado como o render da guarda no palácio de Buckingham.

A sua cabeça era outra coisa completamente diferente. Mesmo depois de quarenta anos de rigoroso autodidatismo, fervia com os vestígios do passado, fervilhava com o que não fora explicado. A sua produção enciclopédica há muito que lhe granjeara louvores num mundo editorial muito mais amplo do que a imprensa acadêmica. Assim que terminava um trabalho, voltava-se para outro, muitas vezes mudando abruptamente de direção. Como resultado, era procurado por alunos de inúmeras disciplinas, e fui considerado uma pessoa de sorte por ter conseguido que orientasse a minha tese. Era também o amigo mais amável e caloroso que já tivera.

— Muito bem — disse ele, ligando a cafeteira e fazendo sinal para que eu me sentasse, — como vai a obra?

Coloquei-o a par de várias semanas de trabalho e tivemos uma rápida discussão sobre o comércio entre Utreque e Amsterdã no início do século dezessete. Serviu o seu excelente café em chávenas de porcelana e ambos nos recostamos nas nossas cadeiras, ele atrás da sua grande secretária. O aposento estava banhado pela agradável luminosidade que ainda persistia àquela hora, cada dia mais tarde, agora que a Primavera se instalara. Então, lembrei-me do meu livro antigo.

— Trouxe-lhe uma curiosidade, Ross. Alguém deixou por engano uma coisa bastante mórbida no meu canto de estudos na biblioteca há dois dias e resolvi trazer-lha para dar uma olhadela.

— Deixe-me ver. — Pousou a delicada chávena e estendeu a mão para pegar no meu livro. — Boa encadernação. Este couro pode ser até algum tipo de velino pesado. E tem uma estampa em relevo na lombada. — Algo na lombada do livro tornou-lhe sombrio o olhar habitualmente claro.

— Abra-o — sugeri.

Não compreendia o motivo da súbita palpitação do meu coração enquanto esperava que ele repetisse a minha experiência de encontrar o livro quase todo em branco. Este abriu-se nas suas mãos treinadas exatamente no centro. De onde eu estava, não via o que ele estava a ver atrás da secretária, mas via-o ver. O rosto ficou de repente sério com uma expressão imóvel, que eu desconhecia. Folheou o livro para a frente e para trás, como eu fizera, mas a seriedade não se transformou em surpresa.

— Sim, vazio. — Pousou-o aberto sobre a secretária. — Todo em branco.

— Não é esquisito? — O meu café estava a ficar frio na chávena que eu segurava.

— É muito antigo. Mas não está em branco apenas por estar inacabado. Está apenas ostensivamente em branco para dar destaque à gravura do centro.

— Pois é, como se a criatura no meio tivesse devorado tudo à sua volta. — Comecei a frase num tom frívolo, mas acabei-a devagar, pausado.

Rossi não conseguia tirar os olhos da imagem central aberta diante dele. Por fim, fechou o livro com firmeza e mexeu o café sem o beber.

— Onde é que arranjou isto?

— Bem, como lhe disse, alguém o deixou sem querer na minha mesa na biblioteca há dois dias. Acho que devia ter levado o livro imediatamente para a seção de Livros Raros, mas, para ser sincero, acredito que pertença a alguém, por isso não o levei.

— Ah, e é verdade — disse Rossi, encarando-me, — pertence mesmo a alguém.

— Quer dizer que sabe de quem é?

— Sei. É seu.

— Não, não é isso, eu só o encontrei na minha... — A expressão do seu rosto fez-me parar. Parecia dez anos mais velho, talvez por algum efeito especial da luz crepuscular na janela. — O que quer dizer, como pode ser meu?

Rossi levantou-se lentamente e dirigiu-se a um canto do gabinete atrás da secretária, subindo dois degraus da escadinha de biblioteca para tirar um pequeno volume escuro. Ficou parado a olhar para ele um instante, como se hesitasse em dar-mo. Então, entregou-me o livro.

— O que acha disto?

O livro era pequeno, revestido de um veludo castanho de aspecto antigo, semelhante a um missal ou Livro de Horas, sem nada na lombada ou na capa que lhe conferisse alguma identidade. Possuía um fecho cor de bronze que se deslocava com uma leve pressão. O livro abriu-se ao meio por si só. Ali, espalhado no centro, estava o meu e digo o meu dragão, dessa vez derramando-se para além das margens das páginas, garras de fora, o bico selvagem aberto mostrando as presas, e com a mesma palavra, na mesma escrita gótica, no mesmo estandarte.

— É claro — dizia Rossi — que tive tempo e mandei identificar isso. É um desenho originário da Europa Central, impresso por volta de 1512, portanto o texto poderia muito bem ter sido composto com tipos móveis, se na verdade tivesse algum texto.

Folheei lentamente as folhas delicadas. Sem títulos nas primeiras páginas, isso já eu sabia.

— Que estranha coincidência.

— Tem manchas de água salgada atrás, talvez por causa de alguma travessia do mar Negro. Nem o Smithsonian foi capaz de me dizer o que aconteceu durante as suas viagens. Porque, sabe, eu dei-me ao trabalho de o submeter a uma análise química. Custou-me trezentos dólares saber que esse livro, num determinado momento, esteve num local intensamente impregnado de pó de pedra, provavelmente antes de 1700. Também fui até Istambul para tentar aprender mais sobre as suas origens Mas o mais estranho de tudo foi a maneira como adquiri esse livro.

Estendeu a mão e apressei-me a devolver-lhe o livro, antigo e frágil como era.

— Onde o comprou?

Encontrei-o na minha escrivaninha quando era estudante universitário.

Senti um calafrio, mas disfarcei-o.

— Na sua escrivaninha?

— No meu compartimento de estudos na biblioteca. Também tínhamos isso. O costume remonta aos mosteiros do século dezessete.

— Onde é que.. de onde é que ele veio? Recebeu-o de presente?

— Talvez. — Rossi sorriu de modo estranho. Parecia esforçar-se por controlar uma emoção difícil — Quer mais café?

— Sim, acho que quero — disse eu, com a garganta seca.

— As minhas tentativas para encontrar o dono fracassaram, e a biblioteca não conseguiu identificá-lo. Mesmo a Biblioteca do Museu Britânico nunca tinha visto nenhum igual e ofereceu-me uma soma considerável por ele.

Mas não quis vendê-lo.

— Não. Gosto de enigmas, como sabe. Qualquer acadêmico que se preza gosta. É a recompensa do ofício, olhar a História nos olhos e dizer: "Sei quem és. A mim não me enganas."

— Então, de que se trata? Acha que este exemplar maior foi feito pelo mesmo impressor ao mesmo tempo?

Ele tamborilou os dedos no peitoril da janela.

— Não tenho pensado muito no assunto nestes últimos anos, para dizer a verdade. Ou procurei não pensar, embora de certa forma. sinta a presença dele ali, atrás do meu ombro. — E fez um gesto para a fenda escura e vazia entre os outros livros. — Aquela prateleira de cima é a minha fila de fracassos. E das coisas em que prefiro não pensar.

— Bem, talvez agora que eu trouxe um companheiro para ele, consiga encaixar melhor as peças. É impossível os livros não estarem relacionados um com o outro.

— É impossível não estarem relacionados — repetiu ele, um eco vazio de senado, mesmo vindo através do ruído do café fresco a passar na cafeteira.

A impaciência e uma ligeira sensação febril que eu sentia com frequência naqueles dias, por causa da falta de sono e do cansaço mental, fizeram-me pressioná-lo.

— E a sua pesquisa? Para além da análise química Disse que tentou descobrir mais coisas...

— Tentei descobrir mais coisas. — Sentou-se de novo e pousou as duas mãos, pequenas e práticas, de cada lado da chávena de café. — Acho que lhe devo mais do que uma história — disse em voz baixa. — Talvez uma espécie de pedido de desculpas vai ver porquê, apesar de nunca ter desejado conscientemente deixar um legado como este a nenhum dos meus alunos. Ou à maior parte deles, admito. — E sorriu de modo afetuoso. — Mas triste, pareceu-me. Decerto já ouviu falar de Vlad Tepes o Empalador?

— Sim, Drácula. Um senhor feudal da região dos Cárpatos, também conhecido como Bela Lugosi.

— O próprio. Ou um deles. Eram uma família antiga antes de o seu membro mais desagradável assumir o poder. Tentou saber mais sobre ele na biblioteca? Sim? Mau sinal. Quando o meu livro apareceu de modo tão estranho, pesquisei a palavra nessa tarde o nome, bem como Transilvânia, Valáquia e os Cárpatos. Uma obsessão instantânea.

Perguntei a mim próprio se aquilo seria um cumprimento velado. Rossi gostava de ver os seus alunos trabalhar intensamente. — mas deixei passar, receando interromper a sua história com comentários irrelevantes.

— Pois é, os Cárpatos. Foi sempre um lugar mítico para os historiadores. Um dos alunos de Occam viajou por lá de burro, suponho e produziu, a partir das suas experiências, uma coisa engraçada chamada Filosofia do Assombroso. É claro que a história original do Drácula foi baralhada muitas vezes e não é fácil de ser investigada. Temos o príncipe da Valáquia, um soberano do século quinze, detestado ao mesmo tempo pelo Império Otomano e pelo seu próprio povo. Um dos piores tiranos da Europa medieval, sem dúvida. Calcula-se que tenha assassinado pelo menos vinte mil dos seus concidadãos da Valáquia e da Transilvânia, ao longo do tempo. Drácula significa filho de Dracul filho do dragão, mais ou menos. O pai dele foi introduzido na Ordem do Dragão por Sigismundo, imperador do Sacro Império Romano — a Ordem era uma organização para a defesa do império contra os Turcos Otomanos. Na realidade, há provas de que o pai de Drácula o entregou aos Turcos como refém, quando ele era criança, numa querela política, e que Drácula ganhou parte do seu gosto pela crueldade observando os métodos de tortura dos Otomanos. — Rossi abanou a cabeça. — Seja como for, Vlad foi morto numa batalha contra os Turcos, ou, quem sabe, talvez acidentalmente pelos seus próprios soldados, e enterrado num mosteiro situado numa ilha no lago Snagov, agora na posse da nossa amiga socialista Romênia. A sua memória transformou-se em lenda, transmitida por gerações de camponeses supersticiosos. No final do século dezenove, um escritor perturbado e melodramático, Abraham Stoker, apropriou-se do nome de Drácula para uma criatura inventada por ele, um vampiro. Vlad Tepes era de uma crueldade terrível, mas não era um vampiro, evidentemente. E não se encontra qualquer referência a Vlad no livro de Stoker, embora ele tenha reunido elementos da tradição oral popular sobre as lendas dos vampiros — e sobre a Transilvânia também, sem nunca lá ter estado, apesar de Vlad Drácula ter governado a Valnia, que faz fronteira com a Transilvânia. No século vinte, Hollywood tomou conta do assunto e o mito perdura, ressuscitado. E é nesse ponto que a minha irreverência pára, aliás.

Rossi pôs a chávena de lado e juntou as mãos. Por um instante, tive a impressão de que não conseguiria continuar.

— Posso ser irreverente quanto à lenda, que foi comercializada de uma forma monstruosa, mas não quanto ao que aconteceu com a minha pesquisa. Na verdade, fui incapaz de a publicar, em parte por causa da presença daquela lenda. Achei que o tema da pesquisa não seria levado a sério. Mas havia ainda outro motivo.

Aquilo deixou-me sem reação. Rossi nunca deixava nada por publicar; era parte da sua produtividade, da sua pródiga genialidade. Recomendava enfaticamente aos seus alunos que fizessem o mesmo, que não desperdiçassem nada.

— O que encontrei em Istambul era demasiado grave para não ser levado a sério. Talvez tenha feito mal quando decidi guardar essa informação, que é como posso honestamente classificá-la, para mim mesmo, mas cada um de nós tem as suas próprias superstições. Acontece que a minha é a do historiador. Fiquei com medo.

Olhei para ele espantado e ele suspirou, como se tivesse relutância em prosseguir.

— Veja bem, Vlad Drácula fora sempre estudado nos grandes arquivos da Europa Central e Oriental ou, em última instância, na sua região natal. Mas começou a sua carreira como matador de turcos e descobri que ninguém investigara nunca o mundo otomano à procura de material sobre a lenda do Drácula. Foi o que me levou até Istambul, numa deriva secreta da minha pesquisa sobre as antigas economias gregas. Ah, mas, por vingança, publiquei todo o meu material sobre a Grécia.

Calou-se um momento, voltando o olhar para a janela.

— E imagino que deveria contar-lhe a si, diretamente, o que descobri na coleção de Istambul e que depois procurei afastar do meu espírito. Afinal, você herdou um desses lindos livros — e pousou gravemente a mão nos dois livros empilhados. — Se não for eu a contar-lhe tudo, é provável que refaça o meu percurso, talvez correndo mais riscos. — Sorriu sem alegria por cima da mesa. — No mínimo, posso poupar-lhe um bocado de trabalho de redação de relatórios de bolsa de estudos.

A risadinha seca ficou-me entalada na garganta. Onde raio queria ele chegar? Teria enlouquecido, Deus do céu? Ocorreu-me que talvez eu não tivesse levado em conta um certo sentido de humor peculiar do meu mentor. Talvez se tratasse de uma brincadeira sofisticada — ele possuía dois exemplares do assustador livro antigo na sua biblioteca pessoal e deixara um na minha mesa, sabendo que eu lho levaria, o que eu fizera, como um tolo. Entretanto, à luz familiar do candeeiro da sua mesa, pareceu-me subitamente grisalho, com a barba crescida do fim do dia e sombras escuras em torno dos olhos, que lhes tiravam a cor e o humor. Inclinei-me para a frente.

— O que está a tentar dizer-me?

— Drácula — fez uma pausa. — Drácula... Vlad Tepes... ainda está vivo.

 

— Meu Deus — disse o meu pai subitamente, olhando para o relógio. — Por que não me avisaste? São quase sete horas.

Enfiei as minhas mãos geladas dentro do casaco azul-marinho.

— Não sabia respondi. Mas não pare de contar a história, por favor. Agora não.

O rosto do meu pai pareceu-me irreal por um momento; nunca considerara antes a possibilidade de ele ser — não sabia como definir aquilo mentalmente desequilibrado? Teria perdido o equilíbrio por alguns minutos ao contar a sua história?

— Já é tarde para uma história tão comprida.

O meu pai levantou a chávena e colocou-a de novo no pires. Reparei que as suas mãos tremiam.

— Por favor, continue — pedi. Ele ignorou-me.

— De qualquer modo, não sei se te assustei ou se apenas te aborreci. Provavelmente, querias só uma boa e simples história de dragões.

— Essa história tinha um dragão — repliquei. Também eu queria acreditar que ele inventara a história. — Dois dragões. Pelo menos, vai contar-me mais amanhã?

Esfregou os braços, como se quisesse aquecer-se, e vi que por enquanto não estava disposto a continuar a falar sobre o assunto. O seu rosto estava sombrio, fechado.

— Vamos jantar. Podemos deixar primeiro a nossa bagagem no Hotel Turist.

— Está bem — disse eu.

Além do mais, vão expulsar-nos daqui a qualquer momento, se não nos formos embora.

De onde estava, via a criadinha de cabelos claros debruçada no bar; aparentemente, tanto se lhe dava que ficássemos ou não. O meu pai pegou na carteira, alisou uma daquelas enormes notas desbotadas, que representavam sempre a imagem de um mineiro ou de um trabalhador rural sorrindo heroicamente no verso, e colocou-a na bandeja de estanho. Contornámos as cadeiras e as mesas de ferro forjado e saímos pela porta embaciada.

 

A noite caíra de fato, uma daquelas noites frias, enevoadas e úmida do Leste europeu, e a rua estava quase deserta.

— Cobre a cabeça — disse o meu pai, como sempre fazia. Antes de entrarmos no caminho sob os sicómoros encharcados de chuva, parou de repente e fez-me parar com uma mão estendida, protegendo-me como se um carro tivesse passado por nós a grande velocidade. Mas não havia carro nenhum, e a rua gotejava, quieta e rústica sob as luzes amareladas. O meu pai olhou rapidamente para a direita e para a esquerda. Não me pareceu ter visto ninguém, embora o meu amplo capuz me bloqueasse em parte a visão. Ele ficou parado a ouvir, o rosto inclinado, o corpo imóvel.

Então, soltou o ar com força e seguimos caminho, conversando sobre o que iríamos pedir para jantar no Turist, quando lá chegássemos.

Não haveria mais conversas sobre o Drácula naquele dia. Depressa me apercebi do padrão do medo do meu pai: só podia contar-me aquela história em fragmentos curtos, fragmentando-a, não para procurar efeitos dramáticos, mas para preservar qualquer coisa: a sua força? A sua sanidade?

 

De regresso a casa, em Amsterdã, o meu pai manteve-se estranhamente calado e ocupado, e eu esperei inquieta por uma oportunidade para lhe perguntar mais sobre o professor Rossi. Mrs. Clay jantava conosco todas as noites na sala de jantar revestida de lambris escuros, servindo-nos das travessas no aparador mas sentando-se à mesa como um membro da família, e o instinto dizia-me que ele não desejava continuar a sua história na presença dela. Se eu o procurava na biblioteca, ele fazia-me perguntas breves sobre o meu dia, ou pedia para ver os meus trabalhos de casa. Examinei as prateleiras da biblioteca às escondidas, logo depois de regressarmos de Emona, mas o livro e os papéis já tinham desaparecido do seu lugar lá no alto; não tinha qualquer idéia de onde ele os poderia ter colocado. Nas noites de folga de Mrs. Clay, sugeria que fôssemos ao cinema ou levava-me à loja barulhenta do outro lado do canal para um café e bolos. Eu poderia afirmar que ele estava a esquivar-se de mim, se não fosse pelas vezes em que, quando me sentava perto dele para ler, na expectativa de uma abertura para fazer perguntas, ele estendia a mão e me acariciava o cabelo com uma tristeza abstracta no rosto. Nesses momentos, era eu que não conseguia trazer à baila a história.

Quando o meu pai foi para o Sul outra vez, levou-me com ele. Teria apenas uma reunião lá, e uma reunião informal, quase não valia a pena fazer uma viagem tão longa, mas ele queria que eu visse a paisagem. Dessa vez, fomos de comboio muito para lá de Emona e depois apanhámos um autocarro para o nosso destino. O meu pai preferia os transportes locais sempre que podia utilizá-los; hoje, quando viajo, penso nele e prefiro sempre o metro ao carro alugado.

— Vais ver, Ragusa não é uma cidade para carros — disse ele, enquanto segurávamos a barra de metal atrás do banco do motorista do autocarro. — Procura sempre um lugar na frente do autocarro, é menos provável que enjoes.

Agarrei-me com força à barra de ferro até os nós dos meus dedos ficarem brancos; parecia que estávamos a voar entre os altos amontoados de rochas de um cinzento pálido que faziam as vezes de montanhas naquela nova região.

— Deus do céu — disse o meu pai depois de um salto horrível numa curva fechada. Os outros passageiros davam a impressão de estarem completamente à vontade. Num dos bancos do outro lado, uma senhora idosa vestida de preto fazia croché, o rosto emoldurado pela franja do xaile, que dançava com o sacolejar do autocarro.

— Olha com atenção — disse o meu pai. — Vais ver uma das melhores paisagens desta costa.

Eu olhava diligentemente pela janela, desejando que ele não achasse necessário dar-me tantas instruções, mas sem deixar escapar nada das montanhas de rochas empilhadas e das aldeias de pedra que as coroavam. Pouco antes do pôr do Sol, fui recompensada com a visão de uma mulher parada, à beira da estrada, talvez à espera de um autocarro que fosse para a direção oposta. Era alta, vestia saias compridas e pesadas, um corpete justo, e trazia na cabeça um fabuloso toucado que lembrava uma borboleta de organdi. Estava sozinha no meio das rochas, banhada pelo sol do fim da tarde, uma cesta no chão a seu lado. Teria pensado que se tratava de uma estátua se ela não tivesse virado a cabeça magnífica quando passámos. O rosto era oval, pálido, demasiado distante para lhe distinguir a expressão. Quando a descrevi ao meu pai, ele disse-me que a mulher devia estar a usar o traje típico daquela parte da Dalmácia.

— Um toucado grande, com uma asa de cada lado? Já vi retratos deles Pode dizer-se que é uma espécie de fantasma; provavelmente vive numa aldeia muito pequena. Suponho que a maioria dos jovens daqui usa agora jeans.

Mantive o rosto colado à janela. Não apareceram mais fantasmas, mas não perdi uma única cena do milagre que surgiu: Ragusa, lá em baixo ao longe, uma cidade de marfim com um mar de ouro fundido, batido pelo sol, quebrando-se em torno dos seus paredões, telhados mais rubros que o céu do entardecer dentro de extraordinárias muralhas medievais. A cidade estava construída numa grande península arredondada e os seus muros pareciam impenetráveis às tormentas marítimas ou às invasões, um gigante entrando mar adentro na costa do Adriático. Ao mesmo tempo, vista de muito alto na estrada, tinha a aparência de uma miniatura, como algo esculpido à mão e colocado fora de escala na base das montanhas.

A rua principal de Ragusa, quando lá chegámos umas duas horas depois, era pavimentada de mármore, intensamente polido por séculos de solas de sapatos, reflectindo salpicos de luz das lojas e dos palácios circundantes, de modo que reluzia como a superfície de um grande canal Na extremidade da rua que dava para o porto, sãos e salvos no velho coração da cidade, deixámo-nos cair nas cadeiras de um café e eu virei o rosto na direção do vento, que cheirava a maresia e — estranho para mim naquela estação do ano — a laranjas maduras. O mar e o céu estavam quase escuros. Barcos de pesca dançavam numa faixa de água mais agitada na parte mais distante do porto; o vento trazia-me sons do mar, perfumes do mar e uma nova serenidade.

— Ah, o Sul — disse o meu pai com ar satisfeito, levantando um copo de uísque e um prato de sardinhas à maneira de um brinde. — Imagina que punhas o teu barco na água exatamente aqui e tinhas uma noite de céu claro para viajar. Poderias orientar-te pelas estrelas e seguir daqui diretamente para Veneza, ou para a costa da Albânia, ou para o mar Egeu.

— Quanto tempo levaria para ir à vela até Veneza? — mexi o meu chá e a brisa levou o seu leve vapor para o mar.

— Ah, uma semana ou mais, suponho, num navio medieval. — Sorriu-me, descontraído naquele momento. — Marco Polo nasceu nesta costa, e os Venezianos invadiam-na frequentemente. Na verdade, pode dizer-se que estamos sentados numa espécie de pórtico de entrada para o mundo.

— Quando é que esteve aqui antes? — Eu estava apenas a começar a acreditar na vida anterior do meu pai, na sua existência anterior a mim.

— Estive aqui diversas vezes. Talvez umas quatro ou cinco. A primeira foi há muitos anos, quando ainda era estudante. O meu orientador recomendou-me que visitasse Ragusa ao sair de Itália, só para ver esta maravilha, enquanto estava a estudar. Já te contei que estudei Italiano em Florença durante um verão.

— Está a referir-se ao professor Rossi.

— Sim — o meu pai lançou-me um olhar penetrante e depois voltou a sua atenção para o copo de uísque.

Fez-se um breve silêncio, preenchido pelo ruído do toldo do café, que ondulava acima de nós com aquela brisa morna fora de estação. Do interior do bar e do restaurante vinha o bulício confuso de vozes de turistas, de louça a ser colocada nas mesas, de música de saxofone e piano. De mais longe, chegava o rumorejar do mar nos cascos dos barcos, no escuro do porto. Por fim, o meu pai falou.

— Devia contar-te um pouco mais sobre ele.

Ainda não olhara para mim, mas percebi que a sua voz falhara levemente.

— Eu gostaria muito — disse, cautelosa.

Ele bebericou o seu uísque. A lona do toldo batia como uma vela de barco sobre as nossas cabeças.

— Tu és teimosa quando se trata de histórias, hein?

O pai é que é teimoso, quis eu dizer, mas fechei a boca; pois a minha vontade de ouvir a história era maior do que a de discutir com ele. O meu pai suspirou.

— Está bem. Amanhã, conto-te mais sobre o Rossi, à luz do dia, quando não estiver tão cansado e tivermos algum tempo para andar pelas muralhas. — E apontou com o copo para as ameias luminosas, de um branco-acinzentado, acima do hotel. — Será uma hora melhor para contar histórias. Principalmente essa história.

 

Pelo meio da manhã seguinte estávamos sentados a uns trinta metros acima das ondas, que rebentavam e rugiam, brancas em torno das raízes gigantescas da cidade. O céu de Novembro brilhava como num dia de Verão. O meu pai pôs os óculos escuros, olhou para o relógio, dobrou e guardou o folheto sobre a arquitetura de telhados oxidados lá em baixo, deixou um grupo de turistas alemães passar e afastar-se de nós até estar fora do alcance da sua voz. Eu contemplava o mar para além de uma ilha coberta de árvores, até ao horizonte de um azul esmaecido. Daquela direção tinham vindo os navios venezianos, trazendo guerra ou comércio, as suas bandeiras vermelhas e douradas tremulando sob o mesmo céu resplandecente. Esperando que o meu pai falasse, senti uma ponta de apreensão muito pouco intelectual. E se aqueles navios que eu imaginara no horizonte fizessem simplesmente parte de um colorido espectáculo de reconstituição histórica? Por que seria tão difícil para o meu pai começar a falar?

 

— Como já te contei — disse o meu pai, pigarreando uma ou duas vezes, — o professor Rossi era um excelente acadêmico e um verdadeiro amigo. Não gostaria que tivesses dele uma opinião diferente. Sei que tudo o que te contei antes, e talvez tenha sido um erro da minha parte, faz com que Rossi pareça... meio louco. Deves lembrar-te de que ele me descreveu algo terrivelmente difícil de acreditar. E que me deixou estupefato e cheio de dúvidas a seu respeito, embora visse sinceridade e aceitação no seu rosto. Quando acabou de falar, fixou em mim aqueles olhos perspicazes.

— O que está a dizer? — devo ter balbuciado.

— Vou repetir — disse Rossi, enfático. — Descobri em Istambul que Drácula está vivo entre nós hoje. Ou estava naquela época, pelo menos.

Fiquei a olhar para ele, pasmado.

— Deve estar a pensar que enlouqueci — disse ele, suavizando nitidamente o tom. — E admito que qualquer pessoa que se ponha a remexer nessa história durante algum tempo pode muito bem enlouquecer. — E suspirou. — Em Istambul, há um acervo de material que pouca gente conhece, fundado pelo sultão Mehmed II, que tomou a cidade aos Bizantinos em 1453. Esse arquivo é, na sua maior parte, uma miscelânea reunida mais tarde pelos Turcos à medida que foram, por sua vez, sendo derrotados nas franjas do seu império. Mas também guarda documentos do final do século quinze e, entre estes, alguns mapas que supostamente davam indicações a respeito da Tumba ímpia de um matador de turcos, que pensei poder ser Vlad Drácula. Na realidade, havia três mapas, graduados em escala para mostrar a mesma região em pormenores cada vez maiores. Não havia nada nesses mapas que eu reconhecesse ou pudesse associar a qualquer região que conhecesse. Estavam catalogados principalmente em árabe e datavam de cerca de 1500, segundo os bibliotecários do arquivo. — Bateu com a mão no pequeno livro estranho que, como te contei, se parecia tanto com o que eu encontrara. — As informações no centro do terceiro mapa estavam escritas num dialeto eslavo muito antigo. Só um estudioso com múltiplos recursos linguísticos ao seu dispor teria conseguido dar sentido àquele texto. Fiz o melhor que pude, mas era um trabalho impreciso.

Nesse ponto, Rossi abanou a cabeça, como se ainda lamentasse as suas limitações.

— O esforço que dediquei a essa descoberta afastou-me excessivamente e pouco razoavelmente das minhas pesquisas oficiais desse Verão sobre o comércio de Creta na Antiguidade. Mas eu já estava para lá da razão, creio, sentado naquela biblioteca abafada e quente em Istambul. Lembro-me de que via os minaretes de Hagia Sophia através das janelas sujas. Trabalhei ali, com aquelas pistas do reino de Vlad segundo a visão dos Turcos, espalhadas na mesa à minha frente, revirando os meus dicionários, tomando extensas notas e copiando os mapas à mão. Para encurtar a história de uma longa pesquisa, chegou o dia em que me vi próximo do ponto da Tumba ímpia cuidadosamente marcado no terceiro e mais complicado dos mapas. Lembras-te de que Vlad Tepes foi supostamente enterrado no mosteiro de uma ilha do lago Snagov, na Romênia. Aquele mapa, assim como os outros dois, não mostrava qualquer lago com uma ilha mas havia um rio que passava na região e se alargava no meio. Eu já tinha traduzido todos os nomes à volta das margens com a ajuda de um professor de língua árabe e otomana da Universidade de Istambul — provérbios enigmáticos sobre a natureza do mal, muitos deles tirados do Corão. Aqui e ali no mapa, aninhadas entre montanhas toscamente esboçadas, havia algumas palavras escritas que à primeira vista pareciam ser topónimos num dialeto eslavo, mas que se traduziam como enigmas, provavelmente um código para ocultar localizações verdadeiras: Vale dos Oito Carvalhos, Aldeia dos Porcos Roubados, e assim por diante — estranhos nomes camponeses que nada significavam para mim. Bem, no centro do mapa., sobre o sítio da Tumba ímpia, onde quer que fosse suposto estar localizada, havia um esboço tosco de um dragão, usando um castelo na cabeça como uma espécie de coroa. O dragão não se parecia nada com o do meu — dos nossos — livros antigos, mas conjecturei que deveria ter chegado aos Turcos juntamente com a lenda de Drácula. Abaixo do dragão, alguém tinha escrito a tinta palavras minúsculas, numa língua que inicialmente pensei ser árabe, como os provérbios nas margens do mapa. Observando-as com a lupa, percebi de repente que estavam escritas em Grego, e traduzi-as em voz alta antes de pensar em regras de cortesia — embora não houvesse mais ninguém na sala da biblioteca alem de mim e de um bibliotecário entediado que aparecia, de vez em quando, decerto para se certificar de que eu não roubava nada. Naquele momento, estava absolutamente sozinho. As letras infinitesimais dançavam-me diante dos olhos à medida que as lia: "Neste lugar, ele reside no mal. Leitor, desenterra-o com uma palavra."

— Naquele momento, ouvi uma porta bater lá em baixo no vestíbulo. Passos pesados subiam a escada. Entretanto, eu estava ainda ocupado com o lampejo de uma idéia: a lupa acabara de me dizer que aquele mapa, ao contrário dos dois primeiros, mais genéricos, fora catalogado por três pessoas diferentes em três línguas diferentes. As caligrafias, assim como as línguas, eram dissemelhantes. E também as cores das velhas tintas. E tive uma visão repentina sabes, aquela intuição em que um estudioso quase pode confiar quando está apoiado em semanas de trabalho meticuloso.

— Tinha a impressão de que o mapa consistira originalmente naquele esboço central e nas montanhas que o rodeavam, com a frase em Grego no centro. Provavelmente, só mais tarde fora catalogado naquele dialeto eslavo para identificar os lugares a que o mapa aludia em código, pelo menos. Depois, caíra em mãos otomanas e o desenho fora contornado por frases do Corão, que pareciam encerrar ou aprisionar aquela ameaçadora mensagem no centro, ou cercá-la com talismãs contra as trevas. Se isto fosse verdade, alguém, que sabia Grego, teria marcado primeiro o mapa, talvez o tivesse mesmo desenhado. Sabia que o Grego era usado pelos eruditos bizantinos do tempo de Drácula, mas não pela maioria dos eruditos do mundo otomano. Antes que eu pudesse sequer fazer uma anotação sobre esta teoria, que envolveria testes que ultrapassavam as minhas capacidades, a porta do outro lado dos conjuntos de estantes abriu-se com estrondo e um homem alto e bem constituído entrou, passou apressado e impetuoso pelos livros e parou do outro lado da mesa onde eu trabalhava. O efeito foi chocante, incómodo. Ele não escondia o fato de estar consciente da sua intrusão e eu tinha a certeza de que não se tratava de um dos bibliotecários. Senti também, por qualquer razão, que deveria levantar-me, mas um certo orgulho impediu-me de o fazer; poderia parecer uma deferência, quando a interrupção fora inesperada e bastante descortês.

— Encarámo-nos e fiquei ainda mais surpreendido. O homem não se encaixava definitivamente naquele ambiente esotérico. Era bem-parecido e elegante, muito moreno, parecendo um Turco ou um Eslavo do Sul, com bastos bigodes caídos e fato escuro como o de um homem de negócios ocidental. Os seus olhos fitaram os meus com agressividade, e as suas pestanas compridas pareciam de certa forma repulsivas naquele rosto severo. A pele era amarelada e pálida mas impecável, perfeita, sem qualquer mancha, e os lábios muito vermelhos.

— Senhor — disse ele, a voz baixa e hostil, quase um rosnado num inglês com sotaque turco, — não creio que tenha as autorizações necessárias para isso.

— Para quê? — os meus brios acadêmicos reagiram de imediato.

— Para essas pesquisas. O senhor está a lidar com material que o Governo turco considera arquivo confidencial da Turquia. Posso ver os seus documentos, por favor?

— Quem é o senhor? — perguntei, com idêntica frieza. — Posso ver os seus?

Ele tirou uma carteira do bolso interior do casaco, escancarou-a em cima da mesa à minha frente e fechou-a de seguida com um gesto rápido. Só tive tempo de ver um cartão cor de marfim com uma misturada de títulos turcos e árabes. A mão do homem tinha um aspecto desagradável, como se fosse de cera, com unhas compridas e um tufo de pêlos escuros nas costas.

— Ministério dos Recursos Culturais — disse ele, gélido. — Fui informado de que não fez qualquer acordo de fato com o Governo turco para examinar esse material. É verdade?

— De maneira nenhuma. — Mostrei-lhe uma carta da Biblioteca Nacional declarando que me concedia o direito de realizar pesquisas em qualquer uma das suas divisões em Istambul.

— Não é suficiente — disse ele, atirando a carta para o meio dos meus papéis. — Talvez tenha de me acompanhar.

— Para onde? — Levantei-me, sentindo-me agora mais seguro de pé, mas esperando que ele não tomasse o meu gesto como uma manifestação de obediência.

— Para a polícia, se necessário.

— Isto é uma afronta. — No caso de uma dúvida burocrática, aprendera eu, levanta a voz. — Sou doutorando na Universidade de Oxford e cidadão do Reino Unido. Registrei-me na universidade daqui no dia em que cheguei e recebi esta carta como prova da minha posição. Não admito ser interrogado pela polícia — ou pelo senhor.

— Estou a ver. — Sorriu de uma maneira que me deu um nó no estômago. Lera um pouco sobre as prisões turcas e os seus esporádicos hóspedes ocidentais, e a minha situação pareceu-me precária, embora não compreendesse em que tipo de dificuldade poderia estar metido. Tinha esperança de que um dos vagarosos bibliotecários me tivesse ouvido e viesse recomendar silêncio. Depois, ocorreu-me que eles tinham certamente permitido a entrada daquele sujeito, com o seu intimidante cartão-de-visita, para falar comigo. Talvez fosse realmente alguém importante. Ele inclinou-se para a frente. — Vejamos o que está a fazer aqui. Afaste-se, por favor. — Contra a minha vontade, cheguei-me para o lado e ele inclinou-se para o meu trabalho, fechando ruidosamente os meus dicionários para ler as respectivas capas, sempre com aquele sorriso inquietante. Era uma presença maciça por cima da mesa, e reparei que exalava um odor esquisito, como o de uma água-de-colônia usada sem muito sucesso para disfarçar algum mau cheiro. Por fim, pegou no mapa em que eu estava a trabalhar, as mãos de repente delicadas, segurando-o quase com carinho. Olhou para o mapa como se não precisasse de examinar muito para saber do que se tratava, embora eu achasse que devia estar a fazer bluff.

— Este é o material do arquivo que está a usar, não é?

— É — respondi, zangado.

— Isto é propriedade valiosa do Governo turco. Não creio que vá precisar dela para qualquer finalidade estrangeira. E foi este pedaço de papel, este pequeno mapa, que o fez vir da sua universidade estrangeira até Istambul?

Cheguei a pensar em argumentar que viera também com outros objetivos, para o desviar do tema dos meus estudos, mas percebi imediatamente que isso poderia levar a mais perguntas da sua parte.

— Sim, essencialmente.

— Essencialmente? — repetiu, num tom mais ameno. — Bem, acho que vou ter de confiscar isto temporariamente. — Que vergonha para um investigador estrangeiro. Eu fervia de raiva ali parado, tão perto da minha solução, e dei graças a Deus por não ter trazido naquela manhã as cópias meticulosas que fizera de velhos mapas dos Cárpatos, que pretendia começar a comparar com aquele mapa no dia seguinte. Estavam escondidas na minha mala, no hotel.

— O senhor não tem o direito de confiscar material para o qual já recebi autorização para trabalhar — disse eu, rangendo os dentes. — Vou levar imediatamente a questão à Biblioteca Nacional. E à Embaixada da Inglaterra. Seja como for, qual é a sua objeção a que eu estude estes documentos? São fragmentos obscuros de história medieval. Tenho a certeza de que nada têm a ver com os interesses do Governo turco.

O burocrata olhava através de mim, como se as agulhas das torres de Hagia Sophia se apresentassem sob um ângulo novo e interessante que ele nunca tivera ocasião de ver antes

— É para seu próprio bem — prosseguiu ele, impassível. — É muito melhor deixar outra pessoa trabalhar nisso. Talvez noutra altura.

Permaneceu imóvel, com a cabeça voltada para a janela, quase como se quisesse que eu seguisse o seu olhar em direção a um determinado ponto. Tive a sensação infantil de que não deveria fazê-lo porque poderia ser um ardil, por isso preferi olhar para ele e esperar. Então vi, como se ele tivesse a intenção que a oleosa luz do dia incidisse exatamente ali, o seu pescoço a sair do colarinho da camisa cara. No lado do seu pescoço musculoso, onde a carne é mais profunda, havia duas crostas castanhas de fendas, não abertas mas sem estarem ainda completamente cicatrizadas, semelhantes a perfurações feitas por dois espinhos ou a cortes com a ponta de uma faca

Recuei, afastei-me da mesa, imaginando que perdera o juízo com todas as minhas leituras mórbidas, que realmente estava a ficar desequilibrado. Mas a luz do dia era perfeitamente vulgar, o homem do fato de lã escura perfeitamente real, até no cheiro de falta de banho, de suor, ou de outra coisa qualquer por baixo do perfume da água-de-colônia. Nada desapareceu ou mudou. Não conseguia tirar os olhos daquelas duas pequenas fendas mal cicatrizadas. Depois de alguns segundos, ele virou as costas à vista absorvente, parecendo satisfeito com o que vira — ou com o que eu vira — e sorriu de novo.

— Para seu próprio bem, professor.

Fiquei ali sem fala, estático, enquanto ele saía da sala com o mapa enrolado na mão, e ouvi o som dos seus passos morrer aos poucos nas escadas. Minutos depois, um dos bibliotecários idosos entrou, um homem com uma espessa cabeleira grisalha, transportando dois fólios, que se preparou para deixar numa prateleira baixa.

— Desculpe — disse-lhe eu, com a voz meio presa na garganta, — desculpe, mas isto é um absurdo. — Ele olhou-me, espantado. — Quem era aquele homem? O funcionário do Ministério?

— Funcionário do Ministério — repetiu o bibliotecário, gaguejando.

— Preciso que me dê imediatamente uma carta oficial confirmando o meu direito de trabalhar neste arquivo.

— Mas o senhor tem todo o direito de trabalhar aqui — disse ele, em tom apaziguador. — Fui eu mesmo que fiz a sua inscrição.

— Eu sei, eu sei. Por isso tem de ir atrás dele e obrigá-lo a devolver o mapa.

— Ir atrás de quem?

— Do homem do Ministério, o que acabou de descer. O senhor não o deixou entrar?

Olhou-me com uma expressão curiosa por baixo da sua trunfa grisalha.

— Alguém entrou aqui? Ninguém entrou neste lugar nas últimas três horas. Sou eu próprio que fico na entrada. Infelizmente, poucas pessoas vêm aqui pesquisar.

— O homem... — comecei a falar, mas calei-me. De repente, vi a minha própria figura, um estrangeiro maluco a gesticular. — Ele levou o meu mapa. Quer dizer, o mapa do arquivo.

— O mapa, Herr Professor?

— Eu estava a trabalhar num mapa. O que requisitei esta manhã no balcão.

— Não é aquele? — E apontou para a minha mesa de trabalho. Mesmo no meio, estava um vulgar mapa de estradas dos Balcãs que eu nunca vira na vida. Certamente não estivera ali cinco minutos antes. Achava que devia estar a perder a minha sanidade mental, mas tinha a certeza absoluta de que aquele mapa não estava ali. O bibliotecário guardou o seu segundo fólio.

— Não tem importância.

Juntei os meus livros o mais depressa que pude e saí da biblioteca. Na rua movimentada, cheia de tráfego, não havia sinal do burocrata, embora vários homens de altura e peso semelhantes, com fatos parecidos, tenham passado por mim com as suas pastas. Quando cheguei ao quarto em que estava hospedado, descobri que os meus pertences tinham sido deslocados devido a algum problema prático com o quarto. Os meus primeiros desenhos dos velhos mapas, assim como as anotações completas de que eu não precisara naquele dia, tinham desaparecido. A minha mala fora impecavelmente refeita. O pessoal do hotel disse que não sabia nada sobre isso. Passei a noite em claro, prestando atenção a todos os sons vindos do exterior. Na manhã seguinte, recolhi a minha roupa suja e os meus dicionários e apanhei o navio de regresso à Grécia.

 

O professor Rossi entrelaçou as mãos de novo e olhou para mim, como se esperasse pacientemente a minha manifestação de descrença. Entretanto, o que subitamente me abalava era a crença, não a dúvida.

— E voltou para a Grécia?

— Voltei, e passei o resto do Verão a tentar ignorar a recordação da minha aventura em Istambul, embora não pudesse ignorar as suas implicações.

— Foi-se embora porque estava... assustado?

— Apavorado.

— No entanto, mais tarde fez, ou mandou fazer, todas aquelas pesquisas sobre o seu estranho livro?

— Sim, principalmente a análise química no Smithsonian. Mas quando o exame se revelou inconclusivo, e ao mesmo tempo influenciado por outros fatores, abandonei por completo a questão e guardei o livro na estante. Lá para cima, por acaso. — Fez um gesto com a cabeça na direção da prateleira mais alta da estante. — Penso de vez em quando naqueles acontecimentos, às vezes lembro-me deles com muita clareza, outras vezes só em fragmentos. Imagino, porém, que a familiaridade acabe por desgastar mesmo as lembranças mais terríveis. E sem dúvida há períodos, anos a fio, em que não quero pensar de maneira nenhuma nisso.

— Mas acredita mesmo... aquele homem com as feridas no pescoço...

— O que pensaria se ele estivesse à sua frente e você estivesse certo da sua própria sanidade?

Estava de pé encostado às estantes e, por um momento, o seu tom de voz soou irritado. Dei um último gole no café frio; o que restava dele estava muito amargo.

— E nunca tentou decifrar novamente o significado daquele mapa, ou saber de onde viera?

— Nunca — fez uma pausa momentânea. — Não. É uma das poucas pesquisas que estou certo de nunca vir a terminar. Tenho porém uma teoria de que essa linha de estudos horripilante, como tantas outras menos horrorosas, é apenas algo em que uma pessoa faz pequenos progressos, depois outra faz mais um pouco, cada uma contribuindo com uma pequena parcela durante a vida. Quem sabe, três dessas pessoas, há séculos atrás, fizeram exatamente isso ao desenhar aqueles mapas e fazer os acréscimos, embora eu admita que todas aquelas frases do Corão usadas como talismãs não devem ter contribuído em nada para aumentar os conhecimentos sobre a verdadeira localização da sepultura de Vlad Tepes. E é claro que tudo isto pode ser um grande disparate. Ele pode muito bem ter sido enterrado no mosteiro daquela ilha, como reza a tradição romena, e ter lá ficado em paz, como uma boa alma. O que ele não era.

— Mas não acredita nisso.

Ele hesitou outra vez.

— O conhecimento precisa prosseguir. Para o bem ou para o mal, mas inevitavelmente, em todos os campos.

— Alguma vez foi a Snagov para ver com os seus próprios olhos, fosse o que fosse?

Ele abanou a cabeça.

— Não. Desisti da pesquisa.

Pousei a minha chávena gelada na mesa, sondando a expressão do seu rosto.

— Mas guardou algumas informações — arrisquei, devagar.

Ele enfiou novamente a mão entre os livros da prateleira mais alta, tirando de lá um envelope pardo lacrado.

— Claro. Quem seria capaz de destruir completamente uma pesquisa? Copiei de memória o que pude dos três mapas e guardei as minhas outras anotações, as que estavam comigo naquele dia no arquivo.

Colocou o pacote na mesa sem o abrir, entre nós os dois, e tocou nele com uma delicadeza que não combinava com o horror que revelara ter pelo seu conteúdo. Talvez tenha sido essa incongruência, ou o fim de tarde de Primavera ter-se transformado em noite lá fora, que me fez ficar ainda mais nervoso.

— Não acha que isto pode ser um legado perigoso?

— Só Deus sabe como eu gostaria de dizer que não. Mas talvez seja perigoso apenas no sentido psicológico. A vida é melhor, mais íntegra, quando não ruminamos horrores desnecessariamente. Como sabe, a história humana está cheia de más ações, e talvez devêssemos pensar nelas com lágrimas, e não com fascínio. Foi há tantos anos que já nem sei se deva confiar nas minhas recordações de Istambul, onde nunca mais fiz questão de voltar. Além disso, tenho a impressão de que trouxe comigo tudo o que precisava saber.

— Para prosseguir a pesquisa?

— Sim.

— Mas ainda não sabe quem teria concebido um mapa mostrando onde fica a sepultura dele? Ou onde ficava?

— Não.

Estendi a mão para pegar no envelope pardo.

— Não precisarei de um rosário para levar juntamente com isto, ou algo do gênero, um amuleto?

— Estou certo de que leva consigo a sua bondade, o seu sentido moral, ou como lhe quiser chamar. Seja como for, gosto de pensar que a maioria de nós é capaz disso. Eu também não sairia por aí com alho no bolso, de modo nenhum.

— Mas com algum forte antídoto mental.

— Sim, tentei. — O seu rosto estava profundamente triste, quase lúgubre. — Talvez tenha feito mal em não recorrer a essas antigas superstições, mas suponho que sou um racionalista e assim continuarei.

Os meus dedos fecharam-se no envelope.

— E não se esqueça do seu livro. É interessante e desejo-lhe sorte para identificar a sua origem. — Entregou-me o meu livro encadernado em velino. A tristeza dos seus olhos desmentia o tom superficial das palavras. — Volte daqui a duas semanas e falaremos mais sobre o comércio em Utreque.

Devo ter pestanejado; até a minha tese me parecia irreal.

— Claro, está bem.

Rossi recolheu as chávenas de café e eu guardei as coisas na minha pasta, com os dedos rígidos.

— Mais uma coisa — disse-me com ar grave, quando me virei novamente para ele.

— Sim?

— Não vamos voltar a falar sobre este assunto.

— Não vai querer saber como estou a evoluir?

Aquilo deixava-me aterrorizado, sozinho.

— Encare as coisas assim, se quiser. Não quero saber. A menos, é claro, que se veja em dificuldades.

Apertou-me a mão com a sua habitual maneira afectuosa. O rosto estava realmente triste, o que era novidade para mim, e então esforçou-se para sorrir.

— Está bem — disse eu.

— Daqui a duas semanas — lembrou ele num tom quase alegre enquanto eu saía. — Traga um capítulo pronto, ou algo parecido.

 

O meu pai calou-se. Para meu espanto e embaraço, vi que havia lágrimas nos seus olhos. Aquele vislumbre de emoção teria interrompido as minhas perguntas mesmo que ele não tivesse dito nada.

— Pois é, escrever uma tese não é brincadeira — disse ele, num tom despreocupado. — De qualquer forma, talvez tivesse sido melhor nem tocar neste assunto. É uma história antiga, tão complicada, e claro que afinal de contas tudo acabou bem, porque eu estou aqui, nem sou já sequer aquele professor soturno que era dantes, e tu estás aqui. — Piscou os olhos, estava a recompor-se. — É um final feliz, como devem ser os finais.

— Mas talvez haja muita coisa pelo meio — consegui dizer.

O calor do sol chegava-me apenas à pele, não aos ossos, enregelados por uma brisa fria vinda do mar. Espreguiçámo-nos e olhámos para um e outro lado, examinando a cidade, em baixo. O último grupo de turistas passara por nós ao longo da muralha e encontrava-se numa reentrância distante, apontando para as ilhas ou a posar para as câmaras uns dos outros. Relanceei os olhos para o meu pai, mas ele estava a contemplar o mar. Atrás dos outros turistas e já bem adiante de nós, havia um homem cuja presença eu não notara antes, caminhando devagar mas inexoravelmente fora de alcance, alto, de ombros largos e vestido com um fato escuro de lã. Já tínhamos encontrado outros homens de fato escuro naquela cidade; por que razão me era tão difícil deixar de olhar para aquele?

 

Por me sentir tão constrangida com o meu pai, decidi investigar um pouco por conta própria e, um dia, depois da escola, fui sozinha para a biblioteca da universidade. O meu holandês era bastante razoável, há anos que estudava Francês e Alemão e a universidade tinha um vasto acervo de obras em Inglês. Os bibliotecários eram amáveis e só precisei de uma ou duas conversas tímidas para encontrar o material que procurava: o texto dos folhetos de Nuremberg sobre Drácula que o meu pai mencionara. A biblioteca não possuía os originais — eram muito raros, explicou-me o bibliotecário idoso do acervo medieval, mas encontrou o texto numa colectânea de documentos medievais alemães traduzido para o Inglês.

— Será que é disto que está à procura, minha querida? — perguntou ele, sorrindo.

Tinha um desses rostos muito claros e abertos de certos holandeses o olhar direto e azul e o cabelo parecia ter ficado mais louro com o tempo, em vez de grisalho. Os pais do meu pai, em Boston, tinham morrido quando eu era pequena, e pensei que gostaria de ter um avô daquele gênero.

— Chamo-me Johan Binnerts — acrescentou. — Pode procurar-me sempre que precisar de ajuda.

Respondi que era exatamente o que procurava, dank u, e ele bateu-me ao de leve no ombro antes de se afastar em silêncio. Na sala vazia, reli o primeiro parágrafo do meu caderno de anotações:

 

"No ano de Nosso Senhor de 1456, Drakula fez muitas coisas terríveis e singulares. Quando foi nomeado Senhor da Valáquia, mandou queimar todos os jovens que tinham ido para aquela terra aprender a língua, num total de quatrocentos. Mandou empalar uma família numerosa e muitos dos seus súbditos foram enterrados nus até ao umbigo e alvejados. A alguns, mandou-os esfolar e depois assar."

 

Havia também uma nota de rodapé no fim da primeira página. Os caracteres da nota eram tão pequenos que quase me passou despercebida. Olhando mais de perto, verifiquei que se tratava de uma explicação sobre a palavra "empalar". Dizia que Vlad Tepes aprendera aquela forma de tortura com os Otomanos. A empalação que ele praticava consistia na penetração do corpo com uma estaca afiada de madeira, em geral pelo ânus ou pelos órgãos genitais, de tal modo que a estaca saía às vezes pela boca e às vezes pela cabeça.

Tentei por um minuto não ver estas palavras; depois, durante vários minutos, tentei esquecê-las, com o livro fechado

Porém, o que mais me impressionou naquele dia, quando guardei o meu caderno e vesti o casaco para ir para casa, não foi a imagem fantasmagórica de Drácula nem a descrição do empalamento, mas o fato de estas coisas, aparentemente, terem acontecido realmente. Se prestasse atenção, pensei, ouviria os gritos dos rapazes, da "família numerosa" morrendo junta. Apesar de todo o seu cuidado com a minha educação histórica, o meu pai esquecera-se de me contar isto: os terríveis momentos da história eram reais. Compreendo hoje, décadas mais tarde, que de nada adiantaria ele ter-me contado. Só a própria história pode convencer-nos desta verdade. E uma vez que tenhamos visto de frente esta verdade, visto realmente, já não podemos desviar os olhos dela.

Ao chegar a casa naquela noite, senti uma espécie de força diabólica e enfrentei o meu pai. Ele estava a ler na biblioteca enquanto Mrs. Clay estava às voltas com os pratos do jantar na cozinha. Fui para a biblioteca, fechei a porta e postei-me diante da poltrona dele. Ele segurava um dos seus amados livros de Henry James, o que nele era um sinal inconfundível de tensão. Fiquei parada sem falar até ele levantar os olhos para mim.

— Olá — disse ele, pegando no seu marcador com um sorriso. — Um problema de álgebra? — O seu olhar já revelava ansiedade.

— Quero que acabe a história — disse eu.

Ele ficou calado, tamborilando com os dedos no braço da cadeira.

— Por que não me conta o resto? — Foi a primeira vez que senti que era uma ameaça para ele. Olhou para o livro que acabara de fechar. Sabia que estava a ser cruel com ele de uma forma que eu mesma não compreendia, mas, já que começara aquela maldita tarefa, teria de a terminar. — O pai não quer que eu saiba certas coisas.

O meu pai levantou finalmente os olhos para mim. O seu rosto estava inexplicavelmente triste, marcado por rugas profundas a luz do candeeiro.

— Não, não quero.

— Sei mais do que pensa — disse eu, apesar de sentir que aquilo era uma infantilidade, não lhe diria o que sabia ainda que me perguntasse.

Ele juntou as duas mãos sob o queixo.

— Sei que sabes — disse por fim. — E porque não sabes nada, vou ter de te contar tudo.

Olhei para ele, surpreendida.

— Então, conte-me — disse eu, arrebatada. Ele baixou de novo a cabeça

— Vou contar-te, vou contar-te assim que puder. Mas não aqui, em nossa casa. E não tudo de uma vez. Não consigo. — E explodiu. — Tudo de uma vez é demais para mim. Tem paciência comigo.

O olhar que me lançou era de súplica, não de acusação. Aproximei-me e envolvi com o meu braço a sua cabeça curvada.

 

Março costuma ser frio e ventoso na Toscana, mas o meu pai achou que uma viagem curta pelo campo seria o ideal depois de quatro dias de palestras — sempre considerei o trabalho dele como "palestras" — em Milão. Desta vez, não precisei de pedir que me levasse com ele.

— Florença é maravilhosa, principalmente fora da estação — declarou, enquanto saíamos de carro de Milão rumo ao Sul. — Gostaria que fosses até lá um dia destes. Primeiro, vais ter de aprender um pouco mais sobre a história da cidade e sobre as suas pinturas para a apreciares devidamente. Mas o campo da Toscana é o melhor que há. Descansa os olhos e estimula-os ao mesmo tempo, vais ver.

Concordei com a cabeça e acomodei-me no banco do Fiat alugado. O amor do meu pai pela liberdade era contagiante, e eu gostava da maneira como ele alargava o nó da gravata e o colarinho da camisa quando partíamos para um lugar novo. O Fiat seguia a uma velocidade uniforme pela lisa auto-estrada do Norte de Itália.

— De qualquer maneira, há anos que tenho vindo a prometer a Massimo e Giulia que viríamos. Nunca me perdoariam se eu passasse tão perto sem os visitar. — Inclinou o corpo para trás e estendeu as pernas. — Eles são um tanto esquisitos. Excêntricos talvez seja uma definição melhor, mas são muito gentis. Alinhas?

— Já disse que sim — frisei.

Preferia estar sozinha com o meu pai do que visitar estranhos, cuja presença despertava sempre a minha timidez natural, mas ele mostrava-se ansioso por rever os seus velhos amigos. Em todo o caso, a vibração do Fiat dava-me sono; estava cansada da viagem de comboio. Tivera uma indisposição naquela manhã, o fluxo de sangue alarmantemente atrasado que era sempre um motivo de preocupação para o meu médico e que fizera a desajeitada Mrs. Clay abastecer a minha mala com uma porção de maços de algodão. A minha primeira reação ao dar com aquela alteração foram lágrimas de surpresa no lavabo do comboio, como se alguém me tivesse ferido; a pequena mancha no algodão delicado das minhas cuecas parecia a impressão digital de um assassino. Mas não dissera nada ao meu pai. Vales, aldeias alcantiladas em colinas distantes tornaram-se um panorama difuso que passava pela janela do carro e depois uma mancha indistinta. Ainda estava sonolenta à hora do almoço, numa cidade feita de cafés e bares escuros, com gatos a enroscarem-se e desenroscarem-se à entrada das portas.

Mas quando, ao crepúsculo, subimos na direção de uma daquelas vinte cidades no alto de colinas, amontoadas à nossa volta como temas de um fresco, senti-me bem acordada. O anoitecer cheio de nuvens varridas pelo vento revelava brechas de pôr-do-sol no horizonte na direção do Mediterrâneo, disse o meu pai, na direção de Gibraltar e de outros lugares onde poderíamos ir um dia. Acima de nós, erguia-se uma cidade construída sobre estacas de pedra, com ruas quase verticais e vielas com degraus estreitos. O meu pai guiava o pequeno carro aparentemente ao acaso, até que passámos à porta de uma trattoria que derramava luz nas pedras arredondadas da rua molhada. Nessa altura, ele desceu devagar pelo outro lado da colina.

— Acho que é aqui, se bem me lembro. — E enveredou por um caminho cheio de sulcos de pneus e guardado por ciprestes escuros. — Villa Montefollinoco, em Monteperduto. Monteperduto é a cidade, lembras-te?

Eu lembrava-me. Tínhamos examinado o mapa ao pequeno-almoço, o dedo do meu pai traçando o percurso depois de tomar a sua chávena de café:

— Siena é aqui. Fica na Toscana Depois, atravessamos até à Umbria. Cá está Montepulciano, um famoso lugar antigo, e nesta próxima colina fica a nossa cidade, Monteperduto. — Os nomes estavam associados um ao outro na minha cabeça, mas monte significava montanha e estávamos cercados por montanhas de casa de bonecas, pequenas montanhas pintadas como se fossem filhotes dos Alpes, que eu já atravessara duas vezes.

Na escuridão iminente, a villa parecia pequena, uma casa baixa de quinta, feita de pedra bruta, com ciprestes e oliveiras agrupados à volta dos telhados avermelhados e um par de postes de pedra inclinados a marcar o caminho que dava acesso à casa. Havia luz nas janelas do andar de baixo e, de repente, dei-me conta de que estava faminta, cansada e irritada, com uma irritação de jovem que teria de disfarçar na presença dos nossos anfitriões. O meu pai tirou a nossa bagagem da mala do carro e eu segui-o através do caminho.

— Até a sineta ainda é a mesma — disse ele, satisfeito, puxando uma pequena corda na entrada e ajeitando o cabelo na penumbra

O homem que abriu a porta saiu como um pé-de-vento, abraçando o meu pai, dando-lhe palmadas nas costas, beijando-o ruidosamente nas duas faces, inclinando-se um pouco demais para me apertar a mão. A dele era enorme e quente, e pousou-a no meu ombro para entrarmos juntos. No vestíbulo, de teto baixo e vigas à vista, cheio de móveis que até então eu só vira em museus, berrou como um animal da quinta:

— Giulia, Giulia! Anda cá! Vem ver quem chegou! Anda!

O inglês dele era seguro, forte, sonoro.

A mulher alta e sorridente que veio ao nosso encontro agradou-me de imediato. O cabelo dela era grisalho, mas brilhava com reflexos prateados, preso atrás da cabeça e descobrindo-lhe o rosto comprido. Começou por sorrir para mim e não se curvou para a frente para me cumprimentar. A sua mão era quente, como a do marido, e beijou o meu pai nas duas faces, sacudindo a cabeça por entre um fluxo suave de palavras em italiano.

— E tu — disse-me em inglês, — vais ter um quarto só para ti, um quarto bem simpático, está bem?

— Está bem — concordei, gostando da idéia. Esperava que ficasse próximo do quarto do meu pai e tivesse uma boa vista do vale circundante, que tínhamos percorrido demasiado depressa.

Depois do jantar na sala com o chão lajeado, todos os adultos se recostaram nas cadeiras e suspiraram.

— Giulia — disse o meu pai —, cada ano cozinhas melhor. És uma das grandes cozinheiras de Itália.

— Que disparate, Paolo. — O inglês dela tinha traços de Oxford e Cambridge. Estás sempre a dizer esses disparates.

— Talvez seja do Chianti. Deixa-me olhar para essa garrafa.

— Deixa-me encher-te outra vez o copo — interrompeu Massimo. — E o que está a linda filha do Paolo a estudar?

— Estudamos todos os assuntos na minha escola — disse eu, toda empertigada.

— Ela gosta de História, julgo eu — disse o meu pai. — E também é uma boa viajante.

— História? — Massimo encheu de novo o copo de Giulia, e depois o seu, com um vinho cor de granadas, ou de sangue escuro. — Como tu e eu, Paolo. Chamamos assim ao teu pai — explicou-me, — à parte porque não suporto esses aborrecidos nomes anglo-saxões que vocês têm todos. Lamento, mas não os suporto. Paolo, meu amigo, quase caí morto quando me contaram que desististe da vida acadêmica para andares pelo mundo a dar palestras. Então, quer dizer que ele gosta mais de falar do que de ler e estudar, pensei com os meus botões. Um grande acadêmico perdido para o mundo, é o que o teu pai é.

Deu-me meio copo de vinho sem pedir autorização ao meu pai e misturou-o com um pouco de água de um jarro que estava em cima da mesa. Naquela altura, eu já estava a gostar muito dele.

— Agora és tu que estás a dizer disparates — disse o meu pai, bem-humorado. — Eu gosto de viajar, essa é que é a verdade.

— Ah, bom. — Massimo abanou a cabeça. — Pois é, Signor Professor, e foste tu que disseste um dia que serias o maior de todos. Não é que a tua fundação não seja um magnífico sucesso, sei muito bem disso.

— Precisamos de paz e de uma diplomacia esclarecida, e não de pesquisas sobre questões insignificantes que não interessam a ninguém — rebateu o meu pai, sorridente.

Giulia acendeu uma lanterna no aparador e apagou a luz eléctrica. Levou a lanterna para a mesa e começou a cortar uma torta para a qual até então eu me esforçara por não olhar muito. A superfície da torta brilhava como obsidiana ao ser cortada.

— Em História, não existem questões insignificantes. Além do mais, até o grande Rossi dizia que tu eras o seu melhor aluno. E o resto da turma não conseguia agradar ao homem.

— Rossi! exclamei antes de conseguir conter-me. O meu pai lançou-me um olhar embaraçado por cima do seu prato de bolo.

— Quer dizer que conheces as lendas sobre os sucessos acadêmicos do teu pai, minha menina? — disse Massimo, enchendo a boca com chocolate. O meu pai lançou-me outro olhar.

— Contei-lhe algumas histórias sobre aquela época — explicou. Percebi a advertência velada no seu tom de voz. Logo de seguida, porém, achei que a advertência poderia ter sido dirigida a Massimo e não a mim, porque o próximo comentário de Massimo provocou-me um calafrio e o meu pai desviou rapidamente o assunto para a política.

— Coitado do Rossi — disse Massimo. — Um homem maravilhoso, trágico. É muito estranho pensar que uma pessoa que conhecemos tão bem possa simplesmente desaparecer de um momento para o outro.

Na manhã seguinte, estávamos sentados na piazza banhada pelo sol no alto da cidade, os casacos firmemente abotoados e os guias turísticos na mão, observando dois meninos que deveriam, tal como eu, estar na escola naquele momento. Gritavam e davam pontapés numa bola de futebol em frente da igreja. Eu esperava, paciente. Esperara a manhã inteira, durante a visita a pequenas capelas escuras "com elementos de Brunelleschi", segundo o vago e entediado guia, e ao Palazzo Publico, com a sua sala de recepções que servira durante séculos a fio como depósito de cereais da cidade. O meu pai suspirou e deu-me uma das duas Oranginas em bonitas garrafas que trazia na mão.

— Vais perguntar uma coisa — disse ele, meio soturno.

— Não, só quero saber sobre o professor Rossi — e meti a palhinha na garrafa.

— Foi o que pensei. O Massimo não devia ter tocado no assunto.

Eu temia a resposta, mas tinha de perguntar.

— O professor Rossi morreu? Foi o que Massimo quis dizer quando referiu que ele desapareceu?

O olhar do meu pai atravessou a praça ensolarada, até aos cafés e aos talhos do outro lado.

— Sim. Não. Bem, foi uma coisa muito triste. Queres mesmo saber o que aconteceu?

Concordei com um gesto da cabeça. O meu pai olhou rapidamente em volta. Estávamos sentados num banco de pedra que se projectava de um dos bonitos palazzi antigos e não havia mais ninguém por perto a não ser os garotos que jogavam futebol na praça.

— Está bem — disse finalmente.

 

— Bem — disse o meu pai, — naquela noite em que Rossi me entregou o pacote de documentos, deixei-o sorridente à porta do seu gabinete mas, ao virar-lhe as costas, tive a sensação de que devia retê-lo ou voltar atrás para conversar um pouco mais com ele. Achei que era apenas o resultado da nossa estranha conversa, a mais estranha da minha vida, e afastei aquilo da minha mente. Dois outros alunos do nosso departamento aproximaram-se, entretidos numa conversa entre si, cumprimentaram Rossi antes que ele fechasse a porta e desceram rapidamente as escadas atrás de mim. A sua conversa animada deu-me a impressão de que a vida prosseguia normalmente à nossa volta, mas ainda assim sentia-me inquieto. O meu livro, ilustrado com o dragão, era uma presença que queimava na minha pasta, e agora Rossi acrescentara-lhe aquele pacote de anotações lacrado. Pensava se deveria examiná-los mais tarde à noite, sozinho à secretária do meu minúsculo apartamento. Estava exausto; achava que não conseguiria enfrentar o que quer que estivesse lá dentro.

Desconfiava também que a luz do dia, a manhã, me devolveriam a segurança e a razão. Talvez ao acordar já nem acreditasse na história de Rossi, embora tivesse a certeza de que não me sairia da cabeça, quer acreditasse nela ou não. Mas como, perguntava a mim próprio — já na rua, passando sob as janelas de Rossi e levantando involuntariamente os olhos para a luz ainda acesa do seu candeeiro, como não acreditar no meu orientador num assunto relacionado com o seu próprio campo de estudos? Não seria o mesmo que pôr em questão todo o trabalho que tínhamos realizado juntos? Lembrei-me dos primeiros capítulos da minha tese, prontos, dactilografados e empilhados na minha mesa, e estremeci. Se não acreditasse na história de Rossi, poderíamos continuar a trabalhar juntos? Teria de admitir que ele era louco?

Quem sabe se foi por estar a pensar em Rossi quando passei sob a sua janela que tive tanta consciência da luz ainda acesa do seu candeeiro, ou talvez estivesse a pensar em Rossi porque estava a olhar para cima, para a janela dele. Seja como for, estava a passar de fato pela claridade projectada por ela para a rua, a caminho de casa, quando essa mesma claridade desapareceu literalmente sob os meus pés. Aconteceu numa fracção de segundos, mas um arrepio de horror percorreu-me o corpo, dos pés à cabeça. Num momento, estava perdido nos meus pensamentos e a caminhar pelo passeio iluminado pela janela dele e, no momento seguinte, via-me parado, imóvel, ali. Quase simultaneamente, notei duas coisas esquisitas. Uma, o fato de eu nunca ter visto anteriormente aquela luz naquele passeio, entre os prédios góticos das salas de aula, apesar de ter passado pela rua centenas de vezes. Nunca a vira porque nunca antes estivera visível. Ficara visível naquele momento porque todas as luzes dos candeeiros da rua se tinham apagado de repente. Encontrava-me sozinho na rua, e o meu último passo era o único som que ainda ecoava. E, a não ser por aquela mancha de luz vinda do gabinete onde tínhamos estado sentados a conversar dez minutos antes, a rua estava às escuras.

A minha segunda observação, se é que veio realmente em segundo lugar, abateu-se sobre mim e paralisou-me quando me detive. Digo que se abateu porque foi a maneira como a minha vista a registrou, e não a razão ou o instinto. Naquele momento, quando parei no meio do caminho, a luz acolhedora que vinha da janela do meu mentor extinguiu-se. Podes pensar que isto não tem nada de extraordinário: acaba o horário de trabalho e o último professor a deixar o edifício apaga as suas luzes, mergulhando na escuridão uma rua em que a iluminação falhou momentaneamente. Mas o efeito produzido era completamente diferente. Não tive a impressão de que se tratava de um candeeiro normal a ser apagado numa secretária perto de uma janela: foi como se alguma coisa se atravessasse diante da janela nas minhas costas, bloqueando a fonte de luz. Então, a rua ficou inteiramente às escuras.

Por um instante, parei de respirar. Aterrorizado e desnorteado, virei-me, vi as janelas às escuras, quase invisíveis na rua sombria e, num impulso, corri para lá. A porta por onde acabara de sair estava firmemente trancada. Não havia nenhuma outra luz na fachada do prédio. Aquela hora, a porta provavelmente era trancada quando alguém saía era certamente um procedimento normal. Fiquei ali hesitante, prestes a correr para verificar as outras portas, quando a iluminação da rua voltou e me senti repentinamente envergonhado. Não havia sinal dos outros dois alunos que tinham saído atrás de mim; deviam ter ido noutra direção.

Mas agora outro grupo de alunos vinha a passar, rindo; a rua já não estava deserta. E, se Rossi aparecesse naquele momento, como sem dúvida faria depois de apagar a luz e fechar a porta do seu gabinete, e me encontrasse ali à espera? Tinha dito que não queria voltar a comentar o que tínhamos discutido. Como poderia explicar-lhe os meus medos irracionais, ali, junto à porta, quando ele pusera um ponto final no assunto — em todos os assuntos mórbidos, talvez? Embaraçado, dei meia volta antes que ele me pudesse alcançar, e corri para casa. Ao chegar, deixei o envelope dentro da minha pasta, sem o abrir, e dormi profundamente a noite inteira.

Os dois dias seguintes foram movimentados e não pude examinar os documentos de Rossi; para ser franco, afastei resolutamente da cabeça todas as questões esotéricas. Foi uma surpresa, portanto, quando um colega do meu departamento me abordou na biblioteca ao fim da tarde do segundo dia.

— Já sabes o que aconteceu ao Rossi? — perguntou, agarrando-me o braço e fazendo-me voltar quando passei por ele apressado. — Paolo, espera! Pois é, adivinhaste, era o Massimo. Já era grande e barulhento quando era estudante, mais barulhento ainda do que hoje, se é possível. Segurei-lhe no braço.

— Rossi O que foi? O que aconteceu?

— Desapareceu. Sumiu-se. A polícia está a examinar o gabinete dele.

Corri para o edifício, que agora parecia normal, o interior meio na penumbra com a claridade do fim da tarde e cheio de alunos que saíam das salas de aula. No segundo piso, em frente do gabinete de Rossi, um polícia municipal conversava com o diretor do departamento e com vários homens que eu nunca tinha visto. Quando cheguei, dois homens de fatos escuros estavam a sair do gabinete do professor, fechando a porta com firmeza e dirigindo-se para as escadas e as salas de aula. Abri caminho e falei com o polícia:

— Onde está o professor Rossi? O que lhe aconteceu?

— O Senhor conhece-o? — perguntou o polícia, levantando os olhos do bloco de notas.

— É o orientador da minha tese. Estive aqui há duas noites.

— Quem foi que disse que ele desapareceu?

O diretor do departamento adiantou-se e apertou-me a mão.

— Sabe alguma coisa disto? A empregada telefonou ao meio-dia para dizer que ele não voltara para casa ontem à noite nem na noite anterior, e que não tocara a pedir o jantar nem o pequeno-almoço. Disse que ele nunca tinha feito isso antes. Faltou a uma reunião no departamento esta tarde sem telefonar a avisar, o que também nunca aconteceu antes. Um aluno veio dizer que o gabinete dele estava trancado, quando eles tinham combinado um encontro durante o horário de expediente, e que Rossi não aparecera. Faltou à aula de hoje, e finalmente mandei abrir a porta.

— E ele estava lá dentro? — tentei controlar a respiração, com a garganta apertada.

— Não.

Precipitei-me cegamente para a porta de Rossi, mas o polícia segurou-me pelo braço.

— Tenha calma — disse ele. — Está a dizer que esteve aqui ha duas noites?

— Sim.

— Que horas eram quando o viu pela última vez

— Oito e meia, mais ou menos.

— Viu mais alguém por aqui a essa hora?

Parei para pensar.

— Vi só dois alunos do departamento, Bertrand e Elias, parece-me, que estavam juntos. Saíram ao mesmo tempo que eu.

— Ótimo. Verifique isso — disse o polícia a um dos homens. — Notou alguma coisa fora do normal no comportamento do professor Rossi?

O que poderia eu dizer? Sim, notei: ele disse-me que há vampiros, que o conde Drácula está à solta entre nós, que talvez eu tenha herdado uma maldição através das suas próprias pesquisas, e depois vi a luz da sala dele ser encoberta por algo gigantesco parecido com um...

— Não — respondi. — Tivemos uma reunião sobre a minha tese e ficámos sentados a conversar até às oito e meia.

— Saíram juntos?

— Não. Eu saí primeiro. Ele acompanhou-me à porta e voltou para dentro do gabinete.

— Viu qualquer coisa ou qualquer pessoa suspeita perto do prédio quando saiu? Ouviu alguma coisa?

Hesitei de novo.

— Não, nada. Bem, houve uma súbita quebra da energia eléctrica na rua. As luzes dos candeeiros apagaram-se.

— Sim, já fomos informados disso. Mas não viu nem ouviu nada fora do comum?

— Não.

— Até agora, o Senhor foi a última pessoa a ver o professor Rossi — insistiu o polícia. — Faça um esforço de memória. Quando estavam juntos, ele fez ou disse alguma coisa estranha? Falou sobre depressão, suicídio ou algo semelhante? Ou sobre ir-se embora, fazer alguma viagem?

— Não, nada disso — disse eu, com sinceridade. O polícia lançou-me um olhar duro.

— Preciso do seu nome e morada. — Anotou tudo e virou-se para o diretor: — O senhor pode responder por este jovem?

— Ele é realmente quem diz ser.

— Muito bem — disse-me o polícia. — Quero que entre ali comigo e diga se vê alguma coisa diferente do habitual. Especialmente alguma coisa diferente de há duas noites. Não toque em nada. Para ser franco, a maioria destes casos acaba por se revelar algo de previsível, uma emergência familiar ou um pequeno esgotamento nervoso. Provavelmente estará de volta dentro de um dia ou dois. Já vi isso acontecer um milhão de vezes. Mas, como há sangue na secretária, não podemos arriscar.

— Sangue na secretária? — Senti as pernas a fraquejar, mas forcei-me a seguir devagar atrás do polícia. A sala tinha a mesma aparência de outras dezenas de ocasiões em que a vira à luz do dia; arrumada, agradável, os móveis colocados do mesmo modo convidativo e preciso, livros e papéis em pilhas exatas em cima das mesas e da secretária. Estava muito silenciosa. Aproximei-me. Na secretária, sobre o mata-borrão acastanhado de Rossi, havia uma grande poça, há muito tempo derramada e absorvida. O polícia pousou-me uma mão firme no ombro.

— Não foi uma perda de sangue tão grande que pudesse causar a morte — explicou. — Talvez um forte sangramento do nariz, algum tipo de hemorragia. O professor Rossi alguma vez sangrou do nariz quando estava com ele? Parecia doente naquela noite?

— Não — disse eu — Nunca o vi... sangrar... e ele nunca falou sobre a sua saúde comigo.

Percebi subitamente, com uma clareza espantosa, que me referira às nossas conversas no passado, como se tivessem acabado para sempre. A minha garganta apertou-se de emoção quando me recordei de Rossi à porta do gabinete, do seu ar bem-humorado, quando saí. Ter-se-ia cortado talvez até de propósito? Num momento de instabilidade, e depois saído a correr da sala e trancado a porta? Tentei imaginá-lo a vaguear num parque, talvez com frio e com fome, ou a apanhar um autocarro para um destino escolhido ao acaso. Nada disso combinava com ele. Rossi era uma pessoa de estrutura sólida, calmo e são como qualquer pessoa normal.

— Olhe em volta com todo o cuidado.

O polícia soltou-me o ombro. Observava-me atentamente, e intuí a presença do diretor e dos outros atrás de nós, a porta. Ocorreu-me que, até prova em contrário, eu estaria entre os suspeitos se Rossi tivesse sido assassinado. Mas Bertrand e Elias testemunhariam a meu favor, como eu faria por eles. Olhei para todas as coisas na sala, tentando descobrir algo. Mas foi um exercício frustrante: tudo ali era real, normal, sólido, e Rossi tinha de fato saído dali.

— Não — declarei por fim. — Não vejo nada diferente.

— Muito bem.

O polícia virou-me na direção das janelas. Agora olhe para cima.

No teto de gesso branco por cima da secretária, sobre as nossas cabeças, uma mancha escura de cerca de quinze centímetros estendia-se para o lado como se apontasse para alguma coisa do lado de fora.

— Parece ser também sangue. Não se preocupe; pode ou não ser do professor Rossi. O teto é demasiado alto para ser alcançado com facilidade por uma pessoa, mesmo subindo a um banquinho. Vamos analisar tudo. Agora, pense. Rossi referiu-se ao fato de algum pássaro ter entrado aqui naquela noite? Ou o Senhor ouviu algum ruído quando saiu, talvez de alguma coisa a entrar? Lembra-se se a janela estava aberta?

— Não — respondi. — Ele não se referiu a nada desse gênero. E as janelas estavam fechadas, tenho a certeza.

Não conseguia tirar os olhos da mancha; tinha a impressão de que, se olhasse com muita atenção, poderia ler alguma coisa naquela horrível forma hieroglífica.

— Já tivemos pássaros dentro do edifício várias vezes — observou o diretor atrás de nós. — Pombos. De vez em quando entram pelas clarabóias.

— É uma possibilidade — disse o polícia. — Apesar de não termos encontrado excrementos, sem dúvida que é uma possibilidade.

— Ou morcegos — continuou o diretor. — E se forem morcegos? Estes edifícios antigos devem ter todo o gênero de bichos a viver escondidos aqui dentro.

— É outra possibilidade, principalmente se Rossi tentou atingir um deles com uma vassoura ou um guarda-chuva e o feriu — sugeriu um dos professores à porta.

— Alguma vez viu aqui um morcego, ou um pássaro? — perguntou-me de novo o polícia.

Levei uns segundos a formular uma única palavra e a fazê-la passar pelos meus lábios ressequidos. Não disse eu, mal percebendo o sentido da pergunta. Os meus olhos tinham finalmente alcançado a extremidade da mancha e o ponto para onde parecia apontar. Na prateleira mais alta da estante de Rossi, na sua fila de "fracassos", faltava um livro. No lugar onde, duas noites antes, ele voltara a colocar o seu livro misterioso, abria-se agora uma estreita fenda negra entre as outras lombadas.

Os meus colegas levaram-me para fora, dando-me pancadinhas nas costas e dizendo-me que não me preocupasse; devia estar branco como uma folha de papel. Voltei-me para o polícia, que fechava e trancava a porta atrás de nós.

— Existe alguma probabilidade de o professor Rossi estar já nalgum hospital, se se tiver cortado ou alguém o tiver ferido?

O polícia abanou a cabeça.

— Temos contato com os hospitais e já fizemos uma verificação prévia. Nem sinal dele. Porquê? Acha que pode ter-se ferido sozinho? Não disse que ele não parecia estar deprimido ou com impulsos suicidas?

— Ah, é verdade.

Respirei fundo e senti as pernas firmes outra vez. O teto era demasiado alto para ele o ter sujado com o pulso o que era um triste consolo.

— Bem, pessoal, vamos embora — disse o polícia.

Voltou para junto do diretor do departamento e saíram os dois conversando em voz baixa. A aglomeração de pessoas em volta da porta do gabinete começava a dispersar-se e eu afastei-me. Precisava, acima de tudo, de um lugar sossegado onde me sentar.

O meu banco preferido na ala central da velha biblioteca da universidade ainda estava a ser aquecido pelos últimos raios de sol da tarde primaveril. À minha volta, três ou quatro estudantes liam ou conversavam em voz baixa, e senti a calma habitual daquele refúgio acadêmico penetrar-me nos ossos. As paredes do grande salão da biblioteca eram interrompidas por vidraças coloridas, algumas das quais davam para salas de leitura e para corredores e pátios semelhantes a claustros, de modo que dali eu via pessoas a ir e vir ou a estudar em grandes mesas de carvalho. Era o final de um dia normal; em breve, o sol abandonaria as lajes de pedra sob os meus pés e mergulharia o mundo no crepúsculo marcando um período de quarenta e oito horas completas desde que eu estivera a falar com o meu orientador. Por enquanto, o estudo e a atividade prevaleciam aqui, fazendo recuar as margens de escuridão.

Devo dizer-te que, geralmente, naquela época, quando estudava, gostava de ficar completamente só, sem ser perturbado, em silêncio monástico. Já mencionei o compartimento de estudos em que costumava trabalhar, num dos pisos mais altos da biblioteca, onde tinha o meu próprio espaço e onde encontrara o estranho livro que tinha mudado a minha vida e os meus pensamentos quase do dia para a noite. Dois dias antes, àquela mesma hora, estivera ali sozinho a ler, ocupado e sem medo, prestes a pegar nos meus livros sobre a Holanda e a correr para uma agradável reunião com o meu orientador. Pensava apenas no que Heller e Herbert tinham escrito sobre a história econômica de Utreque no ano anterior e como poderia refutar as opiniões deles num artigo, talvez um artigo eficientemente extraído de um dos capítulos da minha própria tese.

Na realidade, se nessa altura tivesse imaginado uma parte qualquer do passado, teria pensado naqueles holandeses ingênuos e ligeiramente gananciosos a debaterem os pequenos problemas das suas guildas ou de pé, com as mãos na cintura, em portas sobre os canais, observando um novo caixote de mercadorias a ser içado para o andar superior das suas casas-armazéns. Se tive realmente alguma visão do passado naquele momento, vi apenas os seus rostos rosados, frescos com o ar do mar, as sobrancelhas hirsutas, as mãos hábeis, ouvi o ranger dos seus belos navios, senti o cheiro intenso a especiarias, a alcatrão e aos esgotos do porto e apreciei o engenho tenaz das suas compras e trocas.

Mas a história, ao que parecia, podia ser algo completamente diferente, um borrifo de sangue cujo paroxismo não se dissipava de um dia para o outro, nem em séculos. E, naquele dia, os meus estudos iriam ser de outro tipo — insólitos para mim, mas não para Rossi e muitos outros que tinham aberto caminho através do mesmo sombrio matagal. Queria começar aquele novo tipo de pesquisa no meio dos alegres murmúrios e ruídos da ala principal da biblioteca, e não junto às estantes silenciosas, com os seus sons ocasionais de passos arrastados em escadas distantes. Queria inaugurar aquela fase da minha vida como historiador sob os olhos insuspeitos de jovens antropólogos, de bibliotecários grisalhos, de rapazes de dezoito anos a pensarem nos seus jogos de squash ou nos seus novos sapatos brancos, de bacharelandos sorridentes e professores eméritos lunáticos e inofensivos todo o movimento humano de um fim de tarde na universidade. Olhei uma vez mais para o ambiente cheio de pessoas, as manchas de luz do sol a recuarem rapidamente, o animado vaivém das portas da entrada principal, que se abriam e fechavam nas suas dobradiças de bronze. Então, peguei na minha pasta coçada, abri a parte de cima e tirei lá de dentro um envelope escuro cheio de papéis e escrito com a letra de Rossi. Dizia apenas: GUARDAR PARA O PRÓXIMO.

O próximo? Não prestara atenção àquilo dois dias antes. Quereria ele dizer que pretendia guardar aquelas informações para a próxima vez em que tentasse trabalhar naquele projeto, entrar naquela fortaleza escura? Ou seria eu "o próximo"? Seria aquilo uma prova da sua loucura?

Dentro do envelope aberto vi uma porção de papéis de diferentes pesos e tamanhos, muitos encardidos e frágeis de tão velhos, outros muito finos, cobertos de densas linhas de palavras datilografadas. Uma grande quantidade de material. Teria de o espalhar, decidi. Dirigi-me para a mesa de madeira clara mais próxima, junto ao ficheiro. Ainda havia muita gente em volta, todos desconhecidos amistosos, mas olhei supersticiosamente por cima do ombro antes de retirar os documentos e dispô-los sobre a mesa.

Manuseara alguns manuscritos de Sir Thomas More dois anos antes e algumas cartas de Albrecht, o Velho, escritas em Amsterdã, e mais recentemente ajudara a catalogar um conjunto de livros flamengos de contabilidade de 1680. Como historiador, sabia que a ordem de um achado arquivístico é uma parte importante do que nos pode revelar. Peguei no lápis e no papel e fiz uma lista da ordem dos documentos à medida que os retirava do envelope. Os primeiros documentos de Rossi, no cimo da pilha, eram folhas daquele papel fino e translúcido. Tinham sido dactilografados com o tipo de letra mais legível, mais ou menos sob a forma de cartas. Mantive-os cuidadosamente juntos, sem me permitir examiná-los mais de perto.

O segundo documento era um mapa, desenhado à mão com uma habilidade grosseira. Já estava a ficar desbotado e as marcas e os topônimos mal se distinguiam num espesso papel de aparência estrangeira, obviamente arrancado de algum velho bloco. Dois mapas semelhantes vinham em seguida. Depois, uma brochura impressa em inglês convidando os turistas a visitar a "Romênia Romântica" que, pelos ornamentos art déco das suas páginas, revelava ser um produto das décadas de 1920 ou 30. Depois, dois recibos de um hotel e das refeições lá feitas. De fato, em Istambul. A seguir, um velho mapa rodoviário dos Balcãs, toscamente impresso a duas cores. O último documento era um pequeno envelope cor de marfim, selado e sem endereço. Coloquei-o de lado, heroicamente, sem o abrir.

Era tudo. Virei o grande envelope castanho de cabeça para baixo, sacudi-o, para que nem um inseto morto pudesse passar despercebido. Enquanto fazia isto, tive subitamente (e pela primeira vez) a sensação que me acompanharia durante todos os esforços seguintes que me seriam exigidos: senti a presença de Rossi, o seu orgulho na minha competência, como se o seu espírito vivo falasse comigo através dos métodos minuciosos que ele mesmo me ensinara. Sabia que ele trabalhava rapidamente, como investigador, mas também que não punha nada de parte nem um único documento, nem um só arquivo, por mais longe de casa que estivesse, e certamente nem uma única idéia, por menos em voga que estivesse entre os seus colegas. O seu desaparecimento e pensei sem querer — a verdadeira necessidade que tinha de mim, tornara-nos subitamente quase iguais. Tinha a sensação, também, de que ele tinha vindo há muito a prometer-me aquele desenlace, aquela igualdade, a espera do momento em que eu a merecesse.

Tinha agora diante de mim, espalhados em cima da mesa, todos aqueles documentos de odor seco. Comecei com as cartas, as longas e densas epístolas datilografadas no papel fino e translúcido com poucos erros e poucas correções. Havia um exemplar de cada uma, e pareciam estar já em ordem cronológica. Todas estavam cuidadosamente datadas e todas eram de Dezembro de 1930, mais de vinte anos antes. Todas tinham escrito, em cima, TRINITY COLLEGE, OXFORD, sem qualquer outra morada. Passei os olhos pela primeira carta. Contava a sua descoberta do livro misterioso e a sua pesquisa inicial em Oxford. A carta estava assinada: "Seu, com pesar, Bartholomew Rossi." E começava segurei o papel fino com delicadeza apesar de a minha mão começar a tremer um pouco começava de maneira afetuosa: "Meu caro e desventurado sucessor.. "

O meu pai calou-se de súbito e o tremor da sua voz fez com que eu me virasse discretamente para o lado, antes que ele se visse obrigado a dizer mais alguma coisa. Por acordo tácito, agarramos nos nossos casacos e saímos, caminhando devagar através da famosa pequena piazza, fingindo que a fachada da igreja ainda nos despertava algum interesse.

 

O meu pai não saiu de Amsterdã durante várias semanas e, durante esse período, senti que começou a vigiar-me de uma nova maneira. Cheguei um dia da escola mais tarde do que habitualmente e encontrei Mrs. Clay ao telefone, a falar com ele. Passou-mo de imediato.

— Onde é que estiveste? — perguntou o meu pai. Estava a falar do seu escritório, no Centro para a Paz e a Democracia. — Liguei duas vezes e Mrs. Clay não sabia de ti. Puseste-a numa aflição enorme.

Percebi que quem estava aflito era ele, embora a sua voz não se tivesse alterado.

— Fiquei a ler num café novo perto da escola — respondi.

— Está bem — disse o meu pai. — Sendo assim, não deixes de telefonar a Mrs. Clay ou a mim quando chegares mais tarde.

Não gostei muito, mas prometi que telefonaria. O meu pai chegou mais cedo para jantar naquela noite e leu-me em voz alta um trecho de Grandes Esperanças. Depois, foi buscar alguns dos nossos álbuns de fotografias e ficamos a vê-los juntos: Paris, Londres, Boston, os meus primeiros patins, a minha formatura no terceiro grau, Paris, Londres, Roma. Estava sempre sozinha, diante do Panteão ou dos portões do Père Lachaise, porque era o meu pai que tirava as fotografias e nunca havia mais ninguém além de nós dois. Às nove da noite, verificou todas as portas e janelas para ver se estavam bem fechadas e deixou-me ir dormir.

Da próxima vez em que resolvi que chegaria tarde, liguei para Mrs. Clay. Expliquei-lhe que eu e algumas das minhas colegas iríamos fazer trabalhos de casa juntas na hora do chá. Ela disse que estava bem. Desliguei e fui sozinha para a biblioteca da universidade Johan Binnerts, o bibliotecário da coleção medieval em Amsterdã, já se habituara a ver-me, pensava eu; pelo menos, sorria circunspecto sempre que eu me aproximava com uma nova questão e perguntava-me sempre como iam os meus trabalhos de história. Mr. Binnerts encontrou-me um trecho de um livro do século dezenove que me agradava especialmente ter, e passei algum tempo a tomar notas a partir dele. Hoje tenho um exemplar desse livro no meu gabinete em Oxford — reencontrei-o há alguns anos numa livraria: História da Europa Central, de Lord Gelling. Tenho com ele uma ligação sentimental, depois de todos estes anos, embora nunca o abra sem uma sensação soturna. Lembro-me muito bem da minha própria mão, lisa e jovem, copiando passagens dele no meu caderno escolar:

Além de demonstrar uma grande crueldade, Vlad Drácula possuía uma grande coragem. A sua audácia era tal que, em 1462, atravessou o Danúbio e desencadeou um ataque noturno de surpresa a cavalo ao próprio acampamento do sultão Mehmed H e do seu exército, que fora ali reunido para atacar a Valáquia. Nesse ataque, Drácula matou vários soldados turcos e o sultão escapou com vida por um triz, antes que a guarda otomana obrigasse os Valáquios a recuar.

Pode-se recolher uma quantidade idêntica de material com relação a qualquer grande senhor feudal de seu tempo na Europa — mais do que isto em muitos casos e muito mais em poucos. O que há de extraordinário nas informações disponíveis sobre Drácula é a longevidade destas informações — ou seja, a sua recusa em morrer como presença histórica, a persistência da sua lenda. As poucas fontes acessíveis em Inglaterra referem-se direta ou obliquamente a outras fontes cuja diversidade tornaria qualquer historiador profundamente curioso. Ele parece ter sido célebre na Europa mesmo em vida — o que constitui uma façanha numa época em que a Europa era um mundo vasto e, pelos nossos padrões, fragmentado, cujos governos comunicavam entre si por meio de mensageiros a cavalo e por tráfego fluvial, e quando a crueldade não era uma característica invulgar entre a nobreza. A notoriedade de Drácula não acabou com a sua misteriosa morte e o seu estranho funeral em 1476, mas aparentemente prosseguiu quase inabalável até ser ofuscada pelo brilho do lluminismo no Ocidente.

A referência a Drácula terminava ali. Aquela história já era suficiente para me manter intrigada um dia inteiro, mas deambulei pela seção de literatura inglesa e fiquei contente ao descobrir que a biblioteca possuía um exemplar do Drácula de Bram Stoker. Na verdade, precisaria de muitas visitas para o ler. Não sabia se podia pedir emprestados livros da biblioteca mas, mesmo que fosse possível, não me agradava a idéia de o levar para casa, onde teria uma difícil opção pela frente: escondê-lo ou deixá-lo deliberadamente à vista. Portanto, li o Drácula sentada numa cadeira instável junto à janela da biblioteca. Se olhasse para fora, podia ver o meu canal preferido, o Singel, com o seu mercado das flores, e pessoas a comprarem sanduíches de arenque num pequeno quiosque. Era um lugar maravilhosamente isolado, e as costas de uma estante protegiam-me dos outros leitores da sala.

Ali, naquela cadeira, deixei-me gradualmente levar pelo horror gótico intercalado por ternas histórias de amor vitorianas de Stoker. Não sabia bem o que esperava do livro; segundo o meu pai, o professor Rossi considerava-o quase totalmente inútil como fonte de informação sobre o verdadeiro Drácula. Eu achava o palaciano e repugnante conde Drácula do romance uma figura sedutora, mesmo não tendo muito em comum com Vlad Tepes. Entretanto, o próprio Rossi estava convencido de que Drácula se tornara um dos mortos-vivos, em vida — no decorrer da história. Perguntava a mim mesma se um romance teria o poder de fazer algo de tão estranho acontecer de fato. Afinal, Rossi fizera a sua descoberta muito depois da publicação de Drácula. Por outro lado, Vlad Drácula tinha sido uma força do mal quase quatrocentos anos antes do nascimento de Stoker. Era muito desconcertante.

E não tinha o professor Rossi dito também que Stoker trouxera à tona muitas informações sobre as tradições populares relacionadas com vampiros? Eu nunca vira sequer um filme sobre vampiros o meu pai não gostava de terror de qualquer espécie e as convenções da história eram novidade para mim. Segundo Stoker, um vampiro só podia atacar as suas vítimas entre o pôr e o nascer do Sol. O vampiro vivia indefinidamente, banqueteando-se com o sangue dos mortais e condenando-os deste modo a um estado de mortos-vivos igual ao seu. Podia tomar a forma de um morcego, de um lobo ou de uma névoa; podia ser repelido pelo uso de dentes de alho ou de um crucifixo; podia ser destruído se alguém lhe cravasse uma estaca no coração e lhe enchesse a boca com alho enquanto ele estivesse a dormir no seu caixão durante o dia. Uma bala de prata no coração podia também destruí-lo.

Nada disto em si me assustava; tudo parecia remoto, demasiado supersticioso, exótico. Mas havia um aspecto da história que me impressionava sempre, depois de colocar novamente o livro na prateleira, anotando cuidadosamente o número da página em que parara. Era um pensamento que me seguia enquanto descia os degraus da escadaria da biblioteca e atravessava as pontes sobre os canais, até chegar à nossa porta. O Drácula imaginado por Stoker tinha um tipo favorito de vítima: jovens mulheres.

O meu pai ansiava mais do que nunca, dizia ele, pelo Sul na Primavera; queria que eu também visse as suas belezas. Em todo o caso, as minhas férias em breve chegariam e as reuniões dele em Paris só o ocupariam por alguns dias. Eu aprendera a não o pressionar, fosse para viajar ou para contar histórias; quando ele estivesse disposto, a próxima viria, mas nunca, nunca quando estávamos em casa. Acredito que ele não quisesse trazer aquela presença sombria diretamente para dentro da nossa casa.

Fomos de comboio para Paris e mais tarde de carro para o Sul, para Cévennes. De manhã, eu trabalhava em duas ou três composições literárias no meu francês cada vez mais perfeito, para enviar para a escola pelo correio. Ainda tenho uma delas; mesmo hoje, décadas depois, ao desdobrar o papel sinto de novo aquela sensação do intraduzível coração da França no mês de Maio, quando o cheiro da relva não era de relva mas de l’herbe, fresca de se comer, como se toda a vegetação da França fosse fantasticamente culinária, ingredientes de uma salada ou algo que se mergulha em requeijão fresco.

Parávamos em quintas à beira da estrada e fazíamos compras para piqueniques melhores do que qualquer restaurante teria fornecido: caixas de morangos frescos que reluziam vermelhos ao sol e pareciam não precisar de serem lavados; queijos de cabra pesados como halteres e revestidos de uma crosta de um bolor áspero e acinzentado, como se tivessem rolado no chão de um celeiro. O meu pai bebia um vinho tinto escuro, sem rótulo, que custava apenas alguns cêntimos e que ele rolhava de novo depois de cada refeição, levando sempre consigo um pequeno copo embrulhado com cuidado num guardanapo. Como sobremesa, devorávamos pães inteiros acabados de cozer, comprados na última cidade, dentro dos quais metíamos quadrados de chocolate amargo. O meu estômago doía-me de prazer e o meu pai, arrependido, dizia que teria de fazer dieta outra vez quando voltássemos para a nossa vida de todos os dias.

Aquela estrada levou-nos através do Sudoeste e então, um ou dois vagos dias depois, para mais alto, para o ar mais frio das montanhas.

— Os Pireneus Orientais — explicou o meu pai, desdobrando um mapa rodoviário em cima de um dos nossos piqueniques. — Há anos que andava a querer voltar aqui.

Tracei o nosso percurso com o dedo e descobri, surpreendida, que estávamos muito perto da Espanha. Esse pensamento — e a linda palavra "Orientais" — excitaram-me. Estávamos a chegar aos limites do mundo que eu conhecia e, pela primeira vez, apercebi-me de que um dia poderia ultrapassá-los e ir cada vez mais longe. O meu pai disse que queria ver um mosteiro em particular.

— Acho que podemos chegar à cidade que fica no sopé dele esta noite e amanhã irmos até lá a pé.

— Fica mesmo no cimo? — perguntei.

— Fica mais ou menos a meio da subida das montanhas, que o protegiam de todo o tipo de invasores. Foi construído precisamente no ano 1000. Incrível, aquele pequenino lugar escavado na rocha, de difícil acesso mesmo pelos peregrinos mais fanáticos. Mas vais gostar igualmente da cidade que fica por baixo dele. É uma antiga cidade termal, verdadeiramente encantadora.

O meu pai sorria ao dizer isto, mas estava inquieto, dobrando o mapa demasiado depressa. Pressenti que em breve me contaria outra história; era provável que desta vez eu não precisasse de pedir.

Gostei realmente de Lês Bains quando lá chegamos naquela tarde. Era uma grande povoação de pedra cor de areia dispersa sobre um pequeno cume de montanha. Os grandes Pireneus erguiam-se acima dela, escurecendo tudo exceto as ruas mais largas na parte de baixo, que se prolongavam em direção aos vales sulcados de riachos e às quintas lá em baixo, na planície seca. Plátanos poeirentos, com as copas podadas em quadrado em redor de uma série de piazzas também poeirentas, não proporcionavam qualquer sombra aos habitantes da cidade que por ali passeavam, nem às mesinhas onde senhoras de idade vendiam toalhas de mesa feitas de crochê e frascos de essência de lavanda.

De onde nos encontrávamos, avistava-se a previsível igreja de pedra, assediada por andorinhas, no ponto mais alto da cidade, com a torre a flutuar no meio da enorme sombra das montanhas, um longo pico soturno que se estenderia rua após rua naquele lado da cidade à medida que o sol desaparecesse.

Jantamos com grande apetite uma sopa parecida com gazpacho e costeletas de vitela no restaurante do rés-do-chão de um dos hotéis da cidade, datado do século dezenove. O maître do restaurante apoiou o pé na barra de latão do bar próximo da nossa mesa e perguntou com ar negligente, embora educado, sobre as nossas viagens. Era um homem de aparência pouco atraente, vestido imaculadamente de preto, com o rosto estreito e a pele intensamente morena. Falava um francês staccato aromatizado com uma especiaria que eu nunca encontrara antes e que compreendia muito menos ainda do que o meu pai. O meu pai traduziu.

— Ah, é claro, o nosso mosteiro — começou o maître, em resposta a uma pergunta do meu pai. — O senhor sabia que Saint-Matthieu atrai oito mil visitantes todos os verões? É verdade. Mas são todos tão tranquilos, sossegados, uma quantidade de cristãos estrangeiros que sobem o caminho a pé, ainda é uma verdadeira peregrinação. Fazem eles próprios as suas camas de manhã e quase não damos por eles saírem ou entrarem. É claro que muita gente vem para lês bains. Os senhores vão tomar as águas, não vão?

O meu pai respondeu que teríamos de seguir de novo para norte depois de passarmos apenas duas noites ali, e que planejávamos passar todo o dia seguinte no mosteiro.

— O senhor sabia que este lugar tem muitas lendas, algumas notáveis e todas verdadeiras? — disse o maître, sorrindo, o que tornou o seu rosto estreito subitamente bonito. — A menina compreende? Talvez ela esteja interessada em sabê-las.

Je comprends, merci — disse eu, com delicadeza.

— Bon. Vou contar uma delas, posso? Por favor, coma a sua costeleta, é melhor bem quente.

Naquele momento, a porta do restaurante abriu-se e um sorridente casal idoso, que certamente morava na cidade, entrou e escolheu uma mesa.

— Bon soir, buenas tardes — disse o maître num só fôlego. Fiz uma cara intrigada para o meu pai e ele riu-se.

— É verdade, somos uma grande mistura aqui em cima disse o maître, — rindo-se também. — Somos la salade, todas as diferentes culturas. O meu avô falava muito bem espanhol, um espanhol perfeito, e lutou na guerra civil deles quando já era velho. Aqui gostamos muito de todas as nossas línguas. Nada de bombas, nem de terroristas, como os Bascos. Nós não somos criminosos. — E lançou olhares indignados em torno, como se alguém o estivesse a contradizer.

— Explico-te depois — disse o meu pai num sussurro.

— Então, vou contar-lhes uma história. Tenho muito orgulho em dizer que me chamam o historiador da nossa cidade. Comam. O nosso mosteiro foi fundado no ano 1000, como já sabem. Na realidade, foi no ano 999, pois os monges que escolheram este local preparavam-se para a chegada do Apocalipse, sabem, no milênio. Subiram estas montanhas à procura de um lugar para a sua igreja quando um deles teve uma visão em sonhos, em que São Mateus descia do céu para colocar uma rosa branca no pico da montanha que se encontrava acima deles. No dia seguinte, foram até lá e consagraram a montanha com as suas preces. O lugar é muito bonito, vão adorar. Mas esta não é a grande lenda. É apenas a história da fundação da igreja.

"Então, quando o mosteiro e a sua pequena igreja tinham apenas um século de idade, um dos monges mais piedosos, o que ensinava os mais jovens, morreu misteriosamente quando estava na meia-idade. Chamava-se Miguel de Cuxa. Choraram muito a sua morte e enterraram-no na cripta. Sabem, somos famosos por causa dessa cripta, porque é o exemplo mais antigo da arquitetura românica na Europa. Sim, senhor! — e ele tamborilou no bar com os seus dedos compridos, de pontas quadradas. Sim, senhor" Certas pessoas dizem que essa honra pertence a Saint-Pierre, fora de Perpignan, mas é uma mentira para atrair turistas.

"Seja como for, esse grande erudito foi enterrado na cripta e pouco depois uma terrível maldição abateu-se sobre o mosteiro. Vários monges morreram de uma estranha epidemia. Foram encontrados um após outro nos claustros os claustros são lindos, vão adorar, são os mais bonitos da Europa. Como eu ia dizendo, os monges mortos foram encontrados brancos como fantasmas, como se não tivessem um pingo de sangue nas veias. Suspeitou-se que tivessem sido envenenados.

Finalmente, um jovem monge o aluno favorito do monge erudito que morrera desceu à cripta e desenterrou o seu professor, contra a vontade do abade, que estava aterrorizado. E encontraram o professor vivo, mas não propriamente vivo, se é que me entendem. Um morto-vivo. Levantava-se à noite para tirar a vida dos seus companheiros. Para fazer a alma do pobre homem subir para o lugar certo, trouxeram água benta de um santuário nas montanhas e prepararam uma estaca bem pontiaguda — e fez um gesto teatral, desenhando uma forma no ar para que eu compreendesse como a estaca era pontiaguda.

Até então, toda a minha atenção estivera fixada nele e no seu estranho francês, juntando os fragmentos da sua história no meu espírito com o máximo esforço de concentração. O meu pai parara, de traduzir e, naquele momento, a sua faca retiniu ao bater no prato. Quando olhei para ele, vi que estava branco como a toalha da mesa, os olhos fixos no nosso novo amigo.

— Será que... — pigarreou e limpou a boca com o guardanapo uma ou duas vezes. — Será que nos pode trazer o café?

— Mas nem comeram ainda a salade — o nosso informador parecia desolado. — É excepcional. E depois hoje temos paires Belle Hélène, uns queijos ótimos e também um gâteau para a menina.

— Claro, claro — disse o meu pai, apressadamente. — Sim, traga então tudo

 

A mais baixa das praças poeirentas estava inundada pelo barulho de música de altifalantes quando lá chegamos: tinha lugar um tipo qualquer de festividade local sob a forma de dez ou doze crianças vestidas com trajes que me lembravam a Carmen. As meninas mexiam-se sem sair do lugar, fazendo roçagar os folhos das suas saias de tafetá amarelo, que lhes iam das ancas aos tornozelos, as cabeças a ondular graciosamente sob as mantilhas de renda. Os meninos sapateavam e ajoelhavam-se no chão ou andavam à volta das meninas com ares superiores. Usavam casaco preto, curto, calças justas e chapéu de veludo. Ouvíamos a música elevar-se estridente de vez em quando, acompanhada de um som semelhante ao do estalar de chicotes, que soava mais alto à medida que chegávamos mais perto. Havia outros turistas de pé, em volta, a assistir às danças e uma fila de pais e avós sentados em cadeiras de armar junto à fonte vazia, aplaudindo sempre que a música ou o sapateado dos garotos atingia um crescendo.

Paramos ali apenas alguns minutos e em seguida dirigimo-nos para o caminho que subia, o que levava claramente para fora da praça em direção à igreja, no cimo. O meu pai não disse nada sobre o Sol que mergulhava rapidamente no céu, mas senti que o nosso ritmo era ditado pela morte repentina do dia, e não fiquei surpreendida quando toda a luminosidade daquela região agreste como que mergulhou de súbito. A silhueta negro-azulada dos Pireneus destacava-se nitidamente no horizonte à medida que subíamos. Depois, desfez-se no céu negro-azulado. A vista que se descortinava da base do muro da igreja era imensa não estonteante, como as das cidades italianas com que eu ainda sonhava, mas vasta, planícies e colinas juntando-se em contrafortes e os contrafortes erguendo-se em picos escuros que faziam desaparecer porções inteiras do mundo distante. Mesmo por baixo de nós, as luzes da cidade iam-se acendendo, as pessoas caminhavam pelas ruas e ruelas conversando e rindo, e um cheiro que lembrava o dos cravos vinha dos pequenos jardins murados. As andorinhas entravam e saíam da torre da igreja, girando como se delineassem qualquer coisa invisível com filamentos de ar. Reparei numa delas, que rodopiava descontroladamente no meio das outras, sem peso e desajeitada, em vez de ligeira e ágil, e percebi que se tratava de um morcego, apenas visível na instável claridade.

O meu pai suspirou, encostou-se ao muro e pousou um dos pés em cima de um bloco de pedra um poste onde amarrar animais, um apoio para subir para um jumento? Fez essas conjecturas em voz alta, em minha intenção. O que quer que fosse, vira durante séculos aquela mesma paisagem, incontáveis crepúsculos semelhantes e a mudança relativamente recente da luz das velas para as luzes elétricas nas ruas ladeadas por muros altos e nos cafés. O meu pai parecia outra vez descontraído, reclinado ali depois de uma boa refeição e de um passeio, respirando aquele ar absolutamente limpo, mas eu tinha a impressão de que se mostrava propositadamente descontraído. Não me atrevera a comentar a sua estranha reação à história que o maître do restaurante nos contara, mas sentia que talvez houvesse histórias ainda mais horríveis para o meu pai do que aquela que ele começara a contar-me. Desta vez, não precisei de lhe pedir para continuar a nossa história; era como se ele a preferisse, naquele momento, a qualquer coisa de pior.

 

13 de Dezembro de 1930 Trinity College, Oxford

Meu caro e desventurado sucessor:

Consola-me hoje um pouco saber que esta data é dedicada, no calendário da Igreja, a Lucia, a santa da luz, uma sagrada presença levada do Sul da Itália pelos mercadores vikings. O que poderia proporcionar melhor proteção contra as forças das trevas internas, externas, eternas do que a luz e o calor quando nos aproximamos do dia mais curto e mais frio do ano? E ainda estou aqui, depois de mais uma noite insone. Ficaria menos intrigado se lhe dissesse que agora durmo com uma réstia de alhos debaixo do travesseiro, ou que uso um pequeno crucifixo de ouro pendurado numa corrente à volta do meu pescoço de ateu? Não o faço, é claro, mas deixo-o imaginar essas formas de proteção, se quiser; elas têm os seus equivalentes intelectuais, psicológicos. A estes, pelo menos, recorro noite e dia.

Para resumir o relato sobre a minha pesquisa: sim, modifiquei os meus planos de viagem no último Verão para incluir neles Istambul, e modifiquei-os sob a influência de um pequeno fragmento de pergaminho. Examinara todas as fontes que pudera encontrar em Oxford e em Londres que estivessem relacionadas com o "Drákula" do meu misterioso livro em branco. Fizera anotações abundantes sobre o assunto que você, inquieto leitor do futuro, vai encontrar nestas cartas. Expandi-as um pouco desde então, como adiante verá, e espero que o possam proteger e guiar.

 

Estava firmemente determinado a desistir desta pesquisa sem sentido, desta corrida atrás de um emblema qualquer num livro encontrado ao acaso, na véspera da minha partida para a Grécia. Sabia perfeitamente que tomara tudo aquilo como um desafio que me fora apresentado pelo destino, e em que, ao fim e ao cabo, nem sequer acreditava, e que provavelmente estava a perseguir a vaga e perversa palavra "Drákula" na história impelido por uma espécie de gabarolice acadêmica, para provar que era capaz de encontrar os vestígios históricos de qualquer coisa, fosse o que fosse. Na realidade, naquela última tarde chegara tão perto de um estado de espírito racional, enquanto arrumava na mala as minhas camisas limpas e o meu chapéu que acusava o uso, que quase pusera tudo aquilo de lado.

Porém, como de costume, tinha-me preparado com demasiada antecedência para a viagem e estava adiantado, tinha ainda algum tempo antes da minha última noite de sono e do comboio da manhã. Podia ir ao Golden Wolf, pedir um quartilho de cerveja preta bem forte e ver se o meu bom amigo Hedges lá estava ou e aqui fiz um desvio infeliz poderia dar um último salto à sala de Livros Raros, que ficaria aberta até às nove. Havia lá um arquivo que eu tivera a intenção de verificar (embora duvidasse de que fosse esclarecer alguma coisa), uma entrada em "Otomanos" que eu acreditava referir-se precisamente ao periodo da vida de Vlad Drácula, pois tinha reparado que os documentos ali referenciados pertenciam sobretudo à segunda metade do século quinze.

Era evidente, raciocinei, que não poderia ir atrás de todas as fontes daquele período em toda a Europa e em toda a Ásia: levaria anos — vidas inteiras e achava que aquela maldita procura idiota não me renderia sequer um artigo. Mas desviei os meus passos do caminho do animado bar um erro que já causou a ruína de muitos infelizes acadêmicos e segui para os Livros Raros.

O arquivo, guardado numa caixa que encontrei sem dificuldade, continha quatro ou cinco rolos curtos e achatados de pergaminho, de feitura otomana, todos parte de uma doação feita no século dezoito à Universidade. Todos os rolos estavam cobertos de textos em caligrafia arábica. Uma descrição em inglês na frente do ficheiro assegurava-me de que não se tratava de nenhum tesouro sem dono conhecido, no que me dizia respeito. (Recorri logo ao inglês porque o meu árabe é tristemente rudimentar, e receio que assim vá continuar. Só temos tempo para aprender umas poucas línguas importantes, a não ser que se abandone tudo o resto em favor da linguística.) Três dos rolos eram inventários de impostos levantados aos povos da Anatóliapelo sultão Mehmed 11. O último era uma lista de impostos colectados nas cidades de Sarajevo e Skopje, um pouco mais perto de casa, considerando que casa para mim, naquele momento, era a residência de Drácula na Valáquia, mas ainda assim uma região distante do seu império naquela época. Recolhi os rolos suspirando e pensando que ainda tinha tempo para uma visita, curta mas gratificante, ao Golden Wolf. Quando juntava os pergaminhos para os colocar de novo na respectiva caixa de papelão, umas palavras escritas no verso do último chamaram-me a atenção. Tratava-se de uma lista curta, uma anotação informal, um rabisco antigo no verso do documento oficial de Sarajevo e Skopje dirigido ao sultão. Li tudo com curiosidade. Parecia ser um registo de despesas os objectos adquiridos tinham sido anotados à esquerda e o seu custo, numa moeda não especificada, meticulosamente lançados à direita. "Cinco leões da montanha jovens para o Glorioso Sultão, 45". li, cheio de interesse. "Dois cintos de ouro com pedras preciosas para o Sultão, 290. Duzentas peles de carneiro para o Sultão, 89." E, em seguida, a entrada final, que me fez eriçar os pêlos do braço enquanto segurava aquele pergaminho antigo: "Mapas e registRos militares da Ordem do Dragão, 12."

Perguntar-se-á como consegui ler tudo isto num relance, se o meu conhecimento da língua árabe é tão precário como acabei de confessar? A si, meu leitor de raciocínio rápido, que está bem acordado e a seguir com atenção a minha narrativa, bendigo-o por isso. Este rolo, este memorando medieval, estava escrito em latim. Por baixo da lista, uma data meio apagada fixou-se-me na mente: 1490.

Em 1490, lembrava-me bem, a Ordem do Dragão estava em frangalhos, esmagada pelo poder otomano; Vlad Drácula morrera e fora enterrado catorze anos antes, de acordo com a lenda, no mosteiro do lago Snagov. Os mapas, os registRos, os segredos da Ordem o que quer que estivesse a ser mencionado naquela frase vaga fora comprado muito barato, em comparação com os cintos cravejados de pedras e as pilhas de lã de carneiro malcheirosa. Talvez tivessem sido acrescentados à lista de compras do mercador no último minuto, como curiosidade, uma amostra da burocracia da conquista para lisonjear e divertir um sultão erudito cujo pai ou avô manifestara, a contragosto, admiração pela bárbara Ordem do Dragão, que o importunara nos limites do império. Seria o meu mercador um viajante dos Balcãs, que escrevia em latim e falava algum dialeto eslavo ou latinizado? Tratava-se com toda a certeza de uma pessoa muito instruída, pois até sabia escrever, talvez um mercador judeu que dominasse três ou quatro línguas. Quem quer que fosse, abençoei o pó em que se transformara por ter tomado nota daquelas despesas. Se enviara a sua caravana com aqueles bens sem nenhum incidente e se a caravana chegara em segurança ao sultão, e se o menos provável de tudo a carga sobrevivera na casa dos tesouros do sultão, repleta de jóias, peças de cobre batido, vidro bizantino, relíquias religiosas dos bárbaros, obras de poesia persa, livros da cabala, atlas, mapas astronómicos...

Dirigi-me ao balcão onde o bibliotecário examinava o conteúdo de uma gaveta.

Com licença disse eu. Tem uma lista de arquivos históricos por país? Arquivos sobre... sobre a Turquia, por exemplo?

Sei do que está à procura, senhor. Existe uma lista dessas, sim, para universidades e museus, embora não seja de maneira nenhuma completa. Não a temos aqui; pode consultá-la na biblioteca central. Abrem amanhã às nove.

Lembrei-me de que o meu comboio para Londres só partia às 10,14 h. Demoraria apenas dez minutos, mais ou menos, a avaliar as possibilidades. E se o nome do sultão Mehmed 11, ou o dos seus sucessores imediatos, aparecesse entre alguma dessas possibilidades... bem, ao fim e ao cabo eu não queria assim tanto visitar Rodes.

Com profundo pesar, seu Bartholomew Rossi

 

— O tempo parecia ter parado no alto salão abobadado da biblioteca — disse o meu pai, — apesar de toda a atividade à minha volta. Eu lera uma carta inteira, mas havia pelo menos mais outras quatro na pilha por baixo dela. Notei, ao erguer os olhos, que uma profundidade azul se abrira para lá das janelas de cima: o crepúsculo. Teria de caminhar até casa sozinho no escuro, pensei, como uma criança assustada. Mais uma vez, tive o impulso de correr para o escritório de Rossi e bater a porta. Certamente que o encontraria lá sentado, a virar as páginas de um manuscrito sob o foco de luz amarela do candeeiro da sua mesa. Continuava atordoado, como se fica depois da morte de um amigo, com a irrealidade da situação, com a impossibilidade de o espírito admitir o fato. Para ser franco, estava tão confuso como assustado, e a minha confusão só aumentava o meu medo, porque não me reconhecia a mim mesmo naquele estado

Enquanto refletia sobre isto, deitei um olhar para a pilha de papéis em cima da mesa Ao espalhá-los, ocupara grande parte da superfície. Provavelmente por isso, ninguém tentara sentar-se do lado oposto da mesa ou ocupar uma das outras cadeiras à volta dela. Quando me interrogava se deveria juntar todo o material e ir para casa para continuar a trabalhar nele mais tarde, uma jovem aproximou-se e sentou-se junto a uma das extremidades da mesa. Ao olhar em volta, vi que as outras mesas estavam ocupadas e cobertas de livros, páginas datilografadas, gavetas de fichas e blocos de apontamentos. Percebi que ela não tinha outro sítio para se sentar, mas senti o impulso de proteger os documentos de Rossi, temia que o olhar involuntário de um estranho caísse sobre eles. Teriam uma aparência tão obviamente louca? Ou seria eu que parecia louco?

Estava a reunir os papéis, mantendo cuidadosamente a sua ordem original, e a levá-los de volta quase a fazer aqueles gestos lentos e educados com que tentamos falsamente convencer a outra pessoa que acabou de pedir licença para se sentar à mesa da cantina que estávamos mesmo de saída — quando reparei subitamente no livro que a rapariga apoiara à sua frente. Estava já a folhear a parte central do livro, com um caderno e uma caneta preparados junto ao cotovelo. Relanceei os olhos do título do livro para o rosto dela, espantado, e depois para o outro livro que ela colocara perto. E olhei de novo para o rosto dela. Era um rosto jovem mas que já estava a envelhecer de forma muito leve e bonita, com o ligeiro franzir da pele que eu reconhecia a volta dos meus próprios olhos todas as manhãs diante do espelho, um cansaço que mal se disfarçava, por isso conclui que devia ser aluna de pós-graduação. Era também um rosto elegante e anguloso que não destoaria numa pintura religiosa medieval, e que só não parecia ascético graças às maçãs do rosto delicadamente salientes. A pele era clara, mas via-se que ficaria morena depois de uma semana ao sol. As pestanas estavam descidas para o livro, a boca firme e as sobrancelhas estendiam-se para os lados, parecendo estarem em alerta por aquilo que os olhos seguiam na página. O cabelo escuro, quase cor de carvão, brotava-lhe da testa com mais vigor do que a moda determinava naquela época de penteados rigorosamente colados à cabeça. O título do livro que ela lia, naquele local de miríades de assuntos — olhei novamente, mais uma vez espantado, era Os Cárpatos. Sob a manga escura da sua camisola, estava o Drácula de Bram Stoker.

Nesse instante, a jovem mulher levantou os olhos e encontrou o meu olhar, e percebi que estivera a olhar fixamente para ela, o que podia ter sido ofensivo. E, de fato, o olhar escuro e profundo que ela me devolveu embora os seus olhos tivessem curiosos reflexos cor de âmbar, como mel foi extremamente hostil. Eu não era o que as pessoas então ainda chamavam um mulherengo; na realidade, era mais uma espécie de recluso. Mas sabia o suficiente para me sentir envergonhado e apressar-me a explicar a minha atitude. Mais tarde, percebi que a hostilidade dela era a defesa natural da mulher atraente para quem os homens estão constantemente a olhar.

— Desculpe — disse eu depressa. — Não pude deixar de reparar nos seus livros. Quer dizer, no que está a ler.

Ela encarou-me sem responder, mantendo o livro aberto à sua frente, e levantou o arco escuro das sobrancelhas.

— Sabe, estou a estudar o mesmo assunto — insisti. As sobrancelhas subiram mais um pouco, mas apontei para os papéis à minha frente. — Não, não é bem assim. Estava apenas a ler sobre... olhei para as pilhas dos documentos de Rossi e parei abruptamente.

A inclinação desdenhosa das pálpebras dela fez-me corar.

— Drácula? — disse ela, com um tom sarcástico na voz. — Parece ter aí fontes importantes. — Tinha um sotaque carregado que eu não consegui situar, e a voz era suave, mas de uma suavidade de biblioteca, dando a impressão de que poderia jorrar com verdadeira força quando se libertasse.

Experimentei uma tática diferente.

— Está a ler esses livros por prazer? Quer dizer, para se divertir? Ou está a pesquisar?

— Prazer? — manteve o livro aberto, talvez para me desencorajar com todas as armas possíveis.

— Bem, o tema é bastante fora do comum e, como também está com um livro sobre os Cárpatos, deve estar muito interessada no assunto. — Eu não falava tão depressa desde as provas orais para o meu mestrado. — Eu próprio ia procurar esse livro. Os dois, na verdade.

— Não me diga — comentou ela. — E porquê?

— Bom — arrisquei, — tenho aqui estas cartas, de... uma fonte histórica pouco comum... e mencionam Drácula. São sobre Drácula.

Um leve interesse despontou no olhar dela, como se a luz cor de âmbar prevalecesse e se voltasse relutantemente para mim. Recostou-se ligeiramente na cadeira, relaxou o corpo com uma certa desenvoltura masculina, sem tirar as mãos do livro. Ocorreu-me que já vira aquele mesmo gesto centenas de vezes, aquele afrouxamento da tensão que acompanhava o pensamento, o ato de estabelecer uma conversa. Onde o vira?

— Que cartas são essas, exatamente? — perguntou ela, baixo, com a sua calma voz estrangeira. Arrependi-me de não me ter apresentado e dado informações a meu respeito antes de falar daquilo. Por alguma razão, sentia que não podia voltar atrás estender-lhe a mão para apertar a dela, dizer a que departamento pertencia e assim por diante. Também me ocorreu que nunca a vira antes, e portanto não devia ser aluna de História, a não ser que fosse nova, transferida de outra universidade. E deveria mentir para proteger Rossi? Decidi, ao acaso, não mentir. Simplesmente, não citei o nome dele.

— Estou a trabalhar com uma pessoa que... está com alguns problemas, e ele escreveu estas cartas há mais de vinte anos. Entregou-mas achando que talvez eu pudesse ajudá-lo a resolver a... situação... em que se encontra, que tem a ver com... ele está a estudar, quero dizer, estava a estudar...

— Estou a ver — disse ela, com fria delicadeza. Levantou-se e começou a juntar os seus livros, com vagar, sem pressa. Agarrou na pasta. De pé, era tão alta quanto eu a imaginara, um pouco musculosa, de ombros largos.

— Por que é que está a estudar Drácula? — perguntei, em desespero.

— Bem, acho que não é da sua conta — disse-me rispidamente, voltando-se para sair, — mas estou a planejar uma futura viagem, apesar de não saber quando a farei.

— Aos Cárpatos? — senti-me subitamente irritado com aquela conversa toda.

— Não — a rapariga atirou-me aquela última palavra com ar de desprezo. Então, como se não pudesse evitar, completou, mas tão desdenhosamente que não me atrevi a segui-la: — A Istambul.

 

— Meu Deus — exclamou o meu pai inesperadamente para o céu chilreante. As últimas andorinhas voltavam aos ninhos sobre as nossas cabeças, víamos a cidade com as suas ténues luzes pesadamente assente no vale. — Não devíamos estar aqui sentados agora, com uma caminhada pela frente amanhã. Tenho a certeza de que os peregrinos devem deitar-se cedo. Assim que escurece, ou algo parecido.

Mexi as pernas; um pé ficara dormente debaixo de mim e as pedras dos muros do adro da igreja pareceram-me de repente mais pontiagudas, incrivelmente desconfortáveis, sobretudo quando pensava na cama que me esperava. Iria sentir formigueiros nos pés durante a acidentada descida para o hotel. E já sentia também uma grande irritação, mais intensa do que as picadas nos pés. O meu pai interrompera a história cedo de mais outra vez.

— Olha — disse o meu pai, apontando para a frente. — Penso que ali deve ser Saint-Matthieu.

Acompanhei o gesto dele na direção da massa de montanhas e vi, no meio da subida, uma pequena luz estável. Não havia nenhuma outra luz perto; não parecia haver nenhuma outra habitação próxima dela. Era uma única centelha no meio de imensas dobras de pano preto, no cimo, mas não perto dos picos mais altos — pendia entre a cidade e o céu noturno.

— Sim, é precisamente onde deve ficar o mosteiro, penso eu — repetiu o meu pai. — E amanhã vamos fazer uma subida em grande, mesmo se formos pela estrada.

Enquanto seguíamos pelas ruas sem luar, senti aquela tristeza que nos invade quando descemos das alturas, quando deixamos para trás algo de majestoso. Antes de dobrarmos a esquina do velho campanário, olhei para trás uma última vez, para fixar na memória aquele pequeno ponto de luz. Lá estava ele de novo, brilhando por cima do muro de uma casa onde se enroscava uma buganvília escura. Parei por um momento e fixei o olhar nele. Então, apenas uma vez, a luz piscou.

 

14 de Dezembro de 1930 Trinity College, Oxford

Meu caro e desventurado sucessor:

Pretendo concluir a minha narrativa o mais rapidamente possível, pois você precisa extrair dela informações vitais se quisermos ambos ali sobreviver, pelo menos — e sobreviver num estado de bondade e misericórdia. Há sobrevivência e sobrevivência, o historiador aprende à sua custa. Os piores impulsos da humanidade podem sobreviver por gerações a fio, por séculos, até milênios. E os nossos melhores esforços individuais podem morrer conosco no final de uma única vida.

Mas, prosseguindo: quando fui de Inglaterra para a Grécia, a minha estada foi uma das mais tranquilas que já tive, tudo correu bem. O diretor do museu de Creta estava no cais para me receber e convidou-me para voltar mais tarde nesse Verão, para assistir à abertura de um túmulo minóico. Além disso, dois classicistas norte-americanos, que eu queria conhecer há anos, estavam hospedados na mesma pensão que eu. Insistiram para que eu me informasse sobre uma vaga que acabara de abrir no corpo docente da sua universidade perfeita para alguém com a minha formação e elogiaram muito o meu trabalho. Tinha acesso fácil a todas as coleções, inclusivamente algumas particulares. À tarde, quando os museus fechavam e a cidade fazia a sesta, sentava-me na minha linda varanda sombreada por trepadeiras, a dar corpo as minhas notas e, ao mesmo tempo, a extrair delas novas idéias para outros trabalhos a realizar no futuro. Nessas idílicas circunstâncias, cheguei a pensar em abandonar inteiramente o que naquele momento me parecia um capricho mórbido, a busca daquela palavra tão peculiar, Drákula. Trouxera comigo o livro antigo, não querendo ficar longe dele, mas havia uma semana que não o abria. Em geral, sentia-me liberto do seu fascínio. Mas alguma coisa a paixão do historiador por encontrar respostas, ou quem sabe o mero amor pela caçada levou-me a manter os meus planos e ir a Istambul por alguns dias. E agora tenho de lhe contar a minha extraordinária aventura num arquivo daquela cidade. Este é talvez o primeiro de muitos acontecimentos que irei descrever que poderá despertar a sua descrença. Peço-lhe apenas que leia até ao fim.

 

— Obedecendo ao pedido dele, li palavra por palavra — disse o meu pai. — A carta contava-me outra vez a arrepiante experiência de Rossi com os documentos da coleção do sultão Mehmed II: o mapa em três línguas que ele encontrou e que aparentemente indicava a localização do túmulo de Vlad, o Empalador, o roubo do mapa por um sinistro funcionário e as duas pequenas feridas por sarar no pescoço do homem. Ao contar esta história, o estilo da sua escrita perdia um pouco da coerência e do controle que eu observara nas duas cartas anteriores, a letra alongava-se, inconsistente, e pequenos erros multiplicavam-se, como se a tivesse datilografado num estado de grande agitação. E, apesar da minha própria inquietação (porque agora era de noite, eu tinha voltado para o meu apartamento e estava a ler lá dentro, sozinho, com a porta trancada e as cortinas supersticiosamente corridas), reparei na linguagem que ele usara ao descrever os acontecimentos; seguia de perto o que me contara apenas há duas noites. Era como se a história tivesse marcado tão profundamente o seu espírito, quase vinte e cinco anos antes, que só precisasse de ser repetida para um novo ouvinte.

Restavam ainda três cartas, e passei avidamente à seguinte.

 

15 de Dezembro de 1930

Trinity College, Oxford

Meu caro e desventurado sucessor;

A partir do momento em que o mal-humorado funcionário me arrebatou o mapa, a minha sorte mudou. Ao voltar para o meu quarto, descobri que o gerente do hotel transferira as minhas coisas para um quarto menor e bastante sujo porque um canto do teto do outro tinha caído. Durante este processo, alguns dos meus trabalhos tinham desaparecido e uns botões de punho de ouro de que gostava muito também tinham sumido.

Sentado nos meus novos e exíguos aposentos, tentei imediatamente recuperar as minhas anotações sobre a história de Vlad Drácula bem como os mapas que vira no arquivo de memória. Em seguida, fugi rapidamente daquele lugar e voltei à Grécia, onde tentei recomeçar os meus estudos sobre Creta, já que agora tinha algum tempo extra à minha disposição.

A viagem de barco para Creta foi horrível, com o mar muito agitado. Um vento quente, enlouquecedor, como o famoso mistral francês, soprou incessantemente sobre a ilha. O meu quarto anterior estava ocupado e só consegui umas instalações péssimas, um quarto escuro e cheio de mofo. Os meus colegas americanos já tinham partido. O simpático diretor do museu adoecera e ninguém parecia lembrar-se de que ele me convidara para assistir à abertura de um túmulo. Tentei continuar com os meus escritos sobre Creta, mas foi inutilmente que procurei inspiração nas minhas notas. O meu nervosismo só aumentou com as superstições primitivas que encontrei mesmo nas pessoas da cidade, superstições de que não me apercebera nas viagens anteriores, embora estejam tão disseminadas na Grécia que eu já devesse ter-me deparado com elas anteriormente. De acordo com a tradição grega, a origem do vampiro, o vrykoJakas, é qualquer corpo que não tenha sido enterrado convenientemente ou que demore a decompor-se, para não falar de alguém que tenha sido acidentalmente enterrado vivo. Os velhos nas tabernas de Creta mostravam-se mais inclinados a contar-me as suas mil e uma histórias de vampiros do que a indicar-me onde poderia encontrar outros fragmentos de cerâmica como aquele, ou que navios antigos os seus avós tinham feito naufragar para depois os pilharem. Certa noite, deixei que um estranho me oferecesse uma rodada de uma especialidade local chamada, extravagantemente, "amnésia", que me pôs doente durante todo o dia seguinte.

Para dizer a verdade, nada me correu bem até chegar a Inglaterra, para onde viajei no meio de um temporal de ventania e chuva que me causou o enjoo mais terrível que alguma vez senti.

Assinalo estas circunstâncias para o caso de terem alguma relação com outros aspectos da minha situação. No mínimo, servirão para lhe explicar qual era o meu estado de espírito quando cheguei a Oxford: exausto, desanimado, amedrontado. Quando me vi ao espelho, o meu rosto estava pálido e magro. Todas as vezes que me cortava ao fazer a barba, o que acontecia com frequência devido ao nervosismo, estremecia, lembrando-me das pequenas fendas meio coaguladas no pescoço do funcionário turco e duvidando cada vez mais da sanidade da minha própria recordação. As vezes, tinha a sensação, que me perseguia até quase à loucura, de um objetivo não cumprido, uma intenção cuja forma não conseguia reconstituir. Estava sozinho e cheio de ansiedade Numa palavra, os meus nervos estavam num estado que nunca conhecera antes.

É evidente que tentei fazer a minha vida de sempre, sem falar daquele assunto com ninguém e preparando-me para o semestre seguinte com o cuidado habitual. Escrevi para os classicistas norte-americanos que encontrara em Creta, dando a entender que estaria interessado pelo menos numa colocação temporária nos Estados Unidos, se eles me pudessem ajudar a arranjar-me uma. O meu doutoramento estava quase a acabar, sentia cada vez mais a necessidade de começar do zero e achava que a mudança me faria bem. Completei também dois curtos artigos sobre a junção de provas arqueológicas e literárias no estudo da produção de cerâmica cretense Com esforço, apliquei a minha autodisciplina natural às atividades de cada dia, e cada dia me acalmava mais um pouco. No primeiro mês depois do meu regresso, tentei não só abafar todas as recordações da minha desagradável viagem, mas também evitar qualquer renovado interesse pelo estranho livrinho ou pela pesquisa que ele provocara. No entanto, quando a minha confiança se reafirmou, a curiosidade voltou a crescer perversamente dentro de mim e, certa noite, peguei no livro e reorganizei as minhas notas de Inglaterra e de Istambul. As consequências e daí em diante vi-as como consequências foram imediatas, aterrorizadoras e trágicas.

Preciso de fazer uma pausa, corajoso leitor; não consigo escrever mais por agora. Suplico-lhe que não desista desta leitura, que prossiga, como eu também tentarei fazer, amanhã.

Seu, com o mais profundo pesar, Bartholomew Rossi

 

Nos últimos anos, desde o final da minha adolescência estudiosa com o meu pai e o início das primeiras décadas da minha aventurosa vida adulta, por várias vezes experimentei as sensações desse legado peculiar que o tempo dá ao viajante: o desejo de ir a um lugar pela segunda vez, de encontrar deliberadamente aquilo que antes se encontrou por acaso, de reviver a sensação de descoberta. Em certas ocasiões, procuramos rever mesmo um lugar que nada tinha de extraordinário só porque nos lembramos dele. Quando o reencontramos, tudo está diferente, é claro. A porta de madeira tosca ainda lá está, mas é muito menor; o dia está nublado, não claro como da outra vez; é Primavera, em vez de Outono; estamos sós, e já não com três amigos. Ou pior, com três amigos em vez de sozinhos.

O viajante muito jovem conhece pouco esse fenómeno mas, antes que eu própria o conhecesse, vi-o acontecer com o meu pai em Saint-Matthieu-des-Pyrénées-Orientales. Pressenti nele, mais do que vi claramente, o mistério da repetição, sabendo que estivera ali três anos antes. E, de uma forma estranha, aquele lugar provocava nele um alheamento que não revelara em nenhum dos outros que tínhamos visitado. Estivera uma vez na região de Emona antes da nossa visita e diversas vezes em Ragusa. Visitara a villa de pedra de Massimo e Giulia para outros jantares felizes, em anos anteriores.

Mas, em Saint-Matthieu, percebi que ele realmente ansiara por este lugar, pensara nele vezes sem conta por algum motivo que eu não conseguia descortinar, revivera-o sem dizer nada a ninguém. Não me disse naquele momento que já ali estivera, exceto ao reconhecer em voz alta a curva da estrada antes que esta finalmente desembocasse junto ao muro da abadia e, mais tarde, ao saber que portas se abriam para o santuário, para o claustro e, por fim, para a cripta. A sua capacidade para memorizar pormenores não era nova para mim; já o vira antes dirigir-se para a porta certa em igrejas famosas, ou seguir na direção correcta para um antigo refeitório, ou parar para comprar bilhetes na entrada certa no caminho de cascalho certo, e lembrar-se mesmo onde tomara antes o melhor café.

A diferença em Saint-Matthieu era o estado de alerta, a forma quase apressada como esquadrinhava as paredes e os corredores dos claustros. Em vez de parecer dizer para si mesmo: "Ah, lá está aquele belo tímpano sobre as portas; não me lembrava bem, pensei que ficasse deste lado", o meu pai dava a impressão de estar apenas a conferir locais que poderia ter descrito de olhos fechados. Pouco a pouco, antes mesmo de acabarmos de subir o terreno sombreado de ciprestes que antecedia a entrada principal, concluí que não era de pormenores arquitetonicos que ele se lembrava, mas de acontecimentos.

Um monge com um longo hábito castanho encontrava-se junto às portas de madeira a entregar folhetos aos turistas.

— Como te disse, é um mosteiro ainda em atividade — disse-me o meu pai com a sua voz de sempre. Pusera os óculos escuros, embora o muro do mosteiro projetasse uma grande sombra sobre nós.

Eles mantêm o ruído das pessoas sob controle ao permitirem visitas apenas durante algumas horas por dia sorriu para o monge quando nos aproximámos e estendeu a mão para pegar num folheto.

— Merci beaucoup. Só precisamos de um — disse, no seu francês impecável.

Nessa altura, com a precisão instintiva com que os jovens analisam os pais, tive mais do que a certeza de que ele não se limitara a ver aquele lugar, com a máquina fotográfica na mão. Não o "vira" na verdadeira acepção da palavra, ainda que soubesse todas as referências artísticas e históricas que constavam do guia turístico. Em vez disso, eu tinha a certeza de que alguma coisa lhe acontecera ali.

A minha segunda impressão foi tão fugaz como a primeira, mas mais aguda: quando abriu o folheto e pôs o pé na soleira de pedra, curvando a cabeça demasiado casualmente para o papel, em vez de olhar para os animais em relevo por cima da porta (que normalmente teriam atraído a sua atenção), vi que não deixara de sentir uma antiga emoção relacionada com o santuário em que estávamos prestes a entrar. Aquela emoção, percebi, sem respirar no intervalo entre a minha intuição e o pensamento que se lhe seguiu, era desgosto ou medo, ou uma terrível combinação dos dois.

Saint-Matthieu-des-Pyrénées-Orientales está situado a uma altura de mais de mil e duzentos metros acima do nível do mar e o mar não fica tão longe como nos faz supor aquela paisagem em que as montanhas surgem como muralhas junto às quais as águias volteiam em círculos. Com telhados vermelhos e precariamente alcandorado no topo, parece ter-se erguido diretamente de um único pináculo de rocha, o que de certo modo é verdade, já que a primitiva igreja foi escavada na própria rocha no ano 1000. A entrada principal da abadia é uma expressão tardia do românico, influenciada pela arte dos muçulmanos que, ao longo de séculos, lutaram para tomar o pico da montanha: um portal de pedra retangular, coroado por bordaduras geométricas, islâmicas, e dois monstros cristãos em baixo-relevo, as caras contorcidas num esgar, num rugido, criaturas que poderiam ser leões, ursos, morcegos ou grifos — animais impossíveis cuja estirpe poderia ser qualquer uma.

Lá dentro fica a pequenina igreja abacial de Samt-Matthieu com o seu claustro maravilhosamente delicado, cercado por roseiras mesmo àquela enorme altitude, rodeado por colunas simples de mármore vermelho, de aparência tão frágil que a sua forma retorcida parece ter saído das mãos de um Sansão artista. A luz do sol espalha-se em borrifos pelas lajes de pedra do pátio aberto e o céu azul arqueia-se subitamente por cima de nós.

Mas o que primeiro me chamou a atenção, logo que entrámos, foi o ruído de água corrente, inesperado e encantador num local tão alto e seco e, no entanto, natural como o som de um riacho de montanha. Vinha da fonte do claustro, em torno da qual os monges andavam outrora compassadamente enquanto meditavam: uma bacia hexagonal, de mármore vermelho, com o exterior plano decorado por um relevo cinzelado representando um claustro em miniatura, um reflexo do verdadeiro que nos rodeava. A grande bacia da fonte erguia-se sobre seis colunas de mármore vermelho (e um suporte central através do qual a água subia, creio eu). A sua volta, seis repuxos jorravam água para um tanque abaixo. A música que produzia era encantadora.

Quando me dirigi para o limite exterior dos claustros e me sentei num muro baixo, a vista era de centenas de metros de altura e de finas cascatas de montanha, brancas contra a floresta azul a pique. Mesmo empoleirados num pico, estávamos cercados pelas vertentes gigantescas e impossíveis de escalar das montanhas mais altas dos Pirenéus Orientais. Àquela distância, as cascatas mergulhavam em silêncio das alturas, ou pareciam ser apenas névoa, enquanto a fonte viva atrás de mim escorria e gotejava audivelmente e sem pausa.

— A vida monástica — murmurou o meu pai, sentando-se junto de mim no muro. O seu rosto estava estranho e pôs-me um braço a volta dos ombros, uma coisa que raramente fazia — Parece tranquila, mas é muito dura. E às vezes muito perversa, também.

Ficámos sentados a olhar para o despenhadeiro, tão profundo que a luz da manhã ainda não alcançara, a ravina lá em baixo. Alguma coisa pairava e cintilava no ar abaixo de nós e percebi o que era antes mesmo de o meu pai apontar para ela: uma ave de rapina, a caçar lentamente ao longo dos paredões do pináculo, suspensa no ar como um floco de cobre flutuante.

— Construir mais alto do que as águias — comentou o meu pai. Sabes, a águia é um símbolo cristão muito antigo, o símbolo de São João. Mateus. S. Mateus — é o anjo, e Lucas é o boi, e São Marcos é o leão alado, claro. Encontramos esse leão por todo o Adriático, porque era o santo padroeiro de Veneza. Segura um livro entre as patas: se o livro está aberto, a estátua ou relevo foi esculpido num momento em que Veneza estava em paz. Fechado, significa que Veneza estava em guerra. Vimo-lo em Ragusa, lembras-te? Com o livro fechado, em cima de um dos portões. E agora vimos também a águia, guardando este lugar, que bem precisa de guardas. — O meu pai franziu as sobrancelhas, levantou-se e voltou-se para sair. Tive a súbita impressão de que se arrependia, quase até às lágrimas, de termos feito aquela visita. — Vamos dar uma volta?

Foi só quando estávamos a descer as escadas para a cripta que vi de novo no meu pai aquela indescritível atitude de medo. Tínhamos acabado o nosso percurso atento através dos claustros, das capelas, da nave e dos edifícios das cozinhas, gastos pelo vento. A cripta era o último ponto da nossa visita autoguiada, era a sobremesa dos mórbidos, como o meu pai dizia em algumas igrejas. Diante do vão de uma escadaria, pareceu ir em frente com uma deliberação um tanto excessiva, mantendo-me atrás dele sem sequer levantar um braço quando descemos à base da construção sobre o rochedo. Uma aragem incrivelmente fria subia da escuridão da terra. Os outros turistas tinham-se ido embora, dando por encerrada aquela atracção, e deixaram-nos sozinhos.

— Esta era a nave da primitiva igreja — explicou de novo, desnecessariamente, com a voz absolutamente normal. — Quando a abadia se tornou mais importante e puderam continuar a construir, limitaram-se a aproveitar o espaço aberto em cima e construíram uma igreja nova sobre a antiga.

Velas acesas em nichos escavados nas pesadas colunas de pedra interrompiam a escuridão. Uma cruz fora talhada na parede da abside; pairava como uma sombra por cima de um altar de pedra, ou sarcófago — era difícil saber —, que se encontrava na curva da abside. Nas paredes laterais da cripta havia outros dois sarcófagos, pequenos e primitivos, sem qualquer marca. O meu pai respirou fundo e lançou um olhar em volta daquele frio e silencioso buraco na rocha.

— O lugar onde repousa o abade fundador e vários outros abades. E aqui acaba o nosso passeio. Muito bem. Agora, vamos almoçar.

Fiz uma pausa antes de sair. O impulso de perguntar ao meu pai o que é que ele sabia sobre Saint-Matthieu, até mesmo do que se lembrava, tomou conta de mim como uma onda, quase como um ataque de pânico. Entretanto, as suas costas, largas no seu casaco de linho preto, diziam com toda a clareza, como se falassem: "Espera. Cada coisa a seu tempo." Olhei de relance para o sarcófago na extremidade da antiga basílica. A sua forma era tosca, impassível à luz que não vacilava. O que quer que escondesse pertencia ao passado, e tentar adivinhar não o iria desenterrar.

E havia outra coisa que eu sabia, sem precisar de adivinhar. A história que iria ouvir, à hora do almoço no terraço do mosteiro, num desnível discreto atrás dos aposentos dos monges, poderia acabar por ser sobre um lugar muito distante daquele.

 

Na minha visita seguinte à biblioteca de Amsterdã, descobri que Mr. Binnerts me procurara algumas coisas durante a minha ausência. Quando entrei na sala de leitura, vinda diretamente da escola, com a mochila dos livros ainda pendurada nas costas, levantou os olhos para mim e sorriu.

— Ah, é você — disse, no seu ótimo inglês. — A minha jovem historiadora. Tenho uma coisa para si, para o seu projeto. — Acompanhei-o até à sua secretária e ele pegou num livro. — Não é um livro muito antigo — explicou-me, — mas tem histórias muito antigas. Não são uma leitura muito alegre, minha filha, mas talvez a ajudem a redigir o seu trabalho.

Mr. Binnerts instalou-me numa mesa, e olhei com gratidão para as costas da sua camisola enquanto ele se afastava. Sensibilizava-me que alguém me confiasse uma coisa tão terrível.

O livro chamava-se Contos aos Cárpatos, um desbotado volume do século dezenove publicado particularmente por um colecionador inglês chamado Robert Digby. O prefácio de Digby resume as suas deambulações por montanhas selvagens e línguas ainda mais selvagens, embora tenha recorrido a fontes alemãs e russas para uma parte do trabalho. Os seus contos tinham também um eco selvagem, e a prosa era bastante romântica, mas, examinando-os muito tempo depois, descobri que as suas versões desses contos tinham sido favoravelmente comparadas com as de organizadores de coletâneas e tradutores que vieram depois. Havia dois contos sobre o "Príncipe Drácula", que li avidamente. O primeiro contava como Drácula gostava de se banquetear ao ar livre no meio dos cadáveres empalados dos seus súditos. Um dia, um criado queixou-se abertamente em frente de Drácula do horrível cheiro, o que fez com que o príncipe ordenasse aos seus homens que o empalassem mais alto que os outros para que o mau cheiro não ofendesse o nariz do criado agonizante. Digby apresentava outra versão, na qual Drácula exigia aos gritos uma estaca três vezes maior do que as que tinham sido usadas para empalar os outros.

A segunda história era igualmente horrível. Contava como o sultão Mehmed II tinha enviado uma vez dois embaixadores a Drácula. Quando os embaixadores se apresentaram diante dele, não tiraram os turbantes. Drácula quis saber por que o desrespeitavam daquela maneira e eles responderam que estavam simplesmente a agir de acordo com os seus costumes.

— Então, vou ajudá-los a reforçar esses costumes — replicou o príncipe, e mandou fixar os turbantes com pregos nas suas cabeças.

Copiei as versões de Digby desses dois pequenos contos no meu caderno. Quando Mr. Binnerts voltou para saber como eu me estava a sair, perguntei-lhe se poderíamos procurar fontes sobre Drácula de contemporâneos dele, caso as houvesse.

— Com certeza — respondeu, concordando gravemente com a cabeça. — Estava de saída naquele momento, mas iria procurar assim que tivesse tempo. Quem sabe se depois deste — sorriu e abanou a cabeça, — eu não encontro um tema mais agradável — arquitetura medieval, por exemplo.

Prometi — sorrindo também — que pensaria no assunto.

 

Não há na Terra nenhum lugar mais exuberante do que Veneza num dia quente, sem nuvens, varrido pela brisa. Os barcos agitam-se nas aguas da Laguna como se lançados à aventura sem tripulação; as fachadas ornamentadas animam-se à luz do sol; a água tem um cheiro fresco, para variar. A cidade inteira enfuna-se como uma vela, um barco a dançar com as amarras soltas, pronto para sair para o mar. As ondas no cais da Piazza de San Marco ficam ruidosas com o movimento das lanchas, produzindo uma espécie de música festiva mas ao mesmo tempo vulgar, como o soar de címbalos. Em Amsterdã, a Veneza do Norte, este clima radioso faria a cidade cintilar com renovados desígnios Aqui, acabaria por revelar falhas na perfeição uma fonte cheia de ervas daninhas numa pequena praça recuada, por exemplo, cuja água deveria jorrar aos borbotões e que, pelo contrário, pingava da borda manchada do tanque. Ao sol resplandecente, os cavalos de San Marco trotavam mal cuidados. As colunas do palácio dos Doges pareciam desagradavelmente sujas.

Fiz um comentário sobre aquele aspecto de degradação festiva e o meu pai riu-se.

— Tens bom olho para captar a atmosfera dos lugares — observou. — Veneza é famosa pela sua teatralidade, e pouco lhe importa se o palco estiver um tanto decadente, desde que o mundo inteiro venha aqui para a admirar. — Fez um gesto que abrangia o café ao ar livre o nosso lugar favorito depois do Flonan para os turistas suados, com os chapéus e as camisas em tons pastel ondulando à brisa que vinha da água. — Espera até à noite e não ficarás decepcionada. Um palco precisa de uma luz mais suave do que esta. Vais ficar surpreendida com a transformação.

Por enquanto, bebericando a minha laranjada, estava demasiado confortável para sair dali; esperar por uma surpresa agradável era tudo o que eu queria. Aqueles eram os últimos dias quentes do Verão antes do sopro frio do Outono. Com o Outono, viria mais escola e, com sorte, estudos um tanto peripatéticos com o meu pai, enquanto ele percorria um mapa de negociações, concessões e acordos difíceis. No próximo Outono estaria novamente na Europa Oriental e eu já estava a fazer campanha para ir com ele. O meu pai acabou a sua cerveja e folheou um guia turístico.

— Ah! — inclinou-se subitamente para o livro. — Cá está San Marco. Sabes, Veneza foi durante séculos uma rival do mundo bizantino, e também uma grande potência marítima. Na verdade, Veneza roubou algumas coisas notáveis a Bizâncio, inclusive aqueles animais de carrossel lá em cima.

Por baixo do nosso toldo, olhei para San Marco, onde os cavalos cor de cobre pareciam estar a arrastar atrás de si o peso das gotejantes cúpulas de chumbo derretido. A basílica inteira parecia fundir-se àquela luz de um brilho quente e berrante, um tesouro do inferno.

— De qualquer modo — continuou o meu pai —, San Marco foi projetada em parte como uma imitação de Santa Sophia, em Istambul

— Istambul — disse eu dissimuladamente, procurando o gelo derretido no fundo do meu copo. — Quer dizer que se parece com Hagia Sophia?

— Bem, Hagia Sophia foi devastada pelo Império Otomano, e por isso vemos aqueles minaretes a guardar o exterior, e no interior há enormes escudos com textos sagrados muçulmanos. Vês realmente o choque entre o Oriente e o Ocidente ali dentro. Entretanto, há as grandes cúpulas no cimo, nitidamente cristãs e bizantinas, como as de San Marco.

— E parecem-se com estas? — e apontei para o outro lado da Piazza.

— Sim, muito parecidas com estas, mas mais grandiosas. A escala daquele lugar é avassaladora, de cortar a respiração.

— Ah — disse eu. — Posso pedir outra bebida?

O meu pai lançou-me um olhar penetrante, mas era tarde demais. Agora eu sabia que ele também estivera em Istambul.

 

16 de Dezembro de 1930 Trinity College, Oxford

Meu caro e desventurado sucessor

Neste ponto, a minha história quase me alcançou, ou eu a alcancei a ela, e tenho de contar os acontecimentos que a trarão para o presente, onde espero que termine, pois não consigo pensar na possibilidade de mais horrores como estes no futuro. Como já relatei, acabei por pegar de novo no meu estranho livro, como um homem impelido por um vício. Disse a mim mesmo, antes de o fazer, que a minha vida voltara ao normal, que a minha experiência em Istambul fora estranha mas decerto era explicável, e tomara proporções exageradas por causa do meu espírito cansado da viagem. Portanto, peguei literalmente no livro outra vez, e sinto que devo contar-lhe como foi esse momento nos termos mais literais possíveis.

Foi numa noite chuvosa de Outubro, há apenas dois meses. O semestre tinha começado e eu desfrutava da agradável solidão dos meus aposentos, depois do jantar, enquanto esperava pelo meu amigo Hedges, um catedrático só dez anos mais velho do que eu e de quem gostava muito. Era uma pessoa desajeitada e sobretudo com bom coração, cujos gestos de desculpas e o sorriso tímido e afável escondiam uma inteligência tão aguda que muitas vezes eu dava graças por ele a ter dirigido para a literatura do século dezoito e não para os seus colegas. A não ser pela sua timidez, sentir-se-ia perfeitamente à vontade a conversar com Addison, Swift e Pope num café qualquer de Londres. Tinha poucos amigos, nunca olhara diretamente para uma mulher com quem não tivesse uma relação de parentesco e não alimentava sonhos que fossem além dos campos de Oxford, onde gostava de caminhar, debruçando-se de vez em quando numa cerca para apreciar as vacas a ruminar nos pastos. A sua gentileza era visível no formato da sua grande cabeça, nas mãos carnudas e nos serenos olhos castanhos, tanto que ele próprio parecia bastante bovino, ou com um ar de texugo, até ao momento em que o seu sarcasmo inteligente irrompia de modo inesperado. Eu adorava ouvi-lo falar sobre o seu trabalho, que ele discutia com modéstia mas com entusiasmo, e nunca deixava de insistir para que eu falasse também do meu. O nome dele era. bem, pode encontrá-lo em qualquer biblioteca, se bisbilhotar um pouco, pois ele ressuscitou, para o leitor leigo, vários génios literários de Inglaterra. Mas vou chamar-lhe Hedges, um nom-de-guerre que inventei para lhe dar nesta narrativa a privacidade e a decência que teve em vida.

Naquela noite em particular, Hedges viria trazer-me os rascunhos dos dois artigos que eu espremera do meu trabalho em Creta. Tinha-os lido e corrigido a meu pedido; embora não pudesse pronunciar-se sobre a exatidão ou inexatidão das minhas descrições do comércio no antigo Mediterrâneo, escrevia como um anjo, o tipo de anjo cuja precisão lhe permitiria dançar na cabeça de um alfinete, e muitas vezes sugeria aperfeiçoamentos ao meu estilo. Eu já previa meia hora de críticas amigáveis, depois um xerez e aquele agradável momento em que um amigo verdadeiro estica as pernas diante da lareira e nos pergunta como estamos. Não lhe contaria a verdade sobre os meus nervos abalados e ainda em recuperação, é claro, mas poderíamos conversar sobre qualquer outra coisa.

Enquanto esperava, remexi o lume da lareira, juntei-lhe mais lenha, preparei dois copos e inspeccionei a minha secretária. O meu gabinete de trabalho também me servia de sala de estar e eu fazia questão de o manter tão em ordem e confortável como a solidez do seu mobiliário do século dezenove exigia. Terminara uma boa quantidade de trabalho naquela tarde, jantara uma refeição que me fora trazida às seis horas e em seguida desembaraçara-me do último dos meus textos. A escuridão já estava a chegar cedo e, com ela, viera uma chuva enviesada, melancólica. Para mim, este é um gênero de noite de Outono agradável, e não desolador; por isso só senti um leve arrepio de premonição quando a minha mão, à procura de qualquer coisa para ler durante uns dez minutos, caiu por acaso no antigo volume que eu tinha andado a evitar. Deixara-o enfiado entre outros títulos menos perturbadores numa prateleira por cima da secretária. Então sentei-me, sentindo na mão, com um prazer furtivo, a suavidade de camurça da velha capa, e abri o livro.

Apercebi-me imediatamente de qualquer coisa de muito estranho. Um cheiro subia das suas páginas, que não era apenas o do papel envelhecido e do velino gretado. Era um fedor de decomposição, um odor terrível e enjoativo, um cheiro de carne velha ou apodrecida. Nunca notara isso antes e aproximei o nariz, incrédulo, e então fechei o livro. Reabri-o um instante depois e novamente as emanações repugnantes, que davam a volta ao estômago, desprenderam-se das suas páginas. O pequeno volume parecia vivo nas minhas mãos, e contudo cheirava a morte.

O inquietante mau cheiro trouxe-me outra vez todo o medo nervoso da minha viagem de regresso ao continente, e só consegui acalmar os meus sentimentos com um esforço concentrado. Os livros velhos apodreciam, era um fato, e eu viajara com aquele no meio de chuvas e temporais. O que certamente poderia explicar o cheiro. Talvez devesse levá-lo outra vez à seção de Livros Raros e perguntar como poderia mandar limpá-lo, ou fumigá-lo, o que fosse preciso.

Se não estivesse calculadamente a esquivar-me à minha reação àquela desagradável presença, teria largado o livro, guardando-o de novo na estante. Mas agora, pela primeira vez em muitas semanas, forcei-me a abri-lo naquela extraordinária imagem central, o dragão de asas abertas e os dentes à mostra sobre o seu estandarte. E, de repente, trémulo, vi com exatidão algo novo, que entendi pela primeira vez. Nunca fui dotado de grande perspicácia na minha compreensão visual do mundo, mas uma súbita acuidade dos sentidos revelou-me o contorno completo do dragão, as suas asas estendidas e a cauda enrolada. Num espasmo de curiosidade, revirei o pacote de anotações que trouxera de Istambul e deixara esquecido numa gaveta da secretária. Ao abri-lo, nervoso, encontrei a página que queria; arrancada do meu caderno de notas, mostrava um esboço que fizera nos arquivos de Istambul, uma cópia do primeiro dos mapas que lá encontrara.

Se bem se lembra, havia três desses mapas, graduados numa escala que apresentava a mesma região não identificada em pormenores cada vez maiores. Essa região, mesmo rabiscada por mim com a minha falta de habilidade artística, embora com cuidado, tinha uma forma bem definida. Parecia-se, sem sombra de dúvida, com um animal simetricamente alado. Um comprido rio ondulava a partir dele para sudoeste, curvando-se para trás como a cauda do dragão. Eu analisava a xilogravura, o coração a palpitar-me de modo estranho. A cauda do dragão era em forma de farpa, com uma seta na extremidade que apontava e abafei um grito, esquecendo todas as semanas que passara a recuperar da minha obsessão anterior para o local que correspondia no meu mapa ao sítio da "Tumba ímpia".

A semelhança entre as duas imagens era demasiado marcante para ser coincidência. Como é que eu não tinha reparado, no arquivo, que a região representada nesses mapas tinha exatamente a forma do meu dragão pairando de asas abertas, como se, lá de cima, lançasse a sua sombra sobre ela? A gravura que tanto me intrigara antes da viagem devia ter um significado preciso, trazer uma mensagem. Fora planeJada para ameaçar e intimidar, para celebrar o poder. Para alguém que fosse persistente, porém, poderia ser uma pista; a cauda apontava para o túmulo com tanta segurança como quando se aponta um dedo para si mesmo: este sou eu. Estou aqui. E quem está lá, nesse ponto central, nessa "Tumba ímpia"? O dragão segurava a resposta nas suas garras cruelmente aguçadas: DRÁCULA.

Senti um gosto acre de tensão, como o do meu próprio sangue, no fundo da garganta. Sabia que devia abster-me de tirar tais conclusões, como o meu treino me recomendava, mas a convicção era mais profunda do que a razão. Nenhum dos mapas mostrava o lago Snagov, onde Vlad Tepes supostamente fora sepultado. Isto significava certamente que Tepes Drácula repousava noutro lugar, um lugar que nem as lendas tinham registRado de modo fiável. Mas onde ficava, então, o seu túmulo? Fiz a pergunta em voz alta e áspera, sem querer. E por que motivo a localização fora mantida em segredo?

Enquanto estava sentado tentando juntar as peças do quebra-cabeças, ouvi o som conhecido de passos no corredor da faculdade o andar arrastado, afável, de Hedges e pensei, aturdido, que tinha de esconder aquele material, ir até aporta, servir o xerez e recompor-me para uma conversa coloquial. Já estava meio levantado, juntando os papéis, quando ouvi o repentino silêncio. Foi como um erro em música, uma nota sustida demasiado tempo, uma entrada atrasada, que prende a atenção do ouvinte como nenhum acorde definido o faria. Os passos conhecidos, afáveis, tinham parado à minha porta, mas Hedges não batera como sempre fazia. O meu coração fez eco com aquela perceptível ausência de batida. Acima do restolhar dos meus papéis e do gotejar dos pingos de chuva no algeroz por cima da minha janela, agora escura, escutei um zumbido o som do meu sangue nos meus ouvidos. Larguei o livro, corri para a porta que dava para o exterior, destranquei-a e escancarei-a.

Hedges estava lá, mas caído no chão encerado, a cabeça atirada para trás e o corpo torcido para o lado, como se uma grande força o tivesse derrubado. Dei-me conta, com um arrepio de náusea, que não ouvira nenhum grito nem o corpo a cair. Tinha os olhos abertos, e olhava fixamente para um ponto atrás de mim. Por um infindável segundo, achei que estava morto. Então, ele mexeu a cabeça e gemeu. Ajoelhei-me ao seu lado.

-Hedges!

Ele gemeu de novo e pestanejou rapidamente.

— Está a ouvir-me? — arquejei, quase a soluçar de alívio por ele estar vivo.

Naquele momento, a cabeça rolou convulsivamente e revelou um corte sangrento no lado do pescoço. Não era grande, mas parecia profundo, como se um cão o tivesse atacado e rasgado a carne, e estava a sangrar abundantemente para a gola, pingando do ombro para o chão.

— Socorro! gritei.

Duvido que alguém tivesse rompido o silêncio daquele corredor revestido de painéis de carvalho com tanta violência desde que fora construído, há séculos atrás. E eu não sabia se adiantaria; aquela era a noite em que a maioria dos professores jantava com o diretor da faculdade. Então, uma porta escancarou-se na outra ponta e o criado pessoal do professor Jeremy Forester veio a correr, um ótimo sujeito chamado Ronald Egg, que já lá não trabalha. Ele pareceu avaliar a situação de imediato, com os olhos arregalados, e depois ajoelhou-se para amarrar com um lenço a ferida do pescoço de Hedges.

— Pronto — disse-me. — É preciso sentá-lo, senhor, manter o corte elevado, se ele não tiver outros ferimentos. — Apalpou o corpo rígido de Hedges e, como o meu amigo não protestou, encostámo-lo à parede. Amparei-o com o meu ombro, onde ele se apoiou pesadamente, os olhos a fecharem-se. — Vou buscar um médico — disse Ronald, e desapareceu no corredor.

Mantive um dedo no pulso de Hedges; a sua cabeça tombou para o meu lado, mas o ritmo cardíaco parecia estável. Não pude evitar tentar chamá-lo de novo à consciência.

— O que aconteceu, Hedges? Alguém o atacou? Está a ouvir— me? Hedges?

Ele abriu os olhos e olhou para mim. A cabeça descaía para um lado e metade do seu rosto parecia flácida, azulada, mas falava de modo inteligível.

— Ele mandou-me dizer-lhe...

— O quê? Quem?

— Ele mandou-me dizer-lhe que não vai tolerar intrusões.

A cabeça de Hedges tombou para a parede, aquela excelente e grande cabeça que abrigava um dos melhores espíritos de Inglaterra. A pele dos meus braços arrepiou-se enquanto o amparava.

— Quem, Hedges? Quem lhe disse isso? Ele feriu-o? Você viu-o?

A saliva borbulhou-lhe no canto da boca e as mãos agitaram-se ao lado do corpo.

— Não vai tolerar intrusões — balbuciou.

— Fique quieto agora — pedi. — Não fale. O médico está a chegar. Procure relaxar e respirar com calma.

— Deus do céu — murmurou Hedges — Pope e a aliteração. Doce ninfa. A debater.

Olhei fixamente para ele, com um aperto no estômago.

— Hedges?

— The Rape of the Lock[1] — disse Hedges, num tom educado. — Sem dúvida nenhuma.

O médico da universidade que o internou no hospital contou-me que Hedges tivera um derrame juntamente com o ferimento.

— Causado pelo choque. Aquele corte no pescoço — acrescentou ele fora do quarto de Hedges — parece que foi feito por alguma coisa aguda, mais provavelmente por dentes aguçados, por um animal. O senhor tem algum cão?

— Claro que não. São proibidos nos quartos da universidade.

O médico abanou a cabeça.

— Muito estranho. Acho que ele foi atacado por um animal quando se dirigia para o seu quarto, e o choque causou-lhe um derrame que talvez estivesse à espera para acontecer. Está bastante fora de si por enquanto, embora consiga formular palavras coerentes. Acredito que haverá uma investigação, por causa do ferimento que sofreu, mas parece-me que no fim desta história vamos acabar por descobrir que alguém tinha um cão de guarda feroz. Procure saber que percurso é que ele fez até ao seu apartamento.

A investigação não chegou a nenhuma conclusão satisfatória, mas também não fui indiciado, pois a polícia não encontrou motivos ou provas de que eu tivesse ferido Hedges. Hedges estava incapaz de testemunhar, e acabaram por classificar o incidente como "ferimento auto-infligido", o que me pareceu uma nódoa que poderia ter sido evitada na reputação dele. Certo dia, durante uma visita à clínica onde ele se encontrava, pedi a Hedges, com muita calma, para pensar nestas palavras: "Não vou tolerar intrusões."

Lançou-me um olhar indiferente e tocou com os dedos roliços, ociosos, aferida a vermelhada no pescoço.

— Se é assim, Boswell[2] — disse ele, num tom agradável, quase bem-humorado. — Se não, vá-se embora.

Dias mais tarde, Hedges teve um segundo derrame durante a noite e morreu. Na clínica não houve registros de mais ferimentos externos no seu corpo. Quando o diretor da faculdade veio dar-me a notícia, jurei a mim mesmo que tentaria incansavelmente vingar a morte de Hedges, se conseguisse descobrir como.

Não tenho ânimo para contar em pormenor como foi dolorosa a cerimónia realizada em sua homenagem na nossa capela em Trinity, os soluços abafados do seu velho pai quando o coro de rapazes começou a entoar os seus salmos maravilhosamente executados para reconfortar os vivos, a raiva que senti pela impotente Eucaristia na sua bandeja. Hedges foi enterrado na sua aldeia de Dorset e visitei sozinho o seu túmulo num dia ameno de Novembro. Na lápide, está escrito REQUIESCAT IN PACE, que era exatamente o que eu também teria escolhido, se a decisão tivesse sido minha. Para meu infinito alívio, é o mais sossegado dos cemitérios de província, e o pároco fala do enterro de Hedges com tanta naturalidade como falaria sobre o de qualquer outro membro honrado da comunidade local. Não ouvi nenhuma história sobre um vrykolakas inglês no pub da rua principal, nem mesmo quando deixei escapar as alusões mais amplas e diretas. Afinal, Hedges foi atacado apenas uma vez, e não as muitas que Stoker diz serem necessárias para infectar uma pessoa viva com o contágio dos mortos-vivos. Acredito que ele tenha sido sacrificado como um mero aviso para mim. E para si, igualmente, infeliz leitor?

Seu, com profundo pesar, Bartholomew Rossi

 

O meu pai mexeu o gelo no copo, talvez para dar firmeza à mão e ocupar-se com alguma coisa. O calor da tarde amainara e transformara-se num calmo anoitecer veneziano, fazendo as sombras dos turistas e dos edifícios alongarem-se pela piazza. Um grande bando de pombos levantou voo do chão empedrado, assustado por alguma coisa, e volteou por cima das nossas cabeças, enorme, no ar. O frio de todas aquelas bebidas geladas tomara finalmente conta de mim, penetrara-me nos ossos. Alguém deu uma gargalhada, à distância, e ouvia-se o grito das gaivotas por cima do ruído dos pombos. Enquanto estávamos ali sentados, um rapaz de camisa branca e jeans aproximou-se a passos largos para falar conosco. Trazia, uma bolsa de lona pendurada num dos ombros e tinha a camisa salpicada de tinta de várias cores.

— Quer comprar uma pintura, signore? — disse, sorrindo para o meu pai. — O senhor e a signorina foram as estrelas do meu trabalho hoje.

— Não, não, grazie — respondeu o meu pai automaticamente.

As praças e ruelas estavam cheias desses estudantes de arte. Aquela era a terceira cena de Veneza que nos ofereciam naquele dia; o meu pai mal olhou para a pintura. O rapaz, ainda a sorrir e talvez sem querer deixar-nos sem pelo menos um cumprimento pelo seu trabalho, estendeu-mo para que o visse e eu abanei a cabeça com simpatia, olhando para a pintura. Um segundo depois, partiu saltitante em busca de outros turistas, e eu fiquei sentada, gelada, a vê-lo afastar-se.

A pintura que me mostrara era uma aguarela de cores vivas. Representava o nosso café e a ponta do café Florian, os toldos ondulando ao sol, uma luminosa e tranquila impressão da tarde. O artista devia estar instalado algures atrás de mim, concluí, mas muito próximo do café; pintara um borrão de cor que reconheci como a copa do meu chapéu de palha vermelho, com o meu pai em tons manchados de castanho e azul. Era um trabalho elegante, informal, a imagem da indolência do Verão, algo que um turista gostaria de guardar como recordação de um dia sem mácula no Adriático. Mas o meu rápido olhar para a tela mostrara-me também uma figura solitária sentada mais à frente do meu pai, uma pessoa de ombros largos e cabelo escuro, nítida silhueta negra no meio das cores alegres dos toldos e das toalhas das mesas. Aquela mesa, lembrava-me claramente, estivera vazia toda a tarde.

 

A nossa próxima viagem levou-nos novamente para leste, para lá dos Alpes Julianos. A pequena cidade de Kostanjevica, "lugar dos castanheiros", estava mesmo cheia de castanhas naquela época do ano, algumas já no chão, de modo que se pousássemos mal o sapato nos paralelepípedos das ruas, este escorregava perigosamente num ouriço espinhoso. Em frente da casa do presidente da Câmara, construída originalmente para abrigar um funcionário administrativo austro-húngaro, havia castanhas espalhadas por toda a parte, com as suas cascas de aparência agressiva, uma profusão de minúsculos porcos-espinhos.

O meu pai e eu caminhávamos devagar, saboreando o fim de um dia quente de Outono no dialeto local conhecido por "verão cigano", como nos dissera uma mulher numa loja, e eu refletia sobre as diferenças entre o mundo ocidental, distante só algumas centenas de quilómetros, e aquele mundo oriental, apenas um pouco a sul de Emona. Aqui, tudo me parecia igual em todas as lojas, e os vendedores também me pareciam exatamente iguais uns aos outros, com uniformes azul-vivo e lenços estampados de flores ao pescoço, os dentes de ouro ou de aço inoxidável a cintilarem para nós por cima do balcão meio vazio. Tínhamos comprado uma enorme barra de chocolate para completar o nosso piquenique de rodelas de salame, pão escuro e queijo, e o meu pai transportava garrafas de Naranca, uma bebida de laranja que já me fazia lembrar de Ragusa, Emona, Veneza.

A última reunião em Zagreb acabara no dia anterior, enquanto eu finalizava o meu trabalho de História com um floreado final. O meu pai queria que eu estudasse agora também alemão, e eu estava ansiosa por isso, não por causa da insistência dele, mas apesar dela; começaria no dia seguinte, com um livro de uma livraria de Amsterdã especializada em línguas estrangeiras. Eu trazia um vestido novo, verde e curto, com meias amarelas até ao joelho, o meu pai sorria lembrando-se de uma trapaça ininteligível feita por um diplomata a outro nessa manhã, e as garrafas de Naranca tilintavam uma de encontro à outra no nosso saco de rede. Mais adiante, havia uma ponte baixa de pedra que atravessava o rio Kostan. Corri à frente para o ver pela primeira vez, o que desejava fazer sozinha, sem ter sequer o meu pai ao meu lado.

O rio fazia uma curva junto à ponte e desaparecia da vista, e nessa curva aninhava-se um castelo diminuto, um castelo eslavo do tamanho de uma villa, com cisnes a nadar suavemente abaixo dos seus muros ou a alisar as penas na margem. Enquanto eu olhava, uma mulher de casaco azul abriu uma janela do andar superior, empurrando-a para fora e fazendo os vidros brilharem ao sol, e sacudiu do lado de fora um pano de pó. Sob a ponte, jovens salgueiros encostavam-se uns nos outros e andorinhas voavam, indo e vindo do solo lamacento das suas raízes. No parque do castelo, vi um banco de pedra (não muito próximo dos cisnes, que eu ainda temia, mesmo na adolescência) com castanheiros debruçados por cima dele, e dos muros do castelo descia uma sombra reconfortante. O fato limpo do meu pai estaria em segurança ali, e ele poderia ficar sentado mais tempo do que pretendia e falar, mesmo contrariado.

— Durante todo o tempo em que examinei aquelas cartas no meu apartamento — disse o meu pai, limpando os restos de salame das mãos com um lenço —, uma coisa, para além do trágico problema do desaparecimento de Rossi, não me saía da cabeça. Quando acabei de ler a carta contando o horrível acidente com o seu amigo Hedges, senti-me demasiado indisposto por uns momentos para pensar com clareza. Tinha a impressão de ter caído um mundo doentio, um submundo do familiar ambiente acadêmico que conhecera durante tantos anos, um subtexto da narrativa histórica habitual que me habituara a ter como garantida. Na minha experiência de historiador, os mortos permaneciam respeitavelmente mortos, na Idade Média tinham acontecido horrores reais, não sobrenaturais, Drácula fora uma pitoresca lenda do Leste europeu ressuscitada pelo cinema na minha infância, e 1930 fora três anos antes de Hitler assumir o poder na Alemanha, um terror que certamente excluía todas as outras possibilidades.

Portanto, senti-me indisposto por um instante, zangado com o meu desaparecido mentor por me transmitir aquelas detestáveis ilusões. Em seguida, o tom de arrependimento e delicadeza das suas cartas tomou conta de mim outra vez e fiquei cheio de remorsos pela minha deslealdade. Rossi contava comigo — só comigo; se me recusasse a abandonar o meu ceticismo por causa de um princípio pedante, certamente não voltaria a vê-lo.

Havia outra coisa que me incomodava. À medida que o meu espírito recuperava a lucidez, percebi que era a lembrança da rapariga na biblioteca, que conhecera apenas duas horas antes, embora me parecesse ter sido há dias. Lembrei-me da extraordinária luz nos olhos dela ao ouvir a minha explicação sobre as cartas de Rossi, o gesto masculino de juntar as sobrancelhas para se concentrar melhor. Por que razão estaria a ler sobre Drácula na mesma mesa que eu, com tantas outras mesas, exatamente naquela tarde, tão perto de mim? Por que mencionara Istambul? Já me abalara demais o que lera nas cartas de Rossi para pôr outra vez de lado o meu ceticismo, para rejeitar a idéia de uma coincidência a favor de algo mais forte. E por que não? Se aceitava uma ocorrência sobrenatural, podia certamente aceitar outras, nada mais lógico.

Suspirei e agarrei na última carta de Rossi Depois disto, só precisaria de analisar o resto do material escondido naquele envelope inócuo e estaria por minha conta. Qualquer que fosse o significado do aparecimento da rapariga e provavelmente não seria nada fora do normal, não é verdade?, não tinha tempo para descobrir quem ela era ou por que partilhávamos este interesse pelo oculto. Era estranho pensar em mim como alguém interessado pelo oculto; no fundo, não era o caso, de maneira nenhuma. O que de fato me interessava era encontrar Rossi.

A última carta, ao contrário das outras, era manuscrita — numa folha pautada de caderno, com uma tinta escura. Desdobrei-a.

 

19 de Agosto de 1931 Cambridge, Mass., EUA

Meu caro e infeliz sucessor:

Bem, não posso fingir que você talvez já não esteja aí, algures, empenhado em ajudar-me, esperando para me salvar se a minha vida um dia ruir. E porque possuo ainda mais algumas informações para acrescentar a tudo o que você (presumivelmente) já investigou, acho que devo encher esta amarga taça até ao fim. "Saber só um pouco é perigoso", teria citado o meu amigo Hedges. Mas ele partiu, e sou tão responsável por isso como se tivesse aberto a porta do meu gabinete e desferido o golpe eu próprio e depois gritado a pedir socorro. Não o fiz, é claro. Se persistiu em ler até aqui, acreditará na minha palavra.

Mas finalmente duvidei da minha própria força há alguns meses, por motivos ligados ao exasperante e terrível fim de Hedges. Fui do túmulo dele diretamente para a América quase literalmente: a minha nomeação para o cargo tornara-se realidade e já estava a empacotar os meus pertences quando tirei um dia de folga para ir a Dorset ver o sítio onde ele descansava em paz. Depois de ter partido para a América, decepcionando algumas pessoas em Oxford e entristecendo os meus pais, receio eu, encontrei-me num mundo novo e mais animado, onde o semestre começa mais cedo (fui nomeado para trabalhar durante três deles e vou lutar para conseguir mais) e os alunos têm uma perspectiva mais franca e prática que não se vê em Oxford. E, mesmo depois de tudo isto, não consegui decidir-me a abandonar de vez o meu relacionamento com os mortos-vivos. Como consequência, tudo indica que ele, aquilo — também não se decidiu a abandonar por completo o seu relacionamento comigo.

Deve lembrar-se de que, na noite em que Hedges foi atacado, eu fizera a inesperada descoberta do significado da xilogravura no centro do meu sinistro livro e verificado que a Tumba ímpia dos mapas que encontrara em Istambul devia ser a sepultura de Vlad Drácula. Fizera a pergunta que me restava em voz alta

— Onde ficava a sepultura? —, assim como exclamara alto no arquivo em Istambul, invocando pela segunda vez uma terrível presença, que dera livre curso à sua ira mandando-me um aviso à custa da vida do meu querido amigo. Talvez só um ego anormal pensasse num confronto com forças naturais — sobrenaturais, neste caso —, mas juro-lhe que esse castigo me enfureceu, sobrepondo-se ao medo durante algum tempo, e fez-me prometer solenemente investigar as últimas pistas e, se tivesse forças, perseguir o meu perseguidor até ao seu covil. Este pensamento bizarro tornou-se-me tão normal como o desejo de publicar o meu próximo artigo ou o de conquistar um lugar permanente na nova e animada universidade pela qual o meu exausto coração ansiava.

Depois de me adaptar à rotina das minhas obrigações acadêmicas e me preparar para um breve regresso à Inglaterra no fim do semestre, altura em que entregaria as páginas da minha tese de doutoramento à amável imprensa inglesa, que me tratava cada vez melhor, fui mais uma vez atrás do rasto de Vlad Drácula, o histórico ou o sobrenatural, o que quer que ele provasse ser. Achava que a minha próxima tarefa deveria ser descobrir mais coisas sobre o meu estranho livro antigo: de onde viera, quem o desenhara, de que época era. Entreguei-o (com relutância, admito) aos cuidados dos laboratórios do Smithsonian Institute. Eles abanaram a cabeça perante a especificidade das minhas perguntas e insinuaram que o recurso a meios para além dos que possuíam custaria mais caro. Mas eu estava obstinado e achava que nem um tostão da herança que recebera do meu avô ou das minhas modestas economias de Oxford seria usado para me vestir, alimentar ou divertir enquanto Hedges ficasse por vingar (mas, graças a Deus, em paz) num cemitério onde o seu caixão não deveria ter entrado antes dos cinquenta anos mais próximos. Já não temia as consequências, pois o pior que poderia imaginar já me acontecera: neste sentido, pelo menos, as forças das trevas tinham falhado os cálculos.

Não foi, porém, a brutalidade do que ocorreu em seguida que me fez mudar de idéias e tomar outra vez consciência do verdadeiro significado do medo. Foi a habilidade, a inteligência da coisa.

Quem se ocupava do meu livro no Smithsonian era um bibliófilo chamado Howard Martin, um homenzinho pequeno e afável, embora taciturno, que se empenhara no meu caso como se conhecesse a história toda. (Não — pensando melhor, se soubesse a história toda, talvez me pusesse porta fora na minha primeira visita.) Mas, aparentemente, o que ele via era apenas a minha paixão pela História, com o que ele simpatizava, e fazia o seu melhor por mim. O seu melhor era muito bom, muito completo, e ele assimilava o que os laboratórios lhe enviavam com um cuidado mais digno de Oxford do que daqueles departamentos demasiado burocráticos dos museus de Washington. Fiquei impressionado, e mais ainda, com os conhecimentos dele sobre a feitura de livros na Europa nos séculos imediatamente anteriores e posteriores a Gutenberg.

Quando considerou que fizera tudo o que era possível por mim, escreveu-me a comunicar que eu receberia os resultados da pesquisa e que me devolveria o livro pessoalmente, tal como eu lho tinha entregue, se eu não quisesse que fosse despachado para o Norte. Fiz a viagem de comboio para o Sul, visitei alguns pontos turísticos na manhã seguinte e apresentei-me no seu gabinete dez minutos antes da hora combinada. O coração batia-me com força e tinha a boca seca, ansiava por ter o meu livro na mão outra vez e saber o que ele tinha descoberto sobre as suas origens.

Mr. Martin abriu a porta e convidou-me a entrar com um leve sorriso.

— Estou muito contente por ter podido vir — disse, com o sotaque americano fanhoso e monocórdico que se tornara para mim o mais acolhedor do mundo.

Assim que nos sentamos no seu gabinete repleto de manuscritos, vi-me face a face com ele e, de imediato, chocou-me a mudança na sua aparência. Tivéramos apenas um breve encontro meses antes e lembrava-me do rosto dele, mas nada, na correspondência concisa e profissional que mantivera comigo, dera a entender que estivesse doente. Agora, mostrava-se esgotado e pálido, de tal forma abatido que a pele adquirira um tom cinzento-amarelado, os lábios coloridos de um vermelho pouco natural. Perdera muito peso, tanto que o seu fato fora de moda pendia-lhe, folgado, dos ombros magros. Sentava-se ligeiramente curvado para a frente, como se uma dor ou fraqueza o impedisse de manter o corpo direito. Parecia que a vida se lhe esvaía.

Tentei convencer-me de que isto se devia apenas ao fato de eu estar com pressa na minha primeira visita e que o contacto pelo correio com ele me tornara mais observador desta vez, ou mais compassivo nas minhas observações, mas não conseguia tirar da cabeça a impressão de que ele definhara num curto período de tempo. Disse a mim mesmo que talvez sofresse de alguma doença maligna ou degenerativa, um cancro de progressão rápida. É claro que a delicadeza não me permitiu fazer qualquer alusão à sua aparência.

— Bem, doutor Rossi — começou ele, à sua maneira americana, — acho que não tem a noção de como é valiosa a peça que teve nas mãos todo este tempo.

— Valiosa? — Ele não tinha a menor noção do valor que aquele livro tinha para mim, pensei, nem com todas as análises químicas do mundo. O livro era a minha chave para a vingança.

— Sim. É um exemplar raro da tipografia medieval da Europa Central, uma peça muito interessante e fora do comum, e estou convencido de que foi provavelmente impresso por volta de 1512, talvez em Euda ou na Valáquia. A data de1512 pode situá-lo com segurança depois do São Lucas de Corvinus, mas antes do Novo Testamento húngaro de 1520, que, a existir, decerto teria influenciado uma obra assim. — Mexeu-se na cadeira, que rangeu. — É mesmo possível que a xilogravura do seu livro tenha na realidade influenciado o Novo Testamento de 1520, que possui uma ilustração semelhante, um Satanás alado. Mas não há como provar isto. De qualquer forma, seria uma influência engraçada, não é? Quer dizer, ver uma parte da Bíblia decorada com uma ilustração diabólica como essa.

— Diabólica? — Deu-me prazer escutar o som da condenação vindo dos lábios de outra pessoa.

— Com certeza. Pôs-me na pista da lenda de Drácula, mas pensa que parei por aí?

O tom de voz de Mr. Martin era tão natural e animado, tão americano, que demorei um instante a reagir. Nunca ouvira uma referência àquele sinistro abismo numa voz tão absolutamente normal. Encarei-o, perplexo, mas o tom fora-se e o rosto dele estava inexpressivo. Examinava uma pilha de papéis que retirara de uma pasta.

— Aqui estão os resultados dos nossos exames — disse. — Passei tudo a limpo, juntamente com o meu parecer, e creio que vai achá-los interessantes. Não acrescentam muito ao que acabei de lhe dizer — ah, existem dois fatos adicionais interessantes. De acordo com a análise química, parece que este livro ficou guardado, provavelmente por muito tempo, num ambiente saturado de pó de pedra, e que isto ocorreu antes de 1700. Além disso, a parte de trás ficou manchada em determinado momento com água salgada — talvez por ter sido exposto a uma viagem marítima. Presumo que poderia ter sido no mar Negro, se as nossas suposições sobre o local em que foi produzido estiverem corretas, mas é claro que há várias outras possibilidades. Receio que não tenhamos contribuído para fazer avançar a sua pesquisa mais longe do que isto — não me disse que estava a escrever uma história da Europa medieval?

Levantou os olhos e deu-me aquele sorriso descontraído, simpático, esquisito naquele rosto debilitado, e instantaneamente dei-me conta de duas coisas que me gelaram a espinha enquanto estava ali sentado.

A primeira era que não lhe dissera nada sobre estar a escrever uma história da Europa medieval; dissera-lhe que precisava de informações sobre aquele volume para me ajudar a completar uma bibliografia de material relacionado com a vida de Vlad, o Empalador, conhecido na lenda como Drácula. Howard Martin era tão rigoroso como curador como eu como estudioso da minha área, e nunca teria cometido um engano desses por distração. A sua memória já me chamara anteriormente a atenção por ser quase fotográfica na sua capacidade para apreender pormenores, uma característica em que reparo e que aprecio sempre que a encontro noutras pessoas.

A segunda coisa que notei naquele momento foi que, talvez devido à doença de que sofria — pobre homem, quase disse para mim próprio —, os seus lábios tinham um aspecto flácido e decadente quando sorria, descobrindo os dentes caninos superiores, de tal forma proeminentes que conferiam a todo o rosto uma aparência desagradável. Fazia-me lembrar muito o funcionário de Istambul, embora não houvesse qualquer problema com o pescoço de Howard Martin, pelo menos até onde eu podia ver. Conseguira controlar o meu tremor e receber o livro e as anotações da sua mão, quando ele falou de novo;

— Aquele mapa, aliás, é notável.

— Mapa? — respondi, gelado. Só conhecia um mapa três, na verdade, em escala graduada que tivesse alguma coisa a ver com as minhas atuais intenções, e tinha a certeza de nunca ter sequer mencionado a sua existência àquele estranho.

— Foi o senhor que o desenhou? Não é antigo, obviamente, mas não o estou a ver como um artista. Pelo menos, não como um daqueles artistas mórbidos, se me permite dizer

Olhei para ele, incapaz de decifrar as suas palavras e temendo deixar escapar algo se lhe perguntasse de que estava a falar. Teria deixado algum dos meus desenhos dentro do livro? Que idiota era, se tivesse deixado. Entretanto, estava certo de ter verificado com todo o cuidado se o livro tinha folhas soltas antes de lho entregar.

— Bem, voltei a pô-lo no livro, está aí dentro — disse ele, tranquilizador. — Agora, doutor Rossi, posso encaminhá-lo para o nosso departamento financeiro, se preferir, ou posso providenciar para que lhe enviem a fatura.

Abriu-me a porta e fez-me novamente o seu sorriso profissional. Tive a presença de espírito suficiente para não começar a folhear ali mesmo o livro que tinha na mão e vi, à luz do corredor, que devia ter imaginado o sorriso peculiar de Martin e talvez até a sua doença; a sua pele parecia normal e estava só um pouco curvado por décadas de trabalho entre as folhas do passado, nada mais. Ficou parado junto à porta com a mão estendida para uma cordial despedida à moda de Washington e eu apertei-lha, murmurando que gostaria que a conta fosse enviada para a minha morada em Harvard.

Afastei-me com cautela até perder de vista a sua porta, depois para fora daquele corredor e finalmente para longe daquele grande castelo vermelho que abrigava todas as atividades dele e as dos seus colegas. Ao ar livre do Mail, o coração político deste enorme país, atravessei a relva muito verde até um banco e sentei-me, tentando parecer e sentir-me despreocupado.

O livro abriu-se na minha mão com a sua habitual obsequiosidade sinistra e procurei em vão uma folha solta ou algo que me surpreendesse dentro dele. Só folheando as páginas para trás é que o encontrei um tracejado muito fino em papel químico, como se alguém tivesse tido diante de si o terceiro e mais secreto dos meus mapas e tivesse copiado para mim todas as suas misteriosas linhas. Os topónimos em dialeto eslavo eram exatamente os que eu conhecia do meu próprio mapa "Aldeia dos Porcos Roubados", "Vale dos Oito Carvalhos". Na realidade, só havia um pormenor no esboço que eu desconhecia. Abaixo da inscrição "Tumba ímpia" havia outra em latim feita com uma tinta que parecia ser a mesma dos outros títulos. Acima da suposta localização da sepultura, arqueadas em torno dela como para provar a sua absoluta associação com aquele lugar, as palavras: BARTOLOMEO ROSSI.

Leitor, considere-me um cobarde se quiser, mas desisti naquele mesmo instante. Sou um professor jovem e vivo em Cambridge, Massachusetts, onde dou aulas, saio com os meus novos amigos para jantar e escrevo para casa, para os meus velhos pais, todas as semanas. Não uso alho nem me benzo quando ouço som de passos no corredor. Tenho uma proteção melhor parei de esmiuçar aquela pavorosa encruzilhada da história. Alguém deve estar satisfeito por me ver quieto porque não aconteceu mais nenhuma tragédia que me perturbasse.

Então, se tivesse de escolher entre a sua sanidade, a vida boa de que se lembrava, e a instabilidade total, qual preferiria, qual consideraria a maneira adequada de um acadêmico viver? Sei que Hedges não iria querer que eu mergulhasse de cabeça nas trevas. E, todavia, se estiver a ler isto, significa que algum mal acabou por me acontecer. Você também tem de escolher. Forneci-lhe todos os elementos que possuo relacionados com estes horrores. Conhecendo a minha história, será capaz de me recusar ajuda?

Seu, com intenso pesar, Bartholomew Rossi

 

As sombras das árvores tinham-se alongado para proporções abismais e o meu pai deu um pontapé num ouriço de castanha com os seus belos sapatos. Tive a súbita sensação de que, se fosse um homem mais grosseiro, teria cuspido no chão naquele momento para expelir da boca algum travo repulsivo. Em vez disso, parecia fazer força para engolir e recompor-se para sorrir.

— Deus do céu! Que conversa a nossa! Estamos soturnos demais esta tarde!

Tentou sorrir, mas também me lançou um olhar que exprimia preocupação, como se alguma sombra pudesse descer sobre mim, sobre mim em especial, e tirar-me de cena sem qualquer aviso.

Soltei a minha mão fria da beira do banco e esforcei-me por ficar igualmente despreocupada. Quando é que isto se tornara um esforço? perguntei a mim mesma, mas era demasiado tarde. Eu estava a fazer o trabalho dele, distraindo-o como antes ele tentara distrair-me. Adotei um ar de ligeira impaciência mas não excessiva, para que ele não desconfiasse.

— Devo confessar que estou com fome outra vez, com fome de comida a sério.

Ele sorriu com um pouco mais de naturalidade e os seus bonitos sapatos bateram juntos no chão enquanto me oferecia galantemente a mão para me levantar do banco, ocupando-se em seguida em guardar no nosso saco as garrafas vazias de Naranca e os outros restos do nosso piquenique. Fiz a minha parte com energia, aliviada porque isso significava que voltaríamos para a cidade em vez de nos demorarmos a olhar para a fachada do castelo. Eu já me virara uma vez, perto do final da história, e olhado para aquela janela lá em cima, onde uma figura escura e altiva tomara o lugar da velha mulher da limpeza. Eu falava rapidamente sobre o que me vinha à cabeça. Desde que o meu pai não o visse também, não podia haver confronto. Talvez pudéssemos ficar seguros.

 

Deixara de frequentar a biblioteca da universidade por algum tempo, em parte porque me tinha sentido singularmente nervosa em relação à minha pesquisa lá, e, em parte, porque tinha a impressão de que Mrs. Clay andava desconfiada das minhas ausências depois da escola. Avisava-a sempre, como prometera, mas uma crescente timidez na sua voz ao telefone fazia-me imaginá-la a ter conversas constrangedoras com o meu pai. Não conseguia imaginá-la a saber o suficiente sobre maus hábitos para suspeitar de alguma coisa em concreto, mas o meu pai poderia fazer conjecturas embaraçosas charros? Rapazes? E por vezes ele olhava para mim com tanta ansiedade que eu não queria inquietá-lo ainda mais.

Por fim, contudo, a tentação tornou-se grande demais e decidi, apesar do meu desconforto, voltar à biblioteca. Dessa vez, inventei um cinema à noite com uma miúda idiota da minha sala — sabia que Johan Binnerts trabalhava na seção medieval nas noites de quarta-feira e que o meu pai estaria numa reunião no Centro — e saí com o meu casaco novo, antes que Mrs. Clay pudesse dizer alguma coisa.

Era esquisito ir à biblioteca à noite, sobretudo porque encontrei o salão principal tão cheio como sempre de estudantes universitários com ar cansado. A sala de leitura da seção medieval, porém, estava vazia. Dirigi-me calmamente para a mesa de Mr. Binnerts, que estava às voltas com uma pilha de livros novos nada que me interessasse, comunicou-me com o seu sorriso suave, uma vez que eu só gostava de coisas horríveis. Mas tinha-me separado um livro por que demorara tanto a vir buscá-lo? Desculpei-me como pude e ele deu uma risadinha.

— Estava com receio de que lhe tivesse acontecido alguma coisa, ou que tivesse seguido o meu conselho e encontrado um assunto mais apropriado para uma jovem. Mas fez-me ficar interessado, também, e procurei-lhe isto.

Peguei no livro, agradecida, e Mr. Binnerts disse que iria para a sua sala de trabalho, mas voltaria em breve para ver se eu precisava de alguma coisa. Mostrara-me a sala de trabalho uma vez, uma pequena divisão com janelas, nas traseiras da sala de leitura, onde os bibliotecários restauravam maravilhosos livros antigos e colavam cartões nos novos. A sala de leitura ficou mais silenciosa do que nunca quando ele se afastou, mas abri avidamente o livro que ele me tinha dado.

Era um achado extraordinário, pensei então, embora hoje saiba que se trata de uma fonte básica para a história bizantina do século quinze uma tradução da Istória Turco-Bizantina, de Michael Doukas, que conta muita coisa sobre o conflito entre Vlad Drácula e Mehmed II. Foi naquela mesa que li pela primeira vez a famosa descrição do que viram os olhos de Mehmed quando invadiu a Valáquia em 1462 e seguiu para Tirgoviste, a capital abandonada de Drácula. Fora da cidade, segundo Doukas, Mehmed foi recebido por "milhares e milhares de estacas com mortos espetados em vez de frutos". No centro deste jardim da morte, estava apièce-de-résistance de Drácula: o general favorito de Mehmed, Hamza, empalado juntamente com os outros no "seu fino traje de púrpura".

Lembrei-me do arquivo do sultão Mehmed, aquele que Rossi fora pesquisar a Istambul. Que o príncipe da Valáquia tinha sido uma pedra no sapato do sultão, era indiscutível. Achei que seria boa idéia ler um pouco sobre Mehmed; talvez existissem fontes sobre ele que explicassem o seu relacionamento com Drácula. Não sabia por onde começar, mas Mr. Binnerts tinha dito que voltaria em breve para falar comigo.

Virei-me, impaciente, com a intenção de ir ver onde ele estava, quando ouvi um ruído no fundo da sala. Foi uma espécie de pancada seca, mais uma vibração através do chão do que propriamente um som, como o de um pássaro que choca com um vidro em pleno voo. Alguma coisa me fez levantar e ir na direção do impacto, o que quer que fosse, e dei comigo a correr para a sala de trabalho no fundo do salão. Não via Mr. Binnerts através das janelas, o que por um momento foi um alívio, mas quando abri a porta de madeira havia uma perna no chão, uma perna dentro de umas calças cinzentas, ligada a um corpo contorcido, a camisola azul enviesada no tronco torcido, o cabelo grisalho emaranhado e ensanguentado, o rosto misericordiosamente meio escondido dilacerado, uma parte dele ainda na esquina da secretária. Um livro tinha aparentemente caído da mão de Mr. Binnerts. Na parede, por cima da secretária, havia uma mancha de sangue, com uma grande e bem definida marca de mão, como uma pintura infantil. Esforcei-me tanto por não fazer qualquer ruído que o meu grito, quando veio, parecia ter saído de outra pessoa.

Passei duas noites no hospital, o meu pai insistiu, e o médico que me atendeu era um velho amigo. O meu pai mostrava-se amável e sério, sentado na beira da cama ou de pé junto à janela com os braços cruzados enquanto o polícia me interrogava pela terceira vez. Eu não tinha visto ninguém entrar na sala da biblioteca. Tinha estado a ler em silêncio sentada à mesa. Tinha ouvido um baque. Não tinha conhecido o bibliotecário pessoalmente, mas gostava dele. O polícia garantiu ao meu pai que eu não estava sob suspeita; era apenas o que tinham à mão como testemunha. Mas eu não testemunhara nada, ninguém entrara na sala de leitura tinha a certeza e Mr. Binnerts não gritara. Não havia ferimentos em nenhuma outra parte do corpo; alguém simplesmente tinha esmagado a cabeça do pobre homem na esquina da secretária. Alguém com uma força prodigiosa.

O polícia abanou a cabeça, perplexo. A marca da mão na parede não fora feita pelo bibliotecário; não havia sangue nas suas mãos. Além disso, a marca não condizia com a mão dele, e era uma estranha marca, com as impressões digitais desgastadas de maneira invulgar. Teria sido fácil identificá-la — o polícia estava a ficar falador com o meu pai exceto pelo fato de não terem registro de nenhuma assim. Um caso difícil. Amsterdã já não era a cidade onde ele crescera agora, as pessoas deitavam bicicletas nos canais, para não falar já no terrível incidente do ano passado com a prostituta que... O meu pai interrompeu-o com um olhar.

Quando o polícia saiu, o meu pai sentou-se na beira da cama e perguntou-me pela primeira vez o que é que eu estava a fazer na biblioteca. Expliquei-lhe que estava a estudar, que gostava de ir para lá depois da escola fazer os trabalhos de casa porque a sala de leitura era sossegada e confortável. Tive medo que ele me perguntasse porque escolhera a seção medieval mas, para meu alívio, calou-se. Não lhe contei que, na confusão que se gerou na biblioteca depois do meu grito, eu enfiara instintivamente na mochila o livro que Mr. Binnerts segurava quando morreu. É claro que os polícias me revistaram a mochila quando entraram na sala, mas nada disseram sobre o livro e por que lhe dariam importância? Não tinha qualquer vestígio de sangue. Era um livro francês do século dezenove sobre as igrejas românicas e tinha caído aberto numa página sobre a igreja do lago Snagov, erguida com magnificência por Vlad III da Valáquia. A sua sepultura estava tradicionalmente localizada ali, em frente do altar, segundo um pequeno texto por baixo de um plano da abside. Contudo, notava o autor, os camponeses perto de Snagov tinham outras histórias. Que histórias, interrogava-me, mas não havia mais nada sobre aquela igreja em particular. O desenho da abside também não tinha qualquer característica particular.

— Quero que estudes em casa de agora em diante — disse o meu pai calmamente. Preferia que ele não tivesse dito nada; de qualquer maneira, eu nunca entraria naquela biblioteca outra vez. — Mrs. Clay pode dormir no teu quarto durante algum tempo, se te sentires inquieta, e podemos chamar o médico sempre que quiseres. Só tens de me dizer.

Concordei, embora pensasse que quase preferia ficar sozinha com a descrição da igreja de Sganov do que com Mrs. Clay. Considerei a possibilidade de atirar o livro para o nosso canal — o destino das bicicletas que o polícia mencionara —, mas sabia que acabaria por querer abri-lo outra vez, à luz do dia, para voltar a lê-lo. Poderia querer fazer isto não só por mim, mas também por Mr. Binnerts, com os seus modos de avô, que agora jazia algures numa morgue da cidade.

 

Algumas semanas mais tarde, o meu pai disse-me que seria bom para os meus nervos fazer uma viagem, e eu sabia que o que ele queria dizer era que seria melhor para ele não me deixar em casa. "Os Franceses", explicou-me, queriam reunir-se com representantes da sua fundação antes de iniciarem conversações na Europa Oriental naquele Inverno, e iríamos encontrá-los uma última vez. Além disso, seria a melhor época na costa do Mediterrâneo, depois de as hordas de turistas terem partido mas antes de a paisagem começar a parecer estéril, árida. Examinámos o mapa com cuidado e ficámos satisfeitos que os franceses tivessem posto de parte a sua opção habitual por uma reunião em Paris e se tivessem decidido pela privacidade de uma estação balnear próxima da fronteira com a Espanha perto da pequena jóia que é Collioure, regozijou-se o meu pai, ou talvez noutro lugar semelhante. Ali mesmo, mas no interior, ficavam Lês Bains e Saint-Matthieu-des-Pirénées-Orientales, apontei-lhe no mapa, mas quando mencionei esses lugares o rosto do meu pai ensombrou-se e começou a procurar outros nomes interessantes ao longo da costa.

O pequeno-almoço no terraço de Lê Corbeau, onde ficámos, era tão bom ao ar fresco da manhã que permaneci lá quando o meu pai foi ao encontro dos outros homens de fatos escuros no salão de conferências, tirando relutantemente os meus livros da mochila e levantando os olhos muitas vezes para contemplar a água azul e transparente a poucas centenas de metros de distância. Estava na minha segunda chávena daquele amargo chocolat continental, que um cubo de açúcar e uma pilha de pãezinhos frescos tornava suportável. A luz do sol nas fachadas das velhas casas parecia eterna, sob o clima seco do Mediterrâneo e a sua luz de uma clareza sobrenatural, como se nenhuma tempestade alguma vez tivesse ousado aproximar-se destas enseadas. Do sítio onde estava sentada, avistava dois veleiros matutinos na beira daquele mar maravilhosamente colorido e um grupo de crianças pequenas com a mãe e com os seus baldes e os seus fatos de banho fora do comum (para mim) descendo para a areia da praia abaixo do hotel. A baía fazia uma curva em volta de nós para a direita, na forma de colinas pontiagudas. No alto de uma delas, havia uma fortaleza em ruínas da mesma cor das rochas e do restolho ressequido, com oliveiras tentando em vão subir até ela e o céu matinal de um azul delicado estendendo-se por trás.

Tive uma súbita sensação de não fazer parte de tudo aquilo, um sentimento de inveja daquelas crianças insuportavelmente felizes, acompanhadas pela sua mãe. Eu não tinha mãe nem uma vida normal. Não estava muito certa sobre o que considerava uma vida normal mas, enquanto folheava o meu livro de biologia à procura do princípio do terceiro capítulo, pensei vagamente que deveria significar viver num lugar com o pai e a mãe presentes todas as noites à hora do jantar, uma família em que viajar significava fazer férias na praia de vez em quando, e não uma interminável vida de nómada. Tinha a certeza, vendo as crianças instalarem-se na areia com as suas pás, que também nunca seriam ameaçadas pelo lado sinistro da história.

Depois, olhando para os seus cabelos brilhantes, percebi que eram ameaçadas, sim; simplesmente, não tinham consciência disso. Éramos todos vulneráveis. Estremeci e olhei para o relógio. Dali a quatro horas, o meu pai e eu almoçaríamos naquele terraço. Em seguida, eu voltaria a estudar e, depois das cinco da tarde, daríamos um passeio até à fortaleza arruinada que ornamentava o horizonte mais próximo — de onde, segundo o meu pai, se podia ver a pequena igreja junto ao mar que ficava do lado oposto, em Collioure. No decurso daquele dia, aprenderia mais álgebra, alguns verbos alemães, leria um capítulo sobre a Guerra das Rosas e, depois... depois o quê? No cimo do árido penhasco, ouviria a próxima história do meu pai. Iria contá-la de má vontade, olhando para baixo, para a areia do chão, ou tamborilando com os dedos nas pedras talhadas séculos atrás, perdido no seu próprio medo. E caber-me-ia a mim estudá-la outra vez, para juntar os pedaços. Uma criança gritou na praia lá em baixo e eu assustei-me, entornando o chocolate.

 

— Quando acabei de ler a última carta de Rossi — disse o meu pai, — senti uma nova tristeza, como se ele tivesse desaparecido uma segunda vez. Entretanto, nessa altura, estava convencido de que o seu desaparecimento nada tinha a ver com uma viagem de autocarro para Hartford ou com a doença de alguém da família na Florida (ou em Londres), como a polícia tentara fazer crer. Tirei essas idéias da cabeça e preparei-me para examinar os seus outros papéis. Ler tudo primeiro, absorver tudo. Depois, estabelecer uma cronologia e começar lentamente — a tirar conclusões. Perguntei a mim próprio se Rossi teria tido alguma premonição de que, ao instruir-me, poderia estar a garantir a sua própria sobrevivência. Era o mesmo que um terrível exame final embora eu esperasse devotadamente que não fosse final para nenhum de nós dois. Decidi que não faria qualquer plano enquanto não lesse tudo, mas já suspeitava do que provavelmente teria de fazer. Abri o desbotado pacote outra vez.

Os três documentos seguintes eram mapas, como Rossi tinha avisado, todos desenhados à mão, e nenhum deles parecia mais antigo do que as cartas. Evidentemente: tratava-se das versões que ele fizera dos mapas que tinha visto no arquivo em Istambul, copiados de memória depois das aventuras que ali vivera. No primeiro em que peguei, vi uma grande região de montanhas, desenhadas em forma de pequenos recortes triangulares. Estes formavam dois compridos semicírculos de leste para oeste através da página e aglomeravam-se densamente no lado oeste. Um largo rio serpenteava ao longo da extremidade norte do mapa. Não havia cidades visíveis, embora dois ou três pequenos X no meio das montanhas ocidentais pudessem assinalar cidades. Nenhum topónimo aparecia neste mapa, mas Rossi a caligrafia era a mesma da última carta — anotara nas margens: "Sobre os incrédulos que morrem na incredulidade, cairá a maldição de Alá, dos anjos e de toda a humanidade" (O Corão), e outras passagens semelhantes. Perguntei-me se aquele rio seria o mesmo que lhe tinha parecido simbolizado pela cauda do dragão no seu livro. Mas não; neste caso ele referia-se provavelmente ao mapa em maior escala que devia estar no meio daqueles. Amaldiçoei as circunstâncias — todas elas — que me impediam de ver e ter nas mãos os originais; apesar da excelente memória e da mão firme de Rossi, certamente haveria discrepâncias entre os originais e as cópias.

O mapa seguinte parecia concentrar-se mais na região montanhosa ocidental mostrada no primeiro. De novo, vi aqui e ali as letras X, marcadas de acordo com a mesma relação entre uma e outra do mapa anterior. Um no menor aparecia, serpenteando através das montanhas. Mais uma vez, nenhum nome de lugar. Rossi anotara no alto deste mapa: "Os mesmos preceitos corânicos, repetidos". Bem, ele tinha sido tão cuidadoso naquela época como o Rossi que eu conheci. Até aquele ponto, porém, os mapas eram demasiado simples, demasiado rudimentares para indicarem qualquer região específica que eu já tivesse visto ou estudado. A frustração tomou conta de mim como uma febre e eu engoli-a com dificuldade, forçando-me a recuperar a concentração.

O terceiro mapa era mais esclarecedor, embora eu não soubesse exatamente o que poderia dizer-me naquela altura. O contorno geral correspondia de fato à feroz silhueta do dragão do meu livro e do livro de Rossi que eu bem conhecia, embora eu talvez não tivesse notado a coincidência a primeira vista se Rossi não a tivesse descoberto. Este mapa mostrava o mesmo tipo de montanhas triangulares. Eram muito altas agora, formando largas cordilheiras no sentido norte-sul, um rio encaracolando-se através delas e abrindo-se numa espécie de reservatório. Por que razão não poderia ser o lago Snagov, na Romênia, como as lendas sobre a sepultura de Drácula sugeriam? Entretanto, como Rossi observara, não havia nenhuma ilha na parte mais larga do rio e, de qualquer maneira, aquilo não parecia realmente um lago. Os Xs apareciam novamente, desta vez legendados com minúsculas letras em cirílico. Presumi que seriam as aldeias que Rossi mencionara. Entre essas aldeias espalhadas, vi um quadrado, marcado por Rossi com os dizeres: "(Árabe) A Tumba ímpia Daquele que Mata os Turcos." Por cima desse quadrado havia um pequeno dragão muito bem desenhado com um castelo a coroar-lhe a cabeça e, em baixo, li mais letras gregas, com a tradução de Rossi para o inglês: "Neste lugar, ele vive no mal. Leitor, desenterra-o com uma palavra." As frases exerciam uma atração incrível, como um sortilégio, e cheguei a abrir a boca para as pronunciar em voz alta quando me detive e apertei os lábios. No entanto, as palavras formaram uma espécie de poesia na minha cabeça, que dançou lá dentro infernalmente durante um ou dois segundos.

Pus os três mapas de lado. Era aterrorizante vê-los ali, exatamente como Rossi os descrevera, e mais estranho ainda ver, não os originais, mas as cópias feitas por ele próprio. Como provar, em última análise, que ele não inventara toda a história, e desenhara aqueles mapas como uma brincadeira? Eu não tinha outras fontes originais sobre aquele assunto, a não ser as cartas dele. Tamborilei com os dedos no tampo da mesa. O tiquetaque do relógio do meu gabinete de trabalho parecia soar muito mais alto do que habitualmente naquela noite e a penumbra urbana parecia demasiado silenciosa por detrás das minhas persianas. Ha horas que não comia e doíam-me as pernas, mas não podia parar agora. Relanceei os olhos para o mapa rodoviário dos Balcãs, mas aparentemente não havia nada de extraordinário nele; indicações manuscritas, por exemplo. A brochura sobre a Romênia também não produzia nada de surpreendente além do estranho inglês em que estava redigida: "Beneficiem-se da nossa exuberante e espantosa região rural", por exemplo. Os únicos documentos que ainda não examinara eram as anotações manuscritas de Rossi e o pequeno envelope selado que vira ao folhear os papéis pela primeira vez. Tinha pensado em deixar o envelope para o fim, porque estava lacrado, mas não podia esperar mais. Encontrei a minha espátula de abrir cartas no meio dos papéis, quebrei cuidadosamente o lacre e tirei para fora uma folha de papel.

Era o terceiro mapa outra vez, com a sua forma de dragão, o rio serpenteante, o arremedo dos altos picos de montanha. Fora copiado com tinta preta, como a versão de Rossi, mas o traço era ligeiramente diferente um bom fac-símile mas de certo modo limitado, arcaico, um pouco ornamentado quando observado mais de perto. Depois da carta de Rossi, eu devia estar preparado para a visão da única diferença em relação à primeira versão do mapa, mas mesmo assim atingiu-me como uma pancada. Acima do local da sepultura retangular e do dragão que a guardava, as palavras, em arco: BARTOLOMEO ROSSI.

Reprimi suposições, medos e conclusões e obriguei-me a pôr o papel de lado e ler as páginas das notas de Rossi. Aparentemente, fizera as duas primeiras nos arquivos de Oxford e do Museu Britânico, e não acrescentavam nada ao que ele já me dissera. Havia um breve resumo da vida e das aventuras de Vlad Drácula e uma lista de alguns documentos literários e históricos nos quais Drácula fora mencionado através dos séculos. Outra página seguia-se a estas, num papel diferente, marcada e datada da sua viagem a Istambul. "Reconstituído de memória", dizia, com a sua letra apressada mas cuidadosa, e concluí que deviam ser as notas que passara ao papel logo a seguir à sua experiência no arquivo, quando desenhara os mapas de memória antes de partir para a Grécia.

Estas anotações consistiam numa lista dos documentos do tempo do sultão Mehmed II guardados na biblioteca de Istambul pelo menos, os que tinham chamado a atenção de Rossi por estarem relacionados com a sua pesquisa os três mapas, os rolos de pergaminho com relatos das guerras dos povos dos Cárpatos contra os Otomanos e livros comerciais dos produtos negociados entre mercadores otomanos nas fronteiras daquela região. Nada disto me parecia muito esclarecedor; mas perguntava-me em que ponto, exatamente, o trabalho de Rossi fora interrompido pelo funcionário com ar ameaçador. Os rolos de pergaminhos e os livros comerciais conteriam pistas sobre a morte ou o enterro de Vlad Tepes? Teria Rossi chegado a examiná-los pessoalmente, ou só tivera tempo para enumerar as possibilidades do arquivo antes de fugir amedrontado?

Havia um último item na lista do arquivo, e este surpreendeu-me; detive-me nele alguns minutos. "Bibliografia, Ordem do Dragão (sob a forma de parte de um rolo de pergaminho)". O que me surpreendeu nesta nota, e me fez hesitar ao lê-la, foi o fato de ser tão pouco informativa. Em geral, as notas de Rossi eram completas, explicativas; ele gostava de dizer que para isso é que se tomava notas. Seria essa bibliografia, que ele mencionava de modo tão apressado, uma lista organizada pela biblioteca para registrar todo o material que albergava relacionado com a Ordem do Dragão? Sendo assim, por que estaria "sob a forma de parte de um rolo de pergaminho?" Devia ser algo antigo em si, pertencente à biblioteca, pensei talvez do tempo da Ordem do Dragão. Mas por que motivo Rossi não dera mais explicações naquela página de caderno, que nada dizia? Ter-se-ia a bibliografia, fosse o que fosse, mostrado irrelevante para a pesquisa dele?

Essas elucubrações sobre um arquivo distante que Rossi examinara há tanto tempo não me pareciam apontar diretamente para os motivos do seu desaparecimento, de modo que pousei a folha de papel na mesa, desgostoso, subitamente cansado das minúcias da pesquisa. Ansiava por respostas. Com exceção do que poderia haver nesses pergaminhos, nos livros comerciais e naquela antiga bibliografia, Rossi partilhara comigo as suas descobertas de um modo surpreendentemente meticuloso. Mas essa concisão era típica dele; além do mais, dera-se ao luxo, se podemos chamar-lhe assim, de se explicar em muitas páginas de cartas. Não obstante, eu sabia muito pouco, a não ser talvez o que devia fazer a seguir. O envelope estava agora completamente, desalentadoramente vazio, e o que eu aprendera com os últimos documentos que ele continha não acrescentara grande coisa ao que já sabia através das cartas. Apercebi-me também de que precisava agir o mais rapidamente possível. Já passara muitas noites em claro antes, e na próxima hora talvez fosse capaz de organizar para mim mesmo tudo o que Rossi me contara sobre as anteriores ameaças à sua vida, segundo a sua própria visão.

Levantei-me com as articulações a estalar e dirigi-me à minha pequena e precária cozinha para preparar uma sopa. Ao baixar-me para tirar uma panela limpa, percebi que o meu gato não entrara para comer a refeição da noite, que dividia comigo. Era um gato vadio, e eu desconfiava que o nosso relacionamento não fosse inteiramente monógamo. Mas, pela hora do jantar, geralmente encontrava-o à janela da minha minúscula cozinha, a olhar para dentro, da escada de incêndio, para me dar a entender que queria a sua lata de atum ou, quando eu estava particularmente generoso, o seu prato de sardinhas. Eu passara a adorar o momento em que ele pulava para dentro do meu apartamento sem vida, espreguiçando-se e miando alto numa exibição de afeto. Costumava deixar-se ficar um pouco por ali depois de comer, a dormir na beira do sofá ou a ver-me a passar a ferro as minhas camisas. Às vezes, tinha a impressão de vislumbrar uma expressão de ternura nos seus olhos amarelos perfeitamente redondos, embora também pudesse ser de pena. Era vigoroso, rijo, com uma pelagem macia preta e branca. Chamava-lhe Rembrandt. Pensando nele, levantei a beira da persiana, empurrei a janela para cima e chamei-o, esperando pelo ruído surdo das suas patas felinas no parapeito. Ouvi apenas o distante tráfico noturno do centro da cidade. Baixei a cabeça e olhei para fora.

A forma do seu corpo enchia o espaço, grotesca, como se tivesse rolado para lá ao brincar e depois ficasse inerte. Puxei-o para dentro da cozinha com mãos suaves e trêmulas, reparando imediatamente na sua espinha partida e na sua cabeça que pendia desajeitadamente. Os olhos de Rembrandt estavam mais abertos do que alguma vez os vira em vida, a boca arreganhada num esgar de medo, as patas da frente abertas e com as unhas à mostra. Soube logo que ele não podia ter caído ali, com tanta precisão, sobre o parapeito apertado. Só uma força muito grande conseguiria matar um animal daqueles — afaguei-lhe o pêlo macio, a raiva sobrepondo-se ao meu terror — e o atacante devia ter ficado arranhado e talvez mesmo ferozmente mordido. Mas o meu amigo estava indiscutivelmente morto. Coloquei-o com suavidade no chão da cozinha, os meus pulmões a encherem-se de um ódio nebuloso ao perceber que, sob as minhas mãos, o seu corpo ainda estava quente.

Virei-me depressa, fechei a janela, corri o trinco e pensei freneticamente qual seria o meu próximo passo. Como poderia proteger-me? As janelas estavam todas fechadas e a porta trancada com um duplo ferrolho. Mas o que sabia eu dos horrores do passado? Penetravam nos lugares como névoa, por baixo das portas? Ou partiam os vidros e irrompiam subitamente diante de nós? Olhei em volta, à procura de uma arma. Não tinha um revólver mas os revólveres de nada serviam contra Bela Lugosi nos filmes de vampiros, a não ser que o herói estivesse equipado com uma bala de prata especial. O que é que Rossi tinha recomendado? "Eu não vou andar por aí com alho no bolso, ah, não." E uma outra coisa: "Tenho a certeza de que traz consigo a sua bondade, o seu sentido moral, ou o que quiser chamar-lhe. De qualquer maneira, gosto de pensar que a maior parte de nós é capaz disso."

Tirei um pano limpo de uma das gavetas da cozinha e embrulhei nele, com cuidado, o corpo do meu amigo, deixando-o do lado de fora do apartamento, no vestíbulo. Teria de enterrá-lo no dia seguinte, se o dia seguinte chegasse da mesma maneira de sempre. Iria enterrá-lo no terreno atrás do edifício — bem fundo, onde os cães não lhe chegassem. Era-me difícil pensar em comer naquelas circunstâncias, mas preparei a minha tigela de sopa e cortei uma fatia de pão para a acompanhar.

Então, sentei-me outra vez à secretária e tirei de lá os papéis de Rossi, guardando-os em ordem no envelope. Pousei o meu misterioso livro do dragão em cima do envelope, tendo o cuidado de não deixar que se abrisse. Por cima de tudo, coloquei o meu exemplar do clássico de Hermann, A Idade de Ouro de Amsterdã, que tinha sido um dos meus livros favoritos durante muito tempo. Abri os meus apontamentos para a tese no centro da secretária e apoiei na minha frente um folheto sobre as guildas de mercadores em Utreque, um exemplar da biblioteca que ainda precisava ler com atenção. Pus o relógio ao meu lado e verifiquei, com um arrepio supersticioso, que faltavam quinze minutos para a meia-noite. Amanhã, disse a mim mesmo, iria a biblioteca e leria tudo o que lá encontrasse para me equipar para os próximos dias. Não me faria nenhum mal aprender mais sobre estacas de prata, dentes de alho e crucifixos, se eram esses os remédios aconselhados pelos camponeses para combater os mortos-vivos durante tantos séculos. Pelo menos, era uma prova de fé nas tradições. Por enquanto, só contava com o conselho de Rossi, mas Rossi nunca me falhara quando estava na sua mão ajudar. Peguei na caneta e inclinei a cabeça para o folheto.

Nunca tivera tanta dificuldade em concentrar-me. Cada nervo do meu corpo parecia estar alerta à presença do lado de fora, se é que era mesmo uma presença, como se a minha mente, e não os meus ouvidos, fosse capaz de ouvi-la roçar a janela. Com um esforço, aterrei firmemente em Utreque, em 1690. Escrevi uma frase, depois outra. Quatro minutos para a meia-noite. "Procurar algumas histórias sobre a vida dos marinheiros holandeses", anotei nos meus papéis. Pensei nos mercadores, reunindo-se nas suas associações, já antigas na época, para tirar o melhor proveito possível das suas vidas e das suas mercadorias, agindo dia após dia de acordo com o seu bastante simples sentido do dever, usando uma parte dos seus lucros para construir hospitais para os pobres. Dois minutos para a meia-noite. Tomei nota do nome do autor do folheto para voltar a consultá-lo mais tarde. "Explorar a importância das máquinas de impressão da cidade para os mercadores", anotei.

O ponteiro dos minutos do meu relógio deu um salto repentino e eu saltei com ele. Marcava meia-noite em ponto. As máquinas de impressão podiam ser extremamente importantes, pensei, forçando-me a não olhar para trás, ali sentado, sobretudo se as guildas tivessem controlado algumas delas. Terão realmente controlado algumas, comprando-as, tornando-se suas proprietárias? Os tipógrafos teriam a sua própria guilda? De que modo as idéias sobre a liberdade de imprensa entre os intelectuais holandeses naquele contexto estão relacionadas com a propriedade das máquinas de impressão? Por um momento, comecei a interessar-me pelo assunto e tentei lembrar-me do que lera sobre as primeiras publicações em Amsterdã e Utreque. De repente, senti uma grande tensão no ar, como se tudo parasse, e depois um relaxamento da tensão.

Olhei furtivamente para o relógio. Meia-noite e três minutos. Comecei a respirar normalmente e a minha caneta deslizou à vontade pelo papel.

O que quer que estava a vigiar-me não era tão esperto como eu receara, pensei, tomando o cuidado de não parar de trabalhar. Pelos vistos, os mortos-vivos acreditavam nas aparências, e eu parecia ter levado em consideração o aviso de Rembrandt e ter-me limitado a realizar as minhas tarefas habituais. Não seria possível esconder os meus verdadeiros atos por muito tempo, mas naquela noite a minha aparência era a única proteção de que podia dispor. Aproximei mais o candeeiro e mergulhei no século dezessete durante mais uma hora, para consolidar a impressão de estar entregue ao trabalho. Enquanto fingia escrever, raciocinava. A ameaça final a Rossi, em 1931, tinha sido o nome dele escrito no local da sepultura de Vlad, o Empalador. Rossi não fora encontrado morto sobre a secretária dois dias antes, como poderia acontecer comigo em breve, se não tivesse cuidado. Não fora encontrado ferido no corredor, como Hedges. Fora raptado. Podia estar morto algures, evidentemente, mas enquanto não tivesse a certeza disso, tinha de ter esperança que estivesse vivo. A partir do dia seguinte, precisava tentar encontrar a sepultura.

 

Sentado naquele velho forte francês, o meu pai contemplava o mar da mesma forma que olhara para o espaço aberto no alto das montanhas em Saint-Matthieu, observando o voo em círculos da águia.

— Vamos voltar para o hotel — disse ele, por fim. — Reparaste que os dias já estão a ficar mais curtos? Não quero ser apanhado aqui depois do pôr do Sol.

Na minha impaciência, atrevi-me a fazer uma pergunta direta.

— Apanhado?

Olhou para mim, muito sério, talvez a considerar os riscos relativos das respostas que podia dar.

— O caminho é realmente íngreme — acabou por dizer. — Não gostaria de ter de procurar o caminho de regresso no escuro no meio destas árvores, tu gostarias?

Ele também sabia ser atrevido.

Olhei para os olivais, agora de um cinzento-esbranquiçado, em vez do cor de pêssego e prateado de antes. Todas as árvores estavam retorcidas, voltadas na direção das ruínas de uma fortaleza que outrora as protegera ou às suas antepassadas das tochas sarracenas.

— Não — respondi. — Não gostaria.

 

Era o início de Dezembro, estávamos novamente na estrada, e a fadiga das nossas viagens de Verão pelo Mediterrâneo parecia longe. O forte vento do Adriático mais uma vez fazia-me ondular o cabelo e eu gostava daquela sensação, daquela rudeza desajeitada; era como se um animal de patas pesadas andasse a trepar por cima de tudo no porto, fazendo as bandeiras estalarem bruscamente na fachada do moderno hotel e torcendo os galhos mais altos dos plátanos que ladeavam o paredão.

— O quê? — gritei. O meu pai voltou a dizer algo ininteligível, apontando para o andar de cima do palácio do imperador. Ambos esticámos o pescoço para olhar para trás.

A elegante fortaleza de Diocleciano elevava-se diante de nós à luz do sol da manhã, e quase caí de costas tentando vislumbrar o seu ponto mais alto. Muitos dos espaços entre as suas belas colunas tinham sido ocupados em geral por pessoas que dividiam o edifício em apartamentos, como o meu pai me explicara antes, de modo que uma verdadeira manta de retalhos feita de pedra, em grande parte de mármore talhado pelos Romanos e saqueado de outras construções, reluzia por toda a estranha fachada. Aqui e ali, a água ou os terramotos tinham aberto fendas. Pequenas plantas tenazes, até mesmo algumas árvores, pendiam das fissuras. O vento fustigava as amplas golas dos marinheiros que passeavam pelo cais em grupos de dois ou três, os rostos bronzeados em contraste com o branco dos uniformes e os cabelos escuros cortados rente, brilhando como escovas de arame. Segui o meu pai e contornámos a esquina do edifício, passando por cima de nozes negras caídas no chão e ramos e folhas de sicómoro, até à praça rodeada de monumentos que ficava por trás dele e que cheirava a urina. Mesmo à nossa frente, erguia-se uma torre fabulosa, aberta aos ventos e que parecia ter sido decorada por um pasteleiro, um alto e fino bolo de noiva. Estava mais silencioso ali e não precisávamos de gritar.

— Sempre quis ver aquilo ali — disse o meu pai com a sua voz normal. — Queres subir até lá acima?

Fui à frente, começando a subir com prazer os degraus de ferro. No mercado a céu aberto próximo do cais, que eu entrevia de quando em quando através de uma moldura de mármore, as árvores tinham ganho um colorido entre o dourado e o castanho, e ao pé delas os ciprestes ao longo da água pareciam mais negros do que verdes. À medida que subíamos, via a água azul-marinho do porto lá em baixo, as pequenas formas brancas dos marinheiros de licença vagueando entre os cafés ao ar livre. Para lá do nosso grande hotel, um pedaço distante de terra descrevia uma curva e apontava como uma flecha para o interior do mundo de língua eslava, para onde o meu pai em breve seria arrastado pela maré de detente que se espalhava pela região.

Parámos para recuperar o fôlego mesmo por baixo do telhado da torre. Só uma plataforma de ferro nos protegia da queda livre para o solo; de onde estávamos, podíamos ver o percurso até ao chão através da teia de degraus de ferro entrançado que tínhamos acabado de subir. O mundo à nossa volta estendia-se para lá das aberturas emolduradas em pedra, suficientemente baixas para deixar um turista descuidado cair de uma altura de nove andares nas lajes do pátio em baixo. Escolhemos um banco no meio, virado para a água, e sentámo-nos tão sossegadamente que um andorinhão se aproximou, as asas arqueadas contra o furioso vento do mar, e desapareceu sob o beiral. Trazia qualquer coisa brilhante no bico, uma coisa que captou a cintilação do sol quando ele voou para longe da água.

— Acordei cedo na manhã seguinte — disse o meu pai —, depois de ler até o fim os papéis de Rossi. Nunca fiquei tão satisfeito ao ver a luz do sol quanto naquele dia. A minha primeira e triste tarefa seria enterrar Rembrandt. Em seguida, não tive qualquer dificuldade em chegar à biblioteca, que estava a abrir as portas; queria aquele dia inteiro para me preparar para a próxima noite, para a nova investida das trevas. Durante muitos anos, a noite fora minha amiga, o casulo de tranquilidade em que eu lia e estudava. Agora, tornara-se uma ameaça, um perigo inevitável a poucas horas de distância. Era provável que em breve também eu empreendesse uma viagem, com todos os preparativos que isso envolvia. Seria um pouco mais fácil, refleti, pesaroso, se ao menos soubesse onde ia.

O salão principal da biblioteca estava muito silencioso, a não ser pelo eco dos passos dos bibliotecários, ocupados com o seu trabalho; poucos alunos chegavam tão cedo e eu teria paz e sossego pelo menos durante meia hora. Dirigi-me para o labiríntico ficheiro, abri o meu caderno e comecei a puxar as gavetas de que precisava. Havia diversas entradas sobre os Cárpatos e uma sobre o folclore da Transilvânia. Um livro sobre vampiros — lendas de tradição egípcia. Perguntei a mim próprio o que teriam os vampiros em comum pelo mundo fora. Os vampiros egípcios seriam parecidos com os do Leste Europeu? Era assunto para um antropólogo, não para mim, mas de qualquer forma anotei o número do livro sobre a tradição egípcia.

Depois, procurei em Drácula. Os assuntos e títulos estavam misturados no ficheiro: entre "Drab-Ali, o Grande" e "Dragões, Ásia", deveria haver pelo menos uma entrada: a ficha de título do Drácula de Bram Stoker, que eu vira a rapariga de cabelo escuro a ler na véspera. Era possível até que a biblioteca tivesse dois exemplares de um clássico como aquele. Precisava dele sem demora: Rossi dissera que se tratava da essência da pesquisa de Stoker sobre as lendas de vampiros, e além disso poderia ter sugestões de proteção para meu uso pessoal. Esquadrinhei o ficheiro para baixo e para cima. Não havia uma única entrada sobre "Drácula" nada, nem uma sequer. Não esperava que a lenda fosse um importante tema acadêmico, mas certamente o livro deveria estar catalogado em algum lugar.

Então, descobri o que havia realmente entre "Drab-Ali" e "Dragões". Um fragmento de papel rasgado no fundo da gaveta revelava claramente que pelo menos uma ficha fora arrancada do seu lugar. Corri para a gaveta "St". Não havia qualquer entrada para Stoker; apenas mais uma evidência de um furto apressado. Sentei-me no banco de madeira mais próximo. Era tudo muito estranho. Por que razão teria alguém arrancado aquelas fichas em particular?

A rapariga de cabelo escuro tinha sido a última pessoa a requisitar o livro, isso sabia eu. Teria querido fazer desaparecer a prova de que o requisitara, por algum motivo que só ela sabia? Entretanto, se queria roubar ou esconder o exemplar, por que razão o lera em público, no meio da biblioteca? Talvez outra pessoa tivesse arrancado as fichas, talvez uma pessoa mas por quê? que não quisesse que mais ninguém procurasse o livro. Quem quer que fosse, fizera-o à pressa, não se preocupando em deixar vestígios do seu acto. Reconsiderei a questão mais uma vez. Aqui, o ficheiro era sagrado; qualquer aluno que deixasse sequer uma das gavetas fora do lugar em cima das mesas, e fosse apanhado pelos funcionários ou bibliotecários, não se furtava a uma severa repreensão. Uma violação do ficheiro teria de ser feita rapidamente, sem sombra de dúvida, num raro momento em que ninguém estivesse por perto ou a olhar naquela direção. Se não fora a rapariga que cometera a infracção, talvez ignorasse que havia alguém que não queria que aquele livro fosse consultado. E ela provavelmente ainda o tinha com ela. Quase corri para o balcão principal.

A biblioteca, construída no mais elaborado estilo neogótico aproximadamente na mesma época em que Rossi acabava os seus estudos em Oxford (onde estava rodeado pelo verdadeiro gótico, evidentemente), sempre me agradara por ser ao mesmo tempo bonita e cômica. Para chegar ao balcão principal, era preciso percorrer de ponta a ponta uma longa nave de catedral. O balcão de circulação ficava onde deveria estar o altar numa catedral a sério, sob um mural de Nossa Senhora do Conhecimento, presume-se vestida com um manto azul-celeste, os braços cheios de livros celestiais. Requisitar um livro era um ato tão santificado como receber a comunhão. Naquele dia, aquilo parecia-me a mais cínica das piadas e ignorei o rosto suave de Nossa Senhora ao dirigir-me à bibliotecária, tentando não demonstrar a minha perturbação.

— Estou à procura de um livro que de momento não está nas prateleiras — comecei, — e gostaria de saber se acabou de ser requisitado ou se vai ser devolvido em breve...

A bibliotecária, uma mulher pequenina e séria, na casa dos sessenta anos, levantou os olhos do trabalho.

— O título, por favor — disse.

— Drácula, de Bram Stoker.

— Um minuto, por favor, vou ver se está aqui. — Manuseou as fichas de uma caixa pequena, com o rosto inexpressivo. — Lamento, está requisitado.

— Ah, que pena — disse eu, enfaticamente. — Quando vai ser devolvido?

— Dentro de duas semanas e meia. Foi requisitado ontem.

— Creio que não posso esperar tanto tempo. Sabe, estou a dar um curso... — Em geral, estas palavras eram mágicas.

— Pode reservá-lo, se quiser — disse a bibliotecária, friamente. Virou-me a cabeça grisalha e bem penteada, como se quisesse voltar ao seu trabalho.

— Talvez tenha sido um dos meus alunos que o requisitou para o ler antes do curso. Se me disser o nome da pessoa, posso entrar em contato com ela.

Ela olhou-me fixamente.

— Não costumamos fazer isso disse.

— É uma situação especial — confidenciei-lhe. — Vou ser franco com a senhora. Preciso de usar uma parte do livro para preparar o teste e, bem, emprestei o meu exemplar a um aluno que agora não sabe onde o deixou. A culpa foi minha, mas sabe como são estas coisas com os alunos. Devia ter previsto isso.

O rosto dela suavizou-se e pareceu quase simpática.

— É terrível, não é? — disse, abanando a cabeça. — Acho que todos os semestres perdemos uma estante cheia de livros. Bem, deixe-me ver se lhe consigo o nome, mas não espalhe por aí que fiz isto, ouviu?

A bibliotecária virou-se para remexer num armário atrás dela e fiquei a refletir sobre a duplicidade que acabara de descobrir na minha natureza. Quando aprendera a mentir com tanta facilidade? Isso deu-me uma sensação de desconfortável prazer. Enquanto esperava, percebi que outro bibliotecário, que se encontrava atrás do grande altar, se tinha aproximado e me observava. Era um homem magro de meia-idade que já vira ali muitas vezes, apenas ligeiramente mais alto do que a sua colega e mal vestido, com um casaco de tweed e uma gravata com nódoas.

— Posso ajudá-lo? — perguntou de repente, como se desconfiasse que eu roubaria alguma coisa do balcão se não fosse imediatamente atendido.

— Oh, não, obrigado — fiz um gesto mostrando a bibliotecária de costas. — Já estou a ser atendido.

— Muito bem.

Chegou-se para o lado quando ela voltou com uma tira de papel, que colocou na minha frente. Naquele momento, não soube para onde olhar o papel dançava-me diante dos olhos. Porque, quando o segundo bibliotecário se afastou, inclinou-se para examinar alguns livros que deviam ter sido devolvidos ao balcão e aguardavam a sua vez de serem reencaminhados para os respectivos lugares. Ao curvar-se, num gesto de míope para ver melhor os livros, o seu pescoço ficou exposto por um momento sobre a gola puída da camisa e vi nele duas fendas com uma crosta escura e um pouco de sangue seco formando um feio rendilhado na pele logo por baixo delas. Depois, endireitou o corpo e foi-se embora, segurando nos seus livros.

— Era isto que o senhor queria? — perguntava-me a bibliotecária. Olhei para o papel que ela empurrava na minha direção. — É o verbete do Drácula de Bram Stoker. Só temos um exemplar.

O bibliotecário encardido deixou cair um livro ao chão e o som reverberou com um estrondo pela enorme nave. Apanhou-o e, ao endireitar-se, olhou diretamente para mim, e nunca vi ou até àquele momento nunca vira um olhar humano tão cheio de ódio e de desconfiança.

— Não era o que queria? — insistia a senhora.

— Oh, não — disse eu, pensando rapidamente e recompondo-me. — A senhora não me compreendeu bem. Estou à procura do Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbons. Como lhe disse, estou a dar um curso sobre o assunto e precisamos de mais exemplares.

Ela franziu intensamente as sobrancelhas.

— Mas pensei que...

Detestei ter de sacrificar os seus sentimentos, mesmo naquele momento desagradável, quando ela me fizera um favor tão grande.

— Não faz mal — disse eu. — Talvez eu não tenha procurado bem. Vou verificar o ficheiro outra vez.

Porém, assim que pronunciei a palavra ficheiro, percebi que abusara da minha nova facilidade em mentir. Os olhos do bibliotecário magro estreitaram-se mais e mexeu ao de leve a cabeça, como um animal acompanhando os movimentos da sua presa.

— Muito obrigado — murmurei educadamente e afastei-me, sentindo os olhos penetrantes nas minhas costas durante todo o percurso do grande salão. Fingi que consultava o ficheiro por um minuto, depois fechei a minha pasta e saí cheio de determinação pela porta da frente, através da qual os fieis já afluíam para a sua manhã de estudo. Lá fora, encontrei um banco onde o sol batia com mais intensidade e sentei-me com as costas apoiadas numa daquelas paredes neogóticas, de onde podia ver com segurança todos os que iam e vinham à minha volta. Precisava de cinco minutos para ficar sentado a pensar a reflexão, como Rossi dizia sempre, deve ser oportuna, não importuna.

Contudo, havia demasiado para digerir rapidamente. Naquele instante de atordoamento, não só entrevira o pescoço ferido do bibliotecário, como o nome da frequentadora da biblioteca que levara o Drácula antes de mim. Chamava-se Helen Rossi.

O vento soprava frio e cada vez mais forte. O meu pai fez uma pausa e tirou da bolsa da máquina fotográfica dois impermeáveis, um para cada um de nós. Mantinha-os bem enrolados para caberem juntamente com o seu equipamento fotográfico, um chapéu de lona e um pequeno estojo de primeiros socorros. Sem dizermos uma palavra, vestimo-los por cima dos nossos blazers e ele prosseguiu.

— Sentado ali ao sol do fim da Primavera, observando a universidade despertar para as suas atividades diárias, senti uma súbita inveja daqueles alunos e professores de aparência vulgar a andarem de um lado para o outro. Pensavam que a prova do dia seguinte era um desafio sério, ou que a política do departamento era um grande drama, refleti amargamente. Nenhum deles poderia compreender a minha situação, ou ajudar-me a sair dela. Senti repentinamente a solidão de estar fora da minha escola, do meu universo, uma abelha operária expulsa da colméia. E aquele estado de coisas, percebi com surpresa, começara apenas há quarenta e oito horas.

Tinha de pensar com clareza, e depressa. Primeiro, verificara o que o próprio Rossi relatara: alguém alheio à ameaça direta a Rossi no caso, um bibliotecário meio sujo e com aspecto excêntrico fora mordido no pescoço. Vamos supor, disse a mim próprio, quase rindo do absurdo das coisas em que começava a acreditar, vamos supor que nosso bibliotecário tivesse sido mordido por um vampiro, e muito recentemente. Rossi fora levado do seu gabinete — com derramamento de sangue, não podia esquecer-me só há duas noites. Se Drácula andasse à solta, parecia ter predileção não apenas pela fina-flor do mundo acadêmico (e lembrei-me do pobre Hedges) mas também por bibliotecários, por arquivistas. Não — e endireitei o corpo, compreendendo subitamente qual era o padrão seguido, ele preferia os que mexiam em arquivos ou documentos que tinham a ver com a sua lenda. Primeiro, tinha sido o funcionário que tirou o mapa a Rossi em Istambul. Depois, o pesquisador do Smithsonian, pensei, recordando-me da última carta de Rossi. E, evidentemente, sempre sob ameaça, o próprio Rossi, que possuía um exemplar de "um daqueles bonitos livros" e examinara outros possíveis documentos relevantes. Agora, aquele bibliotecário, embora ainda não tivesse provas de que o sujeito tinha manuseado documentos relacionados com Drácula. E, por fim, seria eu?

Peguei na pasta e corri para uma cabina telefônica próxima do refeitório dos estudantes.

— Serviço de informações da Universidade, por favor. — Ninguém me seguira até ali, pelo menos até onde podia ver, mas fechei a porta e, através do vidro, mantive o olhar atento a quem passava. — Têm algum registro de uma Miss Helen Rossi? É, sim, aluna de pós-graduação — arrisquei.

A telefonista da universidade foi lacônica; podia ouvi-la a folhear papéis devagar.

— Temos uma H. Rossi nas instalações para alunas de pós-graduação — respondeu ela.

— É essa mesmo. Muito obrigado. Anotei o número e liguei outra vez.

Atendeu uma governanta, com voz perspicaz e protetora.

— Miss Rossi? Sim? Quem quer falar com ela, por favor? — Meu Deus. Não tinha pensado nisso antes.

— O irmão dela — respondi depressa. — Ela disse-me que ligasse para este número.

Ouvi passos que se afastavam do telefone, outros mais vivos voltando, o ruído da mão de alguém a pegar no telefone.

— Obrigada, Miss Lewis -disse uma voz distante, como que a dispensar a outra. Então, ela falou e eu ouvi o timbre baixo e forte que me lembrava de ter escutado na biblioteca.

— Não tenho nenhum irmão — disse ela. A frase soava como uma advertência, não como a mera constatação de um fato. — Quem é?

 

O meu pai esfregou as mãos uma na outra no vento frio, fazendo as mangas do impermeável amarfanharem-se como lenços de papel. Helen, pensei, sem coragem de repetir o nome em voz alta. Era um nome de que eu sempre gostara; evocava valentia e beleza, como o frontispício pré-rafaelita mostrando Helena de Tróia no livro A Ilíada Contada às Crianças, que tinha tido em casa, nos Estados Unidos. Acima de tudo, era o nome da minha mãe, e a minha mãe era um assunto de que o meu pai nunca falava.

Olhei firmemente para ele, mas já estava a falar outra vez.

— Um chá quente num daqueles cafés lá em baixo — disse ele. — É disso que estou a precisar. E tu?

Reparei pela primeira vez que o seu rosto — o rosto bonito e discreto de um diplomata estava desfigurado por pesadas olheiras, que lhe contornavam os olhos e faziam o seu nariz parecer mais afilado na base, como se nunca dormisse o suficiente. Levantou e espreguiçou-se, depois contemplamos uma última vez cada uma das vistas vertiginosamente emolduradas. O meu pai puxou-me um pouco para trás, como se receasse ver-me cair.

 

Atenas deixava o meu pai nervoso e cansado, como eu podia constatar depois de apenas um dia. Pelo meu lado, achava a cidade estimulante: gostava da combinação de decadência e vitalidade, do tráfego sufocante, fumarento, que girava em volta das suas praças, parques e ruínas de monumentos antigos, do Jardim Botânico, que tinha no meio um leão enjaulado, da Acrópole, pairando no ar, com frívolos toldos de restaurantes a adejar em torno da sua base. O meu pai prometeu-me que subiríamos até lá logo que ele tivesse tempo. Estávamos em Fevereiro de 1974, a primeira vez em quase três meses que ele partia em viagem, e hesitara muito em trazer-me, porque lhe desagradava a presença do exército grego nas ruas. Quanto a mim, pretendia aproveitar ao máximo cada momento.

Entretanto, estudava diligentemente no meu quarto de hotel, olhando de vez em quando para as elevações coroadas por templos do lado de fora da minha única janela, como se pudessem levantar voo depois de dois mil e quinhentos anos e fugir para longe antes de eu as ter explorado. Podia ver as estradas, caminhos e veredas que subiam serpenteando para a base do Pártenon. Seria uma longa e lenta caminhada estávamos outra vez em terras quentes, e o Verão ali começava cedo — no meio de casas caiadas de branco e de lojas revestidas de estuques onde se vendia limonada, um percurso que de vez em quando desembocava em antigas praças de mercado e fundações de templos e depois passava através dos bairros de casas de telhados revestidos de telhas. Via uma parte desse labirinto da minha janela esquálida. Subiríamos de uma vista para outra, admirando o que os moradores das proximidades da Acrópole viam todos os dias ao sair de casa. Imaginava dali a visão das ruínas, dos imponentes edifícios municipais, dos parques semitropicais, das ruas sinuosas, das igrejas de pináculos dourados ou telhados vermelhos, que se destacavam à luz do crepúsculo como pedras coloridas espalhadas numa praia cinzenta.

Mais adiante, veríamos os cumes distantes formados por edifícios de apartamentos, por hotéis mais novos do que o nosso, uma extensão de subúrbios através dos quais tínhamos viajado de comboio no dia anterior. Não conseguia adivinhar o que estava para lá deles: era demasiado remoto para a minha imaginação.

O meu pai limparia o rosto com o lenço. E eu saberia, olhando de relance para ele, que, quando chegássemos ao cimo, ele não só me mostraria as antigas ruínas, mas também outro fragmento do seu passado.

— A cafetaria que escolhi — disse o meu pai — ficava suficientemente longe do recinto da universidade para me sentir fora do alcance daquele bibliotecário assustador (que com certeza tinha de ficar a trabalhar, mas provavelmente saía para almoçar num sítio qualquer), mas suficientemente perto para ser um convite sensato, e não um encontro num lugar isolado que um assassino sanguinário teria marcado com uma mulher que mal conhecia. Não sei bem se esperava que ela se atrasasse, duvidosa dos meus motivos, mas Helen chegou antes de mim e, portanto, quando entrei na cafetaria, avistei-a num canto distante a desenrolar a écharpe de seda azul e a tirar as luvas brancas lembra-te que ainda estávamos numa época de adornos pouco práticos e encantadores, mesmo para as acadêmicas mais empedernidas. Trazia o cabelo penteado para trás, quase liso, deixando-lhe o rosto a descoberto, de modo que, quando se virou para olhar para mim, tive uma sensação ainda maior de estar a ser avaliado do que a mesa da biblioteca no dia anterior.

— Bom dia — disse ela com frieza. — Pedi café para si, pois parecia um tanto cansado ao telefone.

Achei aquilo uma presunção como é que ela saberia distinguir a minha voz cansada da minha voz descansada? E se o meu café já estivesse frio? Mas desta vez apresentei-me e apertei-lhe a mão, procurando disfarçar o meu embaraço. Queria interrogá-la imediatamente sobre o seu apelido, mas achei melhor esperar pela oportunidade certa. A mão dela estava macia e seca, fria ao tocar a minha, como se ainda estivesse de luvas. Puxei uma cadeira e sentei-me à frente dela, desejando ter vestido uma camisa limpa, mesmo que fosse para caçar vampiros. A blusa branca dela, de estilo masculino, severa por baixo de um casaco preto, parecia imaculada.

— Por que será que pensei que iria ter notícias suas outra vez? — o tom era quase ofensivo.

— Sei que acha isto estranho — endireitei-me e tentei olhá-la nos olhos, pensando se conseguiria fazer todas as perguntas que queria antes que ela se levantasse e saísse. — Desculpe, não se trata de uma brincadeira e não estou a querer incomodá-la ou a interromper o seu trabalho.

Ela abanou a cabeça, com ar aborrecido. Observando o seu rosto, ocorreu-me que a sua aparência em geral, e certamente a sua voz, eram feias e elegantes ao mesmo tempo, e a idéia animou-me, como se a revelação a tornasse humana.

— Descobri uma coisa muito estranha esta manhã — comecei, com uma nova confiança. — Por isso lhe telefonei desta maneira tão imprevista. Ainda tem consigo aquele exemplar do Drácula que requisitou na biblioteca?

Ela foi rápida, mas eu fui mais rápido, pois esperava que ela se retraísse, e vi a cor fugir-lhe repentinamente do rosto já de si pálido.

— Tenho — respondeu, cautelosa. — O que é que alguém tem a ver com o que cada um requisita na biblioteca?

Não mordi o isco.

— Foi você que arrancou todas as fichas relacionadas com aquele livro? — Dessa vez, a reação dela foi genuína e sem disfarce.

— Arranquei o quê?

— Hoje de manhã, fui ao ficheiro à procura de certas informações sobre... sobre o assunto que, segundo parece, ambos estamos a estudar. Descobri que todas as fichas sobre Drácula e Stoker tinham sido tiradas da gaveta.

O rosto dela ficou tenso e olhou fixamente para mim, o rosto quase feio, os olhos excessivamente brilhantes. Naquele instante, porém, pela primeira vez desde que Massimo gritara que Rossi tinha desaparecido, senti um alívio infinitesimal daquele fardo, um deslocamento do peso da minha solidão. Ela não se rira do meu melodrama, como poderia ter-lhe chamado, nem franzido a testa, espantada. E, mais importante do que tudo, não havia astúcia no olhar dela, nada que indicasse que eu estava a falar com um inimigo. O seu rosto, até onde ela permitia, registrava apenas uma emoção: um tênue lampejo de medo.

— As fichas estavam no respectivo lugar ontem de manhã — disse, devagar, como se baixasse uma arma e se dispusesse a conversar. — Procurei primeiro o Drácula, e havia uma entrada para ele, apenas um exemplar. Depois, quis saber o que é que Stoker tinha escrito mais, e procurei também o nome dele. Havia algumas entradas, inclusivamente uma para Drácula.

O indiferente empregado da cafetaria trouxe os cafés para a mesa e ela pegou no seu sem prestar atenção ao que fazia. Senti uma falta repentina e intensa de Rossi, servindo um café muito melhor do que aquele para nós os dois, com a sua refinada hospitalidade. Ah, e eu tinha mais perguntas a fazer àquela enigmática rapariga.

— Obviamente, há alguém que não quer que você... que eu... que ninguém pegue naquele livro — comentei. Mantive a voz calma, ao mesmo tempo que a observava.

— É a coisa mais ridícula que já ouvi — disse ela asperamente, deitando o açúcar na chávena e mexendo o café. Mas não parecia convencida das suas próprias palavras, por isso insisti.

— Ainda tem o livro?

— Tenho — a colher dela caiu com um tinido irritado. — Está na minha pasta. — Lançou um rápido olhar para baixo e vi junto dela a pasta que trazia na véspera.

— Miss Rossi — disse eu, — peço que me desculpe, e receio que ache que sou louco, mas estou convencido de que pode ser perigoso para si ficar com esse livro, o que vai claramente contra a vontade de alguém.

— O que o leva a pensar isso? — contrapôs ela, agora sem me olhar nos olhos. — Quem pensa que não quer que eu fique com o livro? — Um ligeiro rubor espalhara-se-lhe na face outra vez e olhava com ar culpado para o fundo da chávena, não havia outra maneira de a descrever: parecia inequivocamente culpada Perguntei-me, horrorizado, se ela não seria uma aliada do vampiro a noiva de Drácula, refleti, consternado, as matinês de domingo a voltarem-me em quadros rápidos. Aquele cabelo escuro condizia, o sotaque carregado, não identificável, os lábios parecendo uma nódoa de amora na pele clara, a elegância do fato preto e branco. Tirei aquela idéia da cabeça com firmeza; era uma fantasia, e encaixava-se bem demais na minha agitação mental.

— Por acaso sabe de alguém que não gostasse que tivesse esse livro?

— Sim, para ser franca. Mas é óbvio que isso não é da sua conta. — Fulminou-me com o olhar e voltou ao seu café. — Já agora, por que é que andava a procura do livro? Se queria o meu número de telefone, por que não me pediu, simplesmente, sem recorrer a esta conversa fiada?

Desta vez, fui eu que me senti corar. Conversar com aquela mulher era como ficar sentado e parado à espera por uma sucessão de murros desferidos aleatoriamente, de modo que não se sabia quando viria o próximo.

— Não tinha intenção de perguntar o número do seu telefone até ter descoberto que aquelas fichas tinham sido arrancadas do ficheiro e ter pensado que talvez soubesse alguma coisa sobre isso — respondi, secamente. — Também precisava muito daquele livro. Por isso, fui à biblioteca verificar se teriam um segundo exemplar que eu pudesse usar.

— E não tinham — disse ela, agressiva, — e assim arranjou uma desculpa perfeita para me telefonar a perguntar por ele. Se queria o livro que eu tenho, por que não se limitou a fazer uma reserva?

— Preciso dele imediatamente — retorqui. O tom dela estava a começar a irritar-me. Podíamos estar ambos metidos em sérias dificuldades e ela fazia jogos de palavras sobre o nosso encontro como se fosse um pretexto para uma aproximação amorosa, o que não era. Tentei lembrar-me de que ela desconhecia a situação aflitiva em que me encontrava. Então, ocorreu-me que se lhe contasse toda a história, não só ela poderia pensar que eu era doido, como corria o risco de a colocar num perigo ainda maior. Suspirei alto, sem querer.

— Está a tentar intimidar-me para ficar com o meu livro? — o seu tom de voz suavizara-se um pouco e notei que achava graça, o que fazia a sua boca vigorosa torcer-se. — Creio que está.

— Não, não estou. Mas gostaria de saber quem acha que não quer que você tenha esse livro. — Pousei a chávena na mesa e olhei diretamente para ela.

Ela mexeu os ombros, inquieta, sob a lã muito leve do casaco. Vi um longo fio de cabelo preso à lapela, o seu cabelo escuro, mas que brilhava com reflexos acobreados contra o tecido escuro. Parecia estar a decidir se devia dizer alguma coisa.

— Quem é você? — perguntou subitamente. Considerei a pergunta sob o ponto de vista acadêmico.

— Sou aluno de pós-graduação aqui, em História.

— História? — foi uma interjeição rápida e quase irritada.

— Estou a escrever a minha tese sobre o comércio holandês no século dezessete.

— Ah — ficou calada por um instante. — Sou antropóloga — disse por fim.

— Mas também me interesso muito por História. Estudo os costumes e tradições dos Balcãs, em especial os da minha nativa... — e baixou um pouco a voz, mas com uma certa tristeza, não por discrição... — a minha nativa Romênia.

Era a minha vez de vacilar. Realmente, aquilo estava a ficar cada vez mais curioso.

— É por isso que queria ler o Drácula? — perguntei.

O sorriso dela surpreendeu-me os dentes muito brancos e um tanto pequenos para um rosto tão forte, os olhos brilhantes. Depois, apertou os lábios outra vez.

— Suponho que sim.

— Não está a responder às minhas perguntas — salientei.

— E por que é que havia de responder? — encolheu os ombros. — Você é um completo desconhecido para mim e quer ficar com o meu livro da biblioteca.

— Pode estar a correr perigo, Miss Rossi. Não estou a tentar ameaçá-la, mas estou a falar a sério.

Ela olhou-me intensamente.

— E também está a esconder alguma coisa — disse. — Só respondo se me contar o que é.

Eu nunca tinha visto, conhecido ou falado com uma mulher assim. Era combativa sem usar qualquer tipo de sedução. Tive a sensação de que as suas palavras eram um lago de água fria no qual eu mergulhava agora sem parar para medir as consequências.

— Muito bem, então responda primeiro à minha pergunta — disse eu, no mesmo tom. — Quem acha que pode não querer que tenha aquele livro?

— O professor Bartholomew Rossi — disse ela com voz sarcástica, desagradável. — Você está em História. Deve ter ouvido falar dele, não?

Fiquei parado, aturdido.

— O professor Rossi? O que... o que quer dizer?

— Já respondi à sua pergunta — disse ela, endireitando-se e apertando o casaco, pondo as luvas uma em cima da outra, como se tivesse terminado uma tarefa. Passou-me rapidamente pela cabeça que ela poderia estar a avaliar o efeito das suas palavras em mim, vendo-me gaguejar por causa delas. — Agora, diga-me o que significa todo este melodrama sobre um livro ser tão perigoso.

— Miss Rossi — disse eu. — Por favor. Eu conto-lhe, conto-lhe tudo o que puder. Mas, por favor, diga-me qual é a sua relação com o professor Bartholomew Rossi.

Ela inclinou-se, abriu o saco dos livros e tirou um estojo de couro.

— Importa-se que eu fume? Pela segunda vez, reparei naquela desenvoltura masculina que parecia apoderar-se dela quando punha de lado os gestos defensivamente senhoris. — Quer um?

Abanei a cabeça, detestava cigarros, embora quase tivesse aceite um daquela mão macia e seca. Ela inalou sem qualquer floreado, fumando com desenvoltura.

— Não sei por que razão estou a contar isto a um desconhecido — observou, pensativa. — Acho que a solidão deste lugar me está a afetar. Há dois meses que quase não falo com ninguém, a não ser sobre trabalho. E você não me parece do tipo mexeriqueiro, embora só Deus saiba como o meu departamento está cheio deles. — O sotaque dela surgiu sem disfarces sob as palavras, que pronunciava com um leve rancor. — Mas, se mantiver a sua promessa... — o olhar duro surgiu outra vez, aprumou o corpo, o cigarro a apontar, desafiador, de uma das mãos. — A minha relação com o famoso professor Rossi é muito simples. Ou devia ser. É meu pai. Conheceu a minha mãe quando estava na Romênia à procura de Drácula.

O meu café derramou-se pela mesa, pelo meu colo, pela frente da minha camisa que na verdade não estava muito limpa e salpicou-lhe o rosto. Ela limpou-o com a mão, olhando fixamente para mim.

— Deus do céu, desculpe. Desculpe — e tentei limpar tudo usando os nossos dois guardanapos.

— Então, isto é de fato um choque para si — disse ela, sem se mexer. — Quer dizer que deve conhecê-lo.

— Conheço — confirmei. — É o meu orientador. Mas nunca me falou da Romênia e... e nunca me disse que tinha família.

E não tem a frieza da voz dela atravessou-me como uma lâmina.

— Nunca o conheci, sabe, mas acho que agora é só uma questão de tempo. — Recostou-se na pequena cadeira e arqueou os ombros, rudemente, como se me desafiasse a chegar mais perto dela. — Vi-o uma vez, de longe, numa aula Imagine, ver o seu pai pela primeira vez assim, de longe.

Eu tinha feito um monte com os guardanapos encharcados e empurrei tudo para um lado, guardanapos, chávena de café, colher.

— Porquê?

— É uma história muito bizarra — respondeu ela. Olhava para mim, mas não como se estivesse imersa em pensamentos. Parecia antes estar a sondar as minhas reações. — Muito bem. É a velha história: "seduzida e abandonada". A expressão soava engraçada com o sotaque dela, embora eu não estivesse com disposição para sorrir. Talvez não seja assim tão bizarra. Ele conheceu a minha mãe na aldeia dela, usufruiu da sua companhia por algum tempo e, depois de umas semanas, foi-se embora e deixou-lhe uma morada em Inglaterra. Depois de ele ter partido, a minha mãe descobriu que estava grávida e a irmã dela, que vivia na Hungria, ajudou-a a fugir para Budapeste antes de eu nascer.

— Ele nunca me disse que tinha estado na Romênia — eu não estava a falar, estava a resmungar.

— Não me surpreende. A minha mãe escreveu-lhe da Hungria para a morada que ele tinha deixado e contou-lhe do filho de ambos que esperava. Ele respondeu-lhe, dizendo que não tinha a menor ideia de quem ela era, nem de como encontrara o seu nome, e que nunca tinha estado na Romênia. Consegue imaginar uma atitude tão cruel?

Os seus olhos penetrantes estavam cravados em mim, enormes e negros.

— Em que ano nasceu? — Nem me ocorreu pedir desculpa antes de lhe fazer aquela pergunta; ela era tão diferente de qualquer pessoa que eu tivesse conhecido, que as regras habituais não se aplicavam.

— Em 1931 — respondeu ela, categórica. — A minha mãe levou-me uma vez à Romênia por uns dias, quando eu ainda nada sabia sobre Drácula, mas mesmo nessa altura recusou-se a voltar à Transilvânia.

— Deus do céu — murmurei para o tampo de fórmica da mesa. — Deus do céu. Pensei que ele me tinha contado tudo, mas não me contou isso.

— Ele contou-lhe... o quê? — perguntou ela rispidamente.

— Por que é que nunca o conheceu? Ele não sabe que está aqui? — Ela olhou-me de maneira estranha, mas respondeu sem objeções.

— É um jogo, penso que pode ser visto assim. Só um capricho meu. Eu não me saí muito mal na Universidade de Budapeste. Na verdade, era considerada um gênio.

Deu-me esta informação quase com modéstia. O inglês dela era fenomenalmente bom, reparei pela primeira vez sobrenaturalmente bom. Talvez ela fosse mesmo um gênio.

— A minha mãe não acabou o liceu, acredite ou não, apesar de ter recebido um pouco mais de instrução numa época posterior da sua vida, mas aos dezesseis anos já eu frequentava a universidade. É claro que a minha mãe me falou sobre a minha herança paterna, e os extraordinários livros do professor Rossi são conhecidos mesmo nas mais tenebrosas profundezas do Bloco de Leste: civilização minóica, cultos religiosos do Mediterrâneo, a época de Rembrandt. Como ele escreveu com simpatia sobre o socialismo britânico, o nosso governo permite a distribuição das suas obras. Estudei inglês durante todo o liceu, quer saber por quê? Para ler no original a incrível obra do doutor Rossi Também não foi difícil descobrir onde ele estava, sabe; eu costumava olhar para o nome da universidade escrito na capa dos seus livros e jurar que um dia iria para lá. Pensei em tudo. Fiz todos os contatos necessários, politicamente: comecei a fingir que pretendia estudar a gloriosa revolução trabalhista na Inglaterra. E, quando chegou a hora, pude escolher entre as várias bolsas de estudo. Ultimamente temos gozado de alguma liberdade na Hungria, embora toda a gente se interrogue até quando os Soviéticos vão tolerar isto. Falando de empaladores... Enfim, fui primeiro para Londres, durante seis meses e depois, há quatro meses, consegui uma bolsa de estudo para vir para aqui.

Soprou uma espiral de fumo cinzenta, pensativa, mas os seus olhos não se desviaram dos meus. Ocorreu-me que Helen Rossi tanto podia ser perseguida por Drácula como pelo governo comunista a que se referia com tanto cinismo. Talvez até já tivesse passado para o Ocidente. Tomei nota mentalmente para lhe perguntar isso mais tarde. Mais tarde? E o que teria acontecido à mãe dela? E fizera tudo isso na Hungria com o objetivo de se associar à reputação de um famoso acadêmico ocidental?

Os pensamentos dela seguiam outro rumo.

— Não é um bonito quadro? A filha perdida durante tanto tempo acaba por ser um grande motivo de orgulho, encontra o pai, e temos um final feliz.

A amargura no sorriso dela deu-me a volta ao estômago.

— Só que não era bem isso que eu tinha em mente. Vim para cá para que ele ouvisse falar de mim, como por acaso: as minhas publicações, as minhas conferências. Vamos a ver se nessa altura ele consegue esconder-se do passado, ignorar-me como ignorou a minha mãe. E quanto a essa questão do Drácula... — apontou o cigarro na minha direção. — A minha mãe, abençoada seja a sua alma simples por ter pensado nisso, contou-me algumas coisas antes de eu sair da Hungria.

— Contou o quê? — perguntei, com a voz fraca.

— Contou-me sobre as pesquisas específicas de Rossi sobre esse assunto. Eu nada sabia sobre isso até ao Verão passado, quando estava prestes a viajar para Londres. Foi assim que eles se conheceram; ele andava pela aldeia a fazer perguntas sobre tradições orais relacionadas com vampiros e ela ouvira o pai e as velhas da família contarem histórias sobre vampiros locais — não que um homem sozinho pudesse dirigir-se a uma rapariga em público, compreende, naquela cultura. Mas acho que ele não estava a par disso, era historiador, não era antropólogo. Estava na Romênia à procura de informações sobre Vlad, o Empalador, o nosso querido conde Drácula. E não acha que é estranho — e curvou-se bruscamente para a frente, aproximando ainda mais o seu rosto do meu, mas com ar feroz, não como um apelo, não acha que é completamente incompreensível que ele não tenha publicado nada sobre esse assunto? Nem uma palavra, como você com certeza deve saber. Por que razão o famoso explorador de territórios históricos — e de mulheres, pelos vistos, pois sabe-se lá quantas outras filhas geniais deve ter por aí... por que é que ele não publicou nada a partir dessa pesquisa tão invulgar?

— Porquê? — repeti, imóvel.

— Vou dizer-lhe. Porque está a guardar isso para um grand finale. É o segredo dele, a sua grande paixão. Por que outro motivo um acadêmico se manteria em silêncio? Mas vai ter uma surpresa. — O seu lindo sorriso desta vez era uma careta forçada, mostrando os dentes, de que não gostei. — Não acredita o que consegui estudar num ano, desde que descobri o interesse dele pelo assunto. Não entrei em contato com o professor Rossi, mas tive o cuidado de dar conhecimento ao meu departamento desta minha especialidade. Até o nome dele assumi ao chegar aqui — um nom-de-plume acadêmico, pode dizer-se. Além disso, nós, os do Bloco de Leste, não gostamos que outros roubem a nossa herança cultural e a comentem, pois em geral fazem interpretações erradas.

Devo ter gemido em voz alta, porque ela fez uma pausa momentânea e olhou-me com as sobrancelhas franzidas.

— No final do Verão, vou saber mais do que qualquer pessoa no mundo sobre a lenda de Drácula. Já agora, pode ficar com o seu livro velho. — Abriu de novo o saco e bateu com o livro com força, estrondosamente, na mesa entre nós. — Ontem, estava só a verificar uma coisa nele, não tinha tempo para ir a casa buscar o meu. Como vê, nem preciso dele. É só literatura, de qualquer maneira, e sei essa porcaria toda quase de cor.

 

O meu pai olhou à sua volta como se sonhasse. Já há quinze minutos que estávamos de pé em silêncio na Acrópole, os pés assentes naquele cume de civilização antiga. Eu estava impressionada com as robustas colunas acima de nós e fascinada por constatar que a vista mais distante no horizonte era constituída por montanhas, formidáveis cordilheiras áridas que pairavam sombrias sobre a cidade àquela hora do crepúsculo. Entretanto, quando começamos a descer para regressar e ele saiu do seu devaneio para me perguntar o que é que eu achava do grandioso panorama, demorei um minuto a organizar os meus pensamentos e a responder. Tinha estado a pensar na noite anterior.

Fora ao quarto dele um pouco mais tarde do que era costume para ele dar uma olhadela no meu problema de álgebra e encontrei-o a escrever, debruçado sobre a papelada do dia, como fazia sempre à noite. Estava sentado muito parado, a cabeça inclinada para a secretária, curvado sobre uns documentos, e não recostado a folheá-los com a sua habitual eficiência. Não podia ver da porta se estava a examinar de perto alguma coisa que tinha acabado de escrever, quase sem a ver, ou simplesmente a tentar não dormitar. O seu vulto projetava uma grande sombra na parede despojada de enfeites do quarto de hotel, a figura escura de um homem caído sobre uma secretária ainda mais escura. Se eu não soubesse do seu cansaço e não conhecesse o formato familiar dos seus ombros debruçados sobre os papéis, podia, por um segundo se não o conhecesse, dizer que estava morto.

 

O tempo claro, triunfal, os dias enormes como um céu de montanha acompanharam-nos com a Primavera para o interior eslavo. Quando perguntei se teríamos tempo de ver outra vez a cidade de Emona — que para mim já estava associada a uma época anterior da minha vida, uma época com um sabor completamente diferente, e com um começo e, como já disse antes, queremos sempre revisitar esses lugares —, o meu pai disse apressadamente que estaríamos demasiado ocupados, instalados junto de um grande lago a norte de Emona para a conferência dele e tendo de voltar a correr para Amsterdã, antes que eu ficasse atrasada na escola. O que nunca acontecia, mas essa possibilidade preocupava o meu pai.

Quando chegamos, o lago Bled não nos desapontou. Derramara-se para um vale alpino no final de uma das Idades do Gelo e proporcionara aos primeiros nómadas da região um local de repouso em casas com telhados de colmo dentro de água. Agora, assentava como uma safira nas mãos dos Alpes, a sua superfície luzindo de ondas brancas na brisa do fim da tarde. De uma extremidade íngreme erguia-se uma escarpa mais alta do que o resto, e nela se aninhava um dos grandes castelos da Eslovênia, restaurado pela secretaria de turismo com um bom gosto pouco comum. As ameias estavam viradas para uma ilha lá em baixo, onde um exemplar dessas modestas igrejas austríacas de telhados vermelhos flutuava como um pato, e havia barcos que faziam a ligação para a ilha com intervalos de poucas horas. O hotel, como de costume, era de aço e vidro, um cinco estrelas do turismo socialista, e fugimos dele no segundo dia para um passeio em volta da parte mais baixa do lago. Disse ao meu pai que achava que não aguentaria mais vinte e quatro horas sem ver o castelo que, a cada refeição, dominava a paisagem distante, e ele riu.

— Se achas que não aguentas, então vamos — brincou ele.

A nova detente era ainda mais promissora do que a equipa dele esperava e algumas das rugas da sua testa tinham-se suavizado desde a nossa chegada.

Assim, na manhã do terceiro dia, deixando uma reformulação diplomática do que fora reformulado no dia anterior, apanhamos um pequeno autocarro que contornou o lago e subiu quase até ao nível do castelo, depois saltamos para continuar a pé até ao cimo. O castelo era feito de pedras castanhas que faziam lembrar ossos descorados, cuidadosamente unidos depois de um longo período de deterioração. Quando passamos pela primeira galeria que desembocava num dos aposentos principais (presumi que fosse), quase perdi o fôlego: através de uma janela selada com chumbo, a superfície do lago cintilava uns trezentos metros abaixo, espraiando-se, branca, ao sol. O castelo parecia estar pendurado à beira do precipício, apenas com os dedos dos pés cravados no chão como apoio. A igreja amarela e vermelha na ilha, o alegre barco que naquele instante mesmo atracava entre minúsculos canteiros de flores vermelhas e amarelas, o vasto céu azul, tinham satisfeito centenas e centenas de turistas, pensei.

Mas aquele castelo, com as suas pedras desgastadas e lisas desde o século doze, com os seus tepes de machados de guerra, lanças e machadinhas armados em todos os cantos e prestes a cair com estrépito se lhes tocassem era a essência do lago. Os antigos moradores do lago, deixando para trás as suas cabanas de colmo que o fogo devorava facilmente, tinham subido rumo ao céu e escolhido empoleirar-se ali no alto com as águias, governados por um senhor feudal. Mesmo tão habilmente restaurado, o lugar tinha um sopro de vida antiga. Deixei a deslumbrante janela e dirigi-me ao aposento seguinte, onde vi, num ataúde de vidro e madeira, o esqueleto de uma mulher pequena, morta muito antes do advento da Cristandade, o enfeite de bronze do seu manto pousado no esterno em pedaços, anéis de bronze esverdeado escorregando-lhe dos ossos dos dedos. Quando me inclinei para o caixão para olhar para ela, sorriu-me de repente, as suas órbitas profundas como dois poços.

No terraço do castelo, o chá vinha em bules de porcelana branca, uma elegante concessão à indústria do turismo. Era forte e bom, e os cubos de açúcar, envoltos em papel, não eram velhos, para variar. O meu pai apertava as duas mãos juntas na mesa de ferro; os nós dos dedos estavam brancos. Desviei os olhos para o lago e depois servi-lhe outra chávena de chá.

— Obrigado — disse o meu pai.

Havia uma dor distante no seu olhar. Reparei mais uma vez como parecia cansado e magro, ultimamente; não deveria consultar um médico?

— Ouve, querida — disse ele, virando-se um pouco, de modo que eu só podia ver o seu perfil contra o fundo daquele espetacular penhasco e da água reluzente. Ele fez uma pausa. — Já pensaste em escrevê-las?

— As histórias? — perguntei. Senti o coração contrair-se e depois disparar no meu peito.

— Sim.

— Porquê? objetei finalmente.

Era uma pergunta adulta, sem as barreiras dos artifícios infantis a rodeá-la. Ele olhou para mim e pensei que, por detrás da fadiga, os seus olhos estavam cheios de bondade e de tristeza.

— Porque, se não o fizeres, talvez eu tenha de o fazer — respondeu. Depois voltou ao seu chá e vi que não falaria mais sobre esse assunto.

 

Naquela noite, no meu desconfortável quartinho de hotel contíguo ao seu, comecei a escrever tudo o que me contara. Ele dizia sempre que eu tinha uma excelente memória — boa demais, como às vezes a definia.

No dia seguinte, ao pequeno-almoço, o meu pai anunciou que gostaria de ficar sentado sem fazer nada nos próximos dois ou três dias. Era-me difícil imaginá-lo sentado sem fazer nada, mas ultimamente reparava nas suas olheiras escuras todas as manhãs e achei que seria boa idéia ele descansar. Não podia deixar de sentir que lhe acontecera alguma coisa, que estava a carregar o peso de uma nova e silenciosa ansiedade. Mas limitou-se a dizer-me que estava outra vez com vontade de ir para as praias do Adriático. Apanhamos um comboio expresso para o Sul que passou por estações cujos nomes estavam escritos em caracteres latinos e cirílicos, depois por outras com nomes apenas em cirílico. O meu pai ensinou-me o novo alfabeto e divirto-me a tentar pronunciar em voz alta as palavras nas placas das estações, que me pareciam palavras em código capazes de abrir portas secretas. Expliquei isto ao meu pai e ele achou graça, recostado confortavelmente na nossa carruagem, com um livro apoiado em cima da pasta. O seu olhar vagueava de vez em quando do trabalho para a janela, de onde avistávamos aldeias e campos.

A Primavera estava no seu apogeu, vi rapazes a guiar tratores com arados atrás, as vezes um cavalo a puxar uma carroça carregada, mulheres idosas curvadas nas suas hortas, a regar, a arrancar ervas daninhas. Seguíamos outra vez para o Sul e a terra amadurecia em ouro e verde enquanto a atravessávamos correndo, depois elevara-se em montanhas de rochas cinzentas, depois descera à nossa esquerda para um mar cintilante. O meu pai suspirou profundamente, mas de satisfação, não era o leve arfar de cansaço que deixava escapar cada vez com mais frequência naqueles dias.

Apeámo-nos do comboio numa cidade movimentada onde havia um mercado e o meu pai alugou um carro pequeno que nos levasse pelas difíceis curvas da estrada costeira. Ambos esticávamos o pescoço para vislumbrar a água de um dos lados estendia-se até um horizonte cheio da bruma do fim de tarde e, do outro, as ruínas esqueléticas de fortalezas otomanas que escalavam íngremes alturas em direção ao céu.

— Os Turcos dominaram estas terras por muito, muito tempo — comentou o meu pai. — As invasões envolviam todo o gênero de crueldades, mas governaram com bastante tolerância depois da conquista, como costuma acontecer com os impérios, e também com eficiência, durante centenas de anos. A terra aqui é árida, mas deu-lhes o controle do mar. Precisavam destes portos e baías.

A cidade onde estacionamos o carro ficava rente ao mar; o pequeno porto estava coalhado de barcos de pesca, batendo ao de leve uns nos outros na rebentação transparente. O meu pai queria ficar numa ilha próxima e contratou um deles com um aceno para o proprietário, um velhote com uma boina preta no alto da cabeça. O ar estava quente, mesmo àquela hora da tarde, e os borrifos de água que me molhavam as pontas dos dedos eram frescos mas não frios. Inclinei-me para a frente do barco, sentindo-me como uma figura de proa, vendo o mosteiro da ilha aumentar de tamanho à medida que nos aproximávamos.

— Cuidado — disse o meu pai, segurando-me pela camisola.

O barqueiro estava a atracar o barco no porto de uma ilha, uma velha aldeia com uma elegante igreja de pedra. Lançou um cabo em volta de um pilar do cais de madeira e ofereceu-me uma mão nodosa para me ajudar a desembarcar. O meu pai pagou-lhe com uma daquelas coloridas notas socialistas e ele fez o gesto de tocar na boina, a agradecer. Quando estava a subir para o barco, virou-se.

— Sua menina? — gritou em inglês. — Filha?

— Sim respondeu o meu pai, surpreendido.

— Eu te abençoo — disse o homem com simplicidade, e traçou uma cruz no ar perto de mim.

O meu pai arranjou-nos quartos que davam para o continente e depois jantamos num restaurante ao ar livre perto das docas. O crepúsculo instalava-se lentamente, e descobri as primeiras estrelas visíveis por cima do mar. Uma brisa, mais fresca que a da tarde, trouxe-me os aromas que eu já aprendera a amar: cipreste e lavanda, alecrim e tomilho.

— Por que é que os cheiros bons se tornam mais fortes quando escurece? — perguntei ao meu pai.

Era uma coisa que me intrigava genuinamente, mas servia também para adiar qualquer outra conversa. Eu precisava de tempo para recuperar num lugar onde houvesse luzes e pessoas a falar, precisava sobretudo de não olhar para aquele tremor de velho nas mãos do meu pai.

— Tornam? — perguntou, distraído, mas senti-me aliviada. Segurei a sua mão para que parasse de tremer e ele fechou-a, ainda distraído, sobre a minha. Era demasiado novo para ficar velho. No continente, as silhuetas das montanhas dançavam até quase dentro de água, projetando-se sobre as praias e quase sobre a nossa ilha. Quando a guerra civil explodiu naquelas montanhas do litoral vinte anos depois, fechei os olhos e recordei-as, espantada. Não podia imaginar que as suas encostas abrigassem pessoas em quantidade suficiente para travar uma guerra. Tinham-me parecido absolutamente primitivas quando as vi, desprovidas de habitações humanas, abrigo de ruínas vazias, guardando apenas o mosteiro sobre o mar.

 

— Depois de Helen Rossi ter batido com o livro Drácula que evidentemente pensava ser o nosso pomo da discórdia em cima da mesa, quase que esperava que toda a gente se levantasse e saísse a correr, ou que alguém gritasse "Aha!" e viesse matar-nos. Claro que nada disso aconteceu, e ela ficou a olhar para mim com a mesma expressão de amargo prazer. Seria possível que aquela mulher, interroguei-me devagar, com o seu legado de ressentimento e a sua vendetta acadêmica contra Rossi, o tivesse pessoalmente atacado e causado o seu desaparecimento?

-Miss Rossi — disse eu, com a maior calma possível, tirando o livro de cima da mesa e colocando-o virado para baixo ao lado da minha pasta, — a sua história é extraordinária, e tenho de confessar que vou levar algum tempo para a digerir completamente. Mas tenho de contar-lhe uma coisa muito importante. — Respirei fundo uma e outra vez. — Conheço muito bem o professor Rossi. Há dois anos que é meu orientador e já passamos horas juntos, a conversar e a trabalhar. Tenho a certeza de que... quando o conhecer, vai achá-lo uma pessoa muito melhor e mais bondosa do que imagina. — Ela fez um movimento como se quisesse dizer alguma coisa, mas eu continuei: — O fato é... o fato é que... presumo, pela maneira como falou dele, que desconhece que o professor Rossi... o seu pai... desapareceu.

Ela olhou-me de frente e não detectei qualquer vestígio de malícia no seu rosto, só confusão. Portanto, a notícia era uma surpresa para ela. A dor no meu coração abrandou.

— O que está a dizer? — perguntou.

— Estou a dizer que, há três noites, eu estava a conversar com ele como sempre e, no dia seguinte, ele tinha desaparecido. A polícia está à procura dele. Aparentemente, desapareceu do seu gabinete e talvez até tenha sido ferido lá, porque encontraram sangue na secretária. — Fiz um breve resumo dos acontecimentos daquela noite, começando com o fato de eu lhe ter levado o meu estranho livro, mas nada disse sobre a história que Rossi me contara.

Ela olhou para mim, o rosto contraído de perplexidade.

— Está a brincar comigo?

— Não, de maneira nenhuma. Não estou mesmo. Mal tenho conseguido dormir ou comer desde aquele dia.

— A polícia não tem idéia de onde ele está?

— Nenhuma, que eu saiba.

O olhar dela tornou-se subitamente duro.

— E você, tem? Hesitei.

— É possível. É uma longa história, que pelos vistos está a ficar cada vez mais longa.

— Espere aí — ela olhou fixamente para mim. — Ontem, quando estava a ler aquelas cartas na biblioteca, disse-me que estavam relacionadas com um problema que estava a acontecer com um professor. Era Rossi?

— Era.

— Que problema era esse? Ainda continua?

— Não quero envolvê-la em situações desagradáveis ou perigosas contando-lhe o pouco que sei.

— Prometeu responder às minhas perguntas depois de eu responder à sua. — Se tivesse olhos azuis em vez de escuros, o rosto dela seria idêntico ao de Rossi naquele momento. Imaginei que conseguia ver uma semelhança agora, um estranho molde dos nítidos traços ingleses de Rossi na forte e sombria estrutura romena, embora essa impressão pudesse ser causada pela afirmação dela, a de que era sua filha. Mas como poderia ser sua filha, se ele negara peremptoriamente ter estado na Romênia? Dissera, pelo menos, que não estivera no lago Snagov. Por outro lado, tinha deixado aquela brochura entre os seus papéis. Agora ela desferia-me um olhar feroz, uma coisa que Rossi nunca fizera.

— Agora é tarde para me dizer que não devo fazer perguntas. O que têm aquelas cartas a ver com o desaparecimento dele?

— Ainda não tenho certeza. Mas posso precisar da ajuda de um especialista. Não sei o que é que você descobriu no decorrer da sua pesquisa... — mais uma vez, fui alvo do seu olhar desconfiado, de pálpebras pesadas. — Estou convencido de que Rossi achava que corria perigo antes de desaparecer.

Ela parecia estar a tentar assimilar tudo aquilo, aquelas notícias sobre um pai que conhecera durante tanto tempo apenas como um símbolo de desafio.

— Corria perigo? Porquê?

Resolvi correr o risco. Rossi pedira-me para não contar aquela história louca aos meus colegas. Não contara, mas agora, inesperadamente, tinha diante de mim a possibilidade de contar com a ajuda de uma especialista. Aquela mulher provavelmente já sabia o que eu levaria meses para aprender; talvez até tivesse razão ao afirmar que sabia mais do que o próprio Rossi. Rossi realçava sempre a importância de procurar ajuda especializada pois bem, era o que eu ia fazer. Perdoai-me, rezava eu às forças do bem, se isto a puser em perigo. Além disso, a situação tinha uma lógica peculiar. Se ela era de fato filha dele, teria, mais do que qualquer outra pessoa, o direito de saber a sua história.

— O que significa Drácula para si?

— O que significa para mim? — ela franziu a testa. — Como conceito? A minha vingança, suponho. Uma eterna amargura.

— Sim, isso já eu sei. Mas Drácula significa mais alguma coisa para si?

— O que quer dizer?

Eu não sabia se ela estava a ser evasiva ou apenas sincera.

— Rossi — disse eu, ainda hesitante —, o seu pai estava... está... convencido de que Drácula ainda anda pelo mundo. — Ela ficou parada a olhar para mim. — O que acha disso? Parece-lhe uma loucura? — Esperava que ela começasse a rir-se, ou que se levantasse e saísse, como fizera na biblioteca.

— É engraçado — respondeu devagar. — Normalmente, diria que é uma lenda de camponeses, uma superstição baseada na memória de um tirano sanguinário. O mais impressionante, porém, é que a minha mãe está absolutamente convencida da mesma coisa.

— A sua mãe?

— Sim. Como lhe disse, ela nasceu camponesa. Tem direito a ter essas superstições, embora provavelmente acredite menos nelas do que os seus pais acreditavam. Mas um eminente acadêmico ocidental?

Era sem dúvida uma antropóloga, apesar do seu amargo objetivo. A maneira como a sua inteligência rápida se desligava das questões pessoais deixava-me espantado.

— Miss Rossi — disse eu de repente, tomando uma decisão. — Não tenho a menor dúvida de que gostaria de examinar tudo pessoalmente. Por que não lê as cartas de Rossi? Devo avisá-la, com toda a franqueza, de que todos os que manusearam os documentos dele sobre esse assunto sofreram um tipo qualquer de ameaça, tanto quanto sei. Mas se não tem medo, leia as cartas. Vai poupar-nos o tempo que eu levaria a convencê-la de que essa história é verdadeira, no que acredito firmemente.

— Vai poupar-nos tempo? — repetiu ela, desdenhosa. — E o que está a planejar fazer com o meu tempo?

Eu estava demasiado desesperado para me aborrecer.

— Vai ler essas cartas com um olhar mais treinado, neste caso, do que o meu.

Ela pareceu avaliar a proposta, com o queixo apoiado na mão.

— Está bem — disse por fim. — Você tocou num dos meus pontos fracos. É claro que não posso resistir à tentação de saber mais sobre Rossi, sobretudo se isso me fizer ultrapassá-lo na pesquisa dele. Mas se me parecer apenas louco, aviso-o que não conte muito com a minha simpatia. Seria um azar para mim se ele fosse internado como doente mental antes de eu ter a minha justa oportunidade de o torturar.

O sorriso dela não era propriamente um sorriso.

— Ótimo. — Não fiz caso da última observação nem da careta feia, forçando-me a não olhar para os seus dentes caninos, que eu via perfeitamente que não eram maiores do que o normal. Porém, antes de concluirmos a nossa negociação, eu tinha de lhe mentir num ponto. — Lamento dizer que não tenho as cartas comigo. Tive medo de andar com elas por aí hoje. — Na realidade, tivera medo de as deixar no apartamento, e estavam escondidas na minha pasta. Ora, com os diabos literalmente, talvez —, eu não ia exibi-las ali no meio da cafetaria. Não sabia quem poderia estar ali, a espiar-nos os amiguinhos do arrepiante bibliotecário, por exemplo? Havia outro motivo também, um teste que eu precisava de fazer, apesar de ser tão desagradável que me dava arrepios. Precisava de ter a certeza de que Helen Rossi, quem quer que ela fosse, não estava mancomunada com bem, não seria plausível que o inimigo do seu inimigo já fosse seu amigo? — Vou ter de ir a casa buscá-las. E tenho de pedir-lhe que as leia na minha presença; são frágeis e muito preciosas para mim.

— Está bem — disse ela, friamente. — Podemos encontrar-nos amanhã à tarde?

— É tarde demais. Gostava que as visse imediatamente. Desculpe, sei que parece estranho, mas vai compreender a minha urgência quando as ler.

Ela encolheu os ombros.

— Se não levar muito tempo.

— Não vai levar. Pode encontrar-se comigo na... na Igreja de Saint Mary?

Esse teste, pelo menos, podia fazê-lo com um cuidado digno de Rossi. Helen Rossi olhou para mim sem pestanejar, o seu rosto, duro e irônico, impassível.

— Fica na Elm Street, a dois quarteirões do...

Sei onde fica interrompeu ela, — segurando nas luvas e calçando-as com elegância. Voltou a pôr a écharpe azul, que cintilou no seu pescoço como lápis-lazúli.

— A que horas?

— Dê-me meia hora para ir buscar os papéis ao meu apartamento e encontrar-me consigo lá.

— Na igreja. Está bem. Vou parar na biblioteca para procurar um artigo de que preciso hoje. Por favor, seja pontual. Tenho muito que fazer.

Fiquei a vê-la sair, as suas costas esguias e fortes debaixo do casaco preto. Percebi tarde demais que ela tinha pago os nossos cafés.

 

A Igreja de Saint Mary, segundo o meu pai, era um pequeno e desgracioso exemplar de construção vitoriana que perdurava numa extremidade da parte antiga do campus. Eu tinha passado por ela centenas de vezes sem nunca entrar, mas achei que, naquele momento, uma igreja católica seria a companhia certa para todos aqueles horrores. Não era verdade que o catolicismo lidava diariamente com sangue e carne ressuscitada? Não era perito em superstições? Duvidava que as simples e hospitaleiras capelas protestantes que se espalhavam pela universidade fossem de alguma ajuda; não me pareciam qualificadas para lutar contra os mortos-vivos. Estava certo de que aquelas grandes e quadradas igrejas puritanas nos relvados da cidade universitária seriam impotentes diante de um vampiro europeu. Uma queima de bruxas era mais o estilo delas — algo que se limitasse à vizinhança. Claro que eu chegaria a Saint Mary muito antes da minha relutante convidada. Será que ela ia aparecer? Isso já era metade do teste.

Felizmente, Saint Mary estava de fato aberta, e o seu interior de lambris escuros cheirava a cera e a estofos empoeirados. Duas senhoras idosas de chapéus enfeitados com flores artificiais estavam a fazer um arranjo de flores verdadeiras no altar de madeira entalhada. Entrei bastante embaraçado e sentei-me num dos últimos bancos, de onde podia ver as portas sem ser imediatamente visto por quem entrava. Foi uma longa espera, mas a tranquilidade do lugar e a conversa sussurrada das duas senhoras acalmou-me um pouco. Comecei a sentir-me cansado pela primeira vez desde a noite anterior. Por fim, a porta principal abriu-se nas suas dobradiças com noventa anos de idade e Helen Rossi parou junto dela, hesitou por um momento, olhou para trás e entrou na igreja.

A luz do sol que entrava pelas janelas laterais derramou turquesa e malva na sua roupa enquanto permaneceu ali parada. Vi-a olhar para os lados da entrada atapetada. Não vendo ninguém, entrou finalmente. Observei atentamente se haveria alguma contração maléfica no seu rosto firme, algum enrugamento ou mudança de cor da pele — qualquer coisa. Não sabia o quê, mas uma reação desse gênero poderia revelar alguma espécie de alergia à antiga inimiga de Drácula, a igreja. Talvez aquela pequena relíquia vitoriana não fosse capaz de repelir as forças das trevas, pensei, cheio de dúvidas. Mas o lugar, aparentemente, exercia algum poder sobre Helen Rossi, porque, depois de um instante, atravessou as cores radiantes da janela em direção à pia de água benta. Envergonhado do meu voyeurismo, vi que ela descalçava uma das luvas e molhava a mão na pia e depois tocava na testa com os dedos. O gesto era suave; o seu rosto, visto do banco onde eu estava sentado, tinha um ar grave. Bem, eu estava a fazer aquilo por Rossi. E agora sabia com toda a certeza que Helen Rossi não era uma vrykovakas, por mais dura, às vezes até sinistra, que fosse a sua aparência.

Ela começou a descer a nave e recuou um pouco ao ver-me levantar.

— Trouxe as cartas? — sussurrou, os olhos acusadores fixos em mim. — Tenho de regressar ao meu departamento à uma da tarde. — E olhou em volta outra vez.

— O que se passa? — perguntei rapidamente, sentindo um formigueiro nos braços e um nervosismo instintivo. Parecia ter desenvolvido uma espécie de sexto sentido mórbido nos últimos dois dias. — Está com medo de alguma coisa?

— Não — respondeu ela, ainda a sussurrar. Apertava as luvas numa das mãos com tanta força que pareciam uma flor contra o seu fato escuro. — Estava só a pensar... entrou mais alguém agora?

— Não e olhei também em volta. A igreja estava agradavelmente vazia, a não ser pelas duas senhoras que se ocupavam do altar.

— Estava alguém a seguir-me — disse ela, ainda em voz baixa. O seu rosto, emoldurado pelo rolo de pesado cabelo escuro, tinha uma expressão bizarra, um misto de suspeita e bravata. Pela primeira vez, pensei como lhe devia ter custado aprender a ter aquela coragem. — Acho que ele estava a seguir-me. Um homem baixinho e magro, com roupas coçadas... um casaco de tweed, gravata verde.

— Tem a certeza? Onde o viu?

— Na sala dos ficheiros — respondeu ela, baixinho. — Fui confirmar a sua história sobre as fichas rasgadas. Não tinha a certeza se acreditava ou não. — Falava sem rodeios, sem se desculpar. — Vi-o lá e, quando dei por mim, estava a seguir-me, mas à distância, na Elm Street. Sabe quem é?

— Sei — disse eu, num tom lúgubre. — É um bibliotecário.

— Um bibliotecário? — Ela parecia estar à espera de mais informações, mas não tive coragem de lhe contar das feridas que vira no pescoço do homem. Era inacreditável, demasiado estranho; se lhe contasse, ia achar que eu era um doente mental.

— Ele parece desconfiar de mim. Por favor, fique longe desse homem --disse eu. — Mais tarde, conto-lhe mais sobre ele. Venha, sente-se e fique à vontade. Aqui estão as cartas.

Cheguei-me para o lado para lhe dar espaço num dos bancos forrados de veludo e abri a minha pasta. O seu rosto concentrou-se imediatamente; pegou no pacote com cuidado e abriu-o quase com a mesma reverência com que eu o fizera no dia anterior. Só podia interrogar-me sobre o tipo de sensação que teria ao ver em algumas das cartas a letra do alegado pai, que conhecera apenas como uma fonte de ressentimento. Espreitei por cima do ombro dela. Sim, era uma letra firme, suave, direita Pensei que isso talvez já o fizesse parecer levemente humano para a filha. Então, achei que devia parar de olhar e levantei-me.

— Vou dar uma volta por aí e dar-lhe todo o tempo de que precisar. Se houver alguma coisa que eu possa explicar ou ajudar...

Ela sacudiu a cabeça, distraída, os olhos fixos na primeira carta, e eu afastei-me. Sabia que iria manusear com cuidado os meus preciosos documentos, e que já estava a ler as frases de Rossi com grande rapidez. Durante a meia hora seguinte, examinei o altar de talha, as pinturas na capela, os pendentes rematados por borlas do púlpito, a figura de mármore da mãe exausta e do seu bebê irrequieto. Uma das pinturas em particular chamou-me a atenção: um horroroso Lázaro pre-rafaelita a cambalear para fora da tumba, apoiado nos braços das irmãs, os tornozelos de um cinza-esverdeado e os panos da mortalha sujos. O rosto, desbotado por um século de fumo e incenso, parecia fatigado e aborrecido, como se a gratidão fosse a última coisa que sentia ao ser retirado do seu descanso. O Cristo que surgia de pé, impaciente, na entrada da tumba, o braço erguido, tinha uma fisionomia marcada por pura maldade, ávida, ardente. Abri e fechei os olhos, virei as costas. A minha falta de sono estava claramente a envenenar-me os pensamentos

— Já acabei — disse Helen Rossi atrás de mim. Falava em voz baixa, o rosto pálido e cansado. — Você tinha razão — disse. — Não há nenhuma referência ao caso dele com a minha mãe, nem a qualquer viagem à Romênia. Você estava a dizer a verdade sobre isso. Não consigo compreender. Deve ter acontecido no mesmo período, com certeza durante a mesma viagem ao continente, porque eu nasci nove meses depois.

— Sinto muito. — O seu rosto sombrio não pedia compaixão, mas eu sentia-a. — Gostaria de lhe poder dar mais pistas, mas está a ver como é. Também não sei explicar.

— Pelo menos, acreditamos um no outro, não é? — E olhou-me de frente. Fiquei surpreendido ao descobrir que ainda era capaz de sentir prazer no meio de tanta tristeza e apreensão.

— Acha?

— Acho. Não sei se existe algum Drácula, ou seja o que for, mas acredito em si quando diz que Rossi o meu pai sentiu que estava em perigo. Sentiu-o muito claramente há anos, portanto não seria natural que os medos voltassem ao ver o seu livrinho, uma incomoda coincidência que lhe lembrou o passado?

— E como explica o desaparecimento dele?

Ela abanou a cabeça.

— Pode ter sido um esgotamento nervoso, evidentemente. Mas agora compreendo o que você quis dizer. As cartas dele têm a marca — e Helen hesitou — de uma mente lógica e destemida, tal como os seus outros trabalhos. Além disso, pode deduzir-se muita coisa dos livros de um historiador. E eu conheço os dele muito bem. São o resultado de um raciocínio equilibrado, lúcido.

Voltamos para onde tinha deixado as cartas e a minha pasta; não podia deixá-las sozinhas mesmo por alguns minutos, ficava nervoso. Tinha certeza de que Helen voltara a guardar tudo cuidadosamente no envelope e pela mesma ordem. Sentámo-nos juntos no banco da igreja, quase com companheirismo.

— Vamos supor que possa haver alguma força sobrenatural envolvida no desaparecimento dele — arrisquei. — Nem acredito que estou a dizer isto, mas é só para considerar essa probabilidade. O que sugere que se faça agora?

— Bem — disse ela, devagar, o perfil pronunciado, o rosto pensativo, próximo do meu na penumbra da igreja, — não vejo como isto o pode ajudar numa investigação moderna mas, se for para obedecer aos ditames das lendas sobre Drácula, temos de admitir que Rossi foi atacado e levado daqui por um vampiro, que o matou ou, o que é mais provável, o contaminou com a maldição dos mortos-vivos. Três ataques que misturem o sangue de alguém com o de Drácula ou de um dos seus discípulos transformam a pessoa atacada num vampiro para todo o sempre, como sabe. Se já tiver sido mordido uma vez, vai ter de o encontrar o mais depressa possível.

— Mas por que razão Drácula apareceria aqui, neste lugar? E porquê raptar Rossi? Por que não atacá-lo e contaminá-lo apenas, sem que a mudança fosse perceptível?

— Não sei — disse ela, abanando a cabeça. — É um comportamento invulgar, segundo a tradição. Rossi deve ter — quero dizer, se realmente se trata de uma ocorrência sobrenatural — deve ter um interesse especial para Vlad Drácula. Talvez Drácula o veja de certo modo como uma ameaça.

— E acha que o fato de eu ter encontrado este livrinho e tê-lo mostrado a Rossi tem alguma coisa a ver com o desaparecimento?

— A lógica diz-me que a idéia é absurda. Mas... — Dobrou meticulosamente as luvas no colo, sobre a saia preta. — Pergunto a mim própria se não há uma outra fonte de informação que estamos a negligenciar.

A sua boca curvou-se para baixo. Silenciosamente, agradeci-lhe por aquele "nós".

— E qual é?

Ela suspirou e desdobrou as luvas.

— A minha mãe.

— A sua mãe? Mas o que pode ela saber sobre...

Mal eu começara a minha série de perguntas quando uma alteração na claridade e o sopro de uma corrente de ar me fizeram virar para trás. De onde estávamos sentados, podíamos ver as portas da igreja sem sermos vistos de lá o ponto que eu escolhera para observar a entrada de Helen. Agora, a mão de alguém introduzia-se entre as portas, depois um rosto pontiagudo, ossudo. O estranho bibliotecário estava a espreitar para dentro da igreja.

Não posso descrever-te o que senti dentro daquela igreja sossegada quando o rosto do bibliotecário surgiu entre as portas. Veio-me à cabeça a súbita imagem de um animal de focinho comprido farejando, furtivo, talvez uma doninha ou uma ratazana. Ao meu lado, Helen estava paralisada, a olhar para a porta. A qualquer momento, sentiria o nosso cheiro. Mas tínhamos um ou dois segundos de vantagem, calculei, e, segurando silenciosamente a pasta e a pilha de papéis com uma das mãos, agarrei Helen com a outra — não tinha tempo para pedir licença e arrastei-a da extremidade do banco para a nave lateral. Havia ali uma porta aberta que dava para uma pequena divisão, para onde nos esgueiramos. Fechei a porta sem fazer ruído. Não havia maneira de a trancar por dentro, notei, alarmado, embora tivesse um grande buraco de fechadura contornado a ferro.

Estava mais escuro dentro da pequena sala do que na igreja. Havia uma pia batismal no centro, um ou dois bancos estofados ao longo das paredes. Helen e eu entreolhamo-nos em silêncio. Não conseguia ver a expressão do rosto dela, exceto que parecia alerta, desafiadora e, ao mesmo tempo, receosa. Sem palavras nem gestos, deslocamo-nos cautelosamente para trás da pia batismal e Helen apoiou uma das mãos nela para se equilibrar. A pia estava seca por dentro; pensei comigo mesmo se a encheriam apenas para os batizados. Passado mais um minuto, não consegui ficar parado; entreguei os papéis a Helen e voltei para junto da fechadura. Olhando pelo buraco, vi o bibliotecário passar por uma das colunas. Parecia realmente uma doninha, o rosto pontiagudo inclinado para a frente, a olhar em volta para todos os bancos da igreja. Virou-se na minha direção e recuei um pouco. Pareceu examinar a porta do nosso esconderijo, avançou um ou dois passos na direção dela e afastou-se novamente. De repente, uma camisola cor de lavanda surgiu no meu campo de visão. Era uma das senhoras do altar. Ouvi a voz dela, abafada.

— Posso ajudá-lo? — dizia, amável.

— Estou à procura de uma pessoa. — A voz do bibliotecário era aguda, sibilante, demasiado alta para um templo. — Eu... viu entrar uma rapariga com um fato preto? E cabelo escuro?

— Vi, sim. — A senhora amável olhou em volta por sua vez. — Estava agora mesmo aí uma pessoa que corresponde a essa descrição. Estava com um rapaz, os dois sentados nos bancos do fundo. Mas agora já não está.

A doninha virou-se para um lado e para o outro.

— Não poderia estar escondida numa dessas salas? — A sutileza não era o seu forte, via-se claramente.

— Escondida?

A senhora de lavanda virou-se também para o lado em que estávamos.

— Tenho a certeza de que não está ninguém escondido na nossa igreja. Quer que eu chame o padre? Precisa de ajuda?

O bibliotecário recuou.

— Oh, não, não — disse ele. Devo ter-me enganado.

— Gostaria de levar alguns dos nossos folhetos para ler?

— Oh, não. — Voltou para a nave. Não, obrigado.

Vi-o olhar em volta outra vez e depois saiu do meu ângulo de visão. Ouviu-se um pesado clique, um baque da porta da frente a fechar-se atrás dele. Fiz um sinal com a cabeça para Helen, que deu um suspiro silencioso de alívio, mas esperamos mais uns minutos, olhando de vez em quando um para o outro por cima da pia. Helen foi a primeira a baixar a cabeça, o semblante carregado. Eu sabia que ela devia estar a pensar como se metera naquela situação e o que realmente significava aquilo tudo. O alto do cabelo dela brilhava, cor de ébano — estava sem chapéu outra vez, naquele dia.

— Ele está à sua procura — disse eu, em voz baixa.

— Talvez esteja à sua procura — e apontou para o envelope que eu segurava.

— Tenho uma idéia extravagante — disse eu, lentamente. — Talvez ele saiba onde Rossi está.

Helen franziu o sobrolho novamente.

— De qualquer maneira, nada disto faz muito sentido; portanto, por que não? — murmurou ela.

— Não a posso deixar voltar para a biblioteca. Ou para o seu quarto. Ele vai procurá-la em ambos os lugares.

— Deixar? — repetiu ela, ameaçadora.

— Miss Rossi, por favor. Quer ser a próxima a desaparecer?

Ela ficou calada.

— E como está a pensar proteger-me?

A voz tinha um tom de troça e pensei na sua infância fora do comum, na singular fuga para a Hungria ainda no ventre da mãe, na astúcia política que lhe permitira viajar para o outro lado do mundo para levar a cabo uma vingança acadêmica. Se a história dela fosse verdadeira, evidentemente.

— Tenho uma idéia — disse eu, devagar. — Sei que vai parecer... pouco correto, mas sentir-me-ia melhor se concordasse. Podemos levar alguns... talismãs... conosco, aqui da igreja... — Ela levantou as sobrancelhas. — Vamos procurar qualquer coisa, velas, crucifixos, ou o seja o que for, e comprar alguns alhos a caminho para casa quero dizer, do meu apartamento... — As sobrancelhas subiram ainda mais. Quer dizer, se consentir em acompanhar-me... e poderia... talvez eu tenha de partir em viagem amanhã, mas você poderia...

— Dormir no sofá? — Calçara as luvas novamente e agora estava de braços cruzados. Senti-me corar.

— Não posso deixá-la voltar para o seu quarto sabendo que pode ser perseguida... ou para a biblioteca, é claro. E ainda temos muito que conversar. Gostaria de saber o que acha que a sua mãe...

— Podemos conversar sobre isso aqui, agora mesmo — disse ela, com frieza, pareceu-me. — Quanto ao bibliotecário, duvido que consiga seguir-me até ao meu quarto, a não ser que... — Havia uma covinha num lado da sua face severa, ou seria sarcasmo? — ... a não ser que se consiga transformar em morcego. A nossa governanta não permite a entrada a vampiros nos quartos. E muito menos a homens. Além disso, espero que ele me siga de novo até à biblioteca.

— Espera? — eu estava pasmado.

— Sabia que ele não iria falar conosco aqui dentro, não dentro de uma igreja. Está provavelmente à nossa espera lá fora. Tenho uma questão a resolver com ele — falava outra vez aquele inglês extraordinário, — porque ele está a tentar interferir com o meu direito de utilização da biblioteca e porque você acredita que ele tem informações para lhe dar sobre o meu... sobre o professor Rossi. Por que razão não deixamos que ele me siga? Podemos ir falando sobre a minha mãe pelo caminho.

Devo ter parecido mais do que duvidoso, porque ela começou a rir-se, os dentes brancos e uniformes.

— Ele não vai atacá-lo em plena luz do dia, Paul.

 

Não havia sinal do bibliotecário fora da igreja. Caminhamos na direção da biblioteca o meu coração batia com força, embora Helen parecesse calma — com um par de crucifixos do vestíbulo da igreja nos bolsos. "Leve um, deixe 25 cêntimos". Para minha decepção, Helen não falou sobre a mãe. Eu tinha a sensação de que ela estava apenas a cooperar temporariamente com a minha loucura, que iria desaparecer assim que chegássemos à biblioteca, mas ela surpreendeu-me mais uma vez.

— Ele voltou para lá — disse ela baixinho, — uns dois quarteirões depois da igreja. Vi-o quando dobrou a esquina. Não olhe para trás. — Abafei uma exclamação e continuamos a andar. — Vou para os andares de cima da biblioteca — disse ela. — Que lhe parece o sétimo andar? É o primeiro piso realmente sossegado. Não suba comigo. É mais provável ele seguir-me se eu estiver sozinha, do que segui-lo a si... Você é mais forte.

— Não vai fazer nada disso — murmurei. — Obter informações sobre Rossi é um problema meu.

— Obter informações sobre Rossi é precisamente o meu problema — replicou ela, também em voz baixa. Não pense que lhe estou a fazer um favor, senhor Mercador Holandês.

Lancei-lhe um olhar de soslaio. Estava a habituar-me ao seu humor ácido, percebi, e alguma coisa na curva da sua face, junto àquele longo nariz retilíneo, dava-lhe um ar quase brincalhão, divertido.

— Está bem. Mas vou estar mesmo atrás dele e, se você tiver problemas, chego lá acima numa fração de segundo para a ajudar.

Junto às portas da biblioteca, separamo-nos com uma exibição de cordialidade.

— Boa sorte para a sua pesquisa, Senhor Holandês — disse Helen, apertando a minha mão com a sua mão enluvada.

— Igualmente para a sua, Miss...

— Psiu — disse ela, e afastou-se.

Refugiei-me na zona do ficheiro e puxei uma gaveta ao acaso para parecer ocupado: "Ben Hur a Beneditino." Mesmo com a cabeça curvada sobre a gaveta, conseguia ver o balcão de circulação; Helen estava a pedir um cartão de acesso às estantes, o seu vulto alto e esguio no casaco preto, as costas resolutamente voltadas para a longa nave da biblioteca. Então, vi o bibliotecário a andar sorrateiro pelo lado oposto da nave, mantendo-se próximo da outra metade das filas de ficheiros. Chegou à letra H no momento em que Helen seguia para a porta que dava acesso às estantes. Eu conhecia muito bem aquela porta, passava por ela quase diariamente, mas nunca se escancarou com tanto significado para mim como naquele momento. Permanecia aberta durante o dia, e um guarda nas proximidades verificava os talões de autorização. Num segundo, a figura escura de Helen desapareceu pelas escadas de ferro. O bibliotecário demorou-se um pouco na letra G, depois remexeu no bolso do casaco à procura de alguma coisa devia ter alguma forma especial de identificação da biblioteca —, exibiu um cartão e entrou.

Corri para o balcão de circulação.

— Gostaria de usar as estantes, por favor — disse eu para a mulher que me atendeu. Nunca a tinha visto antes era muito lenta, e tive a impressão de que as suas pequenas mãos roliças levaram uma eternidade a manusear os papéis amarelos antes de me dar um. Finalmente, passei pela porta e coloquei o pé com cuidado no degrau da escada, olhando para cima Em cada andar, podia ver-se o nível seguinte através dos degraus de metal, mas não mais do que isso. Nem sombra do bibliotecário acima de mim, nenhum som.

Fui para o segundo andar, passando por Economia e Sociologia. O terceiro também estava deserto, à exceção de dois alunos nos seus compartimentos de estudo. No quarto piso, comecei a ficar realmente preocupado. Estava demasiado silencioso. Nunca deveria ter deixado Helen usar-se a si mesma como isca naquela missão. Lembrei-me de repente da história de Rossi sobre o seu amigo Hedges e acelerei o passo. O quinto piso Arqueologia e Antropologia estava cheio de alunos que participavam de uma espécie qualquer de grupo de estudos, comparando apontamentos em voz baixa. A presença deles aliviou-me um pouco, nada de horrível poderia acontecer a apenas dois pisos acima. No sexto andar, ouvi passos acima da minha cabeça, e, no sétimo História —, fiz uma pausa, não sabendo como entrar sem revelar a minha presença.

Pelo menos, conhecia bem aquele andar; era o meu reino e era capaz de dizer qual era a localização de cada compartimento de estudos, de cada cadeira, de cada fila de livros de tamanhos acima do normal. A princípio, o andar de História pareceu-me tão silencioso como os outros mas, depois de um segundo, ouvi uma conversa abafada vinda de um canto das estantes. Esgueirei-me nessa direção, passei por Assíria e Babilônia, procurando que os meus passos fizessem o menor ruído possível. Então, ouvi a voz de Helen. Tinha a certeza de que era a voz dela, e em seguida ouvi uma voz áspera e desagradável que devia ser a do bibliotecário. O meu coração deu um salto. Estavam na seção medieval que eu agora conhecia bem e cheguei suficientemente perto para ouvir o que diziam, embora não pudesse arriscar-me a contornar a esquina da estante seguinte para espreitar. Pareciam estar do outro lado das prateleiras à minha direita.

— Isso é correto? — perguntava Helen em tom hostil. A voz áspera fez-se ouvir outra vez.

— Você não tem o direito de mexer nesses livros, minha menina.

— Nesses livros? Que são propriedade da Universidade? Quem é o senhor para apreender livros da biblioteca da Universidade?

A voz do bibliotecário soava zangada e persuasiva ao mesmo tempo.

A menina não precisa perder tempo com esses livros. Não são livros próprios para uma rapariga ler. Basta devolvê-los hoje e não se fala mais nisso.

— Por que é que os quer tanto? — A voz de Helen soava firme e clara. — Talvez tenha alguma coisa a ver com o professor Rossi

Agachado atrás do Feudalismo inglês, não sabia se havia de me encolher mais ou dar vivas em voz alta. O que quer que Helen pensasse a respeito de tudo aquilo, estava no mínimo intrigada. Aparentemente, não me considerava doido. E estava disposta a ajudar-me, mesmo que fosse apenas para reunir informações sobre Rossi para servir os seus objetivos pessoais.

— Professor... quem? Não sei o que quer dizer — rebateu o bibliotecário.

— Sabe onde ele está? — perguntou Helen, incisiva.

— Menina, não tenho a menor ideia do que está a falar. Mas preciso que devolva aqueles livros, para os quais a biblioteca tem outros planos, ou isto pode ter sérias consequências na sua carreira acadêmica.

— A minha carreira? — troçou Helen. — Não posso de maneira nenhuma devolver os livros agora. Tenho um trabalho importante para fazer com eles.

— Nesse caso, vou ter de obrigá-la a devolvê-los. Onde estão?

Ouvi um passo, como se Helen se tivesse afastado. Eu estava prestes a contornar a estante e a bater com um fólio sobre abadias cistercienses no detestável fuinha quando Helen jogou uma nova cartada.

— Ouça — disse ela, — se me disser alguma coisa sobre o professor Rossi, talvez eu lhe possa contar sobre um... — fez uma pausa, — um pequeno mapa que vi recentemente.

Caiu-me a alma aos pés. O mapa? O que é que Helen estava a pensar? O que a levava a revelar uma informação tão vital? O mapa podia ser o nosso objeto mais perigoso, se a análise que Rossi fizera do seu significado fosse verdadeira, e também o mais importante. O meu objeto mais perigoso, corrigi-me. Estaria Helen a querer trair-me? Vislumbrei tudo num relance: ela queria usar o mapa para chegar a Rossi antes de mim, completar a pesquisa, usar-me para saber tudo o que ele descobrira e me passara, publicar os resultados, desmascará-lo e não tive tempo para mais do que uma visão fugidia, porque no momento seguinte o bibliotecário deu um rugido:

— O mapa! Você tem o mapa de Rossi Eu mato-a para conseguir esse mapa! — Helen arquejou, depois ouvi um grito e um baque surdo. — Largue isso — berrou o bibliotecário.

Os meus pés só tocaram o chão quando me vi em cima dele. A cabeça pequena do homem bateu no chão com uma pancada que sacudiu também o meu cérebro. Helen ajoelhou-se ao meu lado. Estava muito pálida, mas parecia calma. Segurava o seu crucifixo de vinte e cinco cêntimos comprado na igreja, mantendo-o apontado para ele, que esperneava e arfava sob o meu peso. O bibliotecário era fraco e, por alguns minutos, consegui mais ou menos imobilizá-lo felizmente para mim, pois passara os últimos três anos a folhear frágeis documentos holandeses antigos, e não a levantar pesos. Ele bufava e debatia-se nas minhas mãos e imobilizei-lhe as pernas com o meu joelho.

— Rossi! — gritava ele, esganiçado. — Não é justo! Eu devia ter ido no lugar dele! Era a minha vez! Dê-me o mapa! Esperei tanto tempo... Fiz vinte anos de pesquisa para isto!

Começou a soluçar, um som deplorável, feio. A sua cabeça movia-se para a frente e para trás e vi a fenda dupla junto ao colarinho da camisa, dois furos cobertos por uma crosta. Mantive as mãos o mais longe possível deles.

— Onde está Rossi? — perguntei, com um grunhido. — Diga-nos agora mesmo onde é que ele está? Você feriu-o? — Helen aproximou mais o pequeno crucifixo e ele virou a cara, contorcendo-se sob os meus joelhos. Espantava-me, mesmo naquele momento, ver o efeito daquele símbolo na criatura. Aquilo seria Hollywood, superstição ou história? Perguntei-me como fora capaz de entrar na igreja — mas recordei-me que ele tinha permanecido longe do altar e das capelas, e recuara mesmo diante da senhora que cuidava do altar.

— Não lhe toquei! Não sei nada sobre isso!

— Ah, sabe, sim — Helen curvou-se mais. Tinha uma expressão feroz no rosto, mas estava muito pálida, e notei que apertava o pescoço com a outra mão.

— Helen!

Devo ter dito com a respiração ofegante, mas ela fez um gesto para eu não interferir e fulminou o bibliotecário com os olhos.

— Onde está Rossi? O que foi que esperou durante anos? — Ele encolheu-se. — Vou pôr isto na sua cara agora — disse Helen, baixando o crucifixo.

— Não! — gritou ele. — Eu falo. Rossi não queria ir. Eu queria. Não era justo. Ele levou Rossi em vez de me levar a mim. Levou Rossi à força. Eu teria ido de bom grado para o servir, para o ajudar, para catalogar... de repente, calou-se e apertou os lábios.

— O quê? — e bati ao de leve com a cabeça dele no chão, para o convencer.

— Quem levou Rossi? Têm-no preso nalgum sítio?

Helen segurou a cruz bem por cima do nariz dele, que começou a soluçar outra vez.

— Meu senhor choramingou.

Helen, ao meu lado, respirou fundo e sentou-se sobre os calcanhares, como se aquelas palavras a fizessem recuar involuntariamente.

— Quem é o seu senhor? — e enterrei o joelho na perna dele. — Para onde é que ele levou Rossi?

Os seus olhos inflamaram-se. Era uma visão horrível a contorção, as vulgares feições humanas normais ininteligíveis, impregnadas de terrível significado.

— Para onde eu deveria ter ido! Para a sepultura!

Talvez eu tenha relaxado a pressão das minhas mãos, ou talvez a confissão o tornasse subitamente forte — o mais provável é que se tenha apavorado com o que poderia acontecer-lhe, refleti mais tarde. Seja como for, libertou subitamente uma das mãos, virou o corpo como um escorpião e torceu-me o pulso que lhe prendia o ombro ao chão. A dor foi insuportável, aguda, e contraí bruscamente o braço, furioso. O homenzinho escapuliu-se antes que eu conseguisse perceber o que acontecera, e disparei atrás dele pelas escadas abaixo, passando num tropel pelo seminário dos alunos de graduação e pelos outros serenos reinos do conhecimento nos andares de baixo. Mas tinha os movimentos tolhidos pela minha pasta, que ainda segurava numa das mãos. Mesmo naquele primeiro momento da perseguição, apercebi-me num relance, não tinha querido deixá-la. Ou atirá-la a Helen. Ela tinha-lhe contado do mapa. Era uma traidora. E ele tinha-a mordido, ainda que apenas por um instante. Estaria agora também contaminada?

Pela primeira e última vez, atravessei a silenciosa nave da biblioteca a correr, mal me apercebendo dos rostos assustados que se viravam para mim enquanto eu passava. Não havia sinal do bibliotecário. Podia ter-se escapado para algum lugar nos bastidores, percebi, desesperado, para alguma masmorra de catalogação ou armário de vassouras só para bibliotecários. Empurrei a pesada porta da frente, uma abertura cortada nas grandes portas duplas de estilo gótico que davam para o vestíbulo e que nunca eram abertas. E imobilizei-me nos degraus do lado de fora. A luz da tarde cegou-me, como se também eu tivesse vivido num submundo, uma caverna de morcegos e ratos. Na rua defronte da biblioteca, vários carros tinham parado. O tráfego fora interrompido, e uma rapariga, fardada de criada de mesa, chorava na calçada, apontando para alguma coisa. Alguém gritava e dois homens estavam ajoelhados junto ao pneu da frente de um dos carros parados. As pernas finas do bibliotecário saíam de debaixo do carro, torcidas num ângulo impossível. Um dos braços estava dobrado sobre a cabeça. Jazia deitado de bruços no pavimento, sobre uma pequena poça de sangue, dormindo para sempre.

 

O meu pai estava relutante em levar-me a Oxford. Ficaria lá durante seis dias, disse, tempo demais para eu perder as aulas outra vez. Foi uma surpresa saber que estava disposto a deixar-me em casa; não fazia isso desde que eu encontrara o livrinho do dragão. Estaria a planejar deixar-me com precauções especiais? Aleguei que a nossa recente viagem ao longo do litoral iugoslavo demorara quase duas semanas, sem qualquer prejuízo nos meus resultados escolares. Ele argumentou que a educação deve vir sempre em primeiro lugar. Eu retorqui que ele afirmara sempre que as viagens são a melhor forma de educação. Mostrei-lhe o meu último boletim escolar, abrilhantado por uma porção de notas altas, e um trabalho de História no qual o meu pomposo professor escrevera: "Demonstra uma extraordinária percepção da natureza da pesquisa histórica, especialmente para alguém com a sua idade", um comentário que eu decorara e costumava repetir a mim mesma antes de adormecer.

O meu pai ficou visivelmente abalado, pois pousou o garfo e a faca de uma maneira que eu sabia significar uma pausa no nosso jantar na velha sala de jantar holandesa, e não o fim definitivo do primeiro prato. Disse que, desta vez, o seu trabalho não lhe permitiria mostrar-me a cidade como devia e não queria estragar as minhas primeiras impressões de Oxford mantendo-me confinada num sítio qualquer. Respondi que preferia ficar confinada em Oxford do que em casa com Mrs. Clay e baixamos a voz, embora ela estivesse de folga nessa noite. Além disso, continuei, eu já era suficientemente crescida para andar sozinha. Ele insistiu que não sabia se seria boa idéia eu ir porque as conversações seriam um tanto... tensas. Talvez não fosse bem assim — mas ele não podia continuar e eu sabia porquê. Tal como eu não podia confessar o meu verdadeiro motivo para ir a Oxford, ele não podia confessar o seu para não querer que eu fosse. Eu não podia dizer-lhe que não aguentaria deixá-lo longe da vista agora, com as suas olheiras escuras e a cabeça e os ombros curvados de cansaço. E ele não podia admitir que, em Oxford, talvez não estivesse em segurança e, portanto, eu também não estaria segura na sua companhia. Ficou calado durante um ou dois minutos, depois perguntou-me amavelmente o que havia para a sobremesa, e eu fui buscar o indefectível pudim de arroz com passas de Mrs Clay, que ela deixava sempre pronto como compensação por ir ao cinema no British Centre sem nós.

Eu imaginara Oxford calma e verde, uma espécie de catedral ao ar livre onde os professores, vestidos com trajes medievais, passeassem, garbosos, cada um acompanhado por um único aluno, ensinando História, Literatura e obscuras questões de Teologia. A realidade era um choque: motocicletas a buzinar, carros pequenos a grande velocidade de um lado para o outro, quase atropelando alunos que atravessavam as ruas, multidões de turistas a fotografar uma cruz no passeio onde uns bispos tinham sido queimados na fogueira quatrocentos anos antes, quando não existiam passeios. Tanto os professores como os alunos usavam roupas modernas e decepcionantes, camisolas de lã na sua maioria, com calças de flanela escura para os mestres e jeans para os discípulos. Pensei com tristeza que, no tempo de Rossi, uns bons quarenta anos antes do dia em que descemos do nosso autocarro vermelho e amarelo na esquina de Broad Street, Oxford devia vestir-se com um pouco mais de dignidade.

Então, pus os olhos na primeira faculdade que vi em Oxford, erguendo-se acima dos seus muros à luz da manhã, e, perto dela, as formas perfeitas do Edifício Radcliffe, que de início pensei tratar-se de um pequeno observatório. Por trás, erguiam-se as agulhas das torres de uma imensa igreja castanha e, ao longo da rua, estendia-se um muro tão velho que até os líquenes que o cobriam pareciam antigos. Não podia imaginar que impressão teríamos causado nas pessoas que andavam por aquelas ruas quando aquele muro ainda era novo eu, com o meu vestido curto vermelho, soquetes de renda e mochila, o meu pai, com o seu casaco azul-escuro e calças cinzentas, camisola preta de gola alta e chapéu de tweed, cada um de nós a arrastar uma pequena mala de viagem.

— Cá estamos — declarou o meu pai, e, para minha alegria, paramos diante de um portão de ferro forjado no muro coberto de líquenes. Estava fechado, e esperamos até um aluno vir abri-lo.

Em Oxford, o meu pai ia intervir numa conferência sobre as relações políticas entre os Estados Unidos e a Europa Oriental, então em plena fase de degelo. Como era a universidade que promovia a conferência, explicou-me ele, ficaríamos hospedados em quartos particulares na residência do reitor de um dos colégios. Esses reitores dos colégios, contou-me, eram ditadores benevolentes que cuidavam dos alunos que viviam em cada faculdade. Enquanto seguíamos pela entrada escura e baixa para a claridade fulgurante do pátio quadrangular rodeado pelos edifícios da faculdade, compreendi pela primeira vez que em breve também eu iria para a universidade, e cruzei os dedos sobre a alça da minha mochila, murmurando o desejo de que nessa altura encontrasse um porto seguro como aquele.

O chão à nossa volta estava coberto de lajes de ardósia suavemente desgastada, interrompidas aqui e ali por pesadas árvores de sombra — árvores sérias, melancólicas, com um ou outro banco debaixo delas. Um retângulo de um relvado perfeito e um estreito lago estendiam-se junto ao edifício principal da faculdade. Esta era uma das mais antigas de Oxford, fundada por Eduardo III, o Confessor, no século treze, e os seus acrescentamentos mais recentes realizados pelos arquitetos isabelinos. Até aquele relvado meticulosamente aparado parecia venerável; nunca vi ninguém pisá-lo.

Contornamos a relva e o lago e dirigimo-nos para o gabinete do porteiro, logo à entrada, e dali para uma sequência de quartos adjacentes à casa do reitor. Estes quartos deviam ter feito parte do projeto inicial da faculdade, embora fosse difícil afirmar para que fim teriam sido usados originalmente; tinham tetos muito baixos, com painéis de madeira escura e janelas estreitas de caixilhos de chumbo. O quarto do meu pai tinha cortinados azuis. O meu, para minha infinita satisfação, tinha uma cama alta com dossel de chintz estampado.

Desfizemos um pouco da bagagem, lavamos os nossos rostos de viajantes num lavatório amarelo-claro na nossa casa de banho comum e saímos ao encontro do reitor James, que nos esperava no seu gabinete do lado oposto do edifício. Revelou-se um homem cordial, de palavras afáveis, cabelo grisalho e uma cicatriz em curva que lhe descia por uma das faces. Gostei do seu caloroso aperto de mão e da expressão dos seus grandes olhos castanhos protuberantes. Não estranhou que eu acompanhasse o meu pai à conferência e sugeriu mesmo que eu fizesse uma visita à universidade com o seu assistente nessa tarde. Acrescentou que o seu assistente era um rapaz muito amável e culto, um cavalheiro. O meu pai concordou; ele próprio estaria ocupado com reuniões, portanto, por que é que eu não haveria de aproveitar para ver os tesouros locais enquanto ali estava?

Apresentei-me, animada, às três horas, a minha boina nova numa mão e um caderno na outra, pois o meu pai sugerira que eu tomasse notas para redigir mais tarde um trabalho escolar sobre o passeio. O meu guia era um estudante grandalhão de cabelos claros, que o reitor James me apresentou como Stephen Barley. Gostei das suas belas mãos de veias azuladas e da sua camisola grossa de pescador jumpah, como lhe chamou, com o seu sotaque característico, quando a elogiei em voz alta. Caminhar pelo pátio ao lado dele deu-me a sensação de ser aceite temporariamente naquela comunidade de elite. Também me causou o primeiro e leve frêmito de pertença sexual, a impressão fugidia de que, se segurasse a mão dele enquanto andávamos, uma porta se abriria num ponto qualquer do longo muro da realidade tal como eu a conhecia, para nunca mais se fechar. Já expliquei que levava uma vida muito protegida tão protegida, reconheço hoje, que aos dezoito anos ainda não me apercebera de como os seus limites eram restritos. A centelha de rebelião que me acometeu ao andar ao lado de um bonito estudante universitário veio até mim como um acorde de música de uma cultura estrangeira. Mas agarrei-me com firmeza ao meu caderno e à minha infância e perguntei-lhe por que razão havia mais pedra do que relva no pátio. Ele sorriu-me.

— Bem, não sei. Nunca ninguém fez essa pergunta.

Levou-me ao refeitório, uma sala enorme de teto alto e vigas de madeira em estilo Tudor, cheio de mesas de madeira, e mostrou-me o sítio, num banco, onde um jovem conde de Rochester gravara uma palavra grosseira quando ali jantava. Ao longo das paredes, havia uma sucessão de janelas de caixilhos de chumbo, cada uma ornamentada no centro com uma antiga cena representando uma boa ação. Thomas Becket ajoelhado junto de um leito de morte, um padre com uma batina comprida a servir sopa a uma fila de pobres agachados, um médico medieval a pôr uma ligadura na perna de uma pessoa. Por cima do banco Rochester, havia uma cena que não consegui perceber, um homem com uma cruz pendurada ao pescoço e uma estaca pontiaguda na mão, curvado sobre algo que parecia um amontoado de farrapos negros.

— Ah, isso aí é de fato uma curiosidade — disse o meu jovial amigo. — Temos muito orgulho nisso. Sabe, esse homem é um professor dos primeiros anos da universidade, e está a cravar uma estaca de prata no coração de um vampiro.

Olhei fixamente para ele, sem fala por uns instantes.

— Existiam vampiros em Oxford naquela época? — perguntei por fim.

— Não sei dizer-lhe — admitiu ele, sorridente. — Mas há uma tradição de que os primeiros acadêmicos da universidade ajudavam a proteger dos vampiros os campos em redor. Chegaram a recolher uma boa quantidade de tradições orais populares sobre vampiros, um material bastante interessante, que ainda se pode ver no Edifício Radcliffe, do outro lado da rua. Diz a lenda que os primeiros deões não queriam livros sobre ciências ocultas dentro da universidade, por isso foram guardados em vários outros lugares e finalmente foram parar ao Edifício Radcliffe.

Lembrei-me de Rossi e perguntei a mim mesma se ele teria visto algum daquele antigo material.

— Há alguma forma de se descobrir o nome de antigos alunos... de há cinquenta anos, talvez, nesta faculdade? Alunos de graduação?

— Claro — o meu companheiro olhou para mim com ar interrogativo por cima do banco de madeira. — Posso perguntar ao reitor do colégio, se quiser.

— Ah, não. — Senti o rosto corar, a maldição da minha juventude. — Não é importante. Mas acha que eu poderia ver o... o material sobre os vampiros?

— Gosta de coisas arrepiantes, hein? — Ele parecia achar graça. — Não há muito que ver, sabe; só alguns velhos in-fólios e uma porção de livros encadernados em couro. Mas está bem. Vamos ver a biblioteca da universidade agora, não pode deixar de ver, e depois levo-a ao Radcliffe.

A biblioteca era, evidentemente, uma das jóias da universidade. Desde aquele dia inocente, estive na maioria daquelas faculdades e cheguei a conhecer bem algumas delas, deambulei pelas suas bibliotecas e capelas e refeitórios, fiz conferências nos seus auditórios e tomei chá nas suas salas de visitas. Posso afirmar com segurança que nada se assemelha àquela primeira biblioteca de universidade que vi, exceto talvez a capela do Magdalen College, com os seus sublimes ornamentos. Entramos primeiro numa sala de leitura rodeada de vitrais e semelhante a uma grande estufa onde os alunos, como raras plantas cativas, se sentavam em torno de mesas tão antigas como a própria universidade. Candeeiros exóticos pendiam do teto e, nos cantos, havia enormes globos do tempo de Henrique VIII sobre pedestais. O meu guia apontou para os muitos volumes da edição original do Oxford English Dictionary alinhados nas prateleiras de uma das paredes; outras estavam repletas de atlas abrangendo uma longa extensão de séculos; noutras, havia registros da antiga aristocracia e obras de História inglesa; noutras ainda, livros escolares de Latim e Grego de todas as épocas da universidade. No centro da sala, via-se uma gigantesca enciclopédia sobre um suporte entalhado de estilo barroco e, perto da entrada da sala seguinte, repousava uma caixa de vidro dentro da qual vi um livro velho de aparência despojada que o meu guia me informou ser uma Bíblia de Gutenberg. Acima de nós, uma clarabóia redonda como o óculo de uma igreja bizantina, deixava entrar longos feixes de luz solar. Através dela, viam-se pombos a voar em bandos. A poeira de luz tocava os rostos dos alunos que liam e viravam as páginas dos livros sentados às suas mesas, roçava os seus blusões pesados e os seus rostos sérios. Era o paraíso do saber e eu rezei para que um dia pudesse ser ali admitida.

A divisão seguinte era um vasto salão cheio de galerias, escadas em caracol e um alto clerestório de vidro antigo. Todas as paredes disponíveis estavam cobertas de livros de cima a baixo, do piso de pedra ao teto abobadado. Vi quilômetros de encadernações de couro finamente lavradas, toneladas de fólios, montes de pequenos livros vermelho-escuros do século dezenove. Tentei imaginar o que haveria em todos aqueles livros. Seria capaz de compreender alguma coisa neles? Os meus dedos estavam ansiosos por tirar alguns das estantes, mas não ousava tocar nem numa lombada. Não sabia se aquilo era uma biblioteca ou um museu. Devo ter ficado a olhar em volta com a emoção nitidamente estampada no rosto, porque de repente dei com o rapaz de cabelos claros a sorrir para mim com ar divertido.

— Nada mal, hem! Você também deve ser um rato de biblioteca. Venha, então, já viu a melhor parte, vamos até ao Radcliffe.

A luz do dia e os carros barulhentos e velozes eram ainda mais atordoantes depois do silêncio da biblioteca. Tive de lhes agradecer, porém, por um presente inesperado: quando atravessávamos a rua à pressa, Stephen pegou-me na mão, puxando-me para um lugar seguro. Podia ter sido um autoritário irmão mais velho de alguém, pensei, mas o toque da palma da mão dele, quente e seca, enviou à minha um sinal semelhante a um formigueiro que persistiu depois de ele a largar. Tive a certeza, relanceando um olhar para o perfil dele, alegre e inalterado, de que a mensagem fora registrada apenas numa direção. Mas, para mim, bastava tê-la recebido.

O Edifício Radcliffe, como todos os anglófilos sabem, é um dos grandes encantos da arquitetura inglesa, bela e peculiar, um enorme barril de livros. Uma das suas extremidades chega quase à rua, mas um amplo relvado circunda o resto da construção. Entramos nela em silêncio, embora um barulhento grupo de excursionistas enchesse o centro do majestoso interior arredondado. Stephen mostrou-me vários aspectos do projeto do edifício, estudados em todos os cursos de arquitetura inglesa e assinalados em todos os guias turísticos. Era um lugar lindo e emocionante e, enquanto o admirava, eu refletia que se tratava de um depósito singular para um acervo sobre o mal. Por fim, ele conduziu-me para uma escadaria e subimos até à galeria.

— Ali adiante. — E apontou na direção de uma porta, cortada num verdadeiro penhasco de livros erguido a prumo. — Há uma pequena sala de leitura lá dentro. Só estive aqui uma vez, mas acho que é ali que guardam o material sobre vampiros.

A sala mal iluminada era de fato minúscula, e também silenciosa, longe das vozes dos turistas lá em baixo. Volumes majestosos enchiam as estantes, com as suas lombadas cor de caramelo, quebradiças como velhos ossos. No meio delas, um crânio humano dentro de uma pequena caixa de vidro dourado comprovava a natureza mórbida da coleção. A divisão era tão pequena que só havia espaço no centro para uma mesa de leitura, na qual quase tropeçamos ao entrar. Isso significa que ficamos de repente cara a cara com o estudioso que estava sentado junto dela, virando as folhas de um antigo e frágil infólio e tomando notas rapidamente num bloco. Um homem pálido, macilento. Os seus olhos eram buracos escuros, sobressaltados, apressados, mas também absortos, quando os levantou do seu trabalho. Era o meu pai.

 

Na confusão de ambulâncias, carros de polícia e espectadores que acompanharam a remoção do bibliotecário na rua em frente à biblioteca da universidade, fiquei paralisado por um instante. Era horrível, impensável, que até a vida do homem mais desagradável terminasse de maneira tão inesperada, mas a minha preocupação seguinte era Helen. Uma multidão começava a juntar-se rapidamente e fui furando aqui e ali à procura dela. Senti um alívio infinito quando ela me encontrou primeiro, batendo-me ao de leve no ombro com a mão enluvada. Estava pálida, mas controlada. Enrolara a écharpe bem apertada em volta do pescoço e, quando a vi, tive um calafrio.

— Esperei uns minutos, depois desci as escadas atrás de si — disse ela, no meio do barulho da rua. Quero agradecer-lhe por ter vindo em meu auxílio. Esse homem era um bruto. Você foi realmente corajoso.

Surpreendeu-me ver como o rosto dela podia mostrar-se simpático, afinal.

— Na realidade, você é que foi corajosa. E ele feriu-a. Tentei não apontar em público para o seu pescoço. Ele chegou a...?

— Sim -respondeu ela, baixinho. Instintivamente, aproximamo-nos um do outro, para que ninguém ouvisse a nossa conversa. — Quando se atirou a mim, lá em cima, mordeu-me no pescoço. — Por um segundo, os seus lábios tremeram, como se fosse chorar. — Não chupou muito sangue, não teve tempo. E quase não me dói.

— Mas você... — gaguejei, incrédulo.

— Não creio que vá infectar — disse ela. — Deitou muito pouco sangue e fechei a ferida o melhor que pude.

— Não é melhor irmos a um hospital? — Arrependi-me da pergunta logo que a fiz, em parte por causa do olhar intimidante que ela me lançou. — Ou limpar a ferida de alguma forma? — Acho que, de certo modo, estava a imaginar que seria possível retirar o veneno, como se fosse uma mordidela de cobra. A dor repentina no rosto dela apertou-me o coração. Então, lembrei-me de que ela traíra o segredo do mapa. — Por que é que...?

Sei o que está a pensar — interrompeu-me, apressada, o sotaque ainda mais acentuado. — Mas não consegui pensar em nenhum outro isco para aquela criatura e queria ver a reação dele. Não lhe teria dado o mapa nem qualquer outra informação, garanto-lhe.

Olhei-a atentamente, desconfiado. O seu rosto estava sério, a boca curvada para baixo, impiedosa.

— Não?

— Dou-lhe a minha palavra — disse simplesmente. — Além disso... — o seu sorriso sarcástico inverteu a careta, — não tenho necessariamente o hábito de partilhar com os outros o que posso usar em meu benefício, e você?

Deixei passar o argumento, mas algo no rosto dela acalmou de fato os meus receios.

— A reação dele foi extremamente interessante, não foi? — Helen concordou.

— Ele disse que deveria ter ido para uma tumba e que Rossi foi levado para lá por alguém. É tudo muito misterioso, mas ele realmente parecia saber alguma coisa sobre o paradeiro do meu... do seu orientador. Não consigo acreditar muito nessa história de Drácula, mas talvez algum estranho grupo ocultista tenha raptado o professor Rossi, qualquer coisa desse gênero.

Foi a minha vez de concordar, apesar de obviamente estar mais inclinado a acreditar na informação do bibliotecário do que ela.

— O que pretende fazer agora? — perguntou ela, com uma estranha indiferença.

Não tinha planejado a minha resposta antes de começar a falar.

— Ir para Istambul. Estou convencido de que há lá pelo menos um documento que Rossi nunca teve oportunidade de examinar, e que pode conter informações sobre uma tumba, talvez a tumba de Drácula no lago Snagov.

— Por que não faz umas pequenas férias na minha linda Romênia nativa? perguntou ela. — Poderia ir ao castelo de Drácula com uma estaca de prata na mão, ou visitá-lo pessoalmente em Snagov. Ouvi dizer que é um belo lugar para um piquenique.

— Ouça lá — disse eu, irritado, — sei que tudo isso é muito fora do comum, mas tenho de seguir qualquer pista que puder sobre o desaparecimento de Rossi. E, como muito bem sabe, um cidadão americano não pode entrar na Cortina de Ferro só para procurar uma pessoa. — A minha lealdade deve tê-la envergonhado, porque não respondeu. — Gostaria de lhe perguntar uma coisa. Quando estávamos a sair da igreja, disse que a sua mãe podia ter alguma informação sobre o interesse de Rossi por Drácula. O que quis dizer com isso?

— Apenas que, quando se conheceram, ele disse que estava na Romênia para estudar a lenda de Drácula, e que ela própria ainda hoje acredita na lenda. Talvez ela saiba mais sobre a pesquisa dele lá do que o que me contou, não sei. Ela não fala sobre esse assunto com muita facilidade, e eu tenho ido atrás desse interesse do velho e querido pater famílias através dos canais acadêmicos, não no seio da família. Devia ter-lhe perguntado mais coisas sobre a sua experiência pessoal.

— Um estranho descuido para uma antropóloga — retorqui, mal-humorado. Agora, que acreditava outra vez que ela estava do meu lado, senti toda a irritação do alívio. O rosto dela iluminou-se, divertido.

— Touché, Sherlock. Vou perguntar-lhe da próxima vez que estivermos juntas.

— Quando será isso?

— Daqui a uns dois anos, creio. O meu precioso visto não me permite ir e vir à vontade do Oriente para o Ocidente.

— Nunca lhe telefona ou escreve?

Ela encarou-me.

— Ah, o Ocidente é um lugar tão inocente — acabou por dizer. — Acha que ela tem telefone? Não sabe que as minhas cartas são sempre abertas e lidas?

Calei-me, devidamente castigado.

— Que documento é esse que está tão ansioso por procurar, Sherlock? É aquela bibliografia, qualquer coisa sobre a Ordem do Dragão? Foi o que vi naquela última lista, nos papéis dele. A única coisa que ele não descreveu completamente. É isso que quer encontrar?

Ela acertara, naturalmente. A sua capacidade intelectual cada vez me impressionava mais, e pensei, com uma certa melancolia, nas conversas que poderíamos ter em circunstâncias mais favoráveis. Por outro lado, não me agradava que tivesse tanta capacidade para adivinhar.

— Para que quer saber? — perguntei. — Para a sua pesquisa?

— Claro — disse ela, com ar severo. — Vai entrar em contato comigo quando voltar?

Senti-me subitamente abatido.

— Voltar? Não tenho a menor idéia de onde me estou a meter, muito menos de quando vou voltar. Posso até vir a ser a próxima vítima do vampiro, quando chegar ao sítio para onde vou, seja lá onde for.

A minha intenção era ser irônico, mas a irrealidade de toda aquela situação abateu-se outra vez sobre mim enquanto falava; lá estava eu, de pé no passeio em frente da biblioteca como centenas de vezes antes, só que, desta vez, estava a falar de vampiros como se acreditasse neles com uma antropóloga romena, e estávamos diante de um cenário de morte no qual eu estivera envolvido, pelo menos indiretamente, fervilhando de condutores de ambulâncias e de polícias. Tentei não os ver, nem ao seu horrível trabalho. Ocorreu-me que devia sair dali o mais depressa possível, mas sem dar nas vistas. Não podia dar-me ao luxo de ser levado pela polícia naquela altura, nem sequer para algumas horas de interrogatório. Tinha coisas para fazer, e que precisavam de ser feitas imediatamente precisava de um visto para a Turquia, que talvez conseguisse obter em Nova Iorque, de um bilhete de avião, e de deixar em segurança uma cópia de todas as informações que já possuía. Felizmente, não daria aulas naquele semestre, mas teria de apresentar um motivo qualquer ao meu departamento, e dar uma explicação aos meus pais, para não ficarem preocupados. Voltei-me para Helen.

— Miss Rossi — disse eu. — Se prometer guardar este assunto para si, prometo entrar em contato consigo logo que regresse. Há mais alguma coisa que possa contar-me? Ha alguma maneira de eu entrar em contato com a sua mãe antes de partir?

— Nem mesmo eu tenho forma de comunicar com ela, a não ser por carta — respondeu ela, categórica. — Além disso, ela não fala inglês. Quando voltar para casa, daqui a dois anos, vou eu mesma perguntar-lhe o que sabe sobre esse assunto.

Suspirei. Dois anos seria tarde de mais, um tempo inimaginável. Sentia já uma certa ansiedade em separar-me daquela estranha companheira de alguns dias — de horas, na realidade, a única pessoa além de mim que sabia alguma coisa sobre a natureza do desaparecimento de Rossi. Depois disso, estaria por minha conta num país sobre o qual nem sequer pensara muito. Entretanto, aquilo tinha de ser feito. Estendi-lhe a mão.

— Miss Rossi, obrigado por ter suportado um lunático inofensivo durante dois dias. Se voltar em segurança, fique certa de que será avisada... quero dizer, talvez... se eu trouxer o seu pai de volta em segurança...

Fez um gesto vago com a mão enluvada, como se o seu interesse não fosse de modo algum o regresso de Rossi em segurança, mas apertou-me a mão com cordialidade. Tive a sensação de que a sua mão firme era o meu último contato com o mundo conhecido.

— Adeus — disse ela. — Desejo-lhe toda a sorte possível para a sua pesquisa — E misturou-se à multidão os paramédicos estavam a fechar as portas da ambulância. Dei meia volta, também, e comecei a descer as escadas para atravessar o quadrângulo. A uns trinta metros da universidade, parei e olhei para trás, esperando entrever a sua figura vestida de escuro no meio dos que acompanhavam a atividade da ambulância. Para minha surpresa, ela vinha a correr na minha direção, já quase a alcançar-me. Chegou rapidamente e vi que as suas faces tinham adquirido um vivo colorido de rubi. A sua expressão era ansiosa.

— Tenho estado a pensar — disse, e depois calou-se. Parecia estar a recuperar o fôlego. — Esta questão diz respeito à minha vida mais do que qualquer outra coisa. — O seu olhar era direto, desafiador. — Não sei bem como, mas acho que vou consigo.

 

O meu pai arranjou uma desculpa plausível para estar a ler o acervo sobre vampiros de Oxford em vez de estar na sua reunião. A reunião fora cancelada, explicou, apertando a mão de Stephen Barley com a sua cordialidade habitual. Fora até ali por um hábito antigo aqui parou, quase mordendo os lábios, e tentou outra saída. Procurava um pouco de paz e sossego (no que eu facilmente acreditava). A sua gratidão pela presença de Stephen, pela sua estatura, a sua saúde e juventude exuberantes, a sua aparência tranquilizadora envolta na camisola de lã, foi palpável. Afinal, o que me diria o meu pai se o tivesse surpreendido ali sozinha? Como teria explicado, ou fechado tão despreocupadamente o in-fólio sob a sua mão? Fê-lo, mas tarde demais; eu já tinha visto o título de um dos capítulos destacado no grosso papel cor de marfim: "Vampires de Provence et dês Pyrenees."

Dormi mal naquela noite na cama de dossel e chintz da casa do reitor da faculdade, acordando de estranhos sonhos com intervalos de poucas horas. Num desses momentos, vi a luz acesa por baixo da porta da casa de banho entre o meu quarto e o do meu pai, o que me tranquilizou. De vez em quando, porém, a sensação de que ele não estava a dormir, de que havia uma atividade silenciosa no quarto ao lado, arrancava-me subitamente ao meu descanso. Perto do amanhecer, quando uma névoa cor de ardósia começou a aparecer através das cortinas, acordei definitivamente.

Dessa vez, foi o silêncio que me acordou. Tudo estava demasiado parado: a tênue silhueta das árvores no pátio (espreitei pelo canto das cortinas), o imenso guarda-fatos junto da minha cama e, acima de tudo, o quarto do meu pai, ao lado. Não é que eu esperasse vê-lo de pé àquela hora; no mínimo, devia estar ainda a dormir talvez a ressonar ligeiramente, se estivesse deitado de costas —, tentando apagar da cabeça as preocupações do dia anterior, adiando a massacrante agenda de conferências, seminários e debates que tinha diante de si. Durante as nossas viagens, ele costumava dar uma pancadinha jovial na minha porta quando eu me levantava, um convite para me apressar a juntar-me a ele para uma caminhada antes do pequeno-almoço.

Nessa manhã, o silêncio oprimia-me sem qualquer razão, e desci de minha grande cama, vesti-me e atirei uma toalha por cima do ombro. Iria lavar a cara no lavatório da casa de banho e ao mesmo tempo ouvir a respiração noturna do meu pai. Bati ao de leve na porta da casa de banho para ter a certeza de que ele não estava lá dentro. O silêncio tornou-se ainda mais profundo quando me vi diante do espelho, a enxugar a cara. Encostei o ouvido à porta dele. Devia estar a dormir um sono pesado. Sabia que seria desumano interromper o seu merecido sono, mas o pânico começava a tomar conta dos meus braços e pernas. Bati ao de leve. Não ouvi qualquer ruído. Durante anos, tínhamos mantido intacta a privacidade um do outro mas naquele momento, sob a cinzenta luz matinal que entrava pela janela da casa de banho, rodei a maçaneta e abri a porta. As espessas cortinas do quarto do meu pai ainda estavam fechadas, de modo que levei alguns segundos a reconhecer o contorno indistinto dos móveis e dos quadros. O silêncio fez-me arrepiar a pele da nuca. Dei um passo na direção da cama, falei com ele. De perto, entretanto, a cama estava feita e intacta, escura no quarto escuro. O quarto estava vazio. Deixei escapar a respiração que prendera. Ele saíra, saíra para caminhar sozinho, provavelmente, a precisar de solidão e de tempo para refletir. Mas alguma coisa me fez acender a luz junto da cama e olhar em volta com mais cuidado. Sob o círculo de luz, havia um bilhete que me era dirigido e, em cima do papel, havia duas coisas que me apanharam de surpresa: um pequeno crucifixo de prata num fio grosso e uma cabeça de alho. A crua realidade desses objetos deu-me a volta ao estômago antes mesmo de ler as palavras do meu pai.

 

Minha querida filha:

Lamento muitíssimo surpreender-te desta maneira, mas fui chamado para resolver um novo negócio e não quis perturbar-te durante a noite. Vou estar fora apenas uns dias, segundo espero. Combinei com o reitor James fazer-te chegar a casa em segurança na companhia do nosso jovem amigo Stephen Barley. Ele foi dispensado das aulas por dois dias e vai levar-te para Amsterdã esta noite. Gostaria que fosse Mrs. Clay a vir-te buscar, mas a irmã está doente e ela teve de voltar para Liverpool. Vai tentar estar em nossa casa esta noite para te receber. De qualquer maneira, estarás bem acompanhada e espero que te portes ajuizadamente. Não te preocupes com a minha ausência. Trata-se de um assunto confidencial, mas estarei em casa o mais cedo que puder e nessa altura explicarei tudo. Entretanto, peço-te, do fundo do meu coração, que uses o crucifixo e tragas sempre um pouco de alho em cada bolso. Sabes que nunca te pressionei no que se refere a religião ou superstição, e continuo firmemente a não acreditar em nenhuma das duas. Mas temos de lidar com o mal de acordo com os seus próprios termos, tanto quanto possível, e já conheces o alcance desses termos. Suplico-te, com o meu coração de pai, que não ignores os meus desejos sobre este ponto.

 

O bilhete estava assinado "com muito afeto", mas pude verificar que o escrevera à pressa. O meu coração batia com força. Prendi rapidamente o fio em volta do pescoço e dividi o alho para colocar nos bolsos do meu vestido. Era mesmo do meu pai, pensei, olhando em volta do quarto vazio, fazer a cama com tanto esmero no meio de uma pressa silenciosa para sair da universidade. Mas porquê essa pressa? Fosse qual fosse a sua incumbência, não poderia ser uma simples missão diplomática, ou ter-me-ia contado. Já tinha acorrido com frequência a emergências profissionais; eu sabia que já tivera de partir quase de repente para ajudar a resolver crises do outro lado da Europa, mas sempre me dissera para onde ia. Desta vez, o meu coração a bater descompassadamente dizia-me que não fora em trabalho. Além disso, teria supostamente de permanecer em Oxford durante aquela semana, a fazer conferências e a participar em reuniões. Não era pessoa para quebrar um compromisso levianamente.

Não. O seu desaparecimento devia estar relacionado com a tensão que vinha a mostrar ultimamente, e apercebi-me então de que há muito tempo receava algo assim. Ainda por cima, havia a considerar aquela cena da véspera no Radcliffe, o meu pai mergulhado em... o que estaria ele a ler, exatamente? Ah, e para onde, para onde teria ido? Para onde, sem mim? Pela primeira vez, em todos os anos de que me lembrava, todos os anos em que o meu pai me protegera da solidão de uma vida sem mãe, sem irmãos, sem país natal, todos os anos em que ele fora pai e mãe para mim — pela primeira vez, senti-me órfã.

O reitor foi muito amável quando apareci com a minha mala feita e o meu impermeável no braço. Expliquei-lhe que podia perfeitamente viajar sozinha. Assegurei-lhe de que ficava muito grata pela sua oferta em fazer-me acompanhar até a casa por um aluno atravessando todo o Canal e que nunca esqueceria a sua bondade. Senti uma pontada, uma pequena mas nítida sensação de decepção — como seria agradável viajar um dia inteiro com Stephen Barley a sorrir-me do banco oposto do comboio! Mas tinha de dizer aquilo. Estaria em casa em segurança dentro de poucas horas, repeti, reprimindo a súbita imagem mental de uma bacia de mármore vermelho cheia de uma água melodiosa, receando que aquele homem de sorriso bondoso a adivinhasse em mim ou a visse mesmo no meu rosto. Depressa estaria em casa, em segurança, e poderia telefonar-lhe se fosse preciso, para o tranquilizar. E, além disso, é claro, acrescentei com uma duplicidade ainda maior, o meu pai também estaria em casa dentro de poucos dias.

O reitor tinha a certeza de que eu era capaz de viajar sozinha; eu parecia ser uma rapariga independente, sem dúvida. A questão é que ele não podia e sorriu-me ainda com mais doçura, simplesmente não podia deixar de cumprir a palavra que dera ao meu pai, um velho amigo seu. Eu era o tesouro mais precioso do meu pai, e o reitor não podia deixar-me partir sem uma proteção adequada. Não era por mim, tinha de compreender, mas pelo meu pai tínhamos de lhe fazer a vontade. Stephen Barley materializou-se antes que eu pudesse apresentar mais objeções, ou mesmo assimilar o fato de o reitor e o meu pai serem velhos amigos, quando me parecia que eles se tinham encontrado pela primeira vez apenas dois dias antes. Não tive tempo, todavia, para pensar nessa irregularidade. Stephen encontrava-se diante de mim e, por sua vez, parecia ser um velho amigo meu, segurando o seu casaco e a sua mala, e eu não estava completamente triste por vê-lo. Lamentava o desvio que me iria custar, mas não tanto quanto deveria. Era impossível acolher mal o seu sorriso largo e verdadeiro, ou o seu "Livrou-me de uma quantidade de trabalho aqui, hein?".

O reitor James foi mais sóbrio.

— Ainda tem uma tarefa a cumprir, meu rapaz — disse ele. — Quero que me telefone de Amsterdã logo que chegar, e quero falar com a governanta. Aqui tem o dinheiro para os bilhetes e para algumas refeições, e traga-me as notas de despesa quando voltar. — Em seguida, piscou os olhos cor de avelã. — O que não quer dizer que não possa comprar um chocolate holandês na estação. Traga-me um, também. Não é tão bom como o belga, mas serve. Agora vão-se embora, e juízo. — Em seguida, apertou-me a mão com ar grave e deu-me o seu cartão. — Adeus, minha querida. Venha ver-nos outra vez quando estiver a pensar numa universidade para si.

Ao sairmos do gabinete, Stephen segurou-me na mala.

— Vamos, então. Os bilhetes são para o comboio das dez e meia, mas podemos ir andando.

O reitor e o meu pai não tinham descurado nenhum pormenor, pensei, imaginando quantos obstáculos ainda teria de enfrentar em casa. Por enquanto, tinha outros planos.

— Stephen? — comecei.

— Ah, prefiro que me chame Barley. — E riu-se. — Toda a gente me chama assim, e já estou tão habituado que me dá arrepios ouvir o meu primeiro nome.

— Está bem. — O sorriso dele era tão contagiante naquele dia como na véspera. — Barley, posso pedir-lhe um favor antes de partirmos? Ele concordou com a cabeça. — Gostava de ir ao Radcliffe mais uma vez. É tão bonito e... queria ver o acervo sobre os vampiros. Não cheguei a vê-lo, de fato.

Ele resmungou.

— Já reparei que gosta dessas coisas horríveis. Deve ser de família.

— Eu sei.

Senti que corava.

— Está bem, vamos lá de novo dar uma olhadela rápida, mas temos de correr. O reitor James vai cravar-me uma estaca no coração se perdermos o comboio.

O Edifício Radcliffe estava sossegado naquela manhã, quase vazio, e subimos depressa uma escadaria bem encerada para chegar à saleta macabra onde tínhamos surpreendido o meu pai na véspera. Reprimi a vontade de chorar quando entramos na minúscula divisão: horas antes, o meu pai estivera ali sentado, com aquela expressão estranhamente distante a velar-lhe o olhar, e agora eu nem sequer sabia onde ele estava.

Contudo, lembrava-me do lugar da estante onde ele voltara a pôr o livro, com ar displicente, enquanto conversávamos. Deveria estar por baixo da caixa com a caveira, à esquerda. Corri o dedo pela borda da prateleira. Barley estava junto de mim (era impossível não ficarmos próximos naquele espaço diminuto, e desejei que ele saísse para a galeria), a observar-me com franca curiosidade. No lugar onde o livro deveria estar, havia uma lacuna, como um dente que faltasse numa dentadura. Fiquei gelada: o meu pai jamais roubaria um livro, estava fora de questão; portanto, quem o teria tirado dali? Um segundo depois, porém, reconheci o livro, a um palmo de distância. Alguém com certeza o mudara de sítio desde que eu estivera ali no dia anterior. O meu pai teria voltado para o ver novamente? Ou teria sido outra pessoa a tirá-lo da estante? Olhei desconfiada para a caveira na caixa de vidro, mas ela devolveu-me um olhar ameno, anatômico. Então, tirei o livro com muito cuidado e lá estava a capa grande, cor de osso, com uma fita de seda negra a sair de cima. Pousei-o sobre a mesa e abri-o no frontispício: Vampires du Moyen Age, Barão de Hejduke, Bucareste, 1886.

— O que é que quer dessa coisa mórbida? — Barley espreitava por cima do meu ombro.

— Trabalho escolar — murmurei.

Segundo me lembrava, o livro estava dividido em capítulos: Vampires de la Toscane, Vampires de la Normandie, e assim por diante. Finalmente, encontrei o que queria: Vampires de Provence et dês Pyrenees. Meu Deus, estaria o meu francês à altura? Barley começava a olhar para o relógio. Percorri rapidamente a página com o dedo, procurando não tocar nas magníficas letras nem no papel marfim. Vampires dans lês villages de Provence,.. De que estaria o meu pai à procura? Na véspera, estava a ler atentamente aquela primeira página do capítulo. "H y a aussi une legende..." Aproximei-me mais.

Desde aquele dia, vivi muitas vezes a experiência daquele momento. Até então, as minhas incursões ao francês escrito tinham tido apenas fins utilitários, quase como completar exercícios de matemática. Entender uma frase era meramente uma ponte para o exercício seguinte. Nunca antes conhecera o frêmito repentino de compreensão que viaja da palavra para o cérebro e para o coração, a maneira como uma nova língua pode mover-se, serpentear, nadar para a vida perante os nossos olhos, o salto quase selvagem da percepção, a instantânea e exultante libertação do significado, a forma como as palavras se despem dos seus corpos impressos num clarão de luz e calor. Desde então, vivi essa hora da verdade com outros companheiros: alemão, russo, latim, grego e por um breve instante sânscrito.

Mas aquela primeira vez encerrou a revelação de todas as outras. "Il y a aussi une legende...", sussurrei, e Barley inclinou-se para seguir as palavras. O que ele traduziu em voz alta, todavia, já eu assimilara com um sobressalto mental: "Existe também uma lenda que diz que Drácula, o mais nobre e o mais perigoso de todos os vampiros, atingiu o seu poder não na região da Valáquia mas, através de uma heresia, no mosteiro de Saint-Matthieu-des-Pyrénées-Orientales, uma casa beneditina fundada no ano 1000 de Nosso Senhor."

— De que se trata, afinal?

— Trabalho escolar — repeti, mas os nossos olhares cruzaram-se estranhamente por cima do livro e ele parecia estar a ver-me pela primeira vez.

— O seu francês é muito bom? — perguntei, humildemente.

— Claro. — Sorriu e inclinou-se de novo para a página. — "Diz-se que Drácula visita o mosteiro em cada dezesseis anos para prestar homenagem às suas origens e renovar as influências que lhe permitiram viver na morte "

— Continue, por favor. — E agarrei-me à borda da mesa.

— Com certeza — disse ele. — Os cálculos feitos pelo irmão Pierre de Provence no início do século dezessete indicam que Drácula visita Samt-Matthieu no quarto crescente do mês de Maio.

Não havia mais nenhuma referência a Samt-Matthieu; as páginas restantes parafraseavam um documento de uma igreja em Perpignan sobre problemas com ovelhas e cabras da região em 1428, não ficava claro se o frade-autor culpava os vampiros ou os ladrões de ovelhas pelos problemas.

— Que coisa mais esquisita — comentou Barley. — É isso o que a sua família lê para se distrair? Quer que eu leia agora sobre os vampiros de Chipre

Nada mais no livro parecia relevante para os meus objetivos e, quando Barley olhou de novo para o relógio, virei as costas as sedutoras paredes cheias de livros.

— Meu Deus, que programa animado! — disse Barley ao descer a escadaria. — Você é uma rapariga invulgar, não é? — Não percebi qual era o sentido do comentário dele, mas esperava que fosse um elogio.

No comboio, Barley divertiu-me a contar-me histórias sobre os seus colegas, um bando de doidivanas, depois pegou na minha mala e subimos para bordo por cima da oleosa água cinzenta do canal da Mancha. Estava um dia límpido e frio e fomos sentar-nos nos bancos de plástico do interior, protegidos do vento.

— Não tenho muito tempo para dormir durante o semestre de aulas — explicou Stephen, e adormeceu imediatamente, com o casaco enrolado como uma bola sob um dos ombros.

Convinha-me que ele dormisse umas boas horas, porque eu tinha muito em que pensar, questões de natureza prática mas também escolares. O meu problema imediato não era uma questão de ligações entre acontecimentos históricos, mas Mrs. Clay. Ela estaria, firme como uma rocha, à espera no vestíbulo da nossa casa em Amsterdã, sufocada de preocupação pelo meu pai e por mim. A sua presença prender-me-ia em casa pelo menos até ao dia seguinte e, se eu não aparecesse depois da escola ao fim da tarde, iria no meu encalço como uma matilha de lobos, provavelmente levando consigo toda a força policial de Amsterdã para lhe fazer companhia. E havia também Barley. Olhei para o seu rosto adormecido à minha frente; ressonava discretamente encostado ao seu casaco. Barley iria tomar o ferry outra vez quando eu fosse para a escola, e tinha de ter cuidado para não me encontrar com ele no caminho.

 

Mrs. Clay estava de fato em casa quando chegamos. Barley parou comigo no degrau da entrada enquanto eu procurava as minhas chaves; contemplava com admiração as velhas casas dos mercadores e a água que brilhava nos canais.

— Que maravilha! E todos esses rostos de Rembrandt nas ruas!

Quando Mrs. Clay abriu subitamente a porta e me puxou para dentro, ele quase ficou do lado de fora. Fiquei aliviada ao vê-lo adotar as suas boas maneiras. Enquanto os dois desapareciam na cozinha para telefonar ao reitor James, corri para o andar de cima, gritando-lhes que queria lavar a cara. Na realidade e o pensamento fez-me bater o coração com uma velocidade cheia de culpa, a minha intenção era saquear imediatamente a cidadela do meu pai. Depois pensaria como lidar com Mrs. Clay e com Barley. Naquele momento, tinha de encontrar o que achava que estava escondido ali.

A nossa casa, construída em 1620, tinha três quartos de dormir no segundo andar, quartos que o meu pai adorava, estreitos e com vigas escuras no teto, porque, segundo ele, pareciam-lhe ainda habitados pelas pessoas simples e trabalhadoras que tinham outrora vivido neles. O seu quarto era o maior dos três, e continha peças admiráveis de mobiliário de época holandês. Ele misturara os móveis espartanos com um tapete otomano e uma cama com cortinas, um pequeno esboço de Van Gogh e doze tachos de cobre trazidos de uma casa de quinta francesa — que formavam uma fila numa das paredes e captavam reflexos de luz do canal em baixo. Hoje dou-me conta de como esse quarto era extraordinário, não só pelo gosto eclético que demonstrava, como pela sua simplicidade monástica. Não havia ali um único livro; todos tinham sido relegados para a biblioteca, no andar de baixo. Nenhuma peça de roupa fora alguma vez pendurada nas costas da cadeira do século dezessete, nenhum jornal profanara a grande escrivaninha. Não havia telefone nem mesmo um relógio o meu pai acordava naturalmente muito cedo todas as manhãs. Era apenas um espaço para viver, um lugar para dormir, acordar e talvez rezar embora eu não pudesse afirmar que ali ainda se rezasse — como tinha sido quando o quarto era novo. Eu adorava aquele quarto, mas raramente lá entrava.

Naquele dia, entrei sem fazer barulho, como um ladrão, fechei a porta e abri a escrivaninha. Foi uma sensação horrível, como quebrar o lacre de um caixão, mas não me detive, tirando tudo de dentro dos escaninhos, vasculhando as gavetas, mas voltando a pôr no seu lugar cada objeto com o maior cuidado à medida que prosseguia — as cartas dos seus amigos, as suas belas canetas, o seu papel de carta com monograma. Por fim, a minha mão encontrou um pacote fechado. Abri-o sem escrúpulos e vi que lá dentro havia um curto bilhete dirigido a mim, advertindo-me de que só lesse as cartas que continha no caso da morte do meu pai ou do seu desaparecimento por longo tempo. Não o tinha visto a escrever, noite após noite, algo que tapava com um braço quando eu me aproximava? Peguei no pacote sofregamente, fechei a escrivaninha e levei o meu achado para o meu quarto, com o ouvido atento aos passos de Mrs. Clay na escada.

O pacote estava cheio de cartas, cada uma delas bem dobrada dentro de um envelope e dirigida a mim com a morada da nossa casa, como se ele achasse que talvez precisasse de mas enviar, uma de cada vez, de algum outro lugar. Mantive-as em ordem ah, eu aprendera coisas sem dar por isso e abri a primeira com cuidado. A data era de seis meses antes e parecia começar, não com meras palavras, mas com um grito vindo do fundo do coração. Minha querida filha a letra dele tremia diante dos meus olhos. Se estás a ler esta carta, perdoa-me. Parti para procurar a tua mãe.

 

Para que casa tinha eu vindo e que espécie de gente morava ali?

Em que aventura me tinham embrenhado?... Comecei a esfregar os olhos e belisquei-me para verificar se estava acordado. Tudo me parecia um pesadelo horrível e esperava despertar subitamente e encontrar-me em casa.

Senti, porém, os beliscões que dei em mim próprio e obtive a certeza de que estava bem acordado e nos montes Cárpatos. Tudo o que podia fazer era encher-me de paciência e esperar que amanhecesse.

Bram Stoker, — DRÁCULA, 1897

 

A estação de caminho-de-ferro de Amsterdã era um lugar que conhecia bem já passara por lá dezenas de vezes. Mas nunca tinha estado ali sozinha. Nunca tinha viajado para sítio nenhum sozinha e, quando me sentei num banco à espera do expresso da manhã para Paris, senti a minha pulsação acelerar-se, o que não era inteiramente apreensão pelo meu pai — era simplesmente uma subida de seiva, o primeiro momento de liberdade completa que já sentira. Mrs. Clay, que naquele momento devia estar em casa a lavar a louça do pequeno-almoço, pensava que eu ia a caminho da escola. Barley, garantidamente despachado para o ferry, também pensava que eu ia a caminho da escola. Sentia-me mal por ter enganado a boa e enfadonha Mrs. Clay, e ainda pior por me ter separado de Barley, que me beijara a mão com repentina galanteria à porta de casa e me dera um dos seus chocolates, embora eu lhe tivesse lembrado que podia comprar doces holandeses a qualquer momento que quisesse. Pensei que podia escrever-lhe uma carta quando todos aqueles problemas tivessem acabado mas eu não conseguia ver tão longe.

Por enquanto, a manhã de Amsterdã cintilava, reluzia, movimentava-se à minha volta. Mesmo naquela manhã, quando fui da nossa casa até à estação, encontrei algo de reconfortante na caminhada ao longo dos canais, o perfume do pão acabado de cozer, o cheiro úmido dos canais, a limpeza aplicada e não muito elegante de tudo. Num banco da estação, revi a minha bagagem: uma muda de roupa, as cartas do meu pai, pão, queijo e embalagens de sumo de fruta que tirara da cozinha. Também tinha saqueado a confortável reserva de dinheiro da cozinha — já que ia fazer uma coisa feia, também podia fazer outras para completar o que tinha na carteira. Isso faria com que Mrs. Clay percebesse depressa demais o que acontecera, mas não havia outra maneira — eu não podia esperar que os bancos abrissem para tirar dinheiro das minhas pequenas e infantis poupanças. Trazia uma camisola quente e um impermeável, o meu passaporte, um livro para as longas viagens de comboio e o meu dicionário de bolso de Francês.

E tinha roubado mais outra coisa. Na sala, pegara numa faca de prata que estava numa vitrina no meio de lembranças das primeiras e prolongadas missões diplomáticas do meu pai, as viagens que tinham sido as primeiras tentativas de estabelecer a sua fundação. Nessa altura, eu era demasiado nova para o acompanhar e tinha-me deixado nos Estados Unidos ao cuidado de vários parentes. A faca era sinistramente afiada, com um cabo decorado em relevo. Repousava numa bainha, também profusamente decorada. Era a única arma que eu alguma vez vira na nossa casa o meu pai não gostava de armas de fogo, e os seus gostos de colecionador não incluíam espadas nem machados de guerra. Não tinha a menor idéia de como me defender com a pequena lâmina, mas sentia-me mais segura sabendo que estava na minha bolsa.

Quando o comboio expresso chegou, a estação já estava cheia de gente Senti, então, como sinto ainda hoje, que não há alegria como a da chegada de um comboio, por mais perturbadora que seja a situação da pessoa principalmente quando se trata de um comboio europeu, e sobretudo se for um comboio europeu que nos leve para o Sul. Durante aquele período da minha vida, no último quartel do século vinte, ouvi o apito das últimas locomotivas a vapor que cruzavam regularmente os Alpes e esse som perdura nos meus ouvidos como o canto de uma sereia. Subi para o comboio agarrada à minha mochila da escola, quase a sorrir. Teria muitas horas à frente, e precisava delas, não para ler o meu livro, mas para examinar novamente as preciosas cartas do meu pai. Acreditava ter escolhido o meu destino corretamente, mas precisava de refletir por que razão estava correto.

Encontrei um compartimento tranquilo e fechei as cortinas que davam para o corredor junto ao meu assento, esperando que não entrasse mais ninguém. Instantes depois, uma senhora de meia-idade, com um casaco azul e chapéu, acabou por entrar também, mas sorriu-me e instalou-se com umas revistas holandesas de moda no colo. Confortável no meu canto, observando a velha cidade e depois os pequenos subúrbios verdes a passarem, desdobrei novamente a primeira das cartas do meu pai. Já sabia de cor as primeiras linhas, a forma das palavras, o lugar e a data surpreendentes, a letra firme e apressada.

 

Minha querida filha:

Se estiveres a ler esta carta, perdoa-me. Parti para procurar a tua mãe. Durante muitos anos, acreditei que estivesse morta, mas agora não tenho a certeza. Esta incerteza é quase pior do que a dor, como talvez um dia compreendas; tortura-me o coração noite e dia Nunca te falei muito sobre ela, o que foi uma fraqueza minha, eu sei, mas a nossa história era dolorosa demais para ser contada com facilidade. Sempre tive a intenção de te contar mais à medida que crescesses e pudesses percebê-la melhor sem ficares terrivelmente assustada embora na verdade me tenha assustado a tal ponto, e tão interminavelmente, que esta tem sido a mais fraca das desculpas que dou a mim mesmo sobre este assunto.

Durante os últimos meses, tentei compensar a minha fraqueza contando-te, aos poucos, o que podia contar-te sobre o meu passado, e pretendia incluir gradualmente a tua mãe na história, ainda que ela tenha entrado na minha vida de modo muito repentino. Agora, receio não conseguir contar-te tudo o que devias saber sobre a tua herança antes de ser eu próprio silenciado e literalmente incapaz de te transmitir pessoalmente as informações ou ficar outra vez prisioneiro dos meus próprios silêncios.

Descrevi-te um pouco da minha vida como estudante universitário antes de tu nasceres, e falei-te das estranhas circunstâncias do desaparecimento do meu orientador depois das revelações que me fez. Também te contei como conheci uma jovem chamada Helen, tão interessada como eu em encontrar o professor Rossi, talvez até mais. Em cada oportunidade tranquila que tivemos, tentei fazer essa história avançar, mas agora sinto que devia começar a escrever o resto dela, confiá-la com segurança ao papel Se tiveres de a ler, em vez de me ouvires contar-ta numa colina rochosa ou piazza sossegada, num porto abrigado ou numa confortável mesa de café, a culpa é minha por não tê-la contado mais depressa, ou mais cedo.

Enquanto escrevo esta carta, olho lá para fora e vejo as luzes de um velho porto e tu estás a dormir, serena e inocente, no quarto ao lado. Estou cansado depois de um dia de trabalho, e cansado só de pensar no início desta longa narrativa uma obrigação triste, uma triste precaução. Creio que tenho algumas semanas, talvez meses, durante os quais conseguirei decerto continuar a minha história pessoalmente; por isso, não vou voltar ao que já te contei durante as nossas andanças por tantos países. Para além desse período de tempo semanas ou meses, já não tenho tanta certeza. Estas cartas são o meu seguro contra a tua solidão. Na pior das hipóteses, herdarás a minha casa, o meu dinheiro, os meus móveis e livros, mas quase posso apostar que vais dar mais valor a estes documentos escritos com o meu próprio punho do que a qualquer das outras coisas, porque eles vão conter a tua história pessoal, a tua História.

Por que razão não te revelei todos os fatos desta história de uma vez só, para acabar com isto, para te contar tudo o que havia a contar? Mais uma vez, a resposta está na minha própria fraqueza, mas também no fato de que uma versão abreviada seria exatamente isso um golpe. Não posso de modo algum desejar-te tanta dor, mesmo sendo apenas uma fração da minha própria dor. Além disso, se te contasse tudo de uma só vez, poderias não acreditar, assim como eu não acreditei completamente na história do meu orientador Rossi antes de percorrer devagar as suas reminiscências. E, por fim, que história pode ser de fato reduzida aos seus elementos factuais? Por isso, vou contar-te a minha história passo a passo. Também vou tentar adivinhar o que já terei conseguido contar-te se estas cartas te chegarem às mãos.

 

A previsão do meu pai não tinha sido muito exata, e começou a sua história um pouco além do que eu já sabia. Provavelmente, nunca chegaria a saber qual fora a reação dele a espantosa decisão de Helen Rossi de o acompanhar nas suas buscas, pensei com tristeza, ou os pormenores interessantes da viagem deles da Nova Inglaterra para Istambul. Como, perguntei a mim própria, de que modo teriam conseguido obter toda a papelada necessária, superar os obstáculos da hostilidade política, os vistos, as alfândegas. Teria o meu pai contado aos seus pais, gentis e sensatos hostomanos, alguma mentira inocente sobre os seus repentinos planos de viagem? Teriam ele e Helen ido para Nova Iorque imediatamente, como ele tinha planejado? E teriam dormido no mesmo quarto de hotel? A minha cabeça de adolescente não conseguia resolver aquela charada e também não conseguia deixar de pensar nela. Finalmente, tive de me contentar com uma imagem dos dois como personagens de um filme do tempo da juventude deles; Helen discretamente estendida sob a colcha da cama de casal, o meu pai a dormir num sofá, desconsolado e sem sapatos apenas sem os sapatos e as luzes de Times Square a piscar um sórdido convite mesmo do lado de fora da janela.

 

Seis dias após o desaparecimento de Rossi, partimos para Istambul do Aeroporto de Idlewild numa noite de neblina a meio da semana, mudando de avião em Frankfurt. O nosso segundo avião aterrou na manhã seguinte, e fomos conduzidos para fora em grupo com os outros passageiros. Eu já estivera na Europa Oriental duas vezes, mas essas viagens pareciam-me agora excursões a um planeta totalmente diferente daquele a Turquia, que em 1954 estava a ainda mais mundos de distância do que hoje. Num momento, estava encolhido na minha desconfortável poltrona de avião, limpando o rosto com uma toalha quente, e, no momento seguinte, estávamos os dois de pé lá fora, numa pista de aterragem igualmente quente, com odores desconhecidos que sopravam em volta, e poeira, e a écharpe esvoaçante de um árabe à nossa frente na fila — a écharpe insistia em entrar-me na boca. Helen ria-se ao meu lado, observando a minha perplexidade com tudo aquilo. No avião, ela escovara o cabelo, pusera batom nos lábios e parecia surpreendentemente repousada depois da noite incomoda a bordo. Usava um pequeno lenço atado ao pescoço; eu ainda não vira o que estava por baixo dele, e não me atreveria a pedir-lhe que o tirasse

— Bem-vindo ao grande mundo, ianque — disse ela, sorrindo. Desta vez era um sorriso verdadeiro, e não a sua habitual careta.

A minha perplexidade aumentou durante a viagem de taxi até à cidade. Não sei exatamente o que esperava de Istambul nada, talvez, já que tivera tão pouco tempo para antecipar a viagem, mas a beleza da cidade tirou-me a respiração Tinha um caráter de Mil e Uma Noites que nem todos aqueles carros a buzinar ou os homens de negócios com fatos ocidentais conseguiam anular. A primeira cidade, Constantinopla, capital de Bizâncio e primeira capital da Roma cristã, deve ter sido inacreditavelmente deslumbrante, pensei um casamento entre a riqueza de Roma e o misticismo do cristianismo primitivo. Quando encontramos quartos no velho bairro de Sultanahmet, já tinha sido atingido por visões fugazes e estonteantes de dezenas de mesquitas e minaretes, de bazares exibindo tecidos finos, e até um lampejo de Hagia Sophia, com as suas muitas cúpulas e quatro chifres enfunando-se acima da península.

Helen também nunca ali estivera e observava tudo com uma concentração silenciosa, virando-se para mim uma única vez durante a viagem de táxi para comentar como era estranho para ela conhecer a nascente creio que foi essa a palavra que usou do Império Otomano, que deixara tantos vestígios no seu país natal. Mais tarde, isso tornar-se-ia um assunto habitual nos nossos dias ali as suas observações breves e sagazes sobre tudo o que já lhe era familiar: nomes de lugares em turco, uma salada de pepino num restaurante ao ar livre, o arco em ogiva de uma janela. E também teve um efeito singular sobre mim, uma espécie de duplicação da minha experiência, de maneira que eu parecia estar a ver Istambul e a Romênia ao mesmo tempo, e, à medida que a possibilidade de podermos ter de ir à Romênia surgiu gradualmente entre nós, tive a sensação de estar a ser levado até lá por relíquias do passado vistas através dos olhos de Helen. Mas estou a desviar-me do assunto este é um episódio posterior de minha história.

O vestíbulo da nossa pensão era fresco, depois da forte claridade e da poeira das ruas. Afundei-me com alívio numa cadeira na entrada, deixando Helen reservar dois quartos no seu francês excelente mas com um sotaque muito carregado. A senhoria uma armênia que gostava de viajantes e aparentemente aprendera as suas línguas também não conhecia o nome do hotel de Rossi, que talvez já não existisse há anos.

Helen gostava de mandar, pensei, então por que não lhe permitir essa satisfação? Entre nós, havia o acordo tácito, mas firme, de que mais tarde eu pagaria a conta. Nos Estados Unidos, tinha retirado do banco a totalidade das minhas parcas economias; Rossi merecia todos os esforços que eu pudesse fazer, mesmo que fracassasse. Simplesmente teria de voltar para casa falido, se fosse caso disso. Eu sabia que Helen, uma estudante estrangeira, tinha provavelmente menos do que nada, vivia com menos do que nada. Já notara que parecia possuir apenas dois conjuntos de saia e casaco, que variava com algumas blusas de corte severo.

— Sim, ficaremos com os dois quartos separados mas contíguos — disse ela à senhora armênia, uma mulher idosa de traços finos. — O meu irmão — mon frère — ronfle terriblement.

— Ronfle? — perguntei, do vestíbulo.

— Ressona — respondeu ela, brusca. — Sabes muito bem que ressonas. Não peguei olho em Nova Iorque.

— Preguei — corrigi.

— Ótimo — disse ela. — Limita-te a ficar calado, s’il te plait.

Ressonando ou não, tivemos de dormir um pouco para descansar do cansaço da viagem antes de conseguirmos fazer qualquer outra coisa. Helen queria começar imediatamente a procurar no arquivo, mas eu insisti que descansássemos um pouco e tomássemos uma refeição. De modo que a tarde já estava a acabar quando começamos a nossa primeira investida por aquelas ruas labirínticas, vendo de relance os seus jardins e pátios cheios de cores.

Rossi não tinha mencionado o nome do arquivo nas suas cartas, e, durante a nossa conversa, chamara-lhe simplesmente um "repositório pouco conhecido de material, fundado pelo sultão Mehmed II". A sua carta sobre a sua pesquisa em Istambul acrescentava que ficava ao lado de uma mesquita do século dezessete. Além disso, sabíamos que, de uma das janelas do arquivo, ele conseguia ver Hagia Sophia, que o edifício do arquivo tinha mais que um andar e uma porta que comunicava diretamente com a rua no primeiro piso. Eu tentara encontrar informações sobre um arquivo assim na biblioteca da universidade, nos Estados Unidos, antes da nossa partida, mas sem sucesso. Achava estranho que Rossi não tivesse citado o seu nome nas cartas; não era o seu gênero deixar de fora um pormenor como esse, mas talvez não quisesse lembrar-se. Tinha todos os seus papéis comigo, na minha pasta, incluindo a lista dos documentos que encontrara lá, com aquela linha estranhamente incompleta no final: "Bibliografia, Ordem do Dragão." Procurar numa cidade inteira, num emaranhado de minaretes e cúpulas, a origem daquela misteriosa frase escrita com a letra de Rossi era, no mínimo, uma perspectiva intimidante.

A única coisa que podíamos fazer era seguir para Hagia Sophia, originalmente a grande Igreja Bizantina de Santa Sophia. E, uma vez que nos aproximamos, foi impossível não entrar. Os portões estavam abertos e o imenso santuário puxou-nos para dentro juntamente com outros turistas, como se uma onda nos levasse para dentro de uma caverna. Durante mil e quatrocentos anos, pensei, os peregrinos tinham sido atraídos para ali, exatamente como nós. Uma vez lá dentro, caminhei lentamente até ao centro e inclinei a cabeça para trás para observar aquele vasto espaço divino, com o seu famoso turbilhão de cúpulas e arcos, a sua luz celestial derramando-se em volta, os escudos redondos cobertos de caligrafia árabe nos cantos superiores, a mesquita a cobrir a igreja, a igreja a cobrir as ruínas de um mundo antigo. Os arcos curvavam-se muito, muito acima de nós, uma réplica do cosmos bizantino. Mal conseguia acreditar que estava ali. Estava completamente atordoado

Hoje, ao reviver aquele momento, vejo que tinha vivido entre os livros durante tanto tempo, no meu estreito ambiente universitário, que me tornara comprimido interiormente por eles. De repente, naquela ecoante casa de Bizâncio uma das maravilhas da História —, o meu espírito extravasou para além dos seus limites. Soube naquele instante que, acontecesse o que acontecesse, nunca mais conseguiria voltar aos meus antigos grilhões. Queria seguir a vida para cima, expandi-la para fora, do mesmo modo que aquele enorme interior se dilatava para cima e para fora. O meu coração dilatava-se com ele, como jamais fizera em todas as minhas andanças pelo mundo dos mercadores holandeses.

Olhei para Helen e vi que também estava emocionada, a cabeça inclinada para trás como a minha, de forma que os seus caracóis escuros caíam sobre a gola da camisa, o rosto normalmente reservado e cínico agora cheio de uma pálida transcendência. Estendi a mão num impulso e agarrei a sua. Ela segurou a minha mão com força, com aquela firmeza quase dura que eu já conhecia do seu aperto de mão. Noutra mulher, poderia ser um gesto de submissão ou sedução, uma entrega romântica; em Helen era um gesto tão simples e forte como o seu olhar ou a sua postura distante. Depois de um momento, pareceu tomar consciência de si mesma; largou a minha mão, mas sem embaraço, e passeamos pela igreja juntos, admirando o belo púlpito, o brilhante mármore bizantino. Tive de fazer um grande esforço para me lembrar de que poderíamos voltar a Hagia Sophia em qualquer momento durante a nossa permanência em Istambul, e que a nossa tarefa prioritária naquela cidade era encontrar o arquivo. Helen aparentemente pensou a mesma coisa, pois dirigiu-se à entrada no mesmo momento que eu, e, esquivando-nos da multidão, voltamos à rua.

— O arquivo pode ficar muito longe — observou ela. — Santa Sophia é tão grande que pode ser vista de praticamente qualquer edifício desta parte da cidade, acho eu, ou até mesmo do outro lado do Bósforo.

— Eu sei. Temos de encontrar outra pista. As cartas diziam que o arquivo ficava anexo a uma pequena mesquita do século dezessete.

— A cidade está cheia de mesquitas.

— É verdade — folheei o meu guia turístico, comprado à pressa. — Vamos começar com esta, a Grande Mesquita dos Sultões. Mehmed II e a sua corte podem ter rezado lá algumas vezes. Foi construída no fim do século quinze; e seria lógico que a sua biblioteca ficasse nas redondezas, não acha?

Helen achava que valia a pena tentar e partimos a pé novamente. Durante o percurso, mergulhei novamente no guia.

— Ouça. Aqui diz que Istambul é uma palavra bizantina que significava "a cidade". Sabe, nem mesmo os Otomanos podiam demolir Constantinopla, só mudar-lhe o nome, e mesmo assim para um nome bizantino. Aqui diz que o Império Bizantino durou de 333 a 1453. Imagine só; que longo, longo ocaso de poder.

Helen concordou.

— Não é possível pensar nesta parte do mundo sem Bizâncio — disse ela gravemente. — E, sabe, na Romênia vêem-se traços do Império Bizantino em toda a parte... em cada igreja, nos frescos, nos mosteiros, até nos rostos das pessoas, creio eu. Lá, de certa maneira, Bizâncio está mais perto dos nossos olhos do que aqui, com todo esse... sedimento... otomano por cima. — O seu rosto ficou sombrio. — A conquista de Constantinopla por Mehmed II, em 1453, foi uma das maiores tragédias da História. Derrubou estas muralhas com os seus canhões e depois enviou os seus exércitos para pilharem e matarem durante três dias. Os soldados violaram meninas e meninos nos altares das igrejas, até em Santa Sophia. Os ícones e todos os outros tesouros sagrados foram roubados para o seu ouro ser derretido e as relíquias dos santos eram atiradas às ruas para os cães roerem. Antes disso, esta foi a cidade mais bonita da História. — A mão dela fechou-se, e apoiou o punho fechado na cintura.

Eu fiquei em silêncio. A cidade ainda era linda, com as suas cores intensas e as suas cúpulas e minaretes elegantes, quaisquer que tivessem sido as atrocidades ali cometidas tanto tempo antes. Começava a compreender a razão por que um momento terrível de há quinhentos anos era tão real para Helen, mas o que tinha isso a ver com as nossas vidas, no presente! De repente, ocorreu-me que talvez eu tivesse vindo de tão longe para nada, para aquele lugar mágico com aquela mulher complicada, procurando um inglês que poderia perfeitamente estar num autocarro a caminho de Nova Iorque. Pus de lado esse pensamento e tentei provocá-la um pouco.

— Como é que sabe tanto de História? Julguei que era antropóloga.

— E sou — disse ela, séria. — Mas não se pode estudar uma cultura sem conhecer a sua história.

— Então por que não é simplesmente historiadora? Podia ter estudado as culturas da mesma maneira, parece-me.

Talvez parecia ameaçadora agora, e o seu olhar evitava o meu.

— Mas eu queria uma área que o meu pai não tivesse já dominado.

A Grande Mesquita ainda estava aberta à luz dourada do entardecer, tanto aos turistas como aos fiéis. Tentei usar o meu medíocre alemão com o guarda à entrada, um rapaz de pele cor de azeitona e cabelos encaracolados como teriam sido, fisicamente, os Bizantinos, mas ele respondeu que não havia nenhuma biblioteca lá dentro, nenhum arquivo, nada desse tipo, e que nunca tinha ouvido falar de nenhuma nas redondezas. Perguntamos se ele tinha alguma sugestão. Podíamos tentar a universidade, sugeriu. Quanto a pequenas mesquitas, havia centenas delas na cidade.

— Já é tarde demais para irmos à universidade hoje — disse Helen, pensativa. Estava a estudar o guia. — Amanhã, podemos visitá-la e pedir informações a alguém sobre arquivos que datem da época de Mehmed. Acho que será a maneira mais eficaz. Vamos ver as velhas muralhas de Constantinopla. Podemos ir a pé daqui até uma parte delas.

Acompanhei-a pelas ruas enquanto ela decidia o caminho a seguir, o guia na mão enluvada, a pequena bolsa preta no braço. Bicicletas passavam rápidas por nós, túnicas otomanas misturadas com roupas ocidentais, carros estrangeiros e carroças puxadas por cavalos misturando-se uns com os outros. Para onde quer que eu olhasse, via homens de coletes escuros e pequenos gorros feitos de croché, mulheres com blusas de cores vivas por cima de calças largas, as cabeças envoltas em lenços. Transportavam sacos de compras e cestos, trouxas de roupas, galinhas em gaiolas, pão, flores. As ruas transbordavam de vida — tal como haviam sido, pensei, há mil e seiscentos anos. Ao longo dessas ruas, imperadores romanos cristãos tinham sido transportados pelos seus séquitos, ladeados de sacerdotes, deslocando-se do palácio à igreja para receber o Santíssimo Sacramento. Haviam sido monarcas fortes, grandes patronos das artes, engenheiros, teólogos. E detestáveis, também, alguns deles com tendências para cortar aos bocados os seus cortesãos e cegar membros da família, na melhor tradição de Roma. Foi aí que a política bizantina original saiu de cena. Talvez não fosse um lugar tão estranho para um ou dois vampiros, afinal.

Helen parara diante de uma estrutura de pedra muito alta e parcialmente em ruínas, para a qual apontava. Na sua base, amontoavam-se lojas e figueiras enterravam as raízes nos seus flancos; um céu sem nuvens desmanchava-se em cobre acima das ameias.

— Veja o que sobrou das muralhas de Constantinopla — disse ela em voz baixa. — Ainda se pode ver como eram enormes quando estavam intactas. O guia diz que o mar chegava até aqui naquela época, de modo que o Imperador podia usar um barco para sair do palácio. E, ali mais à frente, aquela parede fazia parte do Hipódromo.

Ficamos ali parados, a observar a muralha, e notei que voltara a esquecer-me de Rossi durante uns bons dez minutos.

— Vamos procurar um sítio para jantar — disse eu, abruptamente. — Já passa das sete horas e hoje precisamos de nos deitar cedo. Estou determinado a encontrar o arquivo amanhã. — Helen concordou e caminhamos amigavelmente de regresso ao coração da velha cidade.

Perto da nossa pensão, descobrimos um restaurante, com o interior decorado com vasos de latão e adagas de prata, que tinha uma mesa próxima ao arco da janela da frente, uma abertura sem vidro onde nos podíamos sentar e observar as pessoas que caminhavam na rua. Enquanto esperávamos pelo nosso jantar, reparei pela primeira vez num fenômeno do mundo oriental que até ali me tinha passado despercebido: as pessoas que passavam não tinham pressa, caminhavam simplesmente. O que pareceria pressa, aqui, teria sido um passeio informal nos passeios de Nova Iorque ou de Washington. Comentei isso com Helen e ela deu uma gargalhada cínica:

— Quando não há muito dinheiro a ganhar, ninguém vai a correr atrás dele — disse.

O criado trouxe-nos grandes pedaços de pão, um prato de iogurte batido salpicado de rodelas de pepino e chá forte e perfumado em copos de vidro.

Comemos com vontade depois do cansaço do dia, e tínhamos acabado de passar para o frango assado em espetos de madeira quando um homem de bigode e cabeleira prateados, vestindo um fato cinzento de boa qualidade, entrou no restaurante e olhou em volta. Instalou-se numa mesa próxima de nós e pousou um livro ao lado do prato. Pediu a sua refeição em turco, em voz baixa, e então pareceu notar o nosso prazer com o jantar e inclinou-se na nossa direção com um sorriso amigável.

— Vejo que apreciam a nossa comida — disse num inglês excelente, embora com sotaque.

— Certamente — respondi, surpreendido. — É ótima.

— Deixem-me ver — continuou, virando um rosto belo e suave para mim. — Não são de Inglaterra. América?

— Sim disse eu. — Helen estava calada, a cortar o seu frango e a observar o nosso companheiro com desconfiança.

Ah, sim, que bom Estão de visita à nossa linda cidade?

— Sim, exatamente — concordei, desejando que Helen tentasse pelo menos parecer simpática; a sua hostilidade poderia parecer suspeita, de certa forma.

— Bem-vindos a Istambul — disse ele com um sorriso simpático, levantando o seu copo de vidro num brinde. Retribuí a saudação e ele sorriu. — Perdoem-me esta pergunta vinda de um estranho, mas o que é que lhes agrada mais na vossa visita?

— Bem, é difícil escolher. — Gostei do rosto dele; era impossível não lhe responder com sinceridade. — O que mais me impressiona é a sensação de Oriente e Ocidente misturados numa única cidade.

— Uma sábia observação, meu jovem amigo — disse ele, sério, limpando o bigode com um grande guardanapo branco. — Essa mistura é o nosso tesouro e a nossa maldição. Tenho colegas que têm passado uma vida inteira a estudar Istambul e dizem que nunca terão tempo de a explorar completamente, embora tenham vivido sempre aqui. É um lugar estupendo.

— Qual é a sua profissão? — perguntei com curiosidade, embora a atitude de Helen me desse a sensação de que estava prestes a pisar-me o pé por baixo da mesa a qualquer momento.

— Sou professor na Universidade de Istambul — disse, no mesmo tom cheio de dignidade.

— Ah, que sorte tremenda! — exclamei. — Somos... — neste ponto, o pé de Helen atingiu o meu. Usava saltos altos, como todas as mulheres daquela época, e o salto era bastante fino. — É um prazer conhecê-lo — concluí. — O que é que o senhor leciona?

— A minha especialidade é Shakespeare — respondeu o nosso novo amigo, servindo-se cuidadosamente da salada à sua frente. — Ensino literatura inglesa aos nossos estudantes dos últimos anos. São estudantes excelentes, devo dizer.

— Que maravilha — consegui dizer. — Também sou estudante universitário, mas de História, nos Estados Unidos.

— Uma área muito interessante — afirmou ele gravemente. — Encontrará muita coisa que lhe interesse em Istambul. Qual é o nome da sua universidade?

Respondi, enquanto Helen praticamente serrava o seu jantar com ar soturno.

— Uma excelente universidade. Já ouvi falar — observou o professor. Bebeu um gole do seu copo e bateu com a ponta do dedo no livro ao lado do prato. — Ora, ora! — exclamou finalmente. — Por que não vêm conhecer a nossa universidade enquanto estão em Istambul? Também é uma instituição venerável, e seria um prazer para mim mostrar-lha e à sua adorável esposa.

Notei que Helen bufou levemente e apressei-me a dizer:

— Minha irmã... minha irmã.

— Ah, perdoem-me. — O especialista em Shakespeare inclinou-se para Helen sobre a mesa. — Sou o doutor Turgut Bora, ao seu serviço.

Apresentámo-nos — ou melhor, apresentei-nos, porque Helen permanecia num silêncio obstinado. Percebi que não gostara quando usei o meu nome verdadeiro, então mais que depressa a apresentei como Smith, numa demonstração de estupidez que a fez franzir ainda mais a testa. Distribuímos apertos de mãos, e não havia outra coisa a fazer senão convidá-lo para juntar-se a nós à mesa.

Ele protestou educadamente, mas só por um momento, e então sentou-se conosco, trazendo a sua salada e o seu copo de vidro, que levantou imediatamente.

— Um brinde a ambos e bem-vindos à nossa bela cidade — entoou. — Saúde!

Até mesmo Helen sorriu levemente, embora ainda sem dizer nada.

— Peço que me perdoem a minha falta de discrição — desculpou-se Turgut, como se pressentisse a desconfiança dela. — É muito raro ter a oportunidade de praticar o meu inglês com falantes nativos. — Ele ainda não notara que ela não era uma falante nativa, embora no caso de Helen talvez nunca o viesse a notar, pensei, porque era bem possível que ela nunca lhe dissesse uma palavra.

— Como foi que se especializou em Shakespeare? — perguntei-lhe enquanto reatávamos o jantar.

— Ah! — disse Turgut delicadamente. — É uma história estranha. A minha mãe era uma mulher muito singular... brilhante... uma grande amante de línguas, além de uma engenheira iminente. — Quereria dizer eminente?, perguntei a mim mesmo — e estudou na Universidade de Roma, onde conheceu o meu pai. Ele, um homem muito agradável, era um estudioso da Renascença Italiana, com uma particular atração por...

Exatamente neste ponto muito interessante, fomos subitamente interrompidos pela aparição de uma mulher jovem que nos espreitava da rua através do arco da janela. Embora nunca tivesse visto uma cigana, a não ser em fotografias, reconheci-a como tal; tinha a pele escura e os traços pronunciados, usava cores vivas e espalhafatosas e os seus cabelos negros, cortados irregularmente, emolduravam uns olhos escuros e penetrantes. Podia ter quinze anos ou quarenta; era impossível ler a idade no seu rosto magro. Nos braços, carregava braçadas de flores vermelhas e amarelas, que aparentemente queria que comprássemos. Empurrou algumas na minha direção por cima da mesa e começou uma ladainha aguda que eu não entendia. Helen parecia enfastiada e Turgut aborrecido, mas a mulher era insistente. Eu já ia tirar a carteira, com a idéia de presentear Helen de brincadeira, é claro com um bouquet turco, quando a cigana de repente se virou para ela, apontando e falando com voz sibilante. Turgut sobressaltou-se e Helen, que normalmente não tinha medo de nada, encolheu-se.

Isto pareceu trazer Turgut de regresso à vida; soergueu-se e, com um olhar indignado, pôs-se a ralhar com a cigana. Não era difícil entender o seu tom e os seus gestos, que pediam em termos bastante incisivos que ela se retirasse. Ela fulminou-nos a todos com o olhar e desapareceu tão de repente como tinha aparecido, evaporando-se entre os outros transeuntes. Turgut sentou-se novamente, os olhos muito abertos voltados para Helen e, depois de um instante, começou a procurar alguma coisa no bolso do casaco, retirando um pequeno objeto, que colocou ao lado do prato dela. Era uma pedra azul achatada com cerca de dois centímetros e meio de comprimento, incrustada de amarelo e azul mais claro, como um olho tosco. Helen empalideceu quando a viu e estendeu a mão como que instintivamente para lhe tocar com o indicador.

— O que é que está a acontecer aqui? — Não pude evitar a irritação dos culturalmente excluídos.

— O que foi que ela disse? — Helen dirigiu-se a Turgut pela primeira vez. — Falava turco ou a língua dos ciganos? Não consegui entendê-la.

O nosso novo amigo hesitou, como se não quisesse repetir as palavras da mulher.

— Turco — murmurou. — Talvez não seja sensato que eu lhes conte. Foi muito grosseiro o que ela disse. E estranho. — Observava Helen com interesse, mas também com algo como um lampejo de medo, pensei, nos seus olhos cordiais. — Ela usou primeiro uma palavra que não vou traduzir — explicou, falando devagar. — E depois disse: "Vá-embora daqui, romena filha de lobos. Você e o seu amigo trazem a maldição do vampiro à nossa cidade."

Helen estava pálida até aos lábios, e contive o impulso de lhe pegar na mão.

— Foi uma coincidência — disse, para a confortar, o que a fez lançar-me um olhar feroz; eu estava a falar demais em frente do professor.

Turgut olhava de um para o outro.

— Isto é realmente muito estranho, amáveis companheiros — disse. — Acho que devíamos conversar mais, e sem demora.

Eu estava quase a dormir no meu compartimento do comboio, apesar do extremo interesse que a história do meu pai me despertava; ler tudo aquilo pela primeira vez, durante a noite, mantivera-me acordada até tarde, e estava cansada. Uma sensação de irrealidade caiu sobre mim na cabina ensolarada e virei-me para contemplar pela janela os bem ordenados campos holandeses que se sucediam. Quando nos aproximávamos e nos afastávamos de cada cidade, o comboio passava por pequenas hortas, verdes novamente sob um céu nublado, os quintais de milhares de pessoas que se ocupavam das suas próprias vidas, as traseiras das suas casas viradas para a linha férrea. Os campos eram maravilhosamente verdes, um verde que na Holanda começa no início da Primavera e perdura quase até que a neve caia novamente, alimentado pela umidade do ar e da terra e pela água que brilha em todas as direções em que se olhe. Já tínhamos deixado para trás uma vasta região de canais e pontes, e agora encontrávamo-nos entre vacas nas suas pastagens delimitadas com precisão. Um casal idoso e com ar digno surgiu de bicicleta numa estrada ao nosso lado e foi engolido no minuto seguinte por mais pastos. Em breve estaríamos na Bélgica, que, como eu sabia por experiência própria, se podia falhar completamente durante uma curta sesta.

Segurava as cartas com firmeza no colo, mas as minhas pálpebras estavam a começar a fechar-se. A mulher de rosto agradável, sentada na poltrona oposta, já dormitava, com uma revista nas mãos. Os meus olhos tinham-se fechado apenas por um segundo quando a porta do nosso compartimento se abriu. Ouviu-se uma voz irritada e uma figura desengonçada intrometeu-se entre mim e as minhas divagações.

— É preciso ter descaramento! Eu bem imaginei. Tenho andado à procura em todas as carruagens.

Era Barley, enxugando a testa e lançando-me um olhar ameaçador.

 

Barley estava furioso. Não podia culpá-lo, mas aquela era uma alteração extremamente inconveniente aos meus projetos e também fiquei um pouco furiosa. A raiva era ainda maior porque, à primeira pontada de irritação, seguiu-se uma onda secreta de alívio; antes de o ver, não me apercebera de como me sentia absolutamente sozinha naquele comboio, rumando para o desconhecido, talvez para a solidão ainda maior de não ser capaz de encontrar o meu pai, ou para a solidão galáctica de o perder para sempre. Barley fora um estranho para mim até há poucos dias, e agora o seu rosto era o que eu tinha de mais familiar.

Naquele momento, contudo, o rosto dele ainda estava zangado.

— Onde diabo pensa que vai? Obrigou-me a fazer uma bela perseguição! Afinal, o que é que está a tramar?

Deixei para mais tarde a resposta à última pergunta.

— Não era minha intenção preocupá-lo, Barley. Pensei que se tivesse ido embora no ferry e que nunca saberia de nada.

— Sim, e voltaria a correr para o reitor James dizendo-lhe que estava sã e salva em Amsterdã e depois recebia a notícia de que você tinha desaparecido. Ah, realmente, a minha cotação junto dele teria subido muito. — Atirou-se para a poltrona ao meu lado, cruzou os braços e as pernas compridas. Trazia a sua pequena mala e a parte da frente dos seus cabelos cor de palha estava em pé. — O que é que lhe deu?

— Por que é que estava a espiar-me? — rebati

— O ferry atrasou-se esta manhã, para reparações. — Agora, parecia não conseguir evitar um leve sorriso. — Eu estava com uma fome de leão e voltei atrás alguns quarteirões para comprar chá e uns pãezinhos, e foi aí que a vi a escapulir-se na direção contrária, lá longe na rua, mas não tinha certeza de que fosse mesmo você. Pensei que podia estar a imaginar coisas, sabe, por isso fiquei e tomei o pequeno-almoço. Mas a minha consciência falou mais alto, porque, se fosse mesmo você, eu estaria em maus lençóis. Então, corri naquela direção e vi a estação, vi-a a subir para o comboio e achei que me ia dar um ataque de coração. — Fulminou-me com os olhos outra vez. Deu-me uma trabalheira esta manhã. Tive de ir a correr comprar um bilhete e por pouco não tinha florins suficientes, ainda por cima — e revirar o comboio inteiro à sua procura. E agora já está a andar há tanto tempo que não podemos descer aqui. — Os seus olhos brilhantes e estreitos voltaram-se para a janela e depois para a pilha de envelopes no meu colo. — Importa-se de me explicar por que está no expresso de Paris e não na aula de História? O que podia eu fazer?

— Desculpe, Barley — disse humildemente. — Não queria, nem por um minuto, envolvê-lo nesta história. Realmente, pensei que se tivesse ido embora há muito tempo, e voltasse para falar com o reitor James com a consciência limpa. Não estava a procurar causar-lhe qualquer problema.

— Ah, não? — Era evidente que ainda esperava mais esclarecimentos. — Quer dizer que muito simplesmente teve vontade de ir a Paris em vez de assistir à aula de História?

— Não — comecei, a tentar ganhar tempo —, é que o meu pai mandou-me um telegrama a dizer que estava bem e que eu devia ir ter com ele a Paris.

Barley ficou calado por um momento.

— Desculpe, minha cara, mas isso não explica tudo. Se tivesse recebido um telegrama, provavelmente teria chegado ontem à noite, e eu teria sabido. E há alguma dúvida de que o seu pai não esteja "bem"? Pensei que estivesse fora em negócios. O que é isso que está a ler?

— É uma longa história — disse eu devagar — e sei que me acha estranha...

— Terrivelmente estranha — interrompeu-me Barley, aborrecido. — Mas é melhor contar-me o que está a tramar. Temos tempo, antes de descermos em Bruxelas e apanharmos o próximo comboio para Amsterdã.

— Não! — Não pretendera gritar daquela maneira. A senhora à nossa frente mexeu-se no seu sono leve e eu baixei o tom de voz. — Tenho de ir a Paris. Estou bem. Você pode descer em Bruxelas, se quiser, e voltar para Londres esta noite.

— "Você pode descer em Bruxelas", hem? Quer dizer que você não vai descer lá? Até onde é que vai este comboio?

— Não, ele pára mesmo em Paris...

Ele cruzara os braços e estava novamente à espera. Era pior que o meu pai. Talvez pior do que o professor Rossi jamais fora. Tive uma breve visão de Barley de pé na frente de uma sala de aula, os braços cruzados, os olhos passeando pelos pobres estudantes, a voz ríspida: "E o que foi afinal que levou Milton à sua terrível conclusão sobre a queda de Satã? Ou será que ninguém leu o texto?"

Engoli em seco.

— É uma longa história — repeti, mais humilde ainda.

— Temos tempo — disse Barley.

 

Helen e Turgut e eu entreolhamo-nos em volta da nossa pequena mesa de restaurante, e senti um clima de companheirismo estabelecer-se entre nós. Talvez para ganhar tempo, Helen pegou na pedra azul redonda que Turgut colocara junto do seu prato e estendeu-ma.

— Isto é um símbolo antigo — explicou. — É um talismã contra o mau-olhado.

Peguei na pedra, senti a sua pesada suavidade, aquecida pela mão dela, e voltei a pô-la em cima da mesa.

Mas Turgut não se distraía tão facilmente.

— A senhora é romena?

Ela não respondeu.

— Se for verdade, deve ter muito cuidado por aqui. — Baixou um pouco a voz. — A polícia pode estar muito interessada em si. O nosso país não mantém relações amigáveis com a Romênia.

— Eu sei — disse ela friamente.

— Mas como é que a cigana sabia? Turgut franziu a testa. — A senhora não falou com ela.

— Não sei — Helen levantou os ombros, resignada. Turgut balançou a cabeça.

— Algumas pessoas dizem que os ciganos têm o dom de uma visão especial. Nunca acreditei nisso, mas... — interrompeu-se e limpou o bigode com o guardanapo — é muito estranho que ela tenha falado de vampiros.

— É? — retorquiu Helen. — Deve ser louca. Os ciganos são todos loucos.

— Talvez, talvez Turgut — calou-se. — No entanto, é muito estranho o modo como ela falou, talvez porque essa seja a minha outra especialidade.

— Ciganos? — perguntei.

— Não, caro senhor, vampiros. — Helen e eu fitamo-lo, com cuidado para não cruzarmos os nossos olhares. — Shakespeare é o meu trabalho, mas as lendas de vampiros são o meu passatempo. Temos uma antiga tradição de vampiros aqui.

— É... uma tradição turca? — perguntei, surpreendido.

— Ah, a lenda remonta ao Egito antigo, caros colegas. Mas, aqui em Istambul, para começar, há uma história de que os mais sanguinários imperadores de Bizâncio teriam sido vampiros, de que alguns deles interpretavam a comunhão cristã como um convite para sorver o sangue dos mortais. Mas eu não acredito. Creio que apareceu mais tarde.

— Bem... — Eu não queria demonstrar um interesse excessivo, mais por medo de que Helen me atingisse novamente o pé por baixo da mesa do que por estar convencido de que Turgut estava do lado dos poderes das trevas. Mas Helen também estava a olhar para ele. — E a lenda de Drácula? Já ouviu falar dela?

— Ouvi falar? — resfolegou Turgut. Os seus olhos escuros brilharam e torceu o guardanapo num nó. — Sabiam que Drácula foi uma pessoa real, uma figura histórica? Inclusive era um seu patrício, minha senhora — e inclinou-se para Helen. — Era um senhor, um voivoda, nos Cárpatos ocidentais do século quinze. Não era uma pessoa das mais admiráveis, sabe.

Helen e eu fazíamos que sim com a cabeça não conseguíamos evitar. Pelo menos, eu não conseguia, e ela parecia estar demasiado concentrada nas palavras de Turgut para se controlar. Estava um pouco inclinada para a frente, a ouvir, e os seus olhos brilhavam com a mesma profunda escuridão dos dele. Um pouco de cor desabrochara por baixo da sua habitual palidez. Era um dos muitos momentos, observei, mesmo no meio da minha própria excitação, em que a beleza subitamente tomava conta da sua fisionomia severa, iluminando-a de dentro para fora.

— Bem... — Turgut ia-se entusiasmando com o assunto. — Não tenho a intenção de os aborrecer, mas tenho uma teoria de que Drácula é uma figura muito importante na história de Istambul. Sabe-se que, quando era ainda um rapazinho, foi mantido em cativeiro pelo sultão Mehmed II em Galípoli, e depois mais a leste, na Anatólia. Foi o seu próprio pai que o entregou ao pai de Mehmed, o sultão Murad II, como refém por causa de um tratado, de 1442 a 1448, seis longos anos. O pai de Drácula também não era nenhum cavalheiro. — Turgut deu uma risadinha. — Os soldados que vigiavam o rapaz eram mestres na arte da tortura, e ele deve ter aprendido bastante enquanto os observava. Mas, meus caros senhores — no seu fervor acadêmico, esquecera-se de que Helen pertencia a outro gênero, — tenho a minha própria teoria de que ele deixou a sua marca neles, também.

— O que quer dizer com isso? — Eu começava a respirar com dificuldade.

— Desde aquela época, mais ou menos, há registros de vampirismo em Istambul. A minha idéia que ainda não foi publicada, ai de mim, e não posso prová-la é que os Turcos estavam entre as suas primeiras vítimas, talvez os guardas, que se tornaram seus amigos. A minha teoria é que ele deixou um foco de contaminação no nosso império, que depois deve ter sido levado para dentro de Constantinopla com o Conquistador.

Ficamos a olhar para ele, sem palavras. Lembrei-me de que, de acordo com as lendas, apenas os mortos se transformavam em vampiros. Isto significaria que Vlad Drácula fora realmente morto na Ásia Menor e tornara-se um morto-vivo ainda muito jovem, ou que o interesse por libações ímpias surgira muito precocemente na sua vida, e ele despertara o mesmo noutros? Arquivei esta pergunta para a fazer a Turgut, se um dia viesse a conhecê-lo suficientemente bem.

— Ah, este meu excêntrico passatempo, sabem como é... — Turgut voltou a fazer o seu sorriso jovial. — Bem, perdoem-me por ter tomado conta da conversa. A minha mulher diz que sou insuportável. — Brindou-nos com um gesto sutil e cortês antes de beber novamente um gole do seu pequenino copo. — Mas tenho provas de uma coisa! Tenho provas de que os sultões o temiam como um vampiro! — e fez um gesto na direção do teto.

— Provas? — repeti.

— Sim! Descobri-as há alguns anos. O sultão tinha tanto interesse em Vlad Drácula que, quando Drácula morreu na Valáquia, reuniu aqui alguns dos seus documentos e objetos pessoais. Drácula matou muitos soldados turcos no seu próprio país, e o nosso sultão odiava-o por isso, mas não foi por esse motivo que ele fundou o arquivo. Não! O sultão chegou a escrever uma carta ao paxá da Valáquia, em 1478, pedindo-lhe todos os escritos que conhecesse sobre Vlad Drácula. Porquê? Porque, disse ele, estava a criar uma biblioteca para lutar contra o mal que Drácula tinha disseminado na sua cidade após a morte. Vejam bem: por que motivo teria ainda medo de Drácula, se Drácula estava morto, se não acreditasse que ele poderia voltar? Encontrei uma cópia da carta que o paxá escreveu como resposta ao sultão. — Bateu com um punho na mesa e sorriu para nós. — Encontrei, inclusivamente, a biblioteca que ele criou para combater o mal.

Helen e eu permanecemos imóveis. A coincidência era quase insuportavelmente estranha. Finalmente, arrisquei uma pergunta.

— Professor, por acaso essa biblioteca foi criada pelo sultão Mehmed II? — Desta vez, foi a vez de ele nos encarar.

— Meu Deus, o senhor é mesmo um grande historiador. Tem interesse por esse período da nossa História?

— Ah... muito — concordei. — Teríamos... — eu teria muito interesse em ver esse arquivo que encontrou.

— Mas é claro — disse. — Com grande prazer. Vou mostrar-lho. A minha mulher vai ficar boquiaberta com o fato de alguém o querer ver — deu outra risadinha. — Mas, ai de mim, o belo edifício que outrora o abrigava foi demolido para dar lugar a um serviço do Ministério das Estradas... há uns oito anos. Era um pequeno edifício adorável próximo da Mesquita Azul. Uma pena.

Senti-me empalidecer. Então era essa a razão da dificuldade em localizar o arquivo de Rossi.

— Mas os documentos...?

— Não se preocupe, meu caro senhor. Eu mesmo me certifiquei de que passassem a fazer parte do acervo da Biblioteca Nacional. Mesmo que mais ninguém os adore tanto como eu, devem ser preservados. — Uma sombra passou-lhe no rosto pela primeira vez desde que enxotara a cigana. — Ainda há muito mal a combater na nossa cidade, como em toda a parte. — Olhou de um parao outro. — Se gostam de velhas curiosidades, amanhã levá-los-ei com muito prazer ao arquivo. Conheço bem o bibliotecário que os pode autorizar a examinar a coleção.

— Muito obrigado — não ousei olhar para Helen. — E como... como é que se interessou por este assunto tão pouco comum?

— Ah, é uma longa história — replicou Turgut, muito sério. — Não me posso permitir aborrecê-los assim tanto.

— Não estamos aborrecidos, de maneira nenhuma — insisti.

— O senhor é muito amável. — Ficou em silêncio por alguns minutos, acariciando o garfo entre o polegar e o indicador.

Fora da nossa alcova de alvenaria, carros buzinavam, desviavam-se de bicicletas nas ruas cheias de gente e transeuntes iam e vinham como personagens a atravessar um palco mulheres com saias estampadas esvoaçantes, écharpes e brincos de pingentes de ouro, ou com vestidos pretos e cabelos avermelhados, homens de fato e gravata ocidentais e camisas brancas. O sopro de uma brisa suave, salgada, alcançou-nos na nossa mesa, e imaginei navios de toda a Eurásia trazendo as suas riquezas para o coração de um império primeiro cristão, depois muçulmano — e aportando a uma cidade cujas muralhas se estendiam até ao mar. A fortaleza rodeada de florestas de Vlad Drácula, com os seus bárbaros rituais de violência, parecia realmente estar muito afastada daquele mundo antigo, cosmopolita. Não era de admirar que ele e os Turcos se odiassem mutuamente, pensei. E, ainda assim, os turcos de Istambul, com os seus artefatos de ouro e latão e seda, os seus bazares e as suas livrarias e miríades de casas de oração, devem ter tido muito mais em comum com os bizantinos cristãos que conquistaram a sua terra do que com Vlad, que os desafiava da fronteira. Visto daquele centro de cultura, parecia mais um criminoso de periferia, um ogre provinciano, um rústico medieval. Lembrei-me do retrato dele que vira numa enciclopédia uma xilogravura de um rosto elegante, de bigodes, emoldurado por trajes de corte. Era um paradoxo.

Eu estava perdido nessas imagens quando Turgut falou novamente.

— Digam-me, companheiros, o que os faz interessarem-se por este tema, por Drácula? — Ele tinha posto a bola do nosso lado, com um sorriso cavalheiresco — ou seria desconfiado?

Olhei para Helen de soslaio.

— Bem, estou a estudar o século quinze na Europa como pano de fundo para a minha tese disse, — e fui imediatamente punido pela minha falta de sinceridade pela sensação de que esta mentira podia já ser verdade. Só Deus sabia quando é que eu voltaria a trabalhar na minha tese, pensei, e a última coisa de que precisava era de um assunto ainda mais amplo. — E o senhor — insisti novamente, — como foi que saltou de Shakespeare para os vampiros?

Turgut sorriu — tristemente, pareceu-me, e a sua honestidade discreta puniu-me ainda mais.

— Ah, é uma coisa muito estranha, foi há muito tempo. O senhor vê, eu estava a trabalhar no meu segundo livro sobre Shakespeare, as tragédias. Sentava-me para trabalhar todos os dias num pequeno... como se diz, compartimento? na nossa seção de Inglês na universidade. Um dia, encontrei um livro que nunca ali vira antes. — Virou-se para mim novamente com aquele sorriso triste. Nesta altura, eu já estava gelado. — Esse livro não era igual a nenhum outro, um livro em branco, muito antigo, apenas com um dragão no meio e uma palavra DRÁCULA. Nunca tinha ouvido falar de Drácula antes. Mas a imagem era muito estranha e muito forte. Então pensei, preciso de saber o que é isto. E tentei saber tudo sobre ele.

Helen tinha-se petrificado à minha frente, mas agora agitava-se, como se estivesse ansiosa.

— Tudo? — repetiu suavemente.

 

Barley e eu estávamos quase a chegar a Bruxelas. Eu levara muito tempo embora tivesse a impressão de que tinham sido só alguns minutos — para contar a Barley, do modo mais simples e claro possível, o que o meu pai me contara sobre as suas experiências na faculdade. Barley olhava fixamente para além de mim, pela janela, para as pequenas casas e jardins belgas, que pareciam tristes sob uma cortina de nuvens. Víamos aqui e ali um feixe de luz do sol a destacar a espiral de uma igreja ou uma velha chaminé industrial à medida que nos aproximávamos de Bruxelas. A senhora holandesa ressonava baixinho, a revista no chão, aos seus pés.

Eu estava prestes a iniciar uma descrição da recente inquietação do meu pai, da sua palidez malsã e do seu estranho comportamento, quando Barley se virou para mim.

— Isso é terrivelmente bizarro — disse. — Não sei por que é que hei-de acreditar nessa história louca, mas acredito. Quero acreditar, pelo menos. — Lembrei-me de que nunca o vira sério; apenas divertido ou, momentaneamente, irritado. Os seus olhos, azuis como lascas de céu, estreitaram-se ainda mais. — O engraçado é que isso tudo me lembra alguma coisa.

— O quê? — Eu estava quase a desmaiar de alívio pelo fato de ele parecer aceitar a minha história

— Bem, isso é que é estranho. Não consigo lembrar-me. Tem alguma coisa a ver com o reitor James. Mas o que será?

 

Barley estava pensativo, os cotovelos nos joelhos, o queixo nas mãos de dedos compridos, tentando, em vão, lembrar-se de uma coisa sobre o reitor James. Finalmente, olhou para mim, e fui surpreendida pela beleza do seu rosto rosado e comprido quando estava sério. Sem aquela jocosidade enervante, poderia ter sido o rosto de um anjo, ou talvez de um monge num claustro na Nortúmbria. Percebi estas comparações vagamente; só mais tarde se me revelaram.

— Bem — disse ele, por fim —, do meu ponto de vista, há duas possibilidades. Ou você é maluca, e nesse caso tenho de ficar consigo e levá-la de volta para casa em segurança, ou não é maluca, e nesse caso tem um monte de problemas pela frente e tenho de ficar consigo de qualquer maneira. Eu devia assistir a uma aula amanhã, mas vou pensar na maneira de resolver isso.

Suspirou e inclinou-se de novo na poltrona.

— Tenho a impressão de que Paris não é o seu destino final. Pode informar-me para onde vai depois de Paris?

 

Se o professor Bora tivesse dado uma bofetada a cada um de nós naquela agradável mesa de restaurante em Istambul, o impacto não seria maior do que nos ter contado sobre o seu "excêntrico passatempo". Foi uma bofetada salutar, no entanto; agora estávamos ambos bem acordados. O meu jet lag desaparecera, e com ele a minha sensação de derrota por não encontrar mais informações sobre a tumba de Drácula. Viéramos ao lugar certo. Talvez, aqui o meu coração deu um salto, e não com uma mera esperança, talvez a tumba de Drácula estivesse localizada na própria Turquia.

Nunca tinha pensado nisso, mas agora achava que podia fazer sentido. Afinal, Rossi fora severamente repreendido ali por um dos mensageiros de Drácula. Os mortos-vivos estariam a proteger não só o arquivo, mas também um túmulo? A forte presença de vampiros, à qual Turgut se referira havia pouco, seria um legado da ininterrupta ocupação desta cidade por Drácula? Recapitulei o que já sabia sobre a carreira e a lenda de Vlad, o Empalador. Se fora mantido prisioneiro aqui na sua juventude, não poderia ter voltado depois da morte ao local da sua educação precoce sobre técnicas de tortura. Poderia ter uma espécie de nostalgia por aquele lugar, como as pessoas que regressam à terra onde cresceram quando se reformam. E, se o romance de Stoker fosse considerado fiável na sua descrição dos hábitos de um vampiro, o demônio poderia certamente mudar-se de um lugar para o outro, fazendo o seu túmulo onde bem entendesse, no romance, ele tinha viajado no seu caixão até à Inglaterra Por que não teria vindo a Istambul de alguma maneira, movimentando-se à noite, depois do seu passamento, como um mortal qualquer, no coração do império cujos exércitos lhe tinham causado a morte? No fim de contas, teria sido uma vingança adequada contra os Otomanos.

Entretanto, ainda não podia fazer nenhuma dessas perguntas a Turgut Acabávamos de conhecer o homem e eu ainda me perguntava se podíamos confiar nele. Parecia sincero, e, no entanto, o seu aparecimento à nossa mesa com o seu "passatempo" era quase demasiado estranho para se sustentar. Naquele momento, conversava com Helen, e ela, finalmente, estava a falar com ele.

— Não, minha cara senhora, não sei realmente "tudo" sobre a história de Drácula. Na verdade, os meus conhecimentos estão longe de ser arrebatadores. Mas suspeito de que ele tenha tido uma grande influência sobre a nossa cidade, uma influência para o mal, e é isso que me faz continuar a pesquisar E os senhores, meus amigos? — Ele olhou com ar astuto de Helen para mim. — Os senhores parecem muito interessados no meu assunto. Sobre o que é exatamente a sua tese, meu jovem amigo?

— O mercantilismo holandês no século dezessete — respondi, de modo pouco convincente. Pelo menos, foi o que me pareceu, e começava a questionar-me se aquele não teria sido, desde o início, um projeto demasiado ameno. Os mercadores holandeses, afinal, não vagueiam pelos séculos, atacando pessoas e roubando-lhes as suas almas imortais.

— Ah, — achei que Turgut parecia intrigado. — Bem... — disse por fim, — se o senhor também está interessado na história de Istambul, pode vir comigo amanhã de manhã ver a coleção do sultão Mehmed. Foi um velho tirano admirável, colecionava muitas coisas interessantes, além dos meus documentos preferidos. Mas agora tenho de voltar para casa, para a minha esposa, que deve estar num estado de grande inquietação, estou tão atrasado. — Sorriu, exultante, como se a expectativa de comprovar o estado da esposa fosse o mais agradável de tudo. — Certamente ela também quererá que os senhores venham jantar conosco amanhã, assim como eu o desejo.

Ponderei a questão por um momento; as esposas turcas ainda deviam ser tão submissas como as dos lendários haréns. Ou ele só queria dizer que a esposa era tão hospitaleira como ele? Esperei pelo resmungo de Helen, mas ela manteve-se calada, observando-nos aos dois.

— Então, meus amigos — Turgut preparava-se para partir. Tirou algum dinheiro do nada, ou foi o que me pareceu, e enfiou-o debaixo da borda do prato. Então, brindou-nos uma última vez e bebeu o que restava do seu chá. — Adieu, até amanhã.

— Onde é que nos encontramos? — perguntei.

— Oh, virei aqui buscá-los. Digamos, precisamente aqui, às dez da manhã? Ótimo. Desejo-lhes uma noite agradável. — Inclinou-se e foi-se embora.

Logo a seguir, notei que praticamente não tocara no seu jantar, pagara a nossa conta juntamente com a dele e deixara-nos o talismã contra o mau-olhado, que reluzia no centro da toalha branca da mesa.

Naquela noite, dormi como um morto, como se diz, depois do cansaço da viagem e do passeio turístico. Quando os rumores da cidade me despertaram, já eram seis e meia. O meu pequeno quarto estava na penumbra. No primeiro momento de consciência, olhei em volta para as paredes caiadas, os móveis simples e com um aspecto vagamente estrangeiro, o brilho do espelho sobre o lavatório, e senti uma singular confusão mental. Lembrava-me da estada de Rossi em Istambul, da sua hospedagem na outra pensão onde teria sido? Onde lhe tinham vasculhado as malas e roubado os seus esboços dos preciosos mapas e parecia lembrar-me de tudo como se eu mesmo tivesse lá estado, ou estivesse a viver a cena agora. Após um instante, notei que tudo estava em paz e em ordem no quarto; a minha mala repousava, tal como a deixara, sobre a escrivaninha, e, mais importante, a minha pasta, com todo o seu precioso conteúdo, permanecia intacta junto da cama, onde eu podia esticar um braço e tocar-lhe. Mesmo durante o sono, eu tivera de algum modo a consciência da presença daquele livro antigo e silencioso repousando dentro dela.

Ouvia Helen na nossa casa de banho em comum — pelo menos, esperava que fosse Helen e não outro hóspede qualquer, já que nos tinham prometido privacidade a abrir a torneira e a andar de um lado para o outro. Depois de um momento, apercebi-me de que poderia parecer que eu a estava a espiar, e envergonhei-me. Para disfarçar essa sensação, levantei-me rapidamente, despejei água no lavatório do meu quarto e comecei a lavar a cara e os braços. No espelho, o meu rosto e como eu parecia jovem, mesmo para mim próprio, naqueles dias, minha querida filha, não consigo transmitir-te quanto — era o mesmo de sempre. Tinha os olhos lacrimejantes depois de tantas viagens, mas alerta. Dei brilho ao cabelo com um pouco da onipresente brilhantina que se usava na época, penteei-o para trás, liso e lustroso, e vesti as calças e o casaco amarrotados, com uma camisa lavada, embora também amarrotada, e uma gravata. Enquanto ajeitava a gravata ao espelho, os sons da casa de banho desapareceram, e, depois de alguns momentos, peguei na máquina de barbear e forcei-me a bater com força na porta da casa de banho. Como não houve resposta, entrei. O perfume de Helen, uma água-de-colônia acre e com cheiro a barato, que talvez tivesse trazido da Romênia, perdurava no pequeno aposento. Eu já estava quase a gostar dele.

O pequeno-almoço no restaurante consistiu num café forte muito forte servido num bule de cobre de cabo comprido, pão, queijo salgado e azeitonas, acompanhado por um jornal que não éramos capazes de ler. Helen comeu e bebeu em silêncio e eu estava pensativo, sentindo o cheiro do cigarro que chegava até à nossa mesa, vindo do canto onde estavam os criados. A sala estava vazia naquela manhã, a exceção de alguma luz do sol que entrava pelas janelas em arco, mas o burburinho do tráfego matinal lá fora enchia-o de sons agradáveis e de visões momentâneas de pessoas que passavam, vestidas para trabalhar, ou transportando cestos de produtos do mercado. Instintivamente, tínhamos escolhido uma mesa o mais longe possível das janelas.

— O professor só vai chegar daqui a duas horas — observou Helen, enchendo o seu café de açúcar e mexendo-o vigorosamente. — O que vamos fazer?

— Estava a pensar em ir outra vez a pé até Hagia Sophia — disse eu. — Quero ver aquele lugar novamente.

— Por que não? — murmurou ela. — Não me importo de fazer turismo enquanto estivermos aqui. — Parecia descansada e notei que vestira uma blusa lavada azul-clara com o seu conjunto preto, a primeira cor que eu a via usar, uma exceção ao seu uniforme preto e branco. Como sempre, trazia o pequeno lenço a tapar-lhe o pescoço no lugar onde o bibliotecário lhe mordera O rosto exibia uma expressão irônica e desconfiada, mas eu tinha a sensação sem nada que a comprovasse de que ela estava a habituar-se à minha presença do outro lado da mesa, quase ao ponto de abandonar uma parte da sua ferocidade.

Quando finalmente saímos, as ruas estavam cheias de gente e de carros, e vagueamos no meio deles pelo coração da cidade velha até entrarmos num dos bazares. Todas as ruelas estavam cheias de compradores mulheres idosas vestidas de preto apalpando arco-íris de finos tecidos; mulheres jovens com trajes de cores vivas, as cabeças cobertas, regateando os preços de frutos que eu nunca tinha visto antes ou a examinar bandejas de jóias de ouro, velhos com gorros de crochê sobre os cabelos brancos ou as cabeças calvas, lendo jornais ou inclinando-se para ver de perto filas de cachimbos de madeira trabalhada. Alguns seguravam colares de orações. Para onde quer que olhasse, via rostos bonitos, cheios de argúcia, de pele cor de azeitona e traços vincados, mãos que gesticulavam, dedos que apontavam, lampejos de sorrisos que às vezes deixavam entrever um dente de ouro. Em volta, ouvia o clamor das vozes enfáticas e confiantes dos vendedores, às vezes uma risada.

Helen exibia o seu sorriso fixo e invertido, com os cantos da boca virados para baixo, olhando em volta para aqueles estranhos como se lhe agradassem, mas também como se pensasse que os percebia bem de mais. Para mim, a cena era deliciosa, mas também sentia uma certa desconfiança, o que era uma sensação nova para mim, que datava apenas da semana anterior e que ultimamente me acompanhava em qualquer lugar público. Era uma procura no meio da multidão, um olhar por cima do ombro, o impulso de sondar os rostos à procura de boas ou más intenções e talvez também a impressão de estar a ser observado. Era uma sensação desagradável, uma nota dissonante na harmonia de todas aquelas conversas animadas à nossa volta, e conjecturei, não pela primeira vez, se em parte não teria sido contagiado pela atitude cínica de Helen em relação à espécie humana. Também me perguntava se essa sua atitude seria intrínseca ou apenas o resultado da vida que tivera num Estado totalitário.

Fossem quais fossem as suas origens, sentia a minha própria paranóia como uma afronta ao meu eu anterior. Uma semana antes, era um vulgar estudante universitário americano, contente no meu descontentamento em relação ao meu trabalho, saboreando lá no fundo a sensação de prosperidade e do elevado nível moral da minha cultura, embora ao mesmo tempo fingisse questionar isso e tudo o resto. Agora a Guerra Fria era real para mim na pessoa de Helen e no seu olhar desiludido, e uma guerra fria mais antiga fez-se sentir nas minhas próprias veias. Pensei em Rossi, deambulando por aquelas ruas no Verão de 1930, antes que a sua aventura no arquivo o fizesse sair precipitadamente de Istambul, e também ele era real para mim não apenas o Rossi que eu conhecera como também o jovem Rossi das suas cartas.

Helen bateu-me ao de leve no braço enquanto caminhávamos, e apontou com a cabeça na direção de dois velhos sentados a uma mesinha de madeira enfiada num canto próximo de uma barraca.

— Olhe, ali está a sua teoria do lazer, ao vivo — disse. — São nove da manhã e eles já estão a jogar xadrez. É estranho que não estejam a jogar tabla, que é o jogo preferido nesta parte do mundo. Mas acredito que neste caso seja xadrez.

De fato, os dois homens estavam a posicionar as suas peças num tabuleiro de madeira aparentemente muito usado. Preto contra marfim, cavalos e torres protegiam os seus bispos, os peões frente a frente em formação de batalha — a mesma disposição de todas as guerras do mundo, refleti, parando para observar.

— Sabe jogar xadrez? — perguntou Helen.

— Evidentemente — respondi, quase indignado. — Costumava jogar com o meu pai.

— Ah — o tom era amargo, e lembrei-me, tarde demais, que ela não tivera esse tipo de lições na infância, e que jogava a sua própria versão de xadrez com o seu pai com a imagem que fazia dele, pelo menos. Mas parecia estar concentrada em reflexões históricas.

— O xadrez não é ocidental, sabe, é um jogo muito antigo, originário da India: shahmat, em persa. Xeque-mate, acho que é assim que se diz. Shah quer dizer rei. Uma batalha entre reis.

Fiquei a observar os dois homens a começarem a partida, as mãos enrugadas escolhendo os primeiros guerreiros. Diziam piadas um ao outro provavelmente eram velhos amigos. Por mim, teria ficado ali o dia inteiro, a assistir, mas Helen afastou-se, impacientemente, e eu segui-a. Quando passamos, os homens pareceram notar a nossa presença pela primeira vez, olhando-nos zombeteiramente por um momento. Devemos ter ar de estrangeiros, concluí, embora o rosto de Helen combinasse de modo admirável com as fisionomias à nossa volta. Imaginei quanto tempo duraria o jogo — a manhã inteira, quem sabe e qual deles ganharia desta vez.

A barraca ao lado deles estava justamente a abrir. Na verdade, era um telheiro debaixo de uma venerável figueira na orla do bazar. Um rapaz de camisa branca e calças escuras puxava vigorosamente as portas e cortinas da barraca, montando mesas do lado de fora e expondo as suas mercadorias livros. Havia livros empilhados sobre os balcões de madeira, livros caídos de caixotes no chão e livros revestindo as prateleiras do lado de dentro.

Aproximei-me avidamente, e o jovem proprietário saudou-me com a cabeça e sorriu, como se reconhecesse um bibliófilo fosse qual fosse a sua nacionalidade. Helen aproximou-se mais devagar, e ficamos ali a folhear volumes em talvez uma dezena de línguas. Muitos eram em árabe, ou em turco moderno; alguns escritos com o alfabeto grego ou o cirílico; outros, em inglês, francês, alemão, italiano. Encontrei um tomo em hebraico e toda uma prateleira de clássicos em latim. A maioria eram edições baratas, mal impressas e mal acabadas, as capas de tecido já puídas de tanto serem manuseadas. Havia livros de bolso novos, com cenas lúgubres nas capas, e volumes que pareciam muito antigos, especialmente algumas das obras em árabe.

— Os Bizantinos também gostavam de livros — murmurou Helen, folheando o que parecia ser uma recolha de poesia alemã. — Talvez comprassem livros exatamente neste lugar.

O rapaz terminara os seus preparativos para o dia de trabalho e veio junto de nós para nos cumprimentar.

— Falam Alemão? Inglês?

— Inglês — disse eu rapidamente, já que Helen não respondera.

— Tenho livros em inglês — disse ele com um sorriso agradável. — No problem. — Tinha um rosto magro e expressivo, com grandes olhos esverdeados e um longo nariz. — Também jornais de Londres, Nova Iorque.

Agradeci-lhe e perguntei-lhe se trabalhava com livros antigos.

— Sim, muito antigos — Entregou-me uma edição do século dezenove de Muito Barulho por Nada, de má qualidade, encadernado em tecido gasto. Tentei imaginar de que biblioteca teria vindo aquele volume e como teria feito a sua viagem da burguesa Manchester, digamos — até esta encruzilhada do mundo antigo. Folheei as páginas, para ser educado, e devolvi-o.

— Não bastante antigo? — perguntou, sorrindo.

Helen estivera a espreitar por cima do meu ombro e agora olhava descaradamente para o relógio. Afinal, nem sequer tínhamos chegado perto de Hagia Sophia.

— Pois é, temos de ir — disse eu.

O jovem vendedor de livros inclinou-se para nós com cortesia, com o livro na mão.

Olhei para ele por um segundo, perturbado por algo que era quase um reconhecimento, mas ele virou-se e já estava a atender um novo cliente, um homem idoso que poderia ter formado um trio com os jogadores de xadrez. Helen empurrou-me ao de leve o cotovelo com o seu e deixamos a loja, andando com mais determinação em torno do bazar, de regresso à zona da nossa pensão.

O pequeno restaurante estava vazio quando entramos, mas alguns minutos depois Turgut apareceu à porta, saudando-nos e sorrindo, e perguntou-nos como tínhamos dormido. Naquela manhã, usava um fato de lã cor de azeitona, apesar do calor cada vez maior, e parecia cheio de uma agitação contida. Os seus cabelos escuros e encaracolados estavam penteados para trás, os sapatos brilhavam de tão engraxados e movimentava-se rapidamente, apressando-nos a sair do restaurante. Notei mais uma vez que era uma pessoa de grande energia, e fiquei aliviado por ter um guia assim. A agitação também tomava conta de mim. Os documentos de Rossi estavam em segurança na minha pasta, e talvez, nas próximas horas, eu chegasse mais perto do seu paradeiro. Em breve, pelo menos, talvez pudesse comparar as suas cópias dos documentos com os originais que ele examinara tantos anos antes.

Enquanto seguíamos Turgut pelas ruas, ele explicou-nos que o arquivo do sultão Mehmed não ficava no edifício principal da Biblioteca Nacional, embora estivesse sob a proteção do Estado. Encontrava-se agora num anexo da biblioteca que antes fora uma madrassa, uma escola islâmica tradicional. Ataturk fechara essas escolas no seu processo de secularização do país, e a escola em questão continha atualmente livros raros e antigos sobre a história do Império, pertencentes à Biblioteca Nacional. Encontraríamos a coleção do sultão Mehmed entre outras dos séculos da expansão otomana.

O anexo à biblioteca era um edifício pequeno e elegante. As portas que davam para a rua, e pelas quais entramos, eram de madeira com aplicações de bronze. As janelas estavam cobertas com arabescos de mármore; a luz do sol filtrava-se através delas, formando belas formas geométricas e adornando o piso da entrada imersa em penumbra com estrelas cadentes e octógonos. Turgut mostrou-nos onde devíamos assinar o registro, que estava em cima de um balcão na entrada (notei que Helen assinou com um rabisco ilegível), e ele também assinou, com um floreado.

Seguimos então para o único salão do anexo, um espaço amplo e silencioso sob uma cúpula decorada com mosaicos verdes e brancos. Mesas de madeira polida estendiam-se ao comprido da sala, e já ali estavam três ou quatro pesquisadores a trabalhar. As paredes estavam cheias não só de livros, mas também de gavetas e caixas de madeira, e do teto pendiam delicados candeeiros de bronze em forma de cúpula, equipados com lâmpadas elétricas. O bibliotecário, um homem esguio de uns cinquenta anos com um colar de orações na cintura, abandonou o seu trabalho e veio na nossa direção para apertar ambas as mãos de Turgut nas suas. Conversaram por um momento da parte de Turgut, captei o nome da nossa universidade — e então o bibliotecário dirigiu-se-nos em turco, sorrindo e inclinando-se.

— Este é Mr. Erozan. Ele dá-vos as boas-vindas à coleção — disse-nos Turgut, com visível satisfação. — Diz que gostaria de prestar-lhes serviços.

Encolhi-me, involuntariamente, e Helen fez um sorriso afetado.

— Ele vai preparar imediatamente para os senhores os documentos do sultão Mehmed sobre a Ordem do Dragão. Mas, primeiro, devemos sentar-nos confortavelmente aqui e esperar por ele.

Sentamo-nos a uma das mesas, tendo o cuidado de nos mantermos longe dos outros pesquisadores. Eles olharam-nos com uma curiosidade passageira e depois voltaram ao seu trabalho. Passado um momento, Mr. Erozan voltou, transportando uma grande caixa de madeira com um cadeado na frente e palavras escritas em árabe entalhadas na tampa.

— O que diz aqui? — perguntei ao professor.

— Ah — tocou na parte superior da tampa com as pontas dos dedos. — Diz, "Aqui há mal" hmm... "Aqui, o mal está contido... reside o mal. Trancai-o com as chaves do sagrado Corão."

O meu coração deu um salto; as frases eram impressionantemente semelhantes às que Rossi relatara ter lido na margem do misterioso mapa e ter pronunciado em voz alta no velho arquivo onde, em tempos, a caixa estivera guardada. Não mencionara a caixa nas suas cartas, mas talvez nunca a tivesse visto, se um bibliotecário lhe tivesse trazido apenas os documentos. Ou talvez tivessem sido colocados na caixa depois de Rossi ter estado lá.

— Quantos anos tem a caixa? É muito antiga? — perguntei a Turgut. Ele abanou a cabeça.

— Não sei, e o meu amigo aqui também não sabe. Como é de madeira, acho pouco provável que seja dos tempos de Mehmed. O meu amigo disse-me uma vez — sorriu na direção de Mr. Erozan, e o homem retribuiu-lhe o sorriso, sem compreender — que estes documentos foram colocados na caixa em 1930, para os manter em segurança. Ele sabe isso porque discutiu o assunto com o anterior bibliotecário. É muito meticuloso, o meu amigo.

1930! Helen e eu entreolhamo-nos. Provavelmente, quando Rossi tinha escrito as suas cartas, Dezembro de 1930 para quem quer que viesse um dia a recebê-las, os documentos que ele examinara já tinham sido colocados naquela caixa, por motivos de segurança. Uma vulgar caixa de madeira poderia ter evitado os ratos e a umidade, mas o que teria levado o bibliotecário daquele tempo a trancar os documentos da Ordem do Dragão numa caixa ornamentada com um aviso sagrado?

O amigo de Turgut segurava agora um molho de chaves e estava a meter uma delas no cadeado. Quase ri, lembrando-me do nosso moderno catálogo de fichas, o acesso a milhares de livros raros no conjunto de bibliotecas da universidade. Nunca me imaginara a fazer um tipo de pesquisa que precisasse de uma chave antiga. A chave rodou na fechadura.

— Cá estamos — murmurou Turgut, e o bibliotecário afastou-se. Turgut sorriu-nos com uma certa tristeza, pensei e levantou a tampa.

 

No comboio, Barley tinha acabado de ler em silêncio as primeiras duas cartas do meu pai. Angustiava-me vê-las ali abertas nas mãos dele, mas sabia que Barley confiaria na voz respeitável do meu pai, enquanto na minha, mais fraca, só acreditaria parcialmente.

— Já esteve em Paris? — perguntei, em parte para disfarçar a minha emoção.

— Acho que sim — disse Barley, indignado. — Estudei lá durante um ano, antes de ir para a universidade. A minha mãe queria que eu aprendesse melhor francês.

Eu ansiava por lhe perguntar sobre a sua mãe e por que razão exigia do filho essa agradável aptidão, e também como era ter mãe, mas Barley já estava novamente mergulhado na carta.

— O seu pai deve ser um professor fantástico — disse ele. — Isto é muito mais interessante do que o que aprendemos em Oxford.

Aquela frase abriu-me um novo campo de exploração. As aulas em Oxford seriam aborrecidas? Seria possível? Barley estava cheio de coisas que eu queria saber, um mensageiro vindo de um mundo tão vasto que eu nem sequer conseguia começar a imaginar. Fomos interrompidos por um revisor, que passou apressado pela porta do nosso compartimento e seguiu pelo corredor.

— Bruxelas! — gritava.

O comboio já estava a reduzir a velocidade e, poucos minutos depois, víamos pela janela a estação de Bruxelas; os funcionários da alfândega já estavam a entrar. Lá fora, pessoas corriam para apanhar os seus comboios e os pombos debicavam migalhas croissants? Pão? Doces? na plataforma.

Talvez porque secretamente gostava muito de pombos, observava atenta a multidão e, de repente, reparei numa figura que não se movia. Uma mulher, alta e vestida com um casaco preto comprido, encontrava-se parada de pé na plataforma. Uma écharpe preta envolvia-lhe o cabelo, emoldurando um rosto branco. Estava um pouco longe demais para lhe poder ver as feições com nitidez, mas vi de relance uns olhos escuros e uma boca quase anormalmente vermelha um batom de cor viva, talvez. Havia algo de estranho no estilo das suas roupas; no meio das mini-saias e das horríveis botas de solas grossas da época, ela usava finos sapatos pretos de salto alto.

Entretanto, o que primeiro me chamou a atenção, e a manteve por um instante antes que o nosso comboio se pusesse de novo em movimento, foi a sua atitude de alerta. Esquadrinhava o nosso comboio de uma ponta à outra. Instintivamente, afastei-me da janela e Barley olhou-me, numa interrogação muda. Aparentemente, a mulher não nos vira, embora tivesse dado um passo meio hesitante na nossa direção. E então pareceu mudar de idéias e voltou-se para examinar outro comboio que tinha acabado de chegar, do outro lado da plataforma. Alguma coisa nas suas costas direitas, severas, fez com que eu não tirasse os olhos dela até o comboio sair da estação e ela desaparecer no meio da multidão, como se nunca tivesse existido.

 

Desta vez, fui eu que adormeci, em vez de Barley. Quando acordei, dei por mim encostada a ele, a minha cabeça apoiada num ombro da sua camisola azul-marinho. Estava a olhar pela janela, com as cartas do meu pai, novamente arrumadas nos respectivos envelopes, no colo, as pernas cruzadas, o rosto — não muito acima do meu virado para a paisagem que passava, que eu sabia que naquela altura devia ser a de uma área rural da França. Abri os olhos e vi o seu queixo ossudo. Olhando para baixo, vi as mãos de Barley frouxamente entrelaçadas sobre as cartas. Notei, pela primeira vez, que ele roía as unhas, como eu também sempre fizera. Fechei os olhos novamente, fingindo dormir, porque o calor do seu ombro era reconfortante. Então, tive medo de que ele não gostasse que eu me apoiasse nele, ou de lhe ter babado a camisola durante o meu sono pateta, e endireitei-me rapidamente. Barley virou-se para mim, os olhos cheios de pensamentos longínquos, ou quem sabe apenas ainda imersos nos campos para lá da janela, já não planos, mas ondulando em colinas, uma modesta região rural francesa. Depois de um instante, sorriu.

 

Quando a tampa da caixa de segredos do sultão Mehmed foi aberta, emanou dela um cheiro que eu conhecia bem. Era o cheiro de documentos muito antigos, de pergaminho, de pó e de séculos, de páginas que o tempo há muito começara a corromper. Era o mesmo cheiro do pequeno livro em branco com o dragão no centro, o meu livro. Nunca tivera coragem de o cheirar diretamente, como em segredo fizera com alguns dos outros volumes antigos que tinha manuseado — tinha medo, acho eu, que pudesse haver algum traço repugnante no seu odor, ou, pior, algum poder no cheiro, uma droga maligna que não queria inalar.

Turgut retirava cuidadosamente os documentos da caixa. Cada um deles fora envolvido num papel macio amarelado pelo tempo, e variavam em tamanho e em forma. Espalhou-os cuidadosamente em cima da mesa à nossa frente.

— Eu mesmo vou mostrar-lhes estes papéis, e dizer-lhes o que sei sobre eles — disse. — Depois, talvez queiram sentar-se e refletir sobre eles, não acham?

Sim, talvez quiséssemos — fiz que sim com a cabeça, e ele desembrulhou um dos rolos, desenrolando-o delicadamente, sob o nosso olhar atento. Era de pergaminho, preso a finas hastes de madeira, muito diferente das grandes páginas planas e dos livros comerciais encadernados a que estava habituado nas minhas pesquisas sobre o mundo de Rembrandt. As bordas do pergaminho estavam decoradas com uma margem colorida de padrões geométricos, em dourado, azul-escuro e carmim. O texto manuscrito, para minha decepção, fora redigido no alfabeto árabe. Não sei bem do que estava à espera; este documento viera do coração de um império que falava a língua otomana e a escrevia em caracteres árabes, recorrendo ao Grego apenas para intimidar os Bizantinos, ou ao Latim para ameaçar os portões de Viena

Turgut leu-me a perplexidade no rosto e apressou-se a explicar.

— Este, meus amigos, é um registro das despesas de uma guerra contra a Ordem do Dragão. Foi escrito numa cidade no lado setentrional do Danúbio por um burocrata que ali estava a gastar o dinheiro do sultão — é um relatório de negócios, por outras palavras. O pai de Drácula, Vlad Dracul, ficou muito caro ao Império Otomano nos meados do século quinze, sabem. Este burocrata encomendou armaduras e, como se diz? Cimitarras, para trezentos homens a fim de proteger a fronteira dos Cárpatos Ocidentais, para que as populações locais não se rebelassem, e também comprou cavalos para eles. — Aqui apontou para o final do rolo com um dedo comprido — aqui diz que Vlad Dracul foi uma despesa... e um.. uma terrível maçada e que lhes custou mais dinheiro do que o paxá queria gastar. O paxá lamenta muito, está consternado e deseja vida longa ao Incomparável, em nome de Alá.

Helen e eu entreolhamo-nos e creio ter lido nos seus olhos algum do temor que eu próprio estava a sentir. Aquele pedaço de história era tão real como o pavimento de ladrilhos debaixo dos nossos pés ou o tampo de madeira da mesa sob os nossos dedos. As pessoas a quem aquilo acontecera tinham realmente vivido e respirado e sentido e pensado e depois morrido, como nós como um dia aconteceria conosco. Desviei o olhar, incapaz de acompanhar o pulsar de emoções no seu rosto vincado.

Turgut enrolara de novo o pergaminho e estava a abrir um segundo embrulho, que continha mais dois rolos.

— Esta é uma carta do paxá da Valáquia, na qual promete enviar ao sultão Mehmed todos os documentos que encontrar sobre a Ordem do Dragão. E este é um relatório do comércio ao longo do Danúbio em 1461, não longe da área controlada pela Ordem do Dragão. As fronteiras dessa zona não eram estáveis, os senhores compreendem — mudavam continuamente. O relatório registra as sedas, as especiarias e os cavalos que o paxá pede em troca da lã dos pastores dos seus domínios.

Os dois rolos seguintes eram relatórios semelhantes. Então, Turgut desenrolou um embrulho menor, que continha um esboço em pergaminho plano.

— Um mapa — disse. Involuntariamente, fiz um movimento para pegar na minha pasta, que continha os esboços e as anotações de Rossi, mas Helen abanou a cabeça quase imperceptivelmente. Percebi o que queria dizer — não conhecíamos Turgut suficientemente bem para revelarmos todos os nossos segredos. Ainda não, corrigi-me mentalmente; afinal de contas, ele parecia estar a mostrar-nos tudo aquilo de que dispunha.

— Nunca consegui perceber o que é este mapa, meus amigos — disse Turgut. Havia tristeza na sua voz, e afagou o bigode com um gesto pensativo. Olhei mais de perto o pergaminho e reconheci com emoção uma versão esmerada, embora desbotada, do primeiro mapa que Rossi copiara, os extensos semicírculos de montanhas, o rio sinuoso a norte delas.

— Não se parece com nenhuma região que eu tenha estudado, e não há modo de saber qual é a... como se diz?... a escala do mapa, percebem? — E colocou-o de lado. — Este aqui é outro mapa, que parece ser uma visão mais pormenorizada desta área do primeiro mapa.

Eu sabia o que era — já tinha visto tudo aquilo, e a minha agitação aumentou.

— Acredito que estas sejam as montanhas mostradas na parte oeste do primeiro mapa, não? — Suspirou. — Mas não há nenhuma outra informação, e os senhores podem ver que não está muito legendado, a não ser por algumas linhas do Corão e este estranho dístico uma vez traduzi-o com cuidado que diz qualquer coisa como: "Neste lugar, ele reside no mal. Leitor, desenterra-o com as tuas palavras."

Eu tinha estendido uma mão assustada para o interromper, mas Turgut falara muito depressa e apanhou-me desprevenido.

— Não! — exclamei, mas tarde demais, e Turgut olhou para mim com espanto. Helen olhava de um para o outro, e Mr. Erozan tirou os olhos do seu trabalho, no outro lado da sala, e ficou também a olhar para mim.

— Desculpem — sussurrei. — Só estou excitado por ver estes documentos. São tão... interessantes.

— Ah, folgo muito que os ache interessantes. — Turgut quase sorriu, no meio da sua seriedade. — E essas palavras realmente soam um pouco estranhas. Dão um... sabem como é... Um sobressalto.

Naquele momento ouvimos alguém andar dentro da sala. Olhei em volta nervosamente, quase à espera de encontrar o próprio Drácula, qualquer que fosse a sua aparência, mas era apenas um homem pequeno com um gorro de crochê e uma barba grisalha e desgrenhada. Mr. Erozan foi até à porta para o cumprimentar, e voltamos aos nossos documentos. Turgut tirou outro pergaminho da caixa.

— Este é o último documento da caixa — disse. — Nunca consegui entendê-lo. Está registrado no catálogo da biblioteca como uma Bibliografia da Ordem do Dragão.

O meu coração deu um salto e vi um rubor assomar ao rosto de Helen.

— Uma bibliografia?

— Sim, meu amigo. — Turgut abriu-o devagar sobre a mesa diante de nós. Parecia muito antigo e frágil, escrito em grego, numa bela caligrafia. A parte superior curvava-se irregularmente, como se tivesse feito parte de um rolo mais longo, e a parte inferior fora claramente arrancada. Não havia quaisquer ornamentos no manuscrito, apenas as palavras alinhadas naquela primorosa caligrafia. Suspirei. Nunca estudara Grego, embora duvidasse de que qualquer conhecimento inferior a um domínio completo da língua pudesse ajudar-me com um documento assim.

Como se adivinhasse o meu problema, Turgut tirou da sua pasta um caderno de notas.

— Mandei fazer uma tradução deste texto por um estudioso de Bizâncio da nossa universidade. Ele tem um conhecimento extraordinário da língua e dos documentos bizantinos. Isto é uma lista de obras de literatura, embora eu não tenha encontrado sequer menção de muitas delas em qualquer outro lugar.

Abriu o seu caderno de notas e alisou uma página. Estava coberta de caprichados caracteres turcos. Desta vez, Helen suspirou Turgut deu uma palmada na testa.

— Mil perdões — disse. — Vou traduzir para os senhores à medida que avançamos, está bem; Heródoto, O Tratamento aos Prisioneiros de Guerra. Feseus, Sobre a Razão e a Tortura. Orígenes, Tratado sobre os Princípios Primordiais. Eutímio, o Velho, O Destino dos Condenados. Gubent de Ghent, Tratado sobre a Natureza. São Tomás de Aquino, Sútfo. Como vêem, é uma coleção estranha, e alguns dos livros são muito raros. O meu amigo, o estudioso de Bizâncio, disse-me, por exemplo, que seria um milagre se uma versão até agora desconhecida desse tratado escrito pelo filósofo paleocristão Orígenes tivesse sobrevivido algures: a maior parte da obra de Orígenes foi destruída porque ele foi acusado de heresia.

— Que heresia? — Helen parecia interessada. — Tenho a certeza de já ter lido alguma coisa sobre ele, não sei onde

— Foi acusado de alegar, no seu tratado, que é uma questão de lógica cristã admitir que até mesmo Satã será um dia salvo e ressuscitado — explicou Turgut. — Continuo com a lista?

— Se não for muito incômodo — pedi, — importava-se de nos copiar esses títulos em inglês à medida que os vai lendo?

— Com prazer — Turgut sentou-se com o seu caderno de notas e pegou numa caneta.

— O que acha de tudo isto? — perguntei a Helen. O seu rosto falava mais claramente do que qualquer palavra. Teríamos vindo de tão longe só por causa de uma lista confusa de livros?

— Sei que ainda não faz sentido — disse-lhe em voz baixa, — mas vamos ver onde nos irá levar.

— Bem, meus amigos, deixem-me ler-lhes os próximos títulos. — Turgut escrevia alegremente. — Quase todos estão relacionados com tortura ou assassínio ou qualquer outra coisa desagradável, como podem observar. Erasmo, Destinos de um Assassino. Henricus Curtius, Os Canibais. Giorgio de Pádua, Os Condenados.

— Não há datas correspondentes a essas obras? — perguntei, inclinando-me sobre os documentos.

Turgut suspirou.

— Não. E nunca consegui encontrar outras referências para alguns destes títulos, mas, de todos os que consegui localizar, nenhum foi escrito depois de 1600.

— E no entanto, essa data é posterior ao período em que Vlad Drácula viveu — comentou Helen.

Olhei para ela com surpresa; não tinha pensado nisso. Era um dado simples, mas verdadeiro e muito curioso.

— Sim, minha cara senhora — disse Turgut, olhando para ela. — Destas obras, as mais recentes foram escritas mais de cem anos depois da sua morte e depois da morte do sultão Mehmed. Ai de mim, não consegui encontrar nenhuma informação sobre como ou quando esta bibliografia se tornou parte da coleção do sultão Mehmed. Alguém deve tê-la adicionado mais tarde, talvez muito tempo depois de a coleção ter vindo para Istambul.

— Mas antes de 1930 — refleti.

Turgut lançou-me um olhar penetrante.

— Foi nessa data que a coleção foi fechada à chave — observou. — O que o faz dizer isso, professor?

Senti-me corar, não só porque tinha falado demais, tanto que Helen agora se afastava de mim, desesperada pela minha idiotice, mas também porque ainda não era um professor universitário. Fiquei em silêncio por um instante; sempre odiei mentir, e tento, minha querida filha, não o fazer nunca, se o puder evitar.

Turgut estava a observar-me, e percebi com um certo desconforto que, até àquele momento, não tivera consciência da extrema sagacidade dos seus olhos escuros, com aqueles joviais pés-de-galinha. Respirei fundo. Discutiria o assunto com Helen mais tarde. Confiara em Turgut desde o início, e ele seria capaz de nos ajudar mais, se tivesse mais informações. Entretanto, para ganhar tempo, olhei para a lista de documentos que ele estava a traduzir-nos e em seguida para a tradução em turco a partir da qual estava a trabalhar. Não conseguia encará-lo de frente. Exatamente quanto do que sabíamos deveria contar-lhe? Se eu lhe dissesse tudo o que sabia sobre a experiência de Rossi naquele lugar, duvidaria da nossa seriedade e da nossa sanidade? E foi precisamente porque baixei os olhos naquele momento de indecisão que vi algo de estranho. A minha mão voou na direção do original em grego, a Bibliografia da Ordem do Dragão. Nem tudo estava em grego, afinal. Pude ler claramente o nome no fim da lista: Bartolomeo Rossi. Vinha seguido de uma frase em latim.

— Meu Deus! Meu Deus! — A minha exclamação acordou os silenciosos pesquisadores por toda a sala, apercebi-me tarde demais. Mr. Erozan, que ainda estava a conversar com o homem do gorro de crochê e barba comprida, virou-se, intrigado, para nós.

Turgut alarmou-se imediatamente e Helen aproximou-se depressa.

— O que foi?

Turgut estendeu uma mão para o documento. Eu ainda estava a olhar fixamente para baixo; era fácil seguir o meu olhar. E então Turgut levantou-se de um salto, sussurrando algo que soava como um eco da minha própria agitação, um eco tão claro que me deu um estranho conforto no meio de tanta estranheza:

— Meu Deus! Professor Rossi!

Entreolhámo-nos e por um momento ninguém disse nada. Finalmente arrisquei:

— O senhor... — disse eu a Turgut em voz baixa — conhece esse nome?

Turgut olhou para mim e para Helen.

— Os senhores conhecem-no? — disse ele finalmente.

 

O sorriso de Barley era gentil.

— Você devia estar muito cansada, para adormecer tão profundamente. Também estou cansado, só de pensar na confusão em que se meteu. O que diriam as pessoas se lhes contasse tudo isto... quero dizer, a uma pessoa qualquer? Aquela senhora ali, por exemplo — e apontou com a cabeça para a nossa companheira sonolenta, que não descera em Bruxelas e pelos vistos pretendia dormitar até Paris. — Ou a um polícia. A única coisa que podiam pensar é que era maluca — suspirou. — E queria realmente viajar para o Sul de França sozinha? Quem me dera que me dissesse o lugar exato, em vez de me obrigar a adivinhar; assim eu podia mandar um telegrama a Mrs. Clay a avisá-la e a metê-la a si na maior das encrencas.

Foi a minha vez de sorrir. Já tínhamos batido naquela tecla algumas vezes.

— Você é incrivelmente teimosa — gemeu Barley. — Nunca poderia imaginar que uma miúda pudesse arranjar tantos problemas, nomeadamente os problemas que eu iria ter com o reitor James se a deixasse no meio de sítio nenhum em França, sabe. — Aquilo quase me fez chegar as lágrimas aos olhos, mas o que ele disse a seguir fê-las secar antes mesmo de se formarem. — Pelo menos, vamos ter tempo para almoçar antes de apanhar o próximo comboio. A Gare du Nord tem umas sanduíches sensacionais, e podemos usar os meus francos. Foi a escolha do pronome que me aqueceu o coração.

 

Descer de um comboio, mesmo de um comboio moderno, na Gare du Nord, com a sua magnífica estrutura de ferro e vidro antigos, a sua beleza de balão cheio de luz, é entrar diretamente em Paris. Barley e eu descemos do comboio, segurando a bagagem, e ficamos de pé por alguns minutos absorvendo tudo aquilo. Pelo menos, era o que eu estava a fazer, embora já tivesse ali estado muitas vezes, de passagem ou nas minhas viagens com o meu pai. A gare ecoava com o barulho dos freios dos comboios, de pessoas a falar, passos, apitos, o roçagar das asas dos pombos, o tilintar de moedas. Um velho com uma boina preta passou por nós de braço dado com uma jovem. O cabelo ruivo da rapariga estava lindamente penteado, usava batom cor-de-rosa e imaginei, por um momento, trocar de lugar com ela. Ah, ser igual a ela, ser parisiense, ser adulta e ter botas de salto alto e seios de verdade e um artista elegante e idoso ao lado’ Então, ocorreu-me que o homem podia ser o pai da rapariga, e senti-me muito sozinha.

Virei-me para Barley, que aparentemente tinha estado a absorver os cheiros, mais do que as imagens.

— Meu Deus, estou com fome — resmungou. — Já que estamos aqui, vamos aproveitar para comer bem.

Disparou para um dos cantos da estação, como se conhecesse o caminho de cor; o fato é que ele não só conhecia o caminho, mas também a mostarda e as fatias de presunto finamente cortadas, e depressa estávamos a comer duas grandes sanduíches embrulhadas em papel branco Barley nem sequer se deu ao trabalho de se sentar no banco que eu encontrara.

Eu também estava com fome, mas sobretudo preocupada com o que fazer a seguir. Agora que estávamos fora do comboio, Barley poderia ir a qualquer telefone público e encontrar uma forma de ligar para Mrs. Clay, ou para o reitor James, ou talvez para um exército de gendarmes que me levaria algemada de regresso a Amsterdã. Olhei para ele, desconfiada, mas o seu rosto estava quase totalmente escondido pela sanduíche. Quando finalmente emergiu para um gole de laranjada, pedi-lhe:

— Barley, queria pedir-lhe um favor.

— O que é, desta vez?

— Por favor, não faça nenhum telefonema. Por favor. Barley, não me traia. Vou sair daqui para o Sul, seja como for. Compreende que não posso ir para casa sem saber onde está o meu pai e o que está a acontecer-lhe, não compreende?

Ele bebeu o refresco gravemente.

— Compreendo.

— Por favor, Barley.

— Por quem me toma?

— Não sei — disse, desconcertada. — Pensei que estivesse zangado comigo por ter fugido, e ainda se sentisse na obrigação de me denunciar.

— Pense um pouco — disse Barley. Se eu fosse realmente honesto, poderia agora mesmo estar a voltar para casa, para as aulas de amanhã e para um raspanete do reitor James, consigo a reboque. Mas aqui estou eu, obrigado, por galantaria... e curiosidade, a acompanhar uma dama até ao Sul de França sem pensar duas vezes. Acha que eu gostaria de perder esta oportunidade?

— Não sei — repeti, mais grata, desta vez.

— É melhor irmos pedir informações sobre o próximo comboio para Perpignan — disse Barley, dobrando a embalagem da sanduíche com decisão.

— Como é que descobriu? — perguntei, surpreendida.

— Ah, com que então acha-se muito misteriosa — Barley parecia outra vez irritado. — Não lhe traduzi toda aquela história sobre o vampiro na biblioteca de Oxford? Por onde iria começar, se não por aquele mosteiro nos Pirenéus Orientais? Como se eu não conhecesse o mapa da França! Vamos, deixe de me lançar esse olhar mal-humorado. Torna-lhe o rosto tão menos piquant.

E fomos na direção do bureau de change de braço dado.

 

Quando Turgut pronunciou o nome de Rossi com aquele inconfundível tom de familiaridade, tive a súbita sensação de um mundo que mudava, de pedaços de cor e de forma a serem tirados dos seus lugares e a formarem uma imagem absurda e complexa. Era como se estivesse a assistir a um filme conhecido e, sem mais nem menos, uma personagem que nunca fizera parte dele entrasse no ecrã, juntando-se à ação, imperceptivelmente, mas sem qualquer explicação.

— O senhor conhece o professor Rossi? — repetiu Turgut, no mesmo tom. Eu ainda estava sem fala, mas Helen parecia ter tomado uma decisão.

— O professor Rossi é o orientador de Paul no departamento de História da nossa universidade.

— Mas isso é incrível — disse Turgut lentamente.

— Já ouviu falar dele? — perguntei.

— Nunca o conheci pessoalmente — disse Turgut. — Ouvi falar dele de uma forma bastante singular. Por favor, isso é uma história que preciso lhes contar, acho. Sentem-se, meus amigos. — Fez um gesto hospitaleiro, mesmo no meio do seu espanto. Helen e eu tínhamo-nos levantado de um salto, mas sentamo-nos novamente junto dele. — Há aqui algo de extraordinário — e interrompeu-se, parecendo obrigar-se a explicar-nos. — Há anos atrás, quando me apaixonei por este arquivo, pedi ao bibliotecário todas as informações possíveis sobre ele. Contou-me que, tanto quanto se lembrava, nunca tinha sido examinado por mais ninguém, mas achava que o seu antepassado — quero dizer, o bibliotecário antes dele — sabia alguma coisa sobre o assunto. Fui falar com o antigo bibliotecário.

— Ainda é vivo? — perguntei, com a voz entrecortada.

— Oh, não, meu amigo. Sinto muito. Já era muito idoso na época, e morreu um ano depois de falar comigo, creio. Mas a sua memória era excelente, e contou-me que tinha trancado a coleção porque tinha uma má sensação a respeito dela. Disse que um professor estrangeiro a tinha visto certa vez e ficara muito... como se diz?... muito transtornado e quase louco, e de repente saíra a correr para fora do edifício. O velho bibliotecário disse que, uns dias depois de isto acontecer, estava ele sozinho na biblioteca a trabalhar em alguma coisa e, quando levantou o olhar, deu com um homem alto a examinar os mesmos documentos. Ninguém tinha entrado e a porta da rua estava trancada porque já era de noite e passava do horário de abertura ao público. Não percebia como é que o homem entrara. Pensou que afinal talvez não tivesse trancado a porta e não tivesse ouvido o homem subir as escadas, embora lhe parecesse pouco plausível. Depois contou-me — Turgut inclinou-se para a frente e baixou ainda mais a voz —, contou-me que, quando se aproximou do homem para lhe perguntar o que estava a fazer, o homem levantou a cabeça e — vejam bem — tinha um fio de sangue a escorrer-lhe de um canto da boca.

Senti uma onda de repugnância e Helen levantou os ombros, como se reprimisse um calafrio.

— A princípio, o velho bibliotecário não queria contar-me essa história. Creio que receava que eu pensasse que estava a ficar senil. Contou-me que aquela cena o deixou prestes a desmaiar, e, quando olhou novamente, o homem tinha saído. Mas os documentos ainda estavam espalhados sobre a mesa e, no dia seguinte, ele comprou esta caixa sagrada no mercado de antiguidades e colocou os documentos dentro dela. Manteve-os trancados e disse que ninguém mais lhes voltou a mexer enquanto ele foi bibliotecário aqui. Nunca mais viu o homem estranho.

— E Rossi? — perguntei.

— Bem, eu estava decidido a investigar todas as pistas dessa história, por isso perguntei-lhe o nome do investigador, mas ele não conseguia lembrar-se de nada, exceto que pensava que fosse italiano. Disse-me para procurar nos registros de 1930, se quisesse, e o meu amigo aqui permitiu-me fazê-lo. Encontrei o nome do professor Rossi depois de pesquisar um pouco, e descobri que era de Inglaterra, de Oxford. E escrevi-lhe uma carta, para Oxford.

— Ele respondeu-lhe? — Helen estava quase a devorar Turgut com os olhos.

— Sim, mas já não estava em Oxford. Tinha ido para uma universidade americana — Harvard e a carta só lhe chegou depois de muito tempo, e foi então que respondeu. Disse que sentia muito, mas não sabia nada sobre o arquivo a que me referia e não podia ajudar-me. Hei-de mostrar-lhes a carta no meu apartamento, quando forem jantar comigo. Chegou pouco antes da guerra.

— É muito estranho — murmurei. — Não consigo entender.

— Bem, e não é o mais estranho de tudo — disse Turgut, com veemência. Virou-se para o pergaminho sobre a mesa, para a bibliografia, e o seu dedo procurou o nome de Rossi no fim da lista. — Olhando para o nome, vi outra vez as palavras que vinham depois. Estavam em latim, tinha certeza, embora o meu latim, que remontava aos primeiros dois anos de faculdade, jamais tivesse sido digno de nota e agora estava, no mínimo, enferrujado.

— O que diz aí? O senhor sabe latim?

— Para meu alívio, Turgut fez que sim com a cabeça.

— Aqui diz: "Bartolomeo Rossi, O Espírito o Fantasma na Ânfora."

Os meus pensamentos giraram, num turbilhão.

— Mas eu conheço essa frase. Acho... tenho certeza de que é o título do artigo em que ele tem estado a trabalhar nesta Primavera. — Interrompi-me. — Estava a trabalhar. Ele mostrou-me o artigo há menos de um mês. É sobre a tragédia grega e os objetos que os teatros gregos às vezes usavam como adereços no palco. — Helen estava a olhar para mim com atenção. — É... tenho certeza de que se trata do seu trabalho atual.

— O que é muito, muito estranho — disse Turgut, e desta vez detectei o medo na sua voz —, é que já olhei para esta lista muitas vezes e nunca tinha visto esta inserção. Alguém acrescentou aqui o nome de Rossi.

Olhei para ele, pasmado.

— Descubra quem foi — disse eu, a custo. — Temos de descobrir quem andou a alterar estes documentos. Quando foi a última vez que aqui esteve?

— Há cerca de três semanas — disse Turgut, sombriamente. — Esperem, por favor; vou perguntar primeiro a Mr. Erozan. Não saiam daqui.

Mas, logo que ele se levantou, o atento bibliotecário viu-o e veio na sua direção. Trocaram algumas palavras rápidas.

— O que foi que ele disse? — perguntei.

— Como é que ele não se lembrou de me contar antes? — lamentou-se Turgut. — Ontem, veio aqui um homem e examinou esta caixa. — Interrogou novamente o amigo, e o bibliotecário apontou para a porta. — Foi aquele homem que entrou há pouco, aquele homem com quem ele estava a falar.

Voltamo-nos, aterrorizados, e o bibliotecário apontou novamente, mas era tarde demais. O homenzinho com o gorro branco e a barba grisalha tinha desaparecido.

 

Barley estava a revistar a carteira.

— Bem, precisamos de trocar todo o dinheiro que tenho — disse, num tom aborrecido. — Tenho o dinheiro do reitor James e mais algumas libras da minha mesada.

— Eu trouxe algum dinheiro — disse eu. — De Amsterdã, quero dizer. Pago os bilhetes para o Sul, e penso que posso pagar as nossas refeições e a nossa hospedagem, pelo menos por uns dias.

Estava a pensar, comigo própria, se poderia pagar o apetite de Barley. Era estranho que uma pessoa tão magra pudesse comer tanto. Eu também ainda era magra, mas não conseguia imaginar-me a engolir duas sanduíches com a velocidade que Barley tinha acabado de demonstrar. Julgava que a preocupação com o dinheiro fosse a única razão do insistente peso na minha mente até chegarmos ao balcão de câmbio e uma rapariga com um blazer azul-escuro olhar para nós. Barley falou com ela sobre a taxa de câmbio e, em seguida, ela pegou no telefone e virou-nos as costas para falar junto do bocal do telefone.

— O que está ela a fazer? — sussurrei, nervosa, para Barley. Ele olhou para mim, um pouco espantado.

— Está a verificar o câmbio, por algum motivo — disse. — Não sei. O que pensou que fosse?

Não conseguia explicar. Talvez fosse só a influência perniciosa das cartas do meu pai, mas tudo me parecia suspeito. Era como se estivéssemos a ser seguidos por olhos que eu não conseguia ver.

 

Turgut, que parecia ter mais presença de espírito do que eu, correu para a porta e desapareceu no pequeno vestíbulo. Um segundo depois, estava de volta, a abanar a cabeça.

— Desapareceu — anunciou, com o rosto carregado. — Não vi sinal dele na rua. Desapareceu no meio da multidão.

Mr. Erozan parecia estar a desculpar-se, e Turgut falou com ele durante alguns segundos. Depois, virou-se para nós outra vez.

— Há algum motivo para imaginar que os senhores possam ser perseguidos aqui, por causa da vossa pesquisa?

— Perseguidos? — Eu tinha todas as razões do mundo para pensar que sim, mas, perseguidos por quem, exatamente, não fazia a menor idéia.

Turgut olhou penetrantemente para mim e lembrei-me do aparecimento da cigana à nossa mesa na noite anterior.

— O meu amigo bibliotecário diz que esse homem queria ver os documentos que estávamos a examinar, e ficou zangado quando viu que já estavam a ser usados. Diz que o homem falava turco mas com sotaque, e ele acha que era estrangeiro. Por isso é que pergunto se alguém os está a seguir. Meus caros colegas, vamos sair daqui, mas fiquemos vigilantes. Disse ao meu amigo para vigiar os documentos e tomar nota se esse homem ou qualquer outra pessoa vier procurá-los. Ele vai tentar descobrir quem é esse homem, se ele voltar. Talvez, se nos formos embora, ele volte mais depressa.

— Mas os mapas! — Preocupava-me ter de deixar aqueles preciosos documentos na caixa. Além do mais, o que é que tínhamos descoberto até então? Não tínhamos sequer começado a resolver o quebra-cabeça dos três mapas, mesmo ali parados a olhar para a sua miraculosa realidade sobre a mesa da biblioteca.

Turgut voltou-se novamente para Mr. Erozan e um sorriso, um sinal de entendimento mútuo, passou entre eles.

— Não se preocupe, professor — tranquilizou-me Turgut. — Fiz cópias de todas estas coisas, eu mesmo, à mão, e essas cópias estão em segurança no meu apartamento. Além disso, o meu amigo não permitirá que aconteça alguma coisa aos originais. Podem acreditar em mim.

Eu queria acreditar. Helen estava a observar os nossos dois novos amigos e tive curiosidade em saber o que pensava de tudo aquilo.

— Muito bem — concordei.

— Venham, meus amigos. — Turgut começou a recolher os documentos, manuseando-os com um carinho que eu próprio não teria sido capaz de imitar.

— Creio que temos muito a discutir em privado. Vou levá-los para o meu apartamento e lá conversaremos. Também posso mostrar-lhes mais material que consegui reunir sobre este assunto. Não falemos dessas coisas na rua. Vamos sair da maneira mais visível que pudermos e... — gesticulou com a cabeça para o bibliotecário — vamos deixar o nosso melhor general a guardar o baluarte.

Mr. Erozan apertou a mão a cada um de nós, trancou cuidadosamente a caixa e levou-a, desaparecendo entre as estantes de livros ao fundo da sala. Acompanhei-o com o olhar até desaparecer por completo, e então suspirei alto, involuntariamente. Não conseguia tirar da cabeça a idéia de que o destino de Rossi ainda estava escondido naquela caixa quase, Deus me perdoe, como se o próprio Rossi estivesse ali sepultado e não tivéssemos sido capazes de o resgatar.

Depois, deixamos o edifício, parando ostensivamente nos degraus por alguns minutos e fingindo conversar. Os meus nervos estavam arrasados e Helen estava pálida, mas Turgut mostrava-se muito calmo.

— Se andar a rondar por aqui — disse ele, em voz baixa —, o malandro saberá que nos vamos embora.

Ofereceu o braço a Helen, que o aceitou com menos relutância do que eu teria previsto, e partimos juntos pelas ruas cheias de gente. Era a hora do almoço e os odores de carne a assar e de pão quente vinham de todos os lados, misturando-se com um cheiro úmido que podia ser fumo de carvão ou óleo diesel, um cheiro que às vezes ainda me vem à memória sem aviso e que para mim significa o limiar do mundo oriental. O que viesse a seguir, pensei, seria outro enigma, como todo aquele lugar olhei à minha volta para os rostos da multidão turca, para as torres esguias dos minaretes no horizonte de cada rua, as cúpulas antigas entre as figueiras, as lojas cheias de objetos misteriosos era um enigma. O maior enigma de todos apertou-me novamente o coração e fê-lo doer:

Onde estaria Rossi? Estaria ali, naquela cidade, ou muito longe dali? Vivo, morto, ou num estado intermédio entre as duas coisas?

 

As quatro horas e dois minutos, Barley e eu embarcamos no expresso para o Sul de França, para Perpignan. Barley atirou a sua mala para o cimo dos degraus e estendeu a mão para me puxar para cima. Havia menos passageiros naquele comboio, e o compartimento que encontramos permaneceu vazio mesmo depois de o comboio ter partido. Eu estava a ficar cansada; se estivesse em casa àquela hora, estaria sentada à mesa da cozinha diante de um copo de leite e de uma fatia de bolo servidos por Mrs. Clay. Por um segundo, quase senti a falta dos seus enfadonhos cuidados. Barley sentou-se ao meu lado, embora tivesse outras quatro poltronas à escolha, e eu enfiei a minha mão por baixo de seu braço agasalhado pela camisola.

— Eu devia estudar — disse ele, mas não abriu logo o livro; havia muito para ver à medida que o comboio ganhava impulso através da cidade. Pensei em todas as vezes que estivera ali com o meu pai — a subir até Montmartre, ou a olhar para o camelo deprimido do Jardin dês Plantes. Agora, parecia uma cidade que eu nunca tinha visto antes.

Observar Barley a mover os lábios lendo Milton fez-me sono, e, quando ele disse que queria ir até ao vagão-restaurante para tomar um chá, abanei a cabeça, sonolenta.

— Você está um farrapo — disse-me, a sorrir. — O melhor é ficar aqui e dormir. Eu vou levar o meu livro. Podemos sempre voltar lá mais tarde para jantar, quando tiver fome.

Os meus olhos fecharam-se praticamente assim que ele deixou o compartimento, e, quando os abri novamente, vi que estava encolhida na poltrona vazia como uma criança, a minha saia comprida de algodão a cobrir-me os tornozelos. Havia alguém na poltrona em frente, a ler um jornal, e não era Barley. Sentei-me rapidamente. O homem estava a ler o Lê Monde, e o jornal aberto escondia-o quase por completo — não conseguia ver nada da parte superior do seu corpo, nem o seu rosto. Na poltrona ao seu lado, estava pousada uma maleta de couro preta.

Por uma fração de segundos, imaginei que fosse o meu pai, e uma onda de gratidão e confusão mental invadiu-me. Então, vi os sapatos do homem, que também eram de couro preto e muito brilhantes, o couro perfurado com desenhos elegantes nas biqueiras, os atacadores de couro rematados por borlas pretas. O homem tinha as pernas cruzadas, usava calças pretas impecáveis e meias de seda fina, pretas. Não eram os sapatos do meu pai; na verdade, havia qualquer coisa que não batia certo naqueles sapatos, ou nos pés contidos nos sapatos, embora eu não conseguisse perceber o que me causava aquela impressão. Refleti que um homem estranho não deveria ter entrado enquanto eu estava a dormir — havia algo de desagradável naquilo, também, e eu esperava que não tivesse estado a observar-me enquanto eu dormia. Ponderei, no meio da minha inquietação, se seria capaz de me levantar e abrir a porta sem que ele desse por isso. Então, reparei que ele tinha fechado as cortinas que davam para o corredor. Ninguém que lá passasse poderia ver-nos. Ou teria sido Barley que as tinha fechado antes de sair, para me deixar dormir? Olhei para o relógio. Eram quase cinco da tarde. Lá fora, uma paisagem extraordinária passava; estávamos a entrar no Sul da França. O homem atrás do jornal estava tão quieto que comecei a tremer involuntariamente. Depois de um momento, percebi o que me estava a assustar. Já estava acordada há longos minutos, mas, durante todo o tempo em que estivera a observar e a escutar, o homem não virara sequer uma página do jornal.

 

O apartamento de Turgut ficava noutro ponto de Istambul, no mar de Marmara, e apanhamos um ferry para lá no movimentado porto de Eminõnú. Helen ia de pé junto à amurada, observando as gaivotas que seguiam o ferry e admirando a impressionante silhueta da cidade antiga. Fui para junto dela e Turgut apontava para as torres e as cúpulas, a sua voz retumbando acima do barulho dos motores. O bairro dele, como descobrimos ao desembarcar, era mais moderno do que os que tínhamos visto até então, mas, neste caso, moderno significava século dezenove. Conforme caminhávamos por ruas cada vez mais tranquilas, distanciando-nos da área de atracagem dos barcos, eu descobria uma segunda Istambul, nova para mim: árvores majestosas cujas copas se curvavam para baixo, belas casas de pedra e madeira, edifícios de apartamentos que poderiam ter sido transportados de um bairro parisiense, passeios cuidados, vasos de flores, cornijas ornamentadas. Aqui e ali, o velho império islâmico surgia, sob a forma de um arco em ruínas ou de uma mesquita isolada, uma casa turca com o andar superior a projetar-se para fora. Na rua de Turgut, porém, o Ocidente fizera uma limpeza requintada e meticulosa. Mais tarde, vi exemplos semelhantes noutras cidades Praga e Sofia, Budapeste e Moscovo, Belgrado e Beirute. Aquela elegância emprestada tinha sido emprestada a todo o Oriente.

— Por favor, entrem — Turgut parou em frente de uma fila de casas antigas, convidou-nos a subir uma dupla escadaria e verificou uma pequena caixa de correio aparentemente vazia que tinha escrito "Professor Bora". Abriu a porta e afastou-se para o lado.

— Por favor, sejam bem-vindos ao meu lar, onde tudo lhes pertence. É uma pena que a minha mulher não esteja em casa; é professora na escola infantil.

Primeiro, entramos num vestíbulo com chão e paredes de madeira encerada, onde imitamos Turgut e tiramos os sapatos, calçando os chinelos bordados que ele nos deu. Em seguida, fez-nos passar para uma sala de estar, e Helen deixou escapar um leve murmúrio de admiração, a que eu não pude deixar de fazer eco. Uma agradável luz esverdeada enchia a sala, mesclada de tons suaves de rosa e amarelo. Notei, instantes depois, que isto se devia ao efeito da luz do sol filtrando-se ao mesmo tempo através das árvores do lado de fora de duas grandes janelas e das cortinas de renda antiga branca. A sala estava repleta de móveis extraordinários, muito baixos, feitos de madeira escura e estofados com tecidos suntuosos. Ao longo de três paredes, corria um único banco cheio de almofadas cobertas de rendas. Por cima deste banco, nas paredes caiadas de branco, sucediam-se pinturas e gravuras de Istambul, o retrato de um velho com um fez e outro de um homem mais jovem vestido com um fato preto, um pergaminho emoldurado coberto com fina caligrafia árabe. Havia fotografias desbotadas da cidade em tons sépia e vitrinas que guardavam serviços de café de latão. Os cantos estavam preenchidos com coloridos vasos esmaltados, transbordando de rosas. Sob os nossos pés, tapetes altos carmim, cor-de-rosa, um verde suave. No centro exato da sala, uma grande bandeja redonda sobre um suporte, muito polida, vazia, como se esperasse pela próxima refeição.

— É muito bonita — disse Helen, virando-se para o nosso anfitrião, e lembrei-me de como parecia adorável quando a sinceridade lhe descontraía as linhas duras em volta da boca e dos olhos. — É como as Mil e Uma Noites.

Turgut riu-se e descartou o elogio com um gesto largo da mão, mas estava claramente lisonjeado.

— É a minha mulher — disse ele. — Aprecia as nossas antigas artes decorativas, e a família deixou-lhe muitos objetos de qualidade. Talvez tenhamos aqui mesmo uma ou outra coisinha do império do sultão Mehmed — e sorriu para mim. — Não faço café tão bem como ela, ou pelo menos é o que ela diz, mas farei o meu melhor.

Instalou-nos nos móveis baixos, próximos um do outro, e pensei com satisfação em todos aqueles objetos consagrados pelo tempo e que significavam conforto: a almofada, o divã, e, sobretudo, a otomana.

O melhor de Turgut acabou por ser o almoço, que ele trouxe de uma pequena cozinha do outro lado do vestíbulo, recusando as nossas sinceras ofertas de ajuda. Não consegui imaginar como podia ter preparado uma refeição em tão pouco tempo, devia estar tudo preparado na cozinha. Trouxe bandejas de molhos e saladas, uma tigela de melão, um guisado de carne e vegetais, espetadas de frango, a onipresente mistura de pepino e iogurte, café e uma avalanche de doces envoltos em amêndoas e mel. Comemos com vontade, e Turgut encheu-nos de comida até não podermos mais.

— Bem — disse ele, — não posso deixar que a minha mulher pense que os deixei passar fome.

Depois de tudo aquilo, veio um copo de água com algo branco e doce num prato ao lado.

— Attar de rosas — disse Helen, provando. — Muito bom. Na Romênia também têm.

Deitou um pouco da pasta branca no copo e bebeu, e eu fiz o mesmo. Não sabia o que a água poderia causar à minha digestão mais tarde, mas não era altura para preocupações dessas.

Quando já estávamos quase a rebentar, reclinamo-nos nos sofás baixos agora compreendia a sua utilidade, recuperar depois de uma lauta refeição e Turgut olhou satisfeito para nós.

— Têm certeza de que não querem mais nada?

Helen riu-se e eu gemi um pouco, mas Turgut encheu-nos outra vez os copos e as chávenas de café.

— Muito bem. Agora, falemos das coisas sobre as quais ainda não pudemos conversar. Primeiro, fiquei estupefato ao saber que também conhecem o professor Rossi, mas ainda não percebi qual é a vossa ligação. Ele é seu orientador, meu jovem amigo? — E sentou-se na otomana, inclinando-se para nós com um ar de expectativa.

Olhei para Helen e ela fez que sim com a cabeça, discretamente. Pensei comigo se o attar de rosas não teria contribuído para abrandar as suas desconfianças.

— Bem, professor Bora, lamento dizer que não fomos completamente francos consigo até este momento — confessei. — Mas, sabe, temos uma missão muito peculiar a cumprir, e não sabemos em quem confiar.

— Estou a ver — e sorriu. — Talvez sejam mais sábios do que pensam. — Isto deu-me a oportunidade de fazer uma pausa, mas Helen fez novamente um sinal com a cabeça e prossegui:

— O professor Rossi tem um interesse especial para nós, também, não só por ser o meu orientador, mas por causa de algumas informações que nos transmitiu... me transmitiu... e porque ele, bem, ele desapareceu.

O olhar de Turgut era perfurante.

— Desapareceu, meu amigo?

— Sim.

Hesitante, contei-lhe a minha ligação com Rossi, o meu trabalho com ele na minha tese e o estranho livro que eu encontrara no meu compartimento na biblioteca. Quando comecei a descrever o livro, Turgut sobressaltou-se no seu sofá e juntou as duas mãos abertas, mas não disse nada; só passou a ouvir ainda com mais atenção. Prossegui, relatando como levara o livro a Rossi, e a história que ele me contara sobre como tinha encontrado o seu próprio livro. Três livros, pensei, parando para respirar. Agora sabíamos de três desses estranhos livros um número mágico. Mas de que modo estariam relacionados entre si, como deviam decerto estar? Relatei o que Rossi me contara sobre as suas pesquisas em Istambul nesse ponto, Turgut balançou a cabeça, como se estivesse desconcertado e a sua descoberta, no arquivo, de que a imagem do dragão coincidia com os contornos dos mapas antigos.

Contei a Turgut a maneira como Rossi desaparecera, descrevi a estranha sombra que vira passar pela janela do seu gabinete na noite em que desaparecera e como iniciara as buscas sozinho, a princípio acreditando só em parte na história dele. Fiz outra pausa, desta vez para ver o que diria Helen, porque não queria revelar a história dela sem a sua autorização. Ela mexeu-se, olhou para mim em silêncio das profundezas do divã e então, para minha surpresa, ela própria continuou a história no ponto em que eu tinha parado e contou a Turgut tudo o que já me contara, falando com a sua voz baixa, às vezes áspera — a história do seu nascimento, da sua vingança pessoal contra Rossi, a profundidade da sua pesquisa sobre a história de Drácula e a sua intenção de procurar dados sobre a lenda naquela cidade. As sobrancelhas de Turgut subiram-lhe até à raiz dos cabelos penteados com fixador. As palavras de Helen, a maneira como as articulava, a voz profunda e clara, o óbvio brilhantismo da sua mente, e talvez também o rubor nas suas faces acima da gola azul-clara da blusa, tudo isso resultou na admiração que se estampou no rosto de Turgut ou pelo menos foi o que pensei, e, pela primeira vez desde que o conhecêramos, senti uma ponta de hostilidade contra ele.

Quando Helen acabou, ficamos sentados em silêncio por um momento. A luz do sol, que penetrava naquela bela sala pelo filtro verde das árvores, parecia aprofundar-se em torno de nós, e uma sensação de irrealidade invadiu-me. Por fim, Turgut falou.

— A vossa experiência é notável, e estou-lhes grato por me terem contado tudo isso. Ainda gostaria de saber por que razão o professor Rossi se viu forçado a escrever-me dizendo que nada sabia sobre o nosso arquivo aqui, o que parece ser mentira, não é assim? Mas é terrível, o desaparecimento de um acadêmico tão respeitável. O professor Rossi foi punido por algum motivo — ou está a ser punido neste exato momento, enquanto estamos aqui sentados.

A sensação de languidez abandonou-me no mesmo instante, como se uma brisa fria a tivesse levado.

— Como é que o senhor tem tanta certeza? E de que modo poderemos encontrá-lo, se for verdade?

— Sou um racionalista, como o senhor — disse calmamente Turgut, — mas acredito, guiado pelo meu instinto, no que o senhor diz que o professor Rossi lhe contou naquela noite, e, temos a prova das suas palavras no que o velho bibliotecário do arquivo me contou que um investigador estrangeiro fugiu de lá assustado e no fato de ter encontrado o nome do professor Rossi nos registros. Para não falar no aparecimento de um demônio com sangue na boca — Turgut parou. — E agora esta horrenda aberração, o nome dele... o nome do seu artigo... acrescentado, sabe-se lá como, a bibliografia no arquivo. Confunde-me, esse acréscimo! Para assustar alguém? Fizeram o que tinham a fazer, colegas, vindo a Istambul. Se o professor Rossi estiver aqui, encontrá-lo-emos Há muito tempo que me pergunto se a tumba de Drácula não estará aqui mesmo, em Istambul Parece-me que se alguém pôs muito recentemente o nome de Rossi nessa bibliografia, então há uma boa hipótese de Rossi estar aqui. E acreditam que Rossi será encontrado no local onde Drácula está sepultado. Ficarei inteiramente à vossa disposição quanto a este assunto. Sinto-me.. responsável por vós, neste caso.

— E agora tenho uma pergunta para lhe fazer. — Os olhos de Helen apertaram-se. — Professor Bora, como é que foi parar ao nosso restaurante ontem à noite? Parece-me demasiada coincidência que o senhor tenha aparecido quando acabávamos de chegar a Istambul, procurando o arquivo pelo qual sempre teve tanto interesse durante todos estes anos.

Turgut levantara-se e estava a pegar numa pequena caixa de latão de uma mesinha lateral e abriu-a, oferecendo-nos cigarros. Eu nunca fumava, mas Helen tirou imediatamente um cigarro e deixou que Turgut lho acendesse. Ele acendeu um para si, sentou-se de novo e ficaram os dois a olhar um para o outro, de modo que por um momento senti-me sutilmente excluído. O tabaco tinha um perfume delicado, e era com certeza muito fino; pensei se seria o luxuoso tabaco turco, tão famoso nos Estados Unidos. Turgut exalou delicadamente e Helen descalçou os chinelos e dobrou as pernas debaixo do corpo, como se estivesse habituada a sentar-se em almofadas orientais. Este era um lado dela que eu ainda não tinha visto, essa descontração graciosa sob o encanto da hospitalidade.

E Turgut então respondeu.

— Como foi que os encontrei no restaurante? Eu próprio me fiz essa pergunta muitas vezes, porque também não tenho resposta para ela. Mas posso dizer-lhes com toda a honestidade, meus amigos, que não sabia quem eram nem o que estavam a fazer em Istambul quando me sentei numa mesa próxima da vossa, na verdade, vou frequentemente aquele restaurante porque é o meu preferido no bairro antigo, e às vezes dou um passeio a pé até lá entre uma aula e outra. Naquele dia, fui quase sem pensar, e, quando vi que não estava lá mais ninguém além de dois estrangeiros, senti-me solitário, e não queria comer sozinho num canto. A minha mulher diz sempre que sou um caso incurável de compulsão para fazer amigos.

Sorriu e bateu a cinza do cigarro num prato de cobre, que depois empurrou na direção de Helen.

— Mas não é um hábito assim tão mau, pois não? De qualquer forma, quando descobri o vosso interesse pelo meu arquivo, fiquei surpreendido e emocionado, e agora que ouvi a vossa mais que extraordinária história, sinto que de algum modo lhes devo dar apoio aqui em Istambul. Afinal, por que é que foram ao meu restaurante preferido? Por que é que fui lá jantar com o meu livro? Vejo que a senhora ainda está desconfiada, mas não tenho uma resposta para lhe dar, exceto para dizer que esta coincidência me dá esperanças. "Há mais coisas no céu e na terra..." — olhou pensativo para nós dois e o seu rosto era franco e sincero, e também triste.

Helen soprou uma nuvem de fumo turco na já esbatida luz do sol.

— Muito bem, então — disse ela. — Tenhamos esperança. E agora, o que fazemos com a nossa esperança? Já vimos os originais dos mapas e já vimos a Bibliografia da Ordem do Dragão, que Paul queria tanto ver. Mas onde é que isso tudo nos leva?

— Venham comigo — disse Turgut, abruptamente. Levantou-se e a última languidez da tarde desvaneceu-se. Helen apagou o cigarro e levantou-se também, a manga da blusa a roçar a minha mão. Segui-os.

— Por favor, entrem um momento no meu escritório. — Turgut abriu uma porta no meio das dobras de antiga lã e seda e afastou-se educadamente para o lado.

 

Sentei-me muito, muito quieta no meu lugar, no comboio, olhando para o jornal do homem sentado à minha frente. Achei que devia mexer-me um pouco, parecer natural, ou podia realmente chamar a sua atenção, mas ele estava tão absolutamente imóvel que comecei a imaginar que nem sequer o ouvira respirar, e a sentir eu própria dificuldade em respirar. Passado um momento, os meus piores receios confirmaram-se: ele falou sem abaixar o jornal. A sua voz era exatamente igual aos seus sapatos e às calças de corte perfeito; falou-me em inglês com um sotaque que não consegui identificar, embora tivesse um toque de francês ou estaria a fazer confusão com as manchetes que dançavam diante de mim na página do Lê Monde, baralhando-se sob o meu olhar angustiado? Coisas terríveis estavam a acontecer no Camboja, na Argélia, em lugares de que eu nunca ouvira falar, e o meu francês melhorara bastante naquele ano. Mas o homem estava a falar por detrás das letras impressas, sem mover o jornal um milímetro sequer. Fiquei com pele de galinha quando ele falou, mal podendo acreditar no que ouvia. A voz dele era baixa, educada. Fez uma única pergunta:

— Onde está o seu pai, minha querida?

Dei um salto do meu assento para a porta; ouvi o jornal cair atrás de mim, mas toda a minha concentração estava no trinco. Não estava fechado. Abri-a num instante de medo delirante. Saí sem olhar para trás e corri na direção que Barley tomara para o vagão-restaurante. Ainda bem que havia outras pessoas aqui e ali nos seus compartimentos, as cortinas abertas, os seus livros e jornais e cestas de piquenique equilibrando-se ao lado delas, os seus rostos virando-se com curiosidade para mim enquanto eu passava a correr. Não podia sequer parar para ouvir se havia passos a seguir-me. Lembrei-me de que tinha deixado as nossas malas no compartimento, na rede por cima dos assentos. Será que ele as levaria? Ou as abriria para as examinar? A minha bolsa estava no meu braço; eu dormira com a alça enrolada no pulso, como sempre a usava.

Barley estava no vagão-restaurante, ao fundo, com o livro aberto numa mesa larga. Pedira chá e diversas outras coisas, e demorou um momento a levantar os olhos do seu pequeno reino e a notar a minha presença. Eu devia estar com um aspecto terrível, porque ele puxou-me imediatamente para junto dele.

— O que foi?

Enfiei a cabeça no pescoço dele, fazendo força para não chorar.

— Quando acordei, estava um homem no nosso compartimento a ler um jornal, e eu não conseguia ver-lhe a cara.

Barley pousou-me a mão no cabelo.

— Um homem a ler um jornal? Por que é que está tão aflita?

Ele não me deixou ver a cara dele de maneira nenhuma sussurrei, virando a cabeça para olhar para a entrada do vagão-restaurante. Não estava lá ninguém, nenhum homem de fato escuro à minha procura. Mas ele falou comigo por detrás do jornal.

— Sim? — Barley parecia ter descoberto que gostava dos meus caracóis.

— E perguntou-me onde estava o meu pai.

— O quê? — Barley endireitou-se. — Tem certeza?

— Tenho, e falou em inglês. — Também me sentei direita. — Eu saí a correr, e acho que ele não me seguiu, mas está dentro do comboio. Tive de deixar lá as nossas malas.

Barley mordeu o lábio e eu quase esperei ver o sangue escorrer na sua pele branca. Depois, fez um sinal ao criado, levantou-se, falou com ele por um instante e tirou uma boa gorjeta do bolso, deixando-a junto da chávena de chá.

— A nossa próxima paragem é Boulois — disse. — Dentro de dezesseis minutos.

— E as nossas malas?

— Você tem a sua bolsa e eu a minha carteira. — Barley deteve-se subitamente e olhou para mim. — As cartas!

— Estão na minha bolsa — apressei-me a responder.

— Graças a Deus. Podemos ter de deixar o resto da bagagem, mas não tem importância.

Barley pegou-me na mão e saímos pelo fundo do vagão-restaurante para a cozinha, para minha surpresa. O criado veio apressado atrás de nós, conduzindo-nos para dentro de um pequeno nicho perto dos frigoríficos. Barley apontou: havia uma porta ao lado dele. Ficamos ali durante dezesseis minutos, eu agarrada à minha bolsa. Parecia mais do que natural ficarmos abraçados naquele espaço exíguo, como dois refugiados. De repente, lembrei-me do presente do meu pai e levei a mão ao pescoço: o crucifixo estava pendurado bem à vista. Não admira que o jornal não tivesse sido baixado.

Por fim, o comboio começou a diminuir a velocidade, os freios guincharam, fazendo-o estremecer e parar. O criado empurrou uma alavanca e a porta junto de nós abriu-se. Ele riu-se para Barley com ar conspirativo; provavelmente, pensava que se tratava de uma comédia amorosa, com o meu pai furioso atrás de nós no comboio, ou qualquer coisa do gênero.

— Desça do comboio, mas fique junto dele — recomendou-me Barley em voz baixa, e descemos devagarinho para a plataforma. Estávamos numa gare ampla, decorada com ornatos em estuque, debaixo de árvores prateadas, e o ar estava quente e agradável.

— Está a vê-lo?

Corri os olhos ao longo do comboio até finalmente avistar alguém ao longe, no meio dos passageiros que desembarcavam — um homem alto, de ombros largos, vestido de preto, com alguma coisa que não batia certo no conjunto, um aspecto sombrio que fez o meu estômago contrair-se. Tinha posto um chapéu de copa baixa, por isso não conseguia ver-lhe a cara. Transportava uma maleta escura e um rolo mais claro, talvez o jornal.

— É ele — esforcei-me por não apontar, e Barley fez-me recuar rapidamente para os degraus.

— Esconda-se. Vou ver para onde ele vai. Está a olhar de um lado para outro.

Barley espreitava enquanto eu me encolhia firmemente para trás, com o coração aos saltos. Barley segurava-me o braço com força.

— Pronto, está a ir para o outro lado. Não, agora está a voltar. Está a olhar para as janelas. Acho que vai entrar outra vez no comboio. Meu Deus, tem cá uma calma, está a olhar para o relógio. Subiu para o comboio. Agora está a descer outra vez e a vir nesta direção. Prepare-se: vamos voltar lá para dentro e correr o comboio inteiro, se for preciso. Está preparada?

Naquele momento, os rotores zumbiram, o comboio arfou e começou a andar, e Barley soltou uma praga.

— Raios, ele está a tentar embarcar. Acho que acabou de perceber que não descemos. Mas já não dá tempo.

Barley enxugou o rosto e puxou-me pelos degraus abaixo para a plataforma da gare. Junto de nós, o comboio resfolegou outra vez e pôs-se em movimento. Alguns dos passageiros tinham baixado as janelas e debruçavam-se a fumar ou a olhar em volta. Entre eles, várias carruagens à frente, vi uma cabeça escura voltada na nossa direção, um homem com os ombros muito direitos — cheio de raiva contida, pensei. Nessa altura, o comboio estava a ganhar velocidade, transpondo uma curva. Virei-me para Barley e olhamos um para o outro. À exceção de alguns aldeões sentados naquela pequena estação rural, estávamos sozinhos no meio de sítio nenhum, algures em França.

 

Se eu esperava que o gabinete de Turgut fosse mais um sonho oriental, o refúgio de um acadêmico turco, estava enganado. A divisão para onde nos levou era muito menor que a anterior, mas com o mesmo pé-direito alto, e a claridade que entrava através de duas janelas permitia ver nitidamente o mobiliário. Duas das paredes estavam cobertas de livros de alto a baixo. Cortinas de veludo negro pendiam até ao chão de cada lado das janelas, e uma tapeçaria representando uma caçada, com cavalos e cães, dava um certo esplendor medieval ao ambiente. Havia uma pilha de livros de referência ingleses numa mesa ao centro; uma imensa coleção de obras de Shakespeare ocupava sozinha uma curiosa estante ao lado da secretária.

Aliás a primeira impressão que tive do escritório de Turgut não foi causada pela predominância da literatura inglesa; apercebi-me de imediato de uma presença mais sombria, uma obsessão que tinha gradualmente superado a influência mais suave das obras inglesas sobre as quais ele escrevia. Aquela presença saltou-me à vista repentinamente sob a forma de um rosto, um rosto que estava em toda parte, olhando-me com arrogância de uma gravura atrás da secretária, de um pedestal sobre a mesa, de um bordado antigo numa das paredes, da capa de uma pasta de papéis, de um desenho perto da janela. Era sempre o mesmo rosto, em poses e em suportes diferentes, mas sempre a mesma fisionomia medieval de faces encovadas e bigode.

Turgut observava-me.

— Ah, sabe de quem se trata — disse, soturno. — Colecionei o retrato dele de várias formas, como pode ver.

Ficamos lado a lado, olhando para a gravura emoldurada pendurada na parede por detrás da secretária. Era uma reprodução de uma xilogravura como a que eu vira nos Estados Unidos, mas o rosto estava todo de frente, de modo que os olhos, negros como a noite, pareciam penetrar nos nossos.

— Onde encontrou todas essas imagens diferentes? — perguntei.

— Por todo o lado — Turgut fez um gesto para o fólio em cima da mesa. — Nalguns casos, mandei fazer cópias desenhadas a partir de livros antigos; noutros, encontrei-as em lojas de antiguidades ou em leilões. É extraordinário constatar a quantidade de representações desse rosto que ainda existem por aí na nossa cidade, quando andamos a procura. Achei que, se pudesse reuni-las todas, seria capaz de ler o segredo do meu estranho livro em branco nos olhos dele. — E suspirou. — Mas essas xilogravuras são tão toscas, tão pouco sutis. Não me satisfaziam, e por fim pedi a um amigo, que é artista, para mas juntar numa só.

Levou-nos até um nicho junto de uma janela onde havia cortinas curtas, também de veludo negro, fechadas sobre alguma coisa. Senti uma certa apreensão antes mesmo de ele estender a mão para puxar o cordão e, quando fez a engenhosa cortina abrir-se, o meu coração deu um salto. O veludo abriu-se para revelar uma pintura a óleo em tamanho natural e esplêndido realismo, o busto de um homem jovem, com um pescoço largo, viril. O cabelo, comprido, caía-lhe em pesados caracóis sobre os ombros. O rosto era extremamente bonito e cruel, com a pele clara e luminosa, os olhos verdes de um brilho invulgar, um longo nariz reto com narinas salientes. Os lábios vermelhos curvavam-se, sensuais, sob o bigode escuro e comprido, mas apertavam se um contra o outro como para controlar uma crispação do queixo. Tinha as maçãs do rosto salientes e espessas sobrancelhas negras sob um barrete pontiagudo de veludo verde escuro, com uma pena castanha e branca presa a frente. Era um rosto cheio de vida, mas completamente desprovido de piedade, transbordando de força e vivacidade mas sem estabilidade de caráter. Os olhos eram o traço mais perturbador da pintura, fixavam-se em nós com uma penetração quase viva na sua intensidade, tanto que, um segundo depois, desviei o rosto em busca de alívio. Helen, de pé ao meu lado, aproximou-se de mim, mais para me oferecer solidariedade do que para procurar conforto para si própria

— O meu amigo é um excelente artista — disse Turgut, baixinho. — Estão a ver por que razão mantenho este quadro atrás de uma cortina. Não gosto de olhar para ele enquanto estou a trabalhar. — Poderia ter dito que, ao contrário, não gostava que o retrato olhasse para ele, pensei. — Esta é uma idéia da aparência que Vlad Drácula teria por volta de 1456, quando iniciou o seu mais longo governo da Valáquia. Tinha então vinte e cinco anos e era instruído pelos padrões da sua cultura, além de muito bom cavaleiro. Nos vinte anos seguintes, matou talvez mil e quinhentos dos seus próprios súditos, as vezes por razões políticas e frequentemente pelo prazer de os ver morrer

Turgut fechou a cortina e eu fiquei contente por ver aqueles olhos brilhantes, terríveis, apagarem se finalmente

— Tenho outras curiosidades para lhes mostrar — disse, indicando um armário de madeira junto a parede — Isto é um selo da Ordem do Dragão, que encontrei num mercado de antiguidades junto ao porto da cidade velha E isto é uma adaga, feita de prata, que vem do início da era otomana de Istambul. Sou da opinião que foi utilizada para matar vampiros, porque há palavras escritas na bainha que sugerem algo desse gênero. Estas correntes e espigões — indicou-nos outro armário — receio bem que fossem instrumentos de tortura, talvez oriundos da própria Valáquia. E aqui, meus caros amigos, temos uma preciosidade. — De uma ponta da secretária tirou uma linda caixa de madeira marchetada e abriu o fecho. Dentro dela, no meio das dobras do forro de cetim preto desbotado, viam-se vários utensílios pontiagudos parecidos com instrumentos cirúrgicos, assim como uma diminuta pistola de prata e uma faca também de prata.

— O que é isso? — Helen estendeu uma mão hesitante para a caixa, mas recolheu-a imediatamente.

— É um autêntico estojo de caça aos vampiros, com cem anos — declarou Turgut, orgulhoso. — Acredito que seja oriundo de Bucareste. Um amigo meu, que é colecionador de antiguidades, encontrou-mo há muitos anos. Há muitos estojos destes. Eram vendidos aos viajantes que iam para o Leste Europeu nos séculos dezoito e dezenove. Havia originalmente alho aqui dentro, neste espaço, mas prefiro pendurar o meu.

Fez um gesto e, com outro calafrio, vi compridas réstias de alho de cada lado da porta, de frente para a secretária dele. Ocorreu-me, tal como me acontecera com Rossi apenas uma semana antes, que talvez o professor Bora fosse, não apenas meticuloso, mas também louco.

Anos mais tarde, compreendi melhor aquela minha primeira reação, a cautela que manifestei quando vi o escritório de Turgut, que poderia ter sido um dos quartos do castelo de Drácula, um gabinete medieval cheio de instrumentos de tortura. É um fato que nós, historiadores, nos interessamos por aquilo que é um pouco um reflexo de nós próprios, talvez uma parte de nós que não gostaríamos de analisar a não ser através da erudição; também é verdade que, à medida que nos impregnamos dos nossos interesses, cada vez mais eles se tornam parte de nós. Ao visitar uma universidade norte-americana não a minha, muitos anos depois destes acontecimentos, fui apresentado a um dos primeiros grandes historiadores da Alemanha nazi. Vivia numa casa confortável nas imediações do campus, onde colecionava não só livros sobre o tema da sua especialidade, como também a porcelana oficial do Terceiro Reich. Os seus cães, dois enormes pastores alemães, patrulhavam dia e noite o espaço em frente da casa. Enquanto tomávamos uma bebida com outros professores da universidade na sua sala de estar, declarou-me categoricamente que desprezava Hitler e os seus crimes e queria revelá-los ao mundo civilizado nos mais ínfimos pormenores. Saí cedo da festa, passando com o maior cuidado por aqueles cães enormes, incapaz de ultrapassar a minha aversão.

— Talvez ache isto excessivo — disse Turgut, quase em tom de desculpa, como se tivesse captado a expressão do meu rosto. Ainda estava a apontar para o alho. — É apenas porque não gosto de me sentar aqui cercado por esses maus pensamentos do passado sem uma proteção, sábia? E agora, deixem-me mostrar-lhes aquilo que me fez trazê-los à minha casa.

Convidou-nos a sentar-nos numas cadeiras desengonçadas com estofo de damasco. Nas costas da minha, havia o que parecia ser um embutido feito de... seria osso? Não quis apoiar-me nele. Turgut tirou uma pesada pasta de papéis de uma das estantes. De dentro dela, tirou cópias feitas a mão dos documentos que tínhamos examinado nos arquivos — desenhos semelhantes aos de Rossi, só que executados com maior cuidado e depois uma carta, que me passou para as mãos. Fora datilografada em papel timbrado de uma universidade e estava assinada por Rossi não podia haver dúvida quanto à assinatura, reconhecia perfeitamente as curvas do B e do R. E Rossi estava realmente a lecionar nos Estados Unidos na época em que a carta tinha sido escrita. O breve texto da carta correspondia ao que Turgut dissera: ele, Rossi, nada sabia sobre o arquivo do sultão Mehmed. Lamentava decepcionar o professor Bora e esperava que o seu trabalho progredisse. Era realmente uma carta desconcertante.

Em seguida, Turgut trouxe um livro pequeno encadernado em couro antigo. Foi difícil não estender imediatamente a mão para lhe pegar, mas esperei, com um febril autocontrole, enquanto Turgut o abria com grande delicadeza e nos mostrava, primeiro as folhas em branco a frente e atrás, e depois a xilogravura no centro aquele desenho já familiar, o dragão coroado com as suas perversas asas abertas, as garras segurando o estandarte com aquela única e ameaçadora palavra. Abri a minha pasta, que levara comigo, e tirei dela o meu livro. Turgut colocou os dois volumes lado a lado em cima da secretária. Cada um de nós comparou o seu tesouro com o maléfico presente do outro, e vimos juntos que os dragões eram iguais, que ocupavam as páginas até às margens, a imagem do livro dele mais escura, a minha mais desbotada, mas a mesma imagem, exatamente a mesma. Havia até uma pequena mancha idêntica perto da ponta da cauda do dragão, como se a matriz de madeira tivesse uma aresta que fizesse a tinta manchar um pouco o papel em cada impressão. Helen contemplava-os em silêncio, ensimesmada.

— É extraordinário — murmurou Turgut, por fim. — Nunca sonhei que pudesse chegar um dia em que veria um segundo livro igual a este.

— E seria informado da existência de um terceiro — lembrei-lhe. — É o terceiro destes livros que vejo com os meus próprios olhos, não se esqueça. A xilogravura do livro de Rossi também era igual.

Ele concordou com um gesto de cabeça.

— E, meus amigos, qual será o significado disto?

Turgut espalhava já as suas cópias dos mapas junto aos nossos livros e comparava, com o dedo largo, os contornos dos dragões, do rio e das montanhas.

— Espantoso — murmurou. — E pensar que nunca reparei nisto. Existe de fato uma semelhança. Um dragão que é um mapa. Mas um mapa de onde? — Os seus olhos brilhavam.

— Era o que Rossi estava a tentar descobrir no arquivo daqui — disse eu, com um suspiro. — Se ao menos tivesse continuado, mais tarde, para encontrar o significado...

— Talvez tenha sido o que ele fez.

A voz de Helen soou pensativa, e virei-me para ela para lhe perguntar o que queria dizer com aquilo. Naquele momento, a porta entre as duas estranhas réstias de alho escancarou-se e ambos nos sobressaltámos. Em vez de uma aparição horrível, porém, surgiu na entrada uma senhora baixinha e sorridente, com um vestido verde. Era a mulher de Turgut, e todos nos levantámos para a receber.

— Boa tarde, minha querida — Turgut apressou-se a fazê-la entrar. — Estes são os meus amigos, os professores dos Estados Unidos, de que te falei.

Ele fez as apresentações com galanteria e a senhora Bora apertou-nos a mão com um sorriso afável. Tinha exatamente metade da altura de Turgut, com olhos verdes de pestanas compridas, um nariz delicadamente aquilino e uma profusão de caracóis avermelhados na cabeça.

— Sinto muito não encontrar vocês aqui antes. — Falava inglês devagar, mas com a pronúncia correta. — Talvez meu marido não deu comida nenhuma a vocês, não?

Protestamos que tínhamos sido muito bem alimentados, mas ela abanou a cabeça.

— Mr. Bora nunca dá um jantar bom para nossos hóspedes. Eu vou... ralhar com ele! — E sacudiu o punho minúsculo para o marido, que tinha um ar satisfeito.

— Tenho um medo terrível da minha mulher — disse ele, complacente. — É feroz como uma Amazona.

Helen, altíssima ao lado de Mrs. Bora, sorriu para os dois; eram de fato irresistíveis.

— E agora — continuou Mrs. Bora, — ele aborrece vocês com suas coleções horríveis. Sinto muito.

Minutos depois, estávamos de novo instalados nos suntuosos divãs, com Mrs. Bora a servir-nos café e a sorrir, radiante, para nós. Vi que era muito bonita, de uma beleza delicada de passarinho, uma mulher de maneiras calmas, com uns quarenta anos, talvez. O seu inglês era limitado, mas exibia-o com graça e bom humor, como se o marido frequentemente arrastasse para casa visitantes de língua inglesa. O seu vestido era simples e elegante e os seus gestos requintados. Imaginei as crianças da escola infantil, onde ensinava, reunidas em volta dela deviam ficar-lhe à altura do queixo, calculei. Gostaria de saber se ela e Turgut tinham filhos; não havia fotografias de crianças na sala, ou qualquer outro sinal delas, e não tive coragem de perguntar.

— Meu marido passeou muito com vocês por nossa cidade? — perguntou Mrs. Bora a Helen.

— Sim, um pouco — respondeu Helen. — Receio que lhe tenhamos tomado muito tempo, hoje.

— Não, fui eu que tomei o vosso — e Turgut bebericou o seu café com prazer evidente. — Mas ainda temos muito trabalho a fazer. Minha querida — disse ele, dirigindo-se à mulher, — vamos procurar um professor desaparecido, portanto vou estar muito ocupado durante alguns dias.

— Um professor desaparecido? — Mrs. Bora sorriu para ele calmamente. — Está bem. Mas, primeiro, temos de jantar. Espero que jantem conosco? — disse, virando-se para nós.

A idéia de mais comida era impensável, e procurei não trocar um olhar com Helen. Esta, entretanto, parecia achar tudo normal.

— Obrigada, Mrs. Bora, a senhora é muito gentil, mas creio que temos de voltar para o hotel, porque temos um compromisso lá às cinco horas.

— Temos? — Fiquei meio desnorteado, mas entrei no jogo. — É verdade. Outros americanos vão encontrar-se conosco no hotel para uma bebida. Mas esperamos vê-los ambos de novo em breve.

Turgut concordou, balançando a cabeça.

— Vou começar imediatamente a examinar tudo o que na minha biblioteca nos possa ajudar. Temos de pensar na possibilidade de a tumba de Drácula estar aqui em Istambul; se esses mapas se referem a uma área da cidade. Tenho aqui alguns livros antigos sobre a cidade, e amigos que possuem excelentes coleções de livros sobre Istambul. Vou vasculhar tudo hoje à noite.

— Drácula. — Mrs. Bora abanou a cabeça. — Gosto mais de Shakespeare do que de Drácula. Um interesse mais saudável. Também — e lançou-nos um olhar malicioso — é Shakespeare que paga as nossas contas.

Acompanharam-nos à porta com grande cerimónia e Turgut fez-nos prometer que nos encontraríamos com ele no vestíbulo da nossa pensão na manhã seguinte, às nove horas. Levaria novas informações, se pudesse, e visitaríamos outra vez o arquivo para saber se acontecera mais alguma coisa. Até lá, aconselhou-nos, devíamos usar da maior cautela, sempre atentos a qualquer indício de estarmos a ser seguidos ou a outros perigos. Turgut queria acompanhar-nos de volta à pensão, mas garantimos-lhe que podíamos perfeitamente apanhar o ferry sozinhos — partiria dentro de vinte minutos, frisou ele. Os Bora foram connosco até à entrada e ficaram juntos no cimo da escada, de mãos dadas, acenando em despedida. Virei-me uma ou duas vezes para olhar enquanto atravessávamos o túnel formado pelas figueiras e choupos da rua.

— É um casamento feliz, na minha opinião — comentei com Helen, e lamentei imediatamente ter feito o comentário, porque ela fez o seu característico resmungo de desdém.

— Vamos, ianque — disse. — Temos mais que fazer.

Normalmente, teria achado graça ao epíteto que usava para mim, mas desta vez alguma coisa me fez olhar para ela com um estremecimento íntimo. Havia outro pensamento que fazia parte daquela inusitada visita vespertina e que eu reprimira até ao último instante. Quando Helen se virou para mim, os seus olhos ao nível dos meus, chocou-me inevitavelmente a semelhança entre os seus traços vincados, embora bonitos, e aquela imagem ao mesmo tempo luminosa e horrível por detrás da cortina negra de Turgut.

 

Quando o expresso de Perpignan desapareceu completamente por detrás das árvores prateadas e dos telhados das aldeias, Barley endireitou-se.

— Ele está naquele comboio e nós não.

— Sim — disse eu, — e sabe exatamente onde estamos.

— Não por muito tempo. — Barley dirigiu-se à bilheteira, onde um velhote parecia estar a dormir em pé, mas voltou logo, com um ar desapontado. — O próximo comboio para Perpignan só passa amanhã de manhã — informou. — E não há autocarros para nenhuma cidade importante antes de amanhã à tarde. Só há um quarto para alugar numa quinta a meio quilômetros do centro da aldeia. Podemos dormir lá, e voltamos para apanhar o comboio da manhã.

Eu tanto podia ficar zangada como começar a chorar.

— Barley, não posso esperar até amanhã de manhã para apanhar um comboio para Perpignan! Vamos perder demasiado tempo.

— Bem, não há outra maneira — disse Barley, irritado. — Perguntei por táxis, carros, caminhões, carroças, boleias... o que é que quer que eu faça mais?

Percorremos a aldeia em silêncio. Era o fim de tarde de um dia quente, modorrento, e todas as pessoas que víamos às portas das casas ou nos jardins pareciam levemente entorpecidas, como se tivessem sucumbido a um feitiço. A casa da quinta, quando lá chegamos, tinha um cartaz pintado à mão do lado de fora e uma mesa com produtos à venda: ovos, queijo e vinho. A mulher que saiu para nos receber a limpar as mãos ao inevitável avental — não pareceu surpreendida ao ver-nos. Quando Barley me apresentou como sua irmã, sorriu agradavelmente e não fez perguntas, embora não tivéssemos nenhuma bagagem conosco. Barley perguntou se havia lugar para duas pessoas e ela respondeu "Oui, oui" ao mesmo tempo que sorvia o ar, como se estivesse a falar para dentro. O pátio da quinta era de terra batida, com algumas flores, galinhas a debicar, e uma fila de baldes de plástico sob os beirais, e os estábulos de pedra e a casa dispunham-se em torno dele de maneira agradável e aleatória. Podíamos jantar no pátio atrás da casa, explicou a mulher, e o nosso quarto ficava junto do jardim, na parte mais antiga do edifício.

Seguimos a nossa anfitriã em silêncio através da cozinha de teto baixo até à pequena ala onde outrora talvez tivesse dormido o ajudante de cozinha. O quarto estava mobilado com duas pequenas camas em paredes opostas, como reparei, aliviada, e uma grande arca de madeira. A casa de banho adjacente tinha uma sanita e um lavatório pintados. Tudo estava imaculadamente limpo, as cortinas engomadas, o bordado antigo numa das paredes desbotado pela luz do sol. Entrei na casa de banho e lavei a cara com água fria enquanto Barley pagava à mulher.

Quando saí, Barley sugeriu um passeio; ainda faltava uma hora para o nosso jantar ficar pronto. A princípio não me agradou a idéia de sair da proteção da fazenda, mas do lado de fora o caminho estava fresco debaixo das árvores frondosas, e passamos pelas ruínas do que devia ter sido uma casa muito bonita. Barley saltou a cerca e eu segui-o. As pedras tinham caído, formando um mapa das paredes originais, e uma remanescente torre dilapidada dava ao lugar um ar de antiga grandeza. Havia um pouco de feno no estábulo entreaberto, como se aquela construção fosse usada como celeiro. Uma grande viga caíra entre as baias.

— Bem, vejo que está furiosa — disse, provocador. — Não se importa que eu a salve de um perigo imediato, desde que isso não lhe cause nenhum inconveniente no futuro.

O seu comentário desagradável desconcertou-me por um instante.

— Que descaramento! — disse eu por fim, e afastei-me por entre as pedras. Ouvi Barley levantar-se e seguir-me.

— Preferia ter ficado naquele comboio? — perguntou ele, com uma voz um pouco mais educada.

— Claro que não. — Mantive o rosto virado, sem olhar para ele. — Mas sabe tão bem como eu que o meu pai pode já estar em Saint-Matthieu.

— Aliás Drácula, ou quem quer que ele seja, ainda lá não está.

— Ele agora tem um dia de vantagem sobre nós — repliquei, olhando para os campos. A igreja da aldeia aparecia por cima de um renque distante de choupos; tudo era sereno como uma pintura, só faltavam as cabras ou as vacas.

— Em primeiro lugar — disse Barley (e detestei-o pelo seu tom didático) —, não sabemos quem é que estava no comboio. Talvez não fosse o vilão em pessoa. Ele tem seguidores, segundo as cartas do seu pai, não é verdade?

— Pior ainda — observei. — Se era um dos seus seguidores, então talvez ele próprio já esteja em Saint-Matthieu.

— Ou... — disse Barley, mas parou. Eu sabia que ele estivera quase a dizer "ou talvez esteja aqui conosco".

— Revelamos exatamente onde íamos descer — disse, para lhe poupar o trabalho de o dizer.

— Quem é que está a ser desagradável agora? — Barley chegou por trás de mim e passou um braço um tanto hesitante em volta dos meus ombros, e apercebi-me de que ele pelo menos falava como se acreditasse na história do meu pai. As lágrimas que tinham estado a lutar para não fugir das minhas pálpebras transbordaram finalmente, e escorreram-me pelo rosto. — Vamos — disse Barley Quando pousei a cabeça no seu ombro, a camisa dele estava quente de sol e suor. Um instante depois afastei-me, e voltamos para o nosso jantar silencioso no jardim da quinta.

 

Helen não abriu a boca durante o nosso percurso de regresso à pensão, por isso limitei-me a observar os transeuntes a procura de qualquer sinal de hostilidade, olhando em volta e atrás de nós de vez em quando para ver se estávamos a ser seguidos por alguém. Quando chegamos, o meu espírito já se voltara outra vez para a frustrante falta de informação sobre a maneira de procurar Rossi. De que modo uma lista de livros, alguns dos quais, aparentemente, nem sequer existiam, nos poderia ajudar?

— Venha para o meu quarto — disse Helen, sem rodeios, logo que chegamos a pensão. — Precisamos falar em particular.

A sua proposta ter-me-ia divertido noutras circunstâncias, mas o seu rosto estava tão fechado e determinado que fiquei curioso para saber o que tinha em mente. De qualquer forma, nada poderia ser menos sedutor do que a sua expressão naquele momento. No quarto, a cama estava primorosamente feita e os seus poucos pertences aparentemente guardados fora da vista. Sentou-se no peitoril da janela e indicou-me uma cadeira.

— Ouça — disse, tirando as luvas e o chapéu, — estive a pensar numa coisa. Tenho a impressão de que chegamos a um verdadeiro impasse na nossa busca de Rossi

Suspirei, desanimado.

— Foi o que eu estive a matutar durante a última meia hora. Mas pode ser que Turgut consiga alguma informação junto dos seus amigos.

Ela abanou a cabeça.

— Não adianta. É um canto sem saída.

— Um beco — corrigi, mas sem entusiasmo.

— Um beco sem saída — emendou ela. — Estive a pensar se não estaremos a deixar de lado uma fonte de informação muito importante.

Olhei fixamente para ela.

— Qual?

— A minha mãe — disse ela, categórica. — Tinha razão em interrogar-me sobre ela quando ainda estávamos nos Estados Unidos. Pensei nela o dia inteiro. Conheceu o professor Rossi antes de si, e eu realmente nunca mais lhe perguntei nada a respeito dele depois de ela me ter contado que ele era meu pai. Não sei porquê, talvez porque fosse claramente um assunto doloroso para ela. Além disso — suspirou, — a minha mãe é uma pessoa simples. Não poderia acrescentar nada aos meus conhecimentos sobre o trabalho de Rossi. Mesmo quando me contou, o ano passado, que Rossi acreditava na existência de Drácula, não insisti muito; sei como é supersticiosa. Mas agora pergunto-me se ela não saberá alguma coisa que nos possa ajudar a encontrá-lo.

Tinha sentido renascer a esperança às primeiras palavras dela.

— Mas como podemos falar com ela? Disse-me que ela não tem telefone.

— E não tem.

— E então, o que vamos fazer?

Helen juntou as duas luvas e bateu vivamente com elas no joelho.

— Vamos ter de falar com ela pessoalmente. Vive numa pequena cidade fora de Budapeste.

— O quê? — Era a minha vez de ficar irritado. — Ah, muito simples. Basta apanharmos um comboio com o seu passaporte húngaro e o meu... ops!... o meu passaporte americano e passar por lá para uma conversa com uma parente sua sobre Drácula.

Inesperadamente, Helen sorriu.

— Não precisa ficar mal-humorado, Paul — disse ela. — Temos um provérbio húngaro que diz: "Se uma coisa é impossível, pode ser feita."

Não pude evitar rir.

— Está bem — disse eu, — qual é o seu plano? Já reparei que tem sempre um.

— E tenho mesmo. — Alisou as luvas. — Para dizer a verdade, espero que a minha tia tenha um plano.

— A sua tia?

Helen olhou através da janela, para a cor suave nas fachadas de estuque das casas antigas do outro lado da rua. Era quase noite, e a luminosidade mediterrânica, que eu já aprendera a amar, tingia de tons profundos de dourado todas as superfícies da cidade lá fora.

— A minha tia trabalha no Ministério do Interior da Hungria desde 1948, e é uma figura muito importante. Consegui as minhas bolsas de estudo graças a ela. No meu país, não se faz nada sem um tio ou uma tia. É a irmã mais velha da minha mãe, e ela e o marido ajudaram a minha mãe a fugir da Romênia para a Hungria, onde ela a minha tia — já vivia, pouco antes do meu nascimento. Somos muito chegadas, a minha tia e eu, e ela fará qualquer coisa que eu lhe peça. Ao contrário da minha mãe, tem telefone, e acho que lhe vou ligar.

— Quer dizer que ela pode arranjar maneira de a sua mãe vir ao telefone para conversar conosco?

Helen gemeu.

— Oh, meu Deus, acha que podemos falar com elas ao telefone sobre qualquer assunto particular ou controverso?

— Desculpe.

— Não, vamos lá pessoalmente. A minha tia vai arranjar maneira. Assim, podemos conversar diretamente com a minha mãe. Além disso — a sua voz suavizou-se, — elas vão ficar tão contentes por me ver. Não é muito longe daqui, e há dois anos que não as vejo.

— Está bem — concordei. — Estou disposto a tentar quase qualquer coisa por Rossi, apesar de ser difícil imaginar-me a entrar na Hungria comunista em ritmo de valsa.

— Ah — disse Helen —, então, ainda vai ser mais difícil imaginar-se a entrar em ritmo de valsa, como você diz, na Romênia comunista.

Desta vez, fui eu que fiquei calado por um instante.

Eu sei — respondi por fim. — Também tenho pensado nisso. Se não estiver em Istambul, onde, senão na Romênia, poderia estar a tumba de Drácula?

Ficamos sentados calados algum tempo, cada um imerso nos seus pensamentos e distantes um do outro, até que Helen se levantou.

— Vou ver se a senhoria nos deixa telefonar lá de baixo — disse ela. — A minha tia deve estar quase a chegar do trabalho e gostaria de falar com ela imediatamente.

— Posso ir consigo? — perguntei. — Afinal de contas, também me diz respeito.

— Claro.

Helen voltou a calçar as luvas e descemos para apanharmos a senhoria na sua sala de estar. Levamos uns dez minutos para explicar as nossas intenções, mas umas liras turcas a mais e a promessa de a reembolsarmos inteiramente pelo telefonema facilitaram as coisas. Helen sentou-se numa cadeira da sala de estar e marcou uma enorme quantidade de números. Por fim, vi o seu rosto iluminar-se.

— Está a chamar. — E sorriu para mim, o seu belo sorriso franco. — A minha tia vai detestar isto — disse. Depois, o seu rosto mudou de novo, alerta. — Eva? — disse ela. — É Elena!

Ouvindo com atenção, concluí que ela devia estar a falar húngaro. Eu sabia pelo menos que o romeno era uma língua românica, neolatina, e pensei que seria capaz de perceber algumas palavras. Mas o que Helen estava a dizer soava como o galope de cavalos, um tropel fino-úgrico que o meu ouvido não conseguia reter nem por um segundo. Perguntei-me se falaria por vezes em romeno com a família, ou se essa parte das suas vidas morrera muito tempo antes, sob a pressão de se integrarem no novo país. O tom da sua voz subia e descia, interrompido às vezes por um sorriso ou por um leve franzir das sobrancelhas. A sua tia Eva, do outro lado, parecia ter muito para dizer, e, de vez em quando, Helen escutava atentamente, para depois irromper outra vez naquela estranha cavalgada silábica.

Helen parecia ter-se esquecido da minha presença, mas de repente levantou o olhar para mim e fez-me um sorrisinho de lado e ao mesmo tempo um gesto triunfante com a cabeça, como se o resultado da conversa fosse favorável. Sorriu para o telefone e desligou. A nossa senhoria aproximou-se imediatamente, preocupada com a sua conta de telefone, e eu apressei-me a contar a quantia combinada, acrescentei mais algum dinheiro e depositei-a nas suas mãos estendidas. Helen já estava a voltar para o quarto, acenando-me para que a seguisse; achei o secretismo dela desnecessário, mas o que sabia eu, afinal?

— Rápido, Helen — resmunguei, instalando-me de novo na poltrona. — Este suspense está a dar cabo de mim.

— As notícias são boas — disse ela, com calma. — Tinha certeza de que a minha tia acabaria por tentar ajudar-nos.

— Que história é que inventou para lhe contar? — Ela fez-me um sorriso aberto.

— Bem, não há muita coisa que se possa dizer ao telefone, e tive de ser bastante formal. Mas disse-lhe que estava em Istambul a fazer uma pesquisa acadêmica com um colega e que precisávamos de passar cinco dias em Budapeste para concluirmos a nossa pesquisa. Expliquei-lhe que você é um professor americano e que estamos a escrever um artigo juntos.

— Sobre que assunto? — perguntei, com uma certa apreensão.

— Sobre as relações de trabalho na Europa sob a ocupação otomana.

— Nada mal. Mas não sei nada sobre isso.

— Não se preocupe — Helen tirou um fio do joelho da sua impecável saia preta. — Eu ensino-lhe algumas coisas.

— Você saiu mesmo ao seu pai.

A sua erudição descontraída lembrara-me a de Rossi, e o comentário escapou-me da boca sem pensar. Lancei-lhe uma olhadela rápida, receando tê-la ofendido. Pensei que era a primeira vez que pensava nela com naturalidade como sendo filha de Rossi, como se em determinado momento, que eu próprio desconhecia, tivesse aceite definitivamente essa idéia.

Helen surpreendeu-me ao ficar triste.

— É um bom argumento a favor da supremacia da genética sobre o ambiente — foi só o que ela disse, entretanto. — De qualquer maneira, Eva parecia aborrecida, sobretudo quando lhe contei que você era americano. Sabia que era isso que iria acontecer, porque ela acha sempre que sou impulsiva e que corro demasiados riscos. E tem razão, é claro. Além disso, ela precisava de parecer aborrecida de início, para soar bem ao telefone.

— Para soar bem?

— Ela tem de pensar no seu cargo e na sua posição. Mas disse que vai tomar providências, e tenho de lhe telefonar outra vez amanhã à noite. Em suma, é isso. É muito esperta, a minha tia, por isso não tenho dúvidas de que vai encontrar uma maneira. Vamos comprar passagens de Istambul para Budapeste, talvez de avião, quando soubermos mais alguma coisa.

Suspirei intimamente, pensando na provável despesa e conjecturando quanto tempo mais os meus fundos durariam para manter aquela busca, mas disse apenas:

— Tenho a impressão de que ela vai ter de fazer milagres para me fazer entrar na Hungria e evitar-nos problemas.

Helen riu.

Ela é especialista em milagres. É por isso que não estou na minha terra a trabalhar no centro cultural da aldeia da minha mãe.

Descemos de novo e, como de comum acordo, saímos para a rua.

— Não há muito a fazer agora observei. — Temos de esperar até amanhã por notícias de Turgut e da sua tia. — Tenho de admitir que acho toda esta espera muito difícil. O que vamos fazer, entretanto?

Helen parou um minuto para pensar, banhada pela luz dourada da rua. Voltara a calçar as luvas e a pôr o chapéu, mas os raios baixos do sol faziam surgir reflexos avermelhados no seu cabelo negro.

— Gostaria de ver mais da cidade — disse, por fim. — Afinal de contas, é possível que nunca mais aqui volte. Vamos a Hagia Sophia outra vez? Podemos andar um pouco por aquela zona antes do jantar.

— Sim, também gostaria de fazer isso.

Não voltamos a falar durante o caminho para o grande templo. No entanto, à medida que nos aproximávamos e eu via as suas cúpulas e minaretes a ocuparem a vista da rua outra vez, sentia o nosso silêncio aprofundar-se, como se estivéssemos mais perto um do outro. Gostaria de saber se Helen sentia o mesmo, ou se era o fascínio da enorme igreja que nos fazia tomar consciência da nossa pequenez. Eu ainda estava a pensar no que Turgut nos dissera no dia anterior a sua crença de que Drácula deixara a maldição do vampirismo na grande cidade.

— Helen — disse, apesar de um pouco relutante em quebrar o silêncio entre nós, — acha que ele poderia ter sido sepultado aqui, aqui em Istambul? Isto explicaria a ansiedade do sultão Mehmed a respeito dele depois da sua morte, não é?

— Ele? Ah, sim — sacudiu a cabeça, como se aprovasse a minha opção de não pronunciar aquele nome na rua. É uma idéia interessante, mas, nesse caso, Mehmed não saberia, e Turgut não teria também encontrado uma prova qualquer? Não posso acreditar que uma coisa dessas pudesse ficar oculta aqui durante séculos.

— Também é difícil de acreditar que Mehmed tivesse permitido que um dos seus inimigos fosse enterrado em Istambul, se tivesse conhecimento disso.

Helen calou-se e parecia meditar no assunto. Estávamos quase a chegar à grande entrada de Hagia Sophia.

— Helen — disse eu, devagar.

— Sim?

Paramos no meio das pessoas, os turistas e os peregrinos que afluíam em grande número através do amplo portão. Aproximei-me dela, de modo a poder falar baixinho, quase ao seu ouvido.

— Se existe alguma probabilidade de a tumba estar aqui, isso pode significar que Rossi também está aqui.

Ela virou-se e olhou-me de frente. Os seus olhos brilhavam e entre as sobrancelhas escuras havia rugas finas, desenhadas pelo tempo e pelas preocupações.

— Mas é claro, Paul.

— Li no guia turístico que Istambul também tem ruínas subterrâneas, catacumbas, cisternas, esse gênero de coisas, como em Roma. Resta-nos pelo menos um dia antes de nos irmos embora, e talvez devêssemos falar com Turgut sobre isso.

— Não é ma idéia. O palácio dos imperadores bizantinos deve ter uma área subterrânea. — Quase sorriu, mas a sua mão subiu até ao lenço no pescoço, como se alguma coisa a incomodasse. — Seja como for, o que restar do palácio deve estar cheio de maus espíritos — imperadores que cegavam os primos e coisas do gênero. A companhia perfeita.

Por estarmos a ler tão de perto os pensamentos escritos no rosto um do outro e considerando juntos a estranha e ampla busca a que poderiam levar, não reparei logo numa pessoa que parecia de repente olhar fixamente para mim. Além disso, não era nenhum espectro alto e ameaçador, mas um homem pequeno e franzino, comum no meio da multidão, que andava de um lado para o outro a uns seis ou sete metros de distância junto à parede exterior da igreja.

Então, com um choque instantâneo, reconheci o pequeno acadêmico de barba grisalha e desgrenhada, o gorro branco de croché, a camisa e as calças desmazeladas, que entrara no arquivo naquela manhã. Mas, no momento seguinte, o choque foi ainda maior. O homem cometera o erro de olhar para mim com tanta intensidade que fui capaz de o distinguir no meio da multidão. Depois fora-se embora, desaparecendo como um fantasma entre os alegres turistas. Corri atrás dele, quase fazendo cair Helen, mas não adiantou. O homem evaporara-se; percebera que eu o tinha visto. O seu rosto, entre a barba desajeitada e o gorro novo, era inegavelmente um dos rostos da minha universidade, nos Estados Unidos. Olhara para ele pela última vez pouco antes de o terem coberto com um lençol: era o rosto do bibliotecário morto.

 

Guardo várias fotografias do meu pai, tiradas pouco antes de ele deixar os Estados Unidos à procura de Rossi, embora, quando vi pela primeira vez essas imagens na minha infância, não fizesse a menor idéia do que acontecera depois. Uma delas, que mandei emoldurar há anos e hoje está pendurada por cima da minha secretária, é uma imagem a preto e branco, da época em que o preto e branco estava a ser destronado pelos instantâneos a cor. Mostra o meu pai como nunca o vi. Está a olhar diretamente para a câmara e tem o queixo um pouco levantado, como se estivesse prestes a responder a alguma coisa que o fotógrafo dizia. Nunca saberei quem era o fotógrafo; esqueci-me de perguntar ao meu pai se ainda se lembrava. Não podia ter sido Helen, mas talvez fosse outro amigo, colega de pós-graduação. Em 1952 apenas a data está escrita com a caligrafia do meu pai no verso da fotografia, havia já um ano que frequentava o curso de pós-graduação e já iniciara as suas pesquisas sobre os mercadores holandeses.

Na fotografia, parece estar a posar ao lado de um edifício da universidade, a julgar pelo trabalho de cantaria em estilo gótico ao fundo. Um dos pés está colocado acintosamente em cima de um banco, o braço apoia-se na perna, a mão pende com elegância junto ao joelho. Veste uma camisa branca ou de cor muito clara, gravata de riscas diagonais, calças escuras vincadas e sapatos bem engraxados. A estatura é igual à de que me lembro de quando ele era mais velho — altura mediana, ombros medianos, uma elegância agradável mas não extraordinária, que a idade madura não lhe roubou. Os olhos profundos são cinzentos na fotografia, mas eram azul-escuros na vida real. Com os olhos encovados e as sobrancelhas espessas, maçãs do rosto salientes, nariz grosso e lábios carnudos abertos num largo sorriso, tem naquela fotografia uma aparência bastante simiesca um ar de inteligência animal. Se a fotografia fosse a cores, o cabelo liso teria um tom de bronze sob a luz do sol; só sei que tinha essa cor porque uma vez ele descreveu-ma. Quando o conheci, e tanto quanto posso recuar no passado, o cabelo dele era branco.

 

Naquela noite, em Istambul, avaliei em toda a extensão o que era passar uma noite em claro. Para começar, o horror do momento em que vi, pela primeira vez, o rosto de um morto-vivo e tentei compreender o que tinha visto bastaria aquele momento para me manter acordado. Depois, saber que o bibliotecário morto me vira e depois desaparecera fez-me tomar consciência da enorme vulnerabilidade dos papéis que tinha na minha pasta. Ele sabia que Helen e eu tínhamos uma cópia do mapa. Teria aparecido em Istambul porque estava a seguir-nos ou, de alguma forma, imaginou que o original estivesse aqui? Ou, se não tivesse concluído isto por conta própria, teria alguma fonte de informação que eu desconhecia? Ele tinha examinado os documentos da coleção do sultão Mehmed pelo menos uma vez. Teria visto os mapas originais e feito cópias deles? Eu não tinha meios de decifrar estes enigmas e certamente não podia correr o risco de dormitar, pensando na avidez da criatura pela nossa cópia do mapa, na forma como se tinha atirado a Helen para a estrangular na biblioteca da nossa universidade por causa desse mapa. O fato de ter mordido Helen, e ter talvez adquirido um gosto por ela, só me fazia ficar ainda mais nervoso.

Se tudo isso não fosse suficiente para me manter de olhos abertos durante aquela noite, enquanto as horas se arrastavam cada vez mais silenciosas, havia aquele rosto adormecido não longe do meu mas também não muito perto. Insisti com Helen para que dormisse na minha cama enquanto eu me acomodaria na poltrona coçada. Quando as minhas pálpebras se fecharam uma ou duas vezes, um olhar de relance para o seu rosto vigoroso e sério provocava uma onda de ansiedade que me despertava como se fosse água fria. Helen queria ter ficado no seu quarto afinal de contas, o que é que a senhoria iria pensar se descobrisse este arranjo? — mas eu pressionei-a até ela concordar, ainda que contrariada, em dormir sob a minha vigilância. Eu vira demasiados filmes ou lera muita ficção, e sabia que uma mulher que ficasse sozinha durante algumas horas à noite poderia ser a próxima vítima do demônio. Helen estava tão cansada que certamente adormeceria, como eu podia ver pelas sombras profundas sob os seus olhos, e tinha a leve impressão de que também estava assustada. Aquele lampejo de medo nela assustou-me mais do que o choro de terror noutra mulher e espalhou uma cafeína sutil nas minhas veias. É possível, também, que uma certa languidez e fragilidade da sua postura, habitualmente erecta e altiva, daqueles ombros largos tão determinados durante o dia, tenha mantido os meus olhos abertos. Estava deitada de lado, uma das mãos debaixo da minha almofada, os caracóis mais escuros do que nunca sobre a brancura da fronha.

Não conseguia concentrar-me para ler ou para escrever. E não tinha a menor vontade de abrir a minha pasta, que por precaução enfiara debaixo da cama em que Helen dormia. Mas as horas iam-se passando e não houve nenhum arranhar misterioso no corredor, nenhum animal a farejar pelo buraco da fechadura, não houve fumo a invadir o quarto silenciosamente por baixo da porta nem bater de asas contra a janela. Finalmente, uma leve claridade acinzentada espalhou-se pela penumbra e Helen suspirou mansamente, como se percebesse o raiar do dia. Então, um palmo de luz do sol abriu caminho através das persianas e mexeu-se. Peguei no casaco, tirei a pasta de debaixo da cama com o mínimo de ruído possível e saí do quarto por delicadeza, para esperar por ela à entrada, no andar de baixo.

Ainda não eram seis horas, mas um cheiro forte a café vinha de algum lugar da casa e, para minha surpresa, encontrei Turgut sentado numa das cadeiras de forro bordado, com uma pasta preta no colo. Tinha um ar incrivelmente repousado e desperto e, logo que me viu entrar, levantou-se de um salto para me apertar a mão.

— Bom dia, meu amigo. Agradeço aos deuses por tê-lo encontrado imediatamente.

— Também lhes estou grato por encontrá-lo aqui — respondi, afundando-me numa poltrona perto dele. — Mas o que o traz aqui tão cedo?

— Ah, não podia ficar longe tendo novidades para lhe contar.

— Também tenho novidades — disse eu, soturno. — Fale primeiro, doutor Bora.

— Turgut — corrigiu-me, ele meio distraído. — Veja isto. — E começou a desatar o cordão que prendia a pasta. — Como prometi, ontem à noite dei uma vista de olhos nos meus papéis. Já os tinha examinado muitas vezes e, é claro, não me surpreendi por não encontrar nada de novo. Fiz cópias do material que estava nos arquivos, como viu, além de ter reunido também muitos relatos diferentes dos acontecimentos ocorridos em Istambul durante o período da vida de Vlad e imediatamente após a morte dele.

Respirou fundo e prosseguiu:

— Alguns desses escritos fazem referência a acontecimentos misteriosos na cidade, mortes, rumores de vampirismo. Também juntei todas as informações que obtive a partir de pesquisas em determinados livros que pudessem dizer-me algo sobre a Ordem do Dragão na Valáquia. Mas não encontrei nada de novo ontem à noite Então, resolvi telefonar ao meu amigo Selim Aksoy. Ele não é da universidade tem uma loja, mas é um homem muito instruído. Sabe mais de livros do que qualquer outra pessoa em Istambul, sobretudo daqueles que contam a história e as lendas da nossa cidade. É uma pessoa muito amável, e passou a maior parte da noite comigo a vasculhar a sua própria biblioteca. Pedi-lhe que procurasse qualquer vestígio de um enterro de alguém da Valáquia aqui em Istambul no final do século quinze, ou qualquer sinal de que possa haver aqui um túmulo de alguma forma relacionado com a Valáquia, a Transilvânia ou com a Ordem do Dragão. Mostrei-lhe também — e não foi a primeira vez as cópias dos mapas e o meu livro do dragão, e expliquei-lhe a sua teoria de que aquelas imagens representam um local, o local do túmulo do Empalador.

"Juntos, folheamos muitas, muitas páginas sobre a história de Istambul, examinamos gravuras antigas e os cadernos de anotações em que ele copia as mais diversas coisas que encontra em bibliotecas e museus. É muito diligente, esse Selim Aksoy. Não tem mulher, nem família, nem outros interesses. A história de Istambul consome-o. Passou a noite a trabalhar, porque a sua biblioteca pessoal é tão grande que nunca conseguiu absorver tudo o que ela contém, e não estava em condições de me dizer o que poderíamos descobrir. Finalmente, encontramos uma estranha coisa, uma carta — reproduzida num livro sobre a correspondência entre os ministros da corte do sultão e diversos territórios distantes pertencentes ao Império nos séculos quinze e dezesseis. Selim Aksoy disse-me que comprou esse exemplar a um livreiro em Ancara. A impressão é do século dezenove, e foi compilado por um dos nossos historiadores de Istambul, que estava interessado em todos os registros daquele período. Selim também me disse que nunca tinha visto outro exemplar deste livro.

Esperei pacientemente, percebendo a importância de todas essas informações e o fato de Turgut ser tão minucioso. Para um especialista em literatura, ele era um historiador de primeira categoria.

— Não, Selim não conhece nenhuma outra edição deste livro, mas acredita que os documentos nele reproduzidos não são — como é que se diz... forjados, porque já viu o original de uma das cartas na mesma coleção que visitamos ontem. Ele também adora aquele arquivo, sabe, e encontro-o lá com frequência sorriu. Bem, no referido livro, quando os nossos olhos já quase se fechavam de fadiga e a aurora se anunciava, encontramos uma carta que pode ser de alguma importância para a sua busca. O editor da coletânea acredita que seja do final do século quinze. Traduzi-lhe a carta. Está aqui.

Turgut tirou da pasta uma folha de caderno.

— Lamentavelmente, a carta anterior a que esta se refere não consta do livro. Só Deus sabe, mas provavelmente já não existe em lugar nenhum, ou o meu amigo Selim tê-la-ia encontrado há muito tempo.

Pigarreou e leu em voz alta:

— "Ao mui ilustre Rumeli Kadiasker..." — fez uma pausa. — Este era o supremo magistrado militar para os Balcãs, sabe. — Eu não sabia, mas balancei a cabeça e ele prosseguiu: — "Ilustre senhor, realizei a investigação que me foi solicitada. Alguns dos monges colaboraram de muito bom grado pela quantia que combinamos e examinei pessoalmente a sepultura. O que eles me disseram originalmente é verdadeiro. Recomendo uma nova investigação deste assunto em Istambul. Deixei dois guardas em Snagov para vigiar qualquer atividade suspeita. Curiosamente, não houve registros de casos de peste aqui. Vosso servidor, em nome de Alá."

— E a assinatura? — perguntei. O meu coração batia com força; mesmo depois da minha noite em claro, estava totalmente acordado.

— Não há assinatura. Selim acha que pode ter sido rasgada do original, acidentalmente ou para proteger a privacidade do homem que escreveu a carta.

— Ou talvez nem tenha sido assinada, para manter o segredo — sugeri. — E não há outras cartas no livro que façam referência a este assunto?

— Nenhuma. Nem anteriores nem posteriores. É um fragmento, mas o Rumeli Kadiasker era muito importante, portanto isto deve ter sido uma questão muito séria. Depois, procuramos árdua e prolongadamente nos outros livros do meu amigo e não encontramos mais nada relacionado com este assunto. Ele disse-me que, tanto quanto se lembra, nunca viu a palavra "Snagov" noutros relatos sobre a história de Istambul. Leu essas cartas uma vez há poucos anos sem achar que a palavra fosse significativa — foi quando eu lhe disse que se trata do local onde supostamente Drácula foi sepultado pelos seus seguidores que o fez reparar nela enquanto examinávamos os papéis. Por isso, talvez ele a tenha de fato visto noutra ocasião e não se lembre.

— Meu Deus — disse eu, pensando não apenas nas sutis probabilidades de Mr. Aksoy ter visto a palavra noutra ocasião, como nessa perturbante ligação entre Istambul, que nos rodeava, e a distante Romênia.

— Sim — e Turgut sorriu tão alegremente como se estivéssemos a discutir a ementa do pequeno-almoço. — Os inspetores públicos para os Balcãs estavam muito preocupados com alguma coisa aqui em Istambul, tão preocupados que enviaram alguém ao túmulo de Drácula em Snagov.

— Mas, que raio é que eles encontraram? — Bati com o punho no braço da cadeira. — O que é que os padres de lá disseram? E por que razão estavam apavorados?

Esse é exatamente o motivo da minha perplexidade — concordou Turgut. — Se Vlad Drácula estava a repousar pacificamente lá, por que estariam preocupados com ele a centenas de quilómetros de distância, em Istambul? E, se o túmulo de Vlad está realmente em Snagov e sempre esteve, por que será que os mapas não correspondem àquela região?

Eu podia apenas apreciar a exatidão das perguntas dele.

— Há outra coisa — disse eu. — Acha que existe de fato uma possibilidade de Drácula estar sepultado aqui em Istambul? Isso explicaria a preocupação de Mehmed com ele depois da sua morte, e a presença de vampirismo aqui a partir dessa época?

Turgut bateu as mãos uma na outra diante de si e apoiou um grande dedo no queixo.

— Essa é uma questão de peso, meu amigo Vamos precisar de ajuda para isso, e acho que o meu amigo Selim é a pessoa certa para nos ajudar

Ficamos a olhar-nos em silêncio no vestíbulo sombrio da pensão, com o cheiro a café a pairar entre nós, novos amigos unidos por uma velha causa. Então, Turgut despertou.

— Não ha dúvida de que precisamos procurar mais, ir mais longe. Selim disse que nos acompanhará ao arquivo assim que estiverem prontos. Ele sabe de fontes que existem lá sobre a Istambul do século quinze, a que eu próprio não prestei muita atenção porque estão fora dos meus interesses relacionados com Drácula. Vamos examiná-las juntos. O meu amigo bibliotecário certamente ficará feliz por nos mostrar esse material antes do horário de abertura ao público, se eu lhe pedir. Ele mora perto do arquivo e pode abri-lo para nós antes de sair. Tem de ir trabalhar. Mas onde está Miss Ross? Já terá deixado os seus aposentos?

A frase provocou-me uma confusa e súbita convergência de pensamentos na cabeça, e eu não sabia a que problema devia acudir primeiro. A menção ao amigo bibliotecário de Turgut lembrou-me de novo o meu inimigo bibliotecário, de quem quase me esquecera, na excitação causada pela carta. Agora, enfrentava a peculiar tarefa de abalar a credulidade de Turgut contando-lhe o encontro com um homem morto, embora a sua crença em vampiros históricos provavelmente se estendesse aos contemporâneos. A pergunta dele sobre Helen, contudo, lembrava-me de que a deixara sozinha por demasiado tempo, o que era imperdoável. A minha intenção fora dar-lhe privacidade ao acordar, e contava que ela descesse logo depois de mim. Por que não aparecera ainda? Turgut continuava a falar

— Então, Selim — que nunca dorme, sabe — foi tomar o pequeno almoço, porque não queria apanhá-los de surpresa —, ah, aí está ele!

A campainha da porta da pensão tocou e um homem esguio entrou, fechando a porta atrás de si. Acho que esperava uma presença venerável, um homem idoso com um fato de executivo, mas Selim Aksoy era jovem, magro e vestia calças escuras folgadas e bastante coçadas com uma camisa branca. Veio ao nosso encontro, pressuroso, no rosto uma expressão intensa que não chegava a ser um sorriso. Só quando apertei a sua mão ossuda é que reconheci os olhos verdes e o nariz comprido e fino. Já o vira antes, e de perto. Demorei mais uns segundos a situá-lo, até que me veio a memória a mão fina estendendo-me um livro de Shakespeare. Era o vendedor de livros da pequena loja junto ao bazar.

— Mas nós já nos encontramos! — exclamei, e ele exclamou algo semelhante ao mesmo tempo que eu no que me pareceu um amálgama de turco e inglês. Turgut olhou de um para outro, visivelmente espantado, e, quando expliquei, riu-se, depois sacudiu a cabeça, admirado.

— Coincidências — disse apenas.

— Estão prontos? — Mr. Aksoy recusou com um gesto a cadeira que Turgut lhe indicava na sala de estar.

— Ainda não — disse eu. — Se me permite, vou ver como está Miss Rossi e quando poderá juntar-se a nós.

Turgut assentiu com um ar um tanto ingénuo demais. Esbarrei contra Helen nas escadas literalmente, pois dei comigo a subir os degraus de três em três. Ela segurou-se ao corrimão para não cair pela escada abaixo.

— Livra! — disse, zangada. — Onde vai com tanta pressa? — Esfregava o cotovelo e eu tentava não sentir o roçar do seu fato preto e do seu ombro firme no meu braço.

— À sua procura — respondi. — Desculpe, magoou-se? Só fiquei um pouco preocupado porque a deixei sozinha lá em cima tanto tempo.

— Estou ótima — disse ela, com mais suavidade. — Tenho estado a pensar... Quanto tempo falta para o professor Bora chegar?

— Já está lá em baixo — anunciei —, e trouxe um amigo.

Helen também reconheceu o jovem livreiro e ficaram a conversar, hesitantemente, enquanto Turgut telefonava para Mr. Erozan e gritava para o bocal do telefone.

— Houve uma chuvada — explicou ele ao voltar. — As linhas ficam um pouco roufenhas nesta parte da cidade quando chove. O meu amigo pode ir encontrar-se conosco no arquivo agora mesmo. Pela voz, parecia adoentado, talvez uma constipação, mas disse que ia já para lá. Quer café, minha senhora? E compro-lhe pãezinhos de sésamo no caminho.

Beijou a mão de Helen, para minha irritação, e saímos todos apressadamente.

Esperava ficar para trás com Turgut enquanto andávamos, para poder falar-lhe em particular sobre o aparecimento do mórbido bibliotecário da minha universidade; não achava conveniente comentar o assunto em frente de um estranho, sobretudo de alguém que, segundo Turgut, tinha pouco interesse em caçar vampiros. Turgut, entretanto, já estava profundamente mergulhado numa conversa com Helen antes de completarmos o primeiro quarteirão, e tive o duplo aborrecimento de vê-la conceder-lhe a ele o seu raro sorriso e saber que não podia transmitir uma informação necessária e urgente. Mr. Aksoy seguia ao meu lado, lançando-me um olhar de vez em quando, mas a maior parte do tempo parecia tão absorto nos seus pensamentos que não me sentia à vontade para o interromper com observações sobre a beleza matinal das ruas.

Encontramos a porta exterior da biblioteca destrancada Turgut disse com um sorriso que sabia que o seu amigo não se demoraria e entramos em silêncio, Turgut dando galantemente passagem a Helen. A pequena entrada, com os seus belos mosaicos e o livro de registro aberto e preparado para os visitantes do dia, estava deserta. Turgut segurou a porta interior para Helen entrar, e ela já avançara bastante no vestíbulo silencioso e imerso em obscuridade quando a ouvi prender a respiração, parando tão inopinadamente que o nosso amigo quase tropeçou atrás dela. Algo me fez eriçar os cabelos da nuca antes mesmo de perceber o que estava a acontecer, e em seguida outra coisa bem diferente fez-me empurrar o professor com brutalidade e colocar-me ao lado de Helen.

O bibliotecário que nos esperava estava imóvel no meio da sala, o rosto virado para nós, como se aguardasse ansioso a nossa chegada. Não era, porém, a figura amigável que imaginávamos, nem trazia a caixa que esperávamos poder examinar outra vez, ou uma pilha de manuscritos empoeirados sobre a história de Istambul. O seu rosto era pálido, sem vida — exatamente como se a vida se tivesse esvaído dele. Não era o amigo bibliotecário de Turgut, mas o que nós conhecíamos, alerta e de olhos brilhantes, nos lábios um vermelho pouco natural, o olhar esfaimado e ardente voltado para nós. No instante em que os seus olhos se fixaram em mim, a minha mão latejou no ponto em que ele a torcera violentamente na biblioteca da minha universidade. Estava ávido de alguma coisa. Ainda que eu tivesse tranquilidade de espírito para conjecturar sobre aquela avidez — se era sede de conhecimento ou de qualquer outra coisa —, não teria tido tempo para formar o pensamento. Antes que eu desse um passo para me colocar entre Helen e a asquerosa personagem, ela tirou uma pistola do bolso do casaco e disparou sobre ele.

 

Mais tarde, conheci Helen numa grande variedade de situações, inclusive aquelas a que chamamos vida quotidiana, e ela nunca deixou de me surpreender. Muitas vezes, o que me espantava nela eram as rápidas associações que a sua mente fazia entre um fato e outro, associações que em geral resultavam em conclusões a que eu só chegaria muito devagar. Deslumbrava-me, também, com a maravilhosa vastidão dos seus conhecimentos. Helen era cheia destas surpresas, e passei a considerá-las a minha ração diária, o vício agradável que adquiri de admirar a sua capacidade para me apanhar desprevenido. Mas nunca me surpreendeu mais do que naquele dia em Istambul quando, subitamente, disparou sobre o bibliotecário.

No entanto, nem tive tempo de me surpreender, porque ele cambaleou para o lado e arremessou um livro na nossa direção que quase me acertou na cabeça. O livro bateu numa mesa algures à minha esquerda e ouvi-o cair no chão. Helen disparou outra vez, avançando e fazendo pontaria com uma segurança que me tirou a respiração. Então, o que chamou a minha atenção foi a reação anormal da criatura. Nunca tinha visto ninguém ser baleado exceto no cinema, mas ai, ai de mim, assistira à morte de milhares de índios em tiroteios quando tinha uns onze anos e, mais tarde, de todo o tipo de vigaristas, ladrões de bancos e vilões, incluindo hordas de nazis criados expressamente para serem alvejados por uma entusiástica Hollywood no tempo da guerra. O que houve de estranho naquele caso, desta vez real, foi o fato de, apesar de aparecer uma mancha escura na roupa do bibliotecário algures abaixo do esterno, ele não levar a mão agonizante à ferida. O segundo tiro apanhou-o de raspão no ombro, nessa altura ja ele estava a correr e desapareceu entre as estantes do fundo da sala. A porta Turgut gritou nas minhas costas.

— Há uma porta ali! — E todos corremos atrás dele, tropeçando em cadeiras e passando entre as mesas. Selim Aksoy, leve e ligeiro como um antílope, chegou primeiro as estantes e desapareceu no meio delas. Ouvimos um tumulto e um baque, depois uma porta a bater, e encontramos Mr. Aksoy tentando desvencilhar-se de um monte de frágeis manuscritos otomanos com um inchaço arroxeado num lado da cara. Turgut correu para a porta e eu corri atrás dele, mas estava bem fechada. Quando conseguimos abri-la, descobrimos apenas uma ruela vazia, à exceção de uma pilha de caixas de madeira. Procuramos no emaranhado de ruas da vizinhança, mas não havia sinal da criatura ou da sua fuga. Turgut interpelou uns quantos transeuntes, mas ninguém vira o nosso homem.

Relutantes, voltamos para o arquivo pela porta das traseiras e encontramos Helen a segurar o seu lenço de encontro à face de Mr. Aksoy. O revólver não estava à vista e os manuscritos tinham sido cuidadosamente arrumados na prateleira outra vez. Ela levantou a cabeça quando entramos.

— Ele desmaiou por um minuto — disse ela, suavemente, — mas agora já está bem.

Turgut ajoelhou-se perto do amigo.

— Meu caro Selim, que inchaço enorme tem aí.

Selim Aksoy sorriu, com ar abatido.

— Estou a ser bem assistido — disse.

— Estou a ver — concordou Turgut. — Minha senhora, tenho de cumprimentá-la pela tentativa. Mas é inútil tentar matar um homem morto.

— Como é que sabia? — perguntei, atônito.

— Ah, eu sei — disse ele, soturno. — Conheço aquele tipo de rosto. É a expressão dos mortos-vivos. Não há nada parecido. Já a vi antes.

— Era uma bala de prata. — Helen segurou a compressa com mais firmeza no rosto de Mr. Aksoy e fez a cabeça dele apoiar-se de novo no seu ombro. — Mas, como viu, ele moveu-se e não lhe acertei no coração. Sei que corri um grande risco por um instante — olhou intensamente para mim, mas não consegui ler os seus pensamentos, — mas, como viram, o meu cálculo estava certo. Um homem mortal teria ficado seriamente ferido com aqueles tiros — suspirou e ajustou a compressa.

Eu olhava de um para o outro, abismado.

— Andou com um revólver este tempo todo? — perguntei a Helen.

— Claro — passou o braço de Aksoy por cima do seu ombro. — Venham cá, ajudem-me a levantá-lo. — Juntos, erguemo-lo ele era leve como uma criança e ajudamo-lo a ficar de pé. Ele sorriu e abanou a cabeça, dispensando mais ajuda. — Trago sempre a minha pistola comigo quando sinto algum tipo de... apreensão. E não é assim tão difícil arranjar uma ou duas balas de prata.

— Lá isso é verdade — Turgut assentiu com a cabeça.

— Mas onde aprendeu a disparar assim? — eu ainda estava atordoado por aquele momento em que Helen tinha sacado a arma e feito pontaria tão depressa.

Helen riu.

— No meu país, a nossa educação é tão intensa como limitada — disse ela. — Ganhei um prêmio de tiro na nossa brigada de juventude quando tinha dezesseis anos. Estou contente por não me ter esquecido de como se faz.

De repente, Turgut deu um grito e bateu na testa.

— O meu amigo! — Todos olhamos para ele. — O meu amigo, Erozan. Esqueci-me dele!

Demoramos só um segundo para perceber o sentido das palavras. Selim Aksoy, que parecia recuperado, foi o primeiro a correr na direção das estantes onde fora agredido, e nós espalhamo-nos rapidamente pela comprida sala, procurando sob as mesas e debaixo das cadeiras. A busca durou alguns minutos sem resultado. Então, ouvimos Selim chamar-nos e fomos todos para junto dele. Estava ajoelhado ao pé de uma estante alta repleta de todos os tipos de caixas, sacos e rolos de documentos. A caixa que abrigava os papéis da Ordem do Dragão encontrava-se no chão a seu lado, a tampa decorada aberta e parte do conteúdo espalhada em volta.

No meio destas relíquias, Mr. Erozan estava estendido de costas, branco e imóvel, a cabeça caída sobre um dos ombros. Turgut ajoelhou-se e encostou o ouvido no peito do homem.

— Graças a Deus — disse, logo depois. — Está a respirar.

Depois, examinando-o mais atentamente, apontou para o pescoço do seu amigo. Bem fundo, na carne macia e clara logo acima do colarinho da camisa, havia uma ferida aberta. Helen ajoelhou-se ao lado de Turgut. Ficamos em silêncio por uns segundos. Mesmo depois de ler a descrição feita por Rossi do funcionário que o enfrentara muitos anos antes, mesmo depois da agressão a Helen na biblioteca da minha universidade, achei difícil acreditar no que via. O rosto do homem estava terrivelmente pálido, quase cinzento, e a sua respiração saía em arquejos curtos, que mal se ouvia, a não ser que se prestasse atenção.

— Ele foi contaminado — disse Helen em voz baixa. — E acho que perdeu sangue.

— Maldito seja este dia! — O rosto de Turgut estava angustiado e apertava a mão do amigo nas suas duas mãos enormes.

Helen foi a primeira a recompor-se.

— Vamos pensar com sensatez. Esta deve ter sido a primeira vez que ele foi atacado — virou-se para Turgut. — O senhor não viu nele nenhum sinal deste gênero quando estivemos aqui ontem?

Ele abanou a cabeça.

— Estava absolutamente normal.

Helen levou a mão ao bolso do casaco e eu recuei instintivamente, pensando que estivesse prestes a sacar da pistola outra vez. Mas ela tirou de lá uma cabeça de alho e colocou-a no peito do bibliotecário. Turgut sorriu, apesar da seriedade de toda a cena, e tirou também uma cabeça de alho do seu próprio bolso, colocando-a ao lado da outra. Eu não conseguia imaginar onde é que ela a teria arranjado — talvez durante o nosso passeio pelo souk, enquanto eu estava entretido com outras coisas?

— Vejo que os grandes espíritos pensam da mesma forma — disse-lhe Helen. Tirou do bolso um embrulho de papel e abriu-o, revelando um pequenino crucifixo de prata. Reconheci-o como sendo o que ela comprara na igreja católica próxima da nossa universidade, o mesmo que tinha usado para intimidar o perverso bibliotecário quando ele a atacara na seção de História da biblioteca.

Desta vez, Turgut estendeu a mão delicadamente, detendo-a.

— Não, não — disse ele, — temos as nossas próprias superstições aqui.

De um sítio qualquer dentro do casaco, tirou uma fieira de contas de madeira, igual à que eu vira nos cintos e nos pulsos de muitos homens nas ruas de Istambul. Esta terminava num medalhão esculpido e escrito em árabe numa das faces. Turgut encostou levemente o medalhão aos lábios de Mr. Erozan, cujo rosto se contorceu num esgar, como de repulsa involuntária, crispando-se e estremecendo. Foi uma visão horrível, se bem que passageira, e então os olhos do homem abriram-se e ele franziu as sobrancelhas. Turgut inclinou-se para ele, falando baixo em turco e tocando-lhe na testa, e deu ao ferido um gole de alguma coisa de um pequeno frasco que também saiu do seu bolso.

Um minuto depois, Mr. Erozan sentou-se e olhou em volta, apalpando o pescoço como se este lhe doesse. Quando os seus dedos encontraram a pequena ferida com os pingos de sangue seco, escondeu o rosto nas mãos e chorou, um som de cortar o coração.

Turgut pôs-lhe o braço em volta dos ombros e Helen pousou a mão no braço do bibliotecário. Dei comigo a refletir que era a segunda vez numa hora que a via cuidar de uma pessoa aflita tocando-lhe com ternura. Turgut começou a fazer perguntas ao homem em turco e, daí a pouco, sentou-se de novo sobre os calcanhares e olhou para nós.

Mr. Erozan disse que o desconhecido foi ao seu apartamento esta manhã bem cedo, quando ainda estava escuro, e ameaçou matá-lo se ele não lhe abrisse a biblioteca. O vampiro estava com ele quando lhe telefonei esta manhã, mas o meu amigo não se atreveu a falar-me sobre a presença dele. Quando o estranho homem soube quem tinha telefonado, disse que tinham de ir imediatamente para o arquivo. Mr. Erozan estava com medo de desobedecer e, quando chegaram aqui, o homem fê-lo abrir a caixa. Assim que a caixa foi aberta, o demônio saltou sobre ele, manteve-o preso contra o chão o meu amigo diz que ele era incrivelmente forte — e mordeu o pescoço de Mr. Erozan. E isto é tudo de que se lembra. Turgut abanou a cabeça tristemente. O bibliotecário agarrou subitamente o braço de Turgut e pareceu implorar-lhe qualquer coisa numa torrente de palavras em turco.

Turgut ficou calado por um momento, depois segurou a mão do amigo nas suas, colocou nela as contas de oração e respondeu-lhe em voz baixa.

— Ele disse-me que sabe que só pode ser mordido mais duas vezes por esse demônio antes de se tornar um deles. Pediu-me que, se isso vier a acontecer, eu o mate com as minhas próprias mãos. — Turgut virou-se e creio ter visto um brilho de lágrimas nos seus olhos.

— Isso não vai acontecer — disse Helen, com o rosto duro. — Vamos descobrir a origem dessa desgraça.

Eu não sabia se ela se referia ao cruel bibliotecário ou ao próprio Drácula, mas, quando vi os seus maxilares cerrados, quase acreditei que no fim venceríamos ambos. Já vira aquela expressão no seu rosto antes, e lembrei-me da cafetaria em que falamos pela primeira vez sobre os seus pais. Nessa altura, ela jurara encontrar o seu desleal pai e desmascará-lo para o mundo acadêmico. Seria imaginação minha, ou a sua missão mudara a partir de certo momento sem que ela se apercebesse?

Selim Aksoy movia-se, hesitante, atrás de nós, e disse outra vez alguma coisa a Turgut. Este assentiu com a cabeça.

— Mr. Aksoy lembrou-me a tarefa que nos trouxe aqui, e tem razão. Outros investigadores vão começar a chegar e temos de decidir se trancamos o arquivo ou o abrimos ao público. Ele ofereceu-se para não ir à sua loja hoje e substituir o bibliotecário aqui. Mas antes temos de pôr estes documentos em ordem e ver se sofreram algum dano, e, acima de tudo, temos de encontrar um lugar seguro para o meu amigo descansar. Além disso, Mr. Aksoy gostaria de nos mostrar uma coisa nos arquivos antes que haja outras pessoas presentes.

Comecei logo a reunir os documentos espalhados, e os meus piores receios confirmaram-se imediatamente:

— Os mapas originais foram-se — informei, melancólico.

Procuramos nas estantes, mas os mapas daquela estranha região semelhante a um dragão de cauda longa tinham desaparecido. Só podíamos concluir que o vampiro os escondera dentro da roupa antes da nossa chegada. Era uma triste conclusão. Tínhamos as cópias, é claro, tanto as de Rossi como as de Turgut, mas os originais representavam para mim a chave do paradeiro de Rossi, um elo mais próximo do que todos os outros que tivera até então.

Para acrescentar ao desalento pela perda desse tesouro, ocorreu-me que o sinistro bibliotecário poderia desvendar os seus segredos antes de nós. Se Rossi estivesse na tumba de Drácula, onde quer que esta se localizasse, o sinistro bibliotecário tinha agora uma boa oportunidade de chegar lá antes de nós. Senti mais do que nunca a urgência e a impossibilidade de encontrar o meu querido orientador. Pelo menos pensei outra vez, de modo estranho, Helen estava agora firmemente do meu lado.

Turgut e Selim, que conferenciavam ao lado do doente, viraram-se para lhe fazerem uma pergunta, ao que parecia, pois este tentou erguer-se e apontou debilmente para o local atrás das estantes. Selim desapareceu, voltando em seguida com um pequeno livro. Encadernado em couro vermelho e bastante gasto, com uma inscrição dourada em caracteres árabes na frente. Pousou-o na mesa mais próxima e folheou-o um pouco antes de chamar Turgut, que estava a dobrar o casaco para fazer um travesseiro onde apoiar a cabeça do amigo. O homem parecia um pouco melhor. Estive para sugerir que chamássemos uma ambulância, mas deduzi que Turgut devia saber o que estava a fazer. Levantou-se para ir ao encontro de Selim e os dois conversaram com veemência durante alguns minutos, enquanto Helen e eu evitávamos olhar um para o outro, ambos à espera de alguma descoberta e ambos receosos de uma decepção. Finalmente, Turgut chamou-nos.

— Isto era o que Selim Aksoy queria mostrar-nos esta manhã — disse ele, gravemente. — Para dizer a verdade, não sei se tem relação com a nossa busca. Todavia, vou ler-vos. Este é um volume compilado no início do século dezenove por pessoas cujos nomes nunca vi antes, historiadores de Istambul. Juntaram aqui todos os relatos que encontraram sobre a vida em Istambul nos primeiros anos da nossa cidade ou seja, começando em 1453, quando o sultão Mehmed tomou a cidade e a proclamou capital do seu império.

Apontou para uma página numa bela caligrafia árabe e pensei, pela centésima vez, que era uma pena as línguas humanas, e até os alfabetos, estarem separados uns dos outros por aquela frustrante Babel de diferenças, de modo que, quando me deparava com um texto impresso em otomano, a minha compreensão perdia-se imediatamente num emaranhado de símbolos tão impenetráveis como uma cerca de espinheiros mágicos.

— Esta é uma passagem de que Mr. Aksoy se lembrava de uma das suas pesquisas aqui. O autor é desconhecido e trata-se de uma narrativa de certos acontecimentos do ano de 1477; sim, meus amigos, um ano depois de Vlad Drácula ser morto em batalha na Valáquia. Aqui diz que, nesse ano, houve casos de peste em Istambul, uma peste que obrigou os imãs a enterrarem alguns dos cadáveres com estacas cravadas no coração. Depois, relata a chegada à cidade de um grupo de monges vindos dos Cárpatos — e isto foi o que fez Mr. Aksoy lembrar-se deste livro numa carroça puxada por mulas. Os monges pediram asilo num mosteiro de Istambul e permaneceram lá durante nove dias e nove noites. É tudo o que diz, e as associações entre os fatos são bastante obscuras, pois nada mais conta sobre os monges ou sobre o que foi feito deles. Foi da existência aqui desta palavra, "Cárpatos", que o meu amigo Selim quis que soubéssemos.

Selim Aksoy aprovou enfaticamente com a cabeça, mas não pude deixar de suspirar. O texto produzia um efeito singular: dava-me uma sensação de desassossego sem lançar qualquer luz sobre os nossos problemas. O ano, 1477, era de fato estranho, mas poderia ser uma coincidência. A curiosidade, porém, levou-me a fazer uma pergunta a Turgut:

— Se a cidade já estava sob o domínio dos Otomanos, como é que havia aqui um mosteiro para os monges se hospedarem?

— Uma boa pergunta, meu amigo — observou Turgut com seriedade. — Mas devo dizer-lhe que havia diversos mosteiros e igrejas em Istambul desde o início da ocupação otomana. O sultão foi muito benevolente ao permitir que se mantivessem.

Helen sacudiu a cabeça.

— Depois de ter permitido que o seu exército destruísse a maioria das igrejas da cidade ou as transformasse em mesquitas.

— É verdade que, quando o sultão Mehmed conquistou a cidade, permitiu que as suas tropas a pilhassem durante três dias — admitiu Turgut. — Mas não teria feito isto se a cidade se lhe tivesse rendido em vez de resistir; na realidade, ofereceu-lhes antes a alternativa de uma ocupação inteiramente pacífica. Também está escrito que, ao entrar em Constantinopla e constatar os estragos que os seus soldados tinham feito os edifícios desfigurados, as igrejas profanadas e os cidadãos assassinados, chorou pela maravilhosa cidade. A partir de então, autorizou o funcionamento de muitas igrejas e concedeu muitos benefícios aos cidadãos bizantinos.

— Também escravizou mais de cinquenta mil deles — acrescentou Helen, secamente. — Não se esqueça disso.

Turgut lançou-lhe um sorriso de admiração.

— A senhora é demais para mim. Mas eu só queria provar que os nossos sultões não eram monstros. Uma vez conquistada uma região, costumavam ser bastante clementes, tendo em conta os costumes da época. Foi só a conquista em si que não decorreu de modo muito agradável.

Apontou para uma parede distante.

— Ali está o Glorioso Mehmed em pessoa, se quiserem cumprimentá-lo. — Fui ver, embora Helen permanecesse obstinadamente no mesmo lugar.

A reprodução emoldurada aparentemente, uma cópia barata de uma aguarela mostrava um homem sólido, sentado, usando um turbante vermelho e branco. Tinha pele clara e barba delicada, sobrancelhas caligráficas e olhos castanhos. Segurava uma única rosa junto do seu grande nariz adunco, sentindo o seu perfume com o olhar perdido num ponto distante. Parecia-me mais um místico sufi do que um impiedoso conquistador.

— É uma imagem bastante surpreendente — reconheci.

— Sim, é. Ele era um devotado patrono das artes e da arquitetura e construiu muitos edifícios bonitos. — Turgut bateu no queixo com o seu dedo comprido. — Bem, meus amigos, o que acham deste relato que Selim Aksoy descobriu?

— É interessante — disse eu, delicadamente, — mas não vejo como nos poderá ajudar a encontrar a tumba.

— Eu também não — admitiu Turgut. — No entanto, vejo alguns pontos em comum entre esta passagem e a carta que vos li esta manhã. Os distúrbios na tumba de Snagov, quaisquer que tenham sido, ocorreram no mesmo ano, 1477. Já sabemos que foi um ano depois de Vlad Drácula ter morrido, e que havia um grupo de monges muito preocupados com alguma coisa em Snagov. Não poderiam ser os mesmos monges, ou algum grupo relacionado com Snagov?

— É possível — reconheci, — mas isso é uma mera conjectura. O relato diz apenas que os monges eram dos Cárpatos, onde devia haver vários mosteiros naquela época. Como podemos ter certeza de que eram do mosteiro de Snagov? O que lhe parece, Helen?

Devo tê-la apanhado de surpresa porque reparei que estava a olhar para mim com uma espécie de melancolia que eu nunca tinha visto no seu rosto. Contudo, a impressão dissipou-se imediatamente, e pensei que podia tê-la imaginado, ou que talvez Helen estivesse a lembrar-se da mãe, ou da nossa iminente viagem à Hungria. Fossem quais fossem os seus pensamentos, recompôs-se num instante.

— Sim, havia muitos mosteiros nos Cárpatos. Paul tem razão, não podemos relacionar os dois grupos sem mais informações.

Pareceu-me que Turgut ficou desapontado, e começou a dizer qualquer coisa quando fomos interrompidos por um arquejo sibilante. Era Mr. Erozan, ainda deitado no chão, em cima do casaco de Turgut.

— Desmaiou! — exclamou Turgut. — E nós aqui a tagarelar como gralhas... — Aproximou de novo o alho do nariz do amigo, o homem resmungou e reanimou-se um pouco.

— Depressa, temos de o levar daqui. Professor, minha senhora, ajudem-me. Vamos chamar um táxi e levá-lo para a minha casa, a minha mulher e eu podemos cuidar dele lá. Selim ficará aqui no arquivo, que deve abrir dentro de minutos. — E deu algumas ordens rápidas, em turco, a Aksoy.

Então, Turgut e eu levantamos o homem pálido e fraco do chão, depois apoiámo-lo entre nós dois e levámo-lo com cuidado pela porta das traseiras. Helen seguiu-nos com o casaco de Turgut, passamos todos pela ruela e um momento mais tarde estávamos do lado de fora, à luz do sol da manhã. Quando a claridade atingiu o rosto do bibliotecário, este encolheu-se, contraiu-se junto ao meu ombro e levou uma mão aos olhos, como se estivesse a defender-se de uma pancada.

 

A noite que passei naquela casa de quinta em Boulois, com Barley do outro lado do quarto, foi uma das mais despertas que alguma vez tivera. Fomo-nos deitar por volta das nove horas, já que não havia muito para fazer ali exceto ouvir as galinhas e ver a luz esmaecer por cima dos estábulos baixos. Para meu espanto, não havia luz elétrica na quinta. "Não reparou que não havia fios elétricos?" perguntou Barley — e a proprietária deixou-nos uma lanterna e duas velas antes de nos desejar boa noite. A sua luz, as sombras da antiga mobília encerada cresciam e erguiam-se acima de nós, e o bordado na parede tremeluzia suavemente

Depois de alguns bocejos, Barley deitou-se vestido sobre uma das camas e adormeceu logo. Não me atrevi a fazer o mesmo, mas também tive medo de deixar as velas arderem toda a noite. Finalmente apaguei-as, deixando apenas a lanterna acesa, que aprofundava terrivelmente as sombras a minha volta e fazia a escuridão atrás da nossa única janela parecer querer entrar pelo quarto dentro. Trepadeiras roçavam contra a vidraça, as árvores pareciam aproximar-se, e um barulho suave que poderia ser de corujas ou de pombos chegava-me fantasmagoricamente aos ouvidos enquanto permanecia deitada encolhida na minha cama. Barley parecia muito distante, a princípio, tinha ficado contente com aquelas camas completamente separadas, de modo que não haveria constrangimentos na hora de ir para a cama, mas agora queria que tivéssemos sido forçados a dormir costas com costas

Depois de ficar deitada ali tempo suficiente para me sentir congelada na mesma posição, vi uma luz difusa surgir aos poucos sobre as tábuas do soalho, vinda da janela. A Lua nascia, e com ela senti um certo abrandamento do meu terror, como se uma velha amiga tivesse vindo fazer-me companhia Tentei não pensar no meu pai, em qualquer outra viagem podia ter sido ele a estar deitado naquela outra cama com o seu pijama impecável, um livro caído ao seu lado Teria sido o primeiro a reparar naquela antiga casa de quinta, teria sabido que a sua parte central remontava aos tempos da Aquitânia, teria comprado três garrafas de vinho à simpática proprietária e conversado com ela sobre a sua vinha.

Ali deitada, perguntei-me involuntariamente o que faria caso o meu pai não sobrevivesse àquela viagem a Saint-Matthieu. Não era possível voltar para Amsterdã, e ficar a vaguear pela nossa casa sozinha com Mrs. Clay; isso só aumentaria o meu desgosto. No sistema europeu, ainda tinha dois anos de liceu antes de ir para uma universidade. Mas quem tomaria conta de mim até lá? Barley voltaria para a sua antiga vida; eu não podia esperar que ele se preocupasse comigo. Lembrei-me do reitor James, com o seu sorriso profundo e triste e as rugas bondosas à volta dos olhos. Então pensei em Giulia e Massimo, na sua casa de campo na Umbria. Vi Massimo a servir-me vinho – "E o que está a linda filha do Paolo a estudar?" e Giulia, dizendo que eu devia ficar com o melhor quarto. Eles não tinham filhos; gostavam muito do meu pai. Se o meu mundo se desmoronasse, iria para junto deles.

Apaguei a lanterna, agora mais corajosa, e fui até à janela em bicos dos pés para olhar lá para fora. Mal se via a Lua, num céu cheio de nuvens esgarçadas. Pela sua frente flutuou uma imagem que eu conhecia muito bem — não, foi apenas por um instante, e foi apenas uma nuvem, não foi? As asas abertas, a cauda retorcida? A imagem dissolveu-se imediatamente, mas fui para a cama de Barley, em vez de para a minha, e fiquei deitada durante horas tremendo, encostada ao seu corpo adormecido.

 

O processo de transportar o bibliotecário e instalá-lo na sala de estar oriental de Turgut — onde ele ficou, pálido mas composto, deitado num dos compridos divãs levou quase a manhã inteira. Ainda lá estávamos quando Mrs. Bora voltou ao meio-dia da escola. Entrou, cheia de vivacidade, carregando um saco de compras em cada pequena mão enluvada. Usava um vestido amarelo e um chapéu florido, de modo que parecia um narciso em miniatura. O seu sorriso também era doce e fresco, mesmo ao ver-nos de pé na sua sala à volta de um homem prostrado. Nada que o seu marido fizesse parecia surpreendê-la, pensei; talvez isso fosse um dos segredos para uma união bem sucedida.

Turgut explicou-lhe a situação em turco e a sua expressão alegre transformou-se primeiro num ar de óbvio ceticismo e depois de horror crescente quando ele lhe mostrou delicadamente a ferida no pescoço do seu mais recente hóspede. Lançou-nos, a Helen e a mim, um olhar de consternação muda, como se aquilo fosse para ela apenas o início de um terrível conhecimento. Depois, segurou a mão do bibliotecário, que, como eu sabia, um momento antes estava não só branca, mas fria. Segurou-a por um instante, enxugou os olhos e foi de seguida para a cozinha, de onde ouvimos o estrépito distante das suas panelas e frigideiras. O que quer que acontecesse mais, o pobre homem teria seguramente uma boa refeição. Turgut convenceu-nos a ficar e Helen, para minha surpresa, foi atrás de Mrs. Bora para a ajudar.

Quando nos certificamos de que Mr. Erozan descansava confortavelmente, Turgut levou-me para o seu lúgubre escritório por uns minutos. Com alívio, vi que as cortinas estavam bem fechadas sobre o retrato. Sentámo-nos para discutir a situação.

— Acha que é seguro o senhor e a sua mulher hospedarem este homem aqui? — não pude deixar de lhe perguntar.

— Vou tomar todas as precauções. Se ele melhorar dentro de um ou dois dias, arranjarei um sítio para ele ficar, e alguém para tomar conta dele.

Turgut tinha-me puxado uma cadeira e instalara-se atrás da sua secretária. Era quase, pensei, como estar de novo com Rossi no seu gabinete na universidade, excepto que o gabinete de Rossi era indiscutivelmente alegre, com as suas plantas viçosas e o café fumegante, e este era tão excentricamente sombrio.

— Não espero que se dê aqui nenhum outro ataque, mas, se houver, o nosso amigo americano vai enfrentar uma defesa formidável.

Vendo a sua sólida corpulência por detrás da mesa, não foi difícil acreditar.

— Sinto muito — disse eu. — Parece que lhe trouxe muitos problemas, professor, inclusivamente ao importar do meu país esta ameaça até à sua casa.

Resumi em poucas palavras os nossos encontros com o bibliotecário contaminado, entre eles o da noite anterior, em frente a Hagia Sophia.

— Extraordinário — disse Turgut. Os seus olhos estavam iluminados por um sombrio interesse e tamborilava com as pontas dos dedos no tampo da secretária.

— Também tenho uma pergunta para lhe fazer — confessei. — Esta manhã, no arquivo, disse que já tinha visto antes um rosto como aquele. Quando e como foi isso?

— Ah! — e o meu amigo erudito cruzou as mãos em cima da mesa. — Sim, vou contar-lhe isso. Já foi há muitos anos, mas lembro-me de tudo claramente, e, de fato, aconteceu poucos dias depois de eu receber a carta do professor Rossi a dizer que nada sabia sobre o arquivo daqui. Eu estivera no arquivo ao final da tarde, depois das minhas aulas isto foi quando a coleção estava guardada no antigo edifício da biblioteca, antes de se mudar para as atuais instalações. Lembro-me de que estava a fazer pesquisa para um artigo sobre uma peça perdida de Shakespeare, O Rei de Tasbkani, que, na opinião de algumas pessoas, se passava numa versão ficcionada de Istambul. Talvez já tenha ouvido falar dessa peça?

Abanei a cabeça, negando.

— É citada na obra de diversos historiadores ingleses. Através deles, sabemos que, na peça original, um espectro maligno chamado Dracole aparece ao rei de uma bela cidade antiga que ele — o rei conquistou à força. O espectro diz que outrora fora inimigo do rei, mas que agora vinha felicitá-lo pela sede de sangue que demonstrara. Então, insta o rei a beber o sangue dos habitantes da cidade, que agora são seus vassalos. É um excerto arrepiante. Alguns dizem que não é de Shakespeare, mas eu — e bateu confiante com a mão na beira da secretária, — eu acredito que a fraseologia, se o texto for citado corretamente, só pode ser de Shakespeare, e que a cidade é Istambul, rebatizada com o nome pseudoturco de "Tashkani". — Inclinou para a frente. — E também acredito que o tirano a quem o espectro aparece é o sultão Mehmed II, o conquistador de Constantinopla.

Senti um calafrio na nuca.

— Que significado atribui a isso? No que se refere à carreira de Drácula, quero dizer.

— Bem, meu amigo, é muito interessante para mim constatar que a lenda de Drácula, de tão poderosa que era, se infiltrou mesmo na Inglaterra protestante por volta de, digamos, 1590. Além do mais, se Tashkani for mesmo Istambul, isso mostra como era real a presença de Drácula na cidade no tempo de Mehmed. O sultão entrou na cidade em 1453. Só cinco anos depois de o jovem Drácula ter regressado à Valáquia vindo do seu cativeiro na Ásia Menor, e não há indícios seguros de que ele tenha voltado alguma vez à nossa região durante a sua vida, apesar de alguns estudiosos acharem que ele prestou pessoalmente tributo ao sultão. Não creio que isto possa ser provado. Tenho uma teoria de que ele deixou uma herança de vampirismo aqui, se não durante a vida, então após a morte. Mas — e suspirou, — a fronteira entre a literatura e a história é por vezes muito inconstante, e eu não sou historiador.

— O senhor é um excelente historiador — disse eu, humildemente. — Estou impressionado com todas a as linhas de investigação histórica que seguiu, e com que sucesso.

— E o senhor é muito amável, meu jovem amigo. Seja como for, certa noite, estava a trabalhar no meu artigo sobre essa teoria — que nunca foi publicado, lamentavelmente, porque os editores dos jornais a quem o submeti declararam que o seu conteúdo era demasiado supersticioso, e trabalhei até bastante tarde. Depois de cerca de três horas no arquivo, fui para um restaurante do outro lado da rua para tomar um borek. Você já experimentou um baretz?

Ainda não — admiti.

— Deve experimentar assim que tiver oportunidade, é uma das nossas deliciosas especialidades nacionais. Assim, fui para esse restaurante. Já estava escuro lá fora, porque era Inverno. Sentei-me a uma das mesas e, enquanto esperava, peguei na carta do professor Rossi que estava no meio dos meus papéis e reli-a. Como já disse, estava na posse da carta havia apenas alguns dias e estava bastante perplexo com ela. O criado trouxe-me a refeição e, por acaso, vi-lhe a cara enquanto servia os pratos. Tinha os olhos baixos, mas pareceu-me que de repente reparou na carta que eu estava a ler, com o nome de Rossi no cimo da folha. Lançou-lhe um ou dois olhares rápidos e penetrantes, depois pareceu apagar qualquer expressão do rosto, mas notei que parou atrás de mim para colocar mais um prato na mesa e tive a impressão de que olhava para a carta outra vez, por cima de meu ombro.

— Não conseguia explicar o comportamento dele, que me causava uma sensação extremamente desconfortável, portanto dobrei a carta e preparei-me para começar a comer. Ele afastou-se em silêncio e não pude evitar observá-lo enquanto andava pelo restaurante. Era um homem grande, pesado, de ombros largos e cabelo escuro puxado para trás, olhos grandes também escuros. Teria sido bonito se não tivesse uma aparência — como direi? — um tanto sinistra. Pareceu ignorar-me durante uma hora, mesmo depois de eu terminar a refeição. Peguei num livro para ler por alguns minutos e então, de repente, ele aproximou-se de novo da mesa e colocou uma chávena de chá fumegante à minha frente. Eu não tinha pedido chá e fiquei surpreendido. Pensei que fosse uma espécie de cortesia, ou um engano. "O seu chá" — disse ele, ao servi-lo. — "Assegurei-me de que estivesse bem quente."

— Então, olhou-me diretamente nos olhos e não sei explicar como o seu rosto me aterrorizou. Era pálido, quase amarelo, como se estivesse... não sei como dizer... deteriorado por dentro. Os olhos eram negros e brilhantes, quase como os de um animal, encimados por grandes sobrancelhas. A boca parecia feita de cera vermelha e os dentes eram muito brancos e compridos, estranhamente saudáveis num rosto doentio. Sorriu quando se curvou com o chá e senti o seu estranho odor, que me fez sentir doente e enjoado. Pode rir-se, meu amigo, mas era um pouco como um cheiro que sempre achei agradável noutras circunstâncias, o cheiro de livros velhos. Conhece esse cheiro, de pergaminho, de couro e... de qualquer coisa mais?

Eu conhecia, e não tive vontade nenhuma de rir. Turgut prosseguiu:

— Um segundo depois, afastou-se, dirigindo-se sem pressa para a cozinha do restaurante, e tive a impressão de que tinha querido mostrar-me alguma coisa. O seu rosto, talvez. Queria que eu o visse bem, e no entanto nada havia de específico nele que eu pudesse definir para justificar o meu terror.

Turgut empalidecera, agora, recostado na sua cadeira medieval.

— Para acalmar os nervos, pus açúcar no chá de uma taça que havia em cima da mesa, peguei na colher e mexi-o. Estava decidido a acalmar-me com a bebida quente, mas uma coisa muito... muito estranha aconteceu.

A sua voz arrastou-se, como se quase se arrependesse de ter começado a história. Eu conhecia muito bem aquela sensação e fiz um gesto com a cabeça para o incentivar.

— Por favor, continue.

— A história parece estranha contada agora, mas estou a dizer a verdade. O fumo subiu da chávena — sabe como o fumo gira em espiral quando se mexe uma coisa quente? — e, quando mexi o chá, subiu na forma de um minúsculo dragão, que girou por cima da chávena e pairou ali por alguns segundos antes de desaparecer. Vi-o claramente com os meus próprios olhos. Pode imaginar como me senti, naquele momento, inseguro, sem confiar em mim mesmo, e então juntei rapidamente os meus papéis, paguei a conta e fui-me embora. A minha boca estava seca.

— E voltou a ver esse criado?

— Nunca mais. Não voltei ao restaurante durante algumas semanas; porém, a curiosidade venceu-me, e entrei lá certo dia depois do anoitecer, mas não havia sinal dele. Cheguei a perguntar por ele a um dos outros criados, e esse criado disse-me que o homem trabalhara lá apenas por pouco tempo e que não sabia o apelido dele. O nome próprio, segundo o criado, era Akmar. Nunca mais vi nem sombra dele.

— E acha que a cara dele mostrava que estava... hesitei.

— Fiquei apavorado com aquela cara. É o que lhe teria dito na altura. Quando vi o rosto do bibliotecário que, de acordo com as suas palavras, importou do seu país, foi como se já o conhecesse .Não é apenas a aparência da morte. Há qualquer coisa na expressão... — voltou-se, inquieto, e lançou um olhar para o nicho coberto pela cortina onde o retrato estava pendurado. Uma coisa que me intriga na história que me contou, na informação que acabou de me dar, é que esse bibliotecário americano fez progressos em prol de sua condenação espiritual desde que vocês os dois o encontraram pela primeira vez.

— O que quer dizer?

— Quando ele atacou Miss Rossi na biblioteca da sua universidade, o senhor conseguiu derrubá-lo. Mas o meu amigo do arquivo, que ele atacou esta manhã, disse que ele é muito forte, e o meu amigo não é muito mais fraco do que você. O demônio também conseguiu tirar uma considerável quantidade de sangue do meu amigo, infelizmente. E contudo esse vampiro estava na rua durante o dia quando o vimos, portanto não pode estar totalmente contaminado. Presumo que a vida dessa criatura tenha sido sugada uma segunda vez na vossa universidade ou aqui em Istambul, e, se ele tem contatos aqui, em breve vai receber a sua terceira bênção maléfica e tornar-se morto-vivo para sempre.

— Sim — disse eu. — Não há nada que possamos fazer em relação ao bibliotecário americano sem sermos capazes de o encontrar; por isso, vai ter de guardar o seu amigo aqui com muito cuidado.

— É o que farei — disse Turgut, enfático e severo. Calou-se por um instante, depois virou-se para a sua estante. Sem uma palavra, tirou um grande álbum com letras latinas escritas na capa. — Romeno — disse. — É uma coleção de imagens de igrejas da Transilvânia e da Valáquia, feita por um historiador de arte que morreu recentemente. Reproduziu muitas imagens de igrejas que foram mais tarde destruídas pela guerra, lamento dizê-lo. Por isso este livro é tão precioso. Estendeu-me o livro. Por que não o abre na página vinte e cinco?

Obedeci. Encontrei uma página dupla ocupada inteiramente pela gravura colorida de um mural. A igreja que outrora o abrigara era mostrada numa pequena fotografia a preto e branco, sobreposta: uma construção elegante com campanários em espiral. Mas foi a imagem maior que me chamou a atenção. À esquerda, sobressaía um dragão feroz a voar, a cauda enroscada não uma, mas duas vezes, o olho dourado revirando-se enlouquecido, a boca cuspindo fogo. Parecia prestes a lançar-se para atacar a figura à direita, um homem agachado usando uma cota de malha e turbante às riscas. O homem encolhia-se de medo, uma cimitarra curva numa das mãos e um escudo redondo na outra. A princípio, pensei que estivesse no meio de um campo de estranhas plantas, mas, quando olhei com atenção, vi que as formas em volta dos seus joelhos eram pessoas, uma diminuta floresta de pessoas, e que todas se contorciam, empaladas em estacas. Algumas usavam turbantes, iguais aos do gigante no centro, mas outras estavam vestidas com uma espécie de traje típico de camponeses. Outras ainda vestiam brocados ondulantes e barretes compridos de pele. Havia cabeças loiras e escuras, nobres com longos bigodes castanhos e até alguns padres ou monges de batinas negras e chapéus altos. Havia mulheres com tranças penduradas, meninos nus, bebés. Havia mesmo um ou dois animais. Todos num sofrimento atroz.

Turgut observava-me.

— Essa igreja foi objeto de doações de Drácula durante o seu segundo reinado — disse ele, baixinho.

Fiquei a olhar ainda um pouco para a imagem. Quando não aguentei mais, fechei o livro. Turgut tirou-mo da mão e pô-lo de lado. Quando se voltou para mim, o seu olhar era ardente.

— E agora, meu amigo, como pretende encontrar o professor Rossi?

A pergunta abrupta penetrou em mim como uma lâmina.

— Ainda estou a tentar organizar todas estas informações na minha cabeça — admiti, falando devagar, — e, mesmo com todo o seu generoso trabalho da noite de ontem, e com o de Mr. Aksoy, não acho que saibamos muita coisa. Talvez Vlad Drácula tenha aparecido em Istambul depois da sua morte, mas como poderemos descobrir se foi sepultado aqui, ou se ainda aqui está sepultado? Isso continua a ser um mistério para mim. Quanto ao nosso próximo passo, só posso dizer-lhe que vamos a Budapeste por alguns dias.

— Budapeste?

Quase dava para ver as conjecturas a sucederem-se rapidamente no seu rosto largo.

— Sim. Deve lembrar-se da história que Helen lhe contou sobre a mãe dela e o Professor... o seu pai. Helen está convencida de que a mãe pode dar-nos informações que nunca revelou antes, e por isso vamos conversar com ela pessoalmente. A tia de Helen é uma figura importante no governo e vai contornar as dificuldades, assim esperamos.

— Ah — ele quase sorriu. — Demos graças aos céus pelos amigos em altas esferas. Quando partem?

— Talvez amanhã ou depois de amanhã. Vamos ficar lá cinco ou seis dias, penso eu, e depois voltamos para cá.

— Muito bem. É melhor levarem isto convosco.

Turgut levantou-se e tirou de uma vitrina o pequeno estojo de caça aos vampiros que nos mostrara na véspera. Colocou-o diretamente a minha frente.

— Mas é um dos seus tesouros — objectei. — De qualquer forma, é muito provável que não nos deixem passar na alfândega com ele.

— Oh, mas nunca deve mostrá-lo na alfândega. Tem de o esconder com o maior cuidado. Veja se pode escondê-lo no forro da sua mala, ou, melhor ainda, deixe ser Miss Rossi a levá-lo. Não vão inspeccionar a bagagem de uma mulher tão minuciosamente. — Fez um aceno animador com a cabeça. — O meu coração não vai ficar tranquilo se não o levarem. Enquanto estão em Budapeste, vou examinar muitos livros antigos para tentar ajudá-los, mas estarão no encalço de um monstro. Por agora, guarde-o na sua pasta, é muito leve. Peguei na caixa de madeira sem dizer mais nada e acomodei-a dentro da pasta ao lado do meu livro do dragão. E enquanto estiverem a conversar com a mãe de Helen, o que considero uma excelente idéia, aliás, vou estar a esquadrinhar tudo por aqui em busca do menor vestígio de uma tumba. Ainda não desisti da idéia. Semicerrou os olhos. Isso explicaria grande parte das desgraças que têm atormentado a nossa cidade desde aquele período sobre o qual temos falado Se pudéssemos não só explicá-las, mas também acabar com elas...

Naquele momento, a porta do gabinete abriu-se e Mrs. Bora chamou-nos para almoçar. Foi uma refeição tão deliciosa como a do dia anterior, mas muito mais sombria. Helen estava calada e parecia cansada. Mrs. Bora passou os pratos com uma graciosidade silenciosa e Mr. Erozan, apesar de se ter sentado por algum tempo à mesa para nos acompanhar, não conseguiu comer muito. Mrs. Bora fê-lo beber uma boa quantidade de vinho tinto, porém, e comer um pouco de carne, o que pareceu de certa forma recuperá-lo. Até Turgut estava mais moderado e parecia melancólico. Helen e eu despedimo-nos logo que as boas maneiras o permitiram.

Turgut levou-nos até à porta de casa e apertou-nos a mão com a cordialidade habitual, insistindo em que lhe telefonássemos quando os nossos planos de viagem estivessem definidos e prometendo-nos a sua inabalável hospitalidade no regresso. Depois, acenou com a cabeça para mim e deu umas pancadinhas na minha pasta, e percebi que, sem falar, ele se referia ao estojo que estava lá dentro. Abanei a cabeça em resposta e fiz um pequeno gesto a Helen, para lhe dar a entender que lhe explicaria mais tarde de que se tratava. Turgut ficou a acenar até já não o distinguirmos sob as tílias e os choupos e, quando o perdemos de vista, Helen passou o seu braço cansado sob o meu. O ar cheirava a lilases e, por um minuto, naquela venerável rua cinzenta, caminhando através de manchas de luz solar onde dançavam partículas de pó, quase podia acreditar que estávamos de férias em Paris.

 

Helen estava de fato cansada e, relutantemente, deixei-a na pensão para dormir uma sesta. Não me agradava que ficasse lá sozinha, mas ela alegou que a luz do dia era suficiente como proteção. Mesmo que o perverso bibliotecário soubesse onde estávamos, não era provável que entrasse a meio do dia em quartos trancados, e ela trazia consigo o seu pequeno crucifixo. Tínhamos muitas horas pela frente antes de Helen ligar de novo para a tia, e não podíamos tomar nenhuma providência para a nossa viagem até recebermos instruções dela. Deixei a minha pasta ao cuidado de Helen e forcei-me a sair, sentindo que enlouqueceria se permanecesse ali, fingindo ler ou tentando pensar.

Parecia uma boa oportunidade para visitar mais alguma coisa em Istambul; por isso, dirigi-me sem grandes dificuldades para o complexo labiríntico e cheio de cúpulas do palácio Topkapi, destinado pelo sultão Mehmed a ser a nova sede da sua conquista. Atraíra-me desde a nossa primeira tarde na cidade, tanto a sua imagem à distância como a do meu guia turístico. O Topkapi cobre uma grande área no promontório de Istambul e é rodeado em três dos seus lados pela água: o Bósforo, a baía do Corno de Ouro e o mar de Mármara. Eu desconfiava que, se deixasse de vê-lo, perderia a oportunidade de um contacto com a essência da história otomana de Istambul. Talvez estivesse outra vez a desviar-me para muito longe de Rossi, mas reflecti que o próprio Rossi teria feito o mesmo se tivesse umas horas de ócio forçado.

Fiquei decepcionado ao descobrir, passeando pelos parques, pátios e pavilhões onde o coração do Império pulsara durante centenas de anos, que pouca coisa do tempo de Mehmed estava exposta ali — apenas alguns adornos saídos do seu tesouro e algumas das suas espadas, amassadas e riscadas por um uso intenso. Penso que esperava sobretudo ter uma noção mais exata de como era o sultão cujo exército combatera Vlad Drácula e cujo tribunal de polícia se preocupara com a segurança da sua suposta tumba em Snagov. Era antes — pensei, recordando o jogo dos velhos no bazar como tentar determinar a posição do shah do adversário no shak-mat sabendo apenas qual é a posição do seu próprio shah.

No entanto, havia muita coisa no palácio para manter o meu espírito ocupado. De acordo com o que Helen me dissera no dia anterior, aquele era um mundo no qual mais de cinco mil criados, com títulos como o de Grande Enrolador de Turbantes, tinham outrora obedecido a vontade do sultão, onde eunucos eram os guardiões da virtude do seu enorme harém no que parecia uma prisão ornamentada, onde o sultão Suleimão, o Magnífico, que reinou em meados do século dezesseis, consolidou o Império, codificou as suas leis e transformou Istambul numa metrópole tão grandiosa como tinha sido no tempo dos imperadores bizantinos. Como eles, o sultão atravessava a cidade uma vez por semana para fazer as suas devoções em Hagia Sophia — mas a sexta-feira, o dia sagrado dos muçulmanos, e não aos domingos Era um mundo de rígido protocolo e de refeições sumptuosas, de tecidos e tapetes maravilhosos e mosaicos deslumbrantes, de vizires vestidos de verde e camareiros de vermelho, de botas fantasticamente coloridas e turbantes altos como torres.

Impressionara-me particularmente a descrição que Helen fizera dos janízaros, uma unidade de elite de guardas selecionados entre os rapazes capturados por todo o Império. Eu sabia que já lera a respeito deles, daqueles rapazes nascidos cristãos em lugares como a Sérvia e a Valáquia e criados no Islã, treinados para odiar os povos de onde haviam saído e, quando atingiam a idade adulta, lançados ao ataque desses mesmos povos como falcões as suas presas. Na realidade, tinha visto imagens desses janízaros em qualquer lado, talvez nalgum livro ilustrado. Pensando nos seus rostos jovens e inexpressivos, congregados para proteger o sultão, senti o frio que emanava dos edifícios do palácio cerrar-se a minha volta.

Ocorreu-me, enquanto andava de sala em sala, que o jovem Vlad Drácula teria dado um excelente janízaro. O Império perdera uma oportunidade, uma bela oportunidade, de incorporar um pouco mais de crueldade a sua enorme força. Teria sido preciso apanhá-lo bem jovem, pensei, mantendo-o talvez na Ásia Menor em vez de o devolver ao seu pai. Ele tornara-se demasiado independente depois disso, um renegado, leal apenas a si próprio e a mais ninguém, tão pronto a executar os seus próprios seguidores como a matar os seus inimigos turcos. Como Stalin — espantei-me com esse salto mental enquanto contemplava o cintilar das águas do Bosforo. Stalin morrera no ano anterior e novas histórias sobre as suas atrocidades tinham transpirado para a imprensa ocidental. Lembrei-me de um relato sobre um general, supostamente leal, que, pouco antes da guerra, Stalin acusara de querer derrubá-lo. O general fora retirado do seu apartamento a meio da noite e pendurado de cabeça para baixo nas traves de uma movimentada estação ferroviária fora de Moscou durante vários dias, até morrer. Todos os passageiros que entravam e saíam dos comboios o viram, mas nenhum se atreveu a olhar duas vezes na sua direção. Muito tempo depois, os moradores daquele bairro não foram capazes de chegar a um acordo sobre se aquilo teria ou não realmente acontecido.

Incómodos pensamentos deste gênero acompanharam-me de um maravilhoso aposento para outro, pelo palácio inteiro; em toda a parte sentia que havia algo sinistro ou perigoso, o que poderia ser simplesmente a esmagadora evidência do supremo poder do sultão, um poder mais revelado do que disfarçado pelos corredores estreitos, passagens sinuosas, janelas gradeadas e jardins enclausurados. Por fim, buscando um pouco de alívio da sensação provocada pela mistura de sensualidade e confinamento, de elegância e opressão, voltei para o ar livre, para as árvores batidas pelo sol do pátio exterior.

Lá fora, porém, encontrei o mais alarmante de todos os fantasmas, pois o meu guia indicava que aquele tinha sido o local das execuções e explicava com pormenores generosos o costume do sultão de decapitar funcionários ou qualquer pessoa de quem discordasse. As cabeças eram expostas nas pontas de ferro dos portões do sultão, um duro exemplo para a populaça. O sultão e o renegado da Valáquia formavam uma boa dupla, pensei, saindo dali, incomodado. Um passeio pelo parque circundante acalmou-me os nervos, e o reflexo baixo, vermelho, da luz do sol nas águas, transformando um navio de passagem numa silhueta negra, lembrou-me de que a tarde estava a chegar ao fim e que tinha de voltar para junto de Helen e saber se havia alguma notícia da sua tia.

Quando cheguei, Helen estava à espera no vestíbulo, a ler um jornal inglês.

— Como é que foi o seu passeio? — perguntou, levantando a cabeça.

— Horripilante — respondi. — Fui ao palácio Topkapi.

— Ah — e fechou o jornal. — Tenho pena de ter perdido isso.

— Não tenha. Como vão as coisas no grande mundo? — Ela correu um dedo pelas manchetes do jornal.

— Horripilantes. Mas tenho boas notícias para si.

— Falou com a sua tia? — Deixei-me cair numa das cadeiras desconjuntadas perto dela.

— Sim, e ela foi extraordinária, como sempre. Tenho a certeza de que vai ralhar comigo quando chegarmos, mas não faz mal. O importante é que encontrou uma conferência para participarmos.

— Uma conferência?

— É. Excelente, aliás. Vai haver uma conferência internacional de historiadores em Budapeste esta semana. Vamos participar como professores convidados e ela arranjou maneira de obtermos os nossos vistos aqui. — Sorriu. — Aparentemente, a minha tia tem um amigo que é historiador na Universidade de Budapeste.

— Qual é o tema da conferência? — perguntei, apreensivo.

— Questões de Trabalho na Europa de 1600.

— Um assunto bastante amplo. E imagino que vamos participar na qualidade de especialistas em assuntos otomanos?

— Exato, meu caro Watson. — Dei um suspiro.

— Nesse caso, foi boa idéia ter dado um salto ao Topkapi.

Helen sorriu-me, mas eu não soube distinguir se o sorriso era um pouco malicioso ou se manifestava confiança na minha capacidade de dissimulação.

— A conferência começa na sexta-feira; portanto, temos dois dias para chegar lá. Durante o fim-de-semana, vamos assistir a palestras e você vai ser um dos conferencistas. No domingo, os historiadores têm uma parte do dia livre para explorarem a Budapeste histórica, e nós vamos escapulir-nos para explorar a minha mãe.

— Eu vou fazer o quê?! — Não pude evitar fulminá-la com o olhar, mas ela alisou um caracol em volta da orelha e encarou-me com um sorriso ainda mais inocente.

— Ah, uma palestra. Você vai fazer uma palestra. É o nosso pretexto para entrar lá.

— Uma palestra sobre quê, posso saber?

— Sobre a presença otomana na Transilvânia e na Valáquia, creio. Nesta altura, a minha tia já deve ter feito a gentileza de a acrescentar ao programa. Não precisa de ser uma palestra longa, tanto mais que, é claro, os Otomanos nunca foram capazes de conquistar completamente a Transilvânia. Achei que seria um bom tema para si porque nós dois já sabemos tanto sobre Vlad, e ele foi fundamental para os manter à distância, na época.

— Foi muito simpático da sua parte — trocei. — Você é que sabe muito sobre ele. Está a dizer-me que tenho de me levantar e falar sobre Drácula à frente de uma plateia internacional de acadêmicos? Não se esqueça de que a minha tese é sobre as guildas de mercadores holandeses, e que nem a acabei ainda. Por que é que não é você a fazer a palestra?

— Seria ridículo — disse Helen, cruzando as mãos sobre o jornal. — Eu sou... como é que se diz... um filme já visto. Toda a gente na universidade já me conhece e está farta de conhecer o meu trabalho. Um conferencista americano vai acrescentar um brilho extra ao espetáculo e vão agradecer-me por tê-lo levado, mesmo sendo em cima da hora. Ter um americano como convidado vai fazê-los ficar menos envergonhados com o decadente albergue da universidade e com as ervilhas enlatadas que vão servir no grande jantar da última noite. Vou ajudá-lo a escrever a palestra — ou até escrevê-la eu mesma, se pretende continuar a ser tão desagradável — e pode fazê-la no sábado. Acho que a minha tia disse por volta da uma da tarde.

Dei um gemido. Ela era a pessoa mais insuportável que eu já encontrara. Ocorreu-me que a minha presença lá, na sua companhia, também poderia ser um compromisso político maior do que ela queria admitir.

— Bem, e o que é que os Otomanos na Transilvânia e na Valáquia têm a ver com as questões de trabalho na Europa?

— Ah, havemos de arranjar maneira de introduzir umas questões de trabalho. É isso que faz a beleza da sólida educação marxista que você não teve o privilégio de receber. Acredite, é possível encontrar questões de trabalho em qualquer tema, se procurarmos bem. Além disso, o Império Otomano era uma grande potência econômica e Vlad deu-lhes cabo das rotas comerciais e do acesso aos recursos naturais na região do Danúbio. Não se preocupe, vai ser uma palestra fascinante.

— Jesus! — disse eu, finalmente.

— Não — sacudiu a cabeça —, Jesus não, por favor. Só relações de trabalho.

Então, não pude deixar de rir, nem de admirar em silêncio o brilho dos seus olhos escuros.

— Só espero que ninguém na minha universidade saiba disto, imagino o que o meu júri de tese diria se soubesse. Por outro lado, acho que Rossi teria apreciado muito toda a situação.

E comecei a rir-me de novo, pensando no correspondente brilho de malícia no vivo olhar azul de Rossi, e parei. Pensar em Rossi estava a tornar-se um ponto tão doloroso no meu coração que dificilmente conseguia suportá-lo; ali estava eu, do outro lado do mundo, longe do gabinete onde ele fora visto pela última vez, e tinha todos os motivos para acreditar que nunca mais voltaria a vê-lo vivo, que talvez nunca viria a saber o que fora feito dele. O "nunca" estendeu-se longa e desalentadamente diante de mim por um segundo, e então afastei esse pensamento do meu espírito, íamos para a Hungria falar com uma mulher que supostamente o conhecera — o conhecera intimamente —, muito antes de eu próprio o ter conhecido, quando ele estava mergulhado na sua busca de Drácula. Era uma linha de investigação que não podíamos dar-nos ao luxo de ignorar. Se eu tinha de fazer o papel de charlatão e fazer uma palestra para chegar lá, até isso eu faria.

Helen observava-me em silêncio, e sem, não pela primeira vez, a sua invulgar capacidade para ler os meus pensamentos. Ela confirmou a minha sensação um momento depois, ao dizer:

— Vale a pena, não vale?

— Vale. — E desviei o olhar.

— Muito bem — disse ela, suavemente. — Estou contente que vá conhecer a minha tia, que é maravilhosa, e a minha mãe, que também é maravilhosa, mas de outra maneira, e que elas o vão conhecer a si.

Olhei rapidamente para ela — a doçura da sua voz fizera o meu coração contrair-se de repente —, mas o seu rosto readquirira a expressão habitual de ironia contida.

— Quando partimos, então? — perguntei.

— Vamos buscar os nossos vistos amanhã de manhã e apanhamos o avião no dia seguinte, se tudo correr bem com as nossas passagens. A minha tia disse-me que temos de ir ao consulado húngaro amanhã antes da hora de abrir, e tocar a campainha da porta da frente — mais ou menos às sete e meia. Podemos ir diretamente de lá para uma agência de viagens e comprar as passagens de avião. Se não houver lugar, teremos de ir de comboio, o que seria uma viagem muito longa.

Ela abanou a cabeça, mas a súbita visão de um ruidoso e trepidante comboio dos Balcãs, a seguir o seu caminho de uma antiga capital para outra, fez com que eu desejasse que todos os voos da companhia aérea estivessem completamente esgotados, apesar do tempo que poderíamos perder.

— Estarei certo quando imagino que você se parece mais com essa tia do que com a sua mãe?

Talvez fosse apenas a aventura mental do comboio que me tenha feito sorrir para Helen. Ela hesitou apenas um segundo.

— Correto de novo, Watson. Sou muito parecida com a minha tia, graças a Deus. Mas você vai gostar mais da minha mãe a maioria das pessoas gosta. E agora posso convidá-lo para jantar comigo no nosso restaurante favorito e trabalhar na sua palestra durante o jantar?

— Com certeza — concordei, — desde que não haja ciganas por perto.

Ofereci-lhe o meu braço com solícita ironia e ela trocou o seu jornal pelo apoio oferecido. Ao saírmos para o anoitecer dourado das ruas bizantinas, refleti como é estranho que, mesmo sob as circunstâncias mais extraordinárias, durante os episódios mais perturbadores da vida, nos lugares mais distantes de casa e de tudo o que nos é familiar, possam existir esses momentos de incontestável alegria.

Numa manhã soalheira em Boulois, Barley e eu apanhamos o primeiro comboio para Perpignan.

 

O avião de sexta-feira de Istambul para Budapeste estava longe de estar cheio e, depois de nos instalarmos no meio dos homens de negócios turcos vestidos com fatos pretos, dos funcionários húngaros com os seus casacos cinzentos conversando em grupos, das mulheres idosas de casacos azuis e xales na cabeça — iriam trabalhar como mulheres-a-dias em Budapeste ou as filhas seriam casadas com diplomatas húngaros? —, tive apenas o escasso tempo do voo para lamentar a viagem de comboio que poderíamos ter feito.

Essa viagem, com a linha férrea escavada nas paredes das montanhas, com as suas extensões de florestas e penhascos, rios e cidades feudais, teria de esperar pela minha futura carreira, como sabes, e desde então fi-la duas vezes. Há algo de imensamente misterioso para mim na transformação que se vê, durante esse percurso, do mundo islâmico para o cristão, do otomano para o austro-húngaro, do muçulmano para o católico e protestante. É uma gradação de cidades, de arquitetura, de minaretes que recuam pouco a pouco, misturados com cúpulas de igrejas que avançam, da própria aparência das florestas e da margem dos rios, de modo que, pouco a pouco, começamos a acreditar que podemos ler na própria natureza a saturação da história. A curva de uma encosta turca será assim tão diferente do declive de um prado húngaro? Claro que não, e no entanto a diferença é tão impossível de apagar do olhar como é difícil de apagar da mente a história que transmite essa informação. Mais tarde, ao fazer esse trajeto, iria vê-lo também alternadamente sereno ou banhado em sangue — este é outro ardil da paisagem histórica, o de ser incessantemente dilacerada entre o bem e o mal, a paz e a guerra. Quer imaginasse uma incursão otomana através do Danúbio ou a primeira investida dos Hunos vindos do Oriente na direção do rio, era sempre atormentado por imagens incompatíveis — uma cabeça cortada levada para o acampamento entre gritos de triunfo e ódio, e em seguida uma velha — talvez a bisavó mais remota daquelas mulheres de rosto enrugado que vi no avião — a agasalhar o neto com roupas mais quentes, a beliscar a bochecha lisa do menino turco e, com mão ágil, a mexer o seu guisado de carne de caça para não o deixar queimar.

No entanto, essas visões pertenciam ao meu futuro e, durante a nossa viagem de avião, senti a falta do panorama lá em baixo, sem saber como este era nem que pensamentos poderia provocar em mim mais tarde. Helen, uma viajante mais experiente e menos excitável, aproveitou a oportunidade para dormir enrolada no seu assento. Tínhamos ficado até tarde no restaurante duas noites seguidas a trabalhar na minha palestra para a conferência em Budapeste. Tinha de admitir que os meus conhecimentos sobre as batalhas de Vlad com os Turcos eram maiores do que os que tinha antes — ou não tinha —, embora isso não significasse grande coisa. Esperava que ninguém me fizesse perguntas depois de eu ter apresentado aquela matéria colada com cuspo. Era extraordinário, todavia, o que Helen armazenara na sua cabeça, e surpreendeu-me mais uma vez que o seu autodidatismo sobre Drácula tivesse sido estimulado por uma esperança tão imprecisa de se exibir para um pai que mal podia chamar seu. Quando a cabeça dela caiu adormecida no meu ombro, deixei-a ficar, tentando não aspirar o perfume champo-húngaro dos seus cabelos. Estava cansada, fiquei aplicadamente imóvel enquanto ela dormia

A minha primeira impressão de Budapeste, recebida através da janela do taxi que apanhamos no aeroporto, foi a de uma vasta nobreza. Helen dissera-me que ficaríamos num hotel perto da universidade, do lado oriental do Danúbio, em Peste, mas aparentemente ela tinha pedido ao motorista para seguir ao longo do Danúbio antes de nos deixar no hotel. Num minuto, estávamos a percorrer ruas imponentes com construções dos séculos dezoito e dezenove, animadas aqui e ali por uma irrupção de fantasia art-nouveau ou uma velha árvore colossal. No minuto seguinte, estávamos diante do Danúbio. Era enorme — eu não estava preparado para tanta grandiosidade, com três grandes pontes a atravessá-lo. No nosso lado do rio, erguiam se as incríveis torres pontiagudas e a cúpula, neogóticas, dos edifícios do Parlamento, do outro, elevavam se os imensos flancos arborizados do palácio real e as torres de igrejas medievais. No meio de tudo, o espaço aberto do rio, cinza-esverdeado, a superfície delicadamente escamada pelo vento e a brilhar ao sol Um imenso céu azul arqueava-se sobre as cúpulas e monumentos e igrejas e tocava a água com cores variáveis.

Eu tinha esperado ficar interessado por Budapeste, e admirá-la, não tinha esperado ficar deslumbrado. A cidade absorvera uma panóplia de invasores e aliados, começando com os Romanos e acabando com os Austríacos — ou com os Soviéticos, pensei, recordando os amargos comentários de Helen, e contudo era diferente de todos eles Não era bem ocidental, nem oriental como Istambul, e muito menos norte européia, apesar de toda a sua arquitetura gótica. Pela limitada janela do taxi, contemplava um esplendor sem paralelo Helen também olhava e, — Um assunto bastante amplo. E imagino que vamos participar na qualidade de especialistas em assuntos otomanos?

— Estou a ver que gosta da nossa pequena cidade — disse, e percebi um intenso orgulho sob a sua ironia. Depois, acrescentou em voz baixa: — Drácula é um dos nossos aqui, sabia? Foi aprisionado pelo rei Mátyás Corvinus a cerca de trinta quilômetros de Buda, por volta de 1462, porque ameaçou os interesses da Hungria na Transilvânia. Parece que Corvinus o tratou mais como um hóspede do que como prisioneiro e até lhe deu uma esposa pertencente à família real húngara, embora ninguém saiba exatamente quem ela era, a segunda mulher de Drácula. Drácula demonstrou a sua gratidão convertendo-se à fé católica e foram autorizados a viver em Peste durante algum tempo. Logo que foi libertado da Hungria...

— Posso imaginar — disse eu. — Voltou a correr para a Valáquia, apoderou-se do trono o mais depressa possível e renunciou à sua conversão.

— Basicamente, foi isso mesmo — admitiu ela. — Está a começar a compreender o seu amigo. O que ele sobretudo queria era tomar e manter o trono da Valáquia.

Dentro de pouco tempo, o táxi estava a voltar para a parte antiga de Peste, afastada do rio, mas ali havia mais maravilhas para me deixarem de boca aberta, o que fiz sem vergonha nenhuma: cafés com sacadas que imitavam as glórias do Egito ou da Assíria, ruas pedonais cheias de compradores animados, circulando no meio de uma floresta de candeeiros de rua de ferro, mosaicos e esculturas, anjos e santos de mármore e de bronze, reis e imperadores, violinistas de túnicas brancas a tocar nas esquinas.

— Cá estamos — disse Helen de repente. — Aqui é a zona universitária, e ali está a biblioteca da universidade. — Estiquei o pescoço para vislumbrar um belo edifício de estilo clássico revestido de pedra amarela.

— Viremos visitá-la quando tivermos uma oportunidade. Na verdade, há uma coisa que quero ver lá. E aqui está o nosso hotel, mesmo ao lado da Magyar utca, ou seja, da Rua Magyar. Tenho de lhe arranjar um mapa para não se perder.

O motorista deixou a nossa bagagem em frente de uma nobre e elegante fachada de pedra cinzenta, e estendi a mão a Helen para a ajudar a sair do carro.

— Eu já sabia — disse ela com um risinho de desdém. — Eles usam sempre este hotel para as conferências.

— Parece-me ótimo — arrisquei.

— Ah, não é mau de todo. Vai gostar particularmente da opção entre água fria e água fria, além da comida enlatada.

Helen estava a pagar ao motorista com grandes moedas de prata e de cobre.

— Pensava que a comida húngara era excelente — disse eu, conciliador. — Tenho certeza de que já ouvi falar nisso. Gulache, paprica, e assim por diante.

Helen revirou os olhos

— Toda a gente refere o gulache quando se fala na Hungria Assim como todos mencionam Drácula quando se fala na Transilvânia – Riu. — Mas pode ignorar a comida do hotel. Espere até comermos em casa da minha tia, ou na da minha mãe, e depois conversamos sobre comida húngara

— Julgava que a sua mãe e a sua tia eram romenas — objetei, e arrependi me imediatamente, o rosto dela endureceu

— Pode pensar o que quiser, ianque — disse me ela, peremptória, e agarrou na sua mala antes que eu tivesse tempo de lhe pegar

O vestíbulo do hotel estava silencioso e fresco, revestido dos mármores e dourados de uma época mais próspera. Achei o ambiente agradável e não vi ali nada que pudesse envergonhar Helen. Levei algum tempo a dar-me conta de que era a primeira vez que estava num país comunista na parede atrás do balcão da recepção havia fotografias de membros do Governo, e os uniformes azul-escuros de todo o pessoal do hotel tinham qualquer coisa de um constrangimento proletário. Helen fez o nosso registo e entregou me a chave do meu quarto

— A minha tia preparou tudo muito bem — disse, satisfeita — E há uma mensagem dela, telefonou a dizer que vem encontrar-se conosco aqui as sete horas para nos levar a jantar. Vamos primeiro inscrever-nos na conferência e participar numa recepção lá, as cinco horas

Fiquei decepcionado com a notícia de que a tia não nos levaria a sua casa para comermos comida húngara caseira, nem eu poderia ver de perto como era a vida da elite burocrática, mas refleti rapidamente que, ao fim e ao cabo, eu era um americano, e não podia esperar que todas as portas se escancarassem para mim Eu poderia ser considerado um risco, um compromisso ou, na melhor das hipóteses, um transtorno. Na realidade, o melhor que tinha a fazer era não chamar a atenção e causar o mínimo de transtorno aos meus anfitriões. Tinha muita sorte em estar ali e a última coisa que desejava era causar problemas a Helen ou a sua família

O meu quarto, quando finalmente o encontrei, era simples e limpo, com toques incongruentes de uma grandiosidade passada nos corpos rechonchudos de querubins dourados que decoravam os cantos do teto e uma bacia de mármore com o formato de uma grande concha. Enquanto lavava as mãos nela e penteava o cabelo olhando-me no espelho por cima da pia, desviei os olhos dos sorrisos afetados dos putos para a cama estreita e rigorosamente feita, como uma cama de campanha, e fiz um sorriso forçado. O meu quarto e o de Helen desta vez ficavam em andares diferentes — previsão da tia —, mas eu teria pelo menos aqueles querubins antiquados e as suas grinaldas austro-hungaras como companhia.

Helen esperava-me no vestíbulo e conduziu-me em silêncio através das portas do hotel para a rua principal. Usava a sua blusa azul clara outra vez. No decurso das nossas viagens, eu tinha ficado cada vez mais descomposto enquanto ela conseguia ainda parecer lavada e passada a ferro, o que eu julgava ser algum talento especial do Leste Europeu — e prendera o cabelo atrás num carrapito. Estava absorta nos seus pensamentos enquanto caminhávamos até à universidade. Não me atrevi a perguntar-lhe o que estava a pensar, mas dentro em pouco ela contou-me espontaneamente.

— É tão esquisito voltar aqui assim tão de repente — disse, lançando-me um olhar rápido.

— E com um americano estranho?

— E com um americano estranho — murmurou, o que não soou como um cumprimento.

A universidade compunha-se de edifícios enormes, alguns deles réplicas da bela biblioteca que víramos mais cedo, e comecei a sentir um certo tremor quando ela apontou para o nosso destino, uma ampla construção em estilo clássico cujo segundo andar era contornado por estátuas. Parei e inclinei a cabeça para trás para as ver e consegui ler alguns dos seus nomes, escritos nas suas versões magiares: Platão, Descartes, Dante, todos coroados de louros e envoltos em túnicas clássicas. As outras figuras eram-me menos familiares: Szent István, Mátyás Corvinus, János Hunyadi. Empunhavam cetros ou ostentavam grandes coroas na cabeça.

— Quem são estes? — perguntei a Helen.

— Amanhã digo-lhe — respondeu ela. — Vamos, já passa das cinco.

Entramos no edifício com vários jovens animados que pensei serem estudantes, e dirigimo-nos para uma ampla sala no segundo andar. O meu estômago contraiu-se; o lugar estava cheio de professores vestidos de fatos pretos, cinzentos ou de tweed e com as gravatas tortas — só podiam ser professores, raciocinei —, a comerem pimentos vermelhos e queijo branco em pequenos pratos e a beberem qualquer coisa que cheirava a remédio. Eram todos historiadores, pensei, com um gemido, e, embora fosse supostamente um deles, o meu coração batia cada vez mais depressa. Helen foi imediatamente rodeada por um grupo compacto de colegas, e consegui entrevê-la apertando com camaradagem a mão de um homem cujo penteado à Pompadour me lembrava o pêlo de um cão. Eu quase tinha decidido ir fingir que olhava pela janela para a magnífica fachada da igreja do lado oposto da rua quando Helen numa fração de segundo me agarrou pelo cotovelo — seria conveniente da parte dela fazer isso? e conduziu-me para junto do grupo.

— Este é o professor Sándor, diretor do departamento de História da Universidade de Budapeste e o nosso grande medievalista — disse-me ela, indicando o cão branco, e apressei-me a apresentar-me. A minha mão foi esmagada num aperto férreo e o professor Sándor expressou a sua grande honra pela minha participação na conferência. Ocorreu-me num lampejo se seria ele o amigo da misteriosa tia. Para minha surpresa, falava um inglês perfeito, embora lento.

— O prazer é todo nosso — declarou ele, caloroso. — Aguardamos com satisfação a sua palestra de amanhã.

Manifestei o meu recíproco sentimento de honra por ter a oportunidade de participar na conferência e tive o cuidado de não procurar o olhar de Helen enquanto falava.

— Excelente — bradou o professor Sandór. — Temos um grande respeito pelas universidades do seu país. Possam os nossos dois países viver em paz e amizade por muitos anos. — Brindou-me com o seu copo da mistela medicinal transparente cujo cheiro sentia e apressei-me a retribuir o brinde, pois um copo da mesma bebida surgira-me na mão como num passe de mágica. — E agora, se houver alguma coisa que possamos fazer para tornar mais feliz a sua estada na nossa amada Budapeste, é só dizer.

Os seus grandes olhos escuros, brilhantes no rosto envelhecido e contrastando estranhamente com a sua cabeleira branca, lembraram-me por um momento os olhos de Helen, e de repente gostei dele.

— Obrigado, professor — agradeci, com sinceridade, e ele bateu-me nas costas com uma grande manápula.

— Por favor, venha, coma, beba, e vamos conversar.

Logo a seguir, porém, desapareceu para acorrer a outras obrigações e vi-me no meio das perguntas interessadas dos outros professores da universidade e dos acadêmicos visitantes, alguns dos quais pareciam ainda mais novos do que eu. Juntaram-se à minha volta e de Helen e, a pouco e pouco, distingui entre as suas vozes uma algaraviada em francês e alemão, além de uma outra língua que devia ser russo. Era um grupo entusiástico, um grupo realmente simpático, e comecei a esquecer o meu nervosismo. Helen apresentou-me com uma cortesia distante que achei ser exatamente o que a ocasião pedia, explicando com desenvoltura a natureza do nosso trabalho conjunto e o artigo que em breve publicaríamos num jornal americano. Os rostos ávidos comprimiam-se também à volta dela, fazendo rápidas perguntas em húngaro, e um leve rubor coloriu-lhe o rosto ao apertar as mãos e até ao beijar as faces de alguns dos seus velhos conhecidos. Eles não a tinham esquecido, claramente como poderiam? pensei. Reparei que havia muitas outras mulheres na sala, algumas mais velhas do que ela e outras muito novas, mas ela eclipsava-as a todas. Era mais alta, mais cheia de vida, tinha uma figura mais esbelta, com os seus ombros largos, a sua cabeça bem feita e o cabelo farto e encaracolado, com o seu ar de ironia animada. Voltei-me para um dos professores húngaros para não ficar a olhar para ela; a bebida ardente começava a correr-me nas veias.

— Este número de pessoas é normal nas conferências aqui? — não sabia ao certo o que queria dizer com aquilo, mas sempre era alguma coisa para dizer enquanto tirava os olhos de Helen.

— É, sim — respondeu o meu companheiro, com orgulho. Era um homem de uns sessenta anos, com um fato cinzento e uma gravata também cinzenta. — Temos muitas reuniões internacionais na universidade, sobretudo agora.

Queria perguntar o que significava aquele "sobretudo agora", mas o professor Sandór materializou-se de novo e conduziu-me junto de um bonito homem que parecia ansioso por me conhecer.

— Este é o professor Geza József — disse ele. — Gostaria de o conhecer.

Helen virou-se no mesmo instante e, para minha completa surpresa, vi uma expressão de contrariedade (chegaria a ser aversão?) passar pelo seu rosto. Veio imediatamente na nossa direção, como se fosse intervir.

— Como vai, Geza?

Trocaram apertos de mão, formalmente e com uma certa frieza, antes mesmo de eu ter tempo de cumprimentar o homem

— Que bom vê-la, Elena — disse o professor Jósef, fazendo uma ligeira vênia, e captei qualquer coisa de estranho na voz dele, que poderia ser troça mas também qualquer outra emoção. Perguntei a mim próprio se estariam a falar inglês apenas por minha causa.

— E a si também — disse ela, inexpressiva. — Permita-me que lhe apresente o colega com quem tenho trabalhado na América.

— É um prazer conhecê-lo — disse ele, com um sorriso que iluminou os seus belos traços. Era mais alto do que eu, com espesso cabelo castanho e a postura confiante de um homem que preza muito a sua virilidade ficaria magnífico a cavalo, cavalgando pelas planícies no meio de rebanhos de carneiros, pensei. O seu aperto de mão era caloroso e ele deu-me uma palmada de boas-vindas no ombro com a outra mão. Não compreendia a antipatia de Helen por ele, apesar de não conseguir afastar a impressão de que era isso que ela sentia.

— E então, vai dar-nos a honra de uma palestra amanhã? Excelente — disse ele. — Então, — fez uma pausa — Mas o meu inglês não é muito bom. Prefere falar em francês? Ou em alemão?

— O seu inglês é muito melhor do que o meu francês ou o meu alemão, tenho a certeza — respondi prontamente

— É amabilidade sua. — O sorriso dele era um prado florido. — Soube que a sua área é o domínio otomano dos Cárpatos

As notícias corriam rápidas ali, refleti, exatamente como no meu país

— Ah, sim – concordei. — Embora acredite que tenho muito a aprender com a sua faculdade sobre este assunto

— Certamente que não — murmurou ele, — mas fiz uma pequena pesquisa sobre esse tema e gostaria muito de a discutir consigo

— O professor József tem uma ampla esfera de interesses — interrompeu Helen O tom da voz dela daria para congelar água quente. Tudo aquilo era muito intrigante, mas lembrei-me de que qualquer departamento acadêmico sofre dessas guerras larvares, quando não de guerra declarada, e aquele provavelmente não devia ser exceção. Antes que eu pudesse dizer alguma palavra de conciliação, Helen virou-se abruptamente para mim e disse:

— Professor, temos de ir para a nossa próxima reunião — disse. Por um segundo, não soube com quem é que ela estava a falar, mas ela segurou-me firmemente o braço.

— Ah, vejo que estão muito ocupados — o professor József era todo desculpas. — Talvez possamos discutir a questão otomana noutra ocasião? Seria um prazer mostrar-lhe um pouco da nossa cidade, professor, ou levá-lo a almoçar...

— O professor já tem compromissos marcados durante toda a conferência — anunciou Helen.

Apertei a mão do homem tão calorosamente quanto o gélido olhar dela permitiu, e então ele apertou a mão dela que estava livre.

— É uma satisfação vê-la de volta ao seu país — disse ele, e, curvando-se, beijou-lhe a mão.

Helen soltou a mão, mas uma expressão estranha passou-lhe pelo rosto. De certa maneira, o gesto perturbara-a, concluí, e pela primeira vez o encantador historiador húngaro desagradou-me. Helen conduziu-me novamente ao professor Sandór, a quem nos desculpamos, manifestando-lhe o nosso anseio pelas palestras do dia seguinte.

— E nós esperamos pela sua palestra com muito prazer.

Apertou a minha mão nas suas. Os Húngaros são pessoas extremamente calorosas, pensei, com um entusiasmo que apenas em parte se devia ao efeito da bebida na minha corrente sanguínea. Desde que adiasse qualquer pensamento real sobre a palestra, sentia-me a flutuar de satisfação. Helen deu-me o braço e pareceu-me que ela percorreu rapidamente a sala com o olhar antes de saírmos, como se procurasse alguma coisa.

— O que significava aquilo? — O ar da noite estava refrescante e eu sentia-me mais excitado do que nunca. — Os seus compatriotas são as pessoas mais cordiais que já encontrei, mas tive a impressão de que você estava pronta para decapitar o professor József.

— E estava — confirmou ela, lacónica. — Ele é intolerábel.

— É mais provável que seja intolerável — corrigi. — Por que é que o trata daquela maneira? Ele cumprimentou-a como um velho amigo.

— Ah, não há problema nenhum, na verdade, exceto o fato de ele ser uma ave de rapina, um vampiro. — Deteve-se e olhou para mim, com os olhos muito abertos. — Não quis dizer que...

— Claro que não — disse eu. — Olhei bem para os caninos dele.

— Você também é intolerábel — disse ela, soltando o braço do meu. Olhei para ela com uma expressão desolada.

— Não me importo que me dê o braço — disse eu, num tom superficial, — mas acha que é boa idéia fazer isso na frente de toda a sua universidade?

Ela olhou fixamente para mim e não consegui decifrar a escuridão dos seus olhos.

— Não se preocupe. Não estava lá ninguém do departamento de Antropologia.

— Mas você conhecia muitos historiadores, e sabe como as pessoas falam — insisti.

— Oh, aqui não. — E deu uma risada seca de desdém. — Somos todos operários unidos, aqui. Nada de mexericos nem conflitos, só dialética de camaradagem. Vai ver amanhã. É realmente uma pequena Utopia.

— Helen — gemi, — vamos falar a sério, para variar? Só estou preocupado com a sua reputação aqui, a sua reputação política. Afinal de contas, vai ter de voltar para cá um dia e enfrentar todas estas pessoas.

— Vou mesmo? — Deu-me outra vez o braço enquanto caminhávamos. Não fiz nenhum movimento para me soltar; havia poucas coisas que teria considerado mais importantes naquele momento do que o leve roçar da manga do seu casaco preto no meu cotovelo. — Seja como for, valeu a pena. Só fiz isso para fazer Géza ranger os dentes. As presas, quero dizer.

— Bem, estou-lhe muito grato — resmunguei, mas não tive coragem de dizer mais nada. Se ela tinha querido fazer ciúmes a alguém, tinha sem dúvida resultado comigo. De repente, vi-a nos braços fortes de Géza. Teria havido algum envolvimento entre eles antes de Helen sair de Budapeste? Fariam um par extraordinário, pensei, ambos tão bonitos e seguros de si, tão altos e elegantes, ambos de cabelos escuros e ombros largos. Senti-me franzino, anglo-saxão, incapaz de competir com o cavaleiro da estepe. O rosto de Helen, contudo, proibia-me de fazer mais perguntas, e tive de me contentar com o silencioso peso do seu braço no meu.

Chegamos depressa demais às portas douradas do hotel e penetramos no vestíbulo silencioso. Assim que entramos, uma figura solitária destacou-se entre os estofos negros das cadeiras e os vasos de palmeiras, esperando em silêncio que nos aproximássemos. Helen deu um pequeno grito e correu para ela, com os braços estendidos.

— Eva!

 

Desde o momento em que a conheci encontrei a somente três vezes, sendo que a segunda e a terceira foram breves, pensei com frequência na tia de Helen, na tia Eva. Há pessoas que permanecem na nossa memória com muito mais clareza depois de um rápido relacionamento do que outras que vemos todos os dias durante um período prolongado. A tia Eva era certamente uma dessas pessoas vividas, alguém que a minha memória e imaginação conspiraram para preservar com cores fortes por vinte anos. Usei muito a imagem da tia Eva para imaginar personagens em livros ou figuras históricas, por exemplo, encaixou se automaticamente quando me deparei com Madame Merle, a intriguista bem parecida do Retrato de uma Senhora, de Henri James

De fato, a tia Eva corporizou tantas mulheres admiráveis, superiores, sutis, nos meus devaneios que me é um pouco difícil voltar a sua figura verdadeira, tal como a encontrei uma noite em Budapeste no princípio do Verão de 1954. Lembro me realmente que Helen voou para os braços da tia numa de monstração de afeto invulgar nela, e que a tia Eva não voou, mas manteve-se calma e cheia de dignidade, abraçando a sobrinha e beijando a ruidosamente em ambas as faces. Quando Helen se virou para mim, corada, para nos apresentar, vi lágrimas a brilhar nos olhos das duas mulheres

— Eva, este é o meu colega americano, de quem te falei; Paul, esta é a minha tia, Eva Orban.

Apertei-lhe a mão, procurando não olhar fixamente para o seu rosto. Mrs Orban era uma mulher alta e elegante, talvez com cinquenta e cinco anos. O que me hipnotizou foi a sua impressionante semelhança com Helen. Poderiam ser irmãs, uma mais velha e outra muito mais nova, ou gêmeas, uma das quais teria envelhecido ao passar por experiências difíceis enquanto a outra se conservava magicamente jovem e cheia de frescura. A tia Eva era só ligeiramente mais baixa que Helen e possuía a mesma figura forte e graciosa da sobrinha. O seu rosto devia ter sido outrora ainda mais belo do que o de Helen, e era ainda muito bonito, com o mesmo nariz direito, longo, um pouco comprido, as maças do rosto pronunciadas e os olhos escuros e pensativos. A cor do seu cabelo intrigou-me até eu perceber que nunca poderia ser natural; era um bizarro vermelho-arroxeado com alguns fios brancos a crescer nas raízes. Durante os dias seguintes em Budapeste, vi a mesma cor de cabelo em muitas mulheres, mas aquela primeira vez deixou-me siderado. Usava pequenos brincos de ouro e um conjunto de saia e casaco preto que era irmão gêmeo do de Helen, com uma blusa vermelha por baixo.

Ao apertarmos a mão, a tia Eva olhou-me no rosto com muita seriedade, quase com gravidade. Talvez estivesse a tentar adivinhar-me alguma falha de caráter sobre a qual achasse que devia advertir a sobrinha, pensei, mas imediatamente me censurei: que motivo teria para me considerar um potencial pretendente? Distingui miríades de finas rugas de expressão em torno dos seus olhos e nos cantos da boca, o registro de um sorriso invulgar. Esse sorriso apareceu dentro de instantes, como se ela não pudesse contê-lo por muito tempo. Não era de surpreender que aquela mulher conseguisse fazer participar pessoas em conferências e obter carimbos de vistos. À última hora, pensei, a inteligência que irradiava só era comparável ao seu sorriso. Os seus dentes, como os de Helen, eram perfeitamente brancos e alinhados, algo que eu começava a notar não ser um traço comum nos Húngaros.

— É um grande prazer conhecê-la — disse-lhe eu. — Obrigado por me proporcionar a honra de participar na conferência.

A tia Eva riu e apertou-me a mão. Se eu a considerara calma e reservada um segundo antes, estava enganado; irrompeu numa torrente de palavras em húngaro e perguntei a mim próprio se supostamente eu deveria estar a compreender alguma coisa. Helen veio imediatamente em meu auxílio.

— A minha tia não fala inglês — explicou —, apesar de compreender muito mais do que admite. Aqui, as pessoas mais velhas estudaram alemão, russo e as vezes francês, mas inglês era muito mais raro. Vou traduzir-lhe o que ela disse. Shh... — pousou com carinho a mão no braço da tia, além de dizer uma palavra qualquer em húngaro. — Ela diz que você é muito bem-vindo aqui e espera que não tenha nenhum problema, pois ela pôs em polvorosa todo o Subsecretariado das Questões de Vistos para o trazer para cá. Espera que a convide para a sua palestra, que ela não vai compreender muito bem, mas que é assim que as coisas funcionam aqui. E também tem de satisfazer a curiosidade dela sobre a sua universidade nos Estados Unidos, sobre a maneira como me conheceu, se acha que eu me comporto bem na América e que tipo de comida a sua mãe cozinha. Vai ter outras perguntas a fazer mais tarde.

Olhei para as duas, abismado. Ambas sorriam para mim, aquelas duas mulheres magníficas, e reparei que havia no rosto da tia uma ironia notavelmente semelhante à de Helen, embora fizesse muito bem a Helen aprender a sorrir com frequência, como a sua tia Eva. Certamente não haveria quem enganasse uma pessoa tão inteligente como Eva Orbán; afinal de contas, lembrei-me, ela saíra de uma aldeia na Romênia e alcançara uma posição de poder no Governo húngaro.

— Vou certamente tentar satisfazer o interesse da sua tia — garanti a Helen. — Por favor, explique-lhe que as especialidades da minha mãe são rolo de carne e macarrão com queijo.

— Ah, rolo de carne — repetiu Helen. A sua explicação para a tia provocou um sorriso de aprovação. — Pediu que transmita os seus cumprimentos e parabéns à sua mãe na América pelo excelente filho que tem. — Contra a minha vontade, senti-me corar, mas prometi transmitir o recado. — Agora, ela gostaria de nos levar a um restaurante que você vai apreciar muito, pois tem um toque da velha Budapeste. Vamos para o lado de Buda e vai poder ver muitas coisas durante o trajeto.

Minutos depois, estávamos os três sentados no banco de trás do que concluí ser o carro particular da tia Eva um carro não muito proletário, aliás e Helen indicava os pontos importantes, sob a insistência da tia. Devo dizer que a tia Eva não trocou uma palavra de inglês comigo no decorrer dos nossos encontros, mas eu tinha a impressão de que isto se devia mais a uma questão de princípio um protocolo anti-ocidental, quem sabe? do que a outro motivo. Quando Helen e eu trocávamos algumas palavras, a tia Eva muitas vezes parecia compreender, pelo menos em parte, antes de Helen traduzir. Era como se a tia estivesse a fazer uma declaração linguística de que as coisas ocidentais deviam ser tratadas com uma certa distância, até com uma certa aversão, mas que aquele ocidental individualmente era talvez uma boa pessoa e poderia ser recebido com toda a hospitalidade húngara. Acabei por me habituar a conversar com ela através de Helen, de tal modo que de vez em quando tinha a impressão de que estava prestes a compreender aquele palavreado.

De qualquer maneira, algumas comunicações entre nós dispensavam a intérprete. Depois de mais um esplêndido passeio ao longo do rio, cruzamos o que mais tarde eu soube ser a Széchenyi Lánchid, a ponte pênsil Széchenyi, um milagre da engenharia do século dezenove, batizada com o nome de um dos grandes embelezadores de Budapeste, o conde István Széchenyi. Ao entrarmos na ponte, a luz direta do fim de tarde refletida no Danúbio inundou toda a cena, de modo que o magnífico conjunto do castelo e igrejas de Buda, para onde nos dirigíamos, se transformou num relevo castanho-dourado. A ponte em si era um elegante monólito, guardada em cada extremidade por leões jacentes sobre os quais se erguiam dois imensos arcos de triunfo. A minha exclamação espontânea de admiração despertou o sorriso da tia Eva, e Helen, sentada entre nós dois, sorriu também com orgulho.

— É uma cidade maravilhosa — declarei, e a tia Eva apertou-me o braço como se eu fosse um filho crescido.

Helen explicou-me que a tia queria que eu soubesse sobre a reconstrução da ponte.

— Budapeste foi muito destruída pela guerra — disse ela. — Uma das nossas pontes até hoje ainda não foi completamente reconstruída, e muitos edifícios foram atingidos. Pode ver que ainda há reconstruções em todas as partes da cidade. Mas esta ponte foi restaurada para o... como se diz?... para o centenário da sua construção, em 1949, e temos muito orgulho nisso. Para mim, particularmente, é motivo de orgulho porque a minha tia ajudou a organizar a reconstrução.

A tia Eva sorriu e abanou a cabeça, depois parece que se lembrou que presumivelmente não deveria estar a entender nada do que se dizia.

Logo a seguir, mergulhamos num túnel que parecia passar por baixo do próprio castelo, e a tia Eva contou-nos que escolhera um dos seus restaurantes favoritos, um lugar "verdadeiramente húngaro" na Rua József Attila. Os nomes das ruas de Budapeste ainda me causavam surpresa, alguns simplesmente pelo seu exotismo ou estranheza e outros, como este, por evocarem um passado que pensei existir apenas nos livros. A Rua József Attila mostrou-se tão grandiosa como a maioria das outras da cidade, e de modo nenhum um trilho cheio de lama ladeado por acampamentos bárbaros onde os guerreiros hunos comiam montados nas suas selas. O interior do restaurante era silencioso e elegante, e o maître veio a correr cumprimentar a tia Eva, tratando-a pelo nome. Ela parecia estar habituada a este tipo de atenções. Em poucos minutos, estávamos instalados na melhor mesa da sala, de onde podíamos desfrutar da vista de velhas árvores e velhos edifícios, de transeuntes a passear com os seus melhores trajes de verão e de vislumbres de pequenos carros barulhentos que passavam velozmente através da cidade. Recostei-me com um sorriso de prazer.

A tia Eva pediu para os três, como se fosse uma coisa normal, e, quando os primeiros pratos começaram a chegar, vieram acompanhados por um licor forte chamado pálinka que Helen disse ser destilado de damascos.

— Agora, vamos ter uma coisa muito boa juntamente com isto — explicou-me a tia Eva por intermédio de Helen. — Chamamos a este prato hortobàgyi palaainta. É uma espécie de crepe recheado com vitela, uma tradição dos pastores das planícies da Hungria. Acho que vai gostar.

Gostei muito, assim como de todos os pratos que se seguiram os guisados de carnes e vegetais, as batatas em camadas com salame e ovos cozidos, o carneiro com feijão verde, o maravilhoso pão castanho-dourado. Até então, não me apercebera de como estava faminto depois do nosso longo dia de viagem. Reparei, também, que Helen e a tia comiam sem qualquer acanhamento, com um prazer que nenhuma mulher americana se atreveria a mostrar em público.

Contudo, seria um erro dar a impressão de que nos limitamos a comer. Enquanto fazíamos as honras a toda aquela tradição, a tia Eva falava e Helen traduzia. Eu fazia uma ou outra pergunta mas, na maior parte do tempo, tanto quanto me lembro, estava demasiado ocupado a absorver a comida e as informações. A tia Eva parecia não tirar da cabeça o fato de eu ser historiador; talvez desconfiasse da minha ignorância a respeito da história da Hungria e quisesse ter a certeza de que eu não lhe causaria qualquer constrangimento na conferência, ou talvez o que a motivasse fosse o patriotismo da imigrante há muito estabelecida. Qualquer que fosse o motivo, falava com brilhantismo, e eu quase conseguia ler a próxima frase no seu rosto vivo e expressivo antes de Helen a traduzir.

Por exemplo, quando acabamos de brindar à amizade entre os nossos países com pálinka, a tia Eva temperou os nossos crepes com uma descrição das origens de Budapeste — que foi outrora uma cidade fortificada romana chamada Aquincum, e ainda se podem encontrar as antigas ruínas romanas à sua volta — e fez uma vívida descrição de Átila e dos Hunos que a conquistaram aos Romanos no século quinto. Na verdade, os Otomanos comportaram-se com relativa brandura quando chegaram mais tarde, pensei com os meus botões. As carnes e os vegetais guisados — entre os quais um prato a que Helen chamava gulyás, assegurando-me com um olhar severo não ser gulache, que os Húngaros conhecem por outro nome deu margem a um longo relato sobre a invasão da região pelos magiares no século nono. Durante o prato de batatas e salame em camadas, que com certeza era muito melhor do que rolo de carne ou macarrão com queijo, a tia Eva descreveu com imagens eletrizantes a coroação do rei Estêvão I depois, santo István — pelo Papa no ano 1000.

— Ele era um pagão vestido com peles de animais — contou-me a tia através de Helen, — mas tornou-se o primeiro rei da Hungria e converteu o país ao Cristianismo. Vai encontrar o nome dele por todo o lado em Budapeste.

Justamente quando pensava que não conseguiria engolir mais nada, apareceram dois criados com bandejas de bolos, doces e tortas que não ficariam deslocados numa sala do trono austro-húngaro, uma maravilha de espirais de chocolate e natas, e chávenas de café eszpresszó, explicou a tia Eva. Não sei como, mas arranjamos lugar para tudo aquilo.

— O café tem uma história trágica para Budapeste — traduziu Helen para a tia. — Há muito tempo, em 1541, para ser mais exata, o invasor Suleimão I convidou um dos nossos generais, cujo nome era Bálint Torok, para o acompanhar numa deliciosa refeição na sua tenda, e, no final, quando ele estava a tomar o seu café foi o primeiro húngaro a provar café, sabe, Suleimão informou-o de que a elite das tropas turcas tomara de assalto o Castelo de Buda enquanto eles comiam. Pode imaginar como ele deve ter achado aquele café amargo.

O seu sorriso desta vez estava mais pesaroso do que luminoso. Os Otomanos de novo, pensei como eram espertos, e cruéis, e que estranha mistura de refinamento estético e táticas bárbaras. Em 1541, há já quase um século que ocupavam Istambul; lembrar esse fato deu-me uma noção da sua força duradoura, da firmeza com que haviam estendido os seus tentáculos pela Europa, detendo-se apenas às portas de Viena. A luta de Vlad Drácula contra eles, como a de muitos dos seus compatriotas cristãos, fora o combate de um David contra Golias, muito menos bem sucedido do que o de David. Por outro lado, os esforços de uma nobreza de segunda ordem do Leste Europeu e dos Balcãs, não só da Valáquia mas também da Hungria, da Grécia e da Bulgária, para citar apenas alguns países, acabaram por desbaratar a ocupação otomana. Helen conseguira transferir tudo isto para o meu cérebro e, de certo modo, inculcara-me uma perversa admiração por Drácula. Ele devia saber que o seu desafio as forças turcas estava condenado ao fracasso a curto prazo, e mesmo assim lutara durante a maior parte da sua vida para livrar os seus territórios dos invasores.

— Na realidade, essa foi a segunda vez que os Turcos ocuparam esta região. — Helen bebericou o seu café e pousou a chávena no pires com um suspiro de satisfação, como se ali a bebida lhe soubesse melhor do que em qualquer outro lugar do mundo. — János Hunyadi venceu-os em Belgrado em 1456. Ele é um dos nossos grandes heróis, juntamente com o rei István e o rei Mátyás Corvinus, que construiu o castelo e a biblioteca de que lhe falei. Quando ouvir os sinos das igrejas de toda a cidade tocarem amanhã ao meio-dia, lembre-se de que é pela vitória de Hunyadi há séculos. Até hoje, os sinos tocam por ele todos os dias.

— Hunyadi — disse eu, pensativo. — Acho que me falou nele na outra noite. E está a dizer que a vitória dele foi em 1456?

Entreolhámo-nos; qualquer data que coincidisse com o período em que Drácula vivera passara a ser uma espécie de sinal entre nós.

— Ele estava na Valáquia nessa época — disse Helen em voz baixa. Eu sabia que ela não se referia a Hunyadi, porque também tínhamos feito um pacto mudo de não mencionar o nome de Drácula em público.

A tia Eva era demasiado perspicaz para se deixar iludir pelo nosso silêncio ou por uma mera barreira linguística.

— Hunyadi? — perguntou, e acrescentou algo em húngaro.

— A minha tia quer saber se tem algum interesse especial pelo período em que Hunyadi viveu — explicou Helen.

Não sabia o que dizer; por isso, respondi que achava toda a História europeia interessante. Essa desculpa esfarrapada fez com que a tia Eva me lançasse um sutil olhar de reprovação, e apressei-me a distrair a sua atenção.

— Por favor, pergunte a Mrs. Orbán se posso fazer-lhe algumas perguntas...

— Claro — o sorriso de Helen pareceu incluir não só o meu pedido como o meu motivo. Quando traduziu o meu pedido à tia, Mrs. Orbán virou-se para mim com uma amável prudência.

— Gostaria de saber — disse eu — se é verdade o que se diz no Ocidente sobre o liberalismo atual na Hungria.

Desta vez, o rosto de Helen também demonstrou prudência, e achei que fosse apanhar um dos seus famosos pontapés por baixo da mesa, mas a tia já lhe fazia sinal com a cabeça para que traduzisse. Quando a tia Eva compreendeu a pergunta, dirigiu-me um sorriso indulgente e respondeu com delicadeza.

— Aqui na Hungria, sempre valorizamos a nossa maneira de viver, a nossa independência. É por isso que os períodos de ocupação otomana e austríaca foram tão difíceis para nós. O verdadeiro Governo da Hungria sempre serviu progressivamente as necessidades do seu povo. Quando a nossa revolução tirou os operários da opressão e da pobreza, estávamos a fazer valer o nosso modo próprio de fazer as coisas. — O seu sorriso intensificou-se, e desejei poder entendê-lo melhor. — O Partido Comunista Húngaro está sempre em consonância com os tempos.

— Quer dizer que a senhora acha que a Hungria está a prosperar sob o Governo de Imre Nagy?

Desde que chegara à cidade que perguntava a mim próprio que mudanças a administração do novo e surpreendentemente liberal primeiro-ministro da Hungria teria trazido para o país depois de substituir Rákosi, o primeiro-ministro comunista da linha dura, no ano anterior, e se ele desfrutaria do todo o apoio popular de que falavam os jornais do meu país.

 

Helen traduziu um tanto nervosamente, notei, mas o sorriso da tia Eva manteve-se firme.

— Vejo que está a par dos acontecimentos, meu jovem amigo.

— Sim — disse eu, com naturalidade. — Sempre me interessei muito por relações internacionais. Estou convencido de que o estudo da História deveria ser a nossa preparação para compreender o presente, em vez de ser uma fuga a esse mesmo presente.

— Muito sensato. Bem, então, para satisfazer a sua curiosidade: Nagy desfruta de grande popularidade entre o nosso povo e está a realizar reformas segundo a nossa gloriosa história.

Levei um minuto para perceber que a tia Eva estava cuidadosamente a não dizer coisa alguma, e outro minuto para refletir sobre a estratégia diplomática que lhe permitira manter o seu cargo no Governo através do fluxo e do refluxo da política controlada pelos Soviéticos e das reformas pró-Hungria. Qualquer que fosse a sua opinião pessoal sobre Nagy, era ele quem controlava agora o Governo que a empregava. Talvez fosse a própria abertura criada pelo primeiro-ministro em Budapeste que tornava possível que ela uma funcionária de alto escalão do Governo levasse um americano a jantar fora. O brilho nos seus belos olhos escuros podia significar aprovação, embora eu não estivesse muito certo disso. No entanto, como ficou provado mais tarde, a minha impressão estava correta.

— E agora, meu amigo, temos de o deixar dormir um pouco antes da sua grande palestra Aguardo-a com ansiedade e depois dir-lhe-ei o que penso — traduziu Helen.

A tia Eva inclinou a cabeça para mim num gesto hospitaleiro e não pude deixar de lhe retribuir o sorriso O criado apareceu por trás dela como se a tivesse ouvido, fiz uma débil tentativa de pedir a conta, apesar de não ter a menor idéia de qual seria a regra de etiqueta apropriada ou mesmo se trocara dinheiro suficiente no aeroporto para pagar todos aqueles pratos requintados. No entanto, se houve uma conta, esta desapareceu antes que eu a visse e foi paga invisivelmente. Segurei o casaco da tia Eva para que ela o vestisse, disputando este privilégio com o maître, e entramos de novo no carro que nos esperava.

Junto daquela esplêndida ponte, a tia Eva murmurou algumas palavras que fizeram com que o motorista parasse o carro. Saímos e ficamos a olhar para a outra margem, Peste cintilando e refletindo-se nas ondulações da agua escura. O vento tornara-se mais frio, sentia-o cortante no meu rosto depois do ar balsâmico de Istambul, e pressenti a vastidão das planícies da Europa Central logo para lá do horizonte. A cena diante de nós era o gênero de vista que toda a minha vida ansiara ver; custava-me a crer que estava ali de pé a contemplar as luzes de Budapeste

A tia Eva disse qualquer coisa em voz baixa e Helen traduziu num sussurro:

— A nossa cidade será sempre uma grande cidade.

Mais tarde, iria lembrar-me nitidamente daquela frase. Veio-me a memória quase dois anos depois, quando soube qual tinha sido a real dimensão do empenhamento de Eva Orbán no novo governo reformista: os seus dois filhos adultos foram mortos numa praça pública por tanques soviéticos durante a revolta dos estudantes húngaros em 1956, e a própria Eva fugiu para o Norte da Iugoslávia, onde desapareceu nas aldeias juntamente com mil e quinhentos outros refugiados húngaros do Estado-marionete dos Russos. Helen escreveu-lhe muitas vezes, insistindo para que nos deixasse tentar levá-la para os Estados Unidos, mas Eva recusou-se sequer a solicitar a emigração. Tentei novamente encontrar algum vestígio dela há alguns anos, mas em vão. Quando perdi Helen, perdi também o contato com a tia Eva.

 

Ao acordar na manhã seguinte, dei com os olhos naqueles querubins dourados por cima da minha pequena cama dura e, por um instante, não consegui lembrar-me onde estava. A sensação era desagradável, sentia-me levado pelos acontecimentos e mais distante de casa do que jamais poderia imaginar, incapaz de me recordar se ali era Nova Iorque, Istambul, Budapeste ou outra cidade qualquer. Sentia que tivera um pesadelo mesmo antes de acordar. Uma pontada no coração recordou-me violentamente a ausência de Rossi, uma sensação que muitas vezes experimentara logo ao acordar, e fiquei a pensar se o sonho me teria levado a algum lugar macabro onde o poderia encontrar se tivesse permanecido lá o tempo suficiente

Helen estava a tomar o pequeno-almoço na sala de jantar do hotel com um jornal húngaro aberto. À sua frente a visão do idioma impresso desanimou-me, pois não conseguia perceber o significado de uma única palavra das manchetes e cumprimentou-me com um aceno alegre. A combinação do meu sono perdido, daquelas manchetes e da iminência da minha palestra, cujo momento se aproximava rapidamente, deve ter transparecido no meu rosto, porque ela lançou-me um olhar curioso quando me aproximei

— Que cara tão triste. Esteve a pensar outra vez nas crueldades dos Otomanos?

— Não. Só nas conferências internacionais

Sentei-me e tirei dois pãezinhos da cesta dela e um guardanapo branco. O hotel, apesar da sua decrepitude, parecia especializar-se em toalhas de mesa e guardanapos imaculados. Os pãezinhos, acompanhados de manteiga e geleia de morango, eram excelentes, assim como o café, que apareceu alguns minutos depois Sem qualquer sabor amargo.

 

— Não se preocupe — disse Helen, com um tom tranquilizador. — Vai ver que...

— Vou deixá-los de queixo caído! sugeri. Ela riu-se

— Você está a enriquecer o meu inglês disse.

— Ou a destruí-lo, talvez.

— Fiquei muito impressionado com a sua tia, ontem a noite — disse, e barrei de manteiga outro pãozinho.

— Percebi que ficou.

— Conte-me, como é que ela veio parar aqui, sendo romena, e alcançou um cargo tão alto? Isto é, se não se importa que pergunte.

Helen bebeu um gole de café.

— Foi por puro acaso, penso. A família dela era muito pobre, eram da Transilvânia e viviam num pequeno pedaço de terra numa aldeia que, segundo ouvi dizer, já nem existe. Os meus avós tiveram nove filhos e Eva era a terceira. Mandaram-na trabalhar quando tinha seis anos porque precisavam do dinheiro e não podiam alimentá-la. Ela trabalhou na casa de campo de uns húngaros abastados, donos de toda a terra em volta da aldeia. Havia muitos proprietários de terras húngaros naquela região durante o período entre as duas guerras, foram surpreendidos lá pela alteração das fronteiras depois do Tratado de Trinanon.

Assenti com a cabeça.

— Foi aquele tratado que reordenou as fronteiras depois da Primeira Guerra Mundial?

— Isso mesmo, muito bem. Como eu estava a dizer, Eva trabalhou para essa família desde muito pequena. Contou-me que eram bons para ela. As vezes, deixavam-na ir a casa aos domingos, e assim manteve o convívio com a família. Quando fez dezessete anos, as pessoas para quem trabalhava decidiram voltar para Budapeste e ela veio com eles. Aqui, conheceu um jovem jornalista e revolucionário chamado János Orbán. Apaixonaram-se, casaram-se e ele sobreviveu ao serviço militar durante a guerra. — Helen suspirou. — Tantos jovens húngaros lutaram por toda a Europa, e estão enterrados em fossas comuns na Polónia, na Rússia... Enfim, Orbán alcançou uma posição de poder no Governo de coligação depois da guerra e foi recompensado pela nossa gloriosa revolução com um cargo governatívo. Depois, morreu num acidente de automóvel, e Eva criou os filhos e deu continuidade à carreira política dele. É uma mulher surpreendente. Nunca soube exatamente quais são as convicções pessoais dela; por vezes, tenho a impressão de que mantém uma distância emocional de todas as políticas, como se fossem simplesmente a sua profissão. Acho que o meu tio era um homem apaixonado, um ferrenho seguidor da doutrina lelinista e um admirador de Stalin antes que as atrocidades dele fossem conhecidas aqui. Não sei dizer se a minha tia partilhava das mesmas idéias, mas construiu uma carreira notável por si própria. Em resultado disso, os filhos tiveram todos os privilégios possíveis, e ela usou o seu poder para me ajudar também, como já lhe contei.

Eu tinha-a ouvido atentamente.

— E como é que você e a sua mãe vieram para aqui?

Helen suspirou novamente.

— A minha mãe é doze anos mais nova que Eva — explicou. — Foi sempre a preferida de Eva entre as crianças pequenas da família e tinha apenas cinco anos quando Eva foi para Budapeste. Então, quando a minha mãe tinha dezenove anos e ainda era solteira, ficou grávida. Teve medo de que os pais e todos na aldeia ficassem a saber; numa cultura tão tradicional, compreende, corria o risco de ser expulsa e talvez até de morrer de fome. Então, escreveu a Eva a pedir-lhe ajuda, e os meus tios arranjaram maneira de ela viajar para Budapeste. O meu tio foi encontrar-se com ela na fronteira, que era fortemente vigiada, e levou-a para a cidade. Uma vez, ouvi a minha tia contar que ele pagou um suborno altíssimo aos funcionários da fronteira. O povo da Transilvânia era odiado na Hungria, especialmente depois do Tratado. A minha mãe disse-me que o meu tio conquistara a sua completa devoção. Não só a salvou de uma situação terrível, como nunca a deixou sentir as diferenças entre as suas respectivas origens nacionais. Ficou inconsolável quando ele morreu. Foi ele que a trouxe em segurança para a Hungria e lhe deu uma nova vida.

— E então você nasceu? — perguntei em voz baixa.

— E então eu nasci, num hospital de Budapeste, e os meus tios ajudaram a minha mãe a criar-me e a educar-me. Vivemos com eles até eu ir para o liceu. Eva levou-nos para o campo durante a guerra e, sabe-se lá como, conseguiu comida para todos. A minha mãe também estudou aqui e aprendeu húngaro. Sempre se recusou a ensinar-me uma palavra sequer em romeno, embora, às vezes, eu a ouvisse falar romeno enquanto dormia. — Lançou-me um olhar amargo. — Viu ao que o seu querido Rossi reduziu as nossas vidas? — disse, torcendo a boca. — Se não fossem os meus tios, a minha mãe poderia ter morrido abandonada numa floresta qualquer das montanhas ou ter sido devorada pelos lobos. Na verdade, nós duas.

— Também estou grato à sua tia e ao seu tio — disse eu, e, depois, receando o seu olhar mordaz, ocupei-me a servir-me de mais café do bule de metal que estava ao meu lado.

Helen não respondeu e, depois de um instante, tirou alguns papéis da bolsa.

— Vamos rever a palestra mais uma vez?

O sol matinal e o ar fresco lá fora estavam cheios de ameaças para mim; enquanto caminhávamos em direção à universidade, só pensava no momento, que agora se aproximava rapidamente, em que teria de proferir a minha palestra. Até então, só tinha feito uma palestra na vida, uma apresentação em conjunto com Rossi no ano anterior, quando ele organizara uma conferência sobre colonialismo holandês. Cada um de nós escrevera metade da palestra; a minha tinha sido uma tentativa corajosa de sintetizar em vinte minutos o que achava que a minha tese seria, antes mesmo de ter escrito uma linha; a de Rossi fora brilhante, uma exposição abrangente sobre a herança cultural dos Países Baixos, sobre o poder estratégico da marinha holandesa, sobre a natureza do colonialismo. Apesar da minha sensação de inadequação a tudo aquilo, ficara lisonjeado por ele me ter incluído na sua palestra. Também me sentira apoiado ao longo da minha intervenção pela sua presença sólida e confiante ao meu lado no palco, batendo-me ao de leve no ombro quando lhe passei a palavra. Agora, estaria sozinho. A expectativa era sombria, se não mesmo aterradora, e só o pensamento da maneira como Rossi teria lidado com a situação me dava um pouco de calma.

A elegante Peste rodeava-nos e, então, em plena luz do dia, pude ver que a sua magnificência estava em fase de reconstrução, melhor dizendo daquilo que fora destruído durante a guerra. Muitas casas estavam ainda sem paredes ou janelas nos andares superiores, ou até mesmo sem todo o andar superior, para ser mais preciso, e, observadas de perto, praticamente todas as superfícies, fosse qual fosse o material de que eram feitas, estavam marcadas por buracos de bala. Desejei que tivéssemos tempo para ir até mais longe, para poder ver mais de Peste, mas tínhamos combinado que naquele dia assistiríamos a todas as sessões da manhã, para tornar a nossa presença lá o mais autêntica possível

— E há também uma coisa que quero fazer depois, à tarde — disse Helen, pensativa. — Temos de ir à biblioteca da universidade antes que feche.

Quando chegamos ao imponente edifício onde tivera lugar a recepção da noite anterior, Helen parou

— Faça-me um favor

— Claro. O quê?

— Não fale com Géza Jozsef sobre as nossas viagens ou sobre o fato de estarmos à procura de alguém.

— De maneira nenhuma — retorqui, indignado.

— Só estou a avisá-lo. Ele pode ser muito insinuante, quando quer — e levantou a mão enluvada num gesto conciliador.

— Muito bem.

Segurei a grande porta barroca para lhe dar passagem e entramos. Numa sala de conferências do segundo andar, diversas pessoas que eu vira na noite anterior já estavam sentadas nas filas de cadeiras, a conversar animadamente ou a remexer em papéis.

— Meu Deus — murmurou Helen. — O departamento de Antropologia também aqui está.

Um segundo depois, foi envolvida em cumprimentos e conversas. Vi-a sorrir, presumivelmente a velhos amigos, colegas de anos de trabalho na sua própria área, e uma onda de solidão invadiu-me. Helen parecia estar a apontar para mim, como se tentasse apresentar-me a alguém a distância, mas a torrente de vozes e de palavras em húngaro, sem sentido para mim, criavam uma barreira quase palpável entre nós.

Então, senti uma palmadinha no braço e lá estava o temível Géza diante de mim. Deu-me um aperto de mão e um sorriso cheios de cordialidade.

— Está a gostar da nossa cidade? — perguntou. — Está tudo à sua vontade?

— Tudo — respondi, com igual cordialidade. Tinha a advertência de Helen bem vincada na minha mente, mas era difícil não gostar do indivíduo.

— Ah, fico satisfeito — disse ele. — E vai fazer a sua palestra esta tarde?

Tossi.

— Sim — disse. — Sim, exatamente. E você? Vai fazer a sua intervenção hoje?

— Oh, não, não — disse. — Na verdade, estou a pesquisar um tema que neste momento me interessa muito. Mas ainda não estou pronto para fazer uma palestra sobre o assunto.

— Qual é o tema?

Não pude deixar de perguntar, mas, naquele instante, o professor Sándor, o da cabeleira branca à Pompadour, subiu ao palco e avisou que a sessão ia começar. A multidão acomodou-se nos assentos como pássaros nos fios de telefone e aquietou-se. Sentei-me ao fundo, ao lado de Helen, e olhei para o relógio. Eram só nove e meia, de modo que podia descontrair-me um pouco. Géza József tinha-se sentado na frente; via-se a parte de trás da sua bela cabeça na primeira fila. Passei os olhos pelo salão. Vi também vários outros rostos conhecidos, pessoas a quem tinha sido apresentado na noite anterior. Formavam uma multidão séria, ligeiramente desmazelada, todos de olhos fixos no professor Sándor.

— Guten Morgen — bradou ele, e o microfone guinchou até que um aluno de camisa azul e gravata preta apareceu para o sintonizar. — Bom dia, prezados visitantes. Guten Morgen, bonjour, bem-vindos à Universidade de Budapeste. Temos a honra de dar início à primeira convenção europeia de historiadores de... — Neste ponto, o microfone começou a guinchar novamente e perdemos várias frases. Aparentemente, o professor Sándor também esgotara por enquanto todo o seu conhecimento de inglês, e prosseguiu durante alguns minutos numa mistura de húngaro, francês e alemão. Entendi, juntando o francês e o alemão, que o almoço seria servido ao meio-dia, e depois para meu horror disse que eu seria o orador principal, o ponto alto da conferência, que eu era um intelectual americano da mais alta distinção, especialista não só na história dos Países Baixos como também na economia do Império Otomano e nos movimentos sindicalistas dos Estados Unidos da América (teria sido a tia Eva que inventara isto?), que o meu livro sobre as guildas mercantis holandesas na época de Rembrandt seria publicado no ano seguinte, e que tinha sido uma grande sorte poderem acrescentar o meu nome ao programa da conferência naquela mesma semana.

Era muito pior do que os meus piores pesadelos, e jurei que Helen me pagaria se estivesse envolvida. Muitos dos professores presentes viraram-se para olhar para mim, sorrindo amavelmente, cumprimentando-me com inclinações da cabeça e até mesmo apontando-me uns aos outros. Helen mantinha-se ao meu lado, altiva e séria como uma rainha, mas algo na curva do seu ombro vestido com o casaco preto sugeria só a mim, esperava eu — uma vontade quase perfeitamente oculta de rir às gargalhadas. Tentei parecer também cheio de gravidade e procurei lembrar-me de que tudo aquilo, até aquilo, era por Rossi.

Quando o professor Sandór acabou de gritar, um homenzinho careca dissertou sobre o que parecia ser a Liga Hanseática. Seguiu-se uma mulher de cabelos grisalhos e vestido azul cujo tema tinha a ver com a história de Budapeste, embora eu não pudesse compreender nada do que ela dizia.

O último orador antes do almoço era um jovem acadêmico da Universidade de Londres parecia ter a mesma idade que eu e, para meu imenso alívio, falou em inglês, enquanto um estudante húngaro de filologia lia a tradução da palestra em alemão. (Era estranho, pensei, ouvir tanto alemão apenas uma década depois de os Alemães quase terem destruído Budapeste, mas lembrei-me de que o alemão fora a língua franca do império austro-húngaro.) O professor Sándor apresentou o inglês como Hugh James, professor de história da Europa de Leste.

O professor James era um homem sólido, vestido de tweed castanho e gravata verde-azeitona; naquele ambiente, parecia tão indescritivelmente, tão caracteristicamente inglês, que me esforcei para conter uma risada. Os seus olhos cintilavam para a plateia e dirigiu-nos um sorriso agradável.

— Nunca esperei encontrar-me em Budapeste — disse, olhando em volta, — mas é muito gratificante para mim estar aqui, na maior cidade da Europa Central, uma porta entre o Oriente e o Ocidente. Agora, gostaria de tomar alguns minutos do vosso tempo para refletir sobre os legados que os Turcos Otomanos deixaram na Europa Central quando se retiraram, após o falhado cerco de Viena em 1685.

Fez uma pausa e sorriu para o aluno de filologia que, compenetrado, nos lia essa primeira parte em alemão. E prosseguiram assim, alternando os idiomas; mas o professor James deve ter divagado sobre o que estava na página mais do que seguido o texto, porque à medida que a sua palestra se ia desenrolando o aluno lançava-lhe frequentemente um olhar desnorteado.

— Todos já ouvimos a história da invenção do croissant, o tributo de um pasteleiro parisiense à vitória de Viena sobre os Otomanos. O croissant, é claro, representava o crescente das bandeiras otomanas, um símbolo que o Ocidente devora até hoje com café.

Olhou em volta, sorridente, e então percebeu, como eu percebera havia pouco, que a maioria daqueles interessados acadêmicos húngaros nunca tinha estado em Paris ou em Viena.

— Sim... bem, o legado dos Otomanos pode ser resumido numa palavra, creio eu: estética.

E continuou, descrevendo a arquitetura de meia dúzia de cidades da Europa Central e Oriental, e falou de jogos e modas, temperos e decoração de interiores. Escutei com uma fascinação que só em parte era decorrente do alívio de poder perceber tudo o que ele dizia, muito do que tínhamos acabado de ver em Istambul veio-me à memória enquanto James discorria sobre os banhos turcos de Budapeste e os edifícios proto-otomanos e austro-húngaros de Sarajevo. Quando analisou o palácio Topkapi, dei comigo a concordar vigorosamente com a cabeça, até que percebi que talvez fosse preferível ser mais discreto.

Aplausos entusiásticos seguiram-se à palestra, e então o professor Sándor convidou todos a reunirem-se no refeitório para o almoço. Na confusão de professores e de comida, consegui encontrar o professor James no momento em que este se sentava à mesa.

— Posso sentar-me aqui?

Ele levantou-se de um salto, com um sorriso aberto.

— Certamente, certamente. Muito prazer, sou Hugh James. Como está? — Apresentei-me também e trocamos um aperto de mão. Quando me sentei diante dele, olhámo-nos com uma curiosidade amigável

— Ah — disse ele —, então você é o orador principal? Estou ansioso por assistir à sua palestra.

Assim de perto, parecia mais velho que eu uns dez anos, e os olhos eram de um extraordinário tom castanho-claro, líquidos e um pouco dilatados, como os de um basset hound. Já identificara o seu sotaque como sendo do Norte da Inglaterra, por causa das vogais prolongadas.

— Obrigado — disse, tentando não parecer intimidado. E eu gostei de cada minuto da sua. Cobriu um espectro notável. Gostaria de saber se conhece o meu... hum... mentor, Bartholomew Rossi. Também é inglês.

— Conheço, claro! — Hugh James desdobrou o guardanapo com um floreio entusiasmado. — O professor Rossi é um dos meus escritores favoritos, li a maior parte dos livros dele. Trabalha com ele? Que sorte a sua.

Perdera Helen de vista, mas naquele momento consegui vislumbrá-la a servir-se no buffet, com Géza József ao seu lado. Ele falava-lhe com veemência junto ao ouvido, e depois de um minuto ela deixou-o acompanhá-la até uma pequena mesa do outro lado do salão. Via-a suficientemente bem para perceber a expressão irritada que tinha no rosto, mas isso não me tornou mais agradável a cena a que estava a assistir. Ele inclinava-se para ela, olhando-a diretamente no rosto, enquanto ela olhava para baixo, para o prato, e eu estava louco por saber o que ele lhe estava a dizer.

— De qualquer forma — Hugh James ainda estava a falar sobre o trabalho de Rossi, — acho maravilhosos os estudos dele sobre teatro grego. O homem pode fazer qualquer coisa.

— Sim — respondi distraidamente. — Ele tem estado a trabalhar num artigo chamado "O Fantasma na Ânfora", sobre os adereços de palco usados nas tragédias gregas

Calei me de repente, pois percebi que podia estar a revelar os segredos profissionais de Rossi. Se não tivesse parado, entretanto, a expressão do professor James ter-me-ia feito calar.

— O quê? -perguntou ele, visivelmente perplexo. Apoiou o garfo e a faca no prato, pondo de lado o almoço. — Você disse "O Fantasma na Ânfora"?

— Sim — Até me esqueci de Helen e Geza — Por que pergunta?

— Ora, mas isto é espantoso. Acho que tenho de escrever imediatamente ao professor Rossi. Veja você, tenho estado a estudar recentemente um documento interessantíssimo do século quinze da Hungria. Foi principalmente o que me trouxe a Budapeste, tenho andado a estudar esse período da história da Hungria, sabe, e então aproveitei para participar da conferência, com a amável concordância do professor Sandor. Seja como for, esse documento foi escrito por um dos sábios do Rei Matyas Corvinus, e menciona o fantasma na ânfora.

Lembrei me de que Helen se referira ao rei Matyas Corvinus na noite anterior, não fora ele o fundador da grande biblioteca do castelo de Buda? A tia Eva falara sobre ele, também.

— Por favor — disse eu, ansioso, — explique-me melhor

— Bem, parece uma tolice, mas estive muito interessado durante vários anos nas lendas populares da Europa Central Começou como um tipo de brincadeira, creio, há muito tempo, mas fiquei totalmente obcecado pela lenda dos vampiros.

Olhei para ele. Parecia tão normal como antes, com a face corada, jovial, e o casaco de tweed, mas tive a sensação de estar a sonhar.

— Ah, eu sei que parece um interesse juvenil, o conde Drácula e tudo isso, mas sabe, é um assunto incrível quando se começa a aprofundá-lo. Veja bem, Drácula era uma pessoa real, embora, é claro, não fosse um vampiro, e o meu interesse é saber se a história dele está de alguma forma ligada ao folclore sobre vampiros. Ha alguns anos, comecei a procurar material escrito sobre o assunto, até para ver se havia mesmo algum material desse tipo, pois os vampiros faziam parte sobretudo da tradição oral das aldeias da Europa Central e Oriental.

Recostou-se, tamborilando com os dedos na borda da mesa

— Bem, veja só, quando trabalhava aqui na biblioteca da universidade, encontrei esse documento que aparentemente foi encomendado por Corvinus. Ele queria alguém que reunisse tudo o que se sabia a respeito de vampiros desde as épocas mais remotas Quem quer que tenha sido o especialista incumbido da tarefa, era seguramente um estudioso dos clássicos que, em vez de se por a percorrer as aldeias como qualquer antropólogo teria feito, começou a examinar textos em latim e grego. Corvinus possuía muitos, sabe para procurar referências sobre vampiros, e deu com esse conceito da Antiguidade grega, que nunca encontrei em qualquer outro lugar até você o mencionar agora mesmo sobre o fantasma na ânfora. Na Grécia antiga, e nas tragédias gregas, a ânfora muitas vezes continha cinzas humanas, sabe, e o povo ignorante acreditava que, se as coisas não corressem como deviam durante o enterro da ânfora, isso podia produzir um vampiro, embora eu não saiba como. Talvez o professor Rossi saiba alguma coisa sobre isso, já que está a escrever sobre fantasmas em ânforas. Uma coincidência incrível, não é? Na verdade, ainda há vampiros na Grécia moderna, de acordo com o folclore de lá.

— Eu sei — respondi. — Os vrykolakas.

Desta vez, foi Hugh James que me olhou fixamente. Os olhos castanhos protuberantes ficaram ainda maiores.

— Como é que sabe isso? — e respirou fundo. — Oh, peço-lhe que me desculpe... é que estou surpreendido por encontrar outra pessoa que...

— Está interessada em vampiros? — disse eu, secamente. — Sim, isso também me surpreendia, mas nos dias que correm já começo a estar habituado. Como é que se interessou por vampiros, professor James?

— Hugh — corrigiu ele, falando devagar. — Por favor, chame-me Hugh. Bem, eu... — Olhou-me com firmeza durante um segundo e, pela primeira vez, vi que, por baixo da aparência exterior jovial e cheia de si, ardia uma chama acesa. — É terrivelmente estranho e não costumo falar com as pessoas sobre isso, mas...

Não aguentei mais a expectativa.

— Por acaso encontrou um livro antigo com um dragão no centro? — perguntei.

Olhou-me com uma expressão quase desvairada e a cor esvaiu-se do seu rosto saudável.

— Sim disse. — Encontrei um livro assim. — As mãos dele agarraram a extremidade da mesa. — Quem é você?

— Achei um, também.

Ficamos ali sentados a olhar um para o outro durante longos segundos, e poderíamos ter ficado assim, mudos, ainda mais tempo, adiando tudo o que tínhamos para discutir, se não tivéssemos sido interrompidos. A voz de Géza József soou-me nos ouvidos antes mesmo que eu notasse a sua presença; viera por trás e debruçou-se sobre a nossa mesa com um sorriso simpático. Helen aproximou-se também, apressada, com uma expressão estranha no rosto quase de culpa, pensei

— Boa tarde, camaradas — disse ele, cordialmente. — Que história é essa de achar livros?

 

Quando o professor József se inclinou sobre a nossa mesa com a sua pergunta amistosa, por um momento não soube o que dizer. Eu tinha de falar outra vez com Hugh James logo que fosse possível, mas em particular, não no meio de toda aquela gente, e certamente não com a pessoa com quem Helen me dissera para ter cuidado por que motivo? — a respirar-me em cima do pescoço. Finalmente, consegui juntar algumas palavras.

— Estávamos a trocar idéias sobre a nossa paixão por livros antigos — disse. — Qualquer acadêmico deveria admiti-la, não acha?

Nessa altura, Helen estava já junto de nós e olhava-me com o que interpretei como uma mistura de alarme e aprovação. Levantei-me para puxar uma cadeira para ela. No meio da minha necessidade de dissimular perante Géza József, devo ter demonstrado um pouco de nervosismo, porque ela olhava fixamente de mim para Hugh. Géza olhava para todos nós com cordialidade, mas pensei ter visto semicerrarem-se levemente os seus belos olhos epicânticos; deve ter sido assim, pensei, que os Hunos devem ter olhado para o Sol do Ocidente através das fendas dos seus elmos de couro. Procurei não olhar para ele novamente.

Teríamos ficado ali o dia inteiro cruzando ou evitando olhares se o professor Sándor não tivesse aparecido de repente.

— Muito bem — disse ele aos brados. — Vejo que estão a apreciar o almoço. Já acabaram? E agora, se fizer a gentileza de vir comigo, vamos dar início a sua palestra.

Encolhi-me na verdade, por alguns minutos esquecera a tortura que me aguardava, mas levantei-me, obediente. Géza colocou-se respeitosamente atrás do professor Sándor um pouco respeitosamente demais?, perguntei a mim mesmo, o que me deu um momento abençoado em que pude olhar para Helen. Arregalei os olhos e indiquei Hugh James, que também se levantara educadamente quando Helen chegara, e agora estava de pé junto à mesa, em silêncio. Ela franziu a testa, intrigada, e então o professor Sándor, para meu alívio, agarrou Géza pelo ombro e levou-o consigo. Pensei ter notado uma certa contrariedade nas costas grandes e encasacadas do jovem húngaro, mas talvez eu já estivesse demasiado impregnado da paranóia de Helen em relação a ele. De qualquer maneira, aquilo dera-nos um momento de liberdade.

— Hugh encontrou um livro — sussurrei, traindo desavergonhadamente o segredo do inglês.

Helen olhou para mim, sem compreender.

— Hugh?

Inclinei rapidamente a cabeça na direção do nosso companheiro, e ele olhou fixamente para nós. Então o queixo de Helen caiu. Hugh, por sua vez, olhou para ela:

— Ela também...?

— Não — sussurrei. — Está a ajudar-me. É Helen Rossi, antropóloga. — Hugh apertou-lhe a mão de modo caloroso mas brusco, ainda com o olhar parado. No entanto, o professor Sándor tinha voltado e estava à nossa espera, e não havia outra alternativa senão segui-lo. Helen e Hugh saíram colados a mim, como se fôssemos um rebanho de ovelhas.

O auditório já estava a começar a encher-se, e escolhi um lugar na primeira fila, tirando as minhas notas da pasta com uma mão que quase não tremia. O professor Sándor e o seu assistente estavam outra vez a mexer no microfone, e ocorreu-me que talvez os espectadores não conseguissem ouvir-me, e nesse caso não teria com que me preocupar. Cedo demais, no entanto, o equipamento começou a funcionar e o amável professor apresentou-me, balançando a cabeça branca com entusiasmo enquanto falava, baseando-se no que lia num papel. Citou novamente as minhas notáveis credenciais, descreveu o prestígio da minha universidade nos Estados Unidos e felicitou a plateia pelo raro privilégio de me ouvir, desta vez tudo em inglês, provavelmente para que eu entendesse. De repente, dei-me conta de que não tinha um intérprete para traduzir para o Alemão, enquanto eu falava, as minhas notas, escritas naquelas folhas amassadas, e essa idéia despertou em mim um surto de confiança enquanto me levantava para enfrentar aquela provação.

— Boa tarde, colegas, companheiros historiadores comecei, — e então, sentindo que aquilo era pomposo demais, pus de lado as minhas notas. — Obrigado por me darem a honra de falar para vocês hoje. Gostaria de discorrer um pouco sobre o período da incursão otomana na Transilvânia e na Valáquia, dois principados que conhecem bem como parte da atual Romênia.

O mar de rostos atenciosos olhava fixamente para mim, e pareceu-me detectar uma súbita tensão na sala. A Transilvânia, para os historiadores húngaros, assim como para muitos outros húngaros, era um assunto delicado.

— Como sabem, o Império Otomano manteve territórios em todo o Leste Europeu por mais de quinhentos anos, administrando-os a partir de uma base segura depois da sua conquista da antiga Constantinopla em 1453. O Império foi bem sucedido na invasão de uma dúzia de países, mas houve algumas regiões que nunca foi capaz de dominar, muitas delas, bolsas montanhosas nos confins da Europa Oriental, cuja topografia e povos nativos desafiavam a conquista. Uma dessas regiões foi a Transilvânia.

Continuei desta maneira, em parte baseado nas minhas notas e em parte de memória, de vez em quando sentindo uma onda de pânico acadêmico, ainda não conhecia bem o assunto, embora as lições de Helen sobre ele estivessem nitidamente gravadas na minha mente. Depois dessa introdução, fiz uma breve descrição geral sobre as rotas comerciais otomanas na região e então enumerei os diversos príncipes e nobres que haviam tentado repelir a incursão otomana. Incluí Vlad Drácula entre eles do modo mais casual que consegui, porque Helen e eu tínhamos concordado que deixá-lo completamente de fora poderia parecer suspeito para qualquer historiador que conhecesse a sua importância como destruidor de exércitos otomanos. Deve ter-me custado mais do que eu imaginava pronunciar aquele nome na frente de uma multidão de estranhos porque, quando comecei a falar sobre o empalamento de vinte mil soldados turcos, fiz um gesto demasiado brusco com a mão e entornei o meu copo de água.

— Oh, perdão! — exclamei, olhando constrangido para a massa de rostos solidários, com exceção de dois deles. Helen estava pálida e parecia tensa, e Géza József inclinava-se um pouco para a frente, sem sorrir, como se a minha gafe o interessasse extremamente. O aluno de camisa azul e o professor Sandor vieram em meu auxílio com os seus lenços e logo a seguir pude continuar, o que fiz com toda a dignidade que consegui reunir. Ressaltei que, embora os Turcos tivessem finalmente conseguido vencer Vlad Drácula e muitos dos seus camaradas, achei que devia inserir aquela palavra nalgum ponto, rebeliões daquele tipo persistiram durante gerações, até que sucessivas revoluções locais derrubaram o Império. Fora a natureza local dessas rebeliões, com a sua capacidade de desaparecer no seu próprio território depois de cada ataque, que acabou por minar a grande máquina otomana.

A minha intenção era terminar de maneira mais eloquente, mas pelos vistos agradara à plateia, e houve uma sonora salva de palmas. Para minha surpresa, tinha acabado. Nada de terrível acontecera. Helen afundou-se na cadeira, visivelmente aliviada, e...

 

[1] The Rape of the Lock, de Alexander Pope.

[2] Boswell (1740-1795), ensaísta escocês conhecido pela biografia The Life ofSamuel Johnson (1791).

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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