Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O HOMEM DE CONSTANTINOPLA
Nenhum ser humano esquece o dia em que o pai morreu.
Dizem que é o momento em que nos tornamos adultos e o futuro nos é confiado como a chave de uma mansão de que somos enfim herdeiros. Fingimos que assumimos a vida como senhores do nosso destino, mas a orfandade nada nos oferece a não ser a solidão dos que se descobrem entregues à sua sorte.
Vivi essa tragédia pessoal numa jornada estranha, uma daquelas tardes em que tudo parece suceder ao mesmo tem o, como se Deus jogasse com a nossa desgraça tirando-nos com uma mão o que nos dá com a outra. A vida tem, aliás, destas coisas. Tropeçamos nos anos como se estivéssemos anestesiados, não passamos de sonâmbulos a vaguear por um sonho cujos contornos mal discernimos, perdidos num labirinto tecido pelos mistérios que assombram os caminhos abertos diante de nós. De repente, como por encanto, ou talvez graças a um desconcertante passe de ilusionismo, os acontecimentos aceleram e tudo se precipita.
Foi o que se passou naquele dia em que entrei no hotel, um estabelecimento de luxo instalado num palacete perdido nos confins ocidentais da Europa. Franqueei o átrio como um animal acossado, ansioso e deprimido, vergado pelo futuro que intuía incerto. A viagem para Lisboa havia sido cansativa e quando por fim me deixei cair no sofá, depois de falar com o médico e de ir ao primeiro andar espreitar o meu pai moribundo, fiquei com a impressão de que já não seria capaz de me levantar, tão macias achei as almofadas e tão fatigado me sentia. Olhei em volta e respirei o ambiente sereno do hotel. O grande salão estava finamente decorado, como sempre, mas o que mais me encantou, admito, foi o tapete fofo no qual os meus pés se afundavam com infinito deleite.
Enquanto saboreava o whisky com gelo que fui buscar ao bar para me forçar a descontrair, deixei a mente vagabundear pelos acontecimentos das últimas vinte e quatro horas. Tudo começara quando me chegou o telegrama com as notícias do colapso que o meu pai tinha sofrido em Lisboa. Apesar de estar plenamente consciente de que, com aquela idade, qual quer situação do género poderia ocorrer a todo o momento, foi como se alguém me tivesse despertado com uma bofetada. Uma coisa é pensarmos em abstracto na possibilidade de isto acontecer, outra é algo assim suceder de facto. Descobrimos nesse instante que nunca estamos realmente preparados.
O que se passou a seguir à chegada da notícia transformara-se já numa amálgama confusa de pedaços de imagens que flutuavam caoticamente na minha memória, como folhas secas que o vento do Outono atirava em sucessivos remoinhos pelo ar. Lembro-me vagamente de ir a Piccadilly comprar à pressa um bilhete da BOAC, depois a corrida desenfreada no meu Morgan até ao aeródromo de Croydon, o interminável voo de seis horas sobre o Atlântico, a aterragem aos solavancos do De Havilland na pista de Lisboa, as cores das casas que a luz límpida da cidade tornava alegremente garridas, os rostos apreensivos que me acolheram no Aviz, a placidez vertida pela face impassível do meu pai no momento em que o vi estendido na cama. Estava a morrer e parecia dormitar.
Uma mão amiga apertou-me o ombro, trazendo-me de volta ao salão do hotel.
Alors, mon cheri ?, perguntou-me a voz feminina num tom maternal. T'es bien?
Virei a cabeça e reconheci o vulto alquebrado de madame Duprés. Tinha o olhar cansado de quem não dormia havia alguns dias e dava a impressão de que envelhecera considera velmente desde que com ela me cruzara pela última vez, uns três anos antes. Seria da fadiga ou do choque? A verdade é que a senhora contava mais de oitenta anos, pelo que a única verdadeira surpresa deveria ser a energia que a animou até tão avançada idade. Qualquer que fosse a sua fonte, todavia, a vitalidade manifestamente apagara-se e dela apenas sobrava um clarão difuso, como o hálito do sol no langor moribundo do crepúsculo.
Ainda não estou em mim , confessei. Alguma novidade?
A velha francesa abanou a cabeça, os olhos a pestanejarem com uma tristeza prenhe de resignação.
Infelizmente não.
Madame Duprés acomodou-se numa chaise longue ao meu lado, os gestos suaves e melancólicos, o corpo aterradoramente frágil. Parecia um espectro prestes a quebrar-se.
Ele alguma vez recuperou a consciência?
De início sim. O doutor disse-me que se trata de um tipo raro de coma, como se a consciência fosse sucessivamente ligada e desligada. Mas os momentos em que está desperto são cada vez mais raros, curtos e espaçados. O olhar dela pousou em mim e pareceu acender-se por momentos, como a chama mortiça de uma vela que desperta ao sabor de uma aragem súbita. Por isso, se ele acordar outra vez, aproveita.
Aproveita cada segundo, frui cada palavra, guarda cada olhar.
Poderá não haver outra oportunidade, entendeste?
Assenti com a cabeça, perfeitamente consciente de que, se voltasse a falar com o meu pai, seria decerto para lhe dizer adeus. O médico português já me tinha aliás dado conta da gravidade da situação, sublinhando que a questão se encontrava para além dos conhecimentos da medicina. Se nutria ainda algumas ilusões quanto ao verdadeiro estado em que ele se encontrava, perdi-as por completo nessa conversa.
Nos últimos tempos, perguntei de repente, ele falou de mim?
Madame Duprés abanou a cabeça.
Como sabes, o teu pai não era muito expansivo, murmurou de olhos submissos. Mas não tenhas dúvidas de que a vossa zanga o deixou muito abatido. Nunca mais foi o mesmo.
O era que ela utilizou para se referir a meu pai soou-me amargamente a requiem antecipado; dava a impressão de que já tinha desistido dele e se resignara ao inevitável. A pessoa mais afectada, talvez por ter vivido de perto toda a situação, era de facto madame Duprés. Apesar de ser eu o filho, dei comigo a tentar consolá-la e a fazer-lhe ver que a vida é uma viagem com ponto de partida e de chegada. O meu pai estava no fim do caminho, tínhamos de nos preparar e aceitar o inevitável desenlace. Ela chorou ali ao lado de mim, em pleno salão do Aviz, os pés afundados naquele tapete fofo, as mãos a taparem o rosto molhado de lágrimas. Não me envergonho de dizer que chorei também. Depois mergulhámos no mutismo retemperador de quem se sente resignado e afogámos a tristeza em novas encomendas no bar, eu sempre fiel ao meu copo de whisky, ela agarrada ao seu cálice de vinho do Porto.
Tudo se passou então com uma velocidade estonteante. Os acontecimentos começaram a precipitar-se quando, uma hora mais tarde, um empregado do hotel se aproximou de mim e anunciou um telefonema na recepção. Do estrangeiro, esclareceu ele com urgência na voz, como se nada existisse de mais importante que uma chamada do estrangeiro. Estranhei a circunstância, não havia muita gente que estivesse a par do meu paradeiro e as chamadas internacionais eram de facto raras, mas a realidade é que havia um telefonema para mim e naturalmente fui atender.
M'sieur Sarkisian?, perguntou a voz do outro lado, com um sotaque estranho, talvez da Europa Central. Krikor Sarkisian?
Sou eu mesmo. Quem fala?
Daqui Mehmet Bey.
Ouvia-se muito mal, a linha telefónica estralejava de ruídos e assobios e a voz do outro lado parecia vir do fundo de um longo túnel, decerto lançada de uma cidade longínqua do outro lado da Europa.
Quem?
Mehmet Bey. O contacto do seu pai em Istambul.
Um turco. Desde a minha juventude que aprendera a desconfiar dos Turcos. Sofri tanto às mãos dessa gente que por eles não me sobrava um pingo de simpatia. Fiquei por isso de pé atrás.
Ah, como está?, cumprimentei-o com a voz gelada. Em que lhe posso ser útil?
Encontrei-a!, exclamou ele num tom estranhamente triunfal, quase eufórico. Encontrei-a!
Nunca me esquecerei destas palavras gritadas de tão longe e que me chegaram como um miado débil; ainda hoje as escuto nos meus ouvidos, um eco doce que o tempo aprisionou. Confesso, para ser sincero, que a princípio não entendi. Já se tinham passado tantos anos ... Como julguei que o senhor Bey era um dos homens contratados pelo meu pai para identificar obras de arte pelos quatro cantos da Europa, pensei até que se estaria a referir a uma peça qualquer que tivesse localizado no mercado de Istambul. Talvez um quadro, uma moeda antiga, um tesouro da tapeçaria persa ou um vaso chinês.
Encontrou-a? Desculpe, mas agora não tenho cabeça para falar sobre esses assuntos.
Por esta altura já ambos gritávamos ao bocal dos nossos aparelhos, num esforço caricato de nos fazermos ouvir nas duas extremidades do túnel em que se transformara aquela chamada, um e outro em cada uma das pontas meridionais da Europa.
Lembra-se da busca ordenada pelo seu pai e pelo meu, há uns quarenta anos, de uma senhora desaparecida?, insistiu o homem do outro lado da linha. Encontrei-a!
O meu coração deu um salto no momento em que compreendi enfim o que me era dito. Senti o equilíbrio fugir-me e tive de me apoiar ao balcão da recepção, tão violento e profundo foi o choque. Fiquei um longo instante sem saber o que dizer, na verdade incapaz de pronunciar uma palavra que fosse, a mão sobre os lábios e atordoado com a notícia, querendo acreditar mas receando fazê-lo. Seria possível? Teria ela sido mesmo encontrada?
Alô? Senhor Sarkisian? Está a ouvir-me?
Sim, sim, respondi de forma quase maquinal, tentando ainda recompor-me das emoções que o anúncio alvoroçara.
Estou aqui.
Percebeu o que lhe disse?
Eu ... tem a certeza de que a encontrou? Está seguro de que é ela? Não poderá ser outra pessoa?
É ela!, insistiu o turco com a ênfase de quem não tinha a mínima dúvida do que afirmava. Falei com a senhora e tudo. Está confirmadíssimo. É ela.
Foi como se se tivesse aberto em mim nesse instante um dique fechado há exactamente trinta e nove anos. Dei comigo a soluçar, desamparado e ao abandono, um abrupto mar de lágrimas a embaciar-me os olhos. Apercebi-me da presença de madame Duprés ao meu lado e pensei que me tinha vindo confortar, mas, no meio daquela situação, como se o destino se enchesse de malícia e tudo quisesse complicar, compreendi que ela trazia urgência no olhar. Vencendo a vaga de emoções que me turvava o raciocínio, fiz um esforço para me dominar.
O teu pai despertou, ouvi-a dizer. Vem depressa! Vem antes que ele se vá!
Alô, senhor Sarkisian?, perguntava ao mesmo tempo a voz do outro lado da linha. Está a ouvir me?
Fitei-a e percebi que o meu pai tinha prioridade. Olhei para o telefone negro e decidi que também o turco tinha prioridade. Para onde devia voltar-me? O que fazer? A minha confusão era total, parecia que uma orquestra havia encetado uma sinfonia desalinhada, cada instrumento a tocar para o seu lado e eu ali perdido como um maestro incompetente, incapaz de coordenar a cacofonia em que se transformara aquele instante de pura indecisão.
Eu ... eu ...
Madame Duprés puxou-me pela mão.
Vem depressa!, insistiu. É a última oportunidade!
Senhor Sarkisian?, chamava o turco. Alô? Alô?
Em definitivo, e considerando as circunstâncias, o meu pai estava à frente de tudo o resto. Senhor Bey, disse apressadamente para o bocal do telefone. Agora não posso falar. Onde nos poderemos encontrar?
Na próxima segunda-feira, ao meio-dia, na recepção do Pera Palace, em Istambul, devolveu ele com a prontidão de quem já tinha tudo planeado. Está bem para si?
Vemo-nos segunda-feira.
Desliguei o telefone e corri atrás de madame Duprés, que subia já as escadas na companhia do doutor Fonseca, o médico que o meu pai contratara logo que se instalou em Lisboa. Chegámos ao primeiro andar e dirigimo-nos à suíte que ele ocupava.
Cruzei a porta e mergulhei na penumbra. As cortinas estavam corridas, como se um véu opaco assombrasse o quarto, e pairava no ar o cheiro característico das antecâmaras da morte. Os lençóis cobriam a cama, brancos como uma mortalha asséptica, a flutuar ao ritmo pausado da respiração. Ao chegar-me à cabeceira, porém, apercebi-me de que ele tinha os olhos abertos, baços de torpor mas ainda com uma centelha de vida a animá-los.
Pai?, sussurrei com a maior doçura de que fui capaz.
Está a ouvir-me?
Os olhos negros escorregaram na minha direcção e tive então a certeza de que se encontrava realmente desperto e me entendera. Encorajado, perguntei-lhe se se sentia bem. Tentou falar, ainda pronunciou uma sílaba, kr ... kri ... , presumi que quisesse dizer o meu nome, mas tornava-se evidente que o esforço era demasiado penoso e, com um suspiro fatigado, desistiu. Disse-lhe que descansasse e não se preocupasse, ia correr tudo bem. Não sei se acreditou em mim ou se foi do cansaço, mas a verdade é que a seguir cerrou os olhos humedecidos e pareceu serenar. Dei um passo para o lado e deixei madame Duprés soprar-lhe umas palavras de ânimo a que ele voltou a não responder. A francesa ainda tentou persistir, mas de repente virou-se e fugiu dali com um gemido. Não era capaz de o ver naquele estado.
Apercebi-me, talvez um minuto depois, de que ele reabrira os olhos e tentava de novo falar. Aproximei-me mais uma vez da cama, peguei-lhe na mão mortiça e fria e inclinei-me sobre ele, encostando o ouvido à boca trémula. Começou outra vez por balbuciar umas sílabas incompreensíveis, sons que não pareciam fazer sentido e que se soltavam nas pausas da respiração leve, mas inesperadamente saiu-lhe uma frase completa, na verdade uma pergunta lançada num só fôlego, como se ela reflectisse a essência da sua vida.
O que é a beleza?
Estas palavras enigmáticas suscitaram-me o maior dos espantos. O que é a beleza? O que raio quisera ele dizer com aquilo? Porque teria o meu pai gasto a sua escassa energia com uma irrelevância? Só podia ser o resultado de um delírio febril, o produto indesejado das elucubrações demenciais de um moribundo, pelo que ignorei a tão absurda pergunta e decidi questioná-lo sobre o seu estado. Quis saber se se encontrava bem, se desejava alguma coisa ou se podia fazer algo por ele, mas voltou a fechar as pálpebras e a deixar-me entregue à minha perplexidade. Enquanto reflectia naquela pergunta bizarra, senti-o remexer-se na cama. Imaginando que algo o incomodava, levantei prontamente o lençol para verificar se estava tudo bem. Foi nessa altura que ele alçou o braço debilitado e fez um gesto na direcção da cómoda. A seguir ouvi-o suspirar e o braço tombou, pendurado ao abandono na borda da cama.
O doutor Fonseca abeirou-se dele e inspeccionou-lhe os olhos e a pulsação. Depois endireitou-se e, respirando fundo, encarou-me.
Regressou ao coma, disse. Receio que o fim esteja iminente.
Beijei o meu pai na fronte e depois afastei-me um passo.
Cerrei os olhos e, num murmúrio, rezei em arménio. Quando acabei apercebi-me de que madame Duprés havia voltado ao quarto. Tinha os olhos vermelhos, estivera de novo a morar. E contei-lhe o que se passara e perguntei-lhe o que haveria na cómoda de tão especial para merecer aquele último gesto dele.
Os livros, disse ela. Queria decerto os livros.
Quais livros?
Um sorriso terno aflorou à face enrugada da velha senhora.
Ele passou o último ano a escrever dois livros, não sabias? Contam a história dele. E a tua, já agora.
A minha?
Sim. Escreveu essa parte com base num diário teu que encontrou num baú. Riu-se com doçura. E sabes o que é curioso? Redigiu tudo na terceira pessoa, como se fosse alguém a contar a vossa história. Estava de tal modo entusiasmado que ainda rabiscou as últimas páginas do segundo volume na primeira vez que despertou do coma, vê lá!
Desviei a atenção para a cómoda. Havia uma peça antiga de porcelana chinesa, um vaso com tulipas azuis e uma fotografia dele sentado à frente de uma estátua egípcia, provavelmente tirada em Lucsor, decerto no templo de Karnak.
Onde estão esses livros?
Madame Duprés chegou-se à cómoda e abriu a gaveta superior, de onde extraiu duas resmas de papel; eram, todas somadas, mais de mil folhas, um verdadeiro tijolo. Peguei nelas e folheei-as, impressionado com o volume; estavam dactilografadas e corrigidas a caneta com a letra inconfundível do meu pai. Percebi que teria muito para ler nos dias seguintes. Depois virei os maços compactos de papel e espreitei a primeira página da primeira resma, uma folha branca com uma única frase a cortá-la, evidentemente o título.
Oriente
A vida é a infância
da nossa imortalidade.
GOETHE
As gotas de chuva desenhavam sucessivos anéis em expansão no espelho sujo das poças de água enlameada, tombando em saraiva sobre as múltiplas crateras que o mau tempo escavara na rua de terra batida. Os habitantes de Trebizonda apressavam-se em busca de refúgio, saltitando de alpendre em alpendre num esconde-esconde aflito para se abrigarem do céu de chumbo que desabava em fúria aterradora.
Deixem passar o rapaz mais esperto de Trebizonda!, troou uma voz numa ladainha cantarolada. Deixem passar o filho do todo-poderoso senhor Sarkisian!
O homem que assim trauteava cruzou a rua em passo de corrida, os pés descalços enlodados quase até ao joelho, uma criança minúscula montada sobre os ombros. O pequeno tinha a cabeça envolta num enorme lenço para se proteger da chuva; não se lhe via o rosto, nem tal era preciso. Mesmo que o criado não anunciasse o nome do pai do petiz, todos sabiam bem que aquele era o filho do senhor Vahan Sarkisian, o vendedor de tapetes que, ao que se dizia de ciência certa, fizera amigos na própria corte do sultão.
Deixem passar o rapaz mais esperto de Trebizonda!, voltou o criado a gritar, como se aquela fosse a forma mais eficaz de abrir passagem na cortina de chuva e no lamaçal, entre os fiacres, as carroças, as mulas e os transeuntes fugidios que congestionavam a rua. Deixem passar o filho do todo-poderoso senhor Sarkisian!
O mar Negro, habitualmente tranquilo como um lago gigante, agitava-se ao lado da rua, parecia um monstro atormentado. O criado com a criança aos ombros ignorou a enorme massa de água escura que fustigava as rochas em fúria cega e ameaçava invadir a linha de costa e virou à direita, desaguando por fim no destino. Cruzou um portão, entrou a correr num pequeno edifício e só parou no átrio sombrio, no meio de uma pequena multidão de crianças e de alguns adultos que sacudiam ainda a água das roupas.
Com um sopro de exaustão, pousou o pequeno corpo no chão; tirou-lhe o lenço da cabeça e inspeccionou-lhe o cabelo.
Então, menino?, perguntou ao detectar uma madeixa molhada. Entraram aqui umas gotinhas? O pequerrucho assentiu com a cabeça.
Molhei-me.
O criado passou os dedos pela madeixa, penteando-a para trás e disfarçando o tufo húmido no meio do cabelo seco.
Pronto, já está!, exclamou, como se tivesse miraculosamente resolvido o problema. Agora já pode ir para a aula, menino! Despache-se, porque senão ...
Uma mão gorda pousou abruptamente sobre o ombro do pequeno, interrompendo as derradeiras recomendações.
Ele agora vem comigo, ordenou o vulto que se abeirara deles. E tu, kahveci, também!
O kahveci, O homem do café, expressão por que era conhecido o criado, levantou os olhos e, num misto de surpresa e terror, reconheceu o corpo imponente e arredondado do patrão. Senhor!, exclamou, baixando de imediato a cabeça num gesto de submissão. Eu ... sim senhor! Vahan Sarkisian virou as costas e arrastou o filho até à parede onde se encontrava um painel coberto por folhas de papel. As páginas pregadas ao painel apresentavam listas de nomes garatujadas à mão em caracteres arménios com algarismos diante deles.
Estás a ver este número aqui?, perguntou Vahan, indicando a linha com o seu indicador anafado. É a tua nota. Tiveste dezoito.
O petiz venceu o medo do pai e espreitou a classificação.
É ... é bom, não é?
Com um movimento inesperado, Vahan esbofeteou o rosto do filho.
Não foi a melhor nota!, vociferou, o rosto rubro de fúria súbita. Olha para aqui! Forçou o menino a voltar os olhos humedecidos para o painel com as classificações e apontou para uma outra linha. Estás a ver aqui o filho do Shakhian, o Setrak? Quanto é que ele teve? Dezanove! Dezanove, vês?
E o pai dele ... o pai dele não passa de um reles comerciante de fruta! Fitou o pequeno com a expressão severa de um juiz na hora da sentença. Se o Setrak conseguiu, porque não conseguiste tu? Queres humilhar-me perante a cidade toda? Queres cobrir-me de vergonha? Com o rosto incendiado pelo efeito da bofetada e o queixo trémulo como num assomo febril, o menino baixou os olhos, pronto a libertar-se no pranto de quem se sente injustiçado, mas lutou contra as lágrimas que lhe marejavam as pálpebras e ergueu de novo o olhar para fixar teimosamente a atenção embaciada na linha indica da pelo pai. O Setrak tinha de facto conseguido dezanove valores, o que fazia dele o melhor aluno da escola. Era, na verdade, um adversário difícil de bater. Mas, que diabo, o seu dezoito não lhe parecia assim tão mau!
Anda cá!
Vahan Sarkisian puxou o filho pela orelha, fez sinal ao criado de que o seguisse e cruzou o pátio com passos determinados . Meteu pelo corredor e, chegando diante da porta do director da escola, nem sequer bateu. Abriu-a com brusquidão e invadiu o gabinete sem cerimónias, como se fosse ele o verdadeiro dono da instituição.
Senhor Sarkisian!, exclamou o director com espanto, levantando os olhos dos papéis que rabiscava. Seja ... seja bem-vindo!
O director era um homem magro e nervoso, com malares muito salientes e uma expressão mortiça no olhar gasto, que os óculos na ponta do nariz se esforçavam por reavivar. Estava sentado à secretária a tratar da correspondência para o patriarcado em Constantinopla. Surpreendido com a intromissão inesperada, suspendeu a caneta no ar.
O senhor já viu a nota?, rugiu o intruso. Já viu a classificação do meu Kaloust?
O director ergueu-se da cadeira, a atenção dividida entre o seu ilustre visitante e a criança que ele puxava pela orelha. O petiz parecia estar a ser punido, o que o deixou confuso.
Mas ... mas ele teve uma nota excelente, senhor Sarkisian! Excelente! A sombra perturbada de uma dúvida súbita perpassou-lhe pelo olhar. Foi dezoito, não foi? Ele não teve dezoito?
Teve, sim.
O rosto do homem iluminou-se com um lampejo de alívio.
Ah, bem me parecia!, bufou. Pois, foi óptimo! O olhar furibundo do seu interlocutor voltou a desconcertá-lo; manifestamente alguma coisa estava a escapar-lhe. Há ... há algum problema? O problema é o Shakhian ... ou melhor, o filho do Shakhian, rosnou Vahan. Esse miúdo teve dezanove! O meu teve dezoito! Isso significa que ele fez melhor do que o meu!
Os lábios do director curvaram-se num sorriso conciliador.
Oh, senhor Sarkisian!, exclamou enquanto abria as mãos num gesto para apaziguar o seu interlocutor. Por amor de Deus! Dezoito, dezanove ... o que interessa isso? São excelentes notas! Excelentes! O seu filho está de parabéns! Ele é um dos dois melhores alunos da escola! O senhor. .. o senhor devia estar orgulhoso dele! É o melhor a Francês, é o melhor a Aritmética! Esboçou uma ligeira careta. Está um pouco atrasado no Arménio por causa da gramática, é verdade, mas isso ... enfim, não me parece grave.
Vahan Sarkisian olhou para o criado atrás dele e fez um gesto na direcção do director.
Dá-lhe!
O kahveci nem hesitou. Saltou da sombra do seu patrão e atirou-se ao director com o vigor de um cavalo de corrida, esmurrando-o na barriga e atirando-o ao chão.
Senhor Sarkisian!, implorou o director com um gemido enquanto se encolhia aos pés da cadeira, no gesto reflexo de quem se protege. Por favor, senhor Sarkisian!
O criado sentou-se sobre ele e pregou-lhe uma estalada de tal modo violenta que o director embateu com a nuca no chão.
Chega!
À ordem do patrão, o kahveci levantou-se e recuou para a porta, deixando o director da escola estendido sobre a pedra fria, o cabelo desgrenhado e o rosto vermelho como uma malagueta do bazar, os óculos atirados para um canto do gabinete, a gola desfeita.
Senhor Sarkisian, disse o homem, visivelmente atarantado, apalpando o chão em redor num esforço vão para localizar os óculos perdidos. O que foi que fiz?
Vahan Sarkisian deu dois passos em frente e imobilizou-se diante do director, que não se atrevia a levantar-se sem receber a devida autorização.
Fica o senhor avisado de que, no final do ano lectivo, o melhor aluno desta escola será o meu filho!, vociferou em tom ameaçador. E não quero classificações de favor, ouviu? Ele terá as melhores notas porque será mesmo o melhor. O melhor! Se o senhor achar que ele precisa de melhorar, fará o que considerar necessário para alcançar esse objectivo. Fiz-me entender?
O director balançou afirmativamente a cabeça sem se atrever sequer a erguer os olhos.
Sim, senhor.
Vahan manteve-se pregado ao chão.
No final do ano quero que me entregue os testes do meu filho e do miúdo do Shakhian, disse. Irei verificar pessoalmente que as respostas do meu são as melhores. Ergueu o dedo, em gesto de aviso. Não se atreva a fazer batota!
A advertência concluída, deu meia volta, voltou a pegar na orelha do filho e, puxando-a, abalou enfim do gabinete.
A fama de Vahan Sarkisian era grande no millet arménio de Trebizonda, onde a etnia cristã se afirmava como dominante, e a sua casa gozava da merecida reputação de ser a residência mais rica e bem decorada de toda a cidade.
As paredes da mansão cobriam-se de magníficas tapeçarias provenientes de Bucara, os mais finos e requintados de todos os exemplares orientais, e as salas exibiam vistosos tapetes persas de Shiraz e Isfahan. Pormenor de grande importância, eram todos de lã; naquela casa não havia lugar para os de algodão ou de pele de carneiro ou de camelo, considerados de pior qualidade. A excepção dizia respeito a um belíssimo tapete caucasiano de pele de cordeiro, de toque suave e doce, em cima do qual o pequeno Kaloust gostava de estudar.
O requinte na escolha dos tapetes para aquela casa não espantava ninguém; afinal Vahan tinha começado a sua vida profissional justamente com uma pequena loja de tapetes no bazar de Trebizonda. O negócio prosperara ao ponto de lhe ter aberto as portas ao casamento com a sua prima Veron, a filha predilecta do tio Grigoris. Acontece que Grigoris mantinha correspondência assídua com os grandes bancos estrangeiros de Constantinopla, como o Banco Otomano, criado pelos Britânicos, e o Banco Imperial Otomano, que estava na mão dos Franceses, contactos que Vahan aproveitou para expandir o seu negócio para a longínqua capital.
Tapetes eram coisa que não faltava em Constantinopla, claro, mas Vahan apercebera-se de que havia um interessante nicho de mercado por explorar. Para o seu negócio em Trebizonda havia estabelecido contacto com fornecedores do Turquistão. Os tapetes dessa região do Cáucaso, fabricados com pura lã, eram muito populares na capital e na Europa, mas apenas na sua variante mervi. Ora Vahan recebia carregamentos de modelos jumud e tekké, raramente exportados e quase desconhecidos. Os seus exemplares eram verdadeiras obras de arte, todos de grande originalidade e requinte. O comerciante não ignorava que, tratando-se de novidades, constituíam um trunfo importante para o negócio já florescente; precisava apenas de o saber jogar com sabedoria.
Foi o que fez. A conselho da mulher, que nisso dos negócios não brincava, reuniu coragem e as suas economias e investiu numa loja que abriu no bazar de Constantinopla. Logo que o estabelecimento começou a funcionar, contactou os directores ingleses e franceses dos bancos com os quais o tio, agora sogro, fazia negócios. Reservou a sala de um dos mais requintados restaurantes arménios do bairro de Pera e ofereceu-lhes um almoço digno de sultões. Antecipadamente informado dos seus interesses de coleccionadores, coroou o repasto com ofertas das melhores tapeçarias jumud e tekké que adquirira no Turquistão. Os estrangeiros ficaram encantados e não calaram o assombro diante dos seus clientes ou dos amigos que encontravam nos cocktails das legações e a quem exibiam as novidades oriundas do Turquistão.
Nas semanas seguintes, a loja de Vahan no bazar de Constantinopla registou uma inusitada procura da parte de diplomatas e comerciantes ocidentais radicados na cidade, todos eles alertados pelos seus amigos dos bancos e interessados em adquirir um exemplar de tão original mercadoria. Claro que o movimento acabou por despertar a atenção do resto da clientela e, em alguns meses, a loja enchia-se também de turcos, intrigados com os tapetes que tanta curiosidade estavam a suscitar junto dos giavour, os infiéis.
Quando o seu Kaloust nasceu, em 1869, o tio-sogro abraçou Vahan e celebrou a ocasião com uma garrafa do valente conhaque arménio.
Parabéns! , exultou Grigoris com a boca a tresandar a álcool. Fizeste fortuna e tornaste-te um dos homens mais ricos de Trebizonda! Este teu filho e meu neto trará grande glória à nossa família.
O livro com a capa a ostentar o título Hayastan, ou Arménia, com a chancela do patriarcado e leitura recentemente tornada obrigatória na escola arménia de Trebizonda, estava aberto na página que relatava como o rei Tiridates 3º adoptou o cristianismo como religião oficial do país no ano sagrado de 301, o que fez da Arménia a primeira nação cristã do planeta, antes ainda da Etiópia e do Império Romano. A informação confirmava o que o pequeno Kaloust escutara ocasionalmente nas conversas entre adultos e na missa, mas não pôde naquele instante aprofundar o assunto porque o troar aterrorizador de uma voz familiar lhe interrompeu a leitura.
Veron!
Era o pai que entrava no salão. Obedecendo a uma ordem havia muito interiorizada, Kaloust levantou-se de um salto, juntou os calcanhares e fez uma vénia na direcção do chefe da família, como procedia sempre que ele aparecia na sua presença.
Havia já algum tempo que não o via por casa. As viagens a Constantinopla tinham-se tornado frequentes na vida de Vahan Sarkisian e Kaloust habituara-se a observá-lo a partir para a capital com os carregamentos que lhes chegavam das caravanas provenientes do Cáucaso e da Pérsia. Parece que os tapetes faziam grande sucesso em Constantinopla e que, à custa de ofertas de magníficos exemplares finamente trabalhados, o pai conseguira excelentes contactos no palácio, ao ponto de o sultão em pessoa, por proposta de um conselheiro, o ter nomeado viIayets da Trebizonda e colector de impostos nos vilayets da Mesopotâmia. Mais do que uma honra, esses cargos revelaram-se imensamente lucrativos, tendo reforçado os cofres da família à custa do muito bakshish com que era presenteado em troca dos favores mais ou menos legais que ia concedendo no decurso da sua destacada actividade pública.
Dessa vez Vahan regressava de uma viagem à capital e vinha acompanhado do avô Grigoris, ambos de fez vermelho e bengala e a fumarem charutos aromáticos. Os dois homens cruzaram o salão e instalaram-se nas cadeiras que no ano anterior tinham chegado expressamente de Veneza para mobilar a casa.
Ao escutar a voz masculina a trovejar pela casa, a mãe acorreu à sala.
Que se passa?
Passa-se que o teu marido chegou, mulher!, urrou Vahan com uma gargalhada. E veio com o teu pai!
Vendo o seu próprio pai no salão, Veron estacou e fez, também ela, uma vénia.
Senhor.
Mas os dois homens não estavam para formalidades. Vinham num estado de grande excitação e depressa a família percebeu porquê. É que traziam novidades na forma de um estranho objecto com a parte baixa feita de metal e a de cima de vidro afunilado.
Olha para isto!, exclamou Vahan enquanto exibia o engenho. Fazes ideia do que é?
A mulher fixou o objecto com uma expressão intrigada.
Um vaso?
Os dois homens riram-se com gosto e o dono da casa voltou o objecto para o filho.
E tu, Kaloust? Sabes o que é?
O pequeno permanecia de pé, como uma sentinela, e sabia que só poderia falar quando o pai lho consentisse. O que sucedeu então. Observou a novidade com cuidado, esforçando-se por lhe descortinar a função. Queria brilhar diante do pai, mostrar-lhe que os seus conhecimentos iam muito para além do que lhe ensinavam na escola, embora não tivesse resposta para a pergunta. Dava a impressão de ser uma engenhoca qualquer, mas a verdade é que nunca vira nada de semelhante na sua curta vida pelo que teve dificuldade em identifica-la.
Parece um ... um alambique.
Nova gargalhada dos dois homens, ambos imensamente divertidos com o efeito do engenho que haviam trazido para casa..
É uma vela!, anunciou Vahan com orgulho. Serve para iluminar.
Mulher e filho cravaram o olhar estupefacto no objecto, na dúvida sobre se o dono da casa lhes estaria a pregar uma partida ou a falar a sério.
Uma vela?, admirou-se Veron com um esgar desconfiado.
Onde está a cera?
Não tem cera, retorquiu o marido. É uma vela moderna. Chamam-lhe candeeiro e é alimentado a óleo mineral.
Candeeiro? Óleo mineral?, balbuciou a mulher, papagueando as palavras novas. O que é isso? Vahan desatarraxou o objecto, separando o vidro da parte metálica.
Já vos mostro, disse, expondo o interior da base metálica. Estão a ver este líquido aqui?
A mulher e o filho inclinaram os rostos e espreitaram o líquido. Tratava-se de uma solução amarelada que libertava um cheiro forte e enjoativo, repugnante até.
É isso o óleo mineral?
Chamam-lhe querosene, explicou o marido. Olhem para este fio de algodão, estão a ver? Cai sobre o tanque, de modo a empapar-se de querosene. A extremidade fica cá em cima. Querem ver o que vai acontecer agora?
O marido tirou o charuto da boca e colou a ponta incandescente ao fio branco. Uma chama azulada irrompeu na extremidade do fio e pôs-se a brilhar com vigor inusitado, bailando em silêncio como um farol longínquo, o que arrancou expressões de espanto e maravilha na sala. Oh!
Vahan pegou na estrutura de vidro e atarraxou-a à base metálica, reconstituindo o objecto original.
Esta parte envidraçada serve para proteger a chama, explicou ao completar a tarefa. Ergueu o candeeiro como se ele fosse um troféu. Com esta invenção deixamos de precisar de velas de cera nesta casa, ouviram?
Credo, homem! E o fumo?
Fumo? Qual fumo? Esta lâmpada não liberta fumo nem cheiro, mulher. Além disso tem uma luz mais forte do que a das velas. Olhem para isto! Aproximou a lâmpada de um canto escuro da sala para fazer a demonstração. Estão a ver?
Maravilha de luz, hem? É o progresso que chega a esta casa, minha gente! O progresso!
A novidade a todos maravilhou, incluindo aos criados, que acorreram para testemunhar o advento do progresso anunciado pela chama azul que o funil envidraçado irradiava, como se a luz trémula encerrasse o oráculo de um futuro radioso.
O teu marido ainda não te contou tudo, disse Grigoris, quebrando o mutismo. Falta a grande novidade.
Há mais?, admirou-se Veron, descolando enfim os olhos hipnotizados do lume ondulante. Trouxeram mais inventos de Constantinopla?
O dono da casa fez um sinal aos criados e todos se retiraram ordeiramente.
A grande novidade, revelou quando ficaram a sós, é um negócio que me propôs Salim Bey.
Quem? O consultor do sultão?
Esse mesmo, confirmou Vahan. Como sabes vou sempre almoçar com ele quando estou em Constantinopla. É um bom amigo, o Salim Bey.
Pudera!, soltou Veron com uma ponta de veneno a apimentar-lhe a língua. Com todos os tapetes que já lhe ofereceste! E isto sem falar no bakshish! O homem deve estar rico à nossa custa!
E nós à dele!, corrigiu o marido, endurecendo a expressão do rosto e apimentando as palavras com a dose certa de rispidez. Não te esqueças, mulher, de que foi ele quem introduziu os nossos tapetes no palácio! A custa disso, a clientela centuplicou! Agora toda a gente quer a nossa mercadoria! Tornámo-nos abastecedores do palácio e essa é a melhor publicidade que existe por todo o império. Não devemos por isso cuspir na mão que nos alimenta.
É verdade, admitiu a senhora da casa, que na verdade não se podia queixar dos benefícios conquistados à custa daquela amizade mutuamente interessada. Agora até o sultão pisa os nossos tapetes.
E foi a conselho de Salim Bey, é bom não o esquecer, que o sultão me fez vali de Trebizonda e me entregou a colecta de impostos na Mesopotâmia.
Em troca de muito bakshish ...
Não interessa! Fez um gesto em redor, como se indicasse a casa. Se temos tudo isto, também a Salim Bey o devemos, nunca é de mais lembrá-lo! O bakshish é a justa retribuição por tantos favores que lhe devemos!
Veron baixou a cabeça.
Tens razão.
Uma vez a mulher disciplinada e a sua autoridade restabelecida, Vahan respirou fundo e readquiriu a compostura senhorial. Não era habitual tais assuntos serem discutidos com mulheres, mas ele já se acostumara a confiar no juízo de Veron naquelas situações. O diabo da mulher parecia que tinha um faro especial para os negócios e parvo seria ele se não lhe buscasse conselho.
Pois o bom do Salim Bey veio oferecer-me o negócio do querosene, anunciou. Exclusivo para o palácio do sultão.
Veron soergueu a sobrancelha, subitamente desconfiada; sabia tão bem como o marido que ninguém no palácio, a começar pelo seu amigo Salim Bey, oferecia nada desinteressadamente.
Quanto quer ele?
Cinco mil libras de ouro à cabeça e quinze por cento dos lucros.
Fez-se silêncio no salão.
Sentado no seu tapete de pele de cordeiro, Kaloust esforçava-se por permanecer invisível enquanto acompanhava a conversa; fascinava-o ouvir falar de negocies, mas tentava a todo o custo não se tornar notado, não o fossem mandar embora como aos criados.
Cinco mil libras de ouro é muito dinheiro, observou ela pausadamente. Onde as iremos arranjar?
Vendemos as nossas propriedades em Kadi Keui, sugeriu Vahan. Temos mil libras de ouro, não temos? Essas propriedades hão-de render outras duas mil. Quanto às restantes duas mil, pedi las-emos emprestadas aos bancos em Constantinopla. Encolheu os ombros, num gesto de impotência. Ficaremos depenados, claro, mas valerá a pena.
O olhar de Veron desviou-se para a chama que ainda ardia na ponta do fio de algodão.
Não sei, hesitou. É muito dinheiro ...
Mas não achas que é um bom negócio?
A mulher estreitou as pálpebras enquanto ponderava o assunto. Aquela decisão era importante e antes de pronunciar o seu veredicto precisava de saber mais.
Em que consiste o negócio exactamente?, quis ela saber, fazendo um gesto na direcção da lâmpada. Ficamos com o exclusivo da importação dessa geringonça? É isso?
O marido soltou uma gargalhada
Não das lâmpadas, corrigiu. Do querosene. Salim Bey oferece-nos o exclusivo da venda de querosene ao sultão.
Aliás, as cinco mil libras de ouro destinam-se às finanças pessoais do sultão. Salim Bey contenta-se com os quinze por cento do negócio.
Veron manteve a expressão inquisitiva; ainda não tinha informação suficiente para tomar uma decisão segura.
Mas afinal o que é isso do querosene?, perguntou.
Onde se vai buscar essa coisa?
O querosene é um derivado de um óleo que nasce nas pedras. Daí o seu nome, óleo das pedras. Pedra em grego é petra. Petra óleo. Agora até há uma expressão mais moderna, petróleo. Parece que foram descobertas grandes quantidades desse óleo na América.
E tu vais comprar o óleo à América?
Claro! Se o negócio avançar, vou tornar-me o representante oficial do maior dos exportadores americanos, a Stand Oil, que ...
Standard Oil, corrigiu o sogro
Pois, isso. Com o dedo debaixo da pálpebra direita acrescentou: E já ando de olho na Rússia também. Encontraram óleo das pedras bem perto daqui, em Baku. Indicou a chama tremeluzente. Isto é o futuro, mulher! Quando os candeeiros estiverem à venda, as pessoas vão deixar de usar velas de cera. Toda a gente vai querer estes candeeiros a óleo. No momento em que isso acontecer. .. ficaremos ricos! Vacilou, tentando ler o pensamento de Veron pela expressão do seu olhar. Ou achas que não?
Os olhos da mulher não descolavam do candeeiro. De facto, como resistir à sedução de uma chama sem cheiro nem fumo? Cinco mil libras de ouro era uma verdadeira fortuna, estava realmente nos limites das suas capacidades financeiras ou até para lá deles. Os riscos pareciam-lhe enormes. Não lhes restaria um tostão e ficariam de tal modo endividados que poderiam ser arrastados para a bancarrota, contra a qual a sua prudência de mulher a alertava. Mas até um idiota perceberia as potencialidades comerciais encerradas naquela maravilhosa chama azulada.
Porquê nós? Porque nos oferecem o negócio a nós?
Porque Salim Bey confia em mim.
Veron inclinou a cabeça com uma expressão céptica muito sua, como se pedisse que a poupassem a conversa fiada.
Vá, agora a sério.
Porque estamos no sítio certo, corrigiu Vahan. Basta aliás olhar para o mapa. Temos negócios em Constantinopla, onde os Americanos podem descarregar o seu produto. E estamos em Trebizonda, que se encontra a dois passos de Batum e a meio caminho do óleo das pedras de Baku. Além disso, vamos dar-lhes a ganhar muito dinheiro. Desde o colapso financeiro que as contas do império ficaram a descoberto e o sultão precisa urgentemente de dinheiro.
Ora, dinheiro já ele tem, observou a mulher com sarcasmo. E muito!
Estás enganada. A dívida do império ao estrangeiro já é de mais de duzentos milhões de libras, ao que parece. E o pior é que só cento e vinte milhões chegaram cá. Baixou a voz. Parece que oitenta milhões foram desviados para contas pessoais.
Bakshish, traduziu Grigoris desnecessariamente, esfregando o polegar e o indicador. As comissões são um modo de vida em Constantinopla, como sabem.
Pois são, assentiu Vahan. Isto é uma miséria. O dinheiro que sobrou do bakshish foi estourado a pagar as despesas daquela estúpida Guerra da Crimeia e ainda da operação em Creta. Ficámos desgraçados.
Como sabes tu isso homem? admirou-se Veron. Quem te anda a contar essas coisas?
O marido encolheu os ombros.
Ora, é o que se diz à boca cheia em Constantinopla. Dos duzentos milhões que pedimos emprestados, sabes quanto chegou aos negócios? Uns míseros dez milhões, vê lá tu! Depois, claro, veio o crash e ... pimba!, o estado otomano foi apanhado com as contas a descoberto! Baixou a voz.
Um amigo meu do Banco Imperial Otomano contou-me que os bancos internacionais, quando criaram a comissão de liquidação e pediram para ver as nossas contas, ficaram horrorizados. Parece que o império não tem um sistema de contabilidade! Abanou a cabeça. Ninguém sabe exactamente o que se gasta em quê, é um desgoverno completo. Os europeus perceberam que andávamos a pedir empréstimos para pagar empréstimos. Uma vergonha! Quando o grão-vizir tinha de fazer um pagamento e ia à conta e descobria que não havia mais libras, sabes o que fazia? Pedia um novo empréstimo! Esboçou com as mãos um gesto de frustração.
Ah, isto não tem emenda! É uma rebaldaria!
Grigoris suspirou e abanou a cabeça.
Não há dúvida, o império está a saque!
De modo que o sultão anda aflito de dinheiro e pôs-se a vender concessões ao desbarato, concluiu o marido.
Tudo isto para dizer que a nós nos concede o exclusivo do abastecimento de querosene ao estado otomano a troco de cinco mil libras de ouro.
É uma fortuna, bem sei, interveio Grigoris de novo.
Mas, considerando o que está em causa, também pode ser uma pechincha. Temos de reconhecer que nos encontramos perante uma grande oportunidade. Se tanta gente lucra com tamanho desgoverno, porque não havemos nós também de ficar com o nosso quinhão?
Veron esfregou o queixo, como se quisesse clarificar as derradeiras dúvidas, mas a verdade é que já não tinha muitas. Sabia, por instinto e experiência, que os melhores investimentos ocorriam quando o vendedor se sentia apertado pelos credores e tinha urgência em vender. O que, pelos vistos, e por mais incrível que pudesse parecer, era o caso do sultão nesse momento.
Têm razão, concedeu por fim, vencida pela evidência.
Parece de facto um grande negócio!
A lama era uma presença permanente durante os meses de Inverno nas ruas de Trebizonda, mas nem ela impedia Vahan Sarkisian de completar o giro dominical pela principal rua da cidade nas suas melhores vestes. Havia nessa manhã ido à missa na velha Igreja de Santa Ana e exibia agora pelo centro da cidade a sua opulência e importância social. Afinal não era qualquer um que tinha acesso à corte do sultão.
O vali passeava de fraque e luvas, colarinhos engomados, uma bengala a girar numa mão e um charuto aceso na outra, o fez vermelho orgulhosamente empinado na cabeça, o rosto corado pela abundância que a riqueza lhe proporcionava. Trazia a mulher por um braço e Kaloust atrás, todos em trajes mandados vir de Paris, o pequeno de mão dada ao kahveci, ela com uma larga saia de crinolina e o tronco adelgaçado por um espartilho, seguindo com rigor os ditames da melhor moda europeia.
Que ar revigorante!, exclamou o patriarca, inspirando com força o aroma salgado e picante do mar Negro. Ah, este cheiro a mar! Que maravilha!
A família respirava desafogo e, com o pretexto de vir ao centro da cidade para apanhar ar, fazia questão de se exibir perante os seus conterrâneos. A missa tinha constituído uma primeira oportunidade, claro, mas na igreja os Sarkisian ficavam à frente e a populaça apenas lhes via as costas. Aquele passeio, que Vahan chamava constitucional era a oportunidade perfeita para se exibirem de, corpo inteiro.
Embora o chefe da família fosse já uma das principais figuras do millet arménio de Trebizonda, o negócio do querosene catapultara-o para um patamar superior. Os candeeiros a petróleo vendiam-se a bom ritmo por todo o Império Otomano e o querosene proveniente de Baku tinha maior procura do que o americano da Standard Oil, considerando a proximidade dos produtores russos e, consequentemente, o seu preço mais acessível. Ser importador dos dois revelara-se imensamente vantajoso. Ademais, o exclusivo da venda para o sultão, além de lucrativo, conferia prestígio acrescido ao concessionário. Era verdade que o velho sultão morrera recentemente e que no palácio vivia agora o novo sultão, Abdul Hamid II, mas o amigo Salim Bey, sempre ágil nos meandros da corte, retivera a sua posição de influência e apressara-se a esclarecer que, no que ao exclusivo do querosene para a Sublime Porta dizia respeito, nada mudara.
Senhor Sarkisian, murmurou o notário da cidade, tirando o fez e dobrando-se numa reverência no momento em que se cruzou com a distinta família. É uma honra ver vossa excelência de saúde com a sua senhora e o menino.
As pessoas faziam vénias à passagem dos Sarkisian e até as carroças e os fiacres abrandavam, com receio de que as rodas lançassem lama sobre tão eminentes personalidades. Vahan sentia-se o todo-poderoso senhor de Trebizonda, mas a mulher, impregnada do seu realismo pragmático, tinha consciência de que viviam numa ilusão.
Foi por isso que, naquele dia, ao vislumbrar três soldados turcos que cavalgavam pela rua, Veron agarrou no braço do marido e puxou-o para a berma.
Tem cuidado, avisou. Vêm cavaleiros.
O vali da cidade sacudiu o braço, libertando-o de Veron.
Ó mulher, que é isso?, protestou. Eles é que têm de ter cuidado, eles é que têm de ...
Duas mãos-cheias de lama voaram nesse instante pelo ar e atingiram Vahan no peito e na face, emudecendo-o; eram os cavaleiros turcos que passavam.
Cuidado!, disse a mulher.
Irritado com o sucedido, o marido levantou a bengala e encostou a ponta a um dos cavalos.
Que é isto!?, vociferou na direcção dos soldados. Tenham cuidado, ouviram? E respeito!
O cavaleiro da frente puxou a rédea e travou o animal. Deu meia volta e aproximou-se devagar de Vahan, observando o arménio do alto da sua montada. Com um gesto rápido e inesperado, saracoteou a chibata que segurava na mão e atingiu o transeunte em cheio no rosto, fazendo voar o fez vermelho.
Respeito tens de ter tu, giavour!, bradou com raiva mal contida. Quem pensas que és? O sultão? Vocês, os cristãos, andam de crista demasiado levantada. Querem independência, não querem? Querem direitos!? Mas nós e o novo sultão já vos vamos pôr na ordem. Ouviste, cão? Atarantado com o tom firme e agressivo do cavaleiro, Vahan olhou em redor como se buscasse ajuda.
Depressa percebeu que ninguém lhe acudiria e, consciente enfim da sua absoluta impotência, baixou a cabeça em submissão.
Sim, effendi.
O soldado apontou para um charco de água que se abria no solo enlameado.
Vamos começar e é já, rugiu o turco. Quando passa um senhor, o servo ajoelha-se. Vá! De joelhos!
Perante a hesitação do arménio, o cavaleiro voltou a erguer o braço punitivo e a chibata estalou mais uma vez sobre a cabeça da vítima. Incapaz de fazer frente àqueles homens, Vahan cedeu e o poderoso vali de Trebizonda, líder do millet arménio local e homem de negócios bem-sucedido e com excelentes contactos na Sublime Porta, caiu enfim de joelhos.
O grupo chegou a casa num torpor de assombro e humilhação, em estado de desorientação total. Ao aperceberem-se da situação, os criados vieram à rua acolher o seu senhor e família e de imediato se pôs água ao lume para preparar um banho ao amo e aprontaram-se roupas lavadas. Todos percebiam instintivamente o que sucedera, mas ninguém se atrevia a fazer perguntas.
Por aqui, senhor, disse a empregada grega, encaminhando-o pelas escadas. Já deitei os sais no banho e a água está no ponto.
A consternação era geral e corriam lágrimas pela dignidade do vali assim espezinhada, mas se havia pessoa a quem aquela cena produzira um horror absoluto fora o filho. Kaloust vira o pai ser chibatado e desrespeitado pelos soldados e verificara que a mãe e o kahveci e o resto da multidão tinham ficado impotentes perante o sucedido e só o haviam socorrido quando os soldados se tinham afastado a rir, como se tivessem participado numa diversão com animais.
O rapaz sempre encarara o pai como um gigante, uma torre de estabilidade em torno da qual todo o mundo girava, um vulto que a cidade inteira respeitava. O incidente dessa manhã constituiu por isso um terramoto na sua visão da ordem reinante. Como era possível que uns meros soldados, de aspecto imundo e modos arrogantes, tivessem o poder de mandar ajoelhar o pai? Quem era essa gente? E por que razão não tinham sido imediatamente presos? Porque é que ninguém fizera nada? Porque haviam deixado o pai ser chibatado daquela forma?
A mente de Kaloust enchia-se de interrogações e perplexidade. Sentou-se no seu canto preferido do salão, sobre o tapete de pele de cordeiro, e ali agarrou nos livros da escola, os olhos mergulhados nas páginas preenchidas por caracteres arménios, a mente retida ainda no episódio ocorrido na rua. Por mais que tentasse, era impossível pensar noutra coisa.
O almoço? Quando vai ser servido?
A pergunta foi lançada pelo pai no instante em que entrou no salão, já devidamente lavado e com roupas novas. O rapaz levantou-se e juntou os calcanhares, como mandavam as regras ali em casa, sem se atrever a encarar o chefe da família.
É mais meia hora, respondeu a mãe, que de imediato veio da cozinha. O cozinheiro está a preparar uns khorovats que são uma delícia!
A mãe voltou aos seus afazeres e o dono da casa instalou-se sobre umas almofadas. Depois de se acomodar na posição mais confortável passeou os olhos pelo salão até os pousar no filho. O rapaz permanecia hirto, como mandava o decoro, e o pai indicou-lhe com a cabeça que se podia sentar. Foi nesse momento que se apercebeu da expressão triste que lhe empalidecia o rosto.
Que foi, Kaloust? Que se passa?
O pequeno abanou a cabeça, mas manteve os olhos infelizes pousados no chão.
Nada, senhor.
Não era difícil perceber a origem daquele estado de
espírito. O chefe de família fora humilhado em público e não sentia vontade absolutamente nenhuma de falar sobre o que se havia passado naquela manhã. O melhor era fingir que nada acontecera. Compreendia, porém, que o sucedido se afigurava incompreensível a um rapaz de nove anos que sempre vivera numa família privilegiada. Kaloust estava habituado a ver o pai mandar e ser obedecido, pelo que parecia natural que se sentisse perplexo com o que tinha testemunhado. Deveria manter-se calado e prolongar a sua perplexidade? A tentação de o fazer era muito forte, mas acabou por reconsiderar. Pareceu-lhe melhor que ele soubesse em que mundo vivia.
A vida não é fácil, Kaloust, disse o pai com um suspiro de resignação. O nosso povo é antigo e constituído por gente de grandes recursos e muito engenho, mas vivemos sob a bota dos Turcos e estamos submetidos à vontade deles.
O rapaz atreveu-se a levantar os olhos.
Eu pensava que éramos todos otomanos ...
A observação arrancou um sorriso a Vahan.
Isso é o que eles apregoam para enganar os europeus, retorquiu o chefe da família. Mas a nós, que vivemos com eles, não nos enganam. Fez um ar meditativo, talvez nostálgico. Quando eu era novo, os Turcos tinham o direito de matar Arménios só para ver se a sua espada estava afiada. O meu próprio pai, que Deus o tenha à Sua guarda, assistiu a uma coisa dessas. E lembro-me que andávamos sempre na rua com um lenço, que era obrigatório para todos os cristãos. Uma vez, tinha eu quinze anos, um turco mandou-me parar e ordenou-me que lhe limpasse as botas. Era para isso que éramos obrigados a andar com os lenços. Para limpar as botas aos Turcos.
E o senhor... limpou?
Vahan ajeitou uma almofada, de modo a corrigir a sua posição.
Beija sempre a mão que não te atreves a morder, devolveu. É um provérbio árabe que os Arménios que querem sobreviver e prosperar neste país não esquecem. Se lhe limpei as botas? Claro que limpei. Se não o fizesse, ele matava-me.
Mas ... porquê?
Porque somos arménios e eles são turcos, filho. Fez um gesto na direcção da janela, indicando o espaço exterior.
Sabes, o mundo lá fora é um lugar cruel. Este regime que nos governa, o estado otomano, oprime todos os que vivem no seu território. Todos. Mas ninguém é mais oprimido e humilhado que os cristãos. Nós, os Gregos, os Sérvios, os Búlgaros, os Montenegrinos ... nós somos a escória da escória, tratados como estrangeiros na nossa própria terra. Tudo porque cometemos o crime de ter nascido cristãos e cristãos termos continuado a ser. Ergueu os olhos, como se mudasse de interlocutor. Ah, como pode Deus permitir uma injustiça destas? Mas como é possível que os Turcos mandem em nós?, admirou-se o filho. Nós somos mais do que eles!
O chefe da família estudou o rosto de Kaloust. O rapaz ia longe, pensou. Tinha apenas nove anos e fazia perguntas muito avançadas para a sua idade. Não havia dúvida, ele ia longe. Somos a maioria aqui em Trebizonda, corrigiu. Aqui e em grande parte da Anatólia e na Cilícia. Mas eles são a maioria no resto da parte asiática do império. Além disso, quem tem a espada são os Turcos e quem manda em Constantinopla são eles. Nós, os cristãos, não possuímos armas e por isso não nos podemos defender.
Porque não as compramos?
Miúdo esperto, confirmou com agrado. Muito vivo, fazia perguntas certeiras.
Não estamos autorizados, explicou. Nesta terra é a lei islâmica, chamada xaria, que vigora. Ao abrigo da xaria, pregada pelo Maomé deles, os muçulmanos gozam de plenos direitos e deveres, enquanto os cristãos e os outros não Muçulmanos não passam de cidadãos de segunda, os dhimmies.
Nunca ouviste falar nos dhimmies?
Já, senhor.
Os dhimmies somos nós. Cidadãos de segunda. Somos tolerados desde que paguemos uma taxa e aceitemos a superioridade muçulmana, que se traduz em humilhações como aquela a que assististe esta manhã. Eles permitem que nos organizemos em comunidades, os millet, mas tratam-nos como cães. Os muçulmanos podem perturbar-nos com as suas actividades religiosas, mas nós não os podemos perturbar a eles. É proibido construir igrejas e sinagogas e até para consertar as que temos, e que estão já muito velhas, precisamos de uma autorização que envolve grandes quantidades de bakshish. Não podemos tocar os sinos, mas isso ainda é o menos. O pior é que não podemos montar cavalos, não podemos andar com armas e na rua somos obrigados a afastar-nos sempre que passa um muçulmano. Não podemos casar com mulheres muçulmanas, as nossas casas têm de ser mais baixas do que as deles e, como se tudo isto não bastasse, os tribunais não aceitam o nosso testemunho contra muçulmanos.
Foi por isso que o tio Kvork foi preso?
Kvork era um dos irmãos da mãe.
Nem mais. Um turco roubou-lhe um rebanho de cabras e ele foi lá buscá-lo. Como o turco não o queria devolver, o tio bateu-lhe e os gendarmes vieram prendê-lo. No julgamento não foram aceites os depoimentos de pessoas que assistiram ao roubo porque eram todas cristãs. O teu tio Kvork acabou por ser condenado à cadeia por agressão, enquanto o turco se livrou da acusação de roubo e ainda lhe ficou com o rebanho. Suspirou. É assim a vida de um arménio nesta terra.
O rapaz permaneceu um momento calado, a ponderar o que acabara de ouvir e a confrontá-lo com pequenos episódios a que assistira na sua vida. À luz da explicação do pai, o incidente dessa manhã tornava-se mais claro. Os Arménios, como os restantes cristãos do império, não passavam de cidadãos de segunda classe. Por mais dinheiro que juntassem e por mais que laborassem, os seus direitos não se equiparavam aos dos Turcos.
Temos de aceitar isso?
O pai encolheu os ombros.
Os Sérvios não aceitaram, retorquiu. Há uns setenta anos, ainda eu não era nascido, revoltaram-se pela primeira vez contra os Turcos. Depois os Gregos também se revoltaram, separaram-se do império e fizeram o seu próprio país. Desde então têm-se sucedido as revoltas cristãs. Na Europa falam em liberdade, igualdade e fraternidade e essas ideias estão a espalhar-se pelas nossas comunidades como fogo em erva seca. Queremos igualdade e queremos liberdade, mas os Turcos respondem com a espada. Graças a Deus as potências europeias, todas elas cristãs, têm-nos ajudado e feito guerra aos Turcos e exigido protecção às minorias. Em 1839, mais ou menos na altura em que tive de limpar as botas ao turco, saiu um decreto imperial que pela primeira vez prometeu respeito pelos direitos dos cristãos e igualdade no tratamento de todos os otomanos, muçulmanos ou não.
Ah! Então ... então somos todos iguais.
Vahan riu-se.
A promessa de um sultão turco não passa de palavras vazias, explicou. Desde então que não param de sair papéis a prometer tratamento igual a toda a gente. Ainda há dois anos foi aprovada a Constituição Otomana, que prevê a igualdade para todos os súbditos do sultão, independentemente do millet a que pertençam. Mas isso não passa de conversa para enganar e calar os europeus. Os Turcos têm tanta intenção de nos conferir igualdade como eu de apanhar uma dor de cabeça. O turco tem duas caras e quem vive debaixo da sua bota já as conhece a ambas. Foi por isso que a Roménia, a Sérvia e o Montenegro declararam este ano a independência. É a única forma de se livrarem desta gente do diabo.
E nós? Porque não fazemos o mesmo?
Alarmado com a pergunta, o dono da casa olhou em redor para se assegurar de que nenhum criado os havia escutado; eram todos arménios e gregos, mas em certas coisas nunca se sabia e a discrição constituía a única garantia de que não haveria problemas.
Chiu!, ordenou com súbita rispidez. Esse assunto não é para levantar assim em voz alta, ouviste? Isso é uma coisa perigosa! Podes meter-nos em sarilhos!
Kaloust baixou a cabeça, embaraçado por perceber que tinha ido longe de mais.
Sim, senhor.
O almoço foi servido poucos minutos depois. Ao contrário de muitos arménios, que tinham outros hábitos, a família Sarkisian fazia questão de comer à mesa, à maneira dos europeus; era uma forma de marcar o que supunham ser a sua superioridade social.
Assim, a travessa de khorovats, repleta de pedaços levemente esturricados de carne grelhada, foi colocada no centro da mesa, acompanhada por uma típica salada ajem jajukh, queijo grego e lavash, o tradicional pão arménio. A refeição foi consumida num silêncio apenas interrompido por frases curtas e utilitárias, como passa-me o sal ou onde está a pimenta de Aleppo?.
Só depois do café, quando os criados levantaram a mesa e a família ficou a sós no salão, é que Vahan decidiu retomar a conversa de substância, desta vez na presença da mulher.
Há pouco, disse, quebrando o silêncio prolongado, perguntaste-me por que motivo nós, os Arménios, não fazemos o mesmo que os cristãos da Rumélia e não declaramos também a independência.
A mulher, que tinha a chávena de café colada aos lábios, arregalou os olhos e engasgou-se. Que conversa é essa?, admirou-se, surpreendida com o tema que o marido escolhera para falar com o filho. Olha que o miúdo ainda é novo para esses assuntos ...
Se ele já faz perguntas sobre isto é porque chegou à idade de conhecer algumas respostas, retorquiu o dono da casa. Voltou-se de novo para o rapaz, como se quisesse mostrar à mulher o que acabara de dizer. Queres mesmo saber a resposta à tua pergunta, não é verdade? Sim, senhor, confirmou Kaloust. Carregou as sobrancelhas. O que é a Rumélia?
O chefe da família suspirou; por vezes esquecia-se de que o filho, embora sagaz e de espírito curioso, não sabia coisas elementares.
São os territórios do Império Otomano que ficam na Europa, esclareceu. A Sérvia, a Bulgária, a Bósnia - Herzegovina, a Grécia ... tudo isso é a Rumélia.
Mas os Turcos não estão a perder essas terras?
Justamente, confirmou o pai. Umas declararam a independência e outras ainda estão formalmente sob soberania otomana, mas na prática também são independentes.
E nós?
Nós não estamos na Rumélia. A Arménia ocupa a Anatólia e a Cilícia, onde também vivem turcos, curdos e circassianos. Aqui a separação é mais difícil. Há muitos dos nossos miúdos, filhos de boas famílias, que vão estudar para a Europa e, tal como os cristãos da Rumélia, voltam com ideias de liberdade e igualdade. Ninguém fala em independência da Arménia, claro, para não enervar ainda mais os Turcos. Os nossos líderes apenas exigem igualdade perante a lei e autonomia na governação regional. Mas os Turcos, danados com a perda de terras e de direitos de domínio sobre nós, não estão a gostar das nossas exigências. Uns acham que deviam continuar a poder matar-nos só para testar se as suas espadas estão afiadas e, se não fosse a intervenção das potências europeias, era para aí que voltaríamos. Os europeus, no entanto, exigem o fim da discriminação e os Turcos, que têm medo deles e dependem dos seus empréstimos, lá vão fazendo umas reformazitas. Quando a pressão europeia aumenta, os Turcos cedem. Quando a pressão diminui, voltam atrás nas promessas e recomeçam a oprimir nos.
O que é isso de pressão europeia?
Pode ser muita coisa, rapaz. Até a guerra.
Como aquela que acabou agora?
Isso mesmo. Este ano tivemos a guerra Turco-Russa, que acabou com a declaração de independência da Roménia, da Sérvia e do Montenegro. E há poucas semanas terminou em Berlim um congresso que obrigou o sultão a fazer novas reformas que estabeleçam de facto a igualdade de todos os otomanos, independentemente da sua religião. Os Turcos andam furiosos, claro. Estas reformas destinam-se a melhorar as relações entre as pessoas e a acabar com o domínio dos muçulmanos sobre os não muçulmanos, mas a população muçulmana não aceita isso. Dizem que Maomé mandou os muçulmanos dominar os outros e que estas reformas violam a lei do islão. Então puseram-se para aí a dizer que o declínio do império se deve à influência dos cristãos e outras baboseiras do género. Nalguns sítios puseram-se a matar famílias de arménios por terem cometido o crime de serem cristãs e de ...
Vahan!, cortou a mulher com um olhar de censura.
Estás a assustar o miúdo!
Ele tem de saber o que se passa.
Mas não assim!
Se não for assim, será como? A ver o pai espancado na rua por um turco andrajoso? Ele pode ter só nove anos, mas não é estúpido. Indicou de novo a janela. As coisas lá fora estão a piorar e é bom que ele tome consciência do mundo em que vive.
Fez-se um súbito silêncio no salão.
Os Turcos andam a matar famílias de arménios?, perguntou Kaloust num fio de voz amedrontado. Isso quer dizer que ... eles vão matar-nos?
A mãe lançou um olhar faiscante na direcção do marido, fulminando-o de repreensão.
Estás a ver o que fizeste Voltou-se para o filho e abraçou-o com ternura. Beijou-lhe a cabeça e soprou-lhe ao ouvido. Não vão nada, querido. Isso são histórias que o teu pai conta, não ligues ...
Mas Vahan tinha razão sobre o filho; Kaloust era tudo menos estúpido e já aprendera a distinguir quando um adulto falava a sério e quando brincava. Tornava-se evidente que o pai tinha falado muito a sério e a mente do rapaz fervilhava de ideias, procurando uma solução para o problema com o desespero e o horror de quem achava que os Turcos estavam nesse preciso momento à porta de casa prontos a passar toda a família pelo fio das espadas.
Há algum sítio onde lhes possamos escapar?
Só se for em Constantinopla, observou Vahan. Com tanto estrangeiro que para lá anda, eles não se atreviam a tocar-nos.
O filho arregalou os olhos; estava ali a solução.
Então ... então, choramingou ele com o beiço a tremelicar, porque não vamos para lá?
Vahan e Veron trocaram um novo olhar, já não de discórdia, mas como se cada um tentasse perceber o que pensava o outro sobre o assunto. A ida para a capital era uma coisa que andavam a cogitar em segredo havia bastante tempo. Trebizonda sempre fora um lugar agradável, onde a maioria da população era arménia e onde ocupavam um lugar de liderança na vida do millet. Afinal não era ele a pessoa que desempenhava o mais alto cargo da cidade, o de vali? Por outro lado, porém, ali não poderiam crescer muito mais. A terra pequena faz pequena a sua gente, e os Sarkisian queriam crescer e agigantar-se. Já Constantinopla era lugar de colossos e de muita história, capital de um império e cidade cosmopolita com porta para o mundo. Além do mais, os tempos tornavam-se difíceis para os millets cristãos na província, com os Turcos a vingarem-se neles pelas crescentes perdas na Rumélia.
Irmos para Constantinopla?, perguntou Vahan em tom meditativo, ainda a fitar a mulher. O que te parece?
Os olhos negros de Veron cintilaram como pérolas luzidias.
Porque não?
O Sol despontava na margem asiática, mas Kaloust apenas tinha olhos para a cidade que o astro incandescente iluminava. Banhado pela luz límpida do amanhecer, que rasgava pelo firmamento uma orgia de cores quentes e suaves, o elegante casario de Constantinopla ondulava pelas colinas da margem europeia do mar de Mármara, a planura dos telhados cor de tijolo apunhalada pelas torres dos minaretes que se erguiam altivas como cedros majestosos a tentarem tocar o céu. Parecia que da manhã pingavam gotas de poesia.
O menino não se esqueceu de nenhum caderno?, perguntou o kahveci, sempre preocupado com os pormenores.
Leva tudo na mala?
Sim, devolveu o rapaz sem descolar os olhos da grande cidade para onde o vapor se dirigia. Tenho tudo.
E fez os trabalhos de casa?
Claro.
Mesmo os exercícios de Matemática?
Kaloust impacientou-se com o interrogatório. As perguntas eram tantas e tão insistentes que perturbavam e arruinavam a graça harmoniosa da manhã.
Está tudo bem!, retorquiu com súbita irritação. Que chato que és, Ghougas! Cala-te!
O kahveci fez um estalo com a língua.
É que, se faltar alguma coisa, justificou-se Ghougas, é a mim que o senhor seu pai vem pedir contas.
Pois, mas eu já tenho onze anos. Não sou nenhum bebé!
Seja, embora ás vezes se esqueça de coisas, insistiu o criado. Noutro dia, só porque faltou o manual de Francês da sua mala, o patrão mandou-me sovar. Esboçou um esgar sofrido, como se a simples memória do sucedido fosse dolorosa. Não quero que isso volte a acontecer.
O rapaz suspirou. Não queria saber dos problemas do kahveci, muito menos num momento tão sublime como aquele. Como era possível ficar indiferente perante a majestade do cenário que os rodeava?
Entre o instante em que os pais tinham decidido ir viver para Constantinopla e aquele em que a família se instalara na capital haviam decorrido dois anos, mas o dia chegara e a prova era que ele se encontrava ali, no vapor que fumegava em direcção à capital imperial, cercado pelo mar e pelos braços de terra urbanizada. Os Sarkisian compraram uma casa num bairro residencial selecto de Scutari, na margem asiática do Bósforo, uma zona onde viviam paxás, diplomatas, judeus e cristãos ricos, em particular gregos e arménios, lugar esplêndido com a sua magnífica vista para a cidade europeia.
Foi justamente a visão de Constantinopla a partir do vapor que cruzava o canal que suscitou a perplexidade do jovem Kaloust. Que haveria ali de tão especial que o hipnotizava todos os dias? Ah, a beleza! A capital do império era bela para além de tudo o que se podia imaginar. A Torre de Gálata, a ponte sobre o Corno de Ouro, os minaretes da Mesquita Azul, a cúpula de Hagia Sophia, as árvores que bordejavam o mar, o reflexo das casas nas águas bailarinas do Bósforo. Era incrível como os seus olhos não descolavam daquela paisagem, cuja harmonia lhe cortava o fôlego.
Na verdade, sempre se sentira irresistivelmente atraído por tudo o que era belo. O panorama para além das janelas de casa deixava-o extasiado, mas até as pequenas coisas o seduziam, como a decoração do quarto, a roupa que vestia, a própria mala que escolhera para levar para a escola. Vivia de tal modo no desejo de se ligar ao que achava belo que, nessa manhã em que de novo se embriagava com o esplendor de Constantinopla a despertar, formulou pela primeira vez a pergunta que começava a corroê-lo.
O que é a beleza?
Todas as manhãs desde que as aulas se iniciaram, o jovem Kaloust atravessava o estreito no vapor para ir para a escola. A viagem constituía o primeiro ponto alto do dia, sobretudo àquela hora em que a luz da alvorada adquiria tonalidades tão fascinantes que deixavam uma impressão indelével no seu gosto nascente pela harmonia estética. A última coisa de que precisava enquanto fruía o instante mágico era passar a travessia inteira a aturar as lamúrias do criado; o interrogatório interminável do kahveci sobre o que poderia ter esquecido estragava o encantamento da viagem matinal.
O lápis? Trouxe o lápis?
Kaloust revirou os olhos, à beira de explodir. Deu um salto repentino no assento e, furioso, pôs-se de pé.
Chega!, exclamou o estudante com um gesto peremptório. Daqui a bocado quem te dá uma tareia não é o meu pai, ouviste? Sou eu! Girou a cabeça em redor, passeando os olhos pelos passageiros e pelo convés do vapor como se buscasse uma escapatória. Olha, Ghougas, vou dar um passeio e já volto! Apontou para a mala pousada aos pés do assento. Deixo-a aqui. Fica aí a guardá-la, ouviste?
O kahveci teve um sobressalto.
Onde vai, menino?
Onde não tenha de te aturar! Irra!
Sem esperar pelas objecções do criado, Kaloust abalou dali e pôs-se a deambular pelo vapor. Foi à proa observar o casco a cortar a água e veio à ré apreciar o Sol que se levantava sobre a margem asiática, ao mesmo tempo que lobrigava a fachada da sua casa em Scutari. Quando viesse da escola, à hora do almoço, iria passar ali a tarde a estudar com o seu tutor francês. Era assim a semana inteira por decisão do pai, razão pela qual muito apreciava as travessias do Bósforo e não queria sujeitar-se ao interrogatório obsessivo do criado.
Cansou-se da vista de Scutari e pensou em ir apreciar o sector do Corno de Ouro, a zona mais nobre de Constantinopla. Mas quando atravessava o barco em direcção à proa a sua atenção foi atraída por uma fila de mulheres turcas com véu que entravam por uma porta que dava acesso a uma cabina. Sempre vira mulheres de rosto tapado a cruzar aquela porta, pelo que se encheu de curiosidade.
E se fosse dar uma espreitadela?
Esgueirou-se por uma cabina escura e deparou-se com um grupo de muçulmanas sentadas em almofadas espalhadas no chão e crianças a brincarem diante delas. Do rosto das mulheres apenas se viam os olhos, que se arregalaram na direcção do intruso quando o surpreenderam por ali. Havia duas mais velhas, mas as outras pareciam muito novas, decerto com menos de dezoito anos.
Quem é o menino?, rugiu uma voz estranhamente estridente. Que está aqui a fazer?
Kaloust virou-se e viu um homem imponente caminhar na sua direcção com uma expressão ameaçadora na cara.
Eu ... eu ... estou à procura do meu kahveci.
Fora daqui!, berrou o homem na sua voz flauteada.
Isto não é lugar para rapazes!
O estudante esgueirou-se dali, mas o desconhecido veio no seu encalço e Kaloust não teve outro remédio que não fosse refugiar-se junto do kahveci. Ghougas apercebeu-se da situação e de imediato enfrentou o gigante, que barafustava com tal furor e engolindo tantas sílabas que o rapaz teve dificuldade em entender o que dizia. Apenas compreendeu palavras soltas, como mulheres, santuário e paxá, nada que lhe parecesse fazer sentido. O kahveci lá acalmou o homem e ele acabou por voltar as costas e regressar à cabina de onde viera.
Não volte a entrar ali!, avisou o criado quando veio ter com o seu protegido. Nunca mais!
Porquê? O que tem aquela cabina de especial?
É reservada às senhoras , explicou o kahveci. Ali dentro segue o harém de um paxá turco. Os homens não podem estar naquele sítio.
Um harém!?, espantou-se. Mas ... mas quase todas as mulheres que ali estão têm pouco mais que a minha idade.
Ghougas esboçou um sorriso malicioso.
Os paxás turcos só querem mulheres novas, explicou.
Dizem que, além de estarem a seguir o belo exemplo do profeta, frequentar uma menina prolonga a vida. A juventude dessas raparigas transmite-se a eles, e a velhice deles transfere-se para elas.
Kaloust ficou boquiaberto por um longo momento, enquanto revia na memória os rostos jovens que surpreendera momentos antes na cabina. A ideia de um velho a impregnar-se da juventude do seu harém nunca lhe tinha ocorrido. Resultaria deveras?
Então e esse ... esse monstro? Se os homens não podem ali entrar, o que está ele a fazer? Acaso é ele o paxá?
É o eunuco.
A informação deixou Kaloust de novo surpreendido.
Eunuco? Aquilo era um eunuco?
O criado respirou fundo e pôs as mãos à ilharga, no gesto de quem não acredita que alguém pudesse ser tão ignorante ou ingénuo.
O menino não ouviu a voz dele?
A selecção da escola para o filho deixou Vahan consumido de dúvidas. Quando a família se instalou em Scutari foram consideradas três possíveis para a educação de Kaloust: a escola arménia de Guetronaguan, o liceu francês Galata Serai e o Robert College, americano. Após um pequeno inquérito, Vahan chegou à conclusão de que a escola americana era a mais reputada de Constantinopla e, seduzido pelo seu prestígio, foi aí que inscreveu o filho, em regime de externato.
A entrada no Robert College não se revelou fácil, até porque se tratava da escola frequentada pelos filhos dos diplomatas e das elites das minorias cristãs no Império Otomano. A selecção dos alunos era rigorosa e implicava passagem com distinção num exame especial. Nada que impressionasse o rapaz de Trebizonda, habituado já ao trabalho intelectual e treinado pelo seu tutor francês, e que teve a melhor nota dos exames de 1880. Conseguira assim acesso àquela que, guiada pela mão conhecedora de mister George Washburn, o novo director, se tornara a mais prestigiada instituição de ensino do império.
Porém, e ao fim de apenas alguns meses, chegaram aos ouvidos de Vahan uns comentários ácidos de alguns amigos arménios, segundo os quais o Robert College ministrava uma educação protestante e ignorava os sagrados ensinamentos da santa igreja arménia. Além disso, começou a achar o programa de estudos da escola talvez demasiado pesado, uma vez que o filho frequentava disciplinas que não lhe pareciam ter a menor relevância para a sua vida profissional.
Solicitou por isso uma reunião com o director, um americano com um grande corpanzil a quem expôs as suas preocupações.
Nunca escondemos que somos uma escola protestante, esclareceu mister Washburn. Mas em momento algum impomos a nossa interpretação teológica aos alunos. Mais ainda, evitamos abordar nas classes de religião ou nas homilias durante os serviços religiosos qualquer tema que divida as várias tendências do cristianismo. E como sabe temos aulas específicas de Arménio e até uma disciplina chamada Arménia Antiga e Moderna, que ministramos aos nossos alunos arménios. Nada tem a recear.
Mas os senhores leccionam uma disciplina de Religião que apresenta a perspectiva protestante e obrigam todos os alunos a frequentá-la ...
Sim, e depois? Afinal já não vivemos na Idade das Trevas!
Estamos no século XIX, a Idade das Luzes! As pessoas não tapam os olhos e os ouvidos com medo de aprenderem algo diferente daquilo em que acreditam, nem aceitam cegamente tudo o que lhes dizem. Nesta escola ensinamos as pessoas a julgar por elas mesmas, a pensar por si próprias e a procurar incansavelmente a verdade.
Vahan curvou os lábios.
Pois, tudo isso é muito bonito, não haja dúvidas. Mas o que me parece é que vocês estão a sobrecarregar o meu rapaz de assuntos que não interessam para nada. Consultou uma cábula que trazia na mão. Estive a ver com mais atenção o vosso programa e, confesso, estranhei um pouco. É verdade que ensinam Francês, Inglês, Arménio e Latim, instrumentos de grande utilidade na vida. Também me parece bem que ministrem as disciplinas de Álgebra, Geometria e Trigonometria. Afinou a voz. Mas agora ... Zoologia? Fisiologia? Química? Botânica? Astronomia? Retórica? Filosofia? Para que servem estas disciplinas? Que uso terão os alunos para elas?
Mister Washburn ajeitou os óculos de aros redondos e emitiu um leve e paciente suspiro. Senhor Sarkisian, o programa de estudos do Robert College é baseado nos programas-padrão das escolas da Nova Inglaterra. Consideramos que essas matérias são fundamentais para a educação de ...
Eles só precisam de aprender línguas, cortou Vahan.
E um pouco de aritmética, claro.
Eu sei que aqui no Império Otomano se considera que apenas a aprendizagem das línguas europeias serve para alguma coisa. Mas nós achamos que isso não é assim. Fez um gesto para a janela. Olhe para este país e veja se esse tipo de educação vos tem levado a algum sítio. Não tem, pois não? Agora olhe para a América, ou para a França, por exemplo, onde as escolas leccionam programas semelhantes ao nosso, e veja onde esses países estão. Depois de comparar a pobreza otomana com a riqueza da América, tem a certeza de que quer pôr o seu filho a estudar segundo os padrões educativos que conduziram o Império Otomano à degradação em que se encontra?
A reunião foi inconclusiva e o patriarca dos Sarkisian voltou para casa com mais dúvidas do que as que tinha inicialmente. Ponderou o assunto durante uma semana, até porque os comentários negativos dos seus amigos arménios não cessavam, mas foi uma conversa que numa das manhãs seguintes escutou entre dois turcos, no vapor do Bósforo, que lhe tirou as últimas dúvidas.
Vês ali aquilo?, perguntou um deles, apontando para o edifício escuro e proeminente no alto da colina do lado europeu, perto das velhas muralhas e torres de Rumeli Hisari.
A escola dos giavour? O que tem?
É o maior insulto aos Turcos que vejo em Constantinopla!
O segundo turco olhou com atenção para o Robert College.
Achas? Sempre pensei que o edifício era bonito ...
Pois é, mas o importante é o que ele significa. Há uns anos veio para cá um giavour americano e ficou tão impressionado com a nossa ignorância que, com o dinheiro do seu bolso, mandou construir aquela escola para ajudar pessoas que lhe eram completamente estranhas. Indicou algumas grandes mansões e palacetes ao longo do Bósforo. Nós temos centenas de paxás ricos que construíram estas belíssimas casas. Algum deles pegou numa única piastra do seu próprio bolso para contribuir para a educação do seu povo? Abanou a cabeça. Esta escola dos Americanos é o maior insulto que os giavour nos podiam fazer. Sabes porque nos envergonha? Porque expõe a verdadeira face dos nossos governantes!
Foi nesse instante, quando acabou de escutar a conversa entre aqueles dois turcos, que Vahan tomou a decisão. O filho iria manter-se na escola americana.
Uma chuva de pedras cortou o ar e abateu-se com estrondo sobre o portão de entrada. Assustado, Kaloust agachou-se por detrás das grades e, logo que a saraivada passou, espreitou na direcção de onde os projécteis tinham vindo. Vislumbrou à distância um grupo de turcos, todos eles residentes na zona de Ruméli Hisari, a bramir os punhos fechados.
Giavours!, gritou um deles, a fúria na voz. Ide para o Inferno!
Não era a primeira vez que tais incidentes ocorriam, mas mesmo assim o jovem arménio, depois das orações da manhã e antes da primeira aula, apresentou-se no gabinete de mister Washburn, no segundo andar de Hamlin Hall, e relatou o ocorrido.
Não lhes ligues, rapaz, disse o director. Vamos tratar disso. Vai lá para as tuas aulas.
Não se pode dizer que Kaloust tivesse grande entusiasmo
pelas aulas, por causa da matéria, que acompanhava com o empenho zeloso que nele era habitual, mas pelo ambiente. Sentia-se no ar um clima de tensão permanente, não só da vizinhança turca em relação à escola, mas entre os próprios estudantes.
A etnia dominante dos alunos que frequentavam o Robert College era a búlgara, logo seguida pela arménia. Depois vinham os gregos, que não gostavam dos búlgaros, e um punhado de turcos cujos pais nutriam admiração pelas potências ocidentais. De resto havia um ou dois elementos das restantes etnias otomanas cristãs, como montenegrinos, dálmatas e macedónios, e alguns filhos de diplomatas estrangeiros.
Os Búlgaros eram uma espécie de bombo da festa, não só dos Gregos, que com eles alimentavam uma inexplicável rivalidade, mas sobretudo da população turca. Apenas alguns anos antes os Turcos haviam massacrado populações inteiras na Bulgária. À primeira oportunidade, os cristãos búlgaros deram o troco na mesma moeda e massacraram milhares de turcos, obrigando multidões de muçulmanos da Bulgária a fugir em tropel e a refugiar-se em Constantinopla, onde viviam agora nas ruas da cidade como mendigos. Os Turcos andavam por isso furiosos com os Búlgaros, e, sabendo que esta era a etnia dominante no Robert College, a vizinhança ameaçava amiúde os estudantes da escola.
Para resolver o problema, mister Washburn dera instruções para que os alunos búlgaros ficassem a viver na escola mesmo durante as férias. Além disso, foi ter com o chefe da polícia e pagou-lhe uma quantidade apreciável de bakshish para proteger os edifícios e os alunos. Embora de má vontade, a polícia lá acabou por deter alguns dos autores dos apedrejamentos e a situação em torno do Robert College acalmou.
Pregado a meio das escadas a ver a polícia levar os suspeitos, contudo, mister Washburn não alimentava ilusões.
Qualquer dia ainda morre alguém.
Um burburinho paciente enchia a sala de estudos de Hamlin Hall, o edifício principal do Robert College, quando os Sarkisian se acomodaram num dos lugares da frente para assistirem à palestra do início do ano lectivo. Começava o segundo ano de Kaloust naquela escola e o rapaz sabia bem que o Commencement Day podia ser mortalmente aborrecido. Mas o que havia de fazer? Tal corno outras figuras distintas da sociedade otomana, os ais haviam sido convidados para o evento e ele não tinha outro remédio senão acompanhá-los.
Um silêncio súbito abateu-se sobre a sala quando mister Washburn apareceu de urna porta lateral e subiu à plataforma onde estava plantado o púlpito do orador. Que horrível discurso viria aí?, interrogou-se Kaloust, preparando-se para o pior. No ano anterior tinha sido urna dissertação sobre Homero tão ente diante que tivera dificuldade em manter-se acordado.
O director da escola pousou os papéis do seu discurso sobre o púlpito, ajeitou o nó da gravata, tossiu para afinar a a voz e, erguendo o rosto, enfrentou os convidados que tinham vindo participar no Commencement Day.
Por que razão viemos esta manhã vestidos com tão belos trajes?
A pergunta era inesperada e desencadeou uma catadupa de trocas de olhares e muitas expressões interrogadoras e de surpresa. O orador esperaria mesmo uma resposta? Porque decoramos as nossas casas?, foi a segunda pergunta atirada por mister Washburn. Porque tratamos os nossos Jardins e plantamos belas flores nos vasos? Porque pregamos quadros nas nossas paredes e estendemos tapetes persas nas nossas salas e nos encantamos com a paisagem da nossa janela, com o esplendor de Constantinopla reflectido no mar de Mármara? Porque nos sentimos voar quando escutamos o Requiem de Mozart ou o Hino à Alegria de Beethoven? Porque nos sentimos deslumbrados quando lemos Shakespeare, O, how this spring of love resembleth, The uncertain glory of an April day? Porque nos extasiamos com a cúpula de Hagia Sophia ou com o sabor delicioso de uma baclava comprada no bazar? Que coisa é esta que nos faz buscar a beleza em tudo o que vemos e tocamos, de um simples lenço de caxemira que pousamos nos ombros à grandeza cósmica da Via Láctea que vemos derramar-se no abismo negro numa noite nua? Que instinto nos atrai para o que é belo, que pulsões irresistíveis nos movem para a harmonia, que salvação encontramos nela?
Encolhido na sua cadeira, a boca entreaberta de pasmo, Kaloust sentiu estas perguntas interpelarem-no directamente; era como se o director da escola traduzisse em palavras as interrogações que nos últimos tempos o atormentavam e que jamais fora capaz de formular daquela maneira.
O que é a beleza?, perguntou mister Washburn num tom que tornava claro ser aquela a última das suas interrogações introdutórias. "Pulchra sunt quae visa placent, enunciou S. Tomás de Aquino: a beleza é o que agrada aos nossos sentidos. Nada podia ser mais verdadeiro. Mas onde a encontramos exactamente? Nos objectos em si ou na pessoa que os contempla? Deixou a pergunta por momentos a pairar antes de ele próprio responder. A beleza está evidentemente nos objectos, nas suas formas e no seu conteúdo, na respectiva harmonia e qualidades intrínsecas, mas o facto é que uma coisa não pode ser bela sem alguém que a contemple e a ache bela, e isso mostra a evidência de que a beleza está também no sujeito. Uma rosa é bonita porque achamos que ela é bonita. Sem a nossa opinião, a rosa simplesmente é. Assim, e se a beleza está também no sujeito, ela é subjectiva. Por outro lado, e apesar da sua inerente subjectividade, a verdade é que a noção de beleza é universal. Todas as pessoas, todos os povos, todas as culturas buscam a beleza. O ideal de mulher bela pode ser uma fêmea arredondada na cultura europeia e uma fêmea escanzelada numa cultura africana, e aí radica a subjectividade do conceito, mas o facto é que uma coisa não pode ser bela sem alguém que a contemple e a ache bela, e isso mostra a evidência de que a beleza está também no sujeito. Uma rosa é bonita porque achamos que ela é bonita. Sem a nossa opinião, a rosa simplesmente é. Assim, e se a beleza está também no sujeito, ela é subjectividade, a verdade é que a noção de beleza é universal. Todas as pessoas, todos os povos, todas as culturas buscam a beleza. O ideal de uma mulher bela pode ser uma fêmea arredondada na cultura europeia e uma fêmea escanzelada numa cultura africana, e aí radica a subjectividade do conceito, mas o facto é que ambas as culturas procuram a mulher bela. Há quem ache sublimes os versos épicos da Ilíada e há quem prefira a beleza da prosa moderna de O Conde de Monte Cristo. Independentemente das opiniões sobre o que é belo, todavia, qualquer leitor procura beleza no que lê. Aí está a sua universalidade. Quando a africana decora a palhota e a europeia arruma a casa, ambas estão a exprimir de diferentes maneiras uma ordem estética instintiva e universal. Mas será exclusivamente humana? E os animais? Terão as bestas a noção do belo?
O director do Robert College calou-se e passeou os olhos pela sala, como se esperasse que alguém lhe respondesse. Kaloust já várias vezes havia pensado naquela questão e teve nesse instante ganas de saltar da cadeira e gritar não!, não!, não!, mas conteve-se.
Sim e não, foi a resposta de mister Washburn. Um cão sabe distinguir o sabor de pratos diferentes, por exemplo. Se lhe pusermos no prato um pedaço de carne de má qualidade e um pedaço de bife do lombo, qual pensam que ele vai comer primeiro?-O prazer que ele sente, e embora a comida esteja directamente ligada à sobrevivência, é uma forma de reacção à beleza. O problema é que o prazer não se define, trata-se de uma resposta a algo. Comer morangos ou cheirar uma rosa são actividades que dão prazer, o que mostra que o sentimento de prazer é inato, orgânico até. Ouvir música pode dar tanto prazer como comer chocolate ou ver uma bela mulher passear pelo bazar. Isso leva-nos a concluir que na beleza há categorias de prazer. Uns prazeres são exclusivamente sensoriais, como o de tomar um banho quente ou de comer um bife do lombo, outros são exclusivamente intelectuais, como o de um jogo de xadrez magnificamente jogado. E entre estes dois extremos estende-se um universo inteiro de coisas belas que são em parte sensoriais e em parte intelectuais. Os animais podem sentir prazer sensorial, mas são imunes à beleza intelectual. Esse traço é exclusivamente humano. Só um homem ou uma mulher param para contemplar o Bósforo ao entardecer ou o magnífico tecto abobadado de Hagia Sophia, para escutar a música dos dervixes sufis, ou simplesmente arrumar a sala de jantar. Os seres humanos vêem na beleza um emblema da perfeição e podemos até ...
O senhor Haritoon!
A voz estridente de uma mulher histérica irrompeu na sala e emudeceu o orador, que virou para a porta o olhar atónito.
Perdão?
Mataram o senhor Haritoon!, gritou a mulher, correndo espavorida pelo corredor central da sala de estudo onde decorria a palestra. Ai meu Deus! Mataram o senhor Haritoon!
Desencadeou -se um pandemónio no Hamlin Hall e por toda a escola. Haritoon era um empregado arménio que, além de muito habilidoso a consertar coisas estragadas, se tornara uma espécie de homem de confiança do director. Mister Washburn abandonou imediatamente o púlpito de onde dirigia a palestra do Commencement Day e foi consultar a empregada.
Que me diz? O que aconteceu com o Haritoon?
A mulher da limpeza apontou pela janela para o portão da escola, mais abaixo.
Ali!, balbuciou, as mãos a tremerem descontroladamente. Mesmo à frente da escola! Dois homens mataram-no! Eu vi!
Foi a consternação geral no Hamlin Hall. Apesar dos esforços dos professores e dos pais para impor a calma, os alunos ficaram excitadíssimos com o sucedido e, no meio de grande burburinho, acompanharam mister Washburn até ao portão. Lá ao fundo, deitado sobre o capim selvagem, vislumbraram um corpo imobilizado; era de facto o cadáver de Haritoon, asfixiado por uma corda que lhe deixara marcas profundas no pescoço.
O Commencement Day foi de imediato cancelado e Kaloust regressou a casa decepcionado. Que raio de azar o seu! Logo nesse dia, quando o tema da palestra era o que mais lhe interessava, haveriam os Turcos de arranjar maneira de perturbar a escola e interromper as actividades. Que falta de consideração! Ah, se ao menos tivessem esperado pelo final da palestra ...
O homicídio deu que falar e foi até noticiado nos jornais. Atento aos burburinhos dos corredores e às conversas dos pais à mesa do jantar, Kaloust tomou gradualmente conhecimento dos pormenores do caso. Parece que Haritoon havia conseguido enviar para a Grécia as suas duas filhas, raparigas de grande beleza que um oficial do palácio do sultão tentara raptar para o seu harém.
Após muitos esforços e grandes quantias de bakshish, mister Washburn conseguiu estabelecer a ligação entre os dois assassinos e o tal oficial, que aparentemente era o mandante do crime, uma vingança por Haritoon lhe ter negado tão belos espécimes para o seu harém, mas, por mais influências que movesse, o director do Robert College não logrou que se punisse o criminoso.
Para Kaloust, o incidente foi mais instrutivo do que um ano lectivo de aulas; a vida no Império Otomano era de facto dura para quem estivesse sob a bota dos que mandavam. Mas o pior, o que lhe parecia realmente o mais grave de tudo, é que perdera a oportunidade de ouvir mister Washburn desvendar-lhe o maior dos mistérios que o mundo parecia encerrar.
A moeda de prata cintilava à luz do Sol que jorrava pela janela aberta para o Bósforo, a estrutura delgada e luzidia de uma elegância que contrastava com os dedos rechonchudos que a seguravam.
Estás a ver este medjdeh?, perguntou o pai, que girava a moeda na ponta dos dedos. Sabes quanto vale?
Os olhos de Kaloust brilharam tanto como a luz reflectida na superfície da prata.
Cinco xelins.
Um dente de ouro lampejou no rosto sorridente do pai.
Estás de parabéns pelas tuas notas na escola!, disse.
Quem obtém essas classificações decerto tem cabeça para apreciar o valor da poupança e da boa gestão do dinheiro. Fez um movimento brusco com os dedos e atirou-lhe a moeda. O medjdeh é teu.
Naquele dia parecia que tudo brilhava: a moeda de prata, o olhar de Kaloust, o dente de ouro do pai. O rapaz passou algum tempo a ponderar o destino a dar ao medjdeh e a primeira coisa que decidiu foi que não o pouparia, como, sugerido pelo pai, mas iria gastá-lo no bazar. O problema era saber em quê. Numas baclavas deliciosas? Nuns lokum li coloridos? Em kadayif com pistácios? li
Antes de tomar a decisão, porém, precisava de resolver um outro problema: a questão da oportunidade. As manhãs de Kaloust em Constantinopla eram inteiramente passadas no Robert College. Depois da oração das oito da manhã começavam as aulas, que se prolongavam até ao meio dia e meia. A seguir ao almoço havia novas aulas entre as duas e as quatro e meia, altura em que os alunos externos, como Kaloust, se iam embora. Os restantes, em regime de internato, permaneciam na escola e tinham dormitórios no Hamlin Hall.
As aulas no Robert College ocupavam-lhe quase todo o tempo e, quando acabava, o kahveci esperava-o à porta da escola, situada na zona de Bebek-Rumeli Hisari, e Levava-o pela encosta até ao cais, onde apanhavam o vapor de regresso a casa. Assim sendo, quando poderia ir ao bazar?
A solução, depressa o percebeu, estava no período destinado às actividades físicas, umas três horas às quintas-feiras que eram dominadas por exercícios de corridas e pelo cricket. Com o corpo pequeno e arredondado, Kaloust aprendeu a odiar os esforços físicos e convenceu o pai a arranjar-lhe um atestado médico que interditava a escola de o submeter àquelas provações, alegando que o aluno tinha um coração débil.
A desculpa resultou e Kaloust depressa se viu livre de tal inferno. Com as três horas das quintas-feiras por preencher, criou-se a oportunidade para a escapa dela perfeita. Quando o pai lhe perguntou o que tencionava fazer com o tempo livre, o rapaz tinha a resposta pronta na ponta da língua.
Vou estudar, claro.
Ao ouvir estas palavras, Vahan Sarkisian mostrou-se naturalmente satisfeito. O filho, pensou, era de facto moço atinado e muito responsável; a continuar assim, decerto iria longe. Nisso tinha razão, claro. Mas o que Kaloust não lhe disse é que era para o bazar que planeava ir estudar.
Ah, que cidade!
Se algum pecado manchava esta exclamação de Kaloust perante o que descobriu quando pela primeira vez entrou no centro de Constantinopla, só poderia ser não se revelar suficiente mente encomiástica do espectáculo a que assistiu quando ali chegou.
Logo que nessa quinta-feira o período de actividade física começou, o rapaz esgueirou-se pelos jardins do Robert College, evitando a escadaria principal, onde o kahveci o poderia notar, e saltou para a rua. Para escapar às revoadas de refugiados muçulmanos que haviam fugido da Bulgária, subiu até ao alto de Pera, povoado de cafés e frequentado por estrangeiros, e apanhou o tünel, o funicular subterrâneo recentemente construído para facilitar a ligação entre aquela parte da cidade e o Corno de Ouro, um pouco mais abaixo.
Não me diga que vai para o buraco do rato?!, perguntou-lhe um velho turco desdentado depois de cuspir na direcção da entrada do funicular. A mim, só quando morrer é que me metem debaixo de terra!
Mas o estudante não tinha receio de ir para debaixo da terra. O tünel era uma novidade que o encheu de espanto, embora o sentimento mais forte tenha sido o que acabou por experimen tar na estação terminal do funicular. Saiu para a rua e foi justamente ali, junto ao Corno de Ouro, que todo o esplendor de Constantinopla o atingiu em cheio com tal força que quase o fez cambalear de emoção.
Meu Deus!
Se o planeta fosse o firmamento, Constantinopla seria a mais brilhante das estrelas, tão esplendorosa e ofuscante era a sua luz. O estudante descobriu-o ao vaguear à beira-mar até à Ponte de Gálata, onde permaneceu quase uma hora inebriado pela vida que pulsava em redor. As gaivotas adejavam rente à água, grasnando de fome ao sentirem o cheiro salgado do peixe na praça ribeirinha; o mar, de um azul-petróleo desconcertante, chapinhava numa ondulação nervosa, as ondas a rolarem com baba de espuma salgada na crista fugidia. Canas de pesca enchiam a balaustrada da ponte como um renque de bambu, enquanto lá em baixo os barcos bufavam, ronronavam e apitavam, enxameando o mar de Mármara de veleiros e vapores a perder de vista.
Vardah!, gritou de repente uma voz. Abram alas! Vardah!
Kaloust girou sobre os calcanhares e deparou-se com um eunuco encorpado sobre uma montada a abrir caminho a um fiacre dourado, decorado com flores e desenhos de aves, que cruzava o tabuleiro da ponte puxado por um belo cavalo branco. Todas as atenções convergiram para ali naquele instante. Viram-se uns olhos femininos a espreitar pela janela, a face tapada por um véu de seda, e logo um clamor se ergueu na multidão.
Um harém!, gritou uma voz. Olhem para ali! Um harém!
O fiacre, proveniente de Pera, mergulhou nas ruelas de Stamboul e desapareceu para os lados do bazar, pelo que a excitação depressa se extinguiu. Kaloust achou a visão maravilhosa e decidiu deter-se por aquelas paragens. Encostou-se à balaustrada e ficou a contemplar a cidade que desfilava diante dos seus olhos.
Era incrível o espectáculo de Constantinopla a fervilhar de vida. Por entre as revoadas de turcos, arménios e gregos que cruzavam a Ponte de Gálata, aqui e ali ia distinguindo figuras de um exotismo cativante. Viu uma escrava com véu a transportar peixe, uma negra envolvida num manto multicolorido do Cairo, um judeu de fez azul-turquesa e outro com um solidéu branco, um sírio com um casaco bizantino e um lenço de listas douradas atado à cabeça e uma europeia loira, de vestido creme rendilhado até aos pés e uma sombrinha, que tentava passar por uma corrente de muçulmanos de turbante branco.
Os rostos eram todos diferentes, uns pálidos e outros trigueiros, estes de bigode fino e aqueles de barba densa, uma fauna de tal modo variada que Kaloust se pôs a tentar adivinhar-lhes a origem. Aqui um croata, à frente um maronita, ali um curdo, acolá um druso, além um cretense, do outro lado um cipriota. Algumas cabeças andavam decoradas por turbantes, outras por fez de diversas cores consoante a etnia e a religião, umas por farrapos, outras por xailes. Viam-se calças mamelucas, togas, túnicas monásticas, capas tão longas que varriam o chão, cintos com facalhões, colares de ouro, pernas de calças em forma de balão, tecidos riscados com faixas de cores garridas sedas trapos sujos algodão perfumado vestes de serapilheira, um príncipe, vários pedintes e três aleijados.
Tão espantoso espectáculo deixou Kaloust inebriado, como se o pulsar vigoroso da multidão que enchia as ruas de Constantinopla fosse a mais potente das aguardentes.
Ah, que cidade!
O Bazar das Especiarias, um edifício coberto que se situava no coração de Stamboul, uns cinco minutos a pé para além da Ponte de Gálata, era uma enorme galeria onde se cruzavam cores e aromas, com o açafrão a dominar entre as especiarias variadas.
Quando nesse dia visitou aquele lugar extraordinário, Kaloust começou por namorar os doces, e em particular os lokum de várias cores que os lojistas impiedosamente exibiam, dividido quanto ao destino a dar ao dinheiro que o pai lhe oferecera. Deveria gastar ali o seu medjdeh?, interrogou-se enquanto fazia girar a moeda de prata que escondia no bolso das calças. Ou seria melhor guardá-lo para outras coisas?
Optou por ser prudente e manteve o dinheiro mo bolso.
Saiu dali e subiu pelas ruelas até ao Grande Bazar. A imensidão do espaço que descobriu quase lhe cortou a respiração; o Grande Bazar era uma cidade dentro da cidade, um labirinto de comércio e artérias sob um tecto abobadado onde os vendedores interpelavam o rio de gente que se acotovelava nos corredores coloridos.
Olha os cachimbos!, gritava uma voz. Belos cachimbos!
Prata! Ouro! Pedras preciosas!, respondia outra. Nesta loja o cliente é um sultão!
Kaloust esquadrinhou o Grande Bazar, passando por bancas de bijutaria, calçado, curtumes, restaurantes a cheirarem a kebab, esgueirou-se mesmo por baixo das pernas de um camelo até que descobriu o que procurava, a rua dos tapetes. Apreciou os vários modelos, da Pérsia, do Afeganistão, da Transcaucásia, e sonhou comprá-los a todos. Com cuidado para não ser reconhecido, espreitou a loja do pai com a sua famosa variedade de tapetes do Turquistão. A entrada no mundo do querosene tinha relegado o negócio dos tapetes, ainda que proveitoso, para um distante segundo lugar como fonte de rendimentos da família, mas mesmo assim era um orgulho ver a revoada de clientes que perscrutavam os produtos do estabelecimento.
Quando ia a sair, ainda sem saber que destino deveria dar ao seu medjdeh, cruzou-se na rua dos ourives com uma vitrina de moedas antigas. A imagem deixou-o hipnotizado.
Por quantas mãos não teria passado aquele dinheiro? Que dramas, que histórias teria testemunhado em silêncio? Teria andado pelos bolsos de paxás e beis? Teria um qualquer sultão mexido em alguma daquelas moedas? E assassinos também? Sentiu ganas de as comprar, mas dominou o impulso. O medjdeh devia ser muito bem gasto e para o fazer primeiro precisava de estudar o produto.
Ora o que temos aqui?, perguntou o dono da loja, um velho turco de barbas brancas pontiagudas que lhe abriu um sorriso acolhedor. Um armeniozinho às compras? Fez um gesto convidativo para o interior. Entra, rapaz! Entra! Sê bem-vindo ao meu humilde tugúrio! Queres espreitar as lindas moedinhas que aqui tenho?
O convite era tentador e, por um momento, Kaloust quase o aceitou. Mas sentiu nesse instante que já havia passado muito tempo e talvez fosse melhor ir pensando em voltar para a escola.
Que horas são, effendi?
O velho turco virou a cabeça e olhou para o relógio de pêndulo encostado à parede no fundo da loja.
É quase meio-dia!
Quando se voltou, preparando-se para continuar a seduzir o potencial cliente, jovem mas decerto abastado, a crer pela bata com as cores do Robert College, já ele se tinha volatilizado.
Kaloust corria para a escola.
As semanas seguintes foram passadas a namorar as moedas. Todas as quintas-feiras, quando começava a aula de actividade física, Kaloust escapulia-se do Robert College e, depois de atravessar meia Constantinopla no tünel e a pé, ia contemplar a colecção numismática da loja de antiguidades do Grande Bazar.
O velho turco da barba branca pontiaguda habituarase a vê-lo cirandar pela rua dos ourives e, convidando-o a entrar, foi guiando pacientemente o seu cliente potencial pelas amostras que tinha expostas na bancada envidraçada do estabelecimento e explicando as peças uma a uma. Estava convencido que um interesse como aquele que o rapaz revelava só podia acabar numa compra.
Este é um exemplar antigo de quarenta para, identificou, apontando para uma pequena moeda de cobre. É do tempo de Abdul Mecid.
Como sabe?
Duvidas de mim, rapaz?, exclamou o velho turco, fingindo-se escandalizado. Vejo que és desconfiado ...
Gosto de verificar.
O vendedor sorriu com o raciocínio prudente de uma mente tão jovem e, decidido a demonstrar que falava de boa-fé, correu o vidro da bancada e extraiu o exemplar que referira.
Estás a ver estas letras?, perguntou, indicando o emaranhado de caracteres árabes no centro da moeda. É uma tugra, a assinatura a identificar o sultão que governava na altura em que esta para estava em circulação. Aproximou a moeda do jovem. Ora lê o que diz aqui: Adbulmecid, filho de Mahmut, vitorioso para sempre. Vês? É do sultão Abdul Mecid, que Alá o tenha na Sua infinita misericórdia! Kaloust indicou outra moeda.
E esta aqui?
O velho turco devolveu os quarenta para ao seu lugar e extraiu o exemplar que despertara a curiosidade do rapaz.
Esta é uma moeda de dez kurus de Abdul Aziz, explicou. Vês aqui a tugra com o nome dele? É bem mais barata, claro. Trata-se de uma peça menos rara. Arqueou as sobrancelhas, tentando avaliar a reacção do cliente. Que tal, interessa -te?
Mais ou menos.
Não pareces convencido. Indicou uma moeda de níquel.
E esta, já viste? É uma moeda de quatro riyal que veio da Tunísia. Arqueou as sobrancelhas. Exótica, hem?
Também aquela não convenceu o potencial cliente, mas o vendedor não desarmou. Mostrou-lhe outra moeda e outra ainda, exibindo-lhe ao longo de duas horas uns vinte por cento do catálogo para, no fim, ouvir o estudante fazer-lhe uma pergunta familiar.
Que horas são?
Era altura de voltar à escola.
De início o comerciante pensou que depressa convenceria o jovem a fazer uma aquisição; afinal não era todos os dias que lhe aparecia na loja um anjinho daqueles, decerto uma dádiva de Alá, o Munificente. A venda, porém, começou a protelar-se e, com o tempo, foi percebendo que o rapaz, apesar da verdura e evidente inexperiência, era cliente cerebral e desconfiado. Com fregueses com tal perfil, sabia, o caminho adequado requeria paciência e trabalho; as tentativas apressadas de venda em casos assim tendiam a acabar mal.
És dos difíceis, moço, concluiu ao fim da terceira visita.
Chegas aqui, pões-te a ver a minha mercadoria, eu falo e falo, tu olhas aqui e espreitas ali e no fim vais-te embora e deixas-me de boca seca e os bolsos tão vazios como quando entraste. Afinal queres ou não adquirir algum dos meus tesouros?
O estudante não tirava os olhos das inúmeras moedas, memorizando-lhes as figuras e as pequenas histórias. Não era que hesitasse; o que se passava é que estava ainda a recolher informação e a entender o negócio. Só passaria à fase de decisão quando se sentisse seguro e soubesse o suficiente para avançar.
Não sei.
Não sabes? Como é que não sabes? O que precisas tu afinal de saber? Se as moedas são bonitas? Pois, são bonitas! E são raras? Sim, são! Então compra!
As moedas eram realmente interessantes, tanto pelo seu valor intrínseco como pela história que encerravam, mas os preços adivinhavam-se assustadores. Deveria Kaloust gastar ali o seu precioso medjdeh?
Devem ser muito caras ...
Oh, o que é o vil dinheiro comparado com o prazer de possuir uma destas belezas?, questionou o velho turco. Pousou-lhe a mão sobre o ombro, como um avô a acarinhar o neto. Vá lá, pareces-me bom rapaz. Inclinou-se para a orelha dele e sussurrou-lhe ao ouvido, como se lhe fizesse uma confidência. A ti, e porque é para ti e me fazes lembrar o meu querido neto Ali, que Alá o tenha sempre na Sua guarda, faço-te um preço especial. Que me dizes?
Quanto?
O vendedor desviou a atenção para a mesa envidraçada com as moedas e fez um gesto na direcção delas.
Qual queres?
Por esta altura já Kaloust tinha todo o catálogo da loja na cabeça, embora lhe faltasse ainda conhecer os preços. Aproximou-se de uma estante especial, coberta por um vidro que parecia especialmente espesso, e apontou para uma moeda reluzente envolta em veludo escarlate. Esta aqui.
Ao ver a moeda indicada, o velho turco deu uma palmada na perna e soltou uma gargalhada. És um finório, rapaz!, observou ainda a rir. Isso é um tetradracmo de Mileto, a moeda mais valiosa da minha colecção! Abanou a cabeça. Não, essa moeda não podes comprar.
Não? Porquê?
Porque é demasiado cara.
Kaloust meteu a mão ao bolso e acariciou o seu medjdeh; tinha já encontrado o produto em que iria investir.
Quanto?, insistiu, preparando-se já para exibir o dinheiro que o pai lhe tinha dado. Diga-me quanto custa.
Vendo-o tão determinado, o comerciante franziu o sobrolho; seria possível que aquele miúdo tivesse dinheiro para o seu tetradracmo de Mileto? E porque não?, raciocinou.
Afinal ele usava a bata do Robert College ... Decerto o pai era homem endinheirado. Provavelmente um empresário, talvez um banqueiro; aqueles Arménios eram danados para o negócio! Levando isso em conta, o que impediria o moço de dispor de dinheiro suficiente para pagar o pequeno tesouro?
Dez libras de ouro, disse o turco. Aproximou a cabeça, com súbita intimidade. Mas para ti, por seres um moço que me caiu no goto, posso fazer um desconto.
Kaloust sentiu um baque e arregalou os olhos, atónito com o valor. Dez libras de ouro? Era um valor impensável! Estava fora de questão continuar sequer a negociar.
Não, disse peremptoriamente, recuperando a compostura e dirigindo-se para a porta. É muito caro.
Ao vê-lo a preparar-se para sair, o comerciante percebeu que teria de ser mais razoável, sob pena de perder o cliente.
Por ser para ti, oito libras de ouro.
Nem pensar!
Seis libras de ouro!
O rapaz já ia na rua e acenou sem olhar para trás; um valor daqueles não servia sequer de base de negociação.
Adeus!
Havia já algum tempo que Kaloust tinha reparado nuns rapazes gregos que, desde a chegada da Primavera, montavam umas bancas improvisadas junto ao cais de Scutari e se sentavam ali a vender produtos. De início não ligou ao negócio de rua, até porque se fazia tarde e tinha pressa de chegar a casa para a aula com o tutor.
Naquela manhã, todavia, as aulas foram interrompidas por um acontecimento imprevisto. O senhor Spanoudis, um grego de boa reputação, apareceu no Robert College acompanhado por três raparigas búlgaras de aspecto apavorado e com um punhado de turcos furiosos no seu encalço. Num clima de grande excitação, explicou que as três moças haviam sido capturadas pelos Turcos durante os massacres na Bulgária e trazidas como escravas para Constantinopla. Como bom cristão, empenhado em ajudar os que sofriam, Spanoudis logrou subornar um eunuco do harém e libertar as três desgraçadas. O problema é que os proprietários quase os apanharam e, como a escola americana era a instituição cristã mais próxima do local onde tudo sucedera, vieram os quatro procurar refúgio ali. O grupo de turcos aproximou-se perigosamente do Robert College e mister Washburn mandou toda a gente fechar-se no Hamlin Hall, com proibição de se abeirarem das janelas, e desceu com o professor Long para enfrentar a ira dos perseguidores. Em tom sereno comunicou-lhes que estavam a pisar propriedade privada e, com um gesto imperial, ordenou-lhes que se retirassem de imediato porque senão soltaria os cães. Os turcos ficaram desconcertados com este tipo de oposição; estavam habituados a ver os cristãos a tremer de medo, não a encará-los com firmeza e até um certo desdém. Além disso, tinham noção de que aqueles dois giavours estrangeiros, embora desarmados, eram de uma estirpe diferente dos lacaios do Império Otomano e poderiam criar-lhes problemas sérios, pelo que recuaram.
A consequência prática de todos esses acontecimentos é que nesse dia, e com toda a excitação gerada pelo sucedido, as aulas acabaram por não ser retomadas e os alunos em regime de externato foram mandados mais cedo para casa. Foi por isso que, ao regressar da escola no vapor, e tendo mais tempo livre, Kaloust espreitou as bancadas dos vendedores gregos. Foi nessa altura que vislumbrou sobre uma delas uma coluna de moedas escuras. A curiosidade espicaçada, decidiu ir espreitar. Pegou numa das moedas e percebeu que se tratava de dez kurus que já estavam fora de circulação.
Onde é que vocês arranjaram isto?, perguntou, intrigado.
O vendedor grego, moço magro a entrar na adolescência, apontou para o braço líquido do Bósforo.
Ali.
Kaloust olhou naquela direcção, sem perceber. Estaria o grego a referir-se ao casario de Constantinopla, do outro lado do canal?
Ali, onde? No bazar?
O vendedor riu-se.
Isso, o bazar do mar, devolveu com ironia. No fundo da água, onde é que havia de ser? Desde que o tempo aqueceu, eu e os meus amigos damos uns mergulhos e pomo-nos à cata-de moedas lá em baixo. Parece que há gente que, ao longo dos séculos, andou a deitar dinheiro ao mar. Aquilo é uma mina, não sabias?
A informação atingiu o jovem arménio com a força de uma epifania. Pois é!, pensou; há moedas no fundo do mar! Lembrou-se então de ter lido num livro escolar do Robert College que, quando os Turcos conquistaram Constantinopla os bizantinos cristãos que se encontra vam cercados em Stamboul deitaram à água todo o dinheiro e ouro, para que o inimigo não se apropriasse das riquezas dos vencidos. O fundo do mar tornou-se de tal maneira reluzente que ainda hoje o canal que separa Stamboul de Pera era conhecido por Corno de Ouro, do ouro que cintilava no leito daquele pequeno trecho do mar de Mármara.
E se o tesouro dos bizantinos ainda estivesse espalhado por ali? Era verdade que a moeda de dez kurus fora cunhada pelos Otomanos, pelo que não poderia fazer parte do lote atirado para o Corno de Ouro. Mas, com tantas correntes a circular naquelas águas, o que impedia uma moeda bizantina de atravessar o Bósforo e ir depositar-se junto a Scutari? Se o vapor que o trazia da escola o fazia, porque não uma peça do tesouro?
Mostra-me as tuas moedas!, pediu, de repente excitado.
Quero vê-las todas.
O grego ficou um pouco surpreendido com a solicitação, mas foi buscar uma caixa de madeira e pousou-a no chão, ao lado da banca. Kaloust mergulhou as mãos no emaranhado de moedas de níquel, cobre e bronze e foi-as identificando. Uma após outra, apercebeu-se que se tratava de moedas otomanas, umas com centenas de anos, outras recentes.
A certa altura, porém, não conseguiu distinguir nenhuma das duas faces de uma moeda, tão suja ela se encontrava de lodo seco. Pela amostra das anteriores percebeu que, quanto mais difícil era retirar a sujidade de uma moeda, mais ela tendia a ser antiga. Ora aquela estava particularmente conspurcada, o que só podia significar que era mesmo muito velha. Tentou extrair o lodo com as unhas, mas a sujidade resistiu aos seus melhores esforços.
Dá cá!, disse o rapaz grego. Eu tenho um método infalível.
Kaloust entregou-lhe a moeda e um pequeno canivete apareceu nas mãos do vendedor. O rapaz grego pôs-se a lascar o lodo até uma parte da sujidade se soltar, libertando metade de uma face da moeda. O jovem arménio recuperou o exemplar e espreitou para a imagem e as letras nele esculpidas.
Um tetradracma de Mileto.
Ao aperceber-se do que tinha nas mãos, Kaloust sentiu o coração saltar-lhe no peito. Encontrara um tetradracma! Seria possível? Espreitou de novo a face descoberta da moeda e confirmou o que vira. Perturbado, fez uma pausa e respirou fundo. Depois, com o maior autodomínio de que foi capaz, encarou o seu interlocutor para encetar a negociação.
Quanto queres por isto?
O grego fixou-lhe os olhos, esforçando-se por avaliar o que ia na cabeça do cliente. Tinha-se apercebido do choque que o miúdo arménio não conseguira ocultar quando vira a face destapada da moeda e intuiu que ele seria capaz de pagar bem.
Vinte xelins.
Um esgar de decepção perpassou pelo rosto de Kaloust.
O preço era muito inferior ao custo da moeda, sabia; mas a verdade é que não dispunha de tanto dinheiro.
Estás maluco?, perguntou, fingindo-se melindrado. Isto vale ... um xelim.
Na verdade era quanto o grego estava inicialmente disposto a pedir por aquela velharia porca e enferrujada. Mas, considerando a reacção que pressentira segundos antes no cliente, convencera-se de que poderia arrancar-lhe mais.
Quinze.
Dois.
Dez.
Três.
O grego hesitou. Se fosse uma hora antes, três xelins seria muito mais do que alguma vez imaginara obter por aquele pedaço envelhecido de metal. Deveria contentar-se com tal valor? Dez xelins, sentenciou, arriscando tudo por tudo. Não desço abaixo disso. Esta moeda vale mais.
Era verdade, sabia Kaloust. Valia muito mais do que dez xelins. O problema é que não dispunha de tal quantia. Em desespero de causa, meteu a mão ao bolso e extraiu o medjdeh que o pai lhe havia oferecido; talvez a visão do dinheiro aguçasse a cupidez do vendedor.
Um medjdeh é o máximo que te posso dar, disse, esvaziando os bolsos para provar que eles estavam de facto vazios. Não tenho mais nada. Olhou para o tetradracma com um trejeito de desprezo, na esperança de assim o desvalorizar. Um medjdeh vale cinco xelins, é um bom preço por esse pedaço de ferrugem.
O grego ponderou a oferta. O cliente tinha realmente os bolsos vazios, por isso não ia subir o preço. Mais valia aceitar os cinco xelins, um valor muito acima do que alguma vez poderia esperar por semelhante velharia, do que ficar de mãos a abanar.
Negócio fechado.
Quando minutos mais tarde Kaloust entrou em casa, mal se conseguia conter de excitação. Violando as regras de decoro, que ditavam que só se deveria dirigir ao pai quando ele o questionasse, galgou os degraus das escadas de dois em dois e precipitou-se para o escritório.
Fiz um negócio!, anunciou numa voz entusiasmada.
Um grande negócio!
O pai dormitava sobre o sofá e despertou, alerta do pelo bulício. Ergueu a cabeça e olhou para a porta estremunhado, um olho ainda fechado e o outro entreaberto.
Que foi?, perguntou com voz de sono. Que se passa?
Constatando que tinha perturbado a sesta do pai e vendo-se directamente interpelado por ele, o rapaz conteve-se. Dominou enfim a excitação, baixou a cabeça e mostrou-se submisso.
Peço perdão, senhor, murmurou com docilidade. Fui eu que ... que fiz um negócio.
Vahan espreguiçou-se e endireitou-se no sofá.
Negócio? Que negócio?
O rapaz meteu a mão ao bolso e extraiu o tetradracma que acabara de adquirir no cais de Scutari.
Comprei esta moeda antiga. Vale muito dinheiro.
O pai levou um longo segundo a digerir a informação. Semicerrou os olhos tentando perceber o que o rapaz segurava na mão e fez-lhe sinal de que se aproximasse.
Mostra lá isso.
Kaloust entrou de pé leve no escritório e, deslizando sobre um enorme tapete persa, chegou-se ao pé do pai e estendeu-lhe a moeda. Vahan pegou nela e examinou-a de perto.
É um tetradracma de Mileto, senhor, esclareceu o filho.
Uma peça valiosa.
O pai analisou de perto a moeda e estudou o lodo seco que a sujava.
Quanto deste por isto?
Um medjdeh, senhor.
Qual medjdeh? O que te dei?
Sim, senhor.
O rosto arredondado de Vahan enrubesceu de irritação repentina.
Isto não é um tetradracma, imbecil, vociferou. Isto é um tretadracma! Devolveu-lhe a moeda com um gesto brusco e agastado. Então tu foste-me gastar o medjdeh que te dei numa ... numa porcaria destas? Não tens juízo nenhum? Não tens sentido de poupança? Deste cabo do dinheiro que ...
Aquele sermão era a última coisa que o rapaz esperava depois do negócio que havia feito. Como era possível que o pai não visse? Porque não se informava adequadamente antes de lhe ralhar de tal maneira? Não percebia que a moeda fazia parte do tesouro do Corno de Ouro e que valia uma verdadeira fortuna? te entreguei para comprar um pedaço de lixo? Olha que a vida não é um mar de rosas, ouviste? Lá porque tens comida e lençóis lavados não quer dizer que andes por aí a gastar ao desbarato o que a mim muito me custa ganhar! Tu tem tino, filho! Tem-me tino nessa cabeça!
Quando o pai deu a repreensão por concluída, aconselhando-o vivamente a ter juízo na tola e a respeitar o dinheiro que muito custa a ganhar, Kaloust recolheu ao quarto e, atirando-se para a cama com abandono, fez a única coisa que podia para se libertar daquele nó que o estrangulava como o mais cruel dos laços.
Chorou.
A limpeza do tetradracma, ou do tretadracma, como o pai lhe passou a chamar com corrosiva e impiedosa ironia, constituiu a prioridade de Kaloust nos dias que se seguiram. Depois de recorrer a soluções químicas que lhe foram aconselhadas pelo professor de Ciências do Robert College, conseguiu eliminar o lodo seco e a pátina incrustada na moeda, até a prata se tornar reluzente e a antiguidade adquirir uma segunda juventude.
Que maravilha!, murmurou, embeiçado pela moeda enquanto a contemplava à luz do Sol que lhe beijava a janela do quarto. Coisa mais linda não há!
Com a moeda a refulgir, passou à segunda parte do plano.
Na quinta-feira seguinte, e como era hábito, aproveitou as três horas de pausa por causa da actividade física para se escapar mais uma vez até Stamboul e visitar a loja de antiguidades do Grande Bazar.
O quê? Por aqui?, exclamou o velho turco quando o viu entrar no estabelecimento. Vai-te embora, giavour!
Consumo o meu tempo contigo e no fim desapareces sem fazer negócio! Vai-te e poupa-me!
Kaloust sorriu.
Desta vez vim fazer negócio.
O rosto do vendedor transformou-se por artes mágicas; da indignação teatral saiu um imenso sorriso.
Alá é grande!, disse, erguendo os braços e o rosto.
O Misericordioso apiedou-Se de mim e na Sua infinita generosidade, acedeu a premiar-me! Encarou o cliente e esfregou as mãos. Então, rapaz, o que propões?
Rapaz? Ainda há um instante eu era um giavour e agora já sou um rapaz?
Giavour é o infiel que nada me compra, esclareceu o turco, afagando as longas barbas brancas pontiagudas.
Rapaz és tu, que vens alegrar o dia deste velho e, pobre muçulmano! Fez um gesto para a bancada envidraçada, indicando-lhe que só tinha de escolher o que desejava. O que me queres então comprar?
Na verdade não lhe venho comprar nada, esclareceu Kaloust. Venho vender.
O sorriso apagou-se de imediato da cara do comerciante, que se contraiu numa expressão subitamente desconfiada; uma resposta daquelas não estava nas suas previsões.
Que queres dizer? Vens vender? Vender o quê?
Como num passe de mágica, uma moeda de prata, lisa e fulgente, materializou-se nas mãos do rapaz.
Um tetradracma de Mileto.
O velho turco abriu a boca de estupefacção. Pegou na moeda e, rodeando-a de mil cuidados, como se não estivesse a lidar com prata mas com cristal, foi à porta analisá-la à luz do dia com uma lupa. Grunhiu de forma quase imperceptível enquanto estudava o exemplar e, ao fim de um minuto, regressou para junto do cliente.
Lamento desiludir-te, disse com pesar. Isto não é um tetradracma de Mileto.
A informação surpreendeu o adolescente arménio.
Ai não? Então veja o que aqui está!, disse, indicando a figura de perfil numa face da moeda. É um tetradracma, não vê?
O comerciante abanou a cabeça.
Isso é o rosto de Aretusa, esclareceu. Foi esculpido por Kimon, um artista de Siracusa que deixou a sua inicial, K, disfarçada nos cabelos de Aretusa. Ora vês? Virou a moeda e exibiu a outra face, que mostrava quatro cavalos a puxar um veículo de rodas. E isto é uma quadriga com a coroa de Nike, a deusa da vitória. Devolveu-lhe a moeda com um gesto displicente. Não é, portanto, um tetradracma.
Kaloust ficou com a moeda na palma da mão, a decepção estampada no rosto.
A sério? Então o que é?
Um mero decadracma de Siracusa. Baixou a cabeça, como se detestasse ser portador de tão má notícia.
Lamento.
O jovem deu voltas à moeda na mão, mal acreditando na sua pouca sorte. Julgara ter encontrado um tetradracma e afinal dera com um simples decadracma! Oh, como pudera ter sido tão ingénuo! O pai é que tinha razão, ele é que sabia! Se ao menos lhe tivesse dado ouvidos ...
Quer dizer que ... que não vale nada?
Não me entendas mal, corrigiu o turco. É uma moeda de prata, sem dúvida nenhuma. Por isso vale pelo menos pela prata que contém. Isso é seguro.
O sorriso, embora ainda ténue, voltou ao rosto do cliente; afinal aquela velharia sempre tinha algum valor! Podia não ser o tesouro do Corno de Ouro, mas alguma coisa ganharia com aquilo! A esperança renasceu-lhe pois no coração.
Quanto?
O velho coçou o nariz enquanto ponderava o caso.
Dez xelins.
O valor fez Kaloust estreitar os olhos.
Não sabia que a prata estava tão barata ...
O comerciante não conseguiu reprimir o vestígio de um sorriso que lhe aflorou aos lábios finos. Sim, talvez tenhas razão, admitiu. Vá lá, vinte xelins.
O estudante reflectiu na oferta. Vinte xelins era quatro vezes mais do que pagara por aquela velharia. Gastara um medjdeh e iria ganhar quatro. O pai ficaria embasbacado com a negociata! Sentiu-se tentado a aceitar, mas lançou um olhar de esguelha para o tetradracma que o comerciante. tinha à venda na loja e desconfiou. Se a moeda ali exposta valia oito libras de ouro, por que razão um decadracma valeria apenas vinte xelins? Era verdade que a moeda da loja viera de Mileto, enquanto a sua era de Sicacusa. Mas, que diabo!, tão grande podia ser a diferença entre duas moedas de tal modo semelhantes?
Não vendo por menos de ... duas libras de ouro!
O valor que Kaloust lançou para a mesa deixou o velho turco atónito.
Duas libras de ouro!?, exclamou o comerciante. Parecia que os olhos lhe iam saltar das órbitas. Não pode ser! Impossível! Essa velharia não vale isso! Nem pensar!
É pegar ou largar.
Então largo!, retorquiu o homem sem hesitar. Nem me passaria pela cabeça dar semelhante fortuna por uma porcaria dessas! Onde já se viu pedir duas libras de ouro por um mero decadracma? Deves pensar que eu sou o Banco Otomano!
O jovem arménio vacilou. Tinha ido longe de mais. Deveria ceder ou manter a sua? O facto é que, se saísse dali sem concretizar a venda, perderia uma boa oportunidade de multiplicar o medjdeh que investira. A mente ordenava-lhe que recuasse, o coração não. Aquela moeda de prata podia não ser muito valiosa, mas era bela e isso bastava-lhe.
Muito bem, decidiu, voltando-se para a porta enquanto guardava a moeda no bolso. Então adeus!
Quando já ia a meio da rua sentiu um vulto atrás dele e virou-se para ver o que era. Tratava-se do velho comerciante turco, que viera no seu encalço.
Ah, rapaz!, exclamou o homem, ofegante. Tu és dos difíceis! Dou-te cinquenta xelins.
Kaloust ergueu o indicador.
Uma libra de ouro, sentenciou. E não baixo mais!
Isso é muito dinheiro!, protestou o comerciante. Achas que sou o sultão ou quê? Um decadracma não é um tetradracma! Tens de ser razoável!
Uma libra de ouro.
O homem deitou a mão ao bolso.
Por Alá, deves estar louco!
É o meu preço.
O velho resmungou.
Abusas de um ancião!, refilou. Mas ... enfim, como gosto de ti vou aos sessenta xelins.
O arménio acenou com a mão.
Adeus!
Voltou-se para se afastar, mas ao segundo passo sentiu a mão do turco agarrá-lo pelo ombro.
Está bem, rapaz!, rendeu-se o comerciante com uma expressão de desânimo. Venceste! Anda comigo à loja que eu dou-te a tua maldita libra de ouro!
Uma libra de ouro!
Quem diria que ele, que tinha apenas doze anos, conseguiria arrancar uma fortuna daquelas a um experimentado comerciante do bazar? E tudo com um investimento de um mero medjdeh! Com uma moeda que valia cinco xelins
conseguira obter uma libra de ouro! Era ou não um grande negócio? Fizera o milagre da multiplicação do dinheiro! Ah, como o pai ficaria orgulhoso!
Nesse final de tarde, ao chegar a casa, a vontade de Kaloust era ir a correr exibir a libra de ouro que havia feito à custa da moeda antiga que o pai tanto desprezara. Mas conteve-se e seguiu a rotina habitual. Depois de arrumar as coisas no quarto, desceu para o salão e ficou a contemplar os veleiros e os vapores que percorriam o Bósforo.
Quando o pai entrou, pôs-se de pé na sua habitual pose de sentinela e esperou pelas ordens. Vamos jantar.
Sentou-se à mesa com os pais e aguardou que os criados os servissem. Vahan e Veron trocaram umas palavras entre eles sobre uma recepção que preparavam para esse domingo. Tratava-se de um problema de mero planeamento, uma vez que a execução seria entregue aos dois cozinheiros, aos três mordomos e à legião de criados que formigavam na mansão. Estava prevista a presença de diplomatas e importantes membros da comunidade arménia, muitos dos quais já tinham enviado mensagens a aceitar os convites, pelo que o evento requeria alguma atenção.
Vêm alguns turcos?, perguntou a mãe.
Vem Salim Bey e dois paxás.
Veron revirou os olhos.
Ai!, gemeu. Os maometanos são muito difíceis de encaixar! Deixam as mulheres no harém e acabamos por ter sempre mais homens do que senhoras, é uma maçada.
Paciência.
E os Berberian? Sabes se trazem os filhos?
Penso que não.
Ah, é pena!
Porquê?
Veron lançou uma olhadela na direcção de Kaloust. O rapaz, como se esperava de uma criança bem-educada, mantinha o mutismo e limitava-se a comer o que havia no prato.
A filha seria um belo partido.
O pai soltou uma gargalhada.
A lista de pretendentes de Nunuphar é interminável, mulher!, exclamou. Além do mais, diz-se que está já prometida a um primo qualquer. Acho que não vamos ter sorte nenhuma ...
A conversa prolongou-se em tom morno e só no final do almoço, quando os empregados trouxeram as baclavas da sobremesa, é que Vahan se dirigiu ao filho.
Então as aulas?
Correu tudo bem senhor, respondeu Kaloust. Tive Francês logo pela manhã e depois vieram as três horas de actividade física. Só que desta vez não fui estudar para a biblioteca.
Esta revelação surpreendeu os pais, que o encararam com uma expressão intrigada.
Não?, admirou-se Vahan. Então o que foste fazer esse tempo todo?
Fui ao Grande Bazar.
A novidade foi acolhida com absoluta estupefacção.
O quê?
Os pais pararam de comer e fixaram os olhos escandalizados no filho, o pasmo absoluto estampado nas faces, e Kaloust, antecipando-se à tempestade que via aproximar-se nas expressões atónitas que sobre ele caíam, meteu apressadamente a mão por baixo da mesa e esquadrinhou o bolso das calças.
Lembra-se, senhor, de ter usado aquele medjdeh que me deu para comprar uma moeda antiga?, perguntou. Tirou a mão de baixo da mesa e expôs uma moeda dourada. Deram me isto por aquela velharia miserável.
Tu ... tu foste para o bazar?, exaltou-se o pai, ignorando a moeda. Estás louco? Tens a noção do perigo que se corre nas ruas de Constantinopla? Sabes que elas andam infestadas de refugiados raivosos?
Eu sei evitá-los, senhor.
Como é que sabes evitá-los? Aquilo é gente que andou a degolar cristãos, rapaz! Aquilo é gente sem piedade! Aquilo é ...
O filho colocou-lhe a moeda diante dos olhos.
Olhe.
O pai inclinou-se para a frente e estreitou os olhos, esforçando-se por perceber que moeda era aquela que o rapaz lhe mostrava.
O que é isso?
Ah, como era glorioso esse momento, pensou Kaloust, mal contendo a excitação que quase o fazia dar pulos na cadeira. Agora é que o ia deixar siderado.
É uma libra de ouro.
A proeza do rapaz, sobretudo levando em conta a sua tenra idade, deixou o pai compreensivelmente orgulhoso.
Afinal não é todos os dias que um medjdeh se transforma numa libra de ouro!, vangloriou-se Vahan junto dos convidados para a recepção do domingo seguinte, a quem contou a história com pormenores apimentados. Este miúdo vai longe! E logo acrescentou. E tem-nos no sítio, hem? Aventurou-se pelas ruas para fazer negócio!
Era um grande progresso, em particular porque na altura do investimento dos cinco xelins Kaloust ficara com a reputação de esbanjador e fedelho mimado. Fruiu, por isso, a glória do momento e o orgulho que a sua proeza financeira havia suscitado na família. Era ou não um grande negociante? O prazer do negócio bem realizado entranhou-se-lhe na pele; ou talvez, quem sabe, fosse simplesmente a sua natureza e a transacção do decadracma tivesse servido apenas para trazer à superfície o gosto inato pelo investimento lucrativo.
O facto é que passou a esgravatar as caixas com moedas que os rapazes gregos tinham à venda no cais de Scutari, embora sem voltar a encontrar nada de tanto valor. Mas não era isso que o deteria, decidiu. Se havia coisa que percebera é que o mundo estava cheio de grandes negócios à espera de serem concretizados. Precisava apenas de ter olho para eles.
E arte para os cultivar e fazer florescer.
Pôs-se à cata de novas oportunidades e como era, bom de ver, depressa percebeu que os tapetes, ofício antigo do pai, tinham muito potencial. Passou por isso a estudar estas peças com atenção, tentando compreender quais as que eram verdadeiramente valiosas e porquê. Em conversa com o pai sobre esse tema, descobriu, com alguma surpresa, que os exemplares usados possuíam mais valor do que os novos, o que à primeira vista contrariava toda a lógica. Os tapetes são como um bom Bordeaux, explicou-lhe Vahan, agarrado a um copo de tinto francês. Quanto mais velhos melhor. No caso dos tapetes, atingem o máximo do seu valor ao fim de oito anos a serem usados. É o uso que lhes confere a souplesse, a suavidade perfeita, e é ele que permite fundir harmoniosamente as cores dos seus padrões.
Não era só o negócio que o motivava, descobriu Kaloust. Tratava-se também do gosto pela harmonia, pela estética das coisas. Pela arte. Ah, a arte! E o ideal, o que seria mesmo um sonho, era conciliar essas duas facetas da sua natureza. Arte e negócio. Fazer da arte um negócio e do negócio uma arte. Era isso o que verdadeiramente almejava! Seria artista à altura de tão grande ambição?
A bem sucedida transacção da moeda direccionou o jovem arménio para o trilho que intuía ser o seu. Continuou, por isso, a fazer das quintas-feiras o dia de passeio pelo Grande Bazar, agora com o beneplácito dos pais, que encarregaram o kahveci de acompanhar o menino e protege lo das hordas de refugiados que haviam escapado aos massacres na Bulgária e se tinham tornado mendigos por vezes perigosos. No Grande Bazar, porém, a segurança era absoluta e o seu jovem cliente fez da rua dos tapetes um poiso habitual, dado o seu interesse crescente por aquela arte de grandes tradições no Oriente, mas manteve um olho na numismática.
Durante algum tempo evitou passar pela loja onde vendera o seu decadracma de Siracusa, por experimentar uma inexplicável frustração. Percebeu que sentia uma certa dificuldade em desfazer-se de belas obras de arte, mesmo que por um bom negócio, a menos que conseguisse algo de melhor em troca. Mas melhor do que uma moeda que valera uma libra de ouro era difícil de encontrar.
Ao fim de um mês venceu a inibição e decidiu visitar o estabelecimento de numismática na rua dos ourives.
O velho turco recebeu-o à porta com um enorme sorriso e ofereceulhe até um café, desfazendo-se em gestos de amabilidade; nunca o estudante lhe havia visto tantas gentilezas. Meu rapaz, não voltaste a descobrir mais nenhuma moeda como a que me vendeste?, perguntou ao fim da conversa preliminar. Se descobrires, já sabes onde encontrar-me.
Na verdade não fora ali numa mera visita de cortesia.
Kaloust tinha saudades do decadracma de que se desfizera e queria contemplá-lo mais uma vez. Mas não tencionava dar parte de fraco, pelo que não mencionou o assunto e limitou-se a pedir licença para apreciar de novo todas as peças da loja. Admirou os exemplares um a um, com vagar, como se a mais insignificante das moedas que analisava fosse uma jóia sem igual, até que chegou à posição da estante envidraçada onde se encontravam expostas as valiosas moedas de prata grega. Lá estava o tetradracma de Mileto, agora com o preço rabiscado em baixo, dez libras de ouro. Ao lado, em posição igualmente preeminente, destacava-se o decadracma de Siracusa com o preço também assinalado em baixo.
Vinte libras de ouro.
Kaloust imobilizou-se bruscamente, a mente a recusar-se a aceitar o que os olhos lhe diziam. Não, não eram vinte libras de ouro, eram duas. Foi pelo menos isso o que disse a si mesmo no diálogo interior que estabeleceu naquele instante. Havia visto um zero que não estava ali. Nem podia estar. Por isso fechou os olhos e abriu-os de novo, seguro de que a ilusão de óptica já não se produziria.
Vinte.
O diabo do zero mantinha-se no seu lugar. Um dois e um zero. Não havia dúvidas. Vinte. O que ali estava escrito era mesmo um vinte. Atónito, o rapaz virou-se e encarou o comerciante com uma expressão interrogativa.
Vinte libras de ouro?
O velho turco sorria-lhe com amabilidade, embora o olhar fatigado deixasse escapar o que parecia uma sombra de malícia. Não foi nada contra ti, rapaz, disse. Tratou-se apenas de um bom negócio. Um excelente negócio, aliás. Apontou para a moeda. O decadracma de Siracusa foi cunhado para celebrar a vitória de Siracusa sobre Atenas na Guerra do Peloponeso. Sabes que idade tem essa moeda? Quase dois mil e quinhentos anos!-vale o dobro do tetradracma de Mileto! Ah, foi um excelente negócio!
Sem dizer uma palavra, o rosto em combustão de fúria, Kaloust girou nos calcanhares e saiu porta fora. Na verdade sabia que não se podia queixar. Não ludibriara ele próprio o grego que encontrara a moeda no fundo do mar? O trapaceiro acabara por ser trapaceado, e isso permitiu-lhe perceber que era mais fácil dar o golpe do que ser vítima dele.
Mas a lição mais importante não foi essa. O que o episódio o fez sobretudo compreender foi que nos negócios, como aliás em tudo na vida, era fundamental saber antes de fazer. Ele sabia algo que o grego não sabia, e foi isso que lhe deu oportunidade de concretizar um bom negócio. Já o velho turco tinha conhecimento de uma coisa que ele próprio desconhecia, e foi esse simples facto que lhe fez perder um negócio ainda maior. Na verdade, tomou consciência com incontida amargura, saber era poder.
Ocidente
Ninguém vale mais
que as suas ambições.
Marco Aurélio
A luz desmaiada do entardecer pintava o casario escarpado de Marselha de tonalidades amarelo-torradas, os edifícios reflectidos com sincopada simetria pelo espelho líquido do Mediterrâneo, o brilho do Sol que se deitava sobre o mar a cintilar numa miríade nervosa de luzinhas, como um corredor de faíscas que se acendiam e apagavam na crista da ondulação suave.
Kaloust Sarkisian apoiou os cotovelos no varandim e comtemplou a cidade enquanto o navio deslizava com brandura para a entrada do Vieux Port. O viajante sentia-se fascinado com o espectáculo que crescia à medida que se aproximava de terra, e sobretudo perante a visão de Notre Dame de la Garde a coroar a urbe como um farol que tudo dominava. Era a primeira vez que abandonara o Império Otomano e chegava a terras onde os cristãos eram senhores; como parecia diferente uma cidade onde as torres não eram minaretes, mas campanários.
O jovem de quinze anos havia partido dias antes de Constantinopla, seguindo indicações do pai para completar os estudos no Ocidente. A passagem pelo Robert College constituíra um sucesso, mas Kaloust manifestava ainda algumas dificuldades em expressar-se em francês e em inglês. Se Vahan queria que o filho dominasse aquelas línguas na perfeição para melhor singrar na vida, que sítio mais adequado para as aprender que nas terras de onde elas eram originárias?
Monsieur Sarkisian?, perguntou um homem de cartola no cais no Vieux Port quando o passageiro desembarcou. Seja bem-vindo a França!, saudou o desconhecido, tirando a cartola e estendendo-lhe a mão. Sou Pierre Marchand, o contacto do Banco Imperial Otomano aqui em Marselha. A sua bagagem?
Kaloust indicou com o polegar os carregadores que o seguiam, dois paquetes da tripulação que transportavam três malas, duas delas de grandes dimensões. O recém-chegado foi conduzido por Marchand ao fiacre e, depois de arrumarem a bagagem, abandonaram o Vieux Port e seguiram ao longo da animada La Canebière até um apartamento no bairro de Reformes.
O fiacre deteve-se numa ruela tranquila e os viajantes apearam-se. Obedecendo a um gesto do francês, o jovem arménio cruzou a porta entreaberta de um edifício e foi guiado até um apartamento no rés-do-chão. Ao entrar apercebeu-se de que as instalações eram pequenas, pelo menos comparadas com as casas onde vivera em Trebizonda e Scutari, mas o edifício francês exalava um encanto especial.
É aqui que vou ficar alojado?
Espero que seja do seu agrado, confirmou o anfitrião.
Aluguei este hôtel particulier segundo as instruções do nosso agente comercial em Constantinopla, com quem o senhor seu pai falou. Pediram-me um apartamento com um te ne sais quoi de charme e ... voilà!
Kaloust mordeu o lábio, sem saber se odiava ou adorava.
Hmm ... não está mal.
Marchand bateu palmas.
Ah, bravo! Eu sabia que ia gostar! É mignon, não? Espreitou na direcção da cozinha, onde se vislumbrou a passagem de um vulto fugidio. Madame Dinant?! Mademoiselle Duprés?!
Qui?, responderam duas vozes femininas num coro desafinado.
Acompanhando o olhar do anfitrião, o recém-chegado voltou-se na mesma direcção e avistou à porta da cozinha, recortadas pela luz de uma janela interior, duas silhuetas de fêmeas. Os contornos aproximaram-se da entrada onde os dois homens se encontravam, revelando uma matrona de avental e face tosada e uma rapariga de vestido azul, os cabelos castanhos aos canudos e grandes olhos verde-garrafa. A matrona era uma quarentona forte, decerto francesa do campo, mas a atenção de Kaloust centrou-se na jovem. Tinha um rosto fresco, nem bonita nem feia, e aparentava uns dezoito anos.
Marchand apresentou-os, Kaloust tirou o fez encarnado e disse bonsoir madame, bonsoir mademoiselle, e elas responderam com uma pequena vénia, dobrando um tudo-nada os joelhos, reacção à qual a rapariga acrescentou um sorriso tímido.
Madame Dinant está encarregada de organizar o serviço, explicou o francês, indicando a matrona de rosto apimentado. Será ela que limpará o apartamento, lavará a roupa, fará as compras e tratará das refeições. Voltou-se para a rapariga. Mademoiselle Duprés ficará responsável pela sua educação. Dar-lhe-á lições sobre a história e a literatura de França e ajudá-lo-á a desenvolver o seu francês, que julgo ser o desiderato último da sua visita. Fez uma pausa, como se tivesse esgotado o que tinha para dizer. Da minha parte, creio que é tudo. Há alguma coisa em que lhe possa ser útil? Que me lembre, não.
Com o gesto profissional de quem valorizava o tempo, o anfitrião estendeu-lhe um pequeno papel.
Este é o meu contacto, disse. Acto contínuo, ajeitou a cartola na cabeça e preparou-se para sair. Tenho escritório ao lado do Café Radieuse, mesmo aqui ao pé. Estendeu-lhe a mão. Se precisar dos meus serviços, já sabe onde encontrar-me. Estou ao seu dispor, monsieur.
Com um toque na cartola a assinalar a despedida, Marchand abalou do apartamento e deixou o jovem arménio a sós com as duas mulheres. Como cristão, e em contraste com os turcos muçulmanos, Kaloust estava habituado à convivência com o sexo oposto. Porém, era a primeira vez que se via fechado numa casa com duas mulheres estranhas e sem nenhum homem por perto; isso constituía coisa impensável na terra de onde viera, em particular no que dizia respeito a um jovem acabado de entrar na puberdade e que despertava para certas realidades da vida. Todavia, chegara a França e aqui os costumes gozavam pelos vistos de outras liberdades.
Teria de encarar tudo com normalidade.
Foi o que fez.
Terão as senhoras a fineza de me indicar os meus aposentos?
Embora a educação fosse tradicionalmente encarada como uma actividade árdua, Kaloust sempre lidou com ela quase como se não passasse de entretenimento. Contudo, Marselha levou esse conceito lúdico da aprendizagem talvez um pouco para além dos limites do razoável e, se em algo a estada naquela desconcertante cidade se revelou educativa, foi na exploração dos sentidos até à plenitude.
A comida de madame Dinant apresentava um requinte surpreendente. O jovem pensava que a subtileza era uma arte oriental, mas ver a cozinheira francesa manipular com mão de mestre os molhos de natas e os champignons e tudo o mais revelou-se um inesperado e verdadeiro regalo. Sobretudo para o paladar. E os encantos da gastronomia local, percebeu o arménio de imediato, não se limitavam à agradável cozinha doméstica. Bastava uma visita a um dos muitos botequins da cidade para descobrir a cada canto verdadeiros tesouros da arte culinária.
Depois havia as aulas com mademoiselle Duprés, elas próprias fontes de uma prazer inesgotável. A rapariga aparecia-lhe sempre agradavelmente vestida e perfumada, a maquillage discreta e elegante, os modos de uma graciosidade sem limites, a voz enriqueci da por uma melodia e souplesse insuperáveis. Ou seja, tudo comme il faut, Depois do café com croissants e uma baguette quente, passavam as manhãs a rever noções de gramática ou, de preferência, a deleitarse com a literatura francesa, em particular os romances de Honoré de Balzac, Émile Zola, Alphonse Daudet, Stendhal e Gustve FIaubert , os contos de Guy Maupassant e a poesia de Charles Baudelaire, com especial atenção para os poderosos versos de Fleurs du mal, que ela declamava na sua voz doce em tons encharcados de melancolia langorosa.
Ó toison, moutonnant jusque sur l'encolure!
Ó boucles! Ó parfum chargé de nonchaloir!
Extase! Pour peupler ce soir l'alcôve obscure
Des souvenirs dormant dans cette chevelure,
Je la veux agiter dans l'air comme un mouchoir!
Pronunciava as palavras como se as saboreasse, explorando a doçura de cada sílaba, os olhos cerrados, o peito palpitante e o corpo delgado a deixar-se embalar pelo ritmo nostálgico daquelas linhas encantadoras. Quando a via assim, mergulhada no mais profundo dos êxtases poéticos, Kaloust sentia o ventre reagir, como se a fogosidade da declamação encerrasse um apelo, talvez mesmo uma insinuação lúbrica, e tinha de fazer um esforço para não lhe calar os lábios com um beijo impetuoso.
Apesar ao erotismo que ela punha na recitação, gradualmente tornou-se claro que encarava a tarefa com supremo profissionalismo e rigor. Isso não impedia que a jovem tutora vibrasse com certas leituras, em especial as das obras mais populares de Eugène Sue e Alexandre Dumas. O seu entusiasmo por estes autores revelou-se tão grande que uma manhã arrastou o instruendo até ao Vieux Port e meteu-o num barco de pesca com forte odor a peixe.
Onde vamos nós?, quis saber Kaloust, incomodado com o cheiro.
Quer literatura?, devolveu ela com um esgar dissimulado, exibindo um livro cuja capa o rapaz logo reconheceu. Vou levá-lo a conhecer o Conde de Monte Cristo.
O destino da viagem desenhava-se no horizonte e era o intrigante Château d'Ife, uma minúscula ilha situada uns dois quilómetros a sudoeste de Marselha que Dumas celebrizou no seu romance Le Comte de Monte Cristo, o mesmo que haviam lido na semana anterior e que ela acariciava nesse momento no seu regaço. Quando chegou ao Château d'Ife, Kaloust descobriu que a célebre ilha era de facto dominada por uma fortaleza quinhentista transformada em prisão, o lugar onde o herói ficcional do escritor havia sido encarcerado.
A preferência de mademoiselle Duprés pelos dois grandes folhetinistas, de resto, permitiu ao rapaz detectar nela o que lhe pareceu um traço peculiar de personalidade: um incurável romantismo. Era extraordinário como a respiração da sua tutora acelerava na leitura das cenas amorosas, descritas em tom exageradamente dramático, o que apresentava um desafio singular ao seu tímido aluno. Como poderia ele conciliar a fraqueza da francesa pelos temas do coração com o ardor que lhe incendiava o ventre durante as lições?
Essa resposta os livros não davam.
Se as páginas não continham solução para os novos desafios da vida, Kaloust apercebeu-se que poderia desvendar esse mistério nas ruas de Marselha. Ou, mais exactamente, em certas senhoras que frequentavam as cercanias do movimentado boulevard que constituía o coração onde a cidade palpitava, a La Canebière, Essas mulheres usavam saias garridas até aos joelhos, deixavam os ombros a descoberto, por vezes permitindo mesmo que lhes vissem o rego dos seios, e os seus rostos fortemente maquilhados enchiam-se de sorrisos e esgares e convites a que o jovem estrangeiro não se sentia inteiramente indiferente.
Via-as todas as noites quando regressava do seu passeio ou constitucional, como o pai lhe chamava e ele repetia, e se encaminhava para casa. Reagiu sempre com fingida soberba, até porque já ouvira dizer a alguém que as donzelas de encantos fáceis albergavam nas entranhas doenças impronunciáveis. A curiosidade, porém, era uma formiga que laboriosamente lhe roía a vontade e o rodeava de tentações. Como permanecer alheio àquela provocação de fêmeas? Ao fim de algum tempo ganhou coragem e arranjou maneira de introduzir o tema nas suas conversas com mademoiselle Duprés. A ocasião propícia surgiu numa manhã de sexta-feira, quando faziam uma leitura em conjunto de Les mysteres de Paris, o folhetim de Sue cuja acção, repleta de pormenores melodramáticos de verosimilhança duvidosa, decorria em torno do proletariado parisiense. Uma passagem do romance mencionava uma senhora que vendia na rua os seus encantos e, deparando-se ali com a sua oportunidade, Kaloust aproveitou de imediato a deixa. É uma coisa curiosa, esta história das mulheres fáceis, observou com a expressão mais casual de que foi capaz.
Sabe, mademoiselle, lá em Constantinopla não é assim.
A tutora interrompeu a leitura e levantou os olhos do livro.
Não há senhoras de vício em Constantinopla?
Decerto haverá, concedeu o jovem arménio. Mas não se exibem assim despudoradamente na rua. É tudo ... como direi?, mais discreto. Mas aqui ... olhe, já viu como é ali perto da La Canebiere? Estão por toda a parte! E se por acaso passamos por perto interpelam-nos! Lançam-nos beijos! Fazem insinuações! Oh, ainda ontem à noite isso me aconteceu, veja lá ... Mademoiselle Duprés soltou um risinho discreto.
Isso incomoda -o?
Um pouco ... disse, simulando pudor. Calou-se, como se hesitasse. Não queria dar a impressão de menino da mamã, claro. Quer dizer, tenho uma certa curiosidade, confesso.
Curiosidade? Curiosidade de quê?
De ... de saber como é.
A rapariga olhou-o com uma expressão difícil de ler, como se ponderasse uma ideia.
Nunca esteve com uma mulher?
Kaloust sentiu um rubor de embaraço inchar-lhe a face.
Tinha provocado a conversa sem saber exactamente onde queria chegar e onde ela iria dar, mas jamais esperara tamanho atrevimento da parte da sua tutora.
Não, admitiu num fio de voz.
Ela fez uma nova pausa e perscrutou-o detidamente, como se o avaliasse.
E gostaria de experimentar?
O rapaz tentou responder, mas teve dificuldade em falar e só com algum esforço conseguiu emitir um som vagamente parecido com a palavra que constituía a sua réplica.
Sim.
Mademoiselle Duprés carregou as sobrancelhas finas e mordeu o lábio inferior. Dava a impressão de considerar o caso.
Depois pareceu decidir-se. Ergueu o braço e, devagar, passou a mão pelos cabelos pretos e lisos do seu instruendo, penteando-o com os dedos num gesto que mais parecia uma carícia.
O meu salário é apertado e os tempos são difíceis, disse com a mesma doçura com que declamava os poemas de Baudelaire. Mas, com uma melhoria significativa da minha retribuição, decerto poderei incluir nos meus serviços outras matérias educativas que ... digamos, tornariam redundante a necessidade de recorrer a essas senhoras de baixa condição e saúde questionável para obter instrução complementar sobre a natureza e a vida.
A proposta deixou Kaloust momentaneamente chocado. Permaneceu um longo momento a fitá-la, com a intensidade de quem procura perceber o outro, e ela susteve-lhe o olhar. Tinha-a lido mal, compreendeu. Ao contrário do que pensava, mademoiselle Duprés não era uma romântica incurável; tratava-se antes uma sonsa debochada. Ou seja, exactamente aquilo de que ele precisava.
Essa melhoria salarial..., disse numa voz rouca. Estamos a falar de quanto?
Ando a reunir um pé-de-meia para ver se arranjo maneira de ir estudar Literatura para a Sorbonne, explicou ela no mesmo registo tranquilo com que lhe fizera a proposta.
Tenho em mente um acrescento aos meus honorários de ... digamos, quarenta por cento. Fez um movimento convicto com a cabeça. Isso, quarenta por cento! Parece-me que seria o valor adequado.
Trinta.
Ela retirou a mão, como se aquele simples gesto fosse uma punição, e encolheu o nariz numa careta.
Um gentilhomme não regateia com uma senhora, sentenciou em tom de repreensão. Um aumento de quarenta por cento é, creio eu, a retribuição justa para um caso como este. Repare, irá aprender tudo o que há para aprender de uma menina com os meus conhecimentos e pedigree, na mais absoluta discrição e higiene. Pestanejou, sedutora. Então? Temos acordo?
A vontade de negociar era, em Kaloust, um instinto. O facto, todavia, é que em causa não estava a simples posse de um decadracma, mesmo que de prata de Siracusa, mas uma francesa de carne e osso que se disponibilizava em condições que lhe pareceram tão interessantes quanto inesperadas. O momento, pois, não se dispunha a negociações despropositadas, até porque a mensalidade que o pai lhe remetia deixava margem para os gastos adicionais na sua educação de cavalheiro.
Quarenta por cento, então.
Com efeitos a partir de quando?
O despertar do ventre, incandescente naquele instante, tornava a aprendizagem urgente, e esse simples facto ditou a resposta.
Hoje ... agora.
O rosto da rapariga abriu-se num sorriso. Voltou a acariciar-lhe o cabelo enquanto escorria a língua molhada provocatoriamente entre os lábios, como se o tentasse, mas depressa recolheu a mão. O gesto não tinha passado de um aperitivo.
Esta tarde saio à hora habitual, sussurrou com doçura insinuante. Depois do jantar, quando madame Dinant sair, ponha o candeeiro à janela a indicar que o caminho está livre. Piscou o olho verde com malícia. Passarei por cá nessa altura e, quando vir a luz do candeeiro, virei bater-lhe à porta para lhe dar a primeira lição.
A pose lasciva de fêmea com cio desapareceu nesse mesmo instante, dando de novo lugar à tutora profissional. Mademoiselle Duprés voltou a atenção para Les mystéres de Paris, como se o verdadeiro mistério fosse o que se revelava a cada página do folhetim de Sue, não nas desconcertantes voltas que a vida por vezes dava.
As novas lições de mademoiselle Duprés tornaram consideravelmente mais agradável a estada de Kaloust em Marselha, introduzindo um elemento excitante na sua rotina diária. Além das aulas de francês durante as manhãs e do constitucional à tarde normalmente ao longo da La Canebiere o jovem arménio passou a fruir de serões muito apimentados, com a tutora a mostrar-lhe como dar melhor resposta a algumas das mais misteriosas necessidades do corpo humano.
As coisas correram tão bem que o instruendo começou a convidar a instrutora para agradáveis passeios pela região.
Na ocasião mais notável, Kaloust alugou um barco no Vieux Port e, fazendo-se ao mar com um pescador, levou-a um fim-de-semana a passear pela Camargue. Depois de o pequeno barco deambular junto aos pântanos da região, deixaram o pescador em Les-Maries-de-la-Mer, uma igreja fortificada da costa mediterrânica que a tradição dizia ser o ponto de desembarque de Maria Madalena quando saiu da Palestina, e foram praticar a matéria das aulas nocturnas a meio de uma lagoa, ao ar livre, rodeados de flamingos e garças-reais,
Quando regressavam para recolher o pescador, Kaloust sentiu que não poderia haver vida mais perfeita. Com a brisa doce a sacudir-lhe o cabelo negro e salpicos salgados de água a molharem-lhe os lábios, olhou ara trás e, vendo a sua francesa de pálpebras cerradas na sofreguidão inebriante da paixão, gritou a plenos pulmões como se tivesse encontrado Deus naquele canto da Terra.
Vive la France!
Nada do que é bom, hélas!, dura para sempre. Foi precisamente o que o rapaz aprendeu quando uma manhã, meses mais tarde, no momento em que decorria mais uma lição de francês com a sua tutora, ouviu bater à porta e madame Dinant, que tinha largado os tachos para ir ver quem era, lhe apareceu na sala.
É monsieur Marchand, anunciou enquanto secava as mãos gorduchas no avental. Deseja falar consigo.
Kaloust interrompeu a lição, que decorria nessa altura com a leitura de outro folhetim de Sue, e acolheu com um chá o representante em Marselha do Banco Imperial Otomano.
Depois de trocarem cortesias e de Pierre Marchand inquirir sobre a saúde e o sucesso da estada do seu interlocutor, o visitante tirou um envelope do bolso interior do casaco e estendeu-o.
Recebemos agora de Constantinopla um telegrama endereçado a si, anunciou. Creio ser do senhor seu pai.
Com súbito nervosismo, Kaloust pegou no envelope e rasgou-o pela borda. Em geral os telegramas não anunciavam boas notícias, pelo que lançou um olhar preocupado na direcção de Marchand. O visitante, porém, manteve um semblante impenetrável, não deixando perceber se conhecia ou não o teor do texto, embora parecesse natural que o tivesse já lido, uma vez que o recebera nos seus escritórios.
Fechando também o rosto, de modo a blindar as emoções, o jovem desdobrou o papel e mergulhou por fim no seu conteúdo. Uma palidez fugaz foi a sua única reacção visível, discreta mas suficiente para inquietar mademoiselle Duprés.
Alguma coisa grave?
Kaloust levantou os olhos para ela, quase já com nostalgia, e baixou-os de novo para o telegrama. Virou a folha e exibiu o texto à sua tutora.
EDUCACAO FRANCESA TERMINOU STOP PARTES
IMEDIATAMENTE LONDRES STOP MARCADO
EXAME ACESSO KINGS COLLEGE STOP PAI
Ao ler esta mensagem, a francesa ocultou a sua reacção e nada comentou. Monsieur Marchand, como era timbre dos profissionais atarefados, indicou ao seu cliente que começaria de imediato a tratar dos preparativos logísticos, incluindo a aquisição de um bilhete para o primeiro paquete com destino às Ilhas Britânicas, e em cinco minutos já estava de regresso à rua e a caminho do escritório.
Quando ficaram a sós, um longo silêncio abateu-se entre Kaloust e mademoiselle Duprés.
É tudo tão repentino, murmurou ela, quase num queixume. Pensei que ficaria mais tempo aqui em Marselha ...
Era esse o plano.
Então como se explicam estas ordens de partir? Porquê Londres? Porquê agora?
O jovem arménio desceu o olhar para o telegrama que mantinha ainda entre os dedos, como se não soubesse o que fazer com ele. Respirou fundo, angustiado por saber que a boa vida estava prestes a terminar, e encarou enfim a sua tutora.
Ele deve ter sido informado.
Informado de quê?
Exalou um novo suspiro, este mais suave, como se estivesse já conformado. Tentou esboçar um sorriso, mas tudo o que lhe saiu foi um esgar de resignação.
Das nossas lições nocturnas.
O ar decadente do pequeno apartamento num primeiro andar de Baker Street deu a Kaloust uma indicação apropriada da amplitude do desagrado do pai em relação ao seu comporta mento em Marselha. A flat tinha um aspecto desconchavado, com o soalho esburacado e um desagradável cheiro a mofo a pairar na sala. A vizinhança parecia-lhe de condição social a condizer. Cruzou-se de resto com a vizinha do lado e sentiu as narinas agredidas por um fedor ácido decerto que havia semanas, ou mesmo meses, que o corpo da mulher não conhecia uma lavagem.
Sobre um velho aparador junto à janela do quarto, o recém-chegado viu uma carta. Aproximou-se e constatou que o envelope, pousado sobre uma espessa camada de pó, tinha o seu nome garatujado com a letra do pai. Desta vez não tivera direito a recepção na cidade por parte do representante de um banco, apenas uma carta com instruções. Tornava-se claro que teria de improvisar.
Abriu o sobrescrito e leu a curta mensagem de Vahan a dar-lhe indicações sobre onde poderia levantar o dinheiro da sua mensalidade, uma quantia suficiente para lhe garantir uma vida de conforto em Londres mas longe de permitir grandes voos, e dando-lhe o contacto de uma personalidade, que o texto descreveu como uma estrela em ascensão na política e nos negócios de Inglaterra, que o poderia orientar.
Seguindo as recomendações da carta, Kaloust deslocou-se na manhã seguinte a Whitehall, a zona dos edifícios governamentais junto ao Parlamento. Dirigiu-se ao Foreign Office e apresentou-se na recepção.
Mister Philip Blake, por favor.
Tem marcação?
Diga-lhe que é o senhor Sarkisian, de Constantinopla.
Mandaram-no subir ao primeiro andar e aguardar numa sala de espera. Sobre uma mesa havia exemplares do The Times e do The Daily Telegraph, e ainda dois números de Punch, um da Westminster Review e outro da The London Magazine, periódicos que folheou com interesse comedido. Os jornais e as revistas abordavam os mais diversos temas da actualidade, como seria de esperar, mas a curiosidade do jovem centrou-se no primeiro exemplar da Punch que dedilhou, por incluir vários desenhos satíricos do primeiro-ministro, o honorável William Gladstone. Era incrível como os Ingleses gozavam com o seu próprio chefe de governo! Uma coisa daquelas jamais seria possível no Império Otomano! No entanto, a crer pelo pouco que vira na capital britânica, a decadência parecia estar em Constantinopla, não em Londres ... Mister Sarkisian?, disse um funcionário, interrompendo a leitura. O senhor secretário vai recebê-lo.
O gabinete do secretário-adjunto para os Negócios Estrangeiros era um pequeno salão decorado a madeira de mogno envernizado, com vasos de flores em todos os cantos e uma grande fotografia da rainha Vitória atrás da secretária. Um homem louro de fraque, com aspecto grave e modos formais, recebeu o com um handshake vigoroso, mas curto, e um sorriso disfarçado pelo bigode dourado com as pontas cuidadosamente aparadas. Com um gesto rápido indicou ao visitante um sofá ao canto. Sou Philip Blake, apresentou-se, falando com um afectado sotaque upper class. By Jove, é um prazer conhecer o filho do eminente senhor Sarkisian!
O prazer é meu.
O jovem arménio tivera o cuidado de se informar previamente sobre Blake e a primeira coisa que o surpreendeu foi a idade. O seu interlocutor tinha trinta anos, embora o porte distinto permitisse atribuir-lhe uns quarenta. A sua ascensão prematura a cargo tão elevado explicava-se por bons contactos de família, mas também por uma natureza arguta, com olho clínico para fazer um bom negócio ou escalpelizar a mais complexa das situações políticas. O secretário-adjunto dos Negócios Estrangeiros formara-se com distinção em Oxford e tornara-se de facto uma estrela emergente em Whitehall e na City, onde encabeçava um dinâmico escritório de advogados. Tratava-se de um contacto que Kaloust de imediato percebeu ser de toda a conveniência cultivar.
A minha vida profissional levou-me, entre outros lugares, a Constantinopla, explicou Blake, afagando distraidamente o seu belo bigode louro. I say, tive na ocasião o grato prazer de conhecer o senhor seu pai e graças a ele fiz um excelente negócio que me rendeu um bom pé de-meia. Right ho! Acontece que mister Sarkisian me escreveu a informar-me da sua chegada aqui a Londres e a solicitar-me que o orientasse com a educação própria de um gentleman, o que tenho muito gosto em fazer dentro da minha limitada disponibilidade. Entregou um envelope ao visitante. Está aí uma carta de recomendação minha ao reitor do King's College, onde sei que é sua intenção matricular-se. Seria porventura curiosidade excessiva questioná-lo sobre o curso que tem em mente?
Engenharia. O meu pai acha que o futuro está na tecnologia e nas máquinas.
Ah, jolly good!, retorquiu o inglês em tom apreciativo.
Escolha judiciosa, indeed! Ergueu uma sobrancelha. O senhor seu pai ainda negoceia em querosene?
É o seu principal negócio.
Creio que o óleo mineral ainda vai dar muito que falar, old boy. Sabe, há para aí uns inventores que estão a desenvolver uma espécie de coches que não precisam de cavalos. Parece que são puxados por maquinaria.
Está a falar dos veículos a vapor? Mas já são bem conhecidos. O sistema Du Tremblay ...
Não estou a falar de vapor, dear fellow! O sistema Du Tremblay tem os dias contados, I'm afraid. Estou a referirme ao uso do óleo mineral como fonte de alimentação.
I say, um italiano apresentou há dois anos uma bicicleta movida com esse óleo. Mostrou grandes potencialidades. Inclinou-se para a frente, numa postura de quem fazia uma confidência. E o Foreign Office recebeu informações da nossa gente em Berlim a indicar que os Alemães vão produzir no próximo ano um coche movido a motor de combustão interna, recorrendo a um derivado do óleo mineral.
Isso funciona?
Right ho! Endireitou-se e de repente esboçou a expressão de quem acabou de ter uma ideia. I say, tem alguma disponibilidade financeira?
Kaloust ficou momentaneamente atrapalhado com o que lhe parecia uma mudança inesperada na direcção da conversa; não conseguia ver o propósito da pergunta, a qual aliás lhe parecia algo impertinente. Mas quem era ele para a questionar?
Sim ... acho eu. Porquê?
Teria interesse em investir no Royal Exchange?
Depende, devolveu com cautela. Não sou um jogador.
Para adquirir acções na bolsa teria de ter uma informação segura de que elas se iam valorizar. A informação é o meu departamento, old boy, assegurou Blake. Sabe, o veículo que os Alemães andam a desenvolver tem a assinatura de um tal Herr Benz. Se vir esse nome cotado no Royal Exchange, aconselho-o a comprar.
O visitante percebeu que acabara de receber uma dica e apressou-se a anotar o nome.
De verdade? Bens, é?
Benz, com z, precisou. A electricidade também é o futuro. Há três anos foi aqui feita uma demonstração que, I daresay, muito nos impressionou. O governo de Sua Majestade acabou de emitir uma lei que permite criar empresas nesta área. Baixou a voz, de novo em tom confidencial. O negócio aqui no Reino Unido será liderado pela London Electric Supply Corporation. Piscou o olho. Compre acções da LESCo enquanto elas estão baratas. Não se vai arrepender.
Kaloust registou também este nome.
Mais alguma coisa?
O inglês inclinou-se no seu lugar e abriu a gaveta de uma mesinha junto aos sofás, de onde extraiu uma caixa de H. Upmann. Estendeu-a ao convidado, que recusou.
Right ho!, disse Blake, extraindo um charuto da caixa.
Como deve calcular, a minha posição no governo dá-me acesso a informação privilegiada, muito útil para quem investe no Royal Exchange. Fez deslizar o charuto por baixo do nariz, de modo a sentir-lhe o cheiro a tabaco. Num gesto de gratidão pelos negócios que fiz com a ajuda do senhor seu pai, terei o maior prazer em partilhar consigo alguma dessa informação. Compreende, naturalmente, que, devido à minha posição, terá de ser discreto ...
Com certeza!
Além disso, espero uma comissão de dez por cento nos lucros, acrescentou enquanto punha o charuto na boca e o acendia. Na pouco provável possibilidade de algum investimento não resultar, o prejuízo é todo seu, bem entendido. Franziu o sobrolho e fitou o seu interlocutor. Espero que não veja nisso um inconveniente.
Claro que não. Parece-me inteiramente razoável.
O anfitrião largou uma primeira baforada de fumo e preparava-se para lançar mais algumas sugestões quando uma campainha começou a tocar no gabinete. Kaloust-olhou na direcção do som e viu que provinha de uma caixa de madeira assente sobre a secretária de Blake. O inglês pediu licença, levantou-se e pegou em dois manípulos, colando um ao ouvido e outro à boca.
Hello?, gritou. Hello? Sim, sou eu! Pausa. Quem? Ah, sim! Como está, old chap? Nova pausa. What? Agora? Mas ... Ainda uma pausa. Right ho, já aí vou! Até já!
O secretário-adjunto dos Negócios Estrangeiros devolveu os dois manípulos à caixa de madeira e, ao encarar o seu visitante, surpreendeu-lhe a absoluta estupefacção.
O senhor está a falar para uma caixa?
Blake riu-se.
É um telefone, disse. Uma máquina que transmite a voz à distância. Foi inventada na América e instalámos uns aparelhos em Whitehall. É o progresso, old boy!
O arménio não parecia inteiramente convencido.
Está a insinuar que alguém o estava a ouvir?
Com certeza, dear fellow! Neste caso, o meu interlocutor encontrava-se no número 10. O primeiro-ministro convocou uma reunião e era o seu secretário a avisar-me. Receio que a nossa pequena conversa tenha de ficar por aqui.
A novidade era, porém, espantosa e Kaloust mantinha ainda os olhos presos na caixa de madeira, como se tivesse dificuldade em acreditar e suspeitasse até estar a ser vítima de uma graçola muito elaborada.
Como disse que se chama esse ... aparato?
Telefone, repetiu Blake. Olhe, é outro bom investimento.
As novidades multiplicam-se neste século maravilhoso e vão mudar o mundo que conhecemos. Se fosse a si, comprava acções da The Edison Telephone Company of London. Indicou a caixa. I say, estas maravilhas vão espalhar-se como cogumelos e há muito dinheiro a ganhar para quem saiba onde investir.
Realmente, saber era poder, pensou Kaloust enquanto anotava esta derradeira sugestão. O tempo esgotara-se e o jovem arménio levantou-se também e dirigiu-se ao seu interlocutor para se despedir.
Muito obrigado pela sua atenção, disse preparando-se para estender a mão. Nem sei o que dizer para lhe agradecer a sua gentileza ...
Não tem de agradecer, devolveu Blake, distraído a juntar os papéis de que necessitava para a reunião. Como disse, devo favores ao senhor seu pai. Além disso, nutro simpatia pelos Arménios e tenho sensibilizado o primeiro-ministro Gladstone para a situação das minorias cristãs no Império Otomano, pelo que temos cultivado bons contactos com a vossa comunidade. Aliás, amanhã mesmo vou encontrar-me com o mais rico de todos os arménios de Constantinopla, o senhor Ohannes Berberian, para discutir o que poderemos fazer por vós.
O nome pareceu familiar ao visitante.
Berberian? Ele está cá?
Right ho! O good old Ohannes veio viver umas temporadas em Inglaterra para acompanhar a filha, que está a completar a educação aqui em terras de Sua Majestade.
Acho que o homem se sente um pouco só, coitado. Não fala inglês nem francês. Como arranho o turco, vou dar-lhe dois dedos de conversa. Parou de arrumar os papéis na pasta e encarou o visitante. I say, quer o contacto dele?
Kaloust já se tinha cruzado com a família Berberian em Constantinopla. Ohannes era banqueiro e proprietário de navios. O jovem conhecera os Berberian num dos banquetes oferecidos pelos Sarkisian na casa de Scutari e um dos sobrinhos de Ohannes tinha até sido seu colega no Robert College.
A filha em questão, se bem se lembrava, tinha apenas dez anos quando ele partira para França, no ano anterior, mas isso não impedia que fosse já o partido mais ambicionado pelos arménios solteiros do Império Otomano. A lista de pretendentes da herdeira dos Berberian chegaria para encher o Grande Bazar, mas ...
A ideia, que talvez germinasse em silêncio desde que escutara as conversas dos pais em Scutari, floresceu de repente na mente do rapaz. A moça viera estudar para Londres? Isso significava que estava agora longe de todos esses pretendentes. E quem era o único jovem arménio por perto? Ele próprio, Kaloust.
O que tinha a perder?
Dê-mo.
O inglês abriu uma gaveta da secretária, retirou uma agenda e folheou a lista dos contactos.
Hyde Park Terrace, 11, ditou. Isto é em Bayswater, old boy.
Sem perder tempo, Kaloust anotou a morada no seu bloco de notas e, no momento de se despedir, esboçou um sorriso malicioso.
Sou bem capaz de lhes fazer uma visita.
O plano ganhou forma depois de se inscrever em Engenharia no King's College. Para ter possibilidade de ser bem sucedido, o jovem arménio sabia que precisava de mudar algumas coisas na sua vida. Em primeiro lugar, teria de suspender a obsessão pelas coisas belas; poderia mais tarde dedicar-se à estética, claro, mas antes era necessário afirmar-se no mundo. Em segundo lugar, não podia permanecer no apartamento horripilante com que o pai o punira em Baker Street; No topo da lista de prioridades estava a necessidade de encontrar uma residência em zona adequada às suas ambições.
Deu um passeio por Hyde Park Terrace, uma das áreas mais chiques de Londres, e pôs-se à procura de alojamento.
Encontrou uma flat elegante na fashionable Cromwell Road, em Kensington, do outro lado de Hyde Park. Alugou-a de imediato apesar do preço, que considerou não passar de um investimento. É que, atravessando o parque em linha recta, o apartamento em Kensington situava-se perto da residência dos Berberian, o que era conveniente e lhe resolvia dois problemas de uma assentada. Por um lado, Kaloust mostrava-se respeitavelmente alojado, o que lhe parecia importante para projectar uma aura de dignidade e desafogo. Por outro, criava as condições adequadas para possibilitar um oportuno encontro acidental com o seu alvo.
O passo seguinte foi visitar o Royal Exchange e ordenar a compra de acções das recentemente criadas companhia de electricidade LESCo e The Edison Telephone Company of London. Fê-lo a um bom preço, uma vez que as duas empresas eram novas e a maior parte dos investidores não tinha a certeza de que aqueles negócios constituíssem apostas seguras. As novidades tecnológicas multiplicavam-se num século de prodígios sem igual e quem poderia garantir que a electricidade e o telefone não eram apenas modas que o tempo faria esquecer? Não estava a marcha do progresso a acelerar e a transformar a novidade bombástica de hoje na antiguidade obsoleta de amanhã?
Actuou na bolsa e no aluguer do novo apartamento com a mesma discrição com que manteve uma correspondência espaçada com mademoiselle Duprés. Não que o rapaz sentisse um afecto profundo pela sua antiga tutora; o que se passava é que acreditava nas virtudes de manter o contacto com pessoas que achava que lhe poderiam voltar a ser úteis. Trocavam cartas de quando em quando, e foi assim que o jovem soube que a francesa, professora de vários tipos de línguas e demais artes da vida, realizara o seu velho sonho e se inscrevera em Literatura na Sorbonne.
Naquela manhã, Kaloust acordou cedo e aperaltou-se com água-de-colónia, vestiu o fraque encomendado em Saville Row, pôs o chapéu de coco na cabeça, girou a bengala nas mãos enluvadas e saiu à rua. Percorreu algumas centenas de metros e emboscou-se junto a um poste de iluminação a gás, com vista privilegiada para o número 11 de Hyde Park Terrace.
O rapaz considerava que já estavam reunidas as condições indispensáveis para a execução do plano que delineara ao pormenor. Só precisava de dar o passo seguinte. Em conformidade com o planificado, permaneceu mais de uma hora encostado ao poste a aguardar novidades. A certa altura, e como era inevitável que mais cedo ou mais tarde viesse a suceder, a porta da residência abriu-se e Kaloust avistou o vulto imponente do grande Ohannes Berberian. Chegara o momento de passar à acção.
Vigiando o alvo pelo canto do olho, o rapaz caminhou com passo decidido pelo passeio ao longo do número 11 a um ritmo que lhe permitiu passar à frente da porta justamente no momento em que o grande banqueiro cruzava o passeio e se preparava para se içar para o fiacre.
Senhor Berberian?!, exclamou em arménio, com uma expressão de espanto, como se tudo aquilo fosse um feliz acaso. Por aqui?
Ao ouvir alguém falar na sua língua, o banqueiro deteve-se antes de subir para o fiacre. Virou a cabeça e olhou para trás com uma expressão inquisitiva.
A quem tenho a honra de? ..
Kaloust Sarkisian, apresentou-se o rapaz, tirando o chapéu de coco da cabeça e estendendo de pronto a mão. Sou filho de Vahan Sarkisian, não sei se se recorda. O senhor esteve em minha casa em Scutari, e ...
Um brilho de reconhecimento perpassou pelo olhar do homem, uma figura compacta de pescoço gordo.
Ah, sim! O Vahan! Você é o filho dele?
Apertaram as mãos, o banqueiro com cautela, o Jovem com um vigor entusiástico.
Sou, sim. E parece que somos vizinhos! Apontou para o outro lado do parque. Estou a morar num apartamento ali ao fundo e ia agora a caminho da City, onde ando a fazer uns investimentos muito lucrativos, quando o vi passar à minha frente. Pôs as mãos à ilharga e suspirou com satisfação.
O mundo é pequeno, hem? Quem diria que nos encontraríamos aqui em Londres e viveríamos tão perto um do outro?
Ohannes sorriu, exibindo dois belos dentes de ouro.
Ah, realmente!, concordou, já um pouco mais à vontade. O que diabo está a fazer por aqui? Tem investimentos na City?
Claro, disse o rapaz com o à-vontade de quem não fizera outra coisa na vida. Disponho de acesso a informações privilegiadas e conto realizar muito dinheiro com as acções que ando a adquirir. Respirou fundo, esboçando um ar subitamente triste. O problema é que me sinto muito só.
Sabe como é, estou sozinho em Londres, não conheço compatriotas por aqui e tenho saudades de falar a nossa bela língua arménia ...
Estas palavras soaram a música nos ouvidos de Ohannes Berberian, que sentiu ter encontrado ali uma alma gémea.
Ah, sei bem o que está a dizer! Sei bem! Eu próprio me queixo do mesmo!
É terrível!, disse o rapaz com comiseração. Tenho imensas saudades do convívio com as nossas gentes e ... Calou-se abruptamente, simulando que lhe havia ocorrido uma ideia. E se eu o visitasse um dia destes? Acha que seria inconveniente?
O banqueiro assentiu com entusiasmo.
Inconveniente? Acho uma belíssima ideia! Deitou um olhar para a sua casa. A Virginie vai organizar uma recepção este sábado, aí pelas cinco da tarde. Pôs a mão sapuda ao lado da boca, como se fizesse um aparte. É uma coisa horrorosa, sabe? Toda a gente fala inglês e eu não entendo patavina! Porque não aparece também?
Era tudo o que Kaloust queria ouvir. Com medo de que o seu interlocutor reconsiderasse e mudasse de ideias, estendeu de imediato o braço e apertou-lhe a mão.
Combinado!
A recepção dos Berberian juntou uma mão-cheia de personalidades de primeiro plano na cidade. Quando nesse sábado Kaloust entrou na residência, deparou-se com o grande salão apinhado de gente a conversar com copos de champagne e canapés variados nas mãos. Eram diplomatas, banqueiros, empresários, políticos e até alguns artistas; um pequeno ajuntamento rodeava a estrela do último sucesso do West End, que fizera uma aparição sensacional no salão e era naquele momento o epicentro das atenções.
O jovem convidado deu com Ohannes sentado no sofá do canto, com um semblante entre enfadado e envergonhado. Os olhos do banqueiro cintilaram e o rosto abriu-se num sorriso de alívio quando reconheceu o compatriota.
Ah, Sarkisian!, exclamou, como um náufrago ao ver o bote de salvação chegar por entre vagas revoltas. Ainda bem que veio!
Podia lá faltar a este grande acontecimento!, devolveu Kaloust, lançando uma olhadela para a multidão que se acotovelava na sala. Meu Deus, está aqui tudo o que é gente!
Pois está, assentiu o anfitrião. O problema é que não os entendo. Oh, é um horror!
O visitante sentou-se ao lado de Ohannes e foi fazendo conversa. Falaram sobre a vida em Londres, sobre a electricidade e os telefones, incluindo o futuro dessas invenções mirabolantes, e sobre Constantinopla, com o banqueiro a partilhar as últimas intrigas que envolviam o sultão e o grão-vizir. Volta e meia aparecia um convidado para cumprimentar
O anfitrião e Kaloust prestou-se nesses instantes a servir de intérprete. Era incrível a sorte que tivera, apercebeu-se. Jamais em Constantinopla um jovem como ele seria capaz de despertar a atenção de uma figura tão poderosa e distante como Ohannes Berberian, o mais rico arménio do país.
Mas ali, no isolamento linguístico de Londres, o milionário desesperava por um ombro amigo, alguém que lhe falasse na sua língua sobre coisas que lhe interessavam. Era uma oportunidade de ouro.
Ah, não sei o que seria de mim aqui sem a sua ajuda!, exclamou o anfitrião quando um dos convidados se afastou. Pôs a mão sobre o ombro do rapaz, em sinal de apreço.
Hei-de dizer a Vahan que tem um belo filho!
Kaloust baixou os olhos, em sinal de modéstia.
Oh, não é nada, disse. Olhou em redor, como se procurasse alguma coisa. Estou certo de que a sua família lhe dá também muito apoio nestas ocasiões ...
Quem? A Virginie? Oh, anda muito atarefada com os convidados, coitada. Com tanta gente a quem dar uma palavra, a pobrezinha não tem tempo para tratar de mim ...
O jovem arménio começara a preparar o terreno, conduzindo a conversa para onde lhe interessava. Sentia que chegara a hora de se alinhar subtilmente para o seu objectivo último. A senhora Berberian... ela é a sua única familiar aqui em Londres?, perguntou num registo casual. Não tem mais ninguém?
Tenho a minha filha, claro.
Kaloust arregalou os olhos e fingiu surpresa.
O quê? A sua filha está cá?
Está, pois. Foi aliás por causa dela que viemos para Londres. Sabe o que é, a Nunuphar veio completar a educação e a Virginie disse-me que ficaria em cuidados e não conseguiria permanecer muito tempo afastada dela. Coisas de mãe. O caso é que a Nunuphar só tem onze anos, não é verdade? Ainda é uma criança. De modo que lá fizemos as malas e viemos os dois acompanhar a menina. Esboçou um gesto de frustração. Não há dia em que eu não sonhe voltar para Constantinopla, confesso, mas ... enfim, as obrigações familiares impõem-se.
O visitante fez um ar pensativo, como se vasculhasse os arquivos da memória.
Tem piada, acho que nunca vi a sua filha.
Isso arranja-se já, devolveu Ohannes de pronto. Ergueu a mão e fez sinal a um empregado, que se aproximou de imediato. Semag, vai ali buscar a menina Nunuphar!
O empregado assentiu e volatilizou-se no meio da multidão. Dois minutos depois, Semag reapareceu na companhia de uma rapariga de aspecto franzino.
Chamou-me, senhor?, perguntou ela numa voz infantil.
Quero apresentar-te o senhor Kaloust Sarkisian, disse o pai. Esta é a minha Nunuphar, anjo celestial, o tesouro dos meus olhos.
A menina agarrou na sua saia e fez uma curta vénia. Tinha um corpo frágil por baixo de um vestido branco com as pontas bordadas, o que lhe conferia um ar angelical, e o cabelo negro e liso caía-lhe sobre os ombros. Embora ainda no início da adolescência, e não sendo propriamente uma beldade, percebia-se que tinha uma presença agradável.
Olá, Nunuphar, saudou Kaloust, claramente agradado.
És uma menina muito bonita.
O brigado, senhor.
Estás a gostar de Londres?
Sim, senhor.
Não era conversadora, nem ninguém esperava que o fosse.
Às mulheres exigia-se recato, mais ainda quando se tratava de uma menina tão nova. Daí que, feita a breve apresentação, Ohannes tivesse esboçado um gesto com a mão para a mandar embora.
Parabéns, senhor Berberian, disse Kaloust quando ela se afastou. Tem uma filha realmente muito bonita.
É uma graça, não é? Nem imagina o número de pedidos que recebo para combinar o casamento dela. Sacudiu a mão. São aos magotes!
Ai imagino, imagino. Não admira, ela é belíssima!
Pois, mas muitos desses pedidos vêm de gente que nunca a viu sequer. Sabe o que lhe digo? Andam atrás do meu dinheiro, é o que é! São todos iguais!
O visitante abriu a boca e esboçou uma expressão escandalizada.
Ah, não acredito!
Pode ter a certeza! Na face do banqueiro desenhou-se um repentino sorriso velhaco. Mas estão com azar. A minha Nunuphar já está prometida. Vai casar com um primo afastado.
Não era propriamente novidade, pelo que Kaloust não foi apanhado de surpresa. Neste ponto ponderou o melhor curso de acção. Acabara de conquistar um pouco da confiança de Ohannes, mas ainda havia muito caminho a percorrer e não lhe pareceu conveniente denunciar o seu verdadeiro objectivo numa fase tão prematura, para mais existindo tanta desconfiança em relação às reais intenções dos pretendentes. Teria de ser prudente e só jogar as suas cartas no momento decisivo, quando tivesse todos os trunfos na mão.
Ah, como esses interesseiros devem ficar irritados!, exclamou com fingida indignação. É de mestre, sim senhor!
É, não é?
E ... esse primo? É pessoa bem posicionada, presumo eu.
Com certeza. Família distante, mas gente de confiança. E, claro, é uma maneira de manter tudo em família.
Tenho a certeza de que se trata de uma excelente escolha. Hesitou. Mas imagine que, quando chegar a altura, a sua filha diz que não aceita casar com o primo ...
Ohannes fez uma careta.
Hmpf! Ela não se opôs.
Pois, mas é ainda demasiado jovem. Quando chegar a altura pode pensar de outra maneira, já se sabe como são as mulheres. Ou então, imagine que aparece um candidato melhor. O que faria numa situação dessas?
O anfitrião carregou as sobrancelhas, sem ver onde o seu interlocutor pretendia chegar.
Melhor candidato? Quem?
Estou apenas sugerir uma hipótese, apressou-se Kaloust a esclarecer. Creio não existir ninguém em melhor posição, entenda-me, mas imagine, simples possibilidade que ventilo apenas com o intuito de alimentar esta nossa agradável troca de impressões, imagine, dizia eu, que aparece tal criatura ou que a sua filha levanta objecções insuperáveis ao primo. O que faria numa situação dessas?
Bom, nessas circunstâncias teria de ver a coisa com cuidado. O facto é que não há nada assina do, não é verdade?.
O primo está apenas apalavrado.
A informação foi acolhida por Kaloust com um trago discreto de champagne. Mantendo na retina a imagem da menina de onze anos que conhecera momentos antes, pousou o copo, passou os olhos pela multidão como se quisesse medir o pulso ao sucesso da recepção e acabou por sorrir para o seu anfitrião.
Isso é uma mera hipótese académica, claro.
A rapariga aligeirou o passo, ziguezagueando entre a multidão para ultrapassar os transeuntes que lhe atrasavam a marcha. Levava um grande saco de pano e ia compenetrada na sua missão, alheia ao facto de que um vulto a seguia de perto desde que saíra à rua. A rapariga estacou na berma do passeio, o clip-clop dos cascos obrigou-a a olhar para os dois lados, aproximava-se um coche da direita e vinham dois cavaleiros da esquerda. Deixou-os passar e, dando saltos curtos no piso enlameado, atravessou Haymarket.
O vulto não descolou, comportando-se como uma sombra discreta, e cruzou também a rua. Quando chegou ao outro lado, acelerou um pouco e interceptou a rapariga junto a um ardina que berrava aos quatro ventos para lhe comprarem um exemplar do The Illustrated London News ou do The Daily Telegraph.
Faz favor!
Espantada por ouvir alguém interpelá-la em arménio, ela olhou para trás e deparou-se com um jovem baixo, de cabelo negro e impecavelmente vestido.
Sim?
O meu nome é Kaloust Sarkisian, identificou-se o desconhecido. Estive na semana passada na recepção oferecida pelo senhor Berberian, não sei se se recorda ...
A rapariga abanou a cabeça.
Peço desculpa, senhor. Estava lá tanta gente ...
É verdade, aquiesceu ele. Será que tem um minutinho para mim?
A arménia atirou um olhar para o mercado, na esquina em frente, e mostrou o saco de pano que segurava na mão.
Preciso de fazer as compras, senhor, justificou-se. Tenho de estar de volta daqui a uma hora.
A visão de uma moeda de uma coroa suspendeu-lhe o discurso. Ciente de que lhe tinha captado a atenção com a coroa que dançava na ponta dos seus dedos, Kaloust fez um sinal com a cabeça a ordenar que o acompanhasse.
Esta moedinha é sua se me fizer companhia por dez minutos ali naquele pub.
Sem hesitar, a rapariga seguiu o homem que a interpelara e entraram num estabelecimento intitulado King Eddie's, de ambiente sombrio e com homens rudes debruçados sobre o balcão. Refugiaram-se numa mesa do pub, junto à janela, e Kaloust mandou vir duas cervejas e uma pie. A sua convidada tinha os olhos pousados timidamente no soalho e parecia pouco à vontade; era evidente que estava habituada a servir, não a ser servida. Tanto melhor, pensou ele enquanto preparava o bloco de notas e o lápis para tomar apontamentos; decerto quanto mais humilde se revelasse, mais manobrável seria.
Tanto quanto sei, começou ele, a senhora chama-se Dirhoui e é a governanta privada da filha do senhor Ohannes Berberian. Correcto?
Sim, senhor, confirmou ela. Trabalho de facto como governanta na residência do senhor Berberian.
Acompanha diariamente a menina Nunuphar?
Dirhoui calou-se e fitou-o com uma expressão desconfiada, pronta para saltar dali a qualquer momento.
Para que quer saber?
O rapaz endireitou-se no seu lugar. Achava que não tinha de lhe dar explicações, mas, se queria assegurar a colaboração da serviçal dos Berberian, era evidente que ela precisava pelo menos de saber o propósito de tudo aquilo. No fim de contas, estava a ser interpelada por um desconhecido.
Digamos que sou um pretendente à mão da menina Nunuphar, explicou o rapaz. Como estou certo que deve ser do seu conhecimento, a lista de candidatos é enorme, o que significa que terei de descobrir a maneira certa de chegar ao coração da ... enfim, da minha amada. Pousou nesse instante a coroa na mesa, de modo a produzir melhor efeito. Esta moeda será sua se me der informações que possam revelar-se úteis para os propósitos que tenho em mente.
O rosto da governanta amaciou um pouco, mas ainda assim manteve um toque espantadiço.
Que informações deseja o senhor?
Quero conhecer todos os gostos da menina Nunuphar, explicou ele. Perfumes, flores, comida, roupas ... enfim, tudo o que for relevante para a conquistar.
Os olhos de Dirhoui desceram com cupidez para a coroa que lhe sorria sobre a mesa do pub. Era muito dinheiro! Uma coroa equivalia a cinco xelins e correspondia a um quarto de libra. Tratava-se de um belo prémio por apenas uns minutos de conversa. O que tinha ela a perder?
Se lhe contar, dá-me essa moeda?
Com certeza.
Não parecia um pedido difícil de satisfazer e a governanta, após breve ponderação e vencida a timidez, concluiu que não viria mal ao mundo de partilhar algumas informações.
O que haveria de errado naquilo? No fim de contas, estava simplesmente a ajudar um grande amor a nascer, não era verdade? Tratava-se de uma causa bonita. Se, além disso, ainda ganhasse uma coroa, quem a censuraria? A vida dos serviçais era tão difícil nos dias que corriam ...
A menina Nunuphar adora todo o tipo de rosas, disse por fim, abrindo um dique de informações preciosas.
Flores, perfumes, tecidos, cores ... o que quer que cheire a rosas ou tenha uma rosa desenhada ou seja cor-de-rosa, agrada-lhe.
Kaloust anotou a novidade num garatujar rápido.
Hmm-hmm, murmurou enquanto escrevinhava. E para comer? Não come rosas, presumo ... Dirhoui respondeu com um riso nervoso.
Claro que não. Para o pequeno-almoço pede sempre baked beans e salsichas, o que irrita um pouco a senhora Virginie. De resto, gosta de pratos arménios. Sobretudo salsichas soojoukh e almôndegas harpoot keufta. Mas o que ela aprecia mesmo é chocolate.
O seu interlocutor esboçou uma careta; não reconhecera a palavra.
Como disse?
Chocolate, repetiu ela, quase a soletrar para que ele pudesse anotar adequadamente. São umas bebidas que para aí apareceram. A mãe tenta que ela não beba tanto, o que a deixa muito contrariada. Noutro dia amuou e fechou-se no quarto porque a senhora Virginie a impediu de beber um copo ao lanche. Ui, que cena!
Chocolate, hem? Algum tipo em especial?
Ela bebe o Sir Hans Sloane's Milk Chocolate todas as manhãs. Mas se lhe oferecerem também à tarde, não diz que não ...
Tal como tudo o resto, a informação foi devidamente anotada no bloco de notas.
E roupas? Onde se abastece ela?
Na loja mais chique de Londres, claro. O Harrods, ali em Knightsbridge. O incêndio do ano passado arruinou as visitas, mas enquanto a construção dos novos armazéns não está terminada o gerente do Harrods arranjou maneira de lhe levar os vestidos a provar em casa, o que acaba até por ser mais conveniente.
O lápis não parou de anotar.
Meu Deus! As horas!
O relatório foi muito completo e só ficou concluído ao fim de meia hora. Quando se apercebeu do tempo que ali havia despendido, Dirhoui deu um pulo repentino na cadeira e levantou-se quase em pânico com o atraso. Pegou na moeda e saiu apressadamente do King Eddie's. Kaloust largou uma coroa para pagar as cervejas e a pie e foi atrás dela; apanhou-a na esquina do ardina e acompanhou-a em passada rápida a caminho do mercado.
Queria só pedir-lhe mais uma coisinha.
Agora não, senhor Sarkisian! A face da governanta reflectia a aflição que sentia por ter perdido a noção do tempo. Ai que horror! A senhora ainda me despede se chego atrasada! Deus me acuda, preciso de me despachar!
Por esta altura já o jovem sabia o que de certeza lhe captaria a atenção, por isso tirou do bolso uma moeda de um xelim e exibiu-a diante da empregada dos Berberian.
Dou-lhe um xelim por semana se me fizer um pequeno favor.
A imagem deteve Dirhoui, como se o pequeno pedaço de metal a submetesse à vontade dele. Hesitou entre correr para o mercado e ceder à tentação. A tentação ganhou.
Que favor?
Encontre-se comigo todas as sextas feiras junto ao Wellington Arch, em Hyde Park Corner, recomendou ele.
Entregar-lhe-ei nessa altura pequenos presentes que fará o favor de levar à menina Nunuphar. Por esse serviço receberá o seu xelim semanal.
Muito bem, concordou ela. Pode contar comigo.
A rapariga recomeçou a andar, mas Kaloust agarrou-a pelo ombro e travou-a de novo.
Gostaria também que falasse de mim à menina Nunuphar.
Coisas simpáticas, claro.
Simpáticas como?
O rapaz corou; sentia um certo embaraço por se expor daquela maneira, mas se queria chegar a algum lado teria de o fazer.
Bem, diga-lhe que ... que me acha bonito, por exemplo.
Enrubesceu ainda mais, atrapalhado com a imagem que estava a projectar. Diga-lhe que sou generoso e um gentleman ... enfim, essas coisas de que as mulheres gostam. Faça de mim um galã do West End.
O que ganho eu com isso?
Dirhoui já aprendera a jogar aquele jogo, apercebeu-se o jovem arménio com agrado. Tanto melhor, pensou. Assim seria mais fácil executar o plano.
Por falar bem de mim? Nada. Fez uma pausa, deixando perceber que ainda não dissera tudo. Mas tem todo o interesse em convencê-la de que sou a pessoa certa para ela.
Porquê?
Porque se ela casar comigo, você terá um belo prémio. Retirou uma outra moeda do bolso, sabendo que exibia o seu ás de trunfo. Dez soberanos.
O ouro maciço faiscou à luz do dia, arrancando um esgar estupefacto da tutora. Dirhoui ficou de olhos presos na moeda, mal acreditando que um tesouro daqueles, multiplicado por dez, poderia algum dia ser seu. O soberano era a moeda mais valiosa que existia: pesava vinte e quatro onças e era de ouro de vinte e dois carates. Como ficar indiferente a um prémio daqueles?
Senhor Sarkisian, disse ela, ofegante de emoção e incapaz de descolar os olhos do ouro. É como se já estivesse casado com a menina Nunuphar!
As sextas-feiras passaram a ser dia de prendas para a filha dos Berberian. Usando Dirhoui como correio, Kaloust foi remetendo sucessivamente, e ao longo de meses, bouquets de rosas, bombons, vestidos encomendados no Harrods, frascos de perfume adquiridos na casa Floris e pequenas bugigangas que a governanta foi sugerindo como sendo do agrado da sua protegida.
A esses presentes o rapaz juntava regularmente um cartão perfumado com um poema em francês, em geral cópias de versos de Baudelaire; acreditava que as palavras doces do grande poeta produziriam um efeito inebriante na moça, predispondo-lhe o coração. Se haviam funcionado com mademoiselle Duprés, porque não com Nunuphar?
Veja lá se ela vai gostar desta, dizia em cada ocasião, procurando a opinião da tutora. Quer ouvir?
Com certeza.
Afinava a garganta e, com voz aflautada, exibia o seu melhor sotaque francês. Naquela ocasião, copiara uns versos do apropriadamente intitulado Hymne à la beauté.
Tu contiens dans ton oeil le couchant et l' aurore; tu I répandss des parfums comme un soir orageux; tes baisers sont un philtre et ta bouche une amphore, qui font le héros lâche et l'enfant courageux.
Não percebo italiano, confessou a empregada, mas vai arrasar!
Complementava este assédio com visitas frequentes a casa dos Berberian. A pretexto de fazer companhia a Ohannes, que definhava de desespero pelo isolamento provocado pelas suas limitações linguísticas, fazia por se encontrar com a sua eleita. Nunuphar corava quando o via lá em casa e, incapaz de dizer uma palavra que fosse, tapava a cara e corria a esconder-se no quarto, o que muito divertia os que assistiam à cena.
Ah, a infância!, observou Ohannes. Quando se é pequeno pode-se ser inocente!
A par dos múltiplos trabalhos que envolviam a sedução da herdeira dos Berberian, o jovem arménio dedicou-se com afinco aos estudos no King's College e foi assimilando matéria com uma facilidade que deixou os professores agradavelmente impressionados. Álgebra Linear, Cálculo Diferencial, Mecânica dos Materiais, Modelação Geométrica e Processos Extractivos constituíram disciplinas que completou sem grandes problemas, embora tenha descoberto que a sua grande e verdadeira paixão era a Física.
Prevejo-lhe grande futuro na astrofísica, disse o professor William Thompson, considerado o maior crânio nesta área nas Ilhas Britânicas. Porque não se inscreve na École normale supérieure de Paris? É a instituição de ponta nessa área.
A sugestão fez Kaloust sonhar. Ah, as estrelas, as nebulosas, a galáxia! Júlio Verne seduzia-o, mademoiselle Duprés também. Escreveu ao pai, dizendo-se decidido a seguir Física e sugerindo que Paris era o destino mais adequado, mas a volta do correio desfez-lhe as ilusões. Não se meta em irrelevâncias académicas, rapaz, repreendeu-o o velho com uma irritação que transparecia em cada uma das linhas nervosas que havia rabiscado. Ninguém vive de sonhos.
Foi talvez por viver de sonhos, ou se calhar por não se limitar a viver deles, que o jovem estudante continuou a apostar no Royal Exchange, onde começava a ganhar maquias consideráveis. Philip Blake acolheu-o sob a sua asa protectora e, convidando-o regularmente para almoçar no Simpson's, o restaurante da Strand onde se serviam os melhores repastos da cidade, ia-lhe fazendo sugestões informadas que se revelaram proveitosas, umas a curto prazo, como convinha para manter um cash flow saudável, e outras de grande fôlego e impacto estratégico. Quase todos os conselhos se revelaram bons, mas nenhum talvez tão lucrativo como aquele que o inglês lhe deu ao terceiro almoço.
I say, tem porventura algum escrúpulo especial em investir em armas?
A pergunta foi feita pelo secretário-adjunto dos Negócios Estrangeiros enquanto trinchava um rosbife e produziu um olhar intrigado no seu interlocutor.
Como, armas?, admirou-se Kaloust. Está a sugerir que eu compre uma pistola para me defender?
Good Heavens, não!, devolveu o inglês com a maior das fleumas. Estou a falar da indústria de armamento, old boy! Tem escrúpulos em investir nesta área?
Desde que seja lucrativo ...
Blake meteu um pedaço de rosbife na boca e mastigou-o devagar e em silêncio. Só depois de o engolir retomou a palavra.
Fui informado por um coronel meu amigo que existe aí um sujeito, um Qualquer Coisa Maxim, que está a desenvolver uma metralhadora revolucionária, disse. Não sei se sabe, mas as forças armadas desconfiam das metralhadoras.
Parece que têm a desagradável tendência para encravar nos momentos mais inconvenientes. Como a meio de uma batalha, por exemplo.
Isso deve ser aborrecido.
Muito inconveniente. Tal contratempo tem também o condão de manter a cotação das acções dos fabricantes de metralhadoras em baixa.
Suponho, se me fala nisso, que essa arma é diferente ...
Right ho!, confirmou Blake, agarrando o copo de vinho que o Simpson's importava de França. O coronel assegura-me que esta engenhoca do tal Maxim é de uma fiabilidade a toda a prova. Uma verdadeira fábrica de matar, I daresay. Se for desse modo, e não tenho dúvidas de que a informação se revelará correcta, é uma questão de tempo até as nossas forças armadas vencerem as reticências e a adquirirem. Quando isso acontecer. .. bum!, os lucros de quem tiver acções dessa empresa irão disparar ao mesmo ritmo que a metralhadora.
O lápis e o bloco de notas já estavam prontos.
Como se chama a empresa?
O inglês bebeu um trago de vinho e limpou a boca com o guardanapo bordado com o nome do Simpson's, tendo especial cuidado de passar o pano imaculadamente branco pelas pontas do bigode louro.
Maxim Gun Company, disse. Essas acções, old chap, vão ser uma máquina de metralhar dinheiro.
A chuva caía fina e leve, as gotas tão ténues que por vezes esvoaçavam como folhas empurradas pelo vento, cortando em mil traços a luz metálica que irradiava do manto nublado do céu; parecia que uma camada de prata etérea, fina e difusa, se abatera sobre a cidade. Aquela manhã de 1885 nascera fria e Hyde Park Comer regurgitava no movimento habitual da hora em que as lojas abriam as portas; as pessoas passavam em passo acelerado para o emprego, eles de chapéu e gabardina, elas com sombrinhas coloridas, alguns de jornal dobrado debaixo do braço.
Enquanto perscrutava com impaciência os londrinos que cruzavam o parque em vários sentidos, deslocando-se num caos estranhamente organizado, Kaloust destrinçou por fim a figura de Dirhoui a emergir da massa de gente e a encaminhar-se na sua direcção.
Hoje chegou atrasada!, foi a primeira coisa que o jovem lhe atirou num tom irritado. Não lhe dou um xelim para me fazer esperar!
Mas ... foram só cinco minutos ...
Nem que fossem cinco segundos! Se marcamos nove da manhã, isso significa nove da manhã! A tutora dos Berberian decidiu não dar réplica. Havia um ano que fazia de correio secreto e sentimental do rapaz e já aprendera que estava a lidar com uma personalidade picuinhas perante o imprevisto, daquelas que enfrentavam o menor desvio nos planos com erupções desproporcionadas de fúria. Esforçando-se por se desviar do assunto, Dirhoui pousou os olhos no embrulho que o pretendente da sua protegida defendia da chuva.
É essa a prenda de hoje?
Sim, confirmou ele. São biscoitos da Huntley & Palmers. Dentro da caixa está o poema. Desta vez escolhi uns versos de Mallarmé.
A rapariga estendeu a mão para recolher o embrulho.
Hoje estou com pressa, disse. A senhora Virginie quer levar a Nunuphar a passear pelo Tamisa e a lição da manhã é mais cedo que o habitual. Preciso de ...
Não tão depressa!, cortou Kaloust, mantendo o presente preso nas mãos. Acho que chegou a hora de fazermos um ponto da situação.
Agora não tenho tempo.
Tivesse chegado a horas!, repreendeu-a ele de novo.
Acenou com a prenda. Faz já um ano que andamos nisto, todas as semanas vem você para cá, vão presentes para lá, e no fim fico sem saber a quantas ando. Não pode ser!
Vendo que não conseguiria abalar de imediato, ela suspirou e, com um esgar, fez um impaciente compasso de espera.
Qual é a sua dúvida?
Interrogo-me até que ponto esta táctica produz resultados. Quer dizer, será que estamos mesmo a ir a algum lado?
Estamos a ir onde podemos ir, esclareceu Dirhoui.
Ela aceita os presentes? Aceita, pois. Fica toda contente.
Ouve dizer bem de si? A toda a hora! Falo-lhe frequentemente do futuro que o senhor tem pela frente, digo-lhe que é uma pessoa que parece gostar dela e que a protegerá em todas as circunstâncias... enfim, faço o que posso. Esforço-me tanto que, como ela passa o tempo a ler folhetins, em especial os da senhora Austen, aproveito todas as oportunidades para estabelecer comparações entre si e os heróis dessas novelas. Por exemplo, noutro dia devorou Orgulho e Preconceito e fartou-se de me falar na história. Vendo-a tão entusiasmada, disse-lhe logo que o senhor era uma espécie de mister Darcy, versão arménia, com ela no papel de Elizabeth.
Kaloust ronronou, agradado.
Ah, excelente ideia!, aprovou. E a Nunuphar? Como reagiu?
Dirhoui fez uma pausa, como se considerasse o que deveria dizer, e respirou fundo.
Para falar com franqueza, não sei se está a acolher de braços abertos as minhas sugestões. Ela gosta dos presentes, claro. Também acha graça aos poemas, fica lisonjeada. Mas ... Hesitou, buscando as melhores palavras. Digamos que é ainda muito infantil.
O rapaz intuiu um problema na hesitação e estranhou a escolha de palavras.
Infantil? Infantil, como?
Ela ... Nova hesitação. Sabe o que é, a menina Nunuphar, por ser ainda muito jovem, repare que só tem doze anos, vive num mundo de sonhos e fantasia. Ela idealiza um príncipe, alguém que lhe apareça a cavalo por baixo da janela e a rapte a meio da noite. Está a ver o estilo, não está?
Um esgar horrorizado perpassou pelo rosto de Kaloust.
O quê? Ela quer que eu ... que eu monte num cavalo e a vá raptar? Isso é um ...
Não é bem o senhor que ela tem em mente, atalhou a governanta, ainda com dificuldades em encontrar as palavras certas para explicar a situação. É um príncipe, está a ver? Um jovem alto e louro, de cuja boca apenas saiam elogios à beleza dela. Oiça, o senhor tem de perceber que a menina Nunuphar só tem doze anos e vive com as histórias da senhora Austen e do senhor Scott na cabeça. Terá de a trabalhar com paciência e esperar que ela amadureça para que finalmente lhe caia nas mãos.
Kaloust fitou-a nos olhos.
O que me está a dizer, se bem entendi, é que não a conquistei.
Os ombros de Dirhoui descaíram muito ligeiramente, como se desistisse de encontrar formulação mais elegante.
É isso mesmo.
Então o que posso fazer?
Persista e tenha paciência, recomendou ela. Hesitou mais uma vez, como se alimentasse um debate interno sobre o que deveria ou não dizer. Acabou por se decidir.
Se me permite, há um outro problema que deve merecer a sua atenção.
Que se passa?
O senhor e a senhora Berberian já perceberam as suas intenções, como é bom de ver. Com tantas prendas e flores, só se fossem cegos e estúpidos é que não entenderiam.
Acontece que, no outro dia, os surpreendi a falar sobre o assunto. O patrão parece tê-lo em boa conta. Diz que é bom rapaz, esperto e muito prestável. Mas ...
Deixou o mas prolongar-se e permanecer em suspenso, como se aquele silêncio cheio de insinuações revelasse mais do que qualquer coisa que se atrevesse dizer.
Mas o quê?
A governanta fez um novo esforço para encontrar as palavras certas em assunto de natureza tão delicada.
Eles duvidam que o senhor esteja ao nível deles, se é que me faço entender.
Kaloust estreitou as pálpebras, procurando maior definição no que acabara de escutar.
Porque diz isso?, questionou. O que ouviu exactamente? Repita-me, por favor, e com rigor, as palavras que escutou.
Foi uma conversa entre os patrões, há uns tempos.
Quando perceberam o seu interesse pela filha, ouvi o senhor Ohannes dizer que a família Sarkisian, embora endinheirada, não tem ainda estatuto suficientemente elevado para poder cruzar-se com os Berberian. Ele receia que o senhor Kaloust seja um diletante e que ...
Diletante? Ouviu essa palavra?
Sim, diletante. E disse que precisavam de ter a certeza de que é suficientemente ambicioso para ascender a um patamar acima do dos seus pais. Modulou a voz de modo a imitar um homem. O rapaz não passa de um estudante.
Nem emprego tem. Retomou a sua voz normal. Foi isso o que ele disse, palavra por palavra. Kaloust assentiu com um movimento suave da cabeça.
Desviou devagar os olhos da sua interlocutora e focou a atenção em algo à distância. Dirhoui levou um longo instante a perceber que ele fitava a fachada do número 11 de Hyde Park Terrace, a casa dos Berberian. Ele tem dúvidas, hem?, murmurou com os lábios tensos, como se marcasse um adversário num duelo. Pois vou mostrar-lhe com quem está a lidar.
A partir daquele dia acabaram-se as prendas, as flores e os poemas para Nunuphar, o que significava que Dirhoui deixou também de receber o seu xelim semanal. Mas quem pensasse que Kaloust havia desistido enganar-se-ia; um fogo interior, que em momentos como aquele ardia com chama ainda mais intensa, proibia-o pura e simplesmente de capitular. Parecia até que os obstáculos constituíam um desafio que precisava de superar, como se tudo aquilo não passasse de um jogo que lhe dava tanto mais prazer quanto mais as dificuldades se acumulavam.
O que ele fez foi mudar de táctica. Manteve a promessa a Dirhoui de lhe oferecer um prémio de dez soberanos em caso de sucesso no seu empreendimento, de modo a garantir que a governanta tudo continuaria a fazer para despertar o interesse da menina; parecia-lhe vital assegurar-se de que Dirhoui se mantinha do seu lado da barricada. Além disso consultava-a ocasionalmente acerca de pormenores sobre Ohannes, querendo saber em particular quais os seus gostos e manias. Toda a informação útil acabava premiada com um xelim, prémio que desatava a língua da arménia.
O senhor Berberian desaprova a dança, disse-lhe por exemplo Dirhoui. Também acha que a vida nocturna é para galdérias e homens de vícios fáceis. Pensa que esta geração está perdida e passa a vida a dizer que no seu tempo não era assim, que antigamente é que havia valores ... essa conversa.
Todos estes pormenores eram registados na mente de Kaloust para fins que a governanta não conseguia imaginar, embora fosse evidente que constituíam parte importante da nova táctica. E, para a pôr em prática com maior probabilidade de sucesso, tornou-se claro para o pretendente que precisava de prestar maior atenção à sua aparência.
Além dos esforços para se manter informado sobre tudo o que acontecia no número 11 de Hyde Park Terrace, o jovem arménio começou a dar-se ares mais respeitáveis. Continuava a abastecer o seu guarda-fato nas melhores casas de Saville Row, como se requeria de um gentleman de elevada estirpe e condição, embora tivesse passado a privilegiar os fatos escuros; achava que lhe conferiam uma imagem mais conservadora, no que não se equivocava.
Deixou também crescer a barba, de modo a ganhar idade e venerabilidade, mantendo todavia a pilosidade facial sempre cuidadosamente aparada ao melhor estilo vitoriano. Quando achou que ela adquirira por fim o formato certo, nem demasiado densa nem ridiculamente curta, contemplou-se ao espelho e não reprimiu a satisfação pelo homem que viu reflectido.
Ah, estou de arrasar!
A imagem do jovem barbudo bem aperaltado a cruzar a porta de entrada e invadir naquele dia o salão, de chapéu de coco na mão e uma presença visual mais selecta e madura, não foi de início plenamente captada por Ohannes, para quem o visitante desencadeava uma reacção quase reflexa.
Eu mando chamar a Nunuphar, disse o patriarca dos Berberian. Ela está lá em cima a estudar para um exame de piano.
Não, não se incomode, retorquiu Kaloust de pronto.
Não vim visitá-la a ela, mas a si.
O banqueiro arqueou o sobrolho; aquela não era decididamente a resposta de que estava à espera.
A mim?
Sim, a si, confirmou o visitante. Venho procurar o seu conselho num investimento.
Passada a surpresa inicial, o anfitrião abriu-se num sorriso lisonjeado e, conhecedor das preferências do seu interlocutor, fez um gesto a convidá-lo para o divã oriental.
Com certeza, disse. Sente-se, sente-se! Acomodou-se ele próprio também no divã e cruzou a perna. Então diga lá. Que negócio é esse que o traz aqui?
O jovem instalou-se na ponta do divã e inclinou-se na direcção de Ohannes como um filho que busca a protecção do pai.
Tenho um amigo, o secretário-adjunto do Foreign Office, que ...
Ah, Philip Blake!, atalhou o anfitrião. Conheço-o muito bem!"
Pois, acontece que ele me recomendou que adquirisse acções de uma empresa que confecciona leite com chocolate, a Cadbury. Ele acha que se trata de um bom investimento, sobretudo agora que decorre esta campanha para as pessoas beberem chocolate em vez de álcool. Diz o Philip que o negócio do chocolate vai disparar. Inclinou-se ainda mais para o seu interlocutor. Confesso que tenho ganho verdadeiras fortunas com investimentos na bolsa, mas ... chocolate? Fez uma careta. Qual é a sua opinião? Acha mesmo que isto tem algum futuro?
Ohannes torceu o nariz.
Para falar com toda a franqueza, tenho de admitir que essas modernices me ultrapassam, disse. O facto, porém, é que a Nunuphar adora beber essa mistela. Se houver mais gente a pensar como a minha filha, porque não?
Portanto, a sua opinião é que devo avançar.
O anfitrião ergueu a mão com a palma para fora, como se quisesse travar um fiacre que corria desabridamente na sua direcção.
Calma, eu não disse isso!, apressou-se a esclarecer. O negócio tem de ser visto em diferentes perspectivas. Que empresa é essa? Como é gerida? Como tem evoluído o mercado dessa bebida? Quais os principais concorrentes? A empresa em questão tem aumentado a quota de mercado ou não? Enfim, há uma multiplicidade de aspectos que precisam de ser considerados antes de se tomar uma decisão, não é verdade?
Kaloust respirou fundo.
Parece-me um excelente conselho, exclamou. É um alívio e um privilégio conhecer uma pessoa tão avisada quanto o senhor. Baixou a voz, como se fizesse um comentário confidencial. É evidente que já verifiquei todos esses pormenores. Não seria um investidor de sucesso se não o tivesse feito. Retomou o tom normal. Os dados que recolhi são sem dúvida encorajadores. A única coisa que verdadeiramente me apoquenta, e é por isso que lhe trago esta questão, é o produto em si. Acha mesmo que o chocolate é coisa para ter sucesso?
O anfitrião fez um gesto vago com a mão.
Eu diria que não, opinou. Mas se os dados de mercado são mesmo bons ...
O jovem visitante deu uma palmada na própria coxa, como um juiz a bater na mesa no momento do veredicto.
Está decidido!, exclamou. Convenceu-me a investir nessa Cadbury!
Bem ... é uma grande responsabilidade, não quero influenciá-lo. Imagine que a coisa corre mal? Ainda vai dizer que a culpa é minha!. ..
Kaloust soltou uma gargalhada.
Não se preocupe que, quando se trata de negócios, senhor Berberian, nunca perco!, assegurou. Os negócios são a minha paixão." Fez um gesto a indicar a porta de entrada. Sabe, há pessoas na minha idade que preferem gastar o tempo nos salões de dança e a frequentar estabelecimentos nocturnos, esses antros de vício e miséria moral onde abundam as galdérias. Isso é para os falhados! A minha geração está perdida! Perdida, digo-lhe eu! Mas eu tenho outros valores, valores de tempos idos, decerto, e prefiro usar as minhas energias para gerar riqueza
Dos lábios de Ohannes saiu um silvo de apreciação. O patriarca dos Berberian nunca havia imaginado ver um jovem a expressar-se assim nos dias que corriam.
Isso é que é falar!
Os negócios tornaram-se o assunto dominante das conversas de Kaloust com Ohannes no decurso das suas visitas semanais a casa dos Berberian. O jovem deixou mesmo de perguntar por Nunuphar, a ponto de serem os próprios anfitriões quem começou a querer saber se ele desejava ver a filha, privilégio a que o visitante anuía como se lhes estivesse até a conceder um favor.
Os Berberian multiplicavam-se em recepções, devido à sua condição de família de grandes meios, e era nessas circunstâncias que a presença de Kaloust se revelava mais útil. O jovem cuidou de se encontrar sempre por perto quando mais era preciso, ou porque um convidado interpelava Ohannes ou porque o próprio anfitrião desejava conversar com algum investidor ou banqueiro ou diplomata que frequentava a sua residência nessas ocasiões.
Entre recepções, e no decurso das visitas regulares a casa dos Berberian, Kaloust mantinha Ohannes informado sobre os acontecimentos em geral e certas pessoas em particular. Acomodava-se na ponta do divã oriental onde o anfitrião repousava e inundava-o também de informações a propósito de oportunidades de investimento.
Tornaram-se de tal modo íntimos nas conversas sobre negócios que um dia o patriarca dos Berberian se sentiu suficientemente à vontade para partilhar com ele o seu mais bem guardado segredo.
Quer saber como fiz a minha fortuna?, perguntou Ohannes em tom de desafio. Sabe qual foi o meu grande golpe?
Ciente de que, ao desvendar-lhe o segredo, o seu interlocutor lhe dava prova de grande confiança, Kaloust inclinou-se ainda mais para ele.
Sou todo ouvidos.
Olhe que nunca contei isto a ninguém, avisou o anfitrião, lançando uma miradela em redor para se certificar de que não havia nenhum criado a escutá-lo. Só eu, o meu irmão, um ministro e um punhado de pessoas é que sabemos.
Fique descansado, garantiu o visitante. Serei um túmulo e dos meus lábios nada sairá. Ohannes engoliu um trago de whisky e estendeu as pernas, pondo-se confortável.
A minha família é de Kayseri, não sei se conhece ...
Os meus a vós são de lá.
O rosto do patriarca dos Berberian abriu-se num sorriso surpreendido.
Ah, não me diga!, exclamou com evidente agrado. As suas origens estão em Kayseri? Mas que maravilha! Kayseri é, como decerto não ignora, a Cesareia mencionada no Novo Testamento. Assumiu uma expressão contemplativa. Sabe o que lhe digo? Quer queiramos quer não, os melhores arménios vêm de lá!
Não tenho a menor dúvida!, concordou Kaloust com convicção. O senhor é o exemplo acabado disso!
Enrubescendo com a lisonja, Ohannes ajeitou-se no divã oriental.
Pois eu tinha uma loja em Kayseri onde vendia de tudo: tapetes, panelas de cozinha, objectos de decoração, eu sei lá. Entre os muitos produtos com que lidava incluía-se sucata de metal. Acontece que o negócio de compra e venda de sucata começou a correr especialmente bem, pelo que decidimos investir sobretudo nele. A certa altura, quando a coisa cresceu e atingiu uma dimensão razoável, contactei uma pessoa minha conhecida no Ministério da Marinha e propus-lhe fornecer cobre ao estado otomano. Essa pessoa deu-me acesso ao ministro da Marinha e, quando dei por ela, a ideia envolvia já o exclusivo desse fornecimento.
O negócio foi fechado em três tempos.
O visitante fez um ar incrédulo.
Assim? Sem mais nem menos?
O anfitrião riu-se.
Claro que não foi assim tão simples, admitiu. Paguei ao meu conhecido para me dar acesso ao ministro e paguei ao ministro para me conceder o exclusivo e assinar o contrato.
Ou seja, precisou de olear o processo com bakshish ...
Ohannes abriu os braços, como quem expõe uma evidência.
Meu caro, ninguém enriquece no Império Otomano sem pôr dinheiro nas mãos dos decisores e da dique que os rodeia, como decerto sabe, lembrou. Mas, se quer que lhe diga, o verdadeiro negócio nem foi esse. O grande segredo esteve no preço. O cobre que me propus fornecer tinha duas qualidades, a boa e a má. Havia por isso um contrato para um tipo de cobre e outro para o outro tipo. À custa de quantidades memoráveis de bakshish, convenci o ministro a cometer um pequeno lapso e a trocar os contratos, de modo a pagar um determinado valor pelo cobre bom e três vezes mais pelo cobre mau.
Kaloust arregalou os olhos, incrédulo. Teria ouvido bem?
O quê?!, admirou-se. O cobre mau era três vezes mais caro do que o bom?
Sem se conter, Ohannes soltou uma gargalhada sonora, no que foi acompanhado pelo seu interlocutor quando tomou consciência da verdadeira natureza do negócio.
Claro que os enchi de cobre mau!, revelou o anfitrião quando recuperou o fôlego, as lágrimas a molharem-lhe os olhos de tanto rir. Toneladas dele! Pois se o mau me custava uns tostões e eles me ofereciam uma fortuna por cada quilo!
Isso é genial!
A cascalhada de gargalhadas prosseguiu por longos momentos; estavam ambos perdidos de riso e a contorcer-se de gozo. A cachinada tornou-se tão grande e ruidosa que atraiu os olhares inquisitivos dos empregados e só foi interrompida quando, no caso de Ohannes, a galhofa se transformou numa tosse imparável. Nessa altura tiveram de o endireitar no divã e dar-lhe um copo de água.
Fiquei rico da noite para o dia!, disse, após recuperar a compostura. A partir daí alarguei o negócio. Comprei uns barcos e meti-me na navegação. Não contente com o que já tinha feito, abri um grande banco de financiamento e tornei-me assim o arménio mais rico de todo o império.
E tudo por causa de uma troca de contratos com o estado ...
Talvez devido ao ataque de tosse, Ohannes sentiu a bexiga apertar. Permanecia estendido no divã e fez sinal ao seu convidado para o ajudar a erguer-se. Já de pé, e antes de sair da sala, prendeu o braço de Kaloust e puxou-o para si.
Nunca se esqueça desta lição, meu caro, sussurrou-lhe ao ouvido. Ninguém ascende a parte alguma neste mundo sem encher de dinheiro os bolsos dos governantes.
O jovem arménio estava sobretudo interessado em encher os seus próprios bolsos. Sempre com esse propósito em mente, dividia o tempo por várias actividades diferentes.
As bem informadas apostas no Royal Exchange permitiram-lhe juntar um razoável pé-de-meia, razão pela qual investia nos almoços regulares com o seu protector, Philip Blake, e nas frequentes visitas à City. Tratava-se de um excelente expediente para amealhar dinheiro, mas Kaloust tinha consciência de que esta fonte de rendimento era pouco fiável. As informações do secretário-adjunto dos Negócios Estrangeiros revelaram-se geralmente seguras, é certo; porém, o que faria quando Blake deixasse de ocupar esse bem posicionado lugar? Onde diabo obteria então as preciosas informações que lhe permitiam apostar nas acções certas?
As outras actividades que dominavam a sua vida em Londres constituíam por isso investimentos com vista a recolher frutos mais tarde. Uma delas, que lhe exigia um dia inteiro ao fim-de-semana, relacionava-se com os planos relativos a Nunuphar. Considerava prioritário entrar na família Berberian e a menina era o seu passaporte. Para esse efeito conservava o contacto com Dirhoui, de modo a manter-se informado sobre o que se passava no número 11 de Hyde Park Terrace. A governanta, contudo, mostrava-se perplexa com o seu comportamento.
O senhor parou com as prendas e agora mal fala à Nunuphar, observou, intrigada. Como espera conquistá-la assim?
A pergunta soou impertinente e o rapaz ainda pensou em dizer-lhe que o assunto não era da sua conta, mas conteve-se.
Ainda precisava dela e, vendo bem, talvez fosse mais sensato elucidá-la; seria a melhor forma de a manter motivada no processo.
Ainda não percebeu? Entre as famílias arménias abastadas, como sabe, os casamentos são combinados pelos pais. Quem marcou o casamento de Nunuphar lá com o primo afastado, por exemplo, não foi ela nem o primo. Foram os pais!
E então?
O que eu estou a fazer é a corte ao seu patrão!, exclamou. Será ele, minha cara, quem me entregará a filha.
No meio de tantas estratégias e afazeres, porém, a actividade que lhe consumia mais tempo, e como parecia natural, era o curso. Os estudos de Engenharia no King's College fizeram o estudante arménio perceber que não estava vocacionado para conceber pontes ou construir arranha-céus como aqueles que se dizia estarem então a ser erguidos do outro lado do Atlântico. Mas se os trabalhos de engenharia não lhe interessavam, para que estava a tirar Engenharia? Como poderia tornar o curso útil para o seu futuro? Estaria a perder o seu tempo?
Buscou conselho em Blake. O inglês, após várias sugestões que o seu protegido não acolheu, teve a meio de uma sobremesa no Simpson's uma nova ideia.
O senhor seu pai não é o maior importador de querosene do Império Otomano?, lembrou. I say, porque não canaliza os seus estudos para essa área? Olhe que é coisa com futuro!
O querosene?
O óleo mineral, old boy! O óleo mineral!
A ideia fez o seu caminho na mente de Kaloust. Realmente, para quê procurar tão longe quando a resposta estava tão perto? Pôs-se então a investigar tudo o que havia para saber sobre o óleo que brotava das pedras, esse petra óleo que tanto entusiasmava o seu protector e tanto dinheiro havia já trazido à sua família. Estudou com atenção os relatórios da Standard Oil americana e, quanto mais investigava, mais se convencia de que o inglês tinha razão.
Assim, quando chegou o momento de o seu tutor do King's College lhe perguntar qual o tema que planeava desenvolver para tese de fim de curso, a resposta já se encontrava devidamente pensada.
A engenharia do petróleo.
A tese levou dois anos a preparar. Estudou a tecnologia de extracção e de refinação, mas sobretudo as condições do mercado, incluindo o crescimento da procura, os problemas relacionados com o abastecimento e as quedas de preço provocadas pelas práticas concorrenciais agressivas da Standard Oil.
Apresentou a tese na Primavera de 1887 e, meses depois, terminou o curso com um louvor e duas medalhas, uma de Ciência e outra de Engenharia. Quando soube da notícia, o pai mandou-lhe um telegrama entusiástico a dar-lhe os parabéns e a sublinhar o orgulho que sentia; o filho licenciara-se em Inglaterra, e com mérito! Quem não ficaria orgulhoso? Mais importante, a curta mensagem remetida por telégrafo terminou com uma ordem muito clara.
VOLTA PARA CASA STOP
Na última visita que fez aos Berberian, Kaloust nem sequer chegou a entrar no número 11 de Hyde Park Terrace. Dobrava já o umbral da porta da residência justamente quando se cruzou com Ohannes, que ia de saída e lhe travou o caminho.
Por aqui, rapaz?, saudou-o o banqueiro. Ande daí! O anfitrião pegou-lhe pelo braço e puxou-o de volta à rua.
Estou farto de estar fechado em casa. Vou dar um passeio por Hyde Park e não me apetece ir sozinho. Faça-me companhia.
Cruzaram a rua com cuidado, de modo a evitarem ser salpicados pela lama que os cavalos e as rodas dos coches pisavam, e foram deambular pelo grande parque no centro da cidade.
Enquanto cirandavam entre os jardins, Ohannes teceu uns comentários ligeiros sobre o tempo londrino, que descreveu como desgraçado, mas no mesmo fôlego elogiou o cuidado que os Britânicos dedicavam aos seus lawns. O interlocutor tudo foi ouvindo sem nada dizer, limitando-se a balouçar mecanicamente a cabeça como se escutasse sem prestar atenção. O corpo estava ali e a mente encontrava-se noutro lado. O monólogo não podia continuar sem retorno, pelo que acabou por se estabelecer um silêncio incómodo entre ambos.
Vou-me embora, anunciou Kaloust de repente. Recebi ordens para abandonar Inglaterra.
Ohannes estacou, chocado com a novidade.
Oh, não!, exclamou. Porquê? Passa-se alguma coisa?
Nada que não estivesse previsto. Terminei o curso e o meu pai mandou-me regressar a Constantinopla.
O banqueiro recomeçou a caminhar, os olhos pousados no chão enquanto matutava nas consequências da notícia.
Que vai ser de mim?, lamuriou-se. Agora quem me fará companhia durante as pavorosas recepções lá em casa?
Deveria Kaloust dar enfim um sinal claro das suas intenções?
Gostaria talvez de trabalhar mais o patriarca dos Berberian e de preparar melhor o momento em que iria tornar abertas as suas intenções, mas o facto é que já não havia tempo. Se não avançasse naquele preciso momento, quando o faria? Quando já ali não estivesse?
O senhor terá sempre companhia, afirmou, ganhando balanço para se atirar. Nem que seja do seu futuro genro.
O isco estava lançado. Iria o peixe abocanhá-lo? Quem? O primo afastado?, espantou-se Ohannes. Esse está em Kayseri, coitado! Não me pode valer ...
Então se calhar seria melhor procurar outro candidato, atreveu-se Kaloust a sugerir. Alguém que ... que esteja em melhores condições de o apoiar ...
O seu interlocutor lançou-lhe um olhar perscrutador, caindo enfim em si e percebendo onde queria o jovem realmente chegar. Depois virou-se para a frente e, a ver tudo mais claro, caminhou uns instantes em silêncio. Quando reabriu a boca foi para compor umas observações triviais sobre o estado de um canteiro plantado no parque, dizendo que alguém lhe deveria aparar as pontas. Saíram nessa altura do parque e meteram por Bayswater Road, com Ohannes a mencionar de seguida uma recepção que a mulher estava a planear para esse fim-de-semana e, por fim, a revelar que tinha saudades da sua mansão em Constantinopla.
O devaneio verbal do banqueiro foi uma forma de negar a Kaloust as suas pretensões sem lho dizer directamente. O engenheiro recém-licenciado percebeu o recado e concluiu que de nada lhe valeria insistir naquele momento. Deixaria a conversa seguir o seu curso natural e mais tarde, quando estivesse a sós, ponderaria com o devido cuidado as implicações daquela negativa e decidiria o que fazer a seguir. Sabia apenas que era contra a sua natureza desistir, pelo que teria de encontrar novos caminhos.
A meio da conversa inconsequente, em que tanto se falava de flores como do estado do tempo ou da grandiosidade do edifício do Harrods agora erguido sobre os escombros daquele que ardera tempos antes, Kaloust deteve-se bruscamente e fez sinal para uma pequena rua.
Venha daí, vou mostrar-lhe uma coisa.
Meteram pela curta Brook Street e, volvidos apenas uns metros, viraram à direita para uma rua estreita e tranquila, a fila de edifícios na esquerda a mostrar as traseiras de casas com tijolos à vista e a da direita com elegantes fachadas brancas; as copas das árvores projectavam sombras vastas sobre a rua e dois coches aguardavam diante das portas de uma residência. Que se passa?
Kaloust voltou-se para uma grande mansão num dos extremos da rua.
Está a ver esta casa?, perguntou, apontando a bengala naquela direcção. Um dia irei viver ali! Ohannes olhou para a fachada do edifício; tratava-se do número 38 de Hyde Park Gardens. Ao constatar que a mansão era ainda maior do que a casa onde vivia nessa altura, e evidente mente muito mais cara, largou uma gargalhada bem-disposta.
Ah, Kaloust!, exclamou, saboreando o que lhe parecia um chiste. Você às vezes tem graça!
O engenheiro encarou-o com o rosto muito compenetrado.
Não é piada, assegurou com alguma acidez. Um dia irei mesmo viver ali! Não duvide das minhas palavras!
O esgar sorridente do banqueiro desfez-se nesse instante de súbito embaraço. Percebeu que o seu interlocutor falava a sério e, atrapalhado, pediu desculpa pela sua reacção e calou-se. O silêncio caiu de novo entre ambos e foi assim que caminharam um bom pedaço. Os olhos pensativos de Ohannes seguiam colados ao caminho; pareciam vidrados, como se olhassem para as coisas e apenas vissem os pensa mentos que o absorviam.
A certa altura deteve-se e, como se tivesse voltado ao presente, virou-se para o seu companheiro de passeio.
Já vi que é uma pessoa muito ambiciosa, observou com palavras devidamente pesadas. Isso agrada-me deveras. Fez uma pausa curta, como se estivesse ainda a retirar as consequências da conclusão a que chegara. A milha única dúvida é se está à altura das suas ambições. Se conseguir pôr os actos onde tem a boca, talvez seja mesmo a pessoa certa para a minha Nunuphar.
O coração de Kaloust deu um salto. A declaração apanhara-o de surpresa e por momentos ainda pensou que poderia ter percebido mal. Mas não; Ohannes dissera mesmo o que ele pensara ter escutado, tinha a certeza. Deveria atrever-se a alimentar a esperança?
Não tenha dúvidas a esse respeito, declarou com grande convicção, percebendo que se abria inesperadamente uma oportunidade. Tenho grandes projectos e vou concretizá-los!
O patriarca dos Berberian retomou o caminho, uma expressão ensimesmada no rosto. Deu uns passos em silêncio, como se ainda estivesse a arrumar ideias na cabeça, e voltou a parar mais adiante.
Vamos fazer assim, disse por fim. A Nunuphar irá estudar mais uns dois anos aqui em Londres. Até lá, nada faremos. Ela está prometida ao primo e com ele casará em devido tempo. Regressou ao silêncio e completou mais uns passos meditativos. Porém, esse compromisso será interrompido se, e só se, eu me convencer em definitivo de que é você o pretendente mais adequado.
Estas palavras foram escutadas por Kaloust num torvelinho emocional, ora deprimido pela afirmação de que os planos se mantinham, ora exaltado pela possibilidade que se lhe entreabria.
E ... e o que é necessário que eu faça para que se convença disso?
Ohannes imobilizou-se uma última vez e fitou o seu companheiro de passeio com uma expressão indecifrável.
Não sei, disse. Surpreenda -me.
Uma vozearia animada enchia a plataforma dois da Gare de l'Est, com os passageiros a deixarem recomendações de última hora e palavras de consolo e despedida nos derradeiros instantes em que permaneciam em terra. O fino véu do crepúsculo abatera-se sobre Paris e o vulto fantasmagórico das composições alinhadas ao longo da plataforma contrastava com o ambiente luxuoso das acomodações do comboio, realçado pelas lamparinas de gás que iluminavam o interior como se fosse uma longa jóia.
Às sete e vinte e cinco em ponto, um funcionário fardado com o uniforme da Compagnie Internationale des WagonsLits, a gravata negra a identificá-lo como adjunto do chef de train, o contrôleur, assomou à porta de um dos vagões.
Fez-se um silêncio súbito e a voz do contrôleur soou pela gare.
En voiture, messieurs et 'dames!, anunciou. O Expresso do Oriente vai sair dentro de cinco minutos!
A algazarra recrudesceu, agora mais intensa do que nunca, e o mar de cabeças começou a movimentar-se. Os casais abraçaram-se e apartaram-se, uns a partir, outros a ficar; as mãos acenavam, os bagagistes carregavam malas, os lenços esvoaçavam na plataforma, atiravam-se palavras e beijos enquanto neste ou naquele rosto escorriam lágrimas já de saudade pelos que se afastavam.
Está na hora, não está?
Os olhos esverdeados de mademoiselle Duprés mantinham-se sorridentes; se havia quem chorasse não seria ela decerto.
Não tinha razões para se sentir triste porque não era o amor que a unia ao homem de quem se despedia, mas uma vaga mistura de amizade e interesse.
É isso, minha cara, retorquiu Kaloust. Está na hora. Levantou a mão numa saudação final. À bientôt!
Bon voyage!
Um bagagiste pegava já nas malas e o arménio, impecavelmente vestido de fraque e chapéu de coco, lançou um derradeiro olhar para a francesa antes de se virar, mergulhar na multidão que convergia para as composições e, após um breve compasso de espera, entrar por fim no comboio.
Sentiu-se instantaneamente envolvido por uma atmosfera quente e acolhedora. Um conducteur verificou o bilhete, fez uma pequena vénia com a cabeça a confirmar que estava tudo em ordem e deu-lhe as boas-vindas.
Soyez le bienvenue, m'sieur!
O conducteur deu instruções ao bagagiste, que conduziu o passageiro pelo corredor até ao compartimento número oito.
M 'sieur vai ter como vizinho o homem mais rico do comboio, observou o bagagiste, apontando para o compartimento número sete. Pelo menos, é o que dá melhores gorjetas.
Kaloust ainda pensou em inquirir da identidade do vizinho, mas achou que a observação não passava de um truque do bagagiste para o convencer a dar-lhe uma boa gorjeta, pelo que nada disse.
Entrou no seu compartimento e constatou que, tal como esperava, a decoração era de um luxo principesco. As paredes do cubículo estavam revestidas a teca e mogno, as cadeiras acolchoadas a couro macio espanhol adornado com padrões dourados, enquanto as cortinas, formadas por tecidos floridos cor de damasco, se penduravam em cordas de seda. Havia uma sineta para chamar o brigadier-postier e um tubo para falar directamente com o conducteur.
Não é por acaso que chamam ao Expresso do Oriente o grande hotel sobre rodas!, observou Kaloust enquanto o bagagiste lhe arrumava as malas no compartimento. Um hotel de grande luxo, sem dúvida!
Deu um sou de gorjeta, abriu a janela e encostou-se ao parapeito. Lá fora a multidão que se viera despedir dos viajantes convergira para junto da longa composição. Muitas pessoas esquadrinhavam as janelas com o olhar para se despedirem uma última vez dos que partiam. Procurou entre elas o rosto de mademoiselle Duprés mas não o lobrigou e, vendo bem, nem verdadeiramente o esperava.
Havia decidido em Londres regressar a Constantinopla em grande estilo, e o Expresso do Oriente, que começara a funcionar quatro anos antes com grande fanfarra nos jornais, constituiu a escolha óbvia. A primeira impressão que recolhia confirmava tudo o que se dizia. A imprensa chamara-lhe Tapete Mágico para o Oriente, metáfora pomposa que lhe aguçara a curiosidade; viera por isso a Paris de propósito para apanhar esta verdadeira maravilha dos tempos modernos.
Porém, e já que se encontrava na grande cidade, aproveitou para permanecer alguns dias e contactar a sua antiga tutora de Marselha, mademoiselle Duprés, que por esta altura acabava o curso de Literatura na Sorbonne. Kaloust descobriu que Paris era prazer, sobretudo depois de a francesa o ter guiado durante o dia pelas atracções da cidade, dando especial atenção aos tesouros expostos no Louvre, mas também aos espectáculos atrevidos nas Folies Bergère, E à noite, quando recolhiam ao hotel, ela transportava-o pelas delícias encerradas no seu corpo de mulher, como se tivessem recuado às lições nocturnas que lhe ministrara em Marselha. Tudo a troco de uma mão-cheia de francos, claro; amizade era amizade, mas certas coisas continua vam a ser negócio.
Um apito prolongado e lúgubre ecoou na gare, esfumando as agradáveis memórias de Kaloust da semana que passara em Paris. A multidão na plataforma agitou-se, irrequieta, pressentindo que chegara o momento; o burburinho cresceu e tornou-se nervoso, gritaram-se derradeiras palavras de despedida, as mãos que saíam das janelas tocaram nas que se estendiam lá fora na sua direcção, trocaram-se beijos pelo ar, um último olhar, um sorriso e algumas lágrimas. Com um suspiro longo e melancólico, quase como se sofresse já de saudade, o Expresso do Oriente deu um estremeção, pareceu que tossia, e entrou enfim em movimento.
A viagem começava.
Ao sair para o corredor com o intuito de dar um passeio para explorar o comboio, Kaloust foi atraído por um som estrangulado que lhe pareceu vir da cabina vizinha, o compartimento número sete. Ainda pensou em ignorar o barulho, mas a lembrança da observação do bagagiste sobre o passageiro que ali seguia fê-lo deter-se. Quem sabe se não se abriria ali uma oportunidade? No fim de contas, não são as pequenas portas que por vezes conduzem a grandes salas? Vencendo a relutância em meter-se no que não lhe dizia respeito, recuou e bateu à porta da cabina.
Está tudo bem?
Ouviu um estranho som gorgolejante e, inquieto, deitou a mão à maçaneta e abriu a porta. Deparou-se com um homem de gatas no chão e debruçado sobre uma poça de vómito.
Apercebendo-se de que alguém espreitava do corredor, o homem ergueu a cabeça.
Sinto-me maldisposto ...
Sem perder tempo, Kaloust tocou na sineta para pedir auxílio e ajudou o passageiro adoentado a levantar-se. Um pivete ácido enchia o compartimento, pelo que teve também o cuidado de correr as cortinas e abrir a janela de modo a deixar entrar ar fresco. Alertado pela sineta, um brigadierpostier apareceu instantes depois e, percebendo a situação, agarrou de imediato no tubo de comunicação e solicitou ao conducteur que enviasse um médico. Depois de se certificar de que o passageiro já recuperava da indisposição, anunciou que ia buscar um balde e panos para limpar a cabina e sumiu-se pelo corredor.
Enquanto o médico não vinha, Kaloust retirou o homem do compartimento e acompanhou-o até à extremidade mais próxima do vagão. Os toilettes tinham plantado à porta um empregado cuja única função era fazer a limpeza após cada uso dos sanitários. Com a ajuda desse empregado, Kaloust entrou no quarto de banho e ajudou o seu companheiro de viagem a lavar a cara.
O passageiro adoentado foi a seguir devolvido à sua cabina, onde o médico do comboio já o esperava com uma malinha na mão e estetoscópio ao pescoço. Constatando que a sua presença ja não era necessária e que se tinha quase tornado um vulgar mirone do caso, Kaloust despediu-se e foi à sua vida.
Um toque suave na porta, quase uma carícia, interrompeu a leitura de Kaloust. Corria o fim de tarde do segundo dia de viagem e a bola avermelhada do Sol, à direita, beijava a vasta planície amarelada da Hungria.
Entre!
A porta abriu-se e o arménio viu uma cabeça de bigode e barba pontiaguda espreitar pela entrada. Era o passageiro do compartimento número sete.
Sou o seu vizinho, identificou-se o homem, evidentemente recomposto da enfermidade da véspera. Vinha agradecer-lhe a sua gentileza. Foi muito amável.
Kaloust levantou-se num salto.
Ah, não tem nada que agradecer!, exclamou. Folgo em vê-lo de saúde! Presumo que a sua indisposição já esteja debelada ...
Apertaram as mãos.
Sem dúvida, disse o vizinho. Comi em Paris umas ostras que não me caíram nada bem. Com o balouçar do comboio, mesmo suave, como é o caso, a coisa deu-me a volta ao estômago e fiquei enjoado. Mas o médico já tratou de mim, deu-me uns sais maravilhosos e depois de uma noite e um dia a repousar sinto-me como novo. Apontou para o livro que Kaloust pousara na mesinha. Não o queria interromper. Vim apenas agradecer a gentileza que teve comigo e dizer-lhe que estou à sua disposição para o que for preciso.
O senhor foi de uma generosidade sem limites.
Trocaram mais umas amabilidades, com referências à sorte que era o Expresso do Oriente dispor de um médico permanentemente a bordo, mas, a certa altura, a conversa tornou-se circular. Sem mais nada de novo para dizer a não ser repetirem-se, despediram-se.
O arménio voltou ao seu lugar e regressou à leitura. Meia hora depois, um novo toque na porta voltou a interrompê-lo. Foi abrir e verificou que desta vez era o contrôleur.
M'sieur, são sete e quarenta e cinco, anunciou o francês num tom formal. O jantar será servido dentro de um quarto de hora.
Depois de retomar a leitura o tempo suficiente para terminar o capítulo, Kaloust arrumou o livro e foi-se arranjar. Ajeitou a gravata ao espelho, vestiu o casaco e saiu.
Desaguou no restaurante às oito em ponto. Depois de se embeber na atmosfera geral, Kaloust focou os olhos nos passageiros e o primeiro que viu foi justamente o rosto familiar do viajante seu vizinho; o homem encontrava-se sentado junto à segunda janela à esquerda, numa mesa de dois lugares.
Viaja sozinho?, perguntou o ocupante do compartimento número sete, fazendo um gesto cortês a indicar o assento vazio diante dele. Porque não me faz companhia?
O recém-chegado nem hesitou; ora ali estava uma bela oportunidade para tentar arrancar do companheiro de viagem a história que fazia dele, nas palavras do garagiste, o homem mais rico do comboio.
Com muito prazer, disse, dirigindo-se à mesa. Já agora, apresento-me. Estendeu a mão. Sou o engenheiro Kaloust Sarkisian, de Constantinopla.
O vizinho levantou-se, apertou-lhe a mão e sorriu.
Ah, um conterrâneo!, exclamou, voltando a sentar-se.
O meu nome é Basil Zaharoff e também sou de Constantinopla!
Bela coincidência, sim senhor! Estreitou as pálpebras.
Mas, tem piada, esse nome não parece muito otomano ...
Zaharoff riu-se.
Nada lhe escapa, já percebi!, exclamou. O que se passa é que a minha família grega fugiu para a Rússia depois dos pogrons turcos de 1821 e o apelido russificou-se, embora tenhamos mais tarde voltado a Constantinopla. Nasci Zacharias Basileios Zacharoff, mas prefiro que me chamem Basil Zaharoff. Arqueou as grossas sobrancelhas. Tem mais mistério.
Enquanto ouvia, Kaloust ia remexendo distraidamente nos talheres de prata sólida dispostos sobre a mesa.
É curioso, o seu nome parece-me familiar, observou com uma expressão intrigada. Onde já o ouvi?
O grego fez um esgar com os lábios finos, quase cruéis, na dúvida sobre como responder.
A sua familiaridade com o meu nome depende da sua área profissional. Se não é indiscrição, o que faz na vida?
Bem, terminei agora o meu curso de Engenharia e neste momento regresso a Constantinopla. A única coisa lucrativa que fiz nestes últimos anos foram uns bons investimentos no Royal Exchange.
Então talvez me conheça daí.
Era evidente que o seu interlocutor tinha urna certa relutância em identificar-se, pelo que o arménio se concentrou nesta observação e pôs-se a passar em revista os seus investimentos na bolsa. Pensou em cada urna das compras que havia feito ao longo do tempo e, ao fim de alguns segundos, escancarou os olhos numa expressão de reconhecimento.
A Maxim!, exclamou. O senhor é o representante mundial da Maxim!
Nordenfelt-Maxim, corrigiu Zaharoff com um sorriso.
Bravo, está bem informado! Já vi que é um bom investidor!
Embora na verdade a minha empresa seja a Nordenfelt. Em grande parte graças aos meus esforços, digo-o sem falsas modéstias, conseguimos uma união com a Maxim que prevejo se vá tornar muito proveitosa.
Kaloust estudou com atenção o homem diante dele.
Lembrou-se que Philip Blake lhe tinha já falado em Basil Zaharoff, alcunhando-o de Mercador da Morte; dizia-se que vendia armamento a todo o planeta. O arménio sentiu nesse instante um arrepio percorrer-lhe a coluna. Uma coisa era comprar urnas acções da Maxim Gun Company, meros papéis abstractos que se transaccionavam no Royal Exchange; outra era partilhar a mesa com o homem que mais armas negociava no mundo. O que deveria fazer? Levantar-se e ir-se embora? A ideia aflorou-lhe o espírito, mas afastou-a de imediato. Tinha de se comportar corno um gentleman. Além disso, quem sabe se não aprenderia alguma coisa com o êxito do seu interlocutor?
A conselho de um amigo, comprei há dois anos acções da Maxim, revelou. Mas ainda não me renderam nada e receio que assim continuem ...
Pois está enganado, meu caro. A partir do momento em que se juntou a nós, a Maxim deixou de ser um inimigo a sabotar e tornou-se um aliado a promover. Inclinou-se na mesa. Estou já a negociar uns contratos de arromba! Sabe que ...
Os senhores desejam ver a lista?
Um serveur interrompeu a conversa e entregou-lhes a ementa; a folha, com as letras impressas a tinta dourada, era de uma variedade digna de um banquete. A lista não servia para escolherem um prato, mas para os informar do que aí vinha, e o jantar começou quase de imediato a ser servido enquanto os comensais conversavam sobre negócios.
Receio ser responsável pela relativa improdutividade dessas suas acções, gabou-se Zaharoff enquanto iam comendo.
Sabe, quando a Maxim era nossa concorrente não fiz outra coisa que não fosse sabotá-la.
Sabotá-la?! Como?
Oh, nem imagina! Há dois anos as forças armadas italianas convocaram a Nordenfelt e a Maxim para uma demonstração em La Spezia das capacidades das respectivas metralhadoras. A nossa era muito pior, claro. Já a Maxim era um espanto. Consciente de que em igualdade de circunstâncias estávamos perdidos, sabe o que fiz? Na véspera da demonstração arranjei maneira de levar os representantes da Maxim a um bordel em La Spezia, depois de ter dado instruções rigorosas às raparigas para os deixar knock-out. As moças foram de tal modo zelosas que os tipos da Maxim não conseguiram comparecer à demonstração. Conclusão? A Nordenfelt ganhou o contrato!
Kaloust levantou uma sobrancelha.
Não parece concorrência muito leal ..
Nos negócios, meu caro, é como na guerra e no amor: vale tudo!, sentenciou o grego. No ano passado foi o exército austro-húngaro que organizou uma demonstração em Viena. Já não podia recorrer outra vez ao número do bordel, claro. Então o que fiz? Subornei o guarda do armazém onde a Maxim guardou o seu equipamento e, na noite que antecedeu a demonstra ção, fui lá e sabotei-lhes a metralhadora. Quando chegou a hora de mostrar o que valia, a arma da Maxim deu dois ou três disparos e ... pif, encravou. Ficámos também com esse contrato! Cilindrei a Maxim de tal maneira que eles perceberam que não iam a lado nenhum e acabaram por aceitar uma fusão com a Nordenfelt. Era a única maneira de se verem livres de mim!
Ou seja, admirou-se Kaloust, acabou de se tornar o representante das mesmíssimas metralhadoras que ainda há pouco tempo andava a sabotar!
O grego soltou uma gargalhada ruidosa.
Diga lá se não é de génio?
Enquanto conversavam, os serveurs, todos eles de casaco de cauda, calças de montar até ao joelho e meias de seda, iam pondo e tirando da mesa os pratos, todos de porcelana de Sèvres com a borda em ouro. A sopa introdutória seguiram-se hors d'ceuures com ostras, caviar e lagosta; depois veio um prato de pargo assado, outro de carne de veado e um galo com ameixas; e, por fim, um sortido de sorvetes, vários bolos, uma dúzia de queijos e fruta variada. O balanço do comboio era de tal modo suave que nem uma gota de vinho se entornou dos copos de cristal de Baccarat assentes na mesa.
No final da refeição, duas horas depois, Kaloust e Zaharoff passaram ao salon de société, situado ao fundo do vagão-restaurante. O compartimento era mobilado com sofás de couro e uma estante repleta de livros e jornais em várias línguas, reproduzindo assim a atmosfera característica de um reservado club londrino. O arménio pediu um vinho do Porto, o grego optou por um cálice de cognac Napoleon que bebeu em abundância, alegando que celebrava ainda a fusão entre a Nordenfelt e a Maxim, ocorrida apenas algumas semanas antes.
O comerciante de armas ia-se gabando da sua vida atarefada. Disse que passava o tempo em viagem e só frequentava hotéis de luxo, informação que impressionou Kaloust. O que o jovem engenheiro queria verdadeiramente ouvir, porém, era outra coisa. O arménio ardia de curiosidade de saber como um homem de negócios bem-sucedido havia conseguido o seu primeiro grande contrato, experiência que achava poderia ser-lhe útil e dar-lhe pistas para o seu futuro profissional, mas sentia relutância em perguntar directamente.
Só quando, uma hora mais tarde, constatou que o seu interlocutor estava já bem regado de álcool e falava com menor domínio sobre o que dizia é que ganhou atrevimento para abordar o tema.
Uma das coisas que mais me interessa conhecer num homem de negócios é a forma como ele ascendeu na vida, disse, como se não se estivesse a referir a ninguém em particular. Tiram-se lições muito relevantes dessas histórias, não acha?
Então não se tiram?, concordou Zaharoff com um brilho líquido nos olhos, mirando a bebida cor de caramelo que lhe dançava no cálice; era talvez a quarta dose de cognac que consumia depois do jantar e a língua já se começava a enrolar enquanto falava. Olhe o meu caso. Eu não passava de um zé-ninguém que começou por conduzir turistas às putas em Constantinopla. Um dia, um amigo recomendou-me para o lugar de vendedor da Nordenfelt. Era um trabalho a tempo parcial. Pagavam-me uma miséria, cinco libras por semana, mas prometeram-me uma comissão de dez por cento se conseguisse obter-lhes alguma venda. Assim dito até parece que era coisa de jeito, mas sabe qual o produto que me meteram nas mãos? A porcaria de um submarino que se estava sempre a avariar! Na altura ninguém sabia sequer o que era um submarino e a Nordenfelt não conseguia convencer ninguém a comprá-lo. Pois foi essa bosta que me disseram que vendesse!
Ah! E o que fez para se desenvencilhar?
Zaharoff colou o indicador à testa.
Usei a cabeça, homem! Reprimiu um arroto. Os Balcãs estão em pé de guerra por causa dos Otomanos, não é verdade? Como ninguém queria a porra dos submarinos, pedi à Nordenfelt autorização para vender um primeiro veículo abaixo do preço de custo. Os tipos não queriam, forretas como o diabo!, mas lá os consegui convencer. Depois fui a Atenas e reuni-me com o ministro da Defesa grego. Apresentei-lhe o submarino com um belíssimo desconto, disse-lhe que era uma máquina nova que iria pôr os Otomanos em sentido ... e, claro, prometi-lhe que cinco por cento da venda reverteria para uma conta em nome pessoal dele. O negócio ficou fechado e vendi assim o meu primeiro submarino!
Não sei quanto custa um submarino, mas não me parece que a venda de um aparelho faça a fortuna de ninguém ...
O grego levantou a palma da mão.
Calma, homem! Calma que ainda não acabei! Bebeu mais um trago de cognac. Quando saí de Atenas, sabe para onde fui de imediato? Direitinho a Constantinopla, claro! Marquei uma reunião com o ministro da Guerra otomano e, com ar alarmista, revelei-lhe que os Gregos tinham acabado de adquirir um perigoso navio que se deslocava debaixo de água e se podia infiltrar no mar de Mármara sem ninguém ver. Caramba, até podia passear pelo Bósforo e mandar o palácio do sultão pelos ares! O homem ficou acagaçado, havia de o ver! Encomendou-me logo dois submarinos, e desta vez ao preço normal!
Ena! Uma venda sem bakshish é obra!
Qual quê! O ministro era estúpido, mas não assim tão estúpido! Ficou com a sua comissãozita, pois então!
Ah.
O que fiz a seguir? Arranjei maneira de passar a agentes russos a informação de que as forças armadas otomanas tinham acabado de adquirir dois potentes submarinos, capazes de navegar pelo mar Negro e ir bombardear as instalações navais da Crimeia. O czar ia tendo um chilique, coitado! Mandou logo o seu adido naval a Londres adquirir uma mão-cheia dos nossos submarinos! E aqui sim, sem bakshish!
Mas você ficou com a sua comissão, claro.
Zaharoff bebeu de um gole o que lhe restava de cognac e pousou ruidosamente o cálice na mesinha do salon de société. Depois ergueu-se do lugar para recolher aos seus aposentos. Fiquei foi rico homem!
No resto da viagem, Kaloust não procurou mais a companhia do seu vizinho de cabina. De resto, a partir de Bucareste Zaharoff passou a gozar da companhia de uma romena ruiva que alguém introduziu no compartimento número sete, pelo que o arménio se limitou a saudações formais e distantes sempre que com ele, ou eles, se cruzou no comboio.
Quando o Expresso do Oriente chegou a Nis, na Sérvia, o chef de train anunciou aos passageiros que teriam de fazer um transbordo para serviços de diligência, uma vez que a linha férrea estava incompleta ao longo da Bulgária. Kaloust apeou-se com a ajuda de um bagagiste que lhe transportou as malas para a sua diligência, um veículo com quatro lugares e puxado por dois cavalos. O interior era aparentemente confortável, embora apertado e com aberturas minúsculas.
Que raio de janelas!, protestou o arménio. Assim ninguém consegue respirar! Não se consegue arranjar uma diligência com janelas maiores?
De chicote na mão, o cocheiro abanou a cabeça.
Não é por acaso que as janelas têm esse tamanho, disse, preparando-se para se alçar. É por razões de segurança.
Segurança como?
O cocheiro içou-se para o lugar de condutor.
Dos tiros, senhor, dos tiros!, exclamou, pegando nas rédeas. Com janelas pequenas os passageiros ficam mais protegidos das balas disparadas pelos bandidos que enxameiam a estrada.
A informação aterrorizou os quatro ocupantes da diligência onde seguia Kaloust, e o arménio começou mesmo a interrogar-se sobre a sensatez daquela aventura. Dizia-se que só no ano seguinte as obras em falta na Bulgária estariam concluídas e seria possível ir até Constantinopla sem o transbordo em Nis. Ainda pensou em não seguir viagem, mas reconsiderou. O que faria? Ficava ali em Nis, no meio do nada, a ver as vacas pastarem? Percebeu que era demasiado tarde para voltar atrás e, com resignação, assumiu o seu lugar na pequena cabina.
O percurso por diligência revelou-se um pesadelo. Seguiram aos saltos ao longo de mais de duzentos quilómetros em estradas rudimentares, passando em importantes trechos por regiões selvagens. E isto com apenas breves paragens, em povoações consideradas relativamente seguras, para a muda de cavalos.
Se por algum motivo tivermos de ficar numa destas povoações, explicou o cocheiro numa dessas paragens, os passageiros devem dormir dentro da diligência.
Ora essa! Porquê?
Razões de segurança e higiene.
A explicação não convenceu alguns passageiros incomodados com todo aquele desconforto, mas os acontecimentos acabaram por dar razão ao cocheiro. A meio da viagem, já depois de terem passado Sófia, ouviram-se tiros no exterior e os ocupantes da diligência onde seguia o jovem engenheiro reagiram com horror.
Meu Deus!, gritou uma matrona francesa, perdendo a cor das suas faces habitualmente rosadas. Vamos morrer!
Kaloust encolheu-se no seu lugar, também ele pálido de pavor. Sentia-se tão assustado que nem um guincho de medo foi capaz de emitir; o barulho mais alto que lhe saía do corpo era o ribombar descontrolado do coração. Os tiros em seu redor prolongaram-se, umas vezes perto mas a maior parte das vezes longe, e a diligência seguiu o seu caminho, como se fosse alheia ao que sucedia na estrada. Alguns quilómetros à frente, a calma regressou e o veículo avançou sempre. Só parou na manhã seguinte quando chegaram enfim a Tatar Pazardzhik e puderam fazer um transbordo para um outro comboio da Compagnie Internationale des Wagons-Lits.
O comboio partiu depois de todas as diligências terem chegado sãs e salvas. A viagem foi relativamente curta, uma vez que, horas depois, quando os passageiros ainda se recompu nham nos seus compartimentos da estafa da viagem nas diligências, um conducteur foi batendo às portas das cabinas com o anúncio pelo qual por essa altura todos mais ansiavam.
M 'sieurs et m' dames; ia dizendo à medida que as portas se abriam, dentro de trinta minutos chegamos a Constantinopla!
Havia algo de tranquilizador na azáfama distante dos veleiros e dos vapores que congestionavam o mar de Mármara e convergiam para o Bósforo ou dele vinham, sempre a deslizarem com suavidade diante do casario recortado no horizonte, como uma gigantesca aguarela pintada em cores luminosas. A imagem de Constantinopla enchia a janela da sala de jantar onde a família Sarkisian almoçava, uma vista privilegiada que os olhos de Kaloust, já desabituados daquele panorama arrebatador, não se cansavam de contemplar.
A atenção dos pais, porém, mantinha-se centrada no filho recém-regressado a casa; era ele, e não a cidade longínqua, que lhes alegrava o olhar.
Agora que tens o teu curso, disse Vahan enquanto sorvia a sopa, o que planeias fazer?
Era uma boa pergunta. O próprio rapaz se questionara mil vezes nos últimos tempos sobre o seu futuro.
Não sei, retorquiu. Talvez uns negócios ...
Negócios? Que negócios? O curso que tiraste não é de Engenharia?
De facto.
Então ... exerce! Há para aí tanta obra que precisa de ser feita neste país! Sorveu mais uma colherada. Queres que fale com Salim Bey para ver onde pode o teu conhecimento ser aplicado?
O rosto de Kaloust contraiu-se numa careta reticente.
Se quer que lhe diga com toda a franqueza, não me apetece andar a construir estradas, pontes, e mais não sei o quê ...
O pai pousou a colher no prato de sopa e fitou o rapaz com um esgar de incredulidade.
Então para que estudaste Engenharia?, quis saber. Para que estive eu a financiar a tua estada em Londres? Olha que me saiu caro! Tem de haver retorno para esse investimento, não te parece? E tiraste um belíssimo curso, emprego não te faltará decerto.
O olhar de Kaloust desviou-se de novo para Constantinopla, que enchia a janela em toda a sua amplitude. Fixou a atenção sobretudo na graciosidade da zona de Stamboul, onde se destacavam os grandes vultos de Hagia Sophia e da mesquita de Süleymaniye. Pareciam colossos eternamente de sentinela, ambos os santuários enquadrados por minaretes como sultões rodeados de concubinas no harém.
A minha tese de fim de curso foi sobre o petróleo, lembrou com uma expressão distante. Ora o senhor tem o exclusivo do abastecimento de querosene ao sultão, não é verdade? Desviou o olhar perdido na cidade longínqua e encarou o pai. Porque não conciliar as duas coisas?
Queres trabalhar no negócio do querosene? Mas olha que isso é trabalho de comerciante ...
O comércio a retalho de querosene, para ser sincero, também não me interessa. O que me parece realmente interessante é pegar no negócio do petróleo de raiz e repensar a sua arqui tectura. Quando estudei o assunto em Londres apercebi-me de que se encontram aqui encerradas potencialidades incríveis. Como estamos ainda no início da exploração e pouca gente tem uma noção exacta do que se passa, quem avançar primeiro poderá adquirir uma vantagem competitiva decisiva.
Estamos no início? Mas ... mas já existe muita gente metida nesse negócio há muito tempo! Gente sem preparação nem qualificação, senhor. Uns aventureiros, é o que são! Do que eu estou a falar é de uma coisa profissional, está a perceber? Uma coisa a sério, como na América.
A atenção de Vahan regressou à sopa. Os comensais mergulharam momentaneamente num mutismo pensativo. À mesa apenas se escutavam os sons das colheres a tilintarem nos pratos e a serem sorvidas a uma cadência ritmada, quase como uma composição musical feita de tlins.
O patriarca dos Sarkisian terminou a sua sopa e esperou que os criados levassem o prato vazio antes de voltar a falar.
Sabes o que acho? Precisas de fazer uma viagem.
O filho fitou-o com uma expressão de surpresa inquisitiva.
Uma viagem? Onde?
Os empregados reapareceram e depositaram uma travessa de khorovats no centro da mesa. A carne grelhada desprendia um aroma agradável que humedeceu as papilas gustativas do recém-chegado; havia já muito tempo que Kaloust não degustava aquela iguaria da infância.
À terra do querosene, rapaz.
O comboio exalou um sopro longo e fumarento, parecia que bufava de exaustão. Com uma sacudidela final, como o
espasmo de um estertor de morte, a composição imobilizou-se por fim.
Depois de lançar uma última espreita dela pela janela, na tentativa de tomar um primeiro pulso à cidade, Kaloust fez um sinal ao paquete da companhia de caminhos-de-ferro e o rapaz, um georgiano que reivindicava origens de nobre entretanto empobrecido, pegou nas duas malas e arrastou-as pelo corredor até à porta. Com um derradeiro esforço, depositou-as sobre a plataforma.
O arménio desceu a seguir, pagou nove pence de gorjeta e, foi de imediato assediado por três cocheiros tártaros vestidos com os seus trajos tradicionais.
Transporte, senhor?
Kaloust escolheu aquele que lhe pareceu apresentar aspecto de maior confiança e seguiu-o pela plataforma até abandonar a gare e se meter num fiacre decrépito; era evidente que a manutenção do veículo fora algo negligenciada.
Para o Grand Hotel.
Depois de ver o coche ir o tártaro arrumar as malas, o viajante recém-chegado alçou-se para o fiacre e acomodou-se no interior. Quando o veículo arrancou, instalou-se à janela e ficou a devorar a cidade com os sentidos.
Baku.
A viagem tinha sido longa desde que três semanas antes largara do cais de Gálata, em Constantinopla, no vapor Niemen. Percorrera o Bósforo e navegara pelo mar Negro até Batum, de onde atravessara a Mingrélia numa composição dos Caminhos-de-Ferro Transcaucasianos que o levara a Tiflis. Do terceiro andar do Hotel Berlim vira o czar e a czarina em carne e osso desfilarem num coche pela bela capital da Transcaucásia russa, acompanhados pelo czarevitch e pelo resto da comitiva, todos escoltados pelos regimentos arménio, georgiano e tártaro nas suas mais garbosas fardas. Ah, que espectáculo!
Mas nesse momento estava em Baku, o verdadeiro destino da sua expedição, e a surpresa não podia ser maior. Kaloust esperara encontrar uma cidade com forte traça persa, dominada talvez pela torre de onde se atirara a filha de um khan, pelo menos a crer na emocionante narrativa de Alexandre Dumas que havia lido anos antes em Marselha. Mas o que encontrou enquanto o fiacre percorria as ruas da cidade azeri foi uma urbe moderna, com avenidas largas e edifícios amplos e de construção recente. Experimentou um sentimento de decepção; procurava a magia dos khans de tempos idos, mas não lhe parecia ver grande diferença entre aquela e tantas outras povoações da Rússia.
O vento batia-lhe na cara, sacudindo o cabelo com violência, quando de repente um odor forte lhe penetrou nas narinas. O fedor pareceu-lhe desagradável, com qualquer coisa de ácido, talvez resultante de um químico pestilento. Esticou o pescoço pela janela e, esforçando-se por se fazer ouvir acima do barulho do veículo em movimento, gritou para o cocheiro.
Que cheiro é este?
O homem bramia o chicote no ar mas imobilizou-se.
Petróleo, senhor! É o cheiro do petróleo! Apontou para a estrada que pisavam. Está a ver ali? O olhar do passageiro desceu para a via e identificou uma mancha cinzento-azulada que cobria parcialmente a estrada. Estudou-a com atenção e percebeu que os Russos estavam a usar resíduos das refinarias de nafta, que entretanto solidificavam e adquiriam consistência, para pavimentar as ruas. A primeira reacção foi de repugnância, mas, depois de observar os outros veículos e cavalos que percorriam a mesma rua, apercebeu-se de que ninguém levantava poeira nem lançava lama ao passar. Concluiu então que aquele sistema de usar a nafta solidificada para pavimentar as vias tinha afinal o seu quê de engenhoso. Quem sabe se a ideia não se poderia exportar para a Europa?
Por entre gritos de whoa! e alto!, o cocheiro travou os cavalos e interrompeu a cadeia de pensamento do passageiro. Acto contínuo, o fiacre abrandou e acabou por se imobilizar. Chegámos, senhor! , anunciou o cocheiro logo que saltou para o chão e o silêncio se instalou. O homem começou de imediato a tirar as malas. É aqui o Grand Hotel de Baku!
O edifício tinha a reputação de ser o melhor hotel da cidade e revelou-se relativamente bem decorado e mobilado, mas não impressionou Kaloust. A viagem no Expresso do Oriente pegara-lhe o gosto pelo grande luxo, sobretudo depois de ouvir Basil Zaharoff descrever a sua vida de frequentador dos melhores hotéis da Europa. Isso é que era saber viver!
Quando estava a arrumar as malas no quarto ouviu um toque na porta e foi abrir. No corredor, a fitá-lo com uns olhos azuis intensos, plantava-se um homem alto de barba e cabelo louro forte e cuidadosamente penteado; aparentava uns trinta anos e segurava um chapéu.
Boa tarde, cumprimentou. Estou a falar com o senhor Sarkisian, presumo ...
Sim, sou eu.
O desconhecido estendeu a mão.
O meu nome é Emanuel Nobel, apresentou-se. Sou fornecedor do seu pai e recebi um telegrama dele a anunciar a sua chegada e a pedir que o guiasse pela cidade. O director do hotel avisou-me que tinha acabado de se instalar e vim de imediato pôr-me à sua disposição.
Depois de cumprimentar o visitante e agradecer a sua gentileza, Kaloust pediu apenas uns momentos para se aprontar. Instantes mais tarde, já lavado e refrescado, descia as escadarias do hotel em direcção ao átrio e reencontrou o seu novo guia.
O senhor é da família Nobel?, perguntou ao seu novo companheiro. Os mesmos Nobel que dominam o negócio do petróleo na Rússia?
Somos nós mesmos.
Que curioso! Veja lá que li muito sobre os vossos investimentos quando preparava a minha tese de fim de curso no King's College! Parece que um dos seus familiares, o senhor Ludvig, é o grande magnata do petróleo nesta parte do mundo.
Era o meu pai. Infelizmente faleceu no ano passado ...
A informação deixou Kaloust momentaneamente embaraçado.
Ah, desculpe! Não sabia.
Não faz mal. Desde que o papá morreu fui eu que assumi os destinos da empresa.
Então e os seus tios? O que é feito daquele que inventou a dinamite? Tenho ideia de ter lido algures que também faleceu ...
O tio Alfred? Isso foi um equívoco dos jornais. Quando o meu pai morreu, os jornais pensaram que tinha sido o meu tio e noticiaram o desaparecimento do inventor da dinamite.
Alguns chamaram-lhe mesmo o Inventor da Morte. Esboçou um sorriso breve. O meu tio ficou deprimidíssimo quando leu os obituários, coitado. Percebeu que vai ser sempre conhecido por causa da dinamite. As notícias afectaram-no tanto que até Já reviu o testamento com o intuito de criar uns prémios quaisquer que lhe melhorem a reputação. Encolheu os ombros. Um esbanjamento de dinheiro, se quer a minha opinião ... Mas, enfim, ele anda ocupado com as suas coisas e preferiu deixar-me a mim a gestão do negócio aqui em Baku. Como deve calcular, não há muita gente que esteja disposta a enterrar-se numa cidade como esta.
Saíram do hotel e o arménio verificou que o odor intenso a petróleo, que tanto o incomodara quando vinha no fiacre, já se lhe tornara quase indiferente. Não havia dúvida de que as pessoas se habituavam a tudo.
Com um gesto imperial, Emanuel dispensou o seu coche, preferindo mostrar a cidade ao visitante num périplo a pé. Atrás de ambos seguia um homem alto e entroncado, com barbas de corsário e uma pistola no cinto que o anfitrião identificou como um kotschi, um tártaro que lhe fazia a guarda pessoal.
E precisa de guarda pessoal?, admirou -se Kaloust. Estamos no meio da civilização, não estamos?
No rosto de Emanuel desenhou-se um sorriso irónico.
Acha que sim?
Nem trezentos metros andaram quando um vulto caiu sem aviso sobre Kaloust. Uma algazarra súbita irrompeu da direita e o arménio viu-se deitado de costas no passeio, os movimentos presos pelo homem que estava em cima dele. Antes que se apercebesse do que sucedia, sentiu o peso do desconhecido desaparecer e compreendeu que o kotschi de Emanuel pegara nele como se não passasse de um saco de batatas e o atirara para o meio da rua alcatroada. Ainda atarantado com o inesperado dos acontecimentos, Kaloust ergueu-se, titubeante, e olhou na direcção da algazarra.
Um homem colossal, talvez com uns dois metros de altura e um rosto longo e grotesco, de barba negra densa e chicote na mão, lutava com três homenzinhos de aspecto miserável. Era difícil destrinçar quem levava a melhor, porque mal o matulão se desfazia de um assaltante logo os outros dois voltavam à carga.
Emanuel fez um sinal ao kotschi e o guarda tártaro mergulhou na contenda como um touro, ajudando o gigante a dominar os adversários. Confrontados com dois verdadeiros titãs, os homenzinhos perceberam que não tinham hipóteses e puseram-se de imediato em fuga, um deles a coxear, mas o gigante não os largou e foi a correr atrás dos fugitivos, flagelando-os com o chicote. Ao fim de alguns metros, contudo, o perseguidor desistiu e deu enfim meia volta; os seus adversários, mesmo coxos, eram demasiado rápidos para ele.
Então, Arpiar?, perguntou o sueco ao gigante quando a calma regressou àquela esquina. Mesmo depois de os vencer ainda vai atrás deles, hem? Parece-me um bocado mauzinho da sua parte ...
Enquanto se aproximava dos recém-chegados, o matulão ia ajeitando as roupas desconchavadas e enrolando o chicote. Vinha ofegante, mas o que nele mais se destacava, além do aspecto geral de colosso violento, era o olhar com o seu quê de louco e selvagem, até maléfico, talvez por causa das espessas sobrancelhas que lhe conferiam um ar de Mefistófeles corpulento.
Mauzinho? rugiu com um vozeirão trovejante. Eu sou mau! Muito mau, até! E com muito orgulho! Sabe porquê? Porque só os fracos é que são bons, percebeu? E armam-se em bons porque não são suficientemente fortes para serem maus!
Pois, eu conheço a sua teoria, disse Emanuel num tom condescendente. Mas não acha que já está na hora de ter juízo? Porque não deixa os kotschi lutarem por si?
Não preciso desses maricas! Apontou para o guarda tártaro atrás dele. E também não preciso da ajuda do seu kotschi! Sozinho era perfeitamente capaz de despachar este bando de maltrapilhos!
Tsss, tsss!, retorquiu o sueco, abanando o indicador num gesto de repreensão. A ingratidão é muito feia, meu caro Arpiar Zinovieff! Então mandei o meu guarda dar-lhe uma ajudinha e é assim que me agradece? Mas o que é isto?
O que quer que lhe faça? Que lhe dê um beijo?
Um simples obrigado bastaria.
Zinovieff fungou profundamente e, virando-se para a direita, expeliu um volumoso escarro para o chão.
Quer um agradecimento? Então apareça amanhã à noite no meu palacete! Vai ver o que é uma festa a sério!
Isso é um convite?
O gigante pôs as mãos à cintura e, de face carregada e chicote enrolado na mão, encarou o seu interlocutor como se se preparasse para o enfrentar em combate.
É uma ordem!
Emanuel guiou um atónito e amedrontado Kaloust pelas ruas de Baku no caminho de regresso. O arménio tirara o casaco e sacudia ainda o pó que o sujara quando havia caído no chão; o incidente tinha-o deixado sem vontade de prosseguir o passeio e pediu para voltar para o hotel. Embora estivesse assustado, sentia-se sobretudo perplexo com a estranha cena a que assistira momentos antes.
Isto é sempre assim?
O sueco sorriu.
Digamos que Baku é uma cidade muito animada, respondeu. As desavenças são constantes e quase não há policiamento. Indicou com o polegar o kotschi que os seguia. Quem quer segurança tem de contratar estes tártaros ou alguns desses príncipes georgianos que andam por aí armados até aos dentes. Se não o fizer, está frito.
E aquele ... aquele energúmeno?
O Zinovieff?
Sim. É um kotschi?
O sueco largou uma gargalhada bem-humorada.
Tem ar disso, de facto!, exclamou. Mas não. O Arpiar Zinovieff, acredite ou não, é um dos homens mais ricos de Baku!
A novidade deixou o arménio incrédulo, na dúvida sobre se o seu interlocutor se estaria a divertir à sua custa.
Quem? Aquele monstro? Um dos mais ricos de ... não pode ser! Está a fazer pouco de mim!
Pergunte a quem quiser!, assegurou Emanuel. O Zinovieff é dono da empresa mais bem sucedida de Baku, depois da nossa e da dos Rothschild. O homem anda praticamente a nadar num mar de rublos! É tão rico que quase não sabe o que fazer ao dinheiro!
Ainda atónito, Kaloust reviu na mente as imagens ao colosso de face animalesca a lutar na rua, de mãos nuas, contra o grupo de assaltantes maltrapilhos. Seria possível que aquele celerado fosse um magnata? Que coisa incrível! E sobretudo que contraste com os milionários que conhecera ao longo da vida! Era difícil imaginar Ohannes Berberian ou mesmo Basil Zaharoff em tais propósitos.
Como é isso possível?, perguntou. Como é que um tipo daqueles se torna assim tão rico?
A história do Zinovieff dava um romance digno de Dumas!, observou o anfitrião. Sabe que ele é arménio, como você?
A sério?
Mas inicialmente não passava de um pobre coitado, um camponês humilde que foi contratado para criado de um general. Acontece que esse general era ajudante-de-campo do czar e tinha pelos vistos interesses aqui em Baku. Veio para cá e trouxe o Zinovieff com ele. Como sentia saudades de trabalhar a terra, o nosso amigo Juntou as suas magras poupanças e adquiriu aqui nas redondezas uma leira com umas vinhazitas. Coisa sem importância, claro. Um belo dia, o Zinovieff não apareceu ao trabalho e o general ficou furioso. Disse que ele não passava de um preguiçoso e que o ia despedir e mais não sei quê. Nunca chegou a fazê-lo porque o que se passara é que tinha sido descoberta uma quantidade formidável de petróleo na horta do Zinovieff.
Kaloust abriu a boca.
Está a brincar!
O homem ficou milionário do dia para a noite! Só com aquele meio palmo de terra miserável passou a valer quase meio milhão de dólares. Embora um tipo rude e abrutalhado, o Zinovieff não é parvo nenhum. Decidiu, por isso, não se ficar por ali. Como tinha os bolsos a abarrotar de dinheiro, pôs-se a comprar mais terras. E como a sorte atrai sorte e o dinheiro atrai dinheiro, veja lá que descobriu petróleo também nessas terras! Riu-se. A verdade é que, a partir daquela hortazinha da treta, o Zinovieff ergueu um verdadeiro império. Agora tem tanto dinheiro que até manda destilar o querosene em cisternas fabricadas em platina! E, claro, construiu um palácio das Arábias, onde organiza semanalmente umas festas de arromba ...
O arménio deteve-se no passeio e ficou um instante a mirar o seu cicerone como se se recusasse a acreditar. Depois abanou a cabeça e retomou a marcha.
Que sorte, hem? E você foi convidado para uma dessas festas.
Emanuel virou-se para o seu convidado e sorriu de um modo estranho.
Fomos, meu caro, corrigiu. Fomos.
O que quer dizer com isso?
Detiveram-se diante do Grand Hotel, o ponto de partida daquela atribulada excursão, e o sueco apontou para Kaloust, tocando-lhe no peito com o indicador.
Você vem comigo!
Um toque na porta, suave mas insistente, despertou Kaloust na manhã seguinte. Estremunhado, o arménio abriu um olho e espreitou a janela; o céu toldava-se de um azul muito escuro com um clarão arroxeado no horizonte, sinal de que o Sol se preparava para despontar. Era cedo. Saltou da cama e cambaleou às escuras pelo quarto enquanto praguejava baixinho, ameaçando entre dentes degolar o imbecil que o vinha importunar a hora tão imprópria.
Abriu a porta com um movimento brusco e mal-humorado e deparou-se com um paquete do hotel plantado no corredor.
Bom dia, senhor, cumprimentou o rapaz com visível embaraço. Desculpe incomodar, mas o senhor Emanuel Nobel mandou um estafeta avisar que estará lá em baixo às seis da manhã em ponto.
O hóspede massajou a face com a ponta dos dedos.
Que horas são?
Cinco e meia.
Kaloust praguejou mais uma vez e atirou a porta, fechando-a com estrondo. O seu cicerone tinha-lhe dito que iria aparecer cedo, mas não avisara que seria assim tão cedo. O que valia é que não se tinha deitado tarde. Baku não dispunha de teatro nem de salão de concertos, apenas uns bares de frequência pouco recomendável que achou por bem evitar, pelo que na véspera à noite, depois do jantar, não lhe restara alternativa que não fosse recolher-se ao quarto.
Não havia tempo a perder. O arménio gostava de cumprir horários e exigia o mesmo dos outros. Por isso, e ciente de que meia hora passava num piscar de olhos, lavou-se e vestiu-se apressadamente. Logo que se despachou, saiu do quarto e desceu para o pequeno-almoço.
O sueco apareceu no hotel a meio da refeição. Depois de engolir duas peças de fruta, Kaloust declarou-se pronto e acompanhou o anfitrião até ao seu coche; dessa vez estava fora de questão fazerem novo passeio a pé. Uma vez cá fora, o visitante inspirou o ar impregnado de odores a petróleo, mas não se importou. O Sol já nascera e a cidade despertava sob uma agradável frescura matinal; era bom aproveitar a brisa deliciosa uma vez que o dia se adivinhava quente.
E agora, anunciou Emanuel, vamos ver o petróleo!
O coche percorreu Baku em direcção a leste até abandonar o perímetro urbano e dirigir-se à extremidade da península de Abcheron. Kaloust observava atentamente a paisagem, estudando a vegetação, o terreno e até as pessoas, e registou as mudanças logo que deixaram a cidade para trás.
O solo tornou-se uniformemente cinzento ou branco, acumulando massas enormes de sal ou de areia, e o cenário assumiu um aspecto desolador. Aqui e ali, o coche passava por zonas impregnadas de nafta ou de petróleo e tornava-se claro que a terra era absolutamente estéril; nada podia crescer naquelas paragens. Teoricamente as montanhas do Cáucaso terminavam por ali, ou pelo menos era isso o que assinalavam os mapas, mas o facto é que o terreno se revelava apenas vagamente ondulado e desembocava mesmo numa faixa plana de terra.
Chegámos à famosa planície do fogo eterno!
A natureza inóspita do terreno tornava-se ali ainda mais acentuada. O coche deambulou devagar pela povoação de Surakhany e levou os viajantes até ao Templo do Fogo, onde a terra ardia sem cessar. Kaloust olhou incrédulo para a chama que brotava do solo num círculo bordejado por pedras, como uma fogueira que jamais se apagava, e permaneceu longa mente silencioso perante um fenómeno que maravilhava as pessoas desde tempos imemoriais.
Depois retomaram caminho e atravessaram os pântanos naturais de nafta até desaguarem na planície vizinha de Balakhany. Era aí que estavam implantados os grandes campos petrolíferos de Baku, a fonte do produto que fizera a riqueza do pai e de mais uma mão-cheia de homens. Quando o coche por fim se imobilizou e os ocupantes saltaram para fora, o arménio sentiu-se incapaz de descolar os olhos atónitos do espantoso espectáculo que se desenrolava diante dele.
Meu Deus!
No ar eram projectados jactos de líquido negro com uma força inaudita, como um champagne escuro que jorrava sem parar das entranhas da terra, formando geysers viscosos que se elevavam a oitenta ou mesmo noventa metros de altura. Querendo observar o fenómeno mais de perto, o visitante deu uns passos incertos em torno do poço em fúria, mas uma súbita mudança da direcção do vento alterou a trajectória do jacto. Apanhado de surpresa, Kaloust sentiu o líquido viscoso chover-lhe em cima.
Cuidado!, gritou Emanuel. Saia daí!
O arménio obedeceu e de imediato recuou para uma distância segura. Mas já estava salpicado de petróleo, o que aliás não o incomodou. Passado o espanto inicial, sentiu-se até divertido com a situação; não era todos os dias que se apanhava uma chuva daquelas. Aproveitando a inesperada oportunidade, passou o indicador pelo líquido que lhe sujava a roupa e depois cheirou-o e remexeu-o, procurando analisar-lhe a consistência e a textura.
É fino, observou quando se juntou ao seu anfitrião.
E denso.
Voltaram à estrada e percorreram os diversos poços da planície. Por toda a parte se viam torres de perfuração de madeira e estruturas montadas para recolher o líquido projectado da terra, como gigantes alheios aos trabalhos do mundo. Em alguns pontos, todavia, o petróleo irrompia livremente pelos ares, como lava escura expelida por vulcões invisíveis, e acumulava se para formar pequenos lagos negros nas depressões de terreno.
Que desperdício!
E que perigo, apressou-se Emanuel a acrescentar, elevando a voz para se fazer ouvir sobre o rumor sinistro da planície ensanguentada de preto. As pessoas aqui vivem aterrorizadas com os acidentes. Noutro dia um destes poços lançou um jacto a mais de duzentos pés de altura. A areia projectada foi cair. .. sabe onde? Nas ruas de Baku, veja lá!
Caramba!
Aperceberam-se nessa altura de que no horizonte refulgiam pontos amarelos e avermelhados, emitindo fios sombrios de fumo como chaminés de fábricas. Vendo a curiosidade morder os olhos do seu convidado, Emanuel ordenou ao cocheiro que se dirigisse para ali. Ao aproximarem-se, Kaloust constatou que se tratava de chamas formadas na vertical. Mais perto ainda, tornou-se claro que estavam diante de colunas de fogo que lançavam petróleo incandescente a sessenta ou oitenta metros de altura, que logo caía em flocos abrasados; o céu parecia derramar saraiva púrpura. Se havia um Inferno, pensou o visitante com um esgar atemorizado, deveria ser assim. O jacto de fogo emitia um clarão sinistro, de um encarnado manchado a negro que se transformava em grossas colunas de fumo, e um cheiro acre dominava o ar.
Os fogos são o pior, observou Emanuel, o reflexo vermelho-amarelado das labaredas a dançar lhe na face como a própria sombra do Diabo. O incêndio de Droojba durou dez semanas.
Mas como é que isto começa?
Oh, de várias maneiras. Acidentes, por exemplo. Ou incúria. Às vezes até são ateados pelos próprios proprietários.
Não acredito!
Eu sei que é incrível, admitiu o sueco. Porém, é verdadeiro. Apontou para sul. Olhe, havia por ali uns poços que há uns tempos vomitaram fluxos de quase duzentos mil hectolitros. O espectáculo tornou-se magnífico, como deve calcular. O problema é que o petróleo era tanto que começou a encharcar os campos das redondezas. Os proprietários vizinhos ficaram alarmados, claro, e foram protestar. Disseram que aquilo era perigoso e poderia provocar um grande incêndio, no que tinham razão. Incapaz de lidar com o problema, sabe o que fez o dono dos poços descontrola dos para pôr fim às inundações? Pegou-lhes fogo. Foi a única maneira de acabar com aquilo!
Incomodados com o ar saturado em redor das colunas de fogo, afastaram-se dali. O coche retomou o caminho, mas Kaloust manteve o olhar preso aos lagos de petróleo criados pelos sucessivos repuxos descontrolados, impressionado por constatar que eles se estendiam pelos campos vizinhos do caminho que percorriam.
Sem dúvida que isto é perigoso, admitiu. Mas sobretudo não acha que há aqui um grande desperdício?
É evidente que sim!, concordou o sueco com veemência.
Sabe o que vai acontecer a toda a nafta acumulada nestes lagos? Como já não é recuperável, irá perder-se no Cáspio. É pena! E isto é apenas a ponta do problema. Repare, temos por aqui muitos poços cujo jacto não está regularizado e que se tornam totalmente improdutivos. Houve há tempos um proprietário que declarou falência enquanto o seu poço, imagine!, lançava milhões de litros de nafta cá para fora. O problema é que ele pura e simplesmente não o conseguia controlar. E assim, um poço que faria qualquer pessoa imensamente rica na América, aqui atirou o seu proprietário para a ruína.
Isso é comum?
Infelizmente, sim. Metade do petróleo descoberto na península de Abcheron fica irremediavelmente perdido devido ao amadorismo dos extractores. Há uns anos os irmãos Orbelovi ignoraram a intensidade da pressão do seu poço e usaram uma tampa demasiado forte para cobrir o orifício. Sabe o que aconteceu? Com a pressão, o petróleo rebentou as paredes do poço e em meia hora encheu um depósito de dois mil hectolitros para a seguir transbordar e espalhar-se pelo campo. Estalou os dedos. Perderam-se assim, num piscar de olho, dois milhões de hectolitros!
Uma barulheira infernal, feita de uma cacofonia de gritos, gargalhadas e música alegre, enchia a noite estrelada do Cáspio quando Kaloust desceu do coche da Companhia Nobel e acompanhou Emanuel até ao grande portão de entrada.
Dois- kotchis de face arreganhada asseguravam a guarda da entrada e cortaram-lhes o caminho. Ao reconhecer o sueco fizeram-lhe sinal para passar, mas um deles estendeu o braço e interceptou o seu acompanhante.
É o senhor Sarkisian, disse Emanuel. Ele está comigo.
Com um grunhido maldisposto, o guarda tártaro recuou e deixou o caminho livre. Os dois convidados avançaram e, ao franquearem o portão, depararam-se com um verdadeiro circo montado no jardim de uma grande mansão. A fachada do edifício reluzia em tons dourados, que resplandeciam intermitentemente sob o efeito das múltiplas tochas que iluminavam o jardim.
Já viu estes efeitos na mansão?, perguntou Kaloust. É alguma tinta especial? O seu companheiro riu-se.
Isso são folhas de ouro!, revelou com uma expressão divertida. O Zinovieff cobriu o palácio de folhas de ouro, imagine só! Uma vez houve um motim em Baku e os mendigos vieram por aí fora e assaltaram a mansão para lhe roubar as folhas. Desde então que ele pôs mais kotchis a fazer a segurança à propriedade.
A atenção de Kaloust desviou-se para o que acontecia no jardim da mansão. Um homem literalmente de tanga expelia labaredas pela boca, desencadeando bruaás emocionados entre os espectadores, enquanto um faquir caminhava sobre um tapete de vidros partidos. A actividade destes dois artistas de circo era digna de admiração, embora os olhos do arménio depressa se tivessem desviado para as bailarinas. Eram quase todas louras, de vestidos justos e saias atrevidas, daquelas que deixavam ver os joelhos, mas o mais notável é que se bamboleavam com sensualidade, meneando as ancas para a frente e para trás ao ritmo da música de uma banda de zíngaros.
Nobel!, berrou um vozeirão familiar. Finalmente já cá está!
Os dois recém-chegados voltaram-se na direcção da voz e viram o vulto colossal do anfitrião a caminhar para eles. Arpiar Zinovieff vinha de braços abertos, com uma camisa escarlate de seda, calças douradas brilhantes e botas de cano alto com esporas, o chicote enrodilhado na mão direita; não se poderia dizer que tosse a discrição em pessoa.
O homenzarrão chegou-se ao pé de Emanuel, puxou-o pelos ombros até o deixar quase suspenso no ar e colou-lhe quatro beijos ruidosos nas faces, dois em cada lado.
Arpiar, deixe-se disso! Zinovieff largou-o e soltou uma gargalhada.
Você é mais delicado que uma donzela, Nobel!, exclamou. Se tivesse umas boas mamas, comia-o todo!
Que é isso, homem? Tenha modos!
Nova gargalhada do gigante de dois metros. Com um movimento brusco do braço, exibiu o jardim ao seu convidado.
Então? Está a gostar da minha festazinha?
Receio não poder responder a essa pergunta, retorquiu o sueco. Acabámos de chegar, ainda não pudemos ver nada para além desses artistas aí.
Zinovieff percorreu a multidão com o olhar e fez sinal a um grupo de bailarinas que tinha acabado de actuar num espaço aberto diante de um vistoso repuxo de água.
Meninas, venham cá!
As dançarinas vieram a correr aos saltinhos, com pequenas gargalhadas e gritinhos pelo caminho.
Deseja a nossa presença, m'sieur?
O anfitrião ignorou a rapariga, uma loura esbelta que o interpelara em francês. Em vez disso, voltou-se para os dois convidados que observavam a cena e indicou o grupo de bailarinas com o polegar.
Alguma vos agrada?
Kaloust e Emanuel entreolharam-se, surpreendidos com a pergunta.
Bem ... , atrapalhou-se o sueco. As senhoras são todas bonitas, mas, como é evidente, não as conheço, de modo que não posso ...
Não as conhece? Olhe para elas, porra!
O olhar dos dois convidados saltitou de uma para outra rapariga. Eram cinco, das quais três louras, uma ruiva e uma morena. Tinham formas provocantes e grandes decotes a deixar entrever o rego dos seios. Curiosamente, não pareciam incomodadas por ser expostas como gado. Pelo contrário, encaravam os homens com expectativa, pestanejando e sorrindo. Vendo a hesitação dos recém-chegados, uma delas pousou a palma da mão num seio e espremeu-o como se fosse um fruto, enquanto lançava um esgar provocador na direcção de Emanuel.
Ça vous plait, m'sieur?
O sueco corou e engasgou-se visivelmente embaraçado e as palavras a faltarem-lhe.
Pois, são ... encantadoras, gaguejou. Contudo, eu diria que ... enfim, talvez noutro dia. Fez sinal para o espaço em redor. Agora gostaria de dar uma voltinha pelo seu palacete e admirar a festa. Isto parece estar de facto muito animado.
O rosto disforme de Zinovieff fechou-se, atirando para o convidado um olhar carregado de desconfiança.
Ó Nobel, você não é paneleiro, pois não?
Ao ver-se interpelado desta maneira tão brutalmente directa, o sueco soltou um riso nervoso. Claro que não, disse com ênfase. Mas este tipo de coisas não faz o meu género.
O anfitrião abanou a cabeça, como se estivesse desapontado, e voltou-se para Kaloust.
E você? Quer escolher alguma?
O minúsculo visitante encolheu-se, quase intimidado com os modos agressivos de Zinovieff, mas não se coibiu de espreitar de novo as raparigas, pousando em particular a atenção numa das louras, a de formas mais opulentas. Hesitou um instante, sobretudo depois de a rapariga ter passado a língua molhada pelos lábios pintados de vermelho-vivo, mas acabou por abanar a cabeça.
Não.
O gigante estreitou as pálpebras e, claramente desconfiado, inclinou a cabeça para Kaloust.
Quer-me cá parecer que gostavas de ferrar o dente na francesinha, sibilou. Pois eu não quero que ninguém diga que veio à festa do Zinovieff e não se divertiu!, rugiu de repente. Pegou na loura opulenta dos lábios vermelhos como se fosse um saco e pousou-a diante do convidado, tendo o especial cuidado de lhe esfregar os seios fartos na face. Toma lá a puta! Apontou para a grande mansão. Pega nela e leva-a para um dos quartos! Vá, diverte-te!
Kaloust ficou sem saber o que fazer, o olhar dividido entre Emanuel, Zinovieff e a rapariga, que já se esfregava nele. Foi nesse instante que o sueco interveio, puxando o seu companheiro para fora dali.
Pois, mas nós vamos dar uma voltinha, está bem?
Os dois afastaram-se e puseram-se a deambular pelo espaço em redor do palacete. De um lado decorriam números de circo, com malabaristas e prestidigitadores, enquanto do outro havia uma trupe de ciganos a dançar, eles de camisa branca e calças pretas, elas de grandes saias com cores garridas. Por toda a parte se estendiam longas mesas repletas de carnes variadas e doces e os empregados ziguezagueavam entre os convidados a equilibrar bandejas com copos a transbordar de champagne.
Mas sobretudo viam-se muitas mulheres, belas e evidentemente europeias. Observando-as com atenção, e até uma certa ponta de fascínio, Kaloust apercebeu-se de que elas entravam amiúde na mansão, sempre agarradas a convidados, enquanto outras iam saindo a ajeitar os vestidos. Emanuel não comentou o caso, mas era evidente que o anfitrião as mandara vir dos melhores bordéis da Europa especificamente para a festa.
Ao fim de algum tempo, e percebendo que tudo aquilo na verdade não passava de uma orgia disfarçada de grande acontecimento social, o sueco retirou o relógio do bolso e consultou as horas.
Se calhar é melhor irmos andando ...
Os dois procuraram o anfitrião para se despedirem. Zinovieff perguntou-lhes directamente se comeram alguma gaja, mas o sueco não quis dar troco e limitou-se a agradecer o convite, no que foi imitado pelo companheiro. Depois, e sem alimentar mais a conversa, cortaram pela multidão e dirigiram-se à saída.
Quando iam a cruzar o portão, todavia, Kaloust deteve-se e deu uma palmada na testa.
Oh, não!, exclamou com uma expressão contrariada.
Esqueci-me do meu lenço!
Onde?
Quando fui aos toilettes. Apontou para o seu cicerone.
Olhe, fique aí que eu já venho!
Antes que Emanuel pudesse responder já o arménio havia dado meia volta e desaparecera por entre os convidados que enchiam o jardim. Kaloust caminhava com a determinação de um perdigueiro que farejara a lebre, mas o cheiro da caça não o levou para a mansão e muito menos para os toilettes onde supostamente deixara o lenço. Procurou o anfitrião da festa e encontrou-o perto do sítio onde o deixara momentos antes, quando se fora despedir.
Ainda por aqui?", admirou-se Zinovieff ao vê-lo. Julguei que já se tinha ido embora!
O convidado esticou-se, tentando chegar o mais perto que podia da orelha esquerda do homenzarrão.
Lembra-se daquela senhora francesa que me apresentou há pouco?
O anfitrião arqueou as sobrancelhas felpudas, apanhado de surpresa pela pergunta.
A puta de Paris? Sim, porquê?
Antes de responder, Kaloust lançou um olhar inquieto em redor, de modo a assegurar-se de que o seu companheiro sueco não tinha vindo atrás dele. A multidão comprimia-se no jardim, mas de facto não detectou sinais de Emanuel Nobel e quase suspirou de alívio. Voltou-se para o gigante e pôs-se em bicos de pés na tentativa fracassada de lhe colar os lábios à orelha.
Estou no quarto 201 do Grand Hotel, sussurrou quase a medo, receando ainda ser escutado por ouvidos indiscretos.
Será que a poderia mandar vir ter comigo esta noite?
As águas irrequietas do mar de Mármara marulhavam no paredão, fogosas embora inofensivas, mas apesar do permanente gorgolejar Kaloust manteve-se concentrado no texto. Estava sentado num banco público à beira-mar, mesmo no ponto onde o Bósforo começava a sua viagem até ao mar Negro, mantendo-se todavia alheio ao que sucedia em redor; nem o grasnar melancólico das gaivotas, triste e profundo, parecia capaz de o desconcentrar.
Aprês ... que ... l'on ... a ... vue, murmurou enquanto escrevia. Vue?, interrogou-se, hesitante. Ou será vu? Pois, é masculino, tem de ser vu. Riscou o e e ficou vu. Depois retomou a redacção: ... sur ... les plateaux désolés ... de ... la ... péninsule ... d'Apcberon le ... pétrole
O jovem engenheiro sentia-se determinado a produzir um artigo no seu melhor francês, um francês que teria forçosamente de ser perfeito, pelo que se forçou a pensar nessa língua enquanto escrevia, como aprendera a fazer em Marselha.
Havia descoberto que era ali, na marginal de Pera, rodeado pelo contraste entre o bulício de Constantinopla nas suas costas e o rumorejar sereno do mar diante dele, que a inspiração lhe batia mais forte. Decidira por isso passar a tarde naquele banco, rodeado das suas notas de viagem e com o dicionário arménio-francês à mão.
Parou momentaneamente de escrever e releu em voz baixa o que já completara. Pareceu-lhe bem, embora tivesse encontrado duas discordâncias de género que prontamente corrigiu. A língua francesa era exigente na questão das concordâncias, sabia, e por isso estava especialmente atento a quaisquer falhas de género; não queria passar uma vergonha quando mademoiselle Duprés lesse o texto. A sua antiga tutora, com quem se correspondia regularmente, já tinha acabado o curso na Sorbonne e escrevera-lhe a contar que havia encontrado emprego numa prestigiada editora de Paris, a Librairie Hachette et Compagnie. Quando ele lhe respondeu falando na sua aventura na terra do petróleo, mademoiselle Duprés mostrou-se entusiasmada e sugeriu ao seu antigo pupilo que escrevesse um texto para uma revista de actualidades com a qual tinha contacto.
Era justamente esse artigo que Kaloust redigia nesse instante. Depois de rever o trabalho feito até aí, voltou a consultar as notas e retomou o texto onde o havia deixado:
s'élancer dans ... les airs ... en ... jets ... bruyants, ... il reste ... à le ... suivre.
O som de uma corneta a entoar uma marcha militar irrompeu na marginal, acompanhado pelo barulho sincronizado de dezenas de cascos de cavalos que calcorreavam o empedrado. A concentração do arménio era tal que o levava a ignorar o mar, as gaivotas e o bulício citadino, mas não suficientemente intensa para não se quebrar diante deste tipo de cacofonia, menos habitual naquela zona.
As palavras do texto esfumaram-se assim na mente de Kaloust, perturbado pela corneta e pelos cavalos. Dobrou-se para trás e tentou perceber o que se passava. O que parecia ser um regimento de cavalaria, com os cavaleiros em uniformes de gala, garbosos e reluzentes, acabara de atravessar a ponte sobre o Corno de Ouro, vindo do Serralho, e aproximava-se a trote. No meio, enquadrado pelos cavaleiros, seguia um coche negro sem cobertura, o interior ocupado por várias figuras evidentemente importantes, dois homens de uniforme com o peito coberto de medalhas e uma mulher europeia de vestido branco rendilhado e sombrinha amarela.
O Kaiser!, gritou um rapaz turco, dando pulos no passeio. O Kaiser vem aí!
O cortejo passou pela curva e o arménio juntou-se à multidão que enchia o percurso ao longo da marginal em direcção ao Bósforo. Foi apenas um momento, como um aguaceiro que cai e desaparece, porém suficiente para vislumbrar de relance a cabeça do imperador coroada por um capacete germânico Pickelhaube, com uma ponta no topo, e o vestido da imperatriz da Alemanha, mas nada mais.
A comitiva e a escolta depressa desapareceram ao fundo da estrada, evidentemente a dirigirem-se para o Palácio Dolmabahçe ou para o Palácio Yildiz. Passada a comoção daquele instante, e depois de cogitar com os seus botões que andava a ver em carne e osso tudo o que era gente poderosa neste mundo, há uns tempos o czar em Tiflis e agora o Kaiser ali em Constantinopla, Kaloust regressou ao banco e, abstraindo-se de novo de tudo o que o rodeava, voltou a mergulhar no mundo da escrita.
As linhas finais do artigo ficaram concluídas nessa noite, já na casa de Scutari. O jovem engenheiro releu-o vezes sem conta, corrigindo sempre pequenas imperfeições, uma frase incorrecta aqui, dois erros de concordância ali, até que por fim conseguiu fazer duas leituras sem uma única emenda. Pareceu-lhe perfeito.
Levantou-se então da cadeira e foi à escrivaninha buscar um envelope. Dobrou o texto finalizado e inseriu-o no sobrescrito, que selou com cola. Escrevinhou o seu nome e morada no lugar do remetente e o nome e a morada de mademoiselle Duprés no espaço reservado ao destinatário. A seguir aproximou-se da porta que conduzia à ala da criadagem.
Ghougas!, chamou. Ghougas!
O velho empregado, impecavelmente fardado de branco, apareceu de imediato no salão.
Sim, menino?
Aquele pormenor de o kahveci, ao fim de tantos anos, ainda lhe chamar menino não desagradava a Kaloust; o criado era demasiado velho para se habituar ao novo estatuto do filho dos patrões. Foi por isso sem mais comentários que o jovem engenheiro lhe estendeu o sobrescrito.
Vê lá se amanhã pões esta carta no correio.
O kahveci desapareceu com o envelope e, a tarefa enfim cumprida, Kaloust saiu para o terraço para fruir o momento. A noite estava agradável e ele acomodou-se na chaise longue preferida do pai e ficou a contemplar Constantinopla na escuridão. Não era, em abono da verdade, um cenário espectacular. Apenas se destrinçavam, algumas luzes de candeeiros a petróleo, decerto graças ao querosene que o pai importava de Baku e da América, trémulo em vários pontos, o reflexo ainda mais bruxuleante na inquietude nervosa e negra das águas do Bósforo. Uma mancha sombria enchia por isso o espaço diante dele, embora houvesse um ponto à direita que se encontrava adequadamente iluminado. Tratava-se do Palácio Yildiz, onde o sultão dava uma recepção ao Kaiser e para onde haviam ido os pais, convidados pelo seu protector na Sublime Porta, Salim Bey, para assistir ao evento. Fatigado pelo longo dia de exigente exercício de escrita e embalado pelo marulhar tranquilizador do mar, apenas uns metros abaixo, sentiu-se deslizar para uma modorra saborosa e, sem dar por ela, adormeceu estendido naquele assento demasiado confortável.
Acordou umas horas depois quando ouviu as vozes dos pais a animarem o salão. Ergueu-se de um salto, estremunhado, e após superar um breve momento de confusão apercebeu-se que um vento fresco baixara sobre Scutari. Sentiu um arrepio de frio e, esfregando os braços, voltou a entrar em casa.
Então?, admirou-se o pai ao vê-lo diante dele àquela hora tardia. Ainda acordado?
Adormeci lá fora, explicou Kaloust. Acto contínuo, bocejou longamente, como se quisesse assim comprovar o que acabara de dizer. O banquete? Foi bom?
Vahan respirou fundo.
Este Kaiser é doido varrido!, exclamou, batendo repetidamente com o indicador nas têmporas. Doido varrido, digo-te eu! É ti o ara dar problemas sérios ao mundo, vais ver!
A afirmação suscitou admiração no filho, que ainda se encontrava sob o efeito de uma certa letargia.
Que se passa? Que fez ele?
Pôs-se a fazer uns brindes ao sultão e, sem mais nem menos, manifestou o seu amor ao islão! Acreditas nisto?
O quê? Mas ele não é cristão?
Era o que eu pensava ... enfim, ainda penso. Mas de qualquer modo o homem não está bom da cabeça! Os turcos deliraram, claro. Começaram até a chamar-lhe Hajji Wilhelm.
Kaloust sacudiu a cabeça, como se assim pudesse pôr em ordem os seus pensamentos.
Espere aí, conte tudo como deve ser. Isso aconteceu no banquete oferecido pelo sultão? Vocês assistiram?
Claro que assistimos, rapaz! exclamou Vahan, quase irritado por o filho pôr em dúvida o que lhe dissera. Depois do banquete, os alemães encheram os copos de vinho para o brinde e os turcos acompanharam-nos, mas com água nos copos. Até aí tudo normal. Só que, a meio do brinde, o Kaiser, ! como um verdadeiro apóstata, fez um rasgado elogio público ao islão e disse que os cristãos deveriam cobrir-se de vergonha. A seguir retirou-se com o sultão para o harém, onde aparentemente foram assistir a uma dança das concubinas circassianas.
E os alemães que vieram na comitiva? O que acharam eles disso?
O pai encolheu os ombros.
Ora, o que querias que dissessem? Ouviram e calaram, que remédio! Mas durante o cocktail ganhei a confiança de um deles, um tal Oppenheimer, que me confidenciou que o senhor Bismarck se opôs a esta visita a Constantinopla, por achar que se tratava de uma provocação desnecessária aos Russos. Mas o Kaiser mesmo assim veio. Parece que tem em mente uma qualquer ligação estratégica com o Império Otomano, com a ideia de convencer o mundo islâmico a decretar uma jihad contra os Ingleses e os Franceses. Voltou a bater com o dedo nas têmporas. Diz lá se o palerma não é um louco perigoso? O homem anda a brincar com o fogo! Mas como é que o tipo planeia estabelecer essa aliança estratégica com o Império Otomano? O que vai ele fazer?
Vahan respirou fundo, dando sinais de uma preocupação até aí camuflada. Foi ao bar e tirou uma garrafa de cognac arménio, com que encheu um cálice.
Parece que quer meter cá uns conselheiros militares com a missão de reorganizar o exército otomano, disse.
E formalizou um acordo qualquer destinado a construir uma linha de caminho-de-ferro pela Anatólia. O alemão com quem travei conhecimento, o tal Oppenheimer, atribuiu grande importância a essa obra.
A sério?, estranhou Kaloust. Porquê?
Porque a ideia é depois estenderem a obra até Bagdade.
Ou seja, o objectivo último dessa linha de comboio é permitir aos Alemães chegarem à Mesopotâmia.
Kaloust reviu mentalmente o mapa da região, mas não descortinou qualquer significado especial nessa informação.
E depois? O que tem isso assim de tão importante?
O pai observou o líquido cor de caramelo que balouçava no cálice e, com um movimento súbito, engoliu a maior parte do conteúdo de um só trago. A face inchou e enrubesceu de um momento para o outro, como se uma explosão de dinamite tivesse acabado de lhe esfrangalhar as entranhas, e só voltou ao normal após exalar longamente o efeito da dose. Insinuam aos segredinhos que aquilo está cheio de petróleo! Voltou a erguer o cálice, virou-o sobre a boca e ingeriu o resto do cognac.
Quando nesse dia Kaloust desceu do quarto para tomar o pequeno-almoço, o kahveci aproximou-se dele com uma bandeja e estendeu-a. O filho dos patrões presumiu inicialmente que se tratava da refeição, mas ao olhar para a bandeja constatou que ela não trazia pão nem leite, apenas um grande envelope.
Chegou esta manhã, menino.
Reconheceu a letra arredondada de mademoiselle Duprés e, com uma premonição súbita, até porque não era costume a sua antiga tutora remeter-lhe sobrescritos com aquela dimensão, pegou na missiva cheio de excitação e, demasiado impaciente para ir buscar uma faca, rasgou-a pelas bordas. Do interior saiu uma pequena revista, designada Revue des deux mondes, com o longo subtítulo Journal des voyages, de I' administration et des mceurs, etc., chez les différents peuples du globe ou archives géographiques et historiques du XIXe siècle; rédigée par une société de savants, de voyageurs et de littérateurs français et étrangers, que folheou com dedos frenéticos até se deter no artigo que procurava. Le Bakou et le pétrole russe. Uma linha abaixo do título, em pequenos caracteres impressos em itálico, as letras mágicas com o nome do autor. Kaloust Sarkisian.
Ah, a glória!
Uma bomba de euforia rebentou-lhe no peito e encheu-o de êxtase, como se uma luz divina lhe emanasse do corpo. Era um autor! Escrevera um artigo e alguém na longínqua e erudita França achara-o digno de ser publicado! A prova estava ali, naquelas páginas. Ele tinha uma voz! Um dia morreria, mas aquele pedaço de prosa iria perdurar com o seu nome até à eternidade! Leu o texto uma, duas, três vezes, saboreando cada palavra, admirando o virtuosismo da sintaxe, apreciando o elaborado pensamento que exprimia, orgulhando-se da mestria da língua. Leu-o primeiro para ver as suas palavras transformadas em texto impresso, leu-o depois tentando pôr-se na perspectiva de mademoiselle Duprés, leu-o a seguir com os olhos de um leitor francês sentado numa espia nada do boulevard Saint-Germain e, por último, atrevimento dos atrevimentos, pôs-se no lugar do próprio presidente de França, monsieur Carnot. Sim, quem sabe se o próprio presidente não teria desfrutado da sua prosa?
Os pais, claro, não entendiam francês. As letras do alfabeto latino, a que não estavam habituados, formavam palavras indecifráveis, de sonoridade admissivelmente agradável mas cuja compreensão lhes escapava por inteiro. Porém, havia duas coisas que entendiam em toda a sua plenitude. A primeira eram as dezasseis letras que formavam o nome do filho no cabeçalho da primeira página do artigo; embora o alfabeto lhes fosse estranho, conseguiam formular os sons que elas sugeriam. A segunda, igualmente importante, é que não se tratava de coisa normal ver uma revista francesa de alta política, para a qual escreviam nomes de gigantes como Alexandre Dumas, Victor Hugo, Charles Baudelaire, Guy de Maupassant e Honoré de Balzac, publicar um artigo assinado por um jovem estrangeiro de vinte anos.
Uma façanha!, bramiu Vahan quando se deparou com o nome do filho estampado naquelas páginas imorredoiras.
Isto é uma grande façanha!
O patriarca dos Sarkisian ficou eufórico com o feito. Não era aquela a prova final de que preparara adequadamente o seu rapaz? Não valera a educação do filho todo o investimento feito? O artigo na revista era a resposta a qualquer incerteza que alguma vez pudesse pairar sobre o espírito. Ah não havia dúvida: o rapaz estava fadado para o êxito!
E agora?, quis saber a mãe; com o seu pragmatismo foi a primeira a ultrapassar o estado de exaltação em que a família havia mergulhado. Isto serve para quê?
O marido quase se escandalizou com a pergunta.
Serve para quê?, perguntou, ostentando a revista nas mãos como se de um troféu de caça se tratasse. Serve para ... para ... olha, serve para mostrar aos nossos amigos! Constantinopla inteira vai saber dos feitos do meu rapaz!
Vahan encarregou-se de transformar em actos as suas palavras. Mandou vir de Paris mil exemplares daquele número da revista e espalhou-os pela capital otomana e arredores, oferecendo-os a amigos, clientes, diplomatas, fornecedores e a quem mais pretendesse impressionar. Chamava-lhes a atenção para a correcção do francês, como se ele próprio fosse um falante natural daquela língua de gente fina, e gabou sem cessar os conhecimentos que o artigo trazia à luz do dia.
Digam lá se não é esperto, o rapaz?
A forma ufana como o pai reagiu à publicação do texto serviu, curiosamente, para fazer Kaloust descer à terra. Caramba, não era caso para tanto estardalhaço! O comportamento quase histriónico, que roçava a pura gabarolice de progenitor babado, deixou-o um pouco embaraçado e por fim até envergonhado. Afinal de contas, tratava-se de uma simples narrativa de viagem publicada numa revista francesa, nada mais. Não era propriamente a invenção da dinamite.
O artigo vira a luz do dia e era tudo.
Ponto final.
Uma nova carta de mademoiselle Duprés encarregou-se de desmentir o prognóstico de Kaloust. A sua antiga tutora deu-lhe conta do agrado que o artigo havia suscitado no editor para o qual ela trabalhava e, surpresa das surpresas, revelava que ele lhe fizera uma pergunta para a qual precisava de uma resposta. Monsieur Hachette, escreveu ela, gostaria de saber se o autor do interessantíssimo artigo estaria na disposição de elaborar um livro sobre a sua viagem pela Transcaucásia, região do globo largamente desconhecida do público francês.
O pedido serviu para confirmar a convicção de Vahan de que o filho se encontrava no caminho certo.
Quantos jovens daquela idade, ainda por cima a viverem na periférica Constantinopla, eram desafiados a escrever livros para uma editora europeia de tal importância? Que mais provas seriam necessárias?
Cogitações diferentes foram as de Kaloust, embora as tenha mantido secretas. O jovem engenheiro tomou consciência de que o artigo que publicara na Revue des deux mondes, sendo de facto um feito para alguém da sua idade, não era nem podia ser um objectivo em si mesmo, mas um instrumento para o objectivo seguinte, o livro. Da mesma maneira teria de encarar o novo projecto que lhe fora encomendado, mero meio para alcançar um objectivo ainda maior.
Deitou mãos à obra e levou quase um ano a escrever. Se encarara um simples artigo como coisa de grande responsabilidade, imagine-se um livro inteiro! Porém, manteve presente a cada momento que o texto em que estava a trabalhar não passava, também ele, de um novo instrumento. A publicação do livro não serviria simplesmente para lhe alimentar o ego e satisfazer a vaidade pessoal, ou para o pai se gabar junto dos amigos e dos clientes. Havia muito mais em jogo. As histórias que contava a cada parágrafo e a informação que continha em cada capítulo teriam de lhe abrir as portas certas.
Tal como fizera com o artigo mas agora por maioria de razão, ao terminar o texto releu-o vezes sem conta, preocupado com assegurar o rigor da sintaxe e a fluidez da língua francesa, a qual, embora não fosse a sua língua materna, dominava com crescente autoridade. Não confiando apenas no seu juízo, deu o manuscrito a ler a dois franceses, um diplomata da legação francesa e um professor que leccionava no Lycée GaIata Serai. Só depois de receber deles pequenas sugestões, que prontamente acatou, se atreveu a enviar a encomenda para Paris.
O pacote que lhe veio na volta do correio, em finais de 1891, foi um belo volume de mais de trezentas páginas, incluindo gravuras e mapas, encadernado em camurça cinzenta e com o título impresso em tinta dourada, La Transcaucasie et le Bakou: souvenirs de voyage. A sensação foi de um orgulho imenso; não era bela aquela obra? Kaloust namorou o livro como um artista a contemplar a sua criação, embriagando-se na prosa que saíra da sua mente e se transformava assim em palavra impressa ao longo de tantas páginas, mas já não experimentou o absoluto êxtase com que da primeira vez encarou o artigo da Revue des deux mondes. Não seria isso sinal de que era já um autor batido nas coisas do mundo?
O pai reagiu com o entusiasmo que lhe era característico, embora também ele agora mais moderado. Gabou-se aos quatro ventos, claro, mas a prova de que desta vez não se projectara para lá das nuvens estava no número de exemplares que requisitou à editora. Cem. Era encomenda de razoável dimensão, mas longe do exagero em que caíra quando mandou vir as mil cópias da revista onde vinha publicado o artigo do filho.
Um dos exemplares do livro foi devidamente remetido por Kaloust para o número 11 de Hyde Park Terrace, em Londres, a exemplo do que havia feito no ano anterior com o texto da Revue des deux mondes. Na altura Ohannes Berberian havia respondido com palavras assaz elogiosas, dizendo-se amplamente agradado com o que havia lido e dando-lhe entusiásticos parabéns, mas nada de particularmente relevante acrescentou sobre a filha para além de comunicar ao pretendente que Nunuphar está bem.
Dessa vez, quando a carta de Londres chegou com a resposta, o jovem engenheiro mal conseguiu reprimir a tensão no momento em que teve de a encetar. Desdobrou o papel fino e colou os olhos às linhas, redigidas na elegante e enigmática caligrafia do alfabeto arménio. Ohannes confessava na missiva a sua profunda emoção por ver tão bela obra chegar à estampa e revelava que até Nunuphar se mostrou vivamente impressionada. Mais importantes, porém, eram as frases contidas na última linha.
Confesso, meu caro, que conseguiu finalmente surpreender-me, escreveu o patriarca dos Berberian, pelo que me pergunto se mantém o interesse pela mão da minha filha.
Foi nesse instante que Kaloust soube que a partida estava ganha.
A coroa cintilante, sustentada pelas mãos pálidas do patriarca; pairou um breve segundo nas alturas e começou a descer com majestosa solenidade, como se decorresse nesse momento a cerimónia de coroação do maior dos imperadores, até se encaixar nos cabelos negros de Nunuphar. A rapariga, envolvida num deslumbrante vestido de seda vermelho, ergueu os olhos sonhadores para o noivo, que já tinha a sua coroa ajustada, e depois desviou-os para o padrinho, o próprio pai, que se mantinha entre ambos a segurar uma cruz sobre as cabeças. Estais coroados rei e rainha o vosso reino! proclamou o patriarca, a voz grave a reverberar pela igreja. Vamos agora abençoar o copo comum.
O patriarca fez a bênção sobre uma taça de vinho, como era também da tradição arménia, e os noivos beberam um gole. O mestre-de-cerimónias abençoou os dois, pedindo a Cristo que os acolhesse sob a sombra protectora da sua santa e honrosa cruz em paz, e proclamou-os enfim marido e mulher.
A marcha nupcial encheu a Igreja Patriarcal Surp Asdvadzadzin, no coração de Constantinopla, e uma erupção de aplausos irrompeu no santuário quando o casal se virou e desceu do espaço diante do altar, atravessou o coro e foi receber os cumprimentos de familiares e amigos que se concentravam no corredor central.
Parabéns!, gritou uma voz.
Que envelheçam na mesma almofada!, atirou outra.
Presentes na cerimónia estavam os clãs Berberian e Sarkisian, incluindo as famílias vindas da Anatólia e de Kayseri de propósito para a ocasião. A excepção foi, como é óbvio, o primo a quem Nunuphar se encontrava prometida desde a infância, e que invocou um descontrolado desarranjo intestinal para justificar a ausência, escusa que, pela natureza intrínseca do problema mencionado, a todos pareceu carregada de sarcasmo, despeito e até insulto.
Meu rapaz, disse Ohannes, agarrando Kaloust pelos ombros. Ou deverei antes dizer. .. meu filho?
Filho não, cortou Vahan com uma gargalhada, porque pai ainda ele tem, felizmente.
Pois seja, assentiu o pai de Nunuphar. Mas isso não impede que vos faça um convite. Gostaria que fossem viver para a minha casa, ali em Stamboul. É uma residência modesta, é certo, mas penso que reúne o mínimo de condições para satisfazer as vossas necessidades.
Vahan franziu o sobrolho.
Ó compadre, sabe bem que na nossa tradição arménia é a noiva que vem viver para casa do noivo ...
Bem conheço a tradição, retorquiu Ohannes. Mas os tempos mudam, que diabo! Estamos em 1892! Vem aí o século xx! Além do mais, na minha casa os pombinhos ficam por sua conta e não têm de dar satisfações a ninguém. Não lhe parece muito melhor?
Ficam sozinhos como? Então e vocês?
Nós estamos em Londres, compadre. A minha saúde não me permite vir para cá viver, uma vez que é lá que se encontram os melhores médicos. E não me apetece deixar o meu humilde tugúrio assim ao deus-dará, entregue à criadagem e a sabe Deus o que mais. Se os pombinhos forem para minha casa é até um favor que me fazem, está a ver?
A casa dos Berberian, longe de ser a residência modesta e o humilde tugúrio que Ohannes descrevera, era na verdade uma das melhores mansões de Constantinopla. O palacete situava-se numa área verdejante de Stamboul, não muito longe do Palácio de Topkapi, e gozava de uma vista privilegiada para o mar de Mármara. Foi por isso sem grandes hesitações que Kaloust aceitou o convite, sobretudo levando em consideração que não teria os sogros a assombrarem-lhe a casa.
Os noivos apearam-se do fiacre e contemplaram a nova jóia de Constantinopla. O Pera Palace, acabado de inaugurar, era o novo orgulho do pai da noiva, que quisera construir o melhor e mais luxuoso hotel do Império Otomano para acolher condignamente os viajantes o expresso do Oriente.
O edifício, que se engalanara para o copo-d'água do mais aguardado casamento do ano, encontrava-se plantado no alto de Pera com uma vista esplendorosa sobre a mancha azul do Corno de Ouro e o casario do Serralho, mas os noivos não tiveram tempo para saborear a paisagem. Foram de imediato encaminhados para o interior sumptuoso, onde os convidados se alinhavam para os saudar.
Na meia hora que se seguiu, a mão de Kaloust deve ter cumprimentado mais de uma centena de pessoas. Uma delas foi um turco magro, de fez e fraque negro e um bigode com as pontas dobradas para cima, formando um curioso arabesco, que o pai trouxe pelo braço.
Apresento-te o senhor Salim Bey, disse Vahan com alguma pompa na voz. É, como sabes, um velho amigo, a quem muito devemos.
O filho hesitou um tudo-nada antes de apertar a mão ao homem que lhe era apresentado. Sempre ouvira falar em Salim Bey, um nome muito popular lá em casa. Tratava-se do guardião das finanças privadas do sultão e era o responsável pela nomeação do pai para vali de Trebizonda e pelo contrato de exclusividade para abastecer o sultão de querosene, a principal fonte de riqueza da família. Kaloust sempre imaginara que o protector turco era um ancião, ou pelo menos alguém da idade do pai, mas a verdade revelava-se bem diferente. Pelo aspecto deveria ter uns quarenta anos, o que constituía uma completa surpresa. Decerto Salim Bey gozava da protecção do sultão; só assim se explicava a sua fulgurante ascensão na Liste civile, a casa civil do monarca otomano.
O teu pai tem-me falado muito nas tuas façanhas, disse Salim Bey depois de cumprimentar o noivo, abordando-o com familiaridade. Teve até a amabilidade de me oferecer o brilhante livro que publicaste em França. Kaloust corou.
Ah, effendi! Não o deveria ter feito!
E porque não? Haverá naquelas páginas porventura algo de que um pai honrado se deva envergonhar?
Não, não se trata disso. É apenas porque ... enfim, ele atribui talvez demasiada importância a uma coisa que não a merece.
A face de Salim Bey iluminou-se com um sorriso. Lançou um olhar divertido a Vahan e voltou-se de novo para o seu jovem interlocutor.
Já vi que és modesto!, exclamou. Mas enganas-te. O teu livro é de facto deveras interessante e obra de grande mérito. E o artigo que publicaste na Revue des deux mondes, que também tive a felicidade de ler, não o é menos. Apresento-te os meus sinceros parabéns pela tua veia de grande escritor!
O brigado.
Aliás, dei os dois textos a ler ao ministro das Minas e ele também se mostrou da minha opinião.
Kaloust escancarou os olhos, surpreendido com a informação.
A sério?
O turco balançou afirmativamente a cabeça. De repente ficou muito quieto, inclinou-se para a frente, quase como se quisesse partilhar uma confidência, e estreitou os olhos.
Porque não vens ter comigo ao meu gabinete um dia destes?, perguntou com um olhar cheio de subentendidos.
Gostaria de ter dois dedos de conversa contigo.
Uma pequena multidão e homens de negócios, na sua maioria gregos e arménios, acumulava se diante da porta do edifício governamental no Palácio de Topkapi, em pleno coração do Serralho. Metido no seu melhor fato, mas sempre de fez vermelho na cabeça, o jovem passou por entre aquela massa de gente endinheirada e dirigiu-se ao funcionário turco que se encontrava ao balcão.
Queria falar com sua excelência o senhor Salim Bey.
O funcionário despejou sobre ele um olhar carregado de desdém, habituado que estava ao assédio incansável dos negociantes cristãos que iam para as portas do palácio mendigar uns favores dos effendis.
Tem audiência marcada?
Para as quatro da tarde em ponto. Tirou o relógio do bolso do casaco. Ou seja, daqui a cinco minutos.
A pontualidade não era qualidade particularmente apreciada no Império Otomano, pelo que o turco manteve o esgar de desagrado
Isso é o que vamos ver, disse com evidente mau humor.
O seu nome?
Kaloust Sarkisian.
O homem consultou os registos e, com surpresa, verificou que o jovem tinha mesmo reunião marcada com o ministro da Liste civil e contabilista do sultão. Não era comum ver um arménio daquela idade aparecer ali e encontrar-se à primeira com tão alta individualidade. No entanto, o registo não deixava dúvidas, uma pessoa com esse nome tinha de facto reunião marcada com Salim Bey.
Faça o favor de subir.
De modos subitamente mais corteses, até porque não percebia bem quais os poderes e a influência do giavour que nunca vira por aquelas paragens, o recepcionista acompanhou-o pelo labirinto do complexo e levou-o ao gabinete do ministro privado do sultão.
O chefe de gabinete de Salim Bey mandou-o aguardar numa sala de espera que lhe indicou. Tratava-se de um compartimento pequeno ao fundo do corredor. Kaloust acomodou-se junto à janela e distraiu-se a observar o movimento dos barcos lá em baixo, a escorregarem em silêncio pelo mar de Mármara. Distinguiu a casa dos pais na outra margem, em Scutari, e tentou localizar a mansão onde ele próprio vivia ali perto, mas constatou que daquela janela não era possível vê-la. A mansão estava do outro lado da colina.
Queira entrar, por favor.
A voz do chefe de gabinete surpreendeu-o a olhar pela janela; o homem tinha regressado à sala de espera para o ir buscar e fazia-lhe sinal de que o acompanhasse. Seguiram pelo corredor até à porta que conduzia ao gabinete do ministro. Ao entrar na sala, superiormente decorada com tapetes de Shiraz, Kaloust deu com Salim Bey sentado num sofá na companhia de um outro turco mais velho. Ao ver o jovem, o protector do pai ergueu-se para o cumprimentar e apresentou-lhe o desconhecido engravatado.
O senhor Ahmet Ferit, ministro das Minas, identificou.
Como te disse no outro dia, ele também leu o teu notável livro e ficou deveras interessado em ti.
É uma honra, disse Kaloust, fazendo uma vénia na direcção dos anfitriões. Estou naturalmente à vossa disposição para o que entendam necessário.
Salim Bey desviou o olhar para os sofás.
Para já o necessário era sentarmo-nos, gracejou, fazendo um gesto na direcção dos assentos. Estejam à vontade.
Logo que se acomodaram, um empregado entrou no gabinete com uma bandeja e pousou uma cafeteira e três chávenas na mesinha situada diante dos sofás. Sorveram um trago de café turco e o ministro das Minas fez umas perguntas de cortesia sobre o casamento, desejando ao noivo felicidades e prosperidade.
Só ao fim de uns dez minutos de conversa ligeira, que passou também por observações mais ou menos eruditas sobre colecções de tapetes, assunto que interessava aos três, Salim Bey pigarreou e entrou finalmente na questão que motivara a reunião.
Acompanhaste a visita do Kaiser à nossa cidade, aqui há coisa de três anos?
Vagamente, retorquiu Kaloust. Lembro-me que, por coincidência, estava nessa altura justamente a redigir o meu artigo para a Revue des deux mondes e até tive oportunidade de avistar o cortejo do Kaiser a atravessar a nova ponte sobre o Corno de Ouro a caminho do banquete com Sua Majestade, o sultão.
Salim Bey esfregou as mãos.
Ah, muito bem!, exclamou com satisfação. Acontece que, em resultado dessa visita, o nosso governo entregou ao Deutsche Bank o encargo de construir a Linha de Caminhos-de-ferro da Anatólia. As obras decorrem aliás a bom ritmo e esperamos inaugurar a linha para Ancara no final deste ano. A ideia, porém, é prosseguir a construção até Bagdade e depois até ao porto de Bassorá. Os Alemães pretendem desse modo aceder ao oceano Índico e às suas possessões no Tanganhica por uma rota que lhes permita evitar o Canal do Suez. Ficam assim ao abrigo de ocasionais ataques de mau humor da parte dos Britânicos ou dos Franceses e obtêm acesso próprio às matérias-primas provenientes de África, necessárias para alimentar a sua indústria. Não te esqueças de que a Alemanha já ultrapassou a Inglaterra na produção industrial de aço. Daí que as potências ocidentais não tenham gostado de ver esse contrato entregue aos Alemães. E quem os poderá censurar?
É um facto, confirmou Salim Bey. Os Britânicos vêem na linha uma ameaça para a Índia. Acham que os Alemães estão a transformar-se numa potência demasiado grande, talvez maior até que os impérios britânico, francês e russo, e andam a fazer os possíveis por lhes controlar o crescimento. Fez com a mão um gesto vago no ar. Mas ... enfim, tudo isso é outra conversa. Na verdade, o que nos levou- a convidar-te para esta pequena reunião é um ponto em particular do projecto de caminhos-de-ferro. Desviou o olhar para Ahmet Ferit. Creio que o senhor ministro nos poderá elucidar sobre esse assunto.
O ministro das Minas afinou a garganta.
Os Alemães enviaram uma equipa técnica para estudar ao pormenor o itinerário da linha até Bagdade, disse. Acontece que, há alguns meses, eles vieram ter comigo a solicitar que lhes fossem entregues concessões para explorar as riquezas minerais da Mesopotâmia. Achei o pedido um pouco bizarro e pus-me cá a congeminar com os meus botões ...
O que terão eles descoberto para estarem assim tão interessados nessas terras?
Foi precisamente o que pensei!, exclamou Ferit com um sorriso, apontando o dedo ao seu interlocutor arménio. Já vi que o senhor Sarkisian é um homem perspicaz ...
Eu tinha avisado, disse Salim Bey com uma expressão benigna. Quem sai aos seus não degenera.
Então o que fiz eu?, retomou o ministro das Minas. Mandei investigar as terras por onde os Alemães andaram. Descobri que passaram algum tempo em Mossul, em Kirkuk e em Bassorá, mas, e apesar aos nossos inquéritos, não detectámos nada de especial. Contudo, não desisti. Convencido de que havia ali algo que nos estava a escapar, pus-me a estudar o currículo dos peritos alemães enviados pela Companhia dos Caminhos-de-Ferro da Anatólia para analisar o itinerário da linha e apercebi-me de que havia entre eles geólogos com experiência em prospecção de petróleo. Deitou a mão a uma pasta e extraiu um livro que Kaloust imediatamente reconheceu, o título La Transcaucasie et le Bakou:
souvenirs de voyage impresso a letras douradas.
Todo este caso coincidiu com a leitura do seu interessante trabalho. Somei dois e dois e cheguei à conclusão de que os Alemães encontraram petróleo nas nossas terras e andam calados que nem ratos.
Devem pensar que somos parvos, observou Salim Bey.
Ou que estamos a dormir.
De maneira que pode ver o imbróglio que aqui se encontra montado, não é verdade?
Kaloust podia ver, de facto. Mas manteve uma expressão opaca, os olhos a dançarem entre os seus interlocutores.
Compreendo perfeitamente, disse de forma pausada.
Mas ... em que vos posso ser útil?
Os dois ministros entreolharam-se, quase como se um convidasse o outro a tomar a palavra. Acabou por ser Salim Bey a encarregar-se disso, considerando a sua familiaridade com a família do arménio.
Nós não temos ninguém aqui no Império Otomano que perceba o que quer que seja de petróleo, admitiu. Na verdade, e depois de ter lido o teu livro, chegámos até à conclusão de que tu és, apesar da tua evidente juventude, a maior, se não mesmo a única, autoridade otomana nesta matéria. Fizeste uma tese de licenciatura sobre petróleo, andaste por Baku a ver a extracção e escreveste um artigo e um livro publicados na Europa a propósito do mesmo assunto. Não há ninguém por aqui com essas credenciais. Fez hmm-hmm com a garganta, indicando que havia chegado ao ponto-chave da conversa.
Assim sendo, gostaríamos de saber se estás na disposição de prestar um serviço a Sua Majestade, o sultão.
A pergunta deixou Kaloust embaraçado. Formulada a questão desta maneira, qual a margem que tinha para recuar?
E, na verdade, quereria mesmo recuar? Prestar um serviço ao sultão poderia ser a sua grande oportunidade. Qual era a dúvida? Quantas portas não se poderiam abrir?
Com certeza!, exclamou. Estou inteiramente ao dispor de Sua Majestade! Digam-me o que precisam que seja feito e sê-lo-á!
Os governantes turcos ronronaram de satisfação.
Queremos que vá investigar o assunto, disse o ministro das Minas. Prepare-nos um relatório completo sobre o petróleo que existe no império. Sorriu. Refiro-me à Mesopotâmia, claro. São essas terras que estão a interessar os nossos amigos alemães.
Nos dias que se seguiram, Kaloust afadigou-se nos preparativos para a grande viagem. Se ia elaborar um relatório para a Sublime Porta, pareceu-lhe que o primeiro passo lógico seria visitar a região em causa. Para isso precisava de montar a logística da operação e estabelecer os contactos adequados para a resolução dos imensos problemas práticos que se levantavam, até porque não havia nenhum comboio para aquelas partes do império.
Indagou junto do pai se tinha algum contacto em Mossul ou em Kirkuk, terras por onde pelos vistos os Alemães tinham andado a cheirar, mas Vahan estranhou o pedido.
Para que queres tu saber isso?
Tenho de ir lá, explicou o filho. Salim Bey pediu-me que lhe preparasse um relatório sobre as potencialidades petrolíferas da Mesopotâmia.
O pai inclinou a cabeça de lado.
Olha lá, tu tens noção da viagem em que te vais meter?, perguntou-lhe. Só a deslocação é um pesadelo. Tens de ir a cavalo ou numa carroça durante uma ou duas semanas por caminhos em péssimas condições e sem segurança.
E o pior é que aquelas terras são selvagens. A Mesopotâmia está cheia de tribos nómadas, de beduínos e árabes, gente cheia de vontadinha de cortar o pescoço ao primeiro anjinho que por lá apareça e roubar-lhe o dinheiro. Tens a certeza de que te queres meter naquele vespeiro? Estas palavras deixaram Kaloust a coçar o queixo. A Mesopotâmia era de facto uma terra agreste, com vastos desertos e habitantes agressivos. As histórias de ataques a viajantes haviam-se tornado demasiado frequentes para serem ignoradas de ânimo leve, até porque se dizia que as estradas estavam infestadas de bandos de malfeitores. Além disso, não havia propriamente hotéis na região. Isso significava que teria de dormir em tendas, comer carne de camelo e coisas piores e, imagine-se!, defecar ao ar livre. A perspectiva não lhe pareceu propriamente apelativa.
Pois, tem razão, admitiu. Mas, se não for lá, como é que preparo o relatório?
Vahan considerou o problema.
Realmente ... , murmurou. O ideal era mandar alguém, não te parece?
A sugestão suscitou uma ideia ao filho.
Para quê mandar alguém se é possível falar com quem já lá esteve?, questionou pensativamente. Arregalou os olhos, de repente entusiasmado com a ideia. É isso!, exclamou com convicção. Posso obter informações junto de quem por lá andou!
Foi ao arquivo que tinha criado para preparar a sua tese de licenciatura no King's College e procurou cópias dos primeiros documentos sobre a existência de petróleo na Mesopotâmia. Tratava-se dos relatórios do coronel Chesney, que viajara pela região na década de 1830. O problema é que a informação obtida nessa expedição fora escassa e decerto estaria desactualizada, pelo que precisava de falar com pessoas que por lá tivessem estado recentemente. Mas quem?
Não precisou de pensar muito para encontrar a resposta. Teriam de ser os próprios técnicos alemães que trabalhavam na Linha de Caminhos-de-Ferro da Anatólia. Naturalmente não poderia interpelar os responsáveis da empresa, que perceberiam logo o sentido das perguntas. O ideal seria interrogar alguns subordinados de menor importância, gente que não estivesse familiarizada com as questões de grande estratégia. Haveria decerto muitos nessas circunstâncias, mas como chegar a eles?
Mais uma vez a solução foi sugerida pelo pai. Vahan lembrou-se que a sua loja de tapetes no Grande Bazar era visitada por muitos europeus, incluindo alguns alemães que estavam envolvidos no projecto ferroviário. Dois deles tornaram-se coleccionadores, e um em particular, um tal Günter, fazia frequentes comparações com outros tapetes que adquirira nas suas viagens pelo império, designadamente em Bagdade, Aleppo e Kirkuk, o que tornava evidente que fazia parte das equipas de prospecção de terreno envolvidas na definição do itinerário.
Depois de reflectir nas observações ouvidas a esse cliente ao longo do tempo em que visitou o estabelecimento, Kaloust ficou convencido.
É o nosso homem!
O alemão apareceu nessa manhã na loja para saber se tinha chegado alguma novidade da Pérsia, da Transcaucásia ou das Índias. Havia já um mês que o patrão instruíra os empregados sobre como proceder quando aquele cliente em particular aparecesse no estabelecimento, pelo que de imediato dois estafetas partiram a correr, um para alertar Vahan, outro para chamar Kaloust. O dono foi o primeiro a chegar e, sem perda de tempo, dirigiu-se ao cliente.
Herr Günter, que prazer tê-lo aqui na minha humilde loja!, exclamou com um sorriso largo e braços abertos, segurando-o pelos ombros. Por onde tem o senhor andado que até já nos interrogávamos sobre o seu paradeiro?
O acolhimento na loja sempre fora amigável, como de resto era tradição no Bazar, mas daquela vez anfitrião estava a ser especialmente caloroso, o que apanhou o alemão de surpresa. Nunca tinha imaginado que se tornara um cliente tão popular.
Bem ... tenho andado por aí. O meu trabalho obriga-me a ausentar-me frequentemente de Constantinopla, como sabe.
Oh, somos todos escravos do trabalho!, assentiu o anfitrião com um semblante pesaroso e teatral. Fez um gesto para os tapetes que lhe enchiam o estabelecimento. O que nos vale, meu caro amigo, é a arte. É ela que dá sal aos nossos dias!
Sem dúvida, sem dúvida!
O dono da loja fez um sinal a indicar um divã coberto de almofadas.
Sente-se!, convidou. Quer um chazinho? Um café?
Não se incomode ...
Oh, o que é isso? Não há incómodo nenhum! Esboçou um gesto para o empregado. Kashig, traz um café! E de caminho passa pelo Sark Kahveci e compra umas baclavas aqui para o nosso amigo! Voltou a encarar o alemão. Ah, não imagina como andávamos ralados consigo! Li no jornal que ocorreram uns actos de vandalismo lá pela Mesopotâmia e pensei logo em si!
Vendo-se tão carinhosamente acolhido, Günter deixou-se guiar; acomodou-se no assento e sentiu o corpo descontrair-se entre as almofadas.
Pois, aquilo às vezes é complicado, concordou. Porém, ando sempre integrado numa equipa e temos segurança própria, claro. Por isso não há problemas.
Ah, folgo em saber! Digo sempre que é uma bênção termos cá os Alemães para nos ajudarem. Inclinou-se para a frente e baixou a voz. Vocês são mil vezes melhores do que os Ingleses ou os Franceses ou os Russos! Não lhes quero mal, até porque tenho muitos clientes dessas nacionalidades e são cristãos como eu, mas ... não há nada como os Alemães!
Obrigado. Tentamos ajudar no que podemos.
Vahan voltou a recostar-se no divã almofadado.
E eu também!, exclamou de pronto. Daí que, conhecendo os seus gostos e necessidades de coleccionador requintado, reservei uma surpresa para si!
Um brilho de curiosidade perpassou no olhar azul do alemão.
Não me diga! O quê?
Nesse instante Kaloust entrou na loja. Havia já algum tempo que tinha combinado com o pai um teatrinho para interpretar Quando esta ocasião se propiciasse. O momento era chegado e cabia-lhe agora encarnar a sua personagem e fazer o papel.
Ah, estás aí!, exclamou Vahan, satisfeito por ver o filho chegar e fazendo-lhe sinal de que se aproximasse. Anda cá, quero apresentar-te o cliente de que te falei há uns tempos! Voltou-se para Günter, Apresento-lhe o meu filho, disse. Foi ele que descobriu o pequeno tesouro que lhe reservámos.
O recém-chegado cumprimentou o cliente e acomodou-se também nos assentos almofadados. Kashig apareceu entretanto com uma bandeja preenchida por três pequenos copos de café, à maneira turca, e um prato repleto de baclavas.
Vahan pediu licença e ausentou-se por momentos, entregando a condução da conversa ao filho.
Andei recentemente em viagem pela Índia britânica, mentiu Kaloust, começando a desbobinar o seu guião. Quando estava em Lahore fui visitar uma loja de tapetes, como faço sempre nestas viagens, uma vez que sou um grande apreciador. .. embora um coleccionador modesto. Palavra puxa palavra e ! o comerciante indiano mostrou-me a sua colecção privada de tapetes. Entre eles encontravam-se alguns exemplares que me pareceram muito antigos. Quis logo adquiri-los, claro, mas disse que só avançaria para a compra depois de fazer uma peritagem. Chamei o curador do Museu Britânico de Lahore, Sir Malcolm Teigh, com quem já fiz alguns negócios, e mostrei-lhe a colecção. Sir Malcolm ficou sem palavras.
O pai reapareceu nesse instante e trazia atrás dele vários empregados que carregavam um grande tapete rectangular. Era feito de lã pashmina e parecia algo gasto, mas exibia um desenho intrincado, escarlate e ouro, com múltiplas geometrias em forma de estrela de doze pontas, como cristais de neve.
Oh!, exclamou o alemão, esbugalhando os olhos. Isto não é um ... um mogul?
Kaloust assentiu.
Século XVIII, disse. O curador disse-me que faziam parte de uma colecção saqueada do palácio de Lahore durante uma revolta ocorrida há umas décadas.
E comprou-o?
Na verdade, o comerciante indiano teve de devolver a colecção, uma vez que ela tinha sido roubada. Mas, como prémio pela minha actuação, o curador deixou-me ficar com dois tapetes. Um está agora na minha colecção e dali não sairá. Mas o outro ... enfim, o meu pai aconselhou-me a reservá-lo para si. Disse-me que lhe agradaria.
Só ao ouvir isto o cliente descolou os olhos fascinados do tapete e encarou o seu interlocutor.
Para mim? Mas ... porquê eu?
Kaloust afinou a voz e preparou-se para jogar a sua cartada.
Porque sei que é um coleccionador de gosto refinado, explicou. Estou disposto a vender-lhe o tapete, devidamente acompanhado por um certificado emitido pelo curador do Museu de Lahore, por dez libras de ouro.
A cupidez até aí estampada no olhar do alemão transformou-se num esgar escandalizado.
Como? Isso é uma fortuna! Não tenho meios de ... de ...
Isto é um mogul do século XVIII!, insistiu o arménio.
Corresponde ao período de apogeu da tapeçaria! Já viu o que é possuir uma peça destas? O senhor será a inveja dos coleccionadores do mundo inteiro!
Sim, é verdade, admitiu Günter, de novo de olhos colados ao tapete. O problema é que não tenho tanto dinheiro.
Posso fazer-lhe um desconto. Olhou para o infinito, como se ponderasse um valor. Digamos ... oito libras em ouro.
Ach! O máximo que posso dar é cinco, receio bem.
E já é com muito esforço e sacrifício, creia-me.
Kaloust respirou fundo, simulando contrariedade, e deitou um olhar ressentido para o pai.
O senhor tinha -me dito que este cliente era especial, observou com azedume. Mas se é para isto ...
Espera!, disse Vahan, como se tentasse salvar o negócio.
Talvez Herr Günter te possa ser útil de outra maneira. Não andas a escrever um guia sobre as maravilhas da natureza na Mesopotâmia? Pois Herr Günter tem-se fartado de viajar por aquela região. Se fizeres um desconto, talvez ele te possa ajudar. Voltou-se para o cliente. Não é verdade, Herr Günter?
Jawohl!, prontificou-se o alemão de imediato, ansioso por deitar a mão ao tapete. Com muito prazer!
Os dedos de Kaloust massajaram a coxa, sobre a qual tinha a mão pousada, como se avaliasse se o negócio lhe interessava.
Depende da informação que tiver para me dar, acabou! por dizer, com fingida relutância.
O que quer saber?
Procuro coisas curiosas sobre as paisagens da Mesopotâmia e a sua geologia. Fumarolas, propriedades desconhecidas da terra ... essas coisas que podem ser de interesse para um visitante que seja amante das bizarrias da natureza.
A observação quase fez Günter pular de contentamento.
Por acaso vimos umas coisas curiosas a esse respeito, apressou-se a dizer, com entusiasmo. Não sei se sabe, mas o meu trabalho consiste em proceder a medições topográficas, de modo a definir com precisão o trajecto ideal para a linha de comboio que andamos a construir. Acontece que a nossa equipa inclui uns geólogos que andam por lá a fazer umas pesquisas meio estranhas. Há uns tempos descobriram duas dezenas de buracos no chão de onde ascendiam umas chamas.
Os aldeãos curdos chamavam-lhes pais do fogo e disseram que aquilo sempre existiu. Arqueou as sobrancelhas. Pode ser interessante para o seu guia, não acha?
Muito interessante, pensou Kaloust, lembrando-se das chamas eternas que vira a arder na península de Abcheron, em Baku; não havia dúvida de que se tratava do mesmo tipo de fenómeno. Contudo, esforçou-se por dissimular a excitação que aquela informação lhe causou.
Talvez, limitou-se a observar, impenetrável como um jogador de póquer. Disse o senhor que isso é no Curdistão?
É um sítio chamado Baba Gurgur, perto de Kirkuk. Os nossos geólogos mostraram-se muito interessados naquele fogo que subia da terra. Foi uma grande animação quando deram com ele!
E fizeram mais alguma descoberta do género?
Os meus amigos disseram-me que havia uma coisa parecida na zona de Mossul, notou Günter, Mas confesso que aí não vi nada, uma vez que nessa altura estava a fazer medições no vale do Eufrates.
O arménio prosseguiu o seu interrogatório, sondando e absorvendo informação sempre com um semblante displicente, como se tudo aquilo fosse vagamente interessante mas nada de extraordinário; chegou até a simular um bocejo. Após ter extraído do alemão todos os dados que ele tinha para dar, abanou negativamente a cabeça.
Não, nada disso me parece relevante para o meu guia, sentenciou. O meu preço pelo tapete mantém-se. Ou oito libras em ouro ou nada!
Os ombros do cliente abateram-se de desânimo.
Não posso dar o que não tenho, disse. Oito é demasiado.
Então ... nada feito!
Com um longo suspiro, Kaloust pôs-se em pé, despediu-se de Günter e do pai e abandonou a loja à pressa, com receio de que o alemão viesse a mudar de ideias. Na verdade nunca lhe passara pela cabeça desfazer-se do precioso mogul setecentista, uma das pérolas da sua ainda pequena colecção de tapeçarias.
Nas semanas seguintes, o engenheiro arménio conseguiu complementar os dados fornecidos por Günter com informações provenientes de outros engenheiros alemães envolvidos nos trabalhos da Linha de Caminhos de-Ferro da Anatólia.
Tornava-se claro que, apesar de não ter sido feita nenhuma grande descoberta, os geólogos alemães haviam detectado pequenos vestígios que poderiam indiciar a existência de grandes quantidades de petróleo na Mesopotâmia.
Todos estes dados, aliados a informação recolhida em livros de viagens, foram coligidos num único relatório. Kaloust completou o texto com notas explicativas específicas da industria petrolífera, que foi buscar à sua tese de licenciatura no King's College, e concluiu com a afirmação de que, com toda a probabilidade, a região em causa encerrava de facto grande potencial de petróleo por descobrir.
Quando terminou o trabalho, a primeira pessoa a quem o deu a ler foi o pai.
Ena!, riu-se Vahan no momento em que concluiu a leitura. Até parece que andaste por lá!
O relatório foi enfim levado ao Palácio de Topkapi e deixado num envelope endereçado a Salim Bey. Só depois de ter entregue o documento é que Kaloust, de repente desocupado, se pôs a meditar no que havia realmente descoberto.
Os Alemães andavam a cheirar petróleo na Mesopotâmia e essa informação era largamente ignorada. A partir daquele momento seria evidentemente conhecida pelo governo otomano, mas por mais ninguém.
À excepção dele próprio, claro.
As suas divagações transportaram-no para os primeiros tempos em que andava pelo Grande Bazar e havia feito negócio com o decadracma de Siracusa. O que aprendera realmente com essa experiência? Tinha consciência de que saber era poder. Quem soubesse alguma coisa que outra pessoa não sabia dispunha de uma poderosa vantagem competitiva.
Pois bem, ele sabia agora uma coisa de que a maior parte das pessoas não tinha conhecimento. Kaloust percebera que havia, com toda a probabilidade, muito petróleo na Mesopotâmia. O que faria com essa informação? Como poderia tirar partido dela? O que precisava de acautelar para não ser enganado como quando do episódio do decadracma? As interrogações cruzavam-se-lhe febrilmente na mente e a sua única certeza era que teria de usar a informação com muita sensatez.
Quando ao fim de algumas semanas recebeu uma convocatória de Salim Bey para uma nova reunião, alimentava a esperança de que o seu momento estivesse prestes a chegar. Obtivera informações preciosas para a Sublime Porta. Que recompensas iria colher?
Parabéns, Kaloust!, cumprimentou-o o amigo do pai com o relatório na mão. Este documento é precioso!
Ao lado dele encontrava-se, a exemplo do que sucedera na primeira reunião, o ministro das Minas, Ahmet Ferit, que passou a conduzir a conversa.
As informações aqui contidas ajudam-nos a perceber melhor o que está verdadeiramente por detrás dos pedidos de autorização alemães para explorar a Mesopotâmia, disse o ministro. Foi sem dúvida um grande serviço restado a Sua Majestade.
Kaloust aguardou pacientemente a referência a uma recompensa, mas nada ouviu a este respeito.
E agora, effendi?, foi o mais que se atreveu a questionar.
O que vai ser feito?
Vamos conceder a autorização, claro, sorriu Ferit, fintando propositadamente a real intenção da pergunta. Daremos aos nossos amigos alemães autorização para explorarem as riquezas dessas terras. No fim de contas estão a ajudar-nos com a construção da linha, não é verdade? É justo que sejam compensados.
A informação deixou o arménio baralhado por momentos, sem descortinar o sentido da decisão.
O quê?, admirou-se. Mas ... mas ...
Porém, apressou-se o seu interlocutor a adiantar, os direitos de exploração limitar-se-ão às propriedades imediatamente em redor da linha férrea. Nada mais.
O sorriso do turco, carregado de subentendidos e de segundas intenções, complementou a afirmação. Kaloust percebeu que se tratava de uma concessão muito limitada e quase suspirou de alívio.
Ah, muito bem!, exclamou. E ... quanto ao resto?
Sua Majestade já iniciou o processo de aquisição de grandes propriedades na Mesopotâmia. Ergueu o dedo.
E a bom preço, ainda por cima! Os governadores receberam ordens para informar os respectivos proprietários de que Sua Excelência irá emitir tapous, que, como sabe, são certificados oficiais de propriedade, a transferir terras que pertencem ao estado otomano para o governo civil de Sua Majestade sem qualquer pagamento. Voltou a exibir o seu sorriso matreiro. Nestas condições, ninguém se atreverá a exigir muito dinheiro pelas suas miseráveis propriedades.
O verdadeiro alcance da medida foi instantaneamente compreendido pelo engenheiro.
Quer dizer, Sua Majestade o sultão é que ficará com as terras onde ... enfim, onde poderá existir petróleo ...
Graças às suas informações, assentiu Ahmet Ferit. Mais tarde Sua Majestade poderá ceder concessões para exploração mineral dessas terras, claro. Franziu o sobrolho, como se quisesse sublinhar a importância do que ia dizer a seguir.
A troco de uma recompensa justa, como é evidente.
A manobra do sultão era brilhante, percebeu Kaloust. O plano permitiria à Liste civil e fazer muito dinheiro a troco de um punhado de concessões agora adquiridas a preço de saldo. Nunca em cima da mesa estivera o interesse do estado otomano, mas apenas o dos cofres do sultão. Por que razão haveria de ficar surpreendido com isso?
E ... e eu?, quis saber. Percebeu nesse instante que acabara de mostrar demasiado o jogo e emendou a mão. Quer dizer, e que mais ajuda poderei eu dar?
Desta vez não foi o ministro a responder, mas Salim Bey.
Percebendo o que ia na mente do engenheiro, o amigo do pai pegou-lhe na mão e apertou-a com afecto.
Meu rapaz, devias estar orgulhoso porque serviste o tesouro de Sua Majestade, disse ele com aparente fervor.
Servir o sultão é servir a tua consciência!
Minutos depois já Kaloust estava na rua, sentindo-se tão ludibriado como no dia em que descobriu que o decadracma que vendera por uma ninharia no Grande Bazar afinal valia uma verdadeira fortuna. Ah, não havia dúvida! O mundo era dos aldrabões!
Naquela manhã, Kaloust tinha ido tomar um café ao Hotel Pera Palace. Quando viajara no Expresso do Oriente descobrira o seu fraco pelo grande luxo, sentindo-se atraído pelo requinte, pela elegância e pela harmonia que apelavam profundamente ao seu sentido estético da vida. Acontece que o estabelecimento do sogro se confirmara como o melhor hotel do império e poiso obrigatório para os passageiros da famosa ligação da Wagons-Lits, o que lhe abria perspectivas cosmopolitas.
O arménio instalava-se amiúde numa mesa do salão a tomar o seu café turco e a ler um jornal acabado de chegar de Londres ou Paris, em particular o The Times e o Le Monde, periódicos de referência naquele ano de 1895. Do seu lugar ia vigiando o movimento em redor, o que lhe permitia cruzar-se com muitos estrangeiros endinheirados. Não falava com eles, até porque não dispunha de pretexto para os interpelar, mas observava-lhes o estilo de vida.
Perto das onze horas, o arménio saiu do Pera Palace e encaminhou-se para casa. Nas ruas acumulava-se ainda o lixo deixado pela manifestação do Hunchak, o partido que exigia a aplicação das reformas prometidas e tratamento igual para os Arménios, incluindo a possibilidade de ocuparem posições na polícia e no governo, vedadas aos cristãos. Mas tudo aquilo era política e a mente de Kaloust vagabundeava por outras questões, pelo que ignorou os panfletos que sujavam as ruas.
Algumas preocupações pesavam-lhe no pensamento, em particular um conjunto de investimentos na bolsa que não lhe tinha corrido bem. O sucesso que obtivera alguns anos antes no Royal Exchange havia-lhe cimentado a convicção de que poderia ganhar a vida através de compras de acções, mas a realidade encarregara-se de lhe estragar os planos. O facto é que já não dispunha das informações privilegiadas de Philip Blake e aí, compreendera-o já em toda a sua amplitude, estava a diferença.
Na verdade, nada lhe corria bem nos negócios. Desde que se apercebera das potencialidades petrolíferas da Mesopotâmia que passara a frequentar a Sublime Porta com assiduidade. Salim Bey explicara-lhe o que ele já sabia havia muito tempo, isto é, que teria de ser generoso com o bakshish. Usou o pé-de-meia amealhado em Londres com os investimentos no Royal Exchange para distribuir gratificações e tentar aceder a uma concessão naquelas terras que o sultão adquirira preventivamente, mas não foi bem sucedido. O problema é que o dinheiro ganho na bolsa se esgotara e já estava a usar o montante que recebera de dote pelo casamento com Nunuphar. Mas também este dinheiro, sabia-o bem, não iria durar para sempre. O que faria quando ele acabasse? Seria forçado a desistir do projecto da Mesopotâmia? Se ao menos ...
Socorro!
Um grito de aflição interrompeu-lhe o raciocínio e forçou-o a regressar ao presente. Olhou na direcção do som e viu um homem a correr pela rua, junto à Torre de Gálata; percebeu que era um arménio. Acto contínuo apareceu um cavalo em corrida e o que se passou a seguir foi estonteantemente rápido. O cavaleiro ergueu o braço, onde cintilava uma espada, e ao alcançar o fugitivo cortou o ar com a lâmina e atingiu o homem.
Não! Não!
O arménio guinchava como um porco no matadouro e as paredes da casa junto à qual a vítima estava a ser assassinada iam ficando marcadas por repuxos de sangue. Nesse instante ouviu-se um grito e um rapaz com os seus quinze anos surgiu em corrida e foi igualmente derrubado por uma espada, esta de um outro cavaleiro que apareceu não se percebia muito bem de onde.
Psst!
Uma mão emergiu da frincha de uma porta e fez sinal a Kaloust, que estava pregado ao chão a ver os cavaleiros lá adiante a carregarem sobre fugitivos civis.
Que ... quem?, titubeou com uma expressão horrorizada.
O que se passa?
Tire imediatamente o fez!, ordenou a mulher que lhe fazia sinais peremptórios da porta. E venha para aqui!
Depressa, antes que o vejam!
A ordem libertou Kaloust da sua paralisia suicida. Apanhado de surpresa pelo inesperado da situação, e incapaz de pensar por si mesmo, obedeceu mecanicamente à desconhecida. Escondeu o fez vermelho e refugiou-se na casa que lhe oferecia abrigo. A mulher fechou a porta e ele fitou-a, ofegante e ainda incrédulo, com um sentimento de irrealidade a toldar-lhe o espírito, como se tudo se passasse num estranho sonho em que a realidade adquire a todo o instante novas formas e ambientes.
Que se passa? O que está a acontecer?
Então não vê? Os Turcos andam outra vez a matar arménios! Começaram há coisa de duas horas. É um horror!
A mulher não passava de um vulto pequeno recortado pela sombra do átrio da casa. Trancou a porta com uma alavanca e aproximou-se de uma mesinha, onde acendeu um candeeiro a petróleo; iluminada pela chama tremula, deixou enfim que o rosto se tornasse visível. Tratava-se de uma idosa, a face cortada por rugas, o nariz adunco, o cabelo branco puxado para trás e agarrado num carrapito, o corpo ligeiramente curvado para a frente.
Porque estão a fazer isto?
A idosa fez com a língua um estalido enervado.
Ora, que pergunta! Porque somos arménios, claro!. Aproximou os olhos da cara dele. Em que país vive o senhor? Não sabe que os Turcos andam a matar arménios desde o ano passado? Não viu o que aconteceu na Cilícia?
Mas a Cilícia é na província! , exclamou ele, quase como se protestasse. Nós encontramo-nos em Constantinopla!
Aqui estamos seguros!
Ai estamos?, atirou a mulher com sarcasmo. Então por que motivo se esconde o senhor na minha casa?
Porque ... porque ...
Ela fixou-lhe os olhos com intensidade e abanou a cabeça com um semblante de reprovação. Nenhum arménio está seguro entre os Turcos, ouviu? Nenhum! Eles andam pior que estragados connosco!
Porquê? Por causa da manifestação do Hunchak? Que culpa temos nós de ...
Isso foi o pretexto, homem!, exasperou-se a velha. O que os irrita verdadeiramente, sabe o que é? É que as potências europeias os estão a obrigar a tratar-nos a nós, os cristãos, como iguais. Eles acham-se superiores e não aceitam isso! Olhe para os desgraçados da Cilícia. Apontou para a porta, como se a Cilícia fosse já ali ao virar da esquina. Os Curdos puseram-se a cobrar impostos indevidos aos cristãos e quando no ano passado os Arménios protestaram quem foi o governo punir? Os Curdos, que estavam a violar os direitos dos Arménios? Não! Puniram os Arménios, claro! Os Arménios! Mataram milhares dos nossos na Cilícia! Por que razão haveriam de nos poupar a nós, os arménios de Constantinopla?
Novos gritos de pânico e de fúria no exterior calaram a mulher, impondo um silêncio lúgubre dentro da casa. A matança prosseguia na rua, onde se cruzavam predadores e vítimas, e tornou-se claro que não havia alternativa que não fosse aguardar que o sangue saciasse a sede de matança e a hora do jantar suspendesse a caça aos Arménios.
Só nessa noite, disfarçado com roupas de mulher, de lenço a cobrir-lhe a cabeça e saltitando pelas sombras, Kaloust conseguiu descer Pera, atravessar a ponte sobre o Corno de Ouro e chegar a casa. Deu com a grande mansão às escuras e sentiu um baque no coração. Franqueou a porta com o horror a ensombrar-lhe o espírito; teriam os Turcos entrado lá dentro e ... e? ...
Um vulto caiu-lhe em cima na escuridão.
Ainda bem que voltaste!, gemeu a voz da pessoa que o abraçou. Era Nunuphar, a face molhada de lágrimas. Ai!
Estava tão ralada, meu Deus! Tão ralada! Falava num tropel, dominada pelos nervos, aterrorizada com o que sucedia lá fora. Disseram-me que Pera se encontrava a saque e que andavam a matar todos os arménios que descobriam nas ruas e que tinhas saído do hotel do papá e que ...
Calma, calma!, soprou-lhe o marido ao ouvido. Está tudo bem, já cheguei.
Nunuphar soluçou sobre o ombro dele e só quando se acalmou é que se apartaram. Os criados, arménios e gregos, tinham-se entrincheirado na mansão. A lei proibia os cristãos de ter facas grandes em casa, pelo que todos seguravam paus e canivetes, preparando-se para se defender em caso de ataque.
São os regimentos Hamidiye, disse um dos cozinheiros, um homem que viera no ano anterior da província. Desde que foram criados, há cinco anos, que se têm fartado de matar gente lá na Anatólia. Arrasaram a minha aldeia e vários primos meus morreram! Atacaram os Arménios em Zeitun, em Trebizonda, em Erzerum, em Bitlis, em Harput, em Diyarbakir, em Van, em Sivas eu sei lá! Agora ... agora os Hamidiye chegaram cá!
Que disparate!, exclamou Kaloust. Como sabes tu que são os regimentos Hamidiye?
É o que se diz por aí, senhor, respondeu o cozinheiro.
Além do mais eu vi-os. Quem anda lá fora a matar arménios são curdos de farda. Ora os únicos curdos fardados são os do Hamidiye, ou não são?
O mordomo acenou afirmativamente.
É verdade, senhor. É o Hamidiye. Mas também há turcos envolvidos. Muitos, até. Os agentes do sultão andaram a atiçar os que foram hoje à mesquita, dizendo-lhes que os Arménios estão a planear fazer aqui o que os outros cristãos fizeram na Rumélia e que era preciso dar-lhes uma lição ... essas coisas.
O sultão, alvitrou uma voz, não tem nada a ver com isto.
Cala-te, estúpido!", cortou o mordomo. Claro que tem!
Tudo isto vem daquela cabeça degenerada! Ou acaso pensas que os assassinos do Hamidiye poderiam andar por aí à solta a matar arménios sem que o sultão consentisse?
O grupo entreolhou-se, o terror a relampejar no olhar de cada um. Todos sabiam que o mordo mo tinha razão.
As pessoas dentro do palacete pareciam à beira de um ataque de nervos e a menor discordância desencadeava a mais violenta das discussões. As criadas mantinham-se coladas às janelas, espreitando a rua com o temor nos olhos e o credo na boca, enquanto os homens, entre curtas explosões de fúria, discutiam em voz baixa como proceder caso os cavaleiros entrassem na mansão. Sabiam que os seus paus e canivetes não seriam defesas à altura das espadas dos agressores, mas aquilo era o melhor de que dispunham.
Kaloust sentia-se demasiado fatigado. Tivera um dia de arrasar, após passar horas encurralado na casa da velha em Pera com o caos espalhado em redor, mais toda a tensão do percurso a pé pela sombra da noite ao longo das ruas juncadas de cadáveres deixados onde haviam caído até chegar a casa.
Vamos lá para cima, sussurrou ao ouvido da mulher. Estaremos melhor no quarto.
Ajudou Nunuphar a subir as escadarias até ao primeiro andar. A mulher revelara-lhe duas semanas antes que estava grávida e, embora a barriga ainda formasse apenas uma pequena curva, Kaloust achou que a devia acalmar o melhor que podia. Só que ali, no meio de toda a tensão, isso não era possível. Tinha de a remover daquele ambiente.
Porque estão eles a fazer isto?, choramingou ela quando se acharam a sós. Que lhes fizemos nós?
Shh! Shh!, ciciou Kaloust, esforçando-se por tranquilizá-la. Eu e tu não lhes fizemos nada.
Então porquê? Porquê?
As coisas estão a degradar-se depressa, Nunuphar, disse ele, sempre num registo sereno. Os Turcos andam furiosos por exigirmos ser tratados como iguais e acusam-nos de querer desintegrar o império. Como eles não conseguem enfrentar os Sérvios, os Búlgaros e os Gregos, que já se revoltaram e declararam independência ou estão lá perto, viraram-se contra nós. Percebes? Somos quem está mais à mão. Estamos a pagar por todos os cristãos que se revoltaram na Rumélia.
Nunuphar fungou e assentiu com um leve movimento da cabeça.
Somos os bodes expiatórios, queres tu dizer.
Os olhos mortiços de Vahan piscaram nervosamente à meia-luz do quarto, metade do rosto transpirado banhado pelo estreito leque de sol que conseguia iludir a barreira formada pelas cortinas. A família e o médico rodeavam a cama e olhavam para o enfermo, uma sombra de resignação a toldar-lhes os rostos.
Doutor, soprou Kaloust ao ouvido do homem ao lado dele. Ele ouve-nos?
O médico fez que sim com a cabeça.
É até capaz de falar, disse. Mas convém não o cansar.
Um colapso cardíaco nesta idade ... enfim, há que ter cuidado.
É que o amigo que ele tem no governo está aqui para o ver e quer dar-lhe uma palavra. Acha que pode ser?
A visita foi autorizada e Salim Bey deu de imediato entrada no quarto. O resto da família cumprimentou-o em sussurro e retirou-se, deixando o turco e Kaloust a sós com o patriarca dos Sarkisian. Os dois sentaram-se à beira da cama e o visitante pegou na mão fria de Vahan e apertou-a com gentileza.
Então, meu amigo?, disse Salim Bey numa voz suave, inclinando-se sobre o paciente. Como vai isso?
Os lábios de Vahan formaram um sorriso fraco.
Já tive dias melhores, effendi ...
E voltará a tê-los. Alá é grande!
O arménio fechou por momentos os olhos e respirou pesadamente. Depois abriu-os de novo e fitou o turco com o esgar esgotado.
O seu Alá está a dar-nos muito trabalho, effendi, disse com manifesta dificuldade, as palavras pausadas. Quantos dos nossos terão de morrer até que Ele se satisfaça?
A cara de Salim Bey ensombrou-se. Lançou um olhar fugaz a Kaloust e voltou a encarar o enfermo.
Essa é justamente uma das razões da minha visita, indicou num tom lúgubre. Não o queria importunar nesta hora tão difícil em que a doença se abateu sobre si, mas parece-me que estão em causa questões tão importantes que não é possível ignorá-las nem adiar a sua discussão.
A respiração de Vahan estava carregada de farfalheira e o mero acto de falar afigurava-se-lhe um esforço sobre-humano.
Que se passa?
O ambiente para os Arménios não está bom, disse o turco. Sua Majestade, o sultão, foi ouvido a dizer que vos vai pôr na ordem. Anda a afirmar que a perda da Rumélia deixou o império gravemente amputado e que não permitirá que o mesmo aconteça com a Arménia. Jurou que prefere morrer a dar-vos direitos iguais, porque isso acabaria por levar à vossa independência.
Vendo que o pai estava sem força para dialogar, mas conhecendo a sua linha de pensamento, Kaloust pigarreou e interveio.
Então o que vai Sua Majestade fazer?
O que já está a fazer, retorquiu o turco. A distribuir armas à populaça, a incitá-la a matar arménios e a dizer às pessoas que a chacina de cristãos é um dever religioso estabelecido pelo Profeta para todos os crentes. Quem matar arménios irá para os jardins eternos de Alá, onde cada guerreiro terá a sua espera setenta e tal virgens. Baixou a voz, como se partilhasse uma informação confidencial. Um dos conselheiros de Sua Majestade, Izzet Paxa, disse que a melhor maneira de eliminar o problema arménio é eliminar os Arménios.
Isso é conversa!, exclamou Kaloust com uma ponta de irritação, agastado por o convidado vir para ali com fantasias alarmistas. Eles não podem fazer isso ...
Estão a fazê-lo, receio bem.
Sua Majestade incorre na fúria das potências europeias ... Salim Bey abanou a cabeça.
Palavras, só palavras, disse ele, fazendo um gesto vago com a mão. As potências europeias andam demasiado ocupadas com as suas questiúnculas internas e com as rivalidades que as separam. Embora não se cansem de nos exigir reformas e de defender uma intervenção humanitária, cada uma se limita a proteger os seus interesses económicas e geoestratégicos. Ninguém virá em vosso socorro.
Mas ... mas elas já fizeram vários avisos! Sua Majestade não os pode ignorar!...
Palavras, digo-lhe eu!, insistiu o turco. Sabemos que os chefes das legações britânica e francesa informaram os seus governos de que a ordem para estas matanças veio directamente do palácio. Baixou a voz e assumiu uma postura conspirativa. E estou em condições de vos revelar que, em privado, as várias potências europeias já tornaram claro junto de Sua Majestade que nunca atacarão o nosso império por causa da questão arménia. Fez uma breve pausa para deixar assentar as suas palavras. Percebem as implicações do que vos estou a dizer?
Kaloust endireitou-se, lívido.
Mas isso ... isso é uma carta branca dada pelos europeus para Sua Majestade nos massacrar!
O turco assentiu.
Gosto de ti, rapaz, porque és inteligente, murmurou num tom pesado. Foi por isso que vim aqui. Lançou um olhar preocupado a Vahan, que voltara a fechar os olhos.
Quis visitar o teu pai, mas vim também para vos avisar de que devem ter cuidado. Muito cuidado mesmo. Os tempos, receio bem, estão difíceis para os Arménios.
Mas o que podemos nós fazer, effendi?
Rezar, sentenciou o ministro da Liste civile. E, se me permites o conselho, se fosse a vocês começava a pensar em abandonar o Império Otomano.
Kaloust arregalou os olhos, tomando consciência de que o conselho implicava que a situação era realmente de grande gravidade.
Mas, effendi, o governo está a dificultar a emissão de vistos de saída, observou. Parece que têm medo que os cristãos levem com eles toda a riqueza do império. Como vamos fazer isso? Em resposta, Salim Bey ergueu a mão esquerda e esfregou o polegar e o indicador.
Com muito bakshish, claro.
O tiquetaque cadenciado do grande relógio de parede marcava com indolente solenidade o ritmo lento e modorrento da tarde quente de Agosto. O pó pairava preguiçosamente no ar, como uma miríade de diamantes a cintilar à luz do feixe de sol que fluía da janela, e a madeira do chão estalava e rangia em protesto contra o calor abafado que asfixiava a casa.
O choro pungente de um bebé elevou-se de um pequeno berço e rompeu o silêncio, despertando a mansão do doce torpor da sesta. Desencadeou-se uma súbita azáfama, como se a casa inteira estivesse às ordens daquele pranto ténue. Bateram-se portas e ressoaram passos apressados. Veio a ama e veio a mãe, ouviu-se uma delas murmurar oh, pronto, pronto!, enquanto a outra indagava das necessidades do pequerrucho, o que tem o menino?, concluíram que queria comer e a ama alçou a camisola e entornou o seio lácteo naquela boca já entreaberta, calando a fome com o leite.
A placidez voltou à mansão como um bálsamo que aquieta a dor. Observando o bebé a chuchar a teta que lhe era oferecida com generosidade voluptuosa, Nunuphar não pôde deixar de pensar que viviam tempos estranhos. Nascera-lhe o filho na semana anterior e isso era motivo de grande alegria, até porque o acontecimento trouxera um raio de luz a uma casa ensombrada pela morte recente do sogro, o senhor Vahan Sarkisian, vitimado pela sua doença cardíaca.
O pior, porém, era perceber em que mundo iria o seu pequeno crescer. Havia mais de um ano que a família vivia aterrorizada com as ocasionais matanças ordenadas pelo sultão. Os Arménios, a exemplo dos cristãos da Rumélia, exigiam ser tratados como iguais e aspiravam a uma autonomia que, quem sabe, talvez um dia os conduzisse à independência. Os Turcos nem queriam ouvir falar nisso e os pogrons sucediam-se. As coisas eram muito graves na província, mas até Constantinopla vivia um clima de efervescência, pelo que os Sarkisian mantinham sempre um ou dois empregados de sentinela a uma das janelas a vigiar o movimento exterior. Nunca se sabia quando a turba excitada pelo sultão lhes poderia entrar porta adentro aos urros assassinos.
Nunuphar!, ouviu-se uma voz ecoar pela casa. Nunuphar e toda a gente! Já para o salão!
O som da porta de entrada a fechar-se ecoou por toda a mansão e Nunuphar percebeu que o marido tinha acabado de regressar a casa; viera mais cedo do que de costume e o tom de urgência na voz, nada habitual nele, era indicador seguro de que algo de grave se passava. Os ocupantes da mansão convergiram de imediato para o salão, a aflição a empalidecer-lhes os rostos, e mais preocupados ficaram quando viram o dono da casa a aguardá-los com evidente nervosismo, circulando para cá e para lá, num movimento elíptico apenas interrompido pela ocasional espreitadela que lançava das janelas para o exterior.
Os tipos do Dashnak atacaram o Banco Imperial Otomano!, anunciou de chofre e falando muito depressa, como se não houvesse tempo a perder. Estão fechados lá dentro com os funcionários ingleses e franceses. Já houve tiros e mataram uns soldados turcos. É uma desgraça!
A gravidade da notícia foi instantaneamente assimilada por todos. O Dashnak era a Federação Revolucionária Arménia, um dos partidos arménios que advogavam a igualdade de direitos no império e que convocara as manifestações do ano anterior que tinham acabado em matanças na própria capital. Se umas meras manifestações pacíficas haviam desencadeado semelhante fúria do sultão, imagine-se como a Sublime Porta iria encarar uma afronta daquelas!
Meu Deus!, murmurou Nunuphar, sentindo-se desfalecer e deixando-se cair sobre o divã. O que quer o Dashnak?
Que os Turcos dêem cabo de nós?
Kaloust fez um ar sombrio.
Dizem que pretendem chamar a atenção do mundo para o problema arménio, indicou. E em particular para as promessas não cumpridas de reformas para nos tratarem como iguais.
A mulher soltou uma gargalhada nervosa.
Que vão chamar a atenção para nós, não há dúvida!, exclamou. À custa do nosso sangue. Fitou o marido. O que podemos nós fazer agora? Os Turcos vão acabar connosco!
Um silêncio pesado abateu-se sobre o salão. Ninguém alimentava a menor ilusão quanto à resposta dos Turcos àquela acção, em particular à luz dos massacres do ano anterior por causa de uma simples manifestação.
Salim Bey veio há pouco ter comigo ao Pera Palace e avisou-me que o Sultão vai emitir um firman a ordenar a todos os muçulmanos que reprimam a rebelião sem dó nem piedade, disse pausadamente. Trouxe-me também os passaportes e os vistos que pedimos há um ano para podermos sair do país. Fez um gesto a indicar os criados, que o escutavam num silêncio sepulcral. Lamento não vos poder levar. Mas autorizo-vos a ficarem aqui na mansão com as vossas famílias e rezo para que não haja assaltos às melhores casas arménias de Stamboul. Voltou-se para a mulher.
Estás pronta?
Pronta? Pronta para quê?
Temos de sair o mais depressa possível.
Apanhada de surpresa pela precipitação dos acontecimentos, Nunuphar olhou atarantada em redor.
Mas ... não podemos sair agora!, exclamou. As roupas ainda não chegaram da lavandaria!
O marido ficou um instante sem saber como contra-argumentar. Que diabo de preocupação a da mulher com a roupa suja em momento tão grave nas suas vidas ... Apontou enfaticamente para o relógio de parede.
Saímos dentro de uma hora.
A hora seguinte foi caótica. Enquanto os criados iam buscar as suas famílias para se entrincheirarem na mansão, na esperança de que as casas arménias mais abastadas fossem poupadas ao furacão que se adivinhava, Nunuphar e Kaloust vasculhavam os roupeiros para seleccionar o que poderiam levar.
Não tragas nada disso!, escandalizou -se ele quando viu a mulher escolher um belo vestido para a viagem. Se te vêem assim, saltam-nos logo em cima!
Percebendo o problema, Nunuphar foi de imediato trocar alguns dos seus melhores vestidos por trapos velhos usados pelas criadas. O marido tirou os trajos arménios que habitualmente usava e vestiu um dos seus velhos fatos de Saville Row, aliás já um pouco apertado; a vida de casado alargara-lhe o corpo e as roupas da juventude já mal lhe serviam. Depois meteu três mudas de roupa num embrulho e escondeu lá dentro todas as libras, francos e dólares que tinha no cofre mais as jóias da mulher.
Como vamos sair de Constantinopla?, perguntou ela, atarefada nas arrumações. De barco?
Os portos estão vigiados, retorquiu ele. Marquei o Expresso do Oriente.
Nunuphar parou de arrumar a roupa e, com uma expressão de espanto, virou-se na direcção do marido.
Há comboio hoje?
Só amanhã.
A mulher endireitou-se.
Então para quê a pressa?
Kaloust fitou-a com intensidade.
As orações de sexta-feira vão terminar daqui a duas horas lembrou. O firman do Sultão deve estar neste momento a ser lido nas mesquitas. Quando os Turcos saírem das orações vai começar o caos. Temos de estar num lugar seguro antes que as orações terminem. Depois disso será impossível um arménio circular nas ruas. Indicou o relógio de parede, cujos ponteiros acompanhavam, imperturbáveis, a inexorável marcha do tempo. Temos vinte minutos para sair, não mais.
Abandonou de imediato o quarto e mandou uma criada preparar o leite para a criança. A seguir foi buscar um tapete turco, que enrolou e aprontou para a viagem, de modo a criar a ilusão de que não passava de um vendedor de tapetes. Voltou ao quarto para inspeccionar a mulher e foi nesse instante que a criada apareceu com o leite numa bandeja. Kaloust tirou um frasco do bolso e despejou três gotas no leite.
Vá dar o leite ao menino, ordenou de seguida. Depois meta-o na cestinha e traga-o cá.
A mulher, que observara a operação com o frasco, inquietou-se.
O que puseste no leite?
Soporífero, disse ele, afadigando-se com os preparativos. Quero o Krikor a dormir enquanto não estivermos em segurança.
No momento em que saíram à rua, tudo estava calmo. Atravessaram o Serralho num fiacre e Constantinopla pareceu-lhes deserta; os muçulmanos haviam-se concentrado nas mesquitas para as orações de sexta-feira e os Arménios recolheram-se em casa, onde aguardavam nervosamente a inevitável explosão de violência.
Foram para casa de Salim Bey, convenientemente situada atrás da estação de Sirkeci, e instalaram-se no quarto das traseiras. Foi dali que ouviram os primeiros gritos provenientes da rua e acompanharam os terríveis sons do pogrom desencadeado pela leitura do firman do Sultão nas mesquitas. A matança iniciara-se a meio da tarde e Kaloust fechou a porta do quarto para tentar isolar a mulher do que se passava lá fora.
A noite foi difícil, apenas amparada por Salim Bey e a família, que fizeram os possíveis por acalmar os seus convidados. Ofereceram-lhes um grande jantar e passaram a noite a contar velhas lendas turcas. Não serviu para esquecer o que se passava, mas foi o suficiente para que se sentissem protegidos naquela hora difícil.
Os dois ponteiros do relógio de parede atingiram o número doze e, respirando fundo para ganhar coragem, Kaloust pôs-se em pé e encarou os anfitriões.
Meio-dia, disse. Chegou a hora.
Espreitaram pelas janelas e constataram que a gritaria nas ruas amainara, como de resto haviam previsto. Os predadores tinham-se recolhido a suas casas e a outros lugares para recuperarem forças e gozarem o almoço; era a hora ideal para se tentar a surtida.
Kaloust voltou a despejar umas gotas de soporífero no leite do filho. Quando o pequeno Krikor adormeceu, Nunuphar enroscou-o num lençol de seda e escondeu-o dentro do tapete turco. Era imperativo ocultá-lo para que não dessem a impressão de um casal em fuga; isso denunciá-los-ia como arménios.
Quando tudo ficou pronto, o casal não perdeu tempo.
Despediu-se dos anfitriões turcos e saiu à rua.
Que Alá vos proteja!, disse Salim Bey no momento em que os abraçou à porta. Ele guiar-vos-á na Sua infinita sabedoria!
Os dois fizeram-se ao caminho da forma mais discreta que puderam. Com o apertado fato de Saville Row no corpo, Kaloust levava o tapete turco enrolado nos braços, o filho escondido no interior a dormir enrolado num lençol de seda, enquanto Nunuphar equilibrava na cabeça o embrulho com a roupa, à maneira oriental. Esquadrinharam o caminho a dardejar o olhar em todas as direcções, receando o aparecimento da turba a qualquer instante, mas o percurso até à estação de Sirkeci era curto e chegaram ao destino sem incidentes.
Onde está o comboio?, perguntou a mulher quando encarou a plataforma com a linha deserta, incapaz já de conter a ansiedade que a consumia. A que horas parte? Kaloust contemplou a plataforma vazia e, dominado pela angústia, sentiu a respiração tornar-se pesada.
Não está aqui, constatou com desânimo. Atirou um olhar desesperado ao relógio cravado na parede da gare.
A partida do Expresso do Oriente está prevista para as duas da tarde. Suspirou de impotência. Enfim, é daqui a hora e meia. A transpiração caía em gotas que lhe ziguezagueavam pelas têmporas. Vai ... vai aparecer entretanto, não te preocupes.
À medida que o tempo avançava e os ponteiros progrediam com exasperante lentidão, os passageiros iam enchendo a plataforma. No entanto, não havia sinais do comboio. Às catorze horas, altura em que o Expresso do Oriente deveria largar da estação de Sirkeci, a linha permanecia vazia e a impaciência nervosa do casal dava lugar a um pânico crescente. Kaloust vigiava sem cessar as portas da estação e começou a ver um número cada vez maior de turcos que espreitavam a plataforma com um interesse carregado de desconfiança.
O casal arménio asfixiava na impressão obsessiva de que todos os olhares o despiam e denunciavam; ambos tiveram de fazer um esforço para se conter e não ceder ao pânico. Acossado e encurralado, Kaloust viu passar um funcionário com a farda da Wagons-Lits e cortou-lhe o caminho.
Que se passa, m'sieur? Onde está o comboio?
O francês encolheu os ombros.
Estou tão surpreendido quanto os senhores!, admitiu.
Já devia ter chegado!...
Mas vem, não vem?
Espero que sim ...
Às três da tarde, contudo, o Expresso do Oriente ainda não tinha aparecido. O calor apertava para além do tolerável, no fim de contas estavam em Agosto, e um arrulhar proveniente do interior do tapete assustou o casal; o efeito do soporífero no bebé devia estar a passar.
É melhor tirá-lo do tapete, disse Nunuphar, inquieta.
Com este calor, ainda sufoca lá dentro.
O marido perscrutou o espaço em redor, avaliando os mil perigos que espreitavam por toda a parte.
Tem calma, aconselhou. Vigia o pequerrucho, mas não o tires cá para fora. É demasiado perigoso.
Bastava observar o que se passava no interior da estação para perceber que era de facto necessária a máxima prudência. A multidão de turcos começava a deambular pela gare e espreitava com interesse assustador e agressividade crescente os passageiros ali apinhados à espera do comboio que não aparecia. As orações da tarde tinham já terminado e a estação de Sirkeci enchia-se de turcos acabados de sair das mesquitas, muitos deles à caça de arménios. A tensão tornava-se palpável e a inquietação generalizava-se entre os passageiros,
Uma mulher gritou.
Desencadeou-se de imediato um burburinho ao longo da plataforma e, no meio de toda aquela perturbação, alguém disse que um turco tinha tentado arrastá-la para o exterior, por suspeitar que era arménia. Valeu a intervenção de um coronel da legação britânica que viera despedir-se de um amigo e que, de pistola em punho e modos autoritários, resgatou a desgraçada das mãos da horda furiosa.
Num gesto instintivo, os passageiros comprimiram-se ainda mais na plataforma. Não passavam de cordeiros rodeados por lobos. A maioria eram europeus, mas mesmo assim não permaneciam indiferentes ao ambiente hostil que ali se instalara.
Ai, meu Deus!, gemeu Nunuphar. O que vamos fazer? O comboio foi cancelado e nós aqui! Como vamos regressar a casa de Salim Bey com esta multidão à nossa espera? Meu Deus, meu Deus! Se tivermos de sair daqui, eles vão ...
Um ronco cadenciado suspendeu respirações e conversas e todos os olhares convergiram para o fundo da linha. Uma locomotiva negra, largando grandes e densas baforadas de fumo pela chaminé, aproximava-se a puxar uma longa fila de vagões verdes.
Ufa!, suspirou Kaloust de alívio. Finalmente!
Era o Expresso do Oriente que chegava. Tiveram ainda de aguardar mais uma hora para que os passageiros recém-chegados saíssem e os funcionários da limpeza fizessem o seu trabalho. A multidão de turcos mantinha-se agressiva, mas a presença dos homens da Wagons-Lits assegurava alguma protecção.
Às cinco da tarde, o chef de train veio à porta de uma das carruagens e encarou os passageiros com um sorriso.
En voiture, m'sieurs et 'dames!
Seguiu-se um tropel, com todos os passageiros ansiosos por abandonar a plataforma e abrigar se nas carruagens.
Kaloust e a mulher quase lutaram para ser os primeiros. Não o foram mas o facto é que conseguiram entrar e procuraram refúgio imediato no compartimento número dez, que lhes estava reservado. A primeira coisa que Nunuphar fez quando fechou a porta foi tirar o menino do interior do tapete, ao mesmo tempo que o marido baixava as persianas.
Mantém-no escondido nos assentos, aconselhou Kaloust. Enquanto o comboio não partir não estamos em segurança.
Minutos mais tarde soou o apito do chef de train e, com um estremeção, como se as máquinas tivessem tossido, o comboio pôs-se em movimento, primeiro devagar, depois mais depressa e mais ainda, até ganhar velocidade e enfim contornar o Serra lho e abandonar Constantinopla, de cujo casario se erguiam aqui e ali colunas de fumo, vestígios fumarentos do saque em curso nos bairros arménios. O grande massacre estava em marcha, mas o casal do compartimento número dez encontrava-se finalmente a salvo.
As torres do castelo erguiam-se robustas sobre o porto, a bandeira tricolor italiana a dançar ao ritmo das sucessivas rajadas de vento, e foi para lá que Kaloust lançou o derradeiro olhar antes de pôr o pé na prancha e entrar no navio ancorado na magnífica baía de Trieste. Tratava-se de um paquete da Lloyd Triestino, companhia de navegação que pertencia a Ohannes Berberian, o pai de Nunuphar, o que significava que era como se já se encontrassem em casa.
O paquete ia apinhado de passageiros, muitos dos quais arménios que haviam logrado escapar à grande matança em Constantinopla e por toda a Anatólia. Um grumete conduziu os Sarkisian aos seus aposentos, um camarote que servia de suíte na parte dianteira, a zona mais nobre do paquete, onde Kaloust deixou a mulher e o filho para ir dar um giro e familiarizar-se com o paquete.
A baía de Trieste parecia um vasto lago de um azul profundo que contrastava com o anil mais suave do céu.
Havia pequenas embarcações à vela que cortavam as águas em redor e fileiras de pinheiros a bordejar as línguas de terra. De um lado via-se o imenso casario da cidade de Trieste, com os seus telhados cor de tijolo, e do outro brilhavam pequenas jóias de arquitectura, como o Castello di Miramare, que se erguia num cabo como um imenso promontório. As gaivotas grasnavam melancolicamente na ré do navio, talvez a farejar os restos de comida, pelo que o arménio lhes atirou alguns pedaços de pão.
Desceu até um dos pisos inferiores e passou pela porta de acesso dos passageiros ao navio. Nessa altura já todos se encontravam no interior e o capitão fez sinal aos tripulantes para retirarem a prancha e se prepararem para zarpar. Três marinheiros obedeceram e começaram a recolher a estrutura que ligava o navio ao cais.
Esperem por mim!, gritou uma voz no cais. Esperem por mim!
Os tripulantes voltaram-se nessa direcção e o capitão e Kaloust também. Um homem enorme, de barba densa e sobrancelhas espessas, corria pelo porto a esbracejar freneticamente na direcção do navio, gritando que não partissem sem ele.
Demasiado tarde, sentenciou o capitão. Ele que tivesse chegado a horas. Vamos embora, rapazes!
Kaloust tinha os olhos presos no gigante que corria ao longo do cais. Aquela figura era inconfundível, mesmo sete anos depois; tratava-se de Arpiar Zinovieff, o multimilionário arménio que Nobel lhe apresentara em Baku.
Espere!, disse com veemência. Capitão, não o pode deixar em terra!
O capitão Collins, um inglês de Birmingham que se reformara recentemente da Marinha Real britânica, abanou a cabeça.
Chegou tarde. Além do mais, o navio já vai repleto.
O retardatário estacou à beira do cais, ofegante, os olhos negros à espera de uma decisão, que a âncora fosse alçada para o navio poder largar ou que a prancha fosse reposta para o deixarem entrar.
Não percebe, senhor capitão!, rugiu o arménio, apontando para o gigante lá fora. Aquele homem é um grande amigo do meu sogro. Tem de autorizar a entrada!
Mas estamos lotados!
Alguma coisa se há-de arranjar, mas está fora de questão que ele fique em terra!
O capitão fitou Kaloust, indeciso. Não tinha modo de determinar as relações do proprietário do navio que comandava com o passageiro que chegara tarde, mas sabia que Kaloust era genro do proprietário e via-o decidido a ajudar o retardatário. Para quê arriscar o confortável lugar de comandante do paquete?
Baixa a prancha, ordenou por fim a um tripulante.
Deixa-o entrar.
De imediato se percebeu que os modos de Arpiar Zinovieff deixavam muito a desejar. Logo que o recém-chegado pisou o paquete da Lloyd Triestino largou um enorme escarro verde no chão do convés e soltou dois palavrões de cariz sexual. Tinha um ar tresloucado e manchas de sangue seco a pintalgar-lhe a roupa. O capitão Collins, observando-o de perto, arrependeu-se de ter dado ouvidos ao genro do dono do navio, mas era demasiado tarde para voltar atrás. Onde é a minha cabina?, perguntou o gigante de Baku, exibindo as mãos enormes com o sangue seco também encravado nas unhas. Matei dois turcos com as minhas próprias mãos e tive de correr à frente de uma multidão desses animais para escapar com vida. Preciso de me estender numa cama e descansar. E se tiverem cognac arménio e umas gajas roliças que gostem da brincadeira, tanto melhor. Preciso de descontrair.
O capitão abanou a cabeça.
Receio, sir, que o navio vá completamente cheio, comunicou num tom formal. Já não há lugares para mais ninguém. Indicou Kaloust, mesmo ao lado. Só a intervenção do senhor Sarkisian me levou a autorizar a sua entrada no navio. Mas terá de se instalar aqui no convés. Contemplou o céu azul límpido. O que vale é que estamos em Agosto e o tempo tem andado esplêndido.
Qual convés?, irritou-se o gigante. Eu sou Arpiar Zinovieff, o rei do petróleo de Baku! Tenho um palácio coberto de folhas de ouro, homenzinho! Sou uma das pessoas mais ricas da Rússia! Está a dizer-me que não existe uma cabina para mim na porcaria deste bote? Que raio de espelunca vem a ser esta?
O oficial britânico reformado que comandava o paquete endireitou-se, numa atitude quase marcial, e levantou o queixo de modo a encarar o seu interlocutor com uma expressão de despeito.
Lamento, sir, disse num tom afectado, mas não há mais lugares. Se as condições não lhe agradarem e desejar voltar para trás, compreendo perfeitamente. Apontou para a porta do navio. Darei ordens para voltarem a baixar a prancha de modo que o senhor desembarque e vá procurar transporte mais compatível com o seu estatuto.
Qual desembarque, qual carapuça! Exijo uma cabina!
Retirou um maço de notas do bolso das calças. Quanto quer?
Ao ver o dinheiro, o capitão Collins enrubesceu de indignação.
Será que o cavalheiro não entendeu?, rugiu num registo mal contido. Não há mais lugares nas cabinas, sir. Nenhum dinheiro do mundo pode alterar essa realidade, entendeu?
Passe bem!
Mal acabou de dizer estas palavras o inglês virou-se e afastou-se. Zinovieff não estava habituado a que lhe falassem assim e deu um passo para lhe ir no encalço, mas viu o caminho impedido pelo homem pequeno que assistira ao duelo de palavras.
Tenha calma que tudo se vai resolver, disse Kaloust.
Eu arranjo-lhe uma cabina ou até um camarote de luxo, fique descansado.
O gigante deteve-se e olhou para baixo, as pupilas negras a brilharem como pérolas entre as sobrancelhas felpudas.
Quem és tu, ó anão?
Sou um dos proprietários deste navio, retorquiu Kaloust, distorcendo a verdade. Assim sendo, tenho influência sobre o capitão. Dei-lhe ordens para autorizar a sua entrada e ... espero conseguir arranjar-lhe um lugar para ficar. Não será fácil, claro. O paquete vai cheio e, como viu, o capitão ficou um pouco indisposto consigo. Mas estou certo de que, movendo as minhas influências, lhe encontrarei uma cabina para se instalar.
A intervenção acalmou Zinovieff, que estudou o seu interlocutor com uma expressão cada vez mais intrigada.
Tem piada, a tua cara é-me familiar, acabou por dizer. Não estiveste há uns anos no meu palacete em Baku?
Um sorriso lisonjeado perpassou pela face de Kaloust.
De facto, assim é. Visitei a sua residência com o senhor Nobel durante uma ... uh ... festa privada que ali decorreu.
Estendeu a mão para o cumprimentar. Kaloust Sarkisian, ao seu serviço. A minha família tinha o exclusivo do fornecimento de querosene ao sultão e eu próprio era conselheiro petrolífero da Liste civile. Fez um gesto para o convés.
O meu sogro, além de proprietário da companhia de navegação de que este paquete faz parte, é dono de um dos maiores bancos de Constantinopla e do Hotel Pera Palace, onde se instalam os passageiros do Expresso do Oriente.
O gigante ronronou, agradado.
Já vi que estou em boa companhia!
Com certeza que está. Indicou um banco no convés.
Faça o favor de se acomodar ai nesse lugar. Vou tratar de lhe arranjar uma cabina. Será difícil, mas farei o meu melhor.
Já sem ama para amamentar o pequerrucho e com os seus próprios seios secos, Nunuphar obteve de uma camareira um copo de leite morno que foi despejando em gotas nos lábios sedentos de Krikor. O bebé estava envolto no seu lençol de seda, nos braços da mãe, e saciava a fome depois das mil tribulações da fuga de Constantinopla.
A porta do camarote abriu-se e Kaloust entrou, retirou a mala que haviam adquirido em Trieste e que se encontrava debaixo da cama e assentou-a aberta sobre o colchão.
Tens de sair da cabina!
A mulher suspendeu o movimento sobre a boca do filho e encarou-o com um esgar surpreendido.
O quê?
O marido abria já as gavetas e retirava a roupa, arrumando-a apressadamente na mala.
Está aqui no barco um dos homens mais ricos da Rússia!, exclamou. Conheci-o em Baku quando lá estive. Podre de rico! É arménio como nós e também foi apanhado na confusão em Constantinopla. Andei a vasculhar o barco todo e até fui falar com o capitão, mas não há lugares vagos para ele. Tem de vir para a nossa cabina. Nunuphar encarava-o com uma expressão opaca, como se não compreendesse o que ouvia.
Sair da nossa cabina? A que propósito?
O marido estava tão afadigado a arrumar as coisas na mala que nem levantou o olhar.
Ele não tem onde ficar, já te disse!
Isso é problema dele, não nosso.
Agora é nosso. Tens de sair para ele entrar.
As palavras de Kaloust aumentaram a confusão da mulher, que o encarava com perplexidade.
Mas então ... então e nós?, quis saber, fazendo um gesto para o bebé. Vamos para onde?
Ora! Vais para o convés!, disse ele, fazendo um gesto vago na direcção da porta da cabina. Há para lá uns lugares à sombra e ficarás muito bem instalada. Está calor, não achas? Será agradável viajar ao ar livre. Dizem até que é muito saudável. Fará bem ao pequerrucho.
Mas ... mas ... tu estás doido ou quê? Vamos para o convés? Eu e o bebé? No convés?
É só umas horas ... espero eu. Vou tentar convencer o capitão a arranjar-vos um lugar melhor.
Então e tu?
Eu? Eu fico aqui com o tipo de Baku. É importantíssimo desenvolver uma relação com ele.
A mulher abanou a cabeça, recusando-se a aceitar aquela situação inesperada.
Isto não faz sentido nenhum! Daqui não saio!
Foi só nesse instante que o marido parou de arrumar a mala e a encarou. Fixou-a com o seu olhar hipnótico, as sobrancelhas carregadas pela determinação.
Ouve, Nunuphar, exclamou num tom um tudo-nada tenso. Esta é a nossa grande oportunidade, percebes? O homem que estou a ajudar nada em dinheiro. É tão rico que até forrou o seu palacete de folhas de ouro, vê lá tu!
Vi com os meus próprios olhos! Folhas de ouro! Este não é o momento para hesitarmos, mas para agir. É fundamental que ele simpatize comigo e que nos deva favores, entendes? Fundamental! O nosso futuro depende disso! Voltou a atenção para a mala e arrumou a derradeira peça de roupa.
Pega no Krikor e vai instalar-te no convés! Podes achar absurdo, mas garanto-te que a nossa vida mudará de rumo em função da forma como tratarmos este tipo.
Como se nada mais houvesse a dizer ou discutir, pegou na mala e abandonou de imediato a cabina.
A viagem no paquete da Lloyd Triestino dos Berberian durou uma semana, mas pareceu uma eternidade aos Sarkisian.
Vendo a filha do patrão com um bebé no convés, e assediado por Kaloust para resolver o problema, o capitão Collins lá expulsou um grumete de uma cabina e instalou Nunuphar e Krikor naquele espaço minúsculo, não muito longe do inferno da casa das máquinas, transformada numa fornalha de carvão incandescente. A cabina não era agradável, mas considerando as circunstâncias a solução revelou-se aceitável.
Kaloust permaneceu no seu camarote de luxo, partilhando-o com um agradecido Zinovieff. Os dois arménios entenderam-se bem, apesar do contraste entre eles, ou talvez por causa disso; um era enorme e o outro minúsculo, um extrovertido e o outro introvertido, um rude e o outro polido.
O que deseja jantar?, perguntou Kaloust ao seu companheiro de quarto na primeira noite, enquanto contemplava a ementa que fora buscar ao restaurante. Há pargo assado e spaghetti alio scoglio. Se preferir carne, tem bife tártaro ou arroz de frango.
O gigante, indolentemente estendido na cama, levantou o braço e fez um gesto de enfado.
Que porcaria essa!, protestou. Esses animais tinhosos não têm nenhum prato arménio? Não há khachapuri nem khorovats?
Kaloust percorreu de novo a lista com os olhos.
Receio bem que não. A ementa é europeia.
Ah, que porra! Nunca têm nada, estes imbecis! Se tivesse aqui o meu chicote é que eles iam ver como era!
Mas posso falar com o cozinheiro, alvitrou o prestável companheiro. O que lhe apetece?
A mim? Zinovieff respirou fundo, quase melancólico.
Sabe, umas keufta caíam-me mesmo bem! Ai se caíam!
Passou a língua pelos lábios. Seria uma maravilha.
O nome do prato arménio fez Kaloust pôr-se em pé num salto e abalar do camarote com um já volto! Foi buscar Nunuphar e levou-a ao cozinheiro do paquete para o ensinar a fazer keufta.
O cozinheiro protestou, disse que os passageiros teriam de respeitar a ementa diária do restaurante, que não era possível fazer pratos especiais e que já tinha trabalho de sobra, mas uma nota de cinco francos acabou por garantir a sua cooperação. Meia hora mais tarde, as almôndegas tradicionais arménias fumegavam num prato, devidamente acompanhadas por arroz e uma salada pilaki, mais uma garrafa de champagne.
Não houve nada que Kaloust recusasse ao seu abastado companheiro de camarote. Garantia que lhe eram servidas as refeições de que ele mais gostava, protegia-o dos mosquitos ou do sol, mantinha uma garrafa de champagne sempre fria para o servir e lia-lhe até em voz alta os jornais que eram adquiridos em cada escala da viagem. Mesmo assim, Zinovieff não se sentia absolutamente satisfeito.
Não há gajas nesta espelunca!, queixou-se na segunda noite enquanto esfregava o chumaço que lhe enchia o espaço entre as pernas. Como esperam que um homem sobreviva a uma viagem destas? Acham que sou algum monge ou quê?
Preocupado com mantê-lo contente, Kaloust desceu ao deck da terceira classe e abordou uma rapariga italiana de condição evidentemente humilde, pedindo-lhe que concedesse os seus favores de fêmea a um passageiro abastado em troca de vinte francos. A moça começou por recusar, quem pensava ele que era ela?, mas hesitou quando viu a proposta chegar os cinquenta francos e cedeu no momento em que atingiu os cem.
Va bene, suspirou a italiana ao render-se. Deus perdoar-me-á ...
O próprio Kaloust a lavou e perfumou e vestiu, usando para o efeito um dos mais belos vestidos que Nunuphar adquirira em Trieste. Deu-lhe instruções pormenorizadas sobre como satisfazer o passageiro e só então a levou até ao camarote e a deixou entregue a Zinovieff durante uma hora.
Nem só deste tipo de favores se alimentou a relação entre os dois arménios. Sempre que vislumbrava uma oportunidade, o que sucedia sobretudo a meio da leitura de uma qualquer notícia dos jornais, Kaloust arrastava a conversa para os negócios e insinuava os seus conhecimentos nesta área e a sua relação com os ministros da Liste civile. Tanto falou no assunto que acabou por pôr Zinovieff a pensar.
Sabe uma coisa?, perguntou o homenzarrão na véspera da chegada do navio a Southampton, quando ambos se encontravam no deck a apanhar ar fresco. Tenho petróleo que nunca mais acaba.
Então não sei? Não se esqueça de que estive no seu palacete em Baku. Aquela península de Abcheron é qualquer coisa, hem? O problema é o que o senhor vai fazer com todo o querosene que anda a exportar para o Império Otomano. O império está falido, como muito bem sabe. Quem gere as contas do império é uma comissão liquidatária dos bancos europeus. Qualquer dia deixam de lhe pagar ...
Nem me fale nisso! Às vezes tenho de andar atrás desses ladrões dos Turcos para ver se me pagam o que devem, o que julga? Aquilo é gente safada! Hesitou. Mas ... o que posso fazer? Estou nas mãos deles. Malditos Turcos!
Arranje outros mercados.
Ora, isso é mais fácil de dizer do que de fazer!, retorquiu o gigante. Tenho um representante em Paris que passa a vida a roubar-me. Às vezes penso que o tipo é ainda pior do que os Turcos! Ah, este mundo é uma ladro agem, digo-lhe eu! Uma ladroagem!
Mas para que quer o senhor um representante em Paris?
O centro da Europa é Londres, meu caro! Eu andei anos a investir no Royal Exchange e sei muito bem do que falo. Londres é que é o sítio para apostar. É o centro financeiro do mundo, aí respeita-se a lei e os tribunais fazem valer os nosso direitos, é a capital do maior império do planeta e não tem nem uma gota de petróleo no seu vasto território. Isso é que é um mercado seguro!
Zinovieff remexeu a sua longa barba negra, pensativo.
Pois ... é bem visto. Abriu as mãos, num gesto de impotência. Mas o problema é que não conheço ninguém em Londres. E, sabe como é, preciso de ter confiança nas pessoas. Não posso chegar a Londres e contratar o primeiro palerma que me apareça pela frente, não é verdade? Desconfio desses Ingleses, com os seus belos fatos e conversa sofisticada, com a mania que são superiores e coisa e tal. O que eu precisava era de alguém da nossa gente, que falasse a nossa língua e ao mesmo tempo conhecesse o meio. Mas onde vou eu descobrir uma pessoa com o perfil certo para me servir de representante?
Precisaria de um arménio, sugeriu Kaloust com o olhar perdido, como se ele próprio não estivesse a ver ninguém com as características certas. Alguém que o senhor conheça bem e que tenha conhecimentos na área do petróleo. Além disso, parece-me importante que essa pessoa tenha experiência na área financeira, não acha?
Pois, não é fácil encontrar alguém assim.
Fez-se um silêncio no deck.
Claro que eu agora vou-me estabelecer em Londres e posso procurar uma pessoa que corresponda a essas características, observou Kaloust no registo mais inócuo de que foi capaz. É evidente que não terei muito tempo livre. Vou retomar os meus contactos no Foreign Office e tenciono voltar a investir no Royal Exchange. Com os meus conhecimentos na área do petróleo, penso que me será fácil encontrar uma posição que ...
O gigante deu um salto, interrompendo o raciocínio do companheiro de viagem, e apontou-lhe o dedo enérgico.
Porque não você?
Kaloust esboçou uma expressão surpreendida.
Eu? Eu, o quê?
Você! Ser meu representante! Porque não?
Eu?
Sim, com certeza! Sem dúvida que corresponde ao perfil ideal! Aliás, é como se o lugar estivesse à sua espera para ser criado! o pequeno arménio baixou os olhos e esboçou um esgar de cepticismo, que aprendera com os vendedores do Grande Bazar nas negociações.
Ah ... não sei!
Uma sombra de decepção e incredulidade percorreu o rosto embrutecido de Zinovieff.
Não me diga que não quer!
Kaloust respirou fundo e fez uma pausa antes de responder, como se avaliasse o caso pela primeira vez.
Não se trata de não querer, acabou por dizer. Na verdade disponho de óptimos contactos no governo britânico e estou certo de que lhe faria imenso dinheiro em Londres.
O problema é que tenho em mente planos muito lucrativos e uma coisa dessas requer dedicação total, como é evidente.
Não sei se tenho condições para ...
Cem libras!, atirou o milionário arménio. Pago-lhe cem libras por mês para ser meu representante em Londres!
O valor mencionado tirou a cor da face de Kaloust. Cem libras mensais era muito dinheiro. Apresentava-se-lhe desta forma uma oportunidade incrível! E a sua intuição de comerciante treinado nas artes do regateio no Grande Bazar dizia-lhe que aquilo era apenas o início de conversa.
É pouco afirmou com a maior frieza e autodomínio de que foi capaz, no que se saiu muito bem; a sua face era absolutamente impenetrável. Chegara a hora de jogar forte.
Cem libras parece-me bem como remuneração-base, mas gosto sobretudo de trabalhar com ... percentagens.
As sobrancelhas espessas do seu interlocutor arquearam-se de estupefacção.
Percentagens? Que diabo, nunca trabalhei com percentagens! Eu pago um salário muito bom, que raio!
Os dedos de Kaloust deslizaram pela mesa do deck.
O sistema das percentagens é o ideal para um produtor como o senho, opinou. Se eu vender mais petróleo ou mais caro, ganho mais. Se vender menos ou mais barato, ganho menos. Isso constitui um poderoso incentivo para lhe arranjar bons negócios e para o ajudar a fazer muito dinheiro. Dinheiro inglês, note bem. Daquele que não temos de andar sempre atrás do cliente para pagar, está a ver? Daquele que não desvaloriza ...
Os dedos de Zinovieff voltaram a embrenhar-se na sua vasta barba enquanto ponderava o assunto. Tinha muitas dúvidas sobre o pagamento em percentagens, mas o ponto de vista do seu interlocutor sem dúvida possuía méritos que mereciam a sua melhor atenção.
Um por cento, acabou por aceitar. Dou-lhe um por cento de comissão sobre as vendas.
Dez por cento.
O gigante esbugalhou os olhos.
O quê?, escandalizou-se. Você está louco? Ninguém recebe dez por cento de comissão! Isso é uma exorbitância!
Então o que propõe?
Bem ... vou aos três por cento.
Oito.
Nem pensar! Isso é uma perfeita loucura!
Faça-me uma contraproposta.
Quatro por cento.
Seis.
Zinovieff abanou a cabeça com grande ênfase.
Ah, não!, exclamou. Seis é muito. Não posso aceitar isso! De modo nenhum!
O seu interlocutor cruzou os braços.
Oiça, já cedi muito. Dez por cento parece-me o valor justo. Mas, como simpatizo consigo e tenho muito gosto em ajudar um conterrâneo nestes tempos difíceis, aceito reduzir a minha comissão para seis por cento. Compreenderá que quatro é muito pouco. Na verdade, trata-se de menos de metade da minha proposta inicial. Aceitar isso seria perder a face.
O gigante respirou fundo e fitou a linha do horizonte, como se o mar lhe pudesse dar a resposta.
Percebo o que me diz, admitiu. Então fiquemos pela metade do seu valor inicial e não se fala mais nisso.
Cinco por cento?
Sim. E já é muito!
Era de facto muito mais do que Kaloust poderia alguma vez sonhar. O pequeno arménio tinha vontade de dar saltos de alegria e abraçar toda a gente que passeava pelo deck e rir-se e dar cambalhotas ao longo do convés, mas manteve o rosto fechado, até ligeiramente enfadado, como se aquele negócio não passasse de um favor que fazia relutantemente a um amigo.
Seja, sentenciou. Cem libras por mês mais cinco por cento de comissão.
Apertaram as mãos e o acordo ficou selado.
MILHÕES
A que não levas os corações humanos,
maldita fome do dinheiro?
VIRGÍLIO
O mordomo carregou no botão e a grande caixa de grades de ferro, como uma gaiola gigante, deu um solavanco e começou a viagem de descida, desencadeando um suave burburinho entre os ocupantes. As notas de piano fluíam à distância, emprestando um toque romântico à cena, mas a atenção dos cinco passageiros permanecia totalmente centrada no movimento descendente da caixa.
Isto é uma maravilha!, observou Kaloust com um sorriso. Uma verdadeira maravilha!
É o futuro, mister Sarkisian, devolveu o mordomo. O Savoy orgulha-se de possuir o primeiro elevador eléctrico do planeta. Chegará o dia em que todo o mundo se moverá a electricidade! Esta última observação apagou o esgar de satisfação desenhado na face do arménio.
Isso é que não, meu caro, disse, abanando a cabeça.
Isso é que não. Se for assim, quem me compra o querosene?
O elevador completou o seu percurso e imobilizou-se com um solavanco final. O mordomo estendeu o braço e puxou a grade de ferro que servia de porta, deixando o caminho livre aos hóspedes. Juntamente com os outros dois ocupantes, Kaloust e Nunuphar desaguaram no rés-do-chão, onde a música do piano estava mais próxima, e dirigiram-se ao salão onde decorria o cocktail do Hotel Savoy. Ele ia de smoking, como requeria a ocasião e convinha a um gentleman que frequentava a melhor sociedade londrina, ela com um belo vestido lilás aos folhos importado de Paris.
M 'sieur Sarkisian!, chamou uma voz à esquerda. M 'sieur Sarkisian, s'il vous plait!
Kaloust voltou-se e reconheceu o homem de testa alta e longos bigodes com as pontas reviradas que se aproximava dele.
M'sieur Ritz!, exclamou. Parabéns! Já vi que o cocktail está sumptuoso!
Oh, chame-me César, imploro-lhe, sorriu o homem. Lançou um olhar orgulhoso ao salão. A recepção está de facto magnifique, n'est-ce pas? Aproximou os lábios dos ouvidos do seu interlocutor. Experimente a lagosta. Veio da Florida de propósito para animar a nossa recepçãozinha. Oh la la!, uma delícia!
Vou provar, sem dúvida! Um conselho do rei dos hoteleiros é coisa para se estimar!
É demasiado amável, m'sieur Sarkisian, corou Ritz. Espero que passe uma bela soirée aqui na nossa companhia!
A clientela no salão era do melhor que se podia ver em Londres. As mulheres da aristocracia, até aí avessas a aparecer em público, enchiam o rés-do-chão do Savoy com os seus sotaques upper class. Um rumorejar mais excitado ao fundo do salão indiciava uma presença importante. O casal recém-chegado indagou a identidade da personagem e um empregado sussurrou.
É O príncipe de Gales, milords.
Ao contemplar os convidados do cocktail, e em particular o seu pedigree aristocrático, Kaloust não pôde deixar de se congratular com a excelente escolha que fizera. Aquele era o sítio que melhor condizia com o seu crescente gosto pelo requinte e pela beleza.
Quando quase quatro anos antes chegara a Londres, o arménio inquirira várias pessoas para determinar qual seria o melhor hotel da cidade e as respostas que obteve apontaram unanime mente para o Savoy. O facto é que a realidade comprovava todos os dias a justiça da opção. Além da qualidade da clientela, o Savoy dispunha de condições ímpares para acolher os melhores hóspedes, sobretudo porque se tratava do primeiro hotel do mundo com iluminação totalmente eléctrica. Mas, mais importante do que isso, o estabelecimento dispunha de banheiros decorados a mármore e água quente na maior parte dos quartos, coisa jamais vista em parte alguma.
Sarkisian!, chamou uma voz com um afectado sotaque upper class. What ho, Sarkisian!
Kaloust virou-se na direcção da voz que o interpelava e vislumbrou a figura elegante de Philip Blake, o antigo secretário-adjunto para os Negócios Estrangeiros, nessa altura deputado e representante petrolífero dos Rothschild. Blake tornara-se um rival, uma vez que vendia na Europa o petróleo de Baku explorado pelos Rothschild, em competição com o petróleo de Baku de Zinovieff que o arménio representava, mas nada disso afectou a relação entre ambos. Pelo contrário, Blake ajudara Kaloust a entender melhor os meandros do comércio europeu de petróleo, o que se revelara valioso na obtenção de excelentes contratos para Zinovieff, com agradáveis comissões para o seu representante. Igualmente importante era que graças aos seus contactos no establishment governamental Blake continuara a dar-lhe informações valiosas para a compra de acções que iriam valorizar.
Philip!, devolveu o arménio. Estava à sua procura!
O homem dos Rothschild indicou uma mesa ao fundo da sala.
Estou ali, old chap! O Hendrik e o Samuel devem aparecer daqui a pouco e temos muito que discutir!
O inglês puxou o casal arménio para a mesa onde se instalara, mas Nunuphar resistiu.
Oh, não!, gemeu ela, revirando os olhos quando percebeu o que aí vinha. Mais uma interminável conversa de negócios! ...
Porque não vais dar uma voltinha pelo salão e conversar com essas baronesas que para aí andam?, sugeriu o marido.
Eras capaz de te entreter mais, não achas?,
Com toda a certeza!, devolveu ela. Levantou a mão e acenou. Diverte-te com os teus compinchas!
Os dois homens do petróleo instalaram-se à mesa, posicionados de maneira tal que poderiam observar os grupos que tagarelavam no salão. Blake serviu o amigo de whisky e a seguir encheu o seu próprio copo.
Então as acções da Royal Dutch?, quis saber enquanto saboreava o Scotch on the rocks. Isso é que foi um jolly good investimento, hem?
Kaloust ergueu o copo, como se homenageasse o seu interlocutor.
Como soube que elas iam valorizar tanto?
Sarkisian, old boy, sabe que me movimento bem, não sabe?, retorquiu o inglês com um sorriso entendido. O que se passou é que, quando começaram a correr informações de que tinha aparecido água nos poços da Royal Dutch em Samatra, as acções da empresa foram-se totalmente abaixo. Good Lord, que caos! Toda a gente no mercado pensou que era o fim dos holandeses! O petróleo da Royal Dutch estava a esgotar-se! Mas tive acesso a uma informação confidencial do nosso embaixador na Batávia indicando que a empresa iniciara novas perfurações em áreas muito promissoras. Right ho! Não era preciso ser um génio para perceber que as acções, que naquele momento estavam pelas ruas da amargura, iriam trepar por aí acima quando fosse divulga da a existência dos novos campos de petróleo. O momento ideal para comprar as acções era aquele.
Se era!, concordou o arménio. Confesso que, quando me deu a dica, comprei as acções com um bocado de receio. Toda a gente dizia que a Royal Dutch estava acabada. Mas quando foi anunciada a descoberta dos novos campos em Samatra ... ufa, que alívio!
E que lucro, old chap! Quanto ganhou com a operação?
Kaloust sorriu.
Uma boa maquia, admitiu. Mas a sua comissão foi agradável, confesse lá ...
Não digo que não, corou Blake. O inglês remexeu-se, preparando-se para mudar de assunto; falar sobre lucros não era definitivamente a sua conversa preferida em ambiente social. I say, na próxima semana venha comigo ao Home Office, está bem?
A referência ao Ministério do Interior assustou o arménio.
Porquê? O que se passa?
Então não quer tornar-se um súbdito de Sua Majestade?, perguntou Blake, surpreendido com o alarme manifestado pelo seu interlocutor. Olhe que à sua custa já andei a mexer cordelinhos.
Ah, sim!, descansou Kaloust. Esse processo está a andar?
A andar? Pois se na próxima semana virá ao Home Office comigo para formalizar as coisas, o processo mais do que anda! Está a chegar ao fim, old boy! Daqui a uns dias irá adquirir a nacionalidade britânica! Doravante o seu sultão não lhe poderá tocar nem num cabelo!
O olhar do arménio iluminou-se.
Mas que bela notícia!
O cocktail decorria animado, com gargalhadas e fanfarra à mistura, quando dois homens emergiram de repente da multidão e se aproximaram da mesa.
Ah, jolly good!, exclamou Blake, pondo-se de pé para os acolher. Finalmente, eles aí estão!
Os recém-chegados eram Hendrik van Tiggelen, um homem baixo, de grandes olhos azuis e um sorriso que deixava ver todos os dentes, e que se tornara recentemente presidente executivo da Royal Dutch. O outro, Samuel Mark, um sujeito igualmente pequeno e compacto, de sobrancelhas densas e olhar nervoso, era o judeu que criara uma companhia de navegação que revolucionara o transporte de petróleo e que baptizara com o nome de Shell, em homenagem a um negócio do pai envolvendo conchas decorativas.
What ho, old chaps?, saudou o inglês, fazendo o papel de anfitrião. Chegaram tarde, mas chegaram!
Os dois pares cumprimentaram-se e, passadas as cortesias iniciais, acomodaram-se à mesa. Kaloust contemplou os seus três interlocutores e não pôde deixar de pensar que eram os homens que o encaixariam definitivamente no negócio do petróleo. A representação de Zinovieff constituiu o seu passaporte para aquele mundo, mas o verdadeiro jogo concentrava se nas mãos de Philip, Hendrik e Samuel.
Eles tinham o mundo a seus pés, embora quem os visse de rosto fechado não o adivinhasse. Ao fim de alguns instantes de conversa tornou-se claro que os dois recém-chegados vinham com uma disposição surpreendentemente pesada, triste mesmo.
Mas o que é isto?, admirou-se Kaloust. Estão no melhor hotel do mundo a viver a noite de passagem de ano para o novo século e aparecem-me aqui com uma cara dessas?
Vamos entrar em 1900, meu caro, corrigiu Hendrik.
O século XX só começa em 1901.
Pormenores, devolveu o arménio com um encolher de ombros, como se esse detalhe não passasse de uma irrelevância. Deixamos esta noite os oitocentos e entramos nos novecentos, se prefere pôr a coisa desse modo. O que interessa é que isto é uma coisa grande! Para quê essas caras de ... de enterro?
Hendrik suspirou.
São os Americanos que nos põem assim, revelou o novo presidente da Royal Dutch. Já viu a última patifaria daqueles abutres da Standard Oil?
O quê? A baixa de preços?
Claro! Se isto continua assim, esses rapazes vão levarnos à falência! Quem é que aguenta preços destes? Os tipos estão a vender abaixo do preço de custo! Dumping puro e simples! Meu Deus, como conseguem eles fazer estes preços ruinosos? O Rockefeller é um pirata!
Já lhe expliquei mil vezes como o fazem, disse Kaloust.
Os Americanos vendem petróleo muito caro nos países onde estão sozinhos e muito baixo nos países onde estão em competição. O lucro que obtêm num lado cobre-lhes os prejuízos no outro e assim arrasam a concorrência. Andam há anos nisto!
Pois, eu sei!, retorquiu o holandês. Mesmo assim, não deixo de me espantar com estas tácticas. Sabe o que devíamos fazer?
Qual é a sua ideia?
Hendrik van Tiggelen agitou-se na cadeira e, num gesto teatral muito característico dele, ergueu o punho fechado no ar.
Eendracht maakt macht!
Hendrik, old boy, pare com isso!, pediu Philip. Aqui ninguém fala essa língua de cobras!
Limitei-me a citar um velho provérbio da minha terra, esclareceu o presidente da Royal Dutch. A Holanda é um país pequeno com um grande império. Como conseguiu isso? Voltou a exibir o punho cerrado. Eendracht maakt macht! Ou seja, a unidade confere poder! Esse é o segredo da Holanda! E esse é também o segredo para enfrentar esses animais da Standard Oil! Abriu a mão. Separados, somos tão fracos como estes dedos isoladamente. Fechou de novo a mão. Juntos, somos fortes como este punho!
Isso é jolly bonito de dizer, observou Philip. Mas os Americanos andam a minar todo o terreno, the darn bastards!
Não foram eles que se aliaram aos Nobel na Alemanha para nos expulsar a nós, os Rothschild, desse mercado?
Essa história já lá vai!, disse Hendrik. Não se esqueça de que, para dar cabo dos competidores americanos na Alemanha, a Standard baixou os preços sem avisar os Nobel!
Eu sei, insistiu o representante dos Rothschild. Falei noutro dia com o Emanuel Nobel e ele estava pior que estragado, poor lad I say, sempre que eu pronunciava o nome Standard Oil, o desgraçado tremia de fúria! Mas o que quero dizer é que os Americanos passam o tempo com jogadas destas a dividir-nos.
O holandês cerrou de novo o punho.
Eendracht maakt macht!
Pois, pois ... já ouvi. O problema, old chap, é passarmos aos actos ...
A conversa estava a ser acompanhada em silêncio por Samuel Mark. Mas, chegados a este ponto, o dono da Shell remexeu-se, visivelmente pouco à vontade.
Eu… eu tenho uma coisa para vos dizer, titubeou. Não sei se se vão gostar de ouvir.
O quê? O que se passa?
Samuel respirou fundo, ganhando coragem para dar a notícia.
A Standard Oil. .. fez uma oferta pela minha empresa.
As bocas dos seus três parceiros de mesa entreabriram-se e os olhos ficaram esbugalhados de incredulidade.
O quê?
Oferecem-me quarenta milhões de dólares, acrescentou o pequeno judeu. Tentem compreender, por favor. Os campos da Shell encontram-se no Bornéu e produzem um petróleo com elevado custo de extracção. A queda dos preços está a dar cabo de nós. Não sei se aguentamos a situação muito mais tempo. Por outro lado, o petróleo do Bornéu tem pouco querosene e muita gasolina. E a nossa refinaria está a funcionar mal. Fez um gesto de impotência. Esta oferta da Standard Oil pode ser a nossa salvação.
Só agora é que nos diz isso?, bradou Hendrik, o temperamento sanguíneo a explodir. "Como é possível, Samuel?
O dono da Shell baixou os olhos, embaraçado.
Não tive coragem ...
Estou farto dessas tácticas da Standard Oil!, exclamou o holandês. Atacam-nos com preços baixos e quando não eliminam a concorrência compram-na! É sempre a mesma treta! E nós, otários, vamos na conversa!
Está a chamar-me otário?
Não venda a Shell à Standard Oil, homem!, implorou Hendrik, ignorando a pergunta. Venda nos a nós! Ou melhor, una-se a nós! A Royal Dutch descobriu um novo campo em Samatra e está em expansão. Temos, pela primeira vez, capacidade de fazer frente à Standard Oil. É a nossa oportunidade! Mas se os Americanos comprarem a Shell, será uma catástrofe! A Standard passará a dominar tudo! Já viu as implicações de uma coisa dessas?
Eles oferecem quarenta milhões, homem! Quarenta milhões de dólares! Tem a noção do dinheiro que isso é?
A minha família já me suplicou que aceitasse!
Não quero saber da sua família!, devolveu o presidente da Royal Dutch com rudeza. Apontou para o seu interlocutor.
Quero saber o que pensa você! O que vai fazer?
Dividido por sentimentos contraditórios e angustiado pelo dilema que o dilacerava, Samuel esboçou um esgar de sofrimento.
Não sei, não sei! A minha cabeça diz-me que aproveite enquanto é tempo. Mas o meu coração Suspirou. Oh, não sei o que faça! Estou muito indeciso
Hendrik van Tiggelen cravou os seus enormes olhos azuis no dono da Shell; conhecia-o bem e sabia que ele tinha uma vulnerabilidade. Chegara a hora de a explorar.
Ó Samuel, diga-me uma coisa, interpelou-o de chofre.
Você é inglês ou é judeu?
O proprietário da Shell levantou os olhos escandalizados; mal queria acreditar no que acabara de ouvir.
O que está a insinuar?, protestou, levantando a voz. Sou judeu, sim senhor! Mas também sou inglês! E com muito orgulho! Como se atreve a questionar o meu patriotismo?
É que às vezes não parece, devolveu Hendrik com frieza. Sabe tão bem como eu que o petróleo é o futuro.
A sua empresa é inglesa e se mantiver o controlo da Shell isso significará que uma importante fatia do negócio irá para a Inglaterra que tanto diz amar. Mas, por causa de umas dificuldade zecas conjunturais, está pelos vistos disposto a vender a Shell à Standard Oil e assim entregar todo o negócio aos Americanos. Como pode uma pessoa preparar-se para negar ao seu país uma fatia de algo tão importante e ao mesmo tempo apregoar aos quatro ventos que é um patriota? Isso não faz sentido nenhum! Se vender a Shell aos Americanos, o seu patriotismo não passará de conversa oca! Apontou-lhe o dedo acusador. Ponha os seus actos onde tem a sua boca! Diz-se patriota? Comporte-se como tal!
Mas compreenda o meu problema, insistiu Samuel, encurralado pela lógica daquela argumentação. Estou com dificuldades na extracção no Bornéu! Além do mais, o petróleo que tenho armazenado é de elevado custo de produção e os preços de mercado são neste momento ruinosos! Ruinosos!
Não vamos conseguir sobreviver!
Isso são problemas conjunturais.
Não é bem assim, insistiu o proprietário da Shell. Apontou para os candeeiros que iluminavam o salão do Savoy. Está a ver a iluminação deste hotel? É toda a electricidade. O Savoy pode ser o primeiro hotel do mundo totalmente iluminado a electricidade, mas em breve todas as cidades serão iluminadas da mesma forma. Olhe para Berlim, por exemplo! A iluminação a querosene vai desaparecer. Tal como as velas e a iluminação a gás, o querosene produz fuligem, queima o oxigénio e pode provocar incêndios. A electricidade não tem nenhuma dessas desvantagens. É ela o futuro. Isso mostra que este problema não é conjuntural, mas estrutural!
O holandês cruzou os braços.
Seja, a electricidade vai substituir o querosene na iluminação, reconheceu. Mas não foi você que disse que o seu petróleo do Bornéu é pobre em querosene e rico em gasolina? E o futuro do petróleo, meu caro, está precisamente na gasolina! Já viu estas carruagens sem cavalos que andam agora a inventar? Um dia todas as carruagens serão assim!
Movidas a vapor.
E a gasolina! Os Alemães puseram-se a fazer carruagens sem cavalos, esses ... automóveis, como lhes chamam agora, com o princípio da combustão interna. Parece que são mais eficientes. Não viu o que aconteceu na corrida Paris-Bordéus? Dos dezasseis automóveis a gasolina que partiram, metade chegaram ao destino. Mas dos oito automóveis a vapor apenas chegou um. E os primeiros classificados eram todos automóveis movidos a gasolina. Ou seja, a gasolina derrotou o vapor! Isso não tem consequências apenas no que diz respeito a carruagens sem cavalos, meu caro. Chegará o dia em que também os navios se moverão a gasolina! Escreva o que lhe digo! A gasolina é o futuro!
Fez-se um breve silêncio à mesa. Em redor vivia-se um ambiente festivo, o pianista tocava uma composição animada e alguns casais redemoinhavam pelo salão. Ouviam-se risadas felizes e a excitação era geral, mas os quatro homens entreolhavam-se com preocupação, como se estivessem num mundo à parte. Pousando um cotovelo na mesa, Samuel assentou a cabeça na palma da mão e massajou a face.
E agora, meu Deus?, gemeu. Que faço eu? Vendo aos Americanos ou corro o risco de me arruinar?
O holandês desferiu um murro na mesa que a todos sobressaltou.
Nem uma coisa nem outra!, rugiu. Una-se à Royal Dutch! Eendracht maakt macht! Só a união nos poderá salvar! Juntamos recursos, partilhamos refinarias e meios de transporte, fazemos economias em escala e estabilizamos os mercados. Há muito dinheiro a ganhar e nós vamos ganhá-lo, que demónio!
Kaloust pigarreou.
Se me permitem, isso não chega, disse no seu habitual tom sereno, quebrando um silêncio prolongado. Uma união entre os diferentes produtores europeus só funcionará se entrarmos nos mercados onde a Standard Oil é monopolista. Caso contrário, os Americanos poderão continuar a usar os lucros nesses mercados para nos atacar com preços baixos nos mercados em que competem connosco. Mas se estivermos presentes em toda a parte, os tipos perdem margem para lançar estas guerras de preços.
Tem razão!, concordou Hendrik. Embora nada disso seja possível se permanecermos divididos. Temos de fundir actividades onde pudermos e colaborar onde for possível.
Olhou para o representante dos Rothschild. Philip, como é?
O inglês balançou a cabeça.
As coisas como estão não podem continuar. Estas guerras levam-nos à ruína. Ergueu a cabeça e encarou o seu interlocutor. Pode contar connosco, old boy.
O holandês voltou-se para o arménio.
Kaloust, como é convosco? A Rússia é o segundo maior produtor mundial de petróleo e, se quisermos fazer frente à Standard Oil, precisamos dos produtores independentes de Baku. Qual é a vossa posição?
O representante de Zinovieff mantinha um semblante impassível, como um vendedor do Grande Bazar a meio de uma negociação.
Estou convencido que só um entendimento faz sentido, acabou por dizer. Os produtores independentes de Baku irão alinhar convosco, isso posso garantir. Mas em regime de colaboração.
Hendrik voltou-se por fim para Samuel, que massajava ainda o rosto com a ponta dos dedos.
E você? Vende à Standard Oil e trai o seu país? Ou une-se à Royal Dutch, numa parceria anglo holandesa, e salva a sua empresa sem ter de vender a alma? Quem é o seu patrão? Rockefeller ou a rainha Vitória?
Ao apresentar a questão nestes moldes, o holandês sabia que acabara de assestar o coup de grâce no seu interlocutor, sempre muito preocupado com demonstrar o seu patriotismo. Samuel Mark parou de massajar a face, ergueu a cabeça, fitou o seu interlocutor por uns cinco longos segundos e, decidindo-se, estendeu bruscamente a mão.
Conte comigo.
Passada a tensão, e uma vez encontrada uma solução que lhes permitiria fazer frente à Standard Oil de Rockefeller, os quatro descontraíram-se e começaram gradualmente a envolver-se no espírito da noite. O salão enchia-se de casais que dançavam ao ritmo frenético de uma pequena orquestra que entretanto entrara em acção, enquanto os grupos de convivas conversavam animadamente e iam petiscando nas longas mesas onde se apresentavam os pratos confeccionados por alguns dos melhores cozinheiros contratados em França.
Vendo a festa girar em redor dele, Kaloust não pôde deixar de pensar nas ironias da vida. O ano que então acabava vira a morte da mãe, o que, após o desaparecimento dos sogros nos anos anteriores, consumava a sua orfandade. Ele e Nunuphar estavam agora entregues a si próprios, sem poderem contar com a protecção de ninguém, até porque o banco, o Hotel Pera Palace e os navios do velho Ohannes tinham ido para os irmãos dela. Mas, ao mesmo tempo, Kaloust consolidara a sua posição como representante de Zinovieff e tinha um pé no mundo do petróleo. O acordo dessa noite com os seus três parceiros de mesa era igualmente importante e augurava um futuro próspero para o seu negócio. Havia, pois, bons motivos para celebrar os anos vindouros.
Já perto da meia-noite, o gerente do Savoy, César Ritz, emergiu da multidão e ocupou o centro do salão, os braços abertos de modo a chamar a atenção e calar toda a gente. Fez-se um silêncio incaracterístico no salão. Com um gesto dramático, Ritz virou-se para a parede e apontou para o grande relógio que ele próprio trouxera da Suíça, a sua terra natal, os ponteiros a assinalarem as onze e cinquenta e cinco.
Minhas senhoras e meus senhores, disse num tom solene. O ano de 1899 chega ao fim daqui a menos de cinco minutos.
Com ele vai-se também o glorioso século de oitocentos, em que o mundo despertou das trevas e abraçou o progresso sob a liderança iluminada da Grã-Bretanha e da rainha Vitória. Proponho que façamos uma despedida condigna ao ano e ao século que nesta noite memorável se apagam.
Ouviram-se alguns hear!, hear!, como se fazia na Câmara dos Comuns, outros gritaram God save the Queen!, a banda tocou os acordes familiares de Rule, Britannia e um coro ergueu-se entre os convivas.
When Britain first, at Heauen's command
Arose from out the azure main;
This was the charter of the land,
And guardian angels sang this strain:
Rule, Britannia! Britannia rule the waves:
Britons never will be slaves.
A seguir Ritz contabilizou os derradeiros segundos de 1899, acompanhado novamente em coro pelos convivas.
Cinco ... quatro ... três ... dois ... ummm ... Desencadeou-se um concerto caótico de plocs de rolhas a saltarem das garrafas de champagne, copos no ar e beijos e abraços.
Feliz Ano Novo! Feliz 1900! Que o novo século vos traga felicidade a todos!
A música irrompeu de novo no salão, mais animada do que nunca, com casais ainda a beijarem-se e outros a rodopiarem já na pista, o champagne a Jorrar por todos os copos e a pingar no soalho. Os quatro homens do petróleo, três baixos e um alto, ergueram as taças num movimento síncrono, brindando à nova era que aí vinha.
Ao novo ano!
À Royal Dutch Shell!
Kaloust mandou-os de imediato calarem-se com um chiu! suave e, de copo elevado, alterou o brinde para algo que lhe pareceu mais consentâneo com o futuro que aquela passagem de ano para 1900 augurava.
Ao século do petróleo!
A nounou, mademoiselle Clémence, aproximou-se com o pente molhado e acocorou-se diante do pequeno Krikor para lhe ajeitar o cabelo negro, empurrando a melena para o lado de modo a desenhar uma linha lateral perfeita. Compôs-lhe o colarinho da camisa e, afastando-se um palmo, contemplou com olhar crítico o petiz de cinco anos.
Voilà!, exclamou, enfim satisfeita. Mas depressa uma pequena ruga de preocupação lhe rasgou a fronte. O menino está preparado? Tem tudo bem decorado? Krikor fez que sim com a cabeça.
Oui mademoiselle.
Pondo-se em pé, a nounou indicou-lhe então a porta e fez-lhe sinal de que avançasse.
Alors, allons-y!
O pequeno gostava de mademoiselle Clémence. A francesa tinha jeitos suaves, muito mais agradáveis do que a antiga nanny, a ríspida Miss Sawyer, que o educara até alguns meses antes.
Os pais faziam questão de dar ao seu querubim a melhor das educações e puseram alternadamente uma inglesa e uma francesa a acompanhá-lo para que ele crescesse fluente nas duas línguas.
A partir do momento em que cruzou a porta e entrou no drawing-room, porém, Krikor esqueceu a sua nounou e começou a sentir os joelhos tremerem como se fossem feitos de geleia. Diante dele, à maneira de um júri impaciente pelo espectáculo, estavam os progenitores estendidos sobre uma chaise longue, a mãe a segurar o seu pékinois branco, o pai a afagar distraidamente a barba escura, ambos rodeados de visitas que voltaram para o pequeno as suas atenções, como se o filho dos anfitriões fosse uma bizarria acabada de aparecer para os presentear com um número de circo. Ah, como eram difíceis aquelas manhãs! Os pais haviam comprado a casa pouco tempo antes e faziam dele mais uma peça da mobília.
A nounou travou-o com a mão, indicando-lhe que se encontrava na posição certa e que poderia começar, e Krikor engoliu em seco. O nervosismo fazia-lhe doer o estômago e os seus olhos negros e brilhantes desviaram-se para o pai. A figura de Kaloust, com uma barba escura e grossas sobrancelhas sobre um olhar carrancudo, aterrorizava-o para além do razoável. Intuía, aliás, que não era a única pessoa naquela casa que se sentia intimidada na presença do chefe da família. A antiga nanny, a actual nounou, os empregados, os cozinheiros, até a mãe, pareciam comportar-se de modo diferente, com um respeito cego e temeroso, sempre que se encontravam diante dele.
Então, Krikor?, disse a mãe. Quando começas?
O pequeno enrodilhou as mãos nervosas nas calças e, sentindo um vazio varrer-lhe a mente, lançou um olhar interrogativo para a nounou, como se lhe implorasse ajuda.
La lune , sussurrou mademoiselle Clémence, était sereine ...
Ah, pois! Lembrando-se das primeiras palavras, o resto surgiu com naturalidade e em catadupa.
La lune était sereine et jouait sur les flots.
La fenêtre enfin libre est ouverte à la brise,
La sultane regarde, et la mer qui se brise,
Là-bas, d'un flot d' argent brode les noirs ilots.
Quando a voz macia e trémula da criança se silenciou, uma revoada de palmas entusiásticas encheu o drawing-room, acompanhada por alguns bravo! e well done!. Mademoiselle Clémence esclareceu em voz alta que se tratava de uma estrofe de Clair de lune, de Victor Hugo, o que arrancou novos aplausos, mas logo a atenção dos convidados se dispersou e Krikor, qual estrela que empalidecera depois do brilho mais intenso, foi conduzido pela nounou de regresso à sua salinha com uma friandise, prémio da pequena prestação.
Todas as quartas-feiras um número daqueles animava as recepções organizadas pelos pais na casa que tinham acabado de adquirir no número 38 de Hyde Park Gardens, justamente a mesma moradia que anos antes Kaloust havia profetizado ao futuro sogro que um dia iria comprar. A promessa fora enfim cumprida e os Sarkisian viviam agora na casa dos sonhos do chefe da família.
As rotinas na mansão incluíam uma performance poética de Krikor, pelo que o pequeno era semanalmente forçado a decorar um poema diferente. Na semana anterior tinha sido Baudelaire, agora Victor Hugo, quem sabe como seria na quarta-feira seguinte? Não era coisa que lhe agradasse, claro, mas ao menos havia a friandise para o compensar pelo trabalho e por todos os tormentos por que passava para memorizar as frases bizarras que papagueava sem verdadeiramente as compreender.
Krikor!
A voz do pai paralisou-o de terror. O pequeno estacou e virou-se para trás muito hirto, como se o seu corpo fosse um pau, até encarar o dono da casa. Embora fosse uma figura distante e muito ausente, o pai tratava-o sempre com correcção, mas mesmo assim tremia de medo diante dele; era talvez a própria distância, e o temor que Kaloust gerava entre os empregados, que o punha assim.
Sim, senhor?
Kaloust aproximou-se do filho e inclinou-se para a frente de modo a fitá-lo nos olhos.
Vais fazer seis anos na próxima semana, não é verdade?
Sim, senhor.
Então amanhã de manhã vou levar-te aos Swears & Wells, anunciou-lhe. Saímos às dez horas. Quero-te preparado a rigor para a prenda que irás receber.
O Swears & Wells, sabia o pequeno, era também designado Young Gentlemen's Outfitters, ou seja, e pondo as coisas de um modo mais simples, tratava-se de uma loja de roupa para rapazes. Se o pai o queria lá levar por causa do aniversário, isso só poderia querer dizer uma coisa: os seus presentes seriam trapos. Não eram exactamente boas notícias, mas o que poderia fazer?
A sessão no Swears & Wells foi rápida e eficiente, como acontecia sempre que o pai se envolvia num assunto. Atendido por mister Wells em pessoa, Kaloust escolheu para o filho umas polainas com botões, um casaco curto com botões de pérola, um par de calças de montar e um chapéu escocês de algodão Tam o'Shanter azul e verde com uma bela pena branca pregada ao lado.
Luvas e bengala!, disse por fim mister Wells, conduzindo-o à respectiva secção. Um gentleman que se preze usa bengala e luvas quando sai à rua, seja para caminhar seja para cavalgar.
A bengala foi-lhe imposta, mas a Krikor deu-se a escolher entre luvas negras e castanhas. Optou pelas castanhas, a única decisão que verdadeiramente teve de tomar. Tudo o resto acabou por ser escolhido pelo proprietário da loja e sancionado pelo pai. A ele competia apenas vestir e calar.
Já equipado a rigor, o pequeno foi na semana seguinte conduzido até um ponto em Hyde Park perto da sua nova casa. Encontravam-se por ali vários cavalos, mas o pai levou-o especificamente junto de um animal pequeno, branco com pintas negras no dorso, que o cocheiro da família, mister Ashton, segurava pelas rédeas.
Estás a ver este pony?, perguntou-lhe Kaloust. É teu!
Feliz aniversário!
Foi um momento de facto feliz aquele em que Krikor recebeu o pónei pelo sexto aniversário. Feliz por se tratar do seu primeiro cavalo, mas sobretudo pela proximidade com o pai, mesmo que momentânea. Kaloust era um homem ocupado, sempre em viagens de negócios e a tratar de coisas muito sérias do mundo dos adultos, pelo que não o via com frequência. Nos raros dias em que não chegava demasiado tarde, ia visitar o filho ao quarto por alguns minutos, mas a sua postura rígida e a obstinação pelo sentido de dever, aliadas ao aspecto feroz da face, aterrorizavam Krikor.
Ao menos ganhou o pónei.
Nesses primeiros anos de vida, o herdeiro dos Sarkisian vivia mais próximo da mãe. Via-a logo pela manhã, quando acordava, e corria para o quarto dela para lhe fazer companhia ao pequeno-almoço. A nounou vinha buscá-lo para as actividades educativas da manhã, mas voltava a estar com Nunuphar à hora do almoço. Era bom partilhar com ela a refeição à mesma mesa, embora a mãe fosse extremamente exigente e inflexível quanto ao que ele deveria comer.
As verduras primeiro, dizia ela amiúde. Fazem-lhe bem à saúde. A cenoura põe-lhe os olhos bonitos.
Mas eu quero o bife!
Só depois das verduras, entendeu? É para o seu próprio bem.
O problema é que Krikor detestava as malditas verduras quase tanto como aquele argumento de que era tudo para o seu próprio bem. Qual bem? De que estava ela a falar? Aquilo não lhe sabia a nada! Como era possível que o obrigassem a engolir semelhante porcaria?
Ao fim de muitos protestos e algumas choradeiras e birras, chegou o dia em que resolveu ignorar as instruções maternas e pôs as verduras de lado, na ocasião tratava-se de couves, de modo a passar imediatamente à carne. A mãe, contudo, não foi na conversa e ergueu-se de rompante, devolvendo a carne à travessa.
Ai o menino! Só come o bife depois das verduras, ouviu?
Não quero cá insubordinações!
Mas eu não gosto das couves!
Não quero saber! Coma!
A ordem era peremptória e o pequeno sabia que a desobediência tinha consequências. Sempre que se portava mal, a mãe ou a governanta davam-lhe umas tapadas. Os castigos eram ministrados com frequência, como de resto parecia normal no seu tempo, embora jamais tivessem sido aplicados pelo pai. Seja como for, o facto é que Krikor deixara de os temer. Não seriam umas bofetadas a mais que o iriam convencer a meter as malditas couves na boca.
Não como!
A mãe soergueu o sobrolho.
Ai não? Fez um sinal na direcção de mademoiselle Clémence. O menino não mete mais nada à boca enquanto não comer as couves, entendeu? Nem uma batatinha sequer!
Como castigo pela desobediência, Krikor esperava as habituais palmadas no rabo ou a interdição de se regalar com as friandises durante uma semana, mas não aquilo. A mãe não tocou nele; limitou-se a oferecer-lhe uma tarde inteira de jejum. Como não comeu as verduras, não lhe foi dado mais nada até à altura do lanche.
Pelas cinco da tarde, à hora do chá, apresentou-se à mesa para os habituais scones. Sentia o estômago implorar por alimento e os braços e as pernas bambos de fraqueza. A salivar, viu a empregada aparecer na salinha do chá com a bandeja, mas, entre as chávenas, o bule e o cestinho dos scones, descortinou com consternação um prato com couves. As suas couves. As couves que foram de novo postas diante dele para comer. Pousou os olhos desanimados sobre elas, descoroçoado, à beira já da rendição, mas algo se agitou na sua alma. Eram as chamas da revolta a incendiar-lhe a vontade, ou talvez o orgulho, que não o deixavam dar parte de vencido. Decidiu manter-se firme.
Não quero esta porcaria!
Sabia que a mãe se preocupava com o bem-estar dele e queria ver o que ela faria. Recorreria enfim às palmadas? Quase o desejou, até porque assim o caso ficaria de imediato encerrado. Levantou os olhos desafiadores para Nunuphar e aguardou que a mãe cedesse ou explodisse. Decerto não resistiria ao sofrimento do seu mais-que-tudo.
Podem levar as couves para a cozinha, ordenou ela num tom inesperadamente frio. O menino não come mais nada até ao jantar.
Contendo com dificuldade as lágrimas, Krikor abandonou a mesa e encaminhou-se para o quarto em passos apressados e cabisbaixos. Tinha tanta fome que, quando se sentou na borda da cama, pôs-se a trincar a pele que espreitava pelo canto das unhas. Depois descobriu que a água lhe aplacava momentaneamente o apetite e consumiu-a com abundância. Mas a vontade de comer voltava logo, a intervalos cada vez mais curtos, até se tornar de novo permanente. A resistência e o ânimo aproximavam-se enfim do limite.
À noite, ainda o pai não tinha voltado dos seus negócios, sentou-se à mesa em estado de total fraqueza. A empregada serviu a sopa, mas foi sem surpresa que constatou que não tinha direito a ela. Em vez disso, e seguindo ordens da patroa, a criada pousou-lhe à frente o mesmo prato com as mesmas couves, que desta vez comeu sem um protesto e, em boa verdade, com uma certa sofreguidão.
Coisa estranha, até gostou.
O céu clareava no horizonte com uma estranha mistura de amarelo e lilás, como se o firmamento fosse uma gigantesca tela rasgada por vigorosas pinceladas a óleo. Kaloust tinha acabado de se levantar e perscrutava a rua pela janela. Por vezes acontecia-lhe ver um cavaleiro aparecer diante da casa para anunciar the Queen's coming!, e, instantes mais tarde, o coche com a rainha Vitória passava a caminho da estação de Paddington, onde a monarca apanhava o comboio para Windsor. Contudo, fazia já semanas que não avistava o cortejo real; corriam rumores de que a rainha, que ocupava o trono havia mais de sessenta anos, estava doente, o que, a ser verdade, explicava o facto de não ter voltado a ver passar o coche real. Antes ela do que eu, pensou o arménio com um encolher de ombros indiferente. Bocejou e seguiu para o quarto de banho em passo leve, para não despertar Nunuphar. Aliviou a bexiga e de seguida encarou o espelho. Tinha a barba escura e uma expressão hipnótica nos olhos. Lavou a cara e os dentes e, envolto no roupão, desceu até ao ginásio.
Bom dia, senhor Sarkisian, cumprimentou-o o homenzarrão belga que o aguardava à porta. Pronto para a sua massagem?
Kaloust respondeu com um grunhido. Tirou o roupão e estendeu-se sobre a marquesa sem pronunciar uma palavra.
De imediato o massagista espalhou-lhe uma loção pelo corpo e começou a pressionar-lhe os músculos das pernas com a ponta dos dedos. Enquanto se submetia à massagem diária das manhãs, a mente do arménio deambulava pelo seu mais recente feito, um novo cliente para o petróleo de Zinovieff. Mas isso não superava a compra do número 38 de Hyde Park Gardens, a mansão onde se encontrava nesse momento. A casa que cobiçara uns doze anos antes era enfim sua. Haveria melhor medida do seu sucesso?
Já está, senhor Sarkisian.
O massagista conhecia bem a rotina do seu cliente e cumprira à risca o programa de massagens. Sabia o que se seguiria, todas as manhãs era assim, mas o dono da casa não se coibiu de o lembrar.
Vá preparar o banho.
Quando se levantou da marquesa, Kaloust iniciou os seus quinze minutos diários de ginástica sueca. Havia algum tempo que se lhe metera na cabeça que viveria mais do que o seu avô. Carnig Sarkisian tinha chegado aos cento e seis anos de idade, mas o neto estava determinado a suplantá-lo.
Depois da ginástica dirigiu-se ao quarto de banho para a grande toilette. A água ondulava com placidez na banheira, onde sais, espuma e flores flutuavam na superfície líquida. Kaloust inclinou-se e mergulhou o dedo para sentir a temperatura. Pareceu-lhe bem, mas, sempre desconfiado, pôs o termómetro para se certificar. Quando o retirou, constatou que o mercúrio se situava nos dois graus.
Está pouco fria!, indignou-se. Quer dar-me cabo da saúde ou quê?
O massagista pegou de imediato num balde com gelo e despejou-o na banheira.
Peço desculpa, senhor Sarkisian, disse com evidente aflição. Devo-me ter enganado na quantidade.
Que isto não se repita, ouviu?, avisou com o dedo esticado. Quantas vezes tenho de lhe dizer que quero a água a um grau Celsius? Ergueu o dedo indicador para sublinhar o algarismo. É um grau, nem mais nem menos!
A medida que amadurecia, Kaloust ia ficando mais impaciente com a incompetência. Tornara se menos tolerante com os erros e irritava-se com os defeitos da natureza humana; era como se a imperfeição das pessoas lhe ofendesse o sentido estético. O que a arte tinha de bom é que as coisas belas permaneciam belas, sem falhas, imutáveis na aparência, limadas até à perfeição como se fossem abençoadas pela graça de Deus. Que contraste com a imperfeição humana! Se antes a necessidade o obrigava a pactuar com os defeitos dos homens, agora que as generosas comissões das vendas do petróleo de Zinovieff lhe enchiam as contas sentia-se livre e ganhava espaço para não contemporizar com os erros dos seus semelhantes.
O banho durou mais quinze minutos. Quando terminou, vestiu-se e saiu à rua para o seu habitual constitucional, o passeio matinal de uma milha ao longo de Hyde Park. As falhas dos homens obcecavam-no, sobretudo quando contrastavam com a perfeição da arte. Mas não havia imperfeição que mais o perturbasse que o envelhecimento. Kaloust sentia-se deter minado a combater o processo de degeneração do corpo; tinha trinta e dois anos e, embora se sentisse na plenitude da forma física, intuía que, se nada fizesse, em breve se iniciaria o lento mas irreversível processo de degradação do corpo. Urgia travar essa degeneração.
A mulher estava sentada de cabeça inclinada e com o bebé nu sobre o joelho, ladeada por um homem de vestes vermelhas à direita e o que parecia um bispo à esquerda. Kaloust esfregou o queixo enquanto estudava a imagem. A mulher era evidentemente Maria e o bebé Jesus mas quem seria o homem e o bispo?
Ansidei Madonna, disse uma voz atrás dele. Esta pintura de Rafael é muito representativa do Alto Renascimento. Repare como o dourado da pintura parece real.
O arménio voltou-se e identificou o homem que falara. Era um jovem de cabelo puxado para trás e olhos azuis límpidos.
Perdão?
O desconhecido estendeu o braço.
O meu nome é Kenneth Bark , identificou-se. Sou o novo curador da National Gallery.
O nome pareceu familiar ao visitante.
Kenneth Bark?, admirou-se. Sir Kenneth Bark?
Apertaram as mãos.
O próprio, sorriu o curador, evidentemente agradado por o seu grau de cavaleiro ser do conhecimento do seu interlocutor. Como está?
E eu sou ...
Kaloust Sarkisian, apressou-se Sir Kenneth a dizer, para mostrar que também o conhecia. A fama precede-o, meu caro. O nosso amigo comum Philip Blake já me tinha falado de si. Desviou o olhar para o quadro de Rafael. Contudo, não me disse que o senhor apreciava pintura ...
Os olhos do visitante passearam distraidamente pela Ansidei Madonna.
Gosto de tudo o que é belo, observou. Mas não conte a ninguém. É segredo.
A sério?
Os lábios de Kaloust curvaram-se num sorriso.
Estou a brincar, retorquiu o arménio. Sabe, nasci com a estética dentro de mim. Mas há muito tempo que pus de lado esta minha paixão. Tinha outras prioridades ...
As realidades prosaicas da vida impõem-se, não é verdade? Primeiro é preciso fazer dinheiro. Já vi que me compreende. Todavia, consegui amealhar um pequeno pecúlio e acho que vou reabrir a porta para este mundo que tanto me fascina. Ia há pouco a passar aqui por Trafalgar Square, vi a National Gallery e, num impulso do momento, decidi entrar.
Fez muito bem!, exclamou o curador em tom de aprovação, esfregando as mãos. Há alguma coisa de que goste em especial?
O visitante fez um gesto em direcção ao quadro diante deles.
Adoro estes clássicos. Rafael, por exemplo. Apontou para o fundo da sala. Mas também aquele Van Dyck e o Hogarth e o Constable que estão no outro salão.
Já viu os Turner e os Claude na sala quinze?
Bem, isso não.
Com um ah, tem de ver! peremptório, Sir Kenneth Bark agarrou o visitante pelo cotovelo e arrastou-o ao longo dos corredores para irem apreciar as melhores obras da National Gallery. Além dos prometidos Turner e Claude, o curador levou-o a espreitar também Os Embaixadores, de Holbein, enaltecendo neste quadro o gosto pelo pormenor e pela simbologia. Apanhando-se diante de um especialista, Kaloust viu a oportunidade de retomar um velho tema que o inquietava desde que em criança cruzava o Bósforo a caminho do Robert College e se deliciava a contemplar a cidade de Constantinopla banhada pela luz quente da alvorada.
Esta pintura é sem dúvida bonita, disse referindo-se ao Holbein. Recuou um passo, como se quisesse apreciar o quadro à distância, e soltou um longo suspiro com laivos de frustração. Sabe o que me intriga? É esta coisa de ficar embasbacado com o que é belo. Como é possível que o Holbein me encante tanto? Mas não é só este quadro, é ... é tudo. O que faz com que a imundice abjecta dos bairros pobres de Londres me deixe enojado e a verdura serena de Hyde Park me faça levitar? Porque será que isso me afecta? Por que razão não fico indiferente ao belo e ao feio? Que qualidade é essa que certas coisas têm para me deixar nesses estados? Uma centelha de luz faiscou no azul suave do olhar do inglês.
Ah, o senhor quer saber o que é a beleza.
Incapaz de despregar os olhos dos restantes quadros do salão, quase como se os quisesse levar a todos para casa, Kaloust girou nos calcanhares e recomeçou a percorrer o corredor em ritmo de passeio.
É essa de facto a pergunta que me atormenta.
O curador do museu acompanhou-o.
Sabe, é próprio do ser humano tornar as coisas especiais, considerou. As pessoas têm uma apetência natural por tudo o que acham belo e ficam perturbadas com o que consideram feio. Encontram beleza nas coisas que parecem conferir harmonia às suas vidas e sentido na forma como vêm o mundo, da visão de uma grandiosa cordilheira de montanhas às simples pétalas coloridas de uma flor a desabrochar na Primavera.
O arménio indicou os quadros nas paredes.
E também a arte ...
Sir Kenneth Bark esboçou uma careta.
A arte pertence a uma categoria especial, indicou. Bem entendido, quando se confrontam com a natureza, os seres humanos adoptam uma postura contemplativa. Encaram o mundo como ele é e ficam maravilhados com tudo o que vêem que não os ameaça. Um vulcão a expelir lava incandescente, uma leoa a cruzar a savana para caçar uma zebra, uma tempestade que rasga a noite de relâmpagos, o céu estrelado a cintilar na mancha profunda do espaço como pó em brasa.
E a arte?
A arte não é uma coisa que exista naturalmente no mundo, trata-se antes de uma criação humana. A arte é o produto da acção do homem quando ele tenta transcender a sua condição animal e passar de criatura a criador. A arte surge quando alguém transforma um acto animal num objecto cultural que se pode tornar sublime. Ao pintar uma cena na floresta, o homem torna-se Deus porque cria numa tela a natureza, ao contar uma história num romance o homem torna-se Deus porque cria no papel a vida de pessoas mesmo que imaginárias.
O homem torna-se Deus? Não estará a exceder-se?
O curador girou a mão pelo ar, indicando tudo o que os rodeava.
Deus é um artista, meu caro, pelo que a arte é um acto divino, sentenciou. Deus é a entidade que tudo cria, mas que permanece invisível por detrás da Sua criação, não lhe parece? Ora se for a ver bem, um artista é isso mesmo. Um pintor pinta um quadro, mas o criador permanece invisível
Por detrás da criação. O mesmo acontece com um dramaturgo ou um romancista, por exemplo. Imagine que não éramos pessoas de carne e osso, mas personagens de um romance.
O que absurdo!
Pois, mas imagine por um momento que essa era a nossa situação.
Quem seríamos nós? Criaturas, claro. Mas quem seria o nosso criador? O romancista que nos concebeu e que nos deu vida nas páginas do seu romance. Ou seja, o romancista seria Deus porque foi ele que tornou tudo possível e nos soprou a centelha da vida, embora permaneça invisível por detrás de cada palava que escreve. No fundo a vida é um romance e nós não passamos de personagens concebidas pelo supremo artista, Deus. É por isso também que digo que a arte é o processo de divinização da condição humana. O ponto de partida, contudo, é um acto animal!.
Kaloust imobilizou-se diante de uma pintura de Sebastiano del Piombo que mostrava Jesus a ressuscitar Lázaro no meio de uma multidão.
Desculpe, não percebo. Está a dizer-me que este quadro, por exemplo, resulta de um acto animal tornado divino?
Toda a arte tem como ponto de partida um acto animal que se tornou objecto cultural e depois peça artística num processo de divinização. No caso da pintura, ela nasceu do acto animal da caça. Os homens primitivos caçavam, como sabe. Depois começaram a desenhar cenas nas paredes das cavernas para exorcizar os demónios da caça e atrair o favor dos deuses. Ou seja, aculturaram o acto de caçar. Não contentes com isso, aprimoraram essas cenas e criaram objectos artísticos como Lascaux e Altamira. A cultura transformou-se assim em arte. Toda a arte nasce de uma refinação da cultura, que por sua vez nasce de um acto animal. Comer é um acto animal, fitar um bife é uma acção cultural, criar um prato como o ris de veau et écrevisses en chausson feuilleté parfumés à l'estragon, repleto de deliciosos sabores subtis, é um gesto artístico. Está a ver?
O que me está a dizer é que a arte é uma forma complexa de cultura.
Nem mais, concordou Sir Kenneth com um gesto enfático. Ter frio é uma reacção animal, tecer camisas de lã é um acto cultural, criar peças quentes de haute couture é um gesto artístico. A noção da estética requer a passagem para um estado superior da experiência humana, em que a mera sobrevivência já não está em questão. Um homem esfomeado olha para um cisne que desliza sobre as águas do The Serpentine, ali em Hyde Park, e vê comida, um homem saciado observa a mesmíssima ave e sente-se deslumbrado com a elegância e a graça natural do seu porte, com a alvura virginal das penas, com a curva majestosa do pescoço, olha-a sem outro interesse que não seja satisfazer-se na pura contemplação da sua beleza.
O olhar de Kaloust percorreu a fila de quadros que decoravam o salão onde se encontravam, enfeitiçado com a riqueza cromática e de pormenor de quase todos.
Ou seja, concluiu o visitante a balançar a cabeça pensativamente um objecto só se torna estético num patamar superior da existência do homem.
O curador do museu sorriu e abriu os braços como se quisesse abraçar todo o museu.
Bem-vindo ao mundo da arte.
As notícias de uma tempestade no Sul de Itália levaramno numa manhã da semana seguinte ao telefone, engenho que mandara instalar em casa e que se revelava de enorme utilidade. Ligou para o escritório para saber novidades sobre a movimentação do Murex, o navio da Shell que se deslocava pelo Mediterrâneo com um carregamento remetido de Baku por Zinovieff, e depois telefonou para a clínica de Holborn e deu ordens ao médico de que viesse visitá-lo a casa.
O médico pediu-lhe duas horas porque já tinha dois pacientes à espera, mas o argumento não convenceu o seu interlocutor.
Venha imediatamente!, ordenou Kaloust. É para isso que lhe pago tanto.
O doutor Ajemian era um arménio da velha escola, a grande barba branca a dar-lhe um certo ar de Catholicus da santa igreja da Arménia. Perante a insistência do conterrâneo abastado, não teve outro remédio que não fosse adiar a consulta com os dois pacientes e pôr-se imediatamente a caminho.
Apareceu no número 38 de Hyde Park Gardens vinte minutos mais tarde com a sua inseparável pasta de couro.
Tem feito tudo o que lhe recomendei?, quis saber depois de auscultar o paciente. Incluindo a ginástica?
Todas as manhãs.
E a alimentação?
Boa, mas frugal.
O médico mergulhou os dedos na barba.
Então o que o apoquenta?
Uma vez terminada a auscultação, Kaloust pusera de novo a camisa e abotoava-a.
Existe algum elixir da juventude?
O doutor Ajemian riu-se, exibindo os dentes de ouro que lhe ornamentavam a boca.
Que eu saiba não! Porque pergunta?
Quando era miúdo entrei acidentalmente num harém, contou Kaloust. Ia para a escola num daqueles barcos a vapor que atravessavam o Bósforo e, nem me lembro bem como nem porquê, dei comigo no compartimento reservado para os haréns. Veio um eunuco atrás de mim e tudo! Mas, a propósito dessa visita inesperada, alguém me disse que os paxás turcos tinham sempre no harém raparigas com menos de dezoito anos. Parece que eles acham que as relações Íntimas com moças muito novas prolongam a juventude dos homens. Fitou o médico com uma expressão interrogativa.
É mesmo assim, doutor?
O doutor Ajemian assentiu.
De facto, assim é. Os Turcos têm a teoria, que creio estar cientificamente provada, de que o sexo entre uma rapariga jovem e um homem mais velho resulta numa transferência de juventude para o homem. Ou seja, essa prática é boa para ele ... e má para ela, claro. Ele ganha juventude, ela perde-a.
O paciente escutou com grande atenção. Quando o médico se calou, Kaloust esfregou as mãos, como fazia sempre que mergulhava nos seus pensamentos. Depois endireitou-se com um sobressalto, como se tivesse voltado ao presente, e voltou a fixar os olhos no seu interlocutor.
Já percebi, doutor.
Depois do almoço no seu novo lugar favorito em Londres, o restaurante do Hotel Carlton, passou pelo escritório, em St Helen's Place, para saber se havia novidades sobre o Murex.
O Murex vai bem, mister Sarkisian, informou-o Robert Cook, o jovem advogado a quem tinha entregue a gestão das actividades diárias do escritório e que o secretariava nas questões profissionais. Mas o mesmo não se pode afirmar de Baku, receio bem.
O que quer dizer com isso?
Cook estendeu-lhe uma longa folha impressa em maiúsculas.
Veja este texto da Reuter's Telegram Company, sir, disse. Chegou à hora de almoço.
Intrigado Kaloust pegou na folha e, logo que começou a ler, sentiu um baque no coração. A primeira frase do longo telegrama era assustadora. Greve paralisa Baku. O texto dizia que manifestações e greves de trabalhadores forçaram a suspensão da actividade da indústria petrolífera no Cáucaso e informava que a polícia russa fizera uma sucessão de detenções. O telegrama concluía dizendo que a situação acalmou um pouco, embora permaneça volátil e acrescentava que o líder do movimento grevista, Ioseb Djughashvili, vulgarmente conhecido por Koba, ameaçou regressar às paralisações como forma de combater o que apelidou exploração selvagem do proletariado.
Isto na Rússia vai de mal a pior, murmurou o arménio entre dentes, devolvendo a folha ao seu subordinado. Este novo czar é um tolo! Em vez de pôr Baku a funcionar como deve ser, deixou que aquilo se transformasse num campo de escravos que está a degenerar num viveiro de rebeldes. Abanou a cabeça. As coisas ainda vão acabar mal por aqueles lados ...
Os problemas augurados pelas notícias absorveram Kaloust de tal modo que levou algum tempo a aperceber-se dos sinais que Cook lhe fazia.
Está lá dentro um senhor Kitabdji, disse o inglês, indicando a sala de estar. Diz que precisa de falar consigo.
Kaloust foi para o seu gabinete e mandou o visitante entrar. O homem apresentou-se como sendo o general Antoine Kitabdji, um georgiano que desempenhava as funções de director-geral de Alfândegas na Pérsia. Depois de trocarem amabilidades e de se inquirirem mutuamente sobre conhecimentos comuns no Cáucaso, o visitante deixou-se de rodeios e explicou ao que viera.
O meu governo, lamento dizê-lo, está a enfrentar algumas dificuldades de tesouraria, revelou o general Kitabdji, e decidiu vender concessões mineiras para angariar dinheiro que lhe permita superar os problemas com que se debate.
Problemas? Que problemas?
Embaraçado com a pergunta, o director-geral de Alfândegas persas sorriu com timidez.
Digamos que o xá é um homem de hábitos ... como dizer?, de hábitos pródigos.
Ah.
Kitabdji inclinou-se para abrir a pasta de mão e extraiu uns papéis oficiais redigidos em caracteres árabes e com tradução em francês.
O que se passa é que fui encarregado de encontrar comprador para uma concessão petrolífera na Pérsia. O preço definido pelo meu governo foi de quinze mil libras, pagas em dinheiro. O senhor foi-me recomendado como alguém que está dentro do circuito e que, a troco evidentemente de uma simpática comissão a meu favor, poderia estar interessado na concessão. Será esse o caso?
Kaloust coçou a barba enquanto ponderava a proposta.
Dê-me duas semanas para lhe responder.
A oferta da concessão na Pérsia evaporou-se da mente do anfitrião no momento em que o visitante se despediu e saiu. Preocupado com as consequências das notícias alarmantes sobre as greves em Baku, Kaloust chamou Cook e ditou-lhe o texto para um telegrama endereçado a Zinovieff a solicitar informações e estimativas sobre o que iria acontecer a curto, médio e longo prazo, de modo a preparar-se para enfrentar as perguntas dos clientes. A pior coisa que poderia acontecer era uma interrupção nos abastecimentos; seria catastrófico. Felizmente o Murex tinha partido antes de tudo aquilo acontecer. Mas iria a situação normalizar-se antes da viagem seguinte?
Enquanto não recebesse a resposta de Zinovieff nada poderia fazer. Assim, quando o seu subordinado saiu para mandar o telegrama, Kaloust manteve-se fechado no gabinete e dedicou-se à correspondência do dia. Uma das cartas, enviada de Constantinopla pelo cunhado que ficara com o Pera Palace, dava-lhe uma notícia aborrecida. Salim Bey, o amigo turco do pai, caíra em desgraça na corte e fora afastado pelo sultão.
Coitado ... , murmurou.
Pegou em papel de carta e escreveu uma mensagem solidária ao turco, oferecendo-lhe ajuda no que fosse necessário; devia-lhe demasiados favores para o ignorar naquela hora difícil.
A seguir vasculhou nos despachos da agência Reuters com as últimas informações do Royal Exchange. Interessou-se em particular pela evolução das cotações da Royal Dutch Shell, cujo casamento apadrinhara e de que tinha adquirido uma boa mão-cheia de acções. Nessa frente as coisas corriam-lhe bem, porque os ganhos estavam a ser generosos. Havia comprado as primeiras acções da Royal Dutch a um preço extraordinariamente baixo, verdadeira pechincha adquirida a conselho de Philip Blake. Além do mais, e como os campos petrolíferos da Royal Dutch Shell se encontravam no Bornéu e em Samatra, as suas cotações não haviam sido afectadas pelos acontecimentos em Baku. O mesmo não se podia dizer dos Rothschild e dos Nobel, que dependiam fortemente da produção do Cáucaso. Tal como ele próprio, de resto.
Alguém bateu à porta.
O que é?
A cabeça loira de Cook espreitou para o gabinete.
Um telegrama, sir, disse, estendendo-lhe um envelope.
Acabou de chegar.
De Baku?, admirou-se o arménio. Zinovieff já respondeu?
É de Haia.
Se era de Haia, só podia ser uma comunicação de Hendrik van Tiggelen, percebeu Kaloust. Abriu o sobrescrito e leu o texto. Tratava-se de facto de uma mensagem do presidente executivo da Royal Dutch Shell a solicitar-lhe uma reunião. Hendrik sugeria que se encontrassem a meio caminho entre Inglaterra e a Holanda e, sabendo da necessidade do arménio de se deslocar mensalmente a Paris para tratar da venda do petróleo de Zinovieff em França, propunha que o tête-à-tête decorresse justamente nessa cidade.
Quando Kaloust pegou na caneta para começar a redigir o telegrama de resposta foi interrompido por uma cacofonia de sons metálicos que lhe entrou no gabinete, uns próximos, outros distantes. Estranhando aquelas batidas ritmadas, embora caóticas no conjunto, levantou-se e foi à janela espreitar para a rua. Alguns fiacres haviam parado e os transeuntes pareciam igualmente surpreendidos. Foi nesse instante que percebeu que eram os sinos que dobravam.
Robert!?
Sim, sir?
Vai ver o que se passa.
Quando o jovem advogado saiu do escritório, Kaloust lançou uma derradeira olha dela pela janela e voltou a sentar-se. Os sinos ainda dobravam, mas depressa se abstraiu do que sucedia em seu redor. Pegou de novo na caneta e redigiu a resposta a Hendrik, aceitando o convite e marcando dia, hora e local para o encontro. Seria na semana seguinte, até porque tinha já reuniões agendadas para essa altura em Paris. Depois pegou noutro papel e escreveu uma segunda mensagem para ser também enviada por telegrama, este endereçado à sua velha tutora e amante de Marselha, mademoiselle Duprés, com quem fora mantendo ao longo do tempo um ocasional contacto à distância.
No momento em que concluiu este segundo texto sentiu a porta de entrada bater e percebeu que era o seu subordinado que regressava da rua. Tinha de lhe entregar as mensagens para ele ir ao correio antes da hora de fecho e enviá-las por telegrama.
Robert? Venha cá!
O inglês apareceu-lhe no gabinete com um aspecto perturbado, o cabelo louro despenteado e o olhar perdido.
Sir ...
Kaloust ficou impressionado com a expressão desorientada de Robert.
Meu Deus!, exclamou com alarme. O que se passa?
Aconteceu alguma coisa?
A rainha ..., balbuciou o jovem advogado. A rainha ...
O quê? O que foi?
Robert Cook deu dois passos maquinais no gabinete e caiu pesadamente na cadeira diante da secretária do seu chefe, um esgar repleto de incredulidade e choque a distorcer-lhe o rosto.
A rainha Vitória morreu.
O ambiente no salão era de excitação contida, com centenas de pessoas a prepararem-se para o grande evento. Os gentlemen vestiam fraque e falavam entre eles em tom grave, os bigodes e as barbas cuidadosamente aparados, as poses formais e cerimoniosas, enquanto as ladies exibiam os seus melhores vestidos para a ocasião, os olhares escondidos pelos leques irrequietos.
Puxado pela mão da nounou o pequeno Krikor comparou os trajes daquelas mulheres da alta sociedade com o da mãe e, embora fosse ainda tenro para as coisas da moda, percebeu com orgulho que Nunuphar era mais elegante.
Não se vestia afinal na Callot Soeurs de Paris? Pois era justamente nestas ocasiões solenes que se via a vantagem de frequentar o melhor costureiro da Europa, senão mesmo do mundo.
Vamos, vamos!, resmungou o pai, apressando o passo.
Eles estão quase a passar!
Os empregados do Hotel Carlton abriram alas pelo mar de convidados e conduziram os Sarkisian para o varandim de uma das janelas. Kaloust e Nunuphar instalaram-se em cadeiras ali colocadas, pagas a peso de ouro para o grande momento, enquanto o filho espreitava a rua através da balaustrada. Haymarket e Pall Mall, lá em baixo, formigavam de gente; eram quase tantas pessoas quantas as que, meses antes, haviam comparecido ao funeral da rainha Vitória, evento a que os Sarkisian assistiram da mesma janela do Carlton.
O burburinho recrudesceu e, acto contínuo, um cavaleiro apareceu na rua.
The King's coming!
O anúncio feito pelo arauto do palácio desencadeou um frémito nervoso que percorreu os espectadores. As pessoas esticaram os pescoços e voltaram os olhos atentos para o fundo da rua, pressentindo a aproximação do cortejo. Do varandim do hotel, os convidados do Carlton faziam a mesma coisa.
Eles vêm ali!, exclamou Krikor aos saltinhos. Eles vêm ali!
Os cavaleiros apareceram de facto ao fundo da rua, garbosos nas suas fardas escarlate, as lâminas das espadas a cintilarem ao sol quente de Agosto. O desfile aproximou-se do Carlton, começaram a ouvir-se os tambores e as gaitas de foles, passaram primeiro as escoltas militares nas suas fardas de gala, à frente os cavaleiros escoceses, depois os indianos, a seguir os africanos, vieram os gurkhas e os galeses, e por fim apareceu a sumptuosa carruagem real puxada por quatro parelhas de cavalos e enquadrada por homens a pé. Lá dentro, o enorme vulto de Eduardo VII acenava para os súbditos com uma mão enquanto com a outra segurava o ceptro, e os ingleses respondiam com revoadas de aplausos e ovações.
God save the King!, aclamava a multidão entusiástica.
God save the King!
O pequeno manteve os olhos presos na figura que acenava e, quando ela passou enfim, voltou-se para trás.
Ele já é rei?
Sim, Krikor, confirmou a mãe, os olhos ainda colados aos pequenos binóculos. Acabou de ser coroado na Abadia de Westminster e agora vai para o palácio.
O pai, sempre protegido do sol pelo seu habitual chapéu de coco, mantinha também os olhos pregados aos binóculos.
Nesse momento apontou para baixo.
Olhem ali! Olhem ali!
Krikor voltou-se para a rua e contemplou o cortejo. Viam-se coches uns atrás dos outros, todos elegantes, todos diferentes.
O que é?
O Kaiser Guilherme II está ali, não vêem?, disse o pai.
É sobrinho do rei, sabiam? Apontou noutra direcção. E acolá o czar! Vieram todos à coroação! O desfile da coroação do rei Eduardo VII foi emocionante, não só depois das peripécias em torno do seu adiamento devido a uma apendicite do herdeiro da coroa, mas também porque a rainha Vitória vivera tantos anos que havia poucas pessoas no reino que tivessem assistido a uma coroação era como se Vitória já se tivesse tornado parte da mobília, de tal modo que a coroação de outro rei a todos parecia surpreendente. Depressa o cortejo desapareceu em direcção ao Palácio de Buckingham e, passado o espectáculo, a multidão desfez-se em poucos minutos.
Almoçaram nesse dia no restaurante do Carlton, que Krikor sabia ser o preferido do pai, ao som de uma orquestra de cordas. Foi a primeira vez que o casal Sarkisian levou o filho a um restaurante, momento emocionante para o pequeno.
Vendo-se metido naquelas andanças com os graúdos, Krikor não pôde deixar de se sentir orgulhoso por partilhar semelhante ocasião. Assistira ao desfile da coroação e almoçava entre as elites da cidade, escutando conversas e partilhando pratos, quase como se fosse um deles.
By Jove, já era um adulto!
Por aquela altura, os Sarkisian decidiram que a nounou francesa já não era adequada para o filho e substituíram-na por Miss BrocKway, uma inglesa de meia idade da velha escola vitoriana. A nova tutora era uma mulher rija, que não se inibia de aplicar a Krikor uma saudável dose de correctivos. Fazia-o sempre que ele se portava mal, o que, na sua exigente opinião, sucedia pelo menos uma vez por dia, mas chegou ao ponto de lhe bater sem motivo aparente. O que fiz eu?, admirou -se o menino depois de levar a primeira dessas palmadas. Porque me bateu?
Porque é bom para ti!, retorquiu ela em tom severo.
Um homem, para crescer forte, tem de ter uma educação severa. Olha como eram os espartanos!
Curiosamente, e sem que ele próprio percebesse bem porquê, Krikor desenvolveu um afecto especial por esta tutora.
Talvez o fizesse porque ela ao menos lhe prestava atenção constante, ao contrário do pai, uma figura que permaneceu distante ao longo destes anos de formação. Via-o duas ou três vezes por semana, não muito mais, quase sempre ao longe, um fantasma ao mesmo tempo fascinante e aterrador que por vezes lhe assombrava a vida.
A excepção eram as férias, claro. Todos os Invernos o pai alugava uma vivenda em Cap Martin, em França, e enviava a família para lá durante algumas semanas. Ocasionalmente, e sempre que os negócios o permitiam, Kaloust juntava-se a Nunuphar e a Krikor durante alguns dias. Apesar do medo que o pai lhe inspirava, eram momentos felizes para o pequeno. Passeavam por Cap Martin num coche com grandes rodas vermelhas e por vezes iam espreitar a Villa Cyrnos, onde vivia Eugénie de Montijo, viúva de Napoleão lll e antiga imperatriz de França.
Como sempre, era Miss Brockway quem o trazia de volta à Terra quando regressava a Londres. Esta casa é muito frugal, dizia a tutora. Quem me dera trabalhar para gente realmente rica ... Estas observações criaram em Krikor a bizarra convicção de que a sua família, apesar de frequentar o Carlton e ser vizinha ocasional da última imperatriz francesa, era na realidade humilde. Ou quando muito remediada. O número 38 de Hyde Park Gardens encontrava-se do lado socialmente errado do parque, demasiado longe de Park Lane para poder ser considerada uma morada de grande prestígio, pormenor para o qual Miss Brockway não se cansava de chamar a atenção. Ela tinha razão, claro. Pois se naquela casa nem existia uma empregada dedica da exclusivamente à roupa do menino! ...
Levando em conta os requisitos das boas casas de Park Lane, de facto os Sarkisian só podiam ser remediados. Corria até entre a vizinhança aristocrática a informação escandalosa de que o senhor Kaloust se deslocava à City para, imaginese!, trabalhar, actividade que causava a mais viva repulsa naquela zona tão posh e fashionable da cidade.
Que horror!, ouviu certa vez Krikor da boca de um lorde que passeava o cão diante do número 38. O armeniozinho trabalha!
Nestas condições, como poderia o pequeno deixar de pensar que se encontrava entre as pessoas mais humildes da selecta sociedade britânica? Não fora o pai que vira recusado o acesso ao St. James Club por ser, horror dos horrores, um professional man? As pessoas de bem não geriam negócios; viviam dos rendimentos proporcionados pelas grandes propriedades de família. Os novos ricos, ou ricos de primeira geração, eram olhados de esguelha, como plebeus que tentavam intrometer-se em espaços sociais que não eram naturalmente os seus. Não saberia aquela gentinha pôr-se no devido lugar?
Na verdade, Krikor desconhecia por esta altura que existiam pessoas verdadeiramente pobres a alguns quarteirões de distância. O filho dos Sarkisian frequentava apenas o restrito espaço geográfico entre Hyde Park e Kensington Gardens, protegido por muros de riqueza e por um emaranhado de apertadas convenções sociais, pelo que não imaginava que fosse possível haver gente que nada tinha. Para ele, nada ter significava possuir uma mansão mais ou menos pequena, cujo jardim era separado do vizinho por um muro, como era o caso do número 38, onde viviam. A indigência completa constituía fenómeno de que nunca ouvira falar. Por isso, e ao fim de tantas vezes escutar Miss Brockway queixar-se da frugalidade existente naquela casa, acabou por encará-la com um olhar infeliz e articular por palavras o veredicto resignado a que chegara.
Somos pobres.
A ementa daquela noite no restaurante do Hotel Ritz, em plena place Vendôme, em Paris, era objecto de grande curiosidade entre os gastrónomos. Dizia-se que um milionário americano tinha feito um pedido pouco comum para o jantar e não havia certeza de que o chef de cuisine, o célebre Olivier Dabescat, estivesse à altura.
O burburinho em torno do pedido despertou o interesse de Kaloust, que marcou para essa noite o jantar no Ritz com mademoiselle Duprés. O arménio chegou primeiro e foi tomar um apéritif ao bar do restaurante. Indagou os empregados sobre a ementa, mas eles guardaram segredo e disseram-lhe que teria de esperar para ver. O que lhe valeu foi ter surpreendido César Ritz no momento em que passava em direcção ao salão Vendôme para verificar se estava tudo comme il faut. Agarrando a oportunidade, o arménio cortou-lhe o caminho.
M'sieur Ritz!
O anfitrião deteve-se e, ao reconhecer a pessoa que o interpelara, um largo sorriso profissional rasgou-lhe a face.
Oh, m'sieur Sarkisian! Que honra! Que prazer! Veio também participar na nossa petite soirée? Com certeza! Desde que me diga que ementa vão servir esta noite ...
O sorriso artificial desfez-se e Ritz, apesar de se esforçar por aparentar normalidade, não conseguiu ocultar um certo desalento que lhe empalidecia o rosto.
A minha boca é um túmulo, retorquiu, passando os dedos sobre os lábios como se os selasse. Prometi ao Olivier que ele é que anunciaria o prato especial desta noite.
A expressão entristecida do proprietário do hotel suscitou a estranheza do cliente.
Que diabo, homem!, exclamou Kaloust. Isso é razão para estar tão abatido?
Ritz fez um gesto de frustração. ,
Zut, alors! Não é nada!
Vamos, diga lá! O que se passa? Não me diga que é por causa da rainha Vitória! A mulher já foi a enterrar, homem!
Não se apoquente! Até já temos novo rei!
O anfitrião respirou fundo e aproximou-se um passo, de modo a poder falar sem ser escutado pelos demais clientes.
Oh, m'sieur Sarkisian, não brinque. Sabe, só tenho problemas! Uns atrás dos outros! Suspirou após a confidência, o corpo dobrado numa expressão de abatimento. Lembra-se que estive até ao ano passado no Savoy, não é verdade? Pois aqueles ... aqueles salauds d'anglais acusaram me de ter desviado mais de três mil libras em vinhos e bebidas espirituosas e ... e despediram me! Pousou a mão no peito com um gesto teatral. A mim, César Ritz! Ah, quelle honte, mon Dieu! Que vergonha!
Kaloust pousou-lhe a mão sobre o ombro para o consolar.
Sim, mas isso já lá vai, homem, disse. Fez um gesto largo a indicar o espaço em redor. Em menos de um ano o senhor abriu este magnífico hotel aqui em Paris! É o melhor da cidade, talvez do mundo! Sabe o que lhe digo? Ficou a ganhar com a troca!
É verdade, admitiu Ritz. Porém, estou de novo metido em sarilhos! Para me vingar do Savoy meteu-se-me na cabeça construir o melhor e mais luxuoso hotel de Inglaterra! Ergueu a voz, ganhando repentino entusiasmo. Quero erguer um Ritz em Piccadilly para mostrar àqueles comedores de rosbife o que é um hotel comme il faut! Os cretinos do Savoy hão-de roer-se de inveja e lamentar o dia em que me humilharam! Ah, vão pagar-mas! Os ombros descaíram-lhe e retomou um tom submisso. "Mas, hélas!, o projecto está num impasse porque me faltam os fundos! É uma desgraça! Não sei o que fazer à vida! Desde aquela maldita história dos vinhos que os bancos ingleses não me querem emprestar nem um tostão para financiar o projecto. Nem um tostão! Sacudiu a cabeça. Que posso fazer? A ruína espera-me!
O desânimo de César Ritz impressionou o seu interlocutor. Desde os tempos no Savoy que Kaloust reconhecera a visão inovadora do pequeno suíço no negócio da hotelaria.
Se havia coisa que o arménio sabia valorizar, das primeiras viagens no faustoso Expresso do Oriente às visitas diárias ao esplêndido Pera Palace de Constantinopla, era justamente o requinte dos bons serviços de hotel. E não havia maior luxo que o oferecido pelo Hotel Ritz de Paris.
Quer mesmo fazer em Piccadilly o melhor hotel de Londres?
Querer, queria. O olhar de Ritz iluminou-se. O projecto é grandioso, m'sieur Sarkisian! Um hotel em estilo neoclássico, como Louis XIV, com uma fachada parisiense à maneira da rue de Rivoli, está a ver a ideia? Oh, seria magnifique!
Abanou mais uma vez a cabeça, desta vez com desânimo renovado. Sonhos, nada mais do que sonhos! Não passo de um pobre tolo ...
O seu interlocutor fez um trejeito com os lábios.
De quanto dinheiro precisa?
Muito.
Quanto?
Ritz baixou a voz.
Umas quinhentas mil libras , disse quase num sussurro, como se tivesse medo de pronunciar a quantia. É imenso, eu sei! Nenhum banco inglês me quer emprestar esse dinheiro.
Estou perante a ruína!
Kaloust esfregou a sua barba densa, pensativo. Mas não teve de meditar muito, até porque confiava no talento de Ritz e tinha a intuição de que o hoteleiro seria um excelente investimento. Não o vira já em acção no Savoy e agora neste hotel na place Vendôme? Era difícil imaginar aposta mais segura.
Se me der uma fatia dos lucros, disse devagar, como se medisse as palavras, eu avanço com o dinheiro que lhe falta.
Pardon?
É como lhe disse, m'sieur Ritz. Eu meto as quinhentas mil libras de que precisa para, concretizar o projecto.
O suíço fitou o interlocutor com intensidade, tentando avaliar a sinceridade daquelas palavras. Está a falar a sério?
Acaso tenho ar de brincalhão?, devolveu Kaloust com uma expressão quase indiferente, como se tivesse acabado de lhe prometer um mero rebuçado. Passe amanhã pelo meu escritório pelas dez da manhã para fazermos esse contrato.
Passada a surpresa inicial, e constatando que não se tratava de facto de nenhuma brincadeira, as lágrimas afloraram aos olhos de Ritz. O suíço caiu sobre o cliente e abraçou-o como se ele fosse Jesus Cristo em carne e osso.
Ob, bon Dieu! Merci! Merci!, repetiu. Nem sei o que dizer! Isto é ... é incroyable! Fantastique! Oh la la! Como lhe poderei agradecer?
O arménio não era grande adepto do contacto físico com outros homens, pelo que se desenvencilhou de imediato do aperto do anfitrião.
Basta que faça do Ritz o mais luxuoso hotel de Londres e partilhe comigo os lucros na proporção do meu investimento, disse. Apontou-lhe o dedo, determinado a extrair mais uma vantagem. E, já agora, diga ao Olivier que venha aqui satisfazer-me a curiosidade sobre a ementa desta noite.
Ritz soltou uma gargalhada, limpou as lágrimas que lhe humedeciam as pálpebras e, com os gestos graciosos que o caracterizavam, fez uma vénia profunda, retirou-se do bar às arrecuas, de modo a não virar as costas ao seu inesperado mecenas, e dirigiu-se de imediato à cozinha.
Os seus desejos são ordens, m`sieur Sarkisian!
Não passaram nem dois minutos. Kaloust molhava os lábios com o porto de aperitivo quando viu Olivier Dabescat aparecer no bar à sua procura.
M 'sieur Sarkisian?, interpelou-o o chef de cuisine do Ritz. Não sei como o senhor fez isso, mas m'sieur Ritz está efusivo e deu-me ordens expressas para vir aqui revelar-lhe em primeira mão o grande segredo desta noite. Quer mesmo saber?
Não anseio por outra coisa, retorquiu Kaloust. Os boatos não param. Uns dizem que é um faisão especial, outros que se trata de uma carne africana. Elucide-me, por favor! A curiosidade está a dar cabo de mim!
Dabescat olhou em redor, de modo a assegurar-se de que mais nenhum cliente os escutava, e aproximou-se do ouvido esquerdo do arménio.
Sabe qual é o meu lema, não é verdade?, murmurou.
Forneço tudo o que os clientes peçam.
Sim, eu sei: E então?
Pois houve um americano que me desafiou a fazer-lhe um prato de pés de elefante estufados! Kaloust esbugalhou os olhos.
Perdão?
O responsável pela cozinha soltou um riso nervoso.
É o que ouviu, disse ele. O homem quis um estufado de pés de elefante. Como sempre me ouviu dizer que fornecia tudo o que os clientes pediam, desafiou-me a apresentar-lhe esse prato. Fez um gesto aparatoso com a mão, como um ilusionista no momento em que conclui um truque e o exibe para a plateia. Pois bem, vai ser servido esta noite!
Mas ... mas onde diabo foi você arranjar um elefante, homem? Não me diga que foi à caça em África!
Nova risadinha de Dabescat.
Tive de ir comprá-lo ao Jardin des plantes, revelou, referindo-se ao zoológico de Paris. Custou uma quantidade de francos, nem imagina quantos, mas já sabemos quem os vai pagar, não é? O americano.
O chef de cuisine regressou aos seus afazeres, que de resto eram intensos a essa hora, e Kaloust voltou as atenções para o seu copo de porto, mas não chegou a engolir mais nenhum trago porque, ao virar-se na cadeira, deu com um vulto de mulher plantado diante dele.
Era mademoiselle Duprés.
As quatro patas de elefante foram todas servidas na grande mesa circular onde se sentou o grupo de comensais trazidos pelo excêntrico cliente americano. Porém, seguindo ordens de César Ritz, o responsável da cozinha veio até à mesa junto à janela, onde se tinham instalado Kaloust e mademoiselle Duprés, e, com um gesto discreto, pousou diante deles uma pequena travessa com o conteúdo ocultado por uma tampa.
É uma pequena porção da ementa servida aos americanos, murmurou Dabescat. Com os cumprimentos de m'sieur Ritz.
Roídos de curiosidade, ambos provaram o prato exótico e mastigaram a carne com mil cuidados e redobrada desconfiança.
A fatia de pata de elefante revelou ao paladar uma estranha textura, entre o algodão e a esponja, pelo que decidiram não a comer toda e optaram antes por encomendar um estufado de ostras que o chef de cuisine lhes garantiu estar divinal. Envolvidos no ambiente requintado do salão Vendôme, onde um pianista de fraque executava com mestria Für Elise, o belo solo para piano de Beethoven, os dois antigos amantes dedicaram enfim total atenção um ao outro.
Então como lhe corre a vida, mademoiselle?, quis saber Kaloust quando se acalmou a excitação em torno do prato do americano e as ostras foram servidas. Continua bela, sem dúvida.
Não sei se me pode continuar a chamar mademoiselle ...
O quê? Casou?
Ela fez que sim com a cabeça.
Há quatro anos, revelou. Mas divorciámo-nos no ano passado.
Ao longo deste tempo, nunca me contou isso, queixou-se Kaloust. Nem por carta ...
A francesa encolheu os ombros.
Não vi razões para o fazer, justificou-se com pouco à-vontade. De qualquer modo, voltei a usar o meu nome de solteira, Duprés, embora me pareça que já não tenho idade para ser mademoi selle.
Madame Duprés, então.
Ela sorriu de forma coquette, exibindo discretamente a fileira de dentes brancos. Era um pouco mais velha do que ele, mas os trinta e tal anos já lhe pesavam. O corpo tornara-se mais seco e o rosto perdera grande parte da frescura de Marselha.
Acho que fica melhor.
E continua no mundo das publicações?
Oh, claro! Agora trabalho para as Edições Hetzel, não sei se conhece ...
Muito bem!, exclamou o arménio. Quem não conhece?
Publicam Júlio Verne, não é verdade?
Há quase quarenta anos, confirmou ela. Desde a morte de m'sieur Pierre-Jules que o negócio da editora passou para o filho, mas ele precisava de ajuda, le petit pauvre, e foi-me buscar a mim. Tenho andado agora às voltas com o novo livro de m'sieur Verne, que vai sair no próximo ano. Baixou a voz, como quem partilha um segredo. Vai-se chamar Les fréres Kip e, espero bem, será mais um êxito de vendas.
Ah, que bem! Que bem! Hesitou. E ... é feliz no seu trabalho?
Madame Duprés remexeu-se no assento; pressentia que aquela pergunta era importante e teria de dar uma resposta judiciosa.
Sempre gostei da literatura, claro, disse. Mas é evidente que, se me aparecer uma oportunidade mais bem remunerada, terei de considerar o assunto.
Kaloust bebericou um trago de Château Lafite.
Se não é indiscrição, disse ao pousar o copo, quanto ganha?
Cem francos por mês. Não é muito, mas cobre as despesas e ainda me sobra alguma coisa.
O arménio massajou a barba com a ponta dos dedos, como era seu hábito nestas ocasiões.
Pago-lhe dez vezes mais se aceitar trabalhar para mim. A francesa abriu e fechou a boca sem emitir um som, estupefacta com o valor da proposta.
Dez vezes mais?, perguntou por fim, incrédula. O senhor quer pagar-me ... mil francos por mês?
Parece-lhe bem?
Madame Duprés soltou uma gargalhada incrédula.
Por esse valor durmo consigo todas as noites!
O vestígio de um sorriso aflorou à face de Kaloust.
Esses tempos acabaram, receio bem, retorquiu. Preciso de si como secretária social, por assim dizer. Tenho necessidade de alguém de muita confiança que me organize os contactos com a sociedade. Alguém que se lembre dos aniversários de toda a ente, que me vá compra presentes para oferecer às pessoas, que me trate dos contactos, que envie flores ... enfim, alguém que possa gerir toda essa parte da minha vida.
A francesa encarou-o com um toque de desconfiança.
E paga-me mil francos para fazer isso? Mon Dieu, há por aí tanta gente que lhe pode fazer esse trabalho por menos de cem francos!
Preciso de alguém de confiança, sublinhou Kaloust. Essa qualidade é fundamental dada a natureza da minha vida social e, em particular, por causa de uma responsabilidade pouco ... convencional, digamos assim. É matéria delicada que requer grande sensibilidade e discrição.
Madame Duprés fez uma careta.
Está a falar de quê?
De um assunto ... como direi? Um assunto ... médico.
Não me diga que está doente?
Kaloust abanou a cabeça, levemente irritado por não conseguir transmitir por pensamento aquilo que tinha para dizer. Teria de usar as palavras, mas, considerando o tema em questão, elas pareciam-lhe pouco elegantes.
O meu médico aconselhou-me a ... enfim, ele acha que ... que ... Calou-se a meio da frase. Como raio poderia dizer aquilo de uma forma aceitável? Pois, o que se passa é que o meu médico me disse que devo ... quer dizer, ele defende que, por razões estritamente sanitárias, seria útil que eu mantivesse um contacto ... como direi?, um contacto ... íntimo e regular com ... enfim, com raparigas jovens. Respirou fundo, aliviado por ter conseguido finalmente dizer o que queria sem recorrer a uma linguagem vulgar. A bem dizer, as raparigas têm de ter dezoito anos. Ou de preferência menos.
O meu médico recomendou-me essa ... chamemos-lhe terapia, para efeitos de saúde. Ele acha que é fundamental para me manter saudável.
A antiga tutora ficou um longo momento calada, tentando absorver as implicações do que acabava de escutar. Dada a delicadeza da matéria e o evidente embaraço do seu interlocutor, compreendeu que teria de ser cuidadosa na escolha das palavras.
Pois, percebo que existe aí uma preocupação de saúde, disse com prudência. Mas qual é exactamente o papel que tem em mente para mim? É que eu já não tenho menos de dezoito anos, como deve ter reparado.
A observação extraiu uma gargalhada nervosa a Kaloust.
Com certeza!, retorquiu. Não é isso o que espero de uma secretária social, fique descansada. O que preciso é de alguém que ... como dizer?, que me organize essa questão, não sei se me está a entender.
O rosto de madame Duprés parecia uma esfinge enquanto ela avaliava o sentido da conversa e tentava ler nas entrelinhas.
Precisa que eu lhe arranje as raparigas, é isso? O arménio corou com a forma excessivamente aberta como ela expôs o assunto.
Pois ... no fundo, e de certo modo, é isso mesmo, balbuciou, com a transpiração a escorrer-lhe pelo rosto. Necessito de alguém que fale com elas, que as convença, que as prepare, que lhes ensine a falar e a comportarem-se, que as acompanhe ao médico ... enfim, todos esses pormenores de que naturalmente não me posso ocupar.
A francesa ponderou o assunto, contemplando as partes mais delicadas dessa responsabilidade.
E como espera que eu as convença? Quer dizer, não posso chegar ao pé de uma rapariga e dizer-lhe ... enfim, está a ver, não é? Que argumentos utilizarei?
Terá um fundo de maneio para esse efeito, devolveu o seu interlocutor. Tanto para as convencer como para as dispensar quando chegarem aos dezoito anos. Ergueu a palma da mão, como se quisesse sublinhar um ponto específico. Entenda-me, este assunto é estritamente clínico.
O meu médico insiste que têm de ser raparigas com menos de dezoito anos para que os efeitos terapêuticos se produzam com eficácia.
Ah, com certeza, assentiu madame Duprés, fingindo
acreditar. É uma questão de ... saúde. Compreendo perfeitamente.
Fez-se um silêncio embaraçoso entre os dois. O salão Vendôme, onde decorria o jantar, enchia-se de animação, o burburinho das conversas misturava-se com uma ocasional gargalhada, com as composições toca das pelo pianista e com os estalidos das garrafas de champagne a serem abertas. O jardim para além das janelas estava ricamente iluminado, o que conferia um brilho especial ao salão, ele próprio decorado com plantas e belas estátuas em estilo clássico.
E então?, quis saber Kaloust sem conseguir ocultar uma ponta de ansiedade. Aceita?
A sua antiga tutora hesitou. O que lhe era pedido, no fundo, e para utilizar uma expressão crua, é que exercesse as funções de proxeneta privada. Tratava-se de uma solicitação inesperada, mas não que isso a ofendesse. Não havia ela vendido o próprio corpo a este mesmo homem quando ambos viviam em Marselha? A questão moral não a preocupava muito e evidentemente ele escolhera-a para esse trabalho levando tal facto em consideração. Por outro lado, havia os mil francos por mês de remuneração, dinheiro mais do que suficiente para viver em Paris como uma princesa e dedicar parte importante do dia aos livros, a sua verdadeira paixão. Como poderia recusar tal oportunidade?
A fileira alva dos seus dentes voltou a espreitar por detrás do sorriso que se lhe desenhou com suavidade no rosto, arrancando as primeiras rugas do canto dos olhos.
Qual a primeira rapariga que deverei recrutar?
Os pormenores do acordo com César Ritz foram rapidamente negociados e concretizados no escritório parisiense de Kaloust. Os advogados redigiram o contrato, madame Duprés dactilografou-o, o anfitrião e Ritz leram-no e assinaram-no e o arménio passou um cheque do National Provincial Bank of England no valor de quinhentas mil libras. Quando tudo ficou concluído, o arménio pediu para falar a sós com o rei dos hoteleiros e os advogados saíram para a sala de espera. A secretária social fez menção de se retirar igualmente, mas o patrão fez-lhe sinal de que se sentasse.
Sempre fui um entusiasta dos grandes hotéis de luxo, disse Kaloust ao seu visitante. Isso teve um peso considerável na minha decisão de o ajudar neste período difícil. Fez uma pausa e forçou um sorriso. Para além, naturalmente, de acreditar que o senhor irá erguer em Piccadilly o melhor hotel de Inglaterra, talvez mesmo do mundo.
Obrigado, m'sieur Sarkisian, disse Ritz. Fico sensibilizado com a sua confiança.
Uma das coisas que sempre sonhei foi viver num hotel onde todas as nossas necessidades são tratadas sem que tenhamos de lidar com minudências ligadas a problemas de manutenção típicos de quem reside na sua própria casa: um candeeiro que se avaria, a relva que tem de ser aparada, uns talheres de prata que desapareceram ... enfim, todos esses inconvenientes. São uma maçada! Num hotel, o cliente não se preocupa com nada disso. Limita-se a ser servido e a pagar a conta no fim.
Ah, sem dúvida, é muito mais prático ...
Erguendo-se do seu lugar, Kaloust aproximou-se da janela do gabinete e derramou um olhar melancólico pela place Vendôme. O escritório do seu advogado parisiense situava-se num lado da praça e no outro lado erguia-se a fachada elegante e longa do Ritz de Paris, com uma fileira de coches e fiacres à porta para largar e pegar clientes.
Tenho andado a pensar em ir viver para um hotel, revelou enquanto contemplava a estrutura do Ritz a serpentear na borda da praça. Além de isso resolver as questões práticas do dia-a-dia, uma situação dessas ajudar-me-ia no fisco. Os meus rendimentos são elevados, como deve calcular, e o estado tenta roubar o mais que pode. O assunto pareceu empolgá-lo. Uns ladrões! Os políticos, essa escória da humanidade, usam o dinheiro dos outros para se servirem a si mesmos! Não passam de uns miseráveis parasitas! Respirou fundo para se acalmar. Mas, se viver num hotel, poderei fintar essa canalha dos impostos. Invocarei que estou de passagem, apresentando o facto de viver num hotel como prova, e obterei benefícios fiscais significativos. Voltou-se para trás e encarou o seu interlocutor. Está a ver onde quero chegar, não é verdade?
César Ritz sorriu.
M'sieur Sarkisian, presumo, gostaria de viver no Ritz.
O anfitrião deu dois passos e voltou a acomodar-se no seu lugar à secretária.
Nem mais!
Não há dificuldade nenhuma, assegurou o hoteleiro.
Reservar-lhe-ei a melhor suíte do meu hotel em Piccadilly e o senhor será tratado como se fosse ... olhe, como se fosse este novo rei de Inglaterra. Como se chama ele? Eduardo VII, não é?
Kaloust indicou a janela com o polegar.
Interessava-me também uma suíte aqui no seu hotel em Paris, sublinhou. Tenho de vir cá com frequência e ...
Certamente!, exclamou Ritz, sem o deixar concluir.
A melhor suíte do hotel aqui em Paris ficará a partir de agora reservada em permanência para si, esteja cá ou esteja fora.
O hoteleiro presumiu que a conversa estivesse concluída e preparou-se para se levantar, mas percebeu pela postura do seu interlocutor que havia pelo menos mais um ponto a resolver. Não se enganou.
Na verdade, disse Kaloust, retomando o assunto, a minha suíte aqui em Paris estará ocupada em permanência.
Sim? , admirou -se Ritz. M'sieur Sarkisian vem viver para Paris? Excelente!
O arménio remexeu-se na cadeira, pouco à vontade com o assunto que precisava de resolver.
Não é para mim, corrigiu. Estou a planear alojar na suíte uma ... enfim, uma senhora.
O suíço arqueou as sobrancelhas e lançou uma olhadela fugaz na direcção de madame Duprés, que em silêncio assistia à conversa sentada numa cadeira junto à janela.
Ah! Entendi.
Kaloust baixou os olhos, incapaz de encarar o suíço enquanto expunha o que lhe ia na mente, e fez um gesto a indicar a sua secretária social.
A senhora em questão ser-lhe-á apresentada por madame Duprés em tempo oportuno e ficará alojada na suíte por alguns meses, um ano, o que for necessário. Depois essa senhora sairá e para o seu lugar virá ... uma outra, também indicada por madame Duprés. Levantou enfim os
Olhos. Espero que não veja qualquer inconveniente neste procedimento. Gostaria que este assunto, que lhe asseguro estar relacionado estritamente com questões de saúde, fosse tratado com a maior discrição, tanto da sua parte como dos funcionários do hotel.
Ritz, hoteleiro experiente, percebeu que seria inconveniente aprofundar os pormenores, pelo que se levantou do seu lugar e estendeu a mão ao seu mecenas.
M'sieur Sarkisian, esteja descansado!, assegurou com uma vénia. O senhor, ou qualquer pessoa que o represente, cavalheiro ou senhora, será a partir de agora encarado como se de realeza se tratasse. O Ritz, cher m'sieur Sarkisian, será doravante a sua casa!
Como acontecia sempre que entrava em qualquer lugar, Hendrik van Tiggelen encheu de energia e vivacidade o gabinete parisiense de Kaloust. Acabava de chegar de Roterdão e viera directamente da Gare du Nord, onde desembarcara, com a cabeça a fervilhar de ideias e projectos.
Temos de discutir o seu lugar na Royal Dutch Shell!, exclamou o holandês de entrada, indo direito ao assunto.
Que tal ocupar um lugar na nossa administração? Precisamos de uma pessoa como o senhor, que se mexa bem no Cáucaso e nos círculos financeiros, sempre com discrição.
Poderá ser-nos muito útil.
Kaloust fez uma careta.
Administrador? Eu? Abanou a cabeça. Não, isso não me interessa.
Uma sombra de decepção atravessou o rosto do presidente executivo da Royal Dutch Shell. Não me diga isso! Ao garantir o fornecimento dos produtores independentes de Baku, o senhor tem sido crucial para as nossas operações, Se não tivéssemos o petróleo russo do nosso lado, só Deus sabe como conseguiríamos enfrentar a Standard Oil. Parece-me de todo desejável integrá-lo melhor na nossa organização.
Não tenciono ocupar lugares de administração ou direcção, explicou o arménio. Mas isso não quer dizer que não possamos colaborar estreitamente para benefício mútuo. Não se esqueça de que sou o maior accionista particular da Royal Dutch Shell, à custa das acções que adquiri a preços de saldo quando vocês estavam com dificuldades de produção em Samatra. Tenho, por isso, todo o interesse na prosperidade da empresa e acredito que posso ser muito útil.
Mas como nos poderá ser útil se não aceita ocupar um cargo de responsabilidade? Isso não faz sentido!
Kaloust recostou-se no seu assento e assumiu uma expressão benigna, de certo modo até sonhadora.
Já lhe disse que sou um apaixonado pela arte?
Constou-me que é coleccionador de tapetes, moedas e porcelanas, assentiu Hendrik, sem entender a súbita mudança de direcção da conversa. E então? O que tem isso a ver com a sua relação com a nossa empresa? Quer organizar-nos uma colecção?
O arménio ignorou a pitada de ironia que condimentava esta última pergunta.
Uma das artes mais nobres é a arquitectura, observou.
Claro que estas criações não são coleccionáveis. Não posso possuir o Pártenon e a Torre Eiffel, por exemplo. Mas posso admirar uma bela criação arquitectónica.
O holandês carregou as sobrancelhas, esforçando-se por ver onde queria o seu interlocutor chegar.
Deseja construir-nos algum edifício?
De certo modo, sim. Quero conceber uma arquitectura de negócios que seja perfeita. Não o poderei fazer a desempenhar uma qualquer função formal, como director ou administrador. Se o fizesse, transformar-me-ia num mero burocrata. Ora eu sou um artista! O negócio é a minha arte. A Royal Dutch Shell deseja a minha colaboração? Pois bem, tê-la-á. Estou ao vosso dispor.
Mas em que moldes? Pois se não aceita nenhum cargo no nosso organograma ...
Deixe-me pôr as coisas deste modo, sugeriu o arménio.
Se a Royal Dutch Shell fosse um ser humano, o senhor seria o corpo e eu a alma. O senhor gere o grupo e os aspectos de produção e distribuição e demais chatices. Eu, pelo meu lado, encarrego-me de toda a parte artística: detectar oportunidades, arranjar os financiamentos e montar as operações financeiras. Está a perceber a ideia?
Bem ... Explique-se melhor.
Imagine que identifico uma empresa petrolífera em dificuldades, mas na posse de uma concessão interessante.
Como não tem dinheiro, essa empresa não consegue financiar a exploração dos seus poços, não é verdade? O meu papel será descobrir tais casos, convencer empresas aflitas a serem adquiridas pela Royal Dutch Shell e arranjar os financiamentos necessários para obter tecnologia que permitirá explorar esses poços. Uma vez toda esta arquitectura montada, o senhor avança, compra essas empresas a um preço simpático e, graças aos financiamentos negociados por mim, fará a exploração. Eu fico com uma percentagem do negócio e a Royal Dutch Shell fica com a concessão. Arqueou as sobrancelhas. Não lhe parece o casamento perfeito?"
O rosto do holandês iluminou-se com um dos seus sorrisos contagiantes.
Nada mal pensado, reconheceu. Não é a colaboração que eu tinha em mente, mas quem sabe se não será melhor ainda?
Kaloust pigarreou.
De resto, estou já na posse de uma proposta de concessão que gostaria de submeter à sua consideração, apressou-se a acrescentar. Na semana passada apareceu-me no gabinete em Londres um representante do governo persa que se propunha vender-me uma concessão de exploração petrolífera no seu país por quinze mil libras. Está interessado?
Quinze mil libras? É uma maquia considerável. ..
Mas o retorno poderá ser ainda mais considerável. .. caso haja petróleo na Pérsia, claro.
E há?
O arménio encolheu os ombros.
Não sei. Andei a investigar o assunto e descobri que, há uns trinta anos, o xá tinha concedido direitos de exploração ao barão Reuter, o mesmo que fundou a agência de notícias, mas parece que as perfurações efectua das não foram bem-sucedidas.
Hendrik esboçou uma careta céptica.
Isso é uma concessão muito especulativa, não acha?, perguntou, evidentemente já com uma resposta em mente.
Querem que paguemos quinze mil libras por uma concessão sobre a qual se desconhece tudo? Parece-me um negócio para especuladores!
Então não quer?
O presidente executivo da Royal Dutch Shell abanou a cabeça com o seu vigor habitual.
Não, de modo nenhum! Uma coisa é comprarmos uma empresa em dificuldades financeiras para explorar uma concessão onde já se sabe que existe petróleo, sentenciou. Outra completamente diferente, é adquirir uma concessão às cegas. Isso é como jogar no casino. Não estou interessado.
De certeza?
O gesto de Hendrik van Tiggelen com a mão foi enfático e definitivo.
Absoluta.
A rapariga meneou as ancas com sensualidade, para a frente e para trás, primeiro devagar, depois mais e mais depressa, rodopiou ao ritmo frenético da música e, no momento em que as batidas ritmadas pela orquestra de Mabille & Chaudoir atingiam o seu auge, pegou nas largas saias escarlates e ergueu-as despudoradamente, exibindo as coxas nuas. Um bruaá descontrolado cresceu entre a assistência, com urros e assobios. A plateia estava ao rubro. A rapariga virou-se de costas, inclinou-se e voltou a alçar as saias, mostrando as nádegas antes de abandonar o palco em corrida sob uma chuva de palmas.
Merci, mesdames et messieurs!, gritou o mestre-de-cerimónias, um homem de fraque e cartola que saltou de imediato para o palco. Foi a encantadora mademoiselle Claire com o seu cancan especialmente dedicado aos nossos generosos clientes. Fez um gesto teatral com o braço.
E agora o Moulin Rouge tem o orgulho de apresentar as demoiselles da Taverna do Diabo!
Os cinquenta músicos da orquestra iniciaram mais um cancan e um grupo de dançarinas disfarçadas de diabinhas, com trajes vermelhos e longas caudas, invadiu o palco e começou a revolutear em sincronia, seguindo uma coreografia bem ensaiada.
Aquela!
O dedo de Kaloust indicou uma das dançarinas, uma ruiva de aspecto juvenil; não deveria ter mais de dezassete anos. Sentada ao lado do patrão, no camarote do Moulin Rouge mais próximo do palco, madame Duprés assentou os binóculos na rapariguinha para a qual o dedo convergia.
Qual? A segunda da última fila?
Sim, a ruiva de sardas.
A secretária social fixou o rosto da rapariga durante um minuto, para o memorizar bem, e quando se deu por satisfeita levantou-se do seu lugar, pegou no bouquet de flores e na caixinha onde estava embrulhado o anel de diamantes que adquirira essa manhã na loja da Cartier nos Champs-Élysées e lançou um derradeiro olhar para o patrão.
Vou tratar do assunto, prometeu. Tenho de estar no camarim quando este grupo sair do palco.
Se ela aceitar, não se esqueça de que a quero toda coquette, lembrou ele, sempre preocupado com os pormenores.
Vista-a com o que há de melhor na Callot Sceurs, ouviu?
O fundo de maneio cobrirá todas as despesas.
Fique descansado. Quando no próximo mês vier a Paris encontrará tudo a seu gosto.
Madame Duprés abandonou o camarote, deixando Kaloust sozinho. O arménio molhou os lábios de champagne e estudou a ruiva que saltitava pelo palco. Será que a rapariguinha ia aceitar a proposta? O facto de ser uma dançarina do Moulin Rouge mostrava sem dúvida que se tratava de moça desinibida, decerto aberta a novas experiências. Além disso, havia o anel de diamantes para a convencer, mais a promessa de uma generosa retribuição mensal, a oferta dos vestidos da melhor casa de moda da Europa, a Callot Soeurs, e o fausto da vida numa suíte de luxo do Ritz. Qual daquelas raparigas não daria um braço por uma oportunidade semelhante? E ele não lhes pedia nenhum braço, pois não?
Pedia-lhes o corpo todo.
As vozes dos ardinas que circulavam em Hyde Park atraíram a atenção de Kaloust. O arménio tinha saído de casa para o seu constitucional da manhã, como todos os dias àquela hora, mas ao passar pelos rapazes dos jornais não pôde deixar de se sentir chocado com as notícias que eles gritavam enquanto acenavam com os matutinos.
Massacres na Rússia!, gritou um deles. Muçulmanos chacinam cristãos! Leiam toda a história no The Times!
Olha o The Daily Telegraphl Os Tártaros destruíram Baku! Tudo no The Daily Telegraphl
Horrorizado com as notícias berradas pelos ardinas, Kaloust abeirou-se deles e entregou-lhes um punhado de moedas para lhes comprar os jornais. Absorto nas paragonas, apoiou-se na sua bengala de passeio e cambaleou em passos vacilantes para o banco público mais próximo, em pleno Hyde Park, onde se sentou a ler os títulos que lhe haviam chamado a atenção. As notícias eram devastadoras.
Decorriam greves e confrontos por toda a Rússia. Em boa verdade, nada disso era novidade. A situação, que vinha em escalada havia já alguns anos, ficara totalmente fora de controlo alguns meses antes, em Dezembro de 1904, quando uma greve e um massacre diante do Palácio de Inverno dos czares, em Sampetersburgo, desencadearam uma sucessão de protestos por todo o país. A revolta alastrou também pelo Cáucaso e provocou novas paralisações laborais nos campos petrolíferos de Baku. O que os jornais agora noticiavam, e era aí que estava a novidade, é que o governo russo, com medo dos grevistas de Baku, distribuíra armas pelos muçulmanos tártaros. O resultado fora catastrófico.
Os Tártaros viraram-se contra os Arménios e mataram milhares de pessoas.
Estúpido!, vociferou Kaloust enquanto lia estas notícias.
Este czar é um estúpido!
O The Daily Telegraph dizia que os campos petrolíferos de Baku haviam sido destruídos pelos Tártaros, embora não desse pormenores. Kaloust procurou sofregamente mais informação no The Times, mas este jornal era omisso quanto ao assunto. Para compensar, fornecia mais pormenores sobre as consequências da Guerra Russo-Japonesa, desencadeada no ano anterior pelo czar para tentar desviar as atenções e que se estava a transformar noutra catástrofe para Moscovo. Os Russos haviam perdido Port Arthur, viram a sua esquadra do Báltico ser arrasada em Tsushima e o exército sofrer oitenta mil baixas em Mukden. Dizia o The Times que a tripulação do couraçado Potemkin acabara de se revoltar, na sequência de outras revoltas navais em Sebastopol, Vladivostoque e Kronstadt, e que o caos no país era generalizado.
A Rússia está a saque, murmurou o arménio com um suspiro prolongado. É o fim!
Com súbita resolução, ergueu-se do banco público de Hyde Park e atravessou a rua em direcção a casa. Nesse dia não haveria constitucional para ninguém. Ao entrar no número 38 de Hyde Park Gardens deu com o seu médico à espera; lembrou-se então de que era o dia marcado para o check-up semanal.
Hoje não tenho tempo, doutor, disse com um toque de impaciência na voz. Não viu as notícias? Preciso de ir a correr para o escritório!
Ao vê-lo assim, o doutor Ajemian levantou o sobrolho, preocupado.
Que se passa?
Baku está a arder, não sabe?
O médico fez um gesto resignado.
Ah, sim. É horrível!, observou. O czar enlouqueceu!
Já viu que o homem entregou armas aos Tártaros?
Sem parar, Kaloust seguiu directamente para o quarto e fez sinal ao médico de que o acompanhasse.
Então não sei?, disse, começando já a despir o pullover.
Foram eles que arrasaram Baku.
Os pormenores nos jornais são horrorosos. Aquela história de os Tártaros incendiarem os campos petrolíferos e dispararem a sangue frio sobre os trabalhadores, isso ...
O dono da casa parou de repente e voltou-se para o médico, olhando-o como se o fulminasse.
O quê?, interrompeu-o. Onde está isso escrito?
O doutor Ajemian quase se encolheu perante a intensidade que Kaloust pôs na pergunta e no olhar.
Bem ... no The Observer. Não leu?
Não. O que diz o The Observer?
Parece que os Tártaros deitaram fogo aos poços e às torres de perfuração e desencadearam um verdadeiro inferno em toda a península. Depois cercaram tudo e abateram toda a gente que tentava fugir das chamas. Um telegrama citado pelo jornal escreve que Baku parece Pompeia a viver os seus últimos dias, com fogo, fumo, tiroteio, explosões e pessoas a gritarem por toda a parte. Dizem que o fumo negro é tão denso que tapou o Sol por completo e o dia se fez noite.
Kaloust ficou um longo momento plantado no corredor, tentando digerir toda a informação. Os poços estavam a arder? Que consequências teriam aquelas notícias na sua vida?
Zinovieff teria escapado? Haveria ainda petróleo para venda?
Meu Deus!
Voltou-se e dirigiu-se ao quarto, mais determinado do que nunca. Tirou a roupa que tinha vestida e meteu-se num fato de Saville Row. Sem querer saber de mais nada, saiu apressa damente de casa e o fiacre levou-o directamente a St Helen's Place, onde tinha o escritório. A situação parecia-lhe grave e precisava urgentemente de enviar um telegrama a Zinovieff a pedir informações.
Quando cruzou a porta e pousou os olhos em Robert Cook, porém, verificou que o seu jovem advogado inglês tinha já um envelope dos correios na mão. Ignorou o bom dia que o seu subordinado lhe dirigiu, até porque o dia estava na realidade a ser péssimo, e arrancou-lhe o envelope. Abriu-o num gesto sôfrego, rasgando as bordas com impaciência, consumido de angústia. Desdobrou a folha do telegrama e o texto, como constatou pela referência do posto emissor, havia de facto sido remetido de Baku.
POÇOS DESTRUÍDOS INSTALACOES ARRASADAS
ACABOU-SE PETROLEO STOP
TIVE DE FUGIR STOP
FECHE REPRESENTAÇÃO STOP ZINOVIEFF
Então, sir?, perguntou Cook. O que se passa?
Com um longo suspiro, Kaloust pousou o telegrama sobre a secretária e encarou o subordinado com um olhar esmagado de derrota e resignação.
Acabou o petróleo de Baku.
As quartas-feiras às cinco da tarde eram dia obrigatório de evento social no número 38 de Hyde Park Gardens. Desde criança que Nunuphar se habituara às grandes recepções, praticamente compulsivas na intensa vida social dos Berberian enquanto maiores banqueiros do Império Otomano. Agora que estava casada não fazia tenções de abandonar esses hábitos que considerava imprescindíveis para quem ambicionava continuar a ocupar um lugar preeminente na sociedade.
A senhora Sarkisian é de um gosto requintado, cumprimentou-a um dos convidados, Charles Rubenstein, de copo de licor na mão. As suas recepções são ainda mais notáveis do que as do senhor seu pai, que tive o grato privilégio de conhecer.
Oh, o senhor é muito amável, corou Nunuphar enquanto afagava o pékinois que carregava ao colo. Mas receio que estes singelos cocktails não estejam ainda ao nível dos da minha mãe! Dezenas de convidados fluíam pelo salão em conversas ligeiras, bebendo champagne e provando os acepipes, como os caracóis estufados com foie gras e os notáveis ortolans farcis à la Talleyrand. A grande aristocracia inglesa permanecia inacessível aos Sarkisian, mas a anfitriã enchia a casa de convidados da alta finança, sobretudo banqueiros judeus como Rubenstein e outros, todos eles amigos íntimos do rei Eduardo VII, mais alguns artistas e diplomatas, além, claro, dos comparsas do marido no negócio do petróleo, como Philip Blake ou Hendrik van Tiggelen, que nesta ocasião se encontrava de passagem por Londres.
O dono da casa, como de resto era seu hábito, aparecera tarde. Kaloust tivera nessa manhã conhecimento prévio da lista de convidados, mas fizera questão de só comparecer quando a recepção já ia a meio; considerava ser essa a forma mais eficiente de proceder.
Senhor embaixador, como está?, disse o arménio ao entrar no salão, cumprimentando um diplomata francês. Depois voltou-se para a direita e apertou a mão a um homem com um laço, o curador da National Gallery. Oh, caro Sir Kenneth! Por aqui? Quando me leva a ver mais alguns quadros? As suas explicações sobre arte são apaixonantes! Quando ouviu a resposta já estava de olho na rapariga bonita que se encontrava rodeada de admiradores. Ellaline! Que surpresa!
Ah, adorei vê-la no West End naquele seu musical. .. como se chamava? The Beauty of Bath, não é verdade?. Estava magnífica, minha cara! Magnífica! Mas o que mais gostei foi de ver o seu nome escrito em letras gigantes no cartaz do Hicks Theatre: Ellaline Terriss. Ah, que classe! Não se podia dizer que Kaloust estivesse no seu meio. Embora se esforçasse por se mostrar sociável, as recepções contrariavam a sua natureza misantrópica e deixavam-no esgotado. Mas o que poderia fazer? As quartas-feiras em sua casa constituíam grandes oportunidades para trabalhar contactos influentes, coisa que, sobretudo desde o encerramento da parceria com Zinovieff, se tornou muito importante. O fim de grande parte dos produtores independentes de Baku, que Kaloust representava na Europa, constituiu um golpe para os proventos do arménio. Mas foi apenas um golpe, não o coup de grâce. Na verdade, o petróleo russo estava já a tornar-se residual no mercado mundial, devido aos elevados preços provocados pelas ineficiências crónicas na exploração e pelas novas tarifas impostas pelo czar para o transporte do produto, e havia algum tempo que o arménio explorava outras soluções.
Até que enfim o vejo, old boy!, exclamou uma voz em inglês muito afectado. I daresay, o anfitrião é a figura mais fugidia desta recepção! Que irónico!
Não era difícil perceber quem o interpelara.
Philip!, exclamou ao voltar-se para o homem que se lhe dirigira. Então? A divertir-se?
Philip Blake arqueou as sobrancelhas loiras.
Ando a trabalhar para si, you devilish beast!, exclamou.
What ho, Sarkisian! Estive há pouco a conversar com o embaixador romeno e, I say, soube umas coisinhas que lhe poderão interessar. Fez-lhe um sinal com o indicador. Ora venha daí!
O inglês, que se havia desvinculado dos Rothschild para retomar a carreira política, tornara-se recentemente membro do Parlamento. Como sempre, todavia, precisava de manter intactas as suas fontes de financiamento, e as comissões em negócios que sugeria a Kaloust eram uma delas. Daí que, quando nessa ocasião arrastou o anfitrião para junto do ministro plenipotenciário da Roménia, mais não estivesse a fazer do que a abrir uma nova oportunidade de negócio para si e para o seu protegido arménio.
Têm-me falado muito do senhor, disse o embaixador romeno quando o deputado inglês o apresentou a Kaloust.
Tanto que até pedi aqui ao nosso amigo comum, o senhor Philip Blake, que me arranjasse um convite para esta recepção.
A sério?, interessou-se o dono da casa, pressentindo novidades. Então o que se passa?
O embaixador soltou uma gargalhada ruidosa.
Passa-se petróleo!, exclamou com jovialidade. Não estaria interessado nos nossos campos da Valáquia?
Estar, estou. Mas ouvi dizer que os Rothschild é que tinham esse monopólio ...
Tinham, disse-o bem! Tinham! Mas, hélas!, os monopólios não são saudáveis e o meu governo quer abrir a Valáquia a outros grupos. Andamos a pensar em constituir uma nova empresa para explorar o nosso petróleo. Vamos chamar-lhe Astra-Romana. O problema é que nos falta o capital e o Know-how. Apontou para o seu interlocutor. É aí que o senhor entra. Se quiser, claro. Inclinou-se para ele. Está interessado?
Quase automaticamente, o olhar de Kaloust desviou-se do diplomata e varreu o salão até se imobilizar na figura de Hendrik van Tiggelen, que conversava animadamente junto ao corredor com um chefe de gabinete do Foreign Office.
Dou-lhe a resposta ainda esta semana, disse, despedindo-se do embaixador com um aperto de mão. Foi um prazer.
O arménio cortou caminho por entre os convidados, distribuindo cumprimentos e cortesias, um sorriso aqui e uma palavra acolá, por vezes vendo-se até forçado a deter-se para uma pequena conversa. O espaço entre os dois lados do salão não era tão grande como isso, mas naquelas ocasiões tornava-se imenso. Até que, por fim, e depois de tropeçar em sucessivos minidiálogos, lá logrou chegar junto do presidente executivo da Royal Dutch Shell e arrancá-lo ao diálogo que mantinha havia longos minutos com um monótono burocrata de Whitehall.
Nunca vi recepções em que o anfitrião é o último a chegar, gracejou Hendrik. Como vai a vida depois de Zinovieff?
Menos mal, retorquiu Kaloust. O problema não é Zinovieff, é a Rússia. Não se esqueça de que também os Rothschild e os Nobel estão a ter dificuldades em Baku.
Sabe o que lhe digo? É melhor deixarmos de contar com o petróleo do Cáucaso.
O holandês fez um esgar contrariado.
Se perdemos os Russos, meu caro, precisamos de algo que os substitua. Não nos aguentamos apenas com os poços de Samatra e do Bornéu. Tem alguma coisa em vista?
O arménio fez que sim com a cabeça.
A Roménia.
Hendrik esboçou uma careta incrédula.
Está a gozar comigo? Riu-se. Desde os tempos do Drácula que a única coisa que os Romenos sabem extrair é sangue!
Kaloust manteve o semblante fechado, mostrando que não estava a brincar.
A Roménia, Hendrik, é uma fonte a não desprezar, sublinhou. Existe muito petróleo nas planícies da Valáquia e o que proponho é que lhe ferremos o dente. Se perdemos o Cáucaso, temos de nos voltar para os Cárpatos. Não há alternativa.
Mas a Roménia, tanto quanto sei, é uma quinta dos Rothschild, observou o holandês. Como planeia entrar lá?
O anfitrião baixou a voz.
A minha sugestão é que nos envolvamos na criação de uma empresa romena, disse. Tenho conhecimento de planos nesse sentido. Mas a operação de extracção de petróleo é muito cara e os Romenos não dispõem de dinheiro suficiente. É aqui que nós podemos entrar. Se a Royal Dutch Shell estiver disposta a meter-se no negócio, eu obterei os financiamentos necessários, fique descansado.
Onde?
O anfitrião indicou a figura de Charles Rubenstein, que conversava ainda com Nunuphar a meio do salão.
Não se esqueça que disponho de muitos contactos com a banca, lembrou. Fez uma pausa para estudar o rosto do seu interlocutor. O que acha? Avançamos?
Hendrik cruzou os braços.
Cárpatos, hem? Acha mesmo que há lugar para nós?
Os meus contactos dizem que sim.
Após um Instante de reflexão, o homem forte da Royal Dutch Shell exibiu o seu sorriso cativante e fez que sim com um aceno de cabeça.
Está bem, vamos a isso!
A viagem de rotina a Paris ameaçava tornar-se uma aventura sempre que Nunuphar o queria acompanhar. E nos últimos tempos a mulher insistia em ir com ele nas visitas mensais a França. Kaloust deslocava-se a Paris alegadamente para tratar dos negócios, mas na verdade também com o intuito de partilhar a cama e outras delícias terapêuticas com a belle que ocupava a sua suíte no Ritz. Já Nunuphar queria fazer compras, ir ao teatro e passear pelo bois de Boulogne. Londres poderia ser imperial, mas parecia-lhes demasiado rústica e simplória, distante da sofisticada e artística Paris.
Sempre que a mulher e o filho o seguiam naquelas viagens, formava-se em Hyde Park Gardens um verdadeiro séquito de criados, carregadores para as várias malas, dois cozinheiros e um valet de chambre; parecia que estavam de partida para um safari. O grupo enchia três compartimentos nos comboios e garantia um espectáculo de gritaria e nervosismo nas gares e nos portos onde sucessivamente embarcava e desembarcava.
Ai, preciso dos sais!, protestava Nunuphar enquanto agitava freneticamente o leque. Estas viagens dão cabo de mim! Puf, que horror! É uma canseira ...
Uma vez em Paris, madame Duprés ia acolhê-los à gare, disponibilizando-lhes dois vastos coches para os conduzir ao simpático apartamento que o patrão havia recentemente adquirido no quarto andar do número 27 do Quai d'Orsay.
Nunuphar, Krikor e o séquito acomodavam-se nesse apartamento espaçoso, enquanto Kaloust se encaminhava de seguida para os seus aposentos sumptuosos no Ritz.
Não penses que sou parva, disse-lhe certa vez a mulher numa voz glacial. Sei muito bem o que se passa nesse hotel!
O marido corou de embaraço.
Asseguro-te que ... que ... enfim, são recomendações do médico, disse com súbita ênfase, vencendo com dificuldade a relutância em discutir com a mulher um assunto tão melindroso. Que eu saiba não te falta nada, pois não?
Ela lançou-lhe um olhar furioso.
Só quero que saibas que não sou parva.
Nunuphar passava grande parte do tempo em Paris às compras na Callot Soeurs, a grande loja da moda onde se concentra a os melhores costureiros de França e Kaloust começou a suspeitar que fora ali que havia sido informada da existência das meninas alojadas no Ritz. Não era na loja da rue Taitbout que madame Duprés as vestia com tanto requinte? E não era o estabelecimento, apesar do seu refinado bom-gosto, um antro de maledicência?
Tinham acabado de entrar na Galerie d' Apollon, em pleno Louvre, quando Kaloust se deteve subitamente ao lado de uma escultura grega e se voltou para a sua secretária social.
A menina que actualmente ocupa a minha suíte já completou os dezoito anos, observou ele como se o assunto tivesse acabado de lhe ocorrer. O seu prazo de validade está esgotado. Quando eu regressar a Londres, faça o favor de a dispensar.
Madame Duprés revirou os olhos com desânimo.
Oh, não!, exclamou, exalando um suspiro. Elas fazem uma cena impossível sempre que lhes digo que saiam. Da última vez tive de chamar os empregados para a porem na rua. Foi muito desagradável, nem imagina! Sabe o que é? As meninas habituam-se a esta vida de luxo e acham que é um direito adquirido! Oh, uma maçada!
Mas ... , admirou-se Kaloust, e a retribuição que lhes concedo de despedida?
Isso ameniza as coisas, não digo que não. Quando se vêem com o dinheiro na mão, algumas aceitam a decisão com graciosidade. Suspirou. Mas a última ... ufa, foi um castigo! Espero que esta seja melhor ...
Se se recusar, diga-lhe que não lhe dará a retribuição. Isso põe-na logo em sentido.
A secretária social assentiu.
Tem razão, disse ela. E quanto lhe ofereço? O costume?
Sim, dez mil francos. É uma bela maquia, não acha?
Madame Duprés esboçou um sorriso.
Então não é? Com esse dinheiro a moça ainda leva uma rica vida! Mordeu o lábio inferior. E para a substituir? Já tem alguém em vista?
Recomeçando a andar, os olhos a passearem pelo detalhe das pinturas que decoravam o tecto curvo da Galerie d'Apollon, o patrão deitou a mão ao bolso interior do casaco e extraiu um papelinho azul, daqueles que trazia constantemente para tomar nota de ideias que lhe ocorriam, e entregou-o à sua secretária.
Esta manhã fui tomar o pequeno-almoço ao Procope e reparei numa empregada novinha que eles agora lá têm, disse, voltando a atenção para a secretária. Pedi ao gerente o contacto. É uma moça da Normandia com uma pele cor de leite que só visto! Fale com ela e prepare-a como de costume ... flores, jóias da Cartier e tudo o resto. Fez um gesto brusco. Mas não a leve à Callot Soeurs, ouviu? A minha mulher frequenta a loja e acho que alguém lá de dentro já deu com a língua nos dentes e lhe falou sobre a minha ...
uh ... terapia. Não convinha que Nunuphar se cruzasse por ali com a menina. Não quero cá escândalos!
A sua interlocutora leu a morada rabisca da no papelinho azul mas teve dificuldade em entender as primeiras palavras.
O que é isto?
Kaloust espreitou e sorriu, embevecido.
É o nome da menina, disse com um brilho nos olhos.
Chama -se Eugénie.
O coche cruzou o portão de Orley Farm e Krikor espreitou pela janela para o edifício cor de tijolo que dominava a propriedade, em estilo Tudor e de aspecto imponente. Havia algo de intimidante naquela fachada majestosa e circunspecta. Um grande lawn verde rodeava o edifício e nele viam-se jovens impecavelmente vestidos de branco a treinar batidas de cricket sobre a relva húmida.
Gostas da tua nova escola?, perguntou-lhe a mãe quando se apearam e contemplaram o edifício e o espaço em redor. É bonita, não é? Foi aqui que decorreu a acção daquele romance do senhor Trollope ...
Krikor não descolou os olhos assustados da fachada frontal de Orley Farm.
Sim, mãe.
A resposta breve ocultava o turbilhão de emoções que lhe revoluteava no coração. Ao prepará-lo para o acesso ao ensino secundário, Miss Brockway tinha sido muito insistente na ideia de que aquele passo era incrivelmente importante na sua vida. Só entra no secundário quem já é um homenzinho, dissera-lhe a tutora, recomendando-lhe repetidas vezes que daí em diante mantivesse um teimoso stiff upper lip perante as dificuldades, por maiores que elas fossem. Ou seja, acabaram-se as choradeiras de bebezinho. Como homem, agora que completara dez anos e ia frequentar o ensino secundário, cabia-lhe o dever de enfrentar os contratempos sem vacilações nem pieguices. Não que Krikor se sentisse verdadeiramente um homem, até porque não notava a menor diferença em relação à criança que fora ainda na véspera. Tratava-se antes de dissimular a aflição que sentia por, e pela primeira vez, ir viver fora de casa, em regime de internato num lugar onde nunca estivera. Depois de uma curta espera no corredor foram atendidos pela matrona da escola, uma quarentona magra e nervosa, com o cabelo já grisalho puxado para trás e preso por um carrapito. A matrona acolheu-os com umas palavras de circunstância e depressa deu sinais de que tinha outras preocupações, pelo que era melhor os dois despacharem-se com as despedidas.
Vamos lá, diga adeus à sua mãe, incitou-o com um gesto impaciente. Não temos todo o tempo do mundo. Há muito que fazer e pouco tempo para isso.
Quase empurrado, Krikor voltou-se para a mãe e, lembrando-se dos ensinamentos de Miss Brockway, esboçou um sorriso ligeiro, indiferente quase, e estendeu-lhe a mão. Nunuphar ficou algo surpreendida por ver o filho despedir-se dessa maneira, sem um beijo nem um abraço, apenas a mão estendida como o gesto formal de um estranho, mas aceitou a situação e apertou-lha antes de fazer meia volta e abandonar o edifício.
Ah, que másculo Krikor fora! Despedira-se da mãe com um aperto de mão? Valente! Que mais provas poderia haver de que já era um adulto? Se o tivesse visto, Miss Brockway ficaria decerto orgulhosa! Sentindo-se já um homem feito, o novo aluno de Orley Farm assumiu uma pose muito hirta e acompanhou a matrona até ao primeiro andar, sendo encaminhado para o quarto onde daí em diante iria dormir.
Tratava-se de um cubículo minúsculo, com uma cama, uma escrivaninha, um lavatório e um armário, espaço bem mais exíguo do que aquele a que estava habituado em Hyde Park Gardens. Mas que importava isso se ele já era um homenzinho?
Pousou a mala sobre a cama e, sempre de rosto trancado no stiff upper lip recomendado por Miss Brockway, aproximou-se da janela e espreitou para fora com uma expressão sobranceira. Ah, que viril era! Vislumbrou a mãe a entrar lá em baixo no coche e o veículo a arrancar até desaparecer para além do portão. Foi nesse instante que caiu na realidade. O que se estava a passar, tomou então consciência, não era uma fantasia de adolescente, mas a realidade pura e dura. A mãe partira e deixara-o para trás. Um sentimento de profunda solidão abateu-se de repente sobre ele e quando se voltou a matrona apercebe que as lágrimas lhe escorriam pela face.
Os primeiros tempos em Orley Farm revelaram-se difíceis, sobretudo porque não estava habituado a viver longe do espaço familiar. Não houve stiff upper lip que lhe valesse nesse período. Os pais vinham visitá-lo ao fim-de-semana, o que no início constituía o ponto alto da sua existência, mas gradualmente foi-se adaptando ao novo ambiente e integrou-se na vida de aluno interno.
Fazer amigos não se revelou fácil. Com uma fisionomia arménia que o distinguia dos demais estudantes, aloirados, Krikor parecia estranho aos seus colegas. Além disso tinha um nome bizarro e não participava nos jogos da escola, uma interdição imposta pelo pai e que abrangia o cricket, o que lhe dificultava a aproximação aos outros. Mas até isso acabou por superar. Ao fim de algum tempo foi enfim aceite como uma excentricidade benigna e chegou mesmo a fazer amizade com Roger, um rapaz irlandês com a face coberta de sardas e tão ruivo que o cabelo revolto adquiria tonalidades laranja. Tornaram-se inseparáveis no interior da escola. Roger ajudava-o no Latim, o seu ponto fraco, e ele retribuía com os seus conhecimentos de Francês, matéria em que se revelara o aluno mais forte de toda a instituição, cortesia dos tempos em que fora educado por mademoiselle Clémence, a sua nounou de infância.
A sociedade entre os dois amigos, todavia, nem sempre correu bem. Certa manhã, Roger pediu ajuda para pôr em francês uma redacção intitulada «Promenade sur les ChampsÉlysées», O texto original do colega irlandês estava de tal modo contaminado por erros de gramática e de ortografia que Krikor decidiu que a redacção não tinha salvação possível e viu-se forçado a escrevê-la de raiz. O exercício foi entregue e tudo parecia bem encaminhado.
Acontece que na segunda-feira seguinte, e logo no início da aula, o professor Brown chamou Roger ao quadro e, diante de todos os alunos, pôs-se a questioná-lo sobre aspectos da redacção que havia apresentado.
Comecei por achar interessante logo a segunda frase da sua perfeita composição, observou o docente num tom sibilino. Baixou os olhos para a folha que o aluno lhe entregara e ajeitou os óculos sobre o nariz. Ora veja esta pérola que o senhor burilou. Afinou a voz e assumiu o seu melhor sotaque francês. Le tout dans un écrin d' écorce de pin recouvrant les pavés de la plus belle avenue du monde. Encarou o aluno. Belíssimo, não é?
Roger forçou um sorriso.
Uh ... obrigado.
O professor Brown fez um trejeito com os lábios enquanto relia em silêncio a frase que acabara de ler em voz alta, como se matutasse no assunto. Depois ergueu-se da cadeira e entregou a folha ao rapaz.
Ora explique lá o que quer isto dizer.
O pedido deixou Roger estarrecido. Ainda lançou um olhar fugidio para trás, como se pedisse socorro, mas percebeu que naquelas circunstâncias estava entregue a si próprio. Engoliu em seco e estudou a frase garatujada na folha.
Quer dizer. .. quer dizer que ... enfim, os Champs Elysées são a mais bela avenida do mundo.
Muito bem, muito bem, concedeu o docente num registo traiçoeiramente aprovador. E o início? Já viu esta expressão? 'Le tout dans un écrin d'écorce de pin.' O que quer isso dizer exactamente?
Das têmporas do aluno brotaram gotas de suor que desceram em ziguezague pelo rosto como se tentassem fintar as sardas.
Depois de as limpar com as costas da mão, Roger passou os dedos pelo cabelo e fitou fixamente a linha em questão, como se a intensidade do olhar fosse, por si só, capaz de arrancar o significado encerrado naquela frase indecifrável.
É ... é sobre tudo o que existe numa... num pinheiro escocês.
Calou-se e mirou o professor a medo, esperando ardentemente ter dado uma resposta aceitável e ansiando por regressar ao seu lugar. O docente, porém, não parecia convencido.
Matraqueou com a ponta dos dedos na madeira da mesa, como se considerasse o passo seguinte, de olhos cravados no aluno. Um silêncio pesado enchia a sala de aula e apenas se escutava aquele trautear tenso das unhas a baquetearem a madeira. Depois do que pareceu uma eternidade, o professor respirou fundo e passeou os olhos pela sala até se deter em Krikor.
Sarkisian?
O coração do jovem arménio deu um salto quando o nome foi pronunciado e o rapaz constatou com horror que o olhar do professor havia pousado nele.
Sim, senhor?
O senhor Sarkisian é amigo aqui do senhor Roger Dimbleby, correcto?
Sim, senhor.
E por acaso é também o melhor aluno de Francês que frequenta esta escola. Fez um gesto a indicar a folha que se encontrava nas mãos do colega. Imagino que saiba o que significa aquela frase.
Sim, senhor.
O professor Brown voltou a erguer-se do seu lugar e caminhou despreocupadamente até junto do arménio. Estacou diante dele e inclinou-se para a frente, de modo a ficar com os olhos azuis a a penas um palmo dos castanhos de Krikor.
Foi o senhor que escreveu aquele pedaço de prosa, não foi caro Sarkisian?
Sentindo os olhos implacáveis a despirem-no e a perscrutarem a culpa que lhe manchava a alma, Krikor baixou a cabeça e sentiu as pálpebras humedecerem de comoção.
Fui.
Falou numa voz sumida, quase inaudível, mas suficientemente clara para constituir uma admissão do que sucedera.
O professor Brown mandou Roger sentar-se e a aula foi retomada, mas no final o docente pegou nos dois alunos e levou-os ao reitor, o muito reverendo Carr, a quem explicou o sucedido. Devidamente inteirado do assunto, o reitor segredou instruções ao professor, que saiu de imediato. A seguir mandou Krikor aguardar fora do gabinete e ficou a sós com Roger. Acomodando-se numa cadeira à porta do gabinete, e enquanto esfregava obsessivamente as mãos num gesto nervoso, o jovem arménio esperou por instruções. Instantes mais tarde viu o professor Brown regressar ao gabinete do reitor com uma enorme vara na mão e percebeu que o amigo ia passar um mau bocado. O docente saiu logo a seguir do gabinete e Krikor reparou que já não levava a vara com ele.
De repente, rompendo o silêncio tenso, ouviu-se vindo do gabinete fechado o som cortante de uma chibatada e um gemido abafado; era Roger que começara a ser punido. Sucedeu-se mais uma vergastada e outra e outra ainda. No total foram seis chibatadas, a que se seguiram gemidos cada vez mais altos, tão fortes que os últimos dois eram já gritos. Dois minutos depois a porta abriu-se e viu Roger sair a coxear, a face vermelha e os olhos congestionados pelas lágrimas que não conseguira deter, a mão a esfregar o traseiro dorido.
O reitor, assomou à porta.
Agora o senhor, Sarkisian.
Foi com o coração apertado e um nó no estômago que Krikor obedeceu à ordem do responsável da escola e voltou a entrar no gabinete de cabeça baixa. Sabia que o esperava dose igual à do amigo e a visão da vara pousada sobre a secretária provocou-lhe um arrepio que lhe percorreu o corpo inteiro. Tinha o destino traçado. Lembrou-se do esgar de dor e de como Roger coxeava quando o viu sair dali e desejou que com ele tudo passasse depressa. Seria capaz de manter o famoso stiff upper lip? Suspeitava que Miss Brockway ficaria decepcionada se ali estivesse e observasse a sua reacção ao castigo que se avizinhava.
O reitor pegou na vara e o aluno deitou a mão ao cinto, começando a desapertá-lo para baixar as calças e expor o rabo nu à punição. Mas o responsável pela escola, embora sempre de expressão carrancuda, surpreendeu-o ao sentar-se no lugar por detrás da secretária.
O crime que vocês cometeram, caro Sarkisian, é intelectualmente hediondo, começou o reitor por dizer. Copiar é fazer batota. Pior do que isso, é desonestidade completa. Trata-se de um comportamento corrupto, inadmissível e indigno de um gentleman. Não temos lugar para coisas deste nível nesta instituição. Um gentleman tem de se conduzir sempre de forma recta, respeitando o fair-play e mantendo a honestidade em todas as circunstâncias. Afinou a voz. Claro que o comportamento do senhor Dimbleby foi o mais grave. No fim de contas, acabou por ser ele o beneficiário desta fraude. Por isso foi punido na medida mais justa e severa. Quanto a si, caro Sarkisian, espero que todo este episódio lhe tenha servido de lição. Uma lição sobre como comportar-se nesta escola, mas, I daresay, também como comportar-se ao longo da vida. Afaste-se do caminho da batota e da desonestidade. Assuma-se como um gentleman digno desta grande instituição. Apontou para a porta do gabinete. Desta feita vou deixar passar, na expectativa de que terá aprendido alguma coisa com o que sucedeu. Da próxima vez, porém, não será daquela porta que sairá. Será da porta da escola.
Espantado e aliviado, Krikor apresentou as suas desculpas, prometeu nunca mais se comportar daquela maneira e, não havendo mais nada a dizer, levantou-se para sair. Quando chegou à porta, todavia, o reitor voltou a chamá-lo.
Não pense que escapa assim tão facilmente, Sarkisian, disse o velho inglês. Espero encontrar amanhã de manhã sobre a minha secretária umas folhas em que o senhor tenha escrito umas quantas vezes a estrofe de abertura da Eneida.
Perdão, senhor?
O muito reverendo Carr pigarreou e começou a recitar de cor.
Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris
ltaliam, fato profugus, Laviniaque venit
litora, multum ille et terris iactatus et alto
vi superum saevae memorem Iunonis ob iram;
multa quoque et bello passus, dum conderet urbem,
inferretque deos Latio, genus unde Latinum,
Albanique patres, atque altae moenia Romae.
Quer que escreva essa estrofe numa folha, senhor?
O reitor baixou os olhos, pegou numa caneta e começou a rabiscar documentos, abstraindo-se nos seus afazeres.
A mente do responsável da escola parecia ter-se ausentado para um horizonte longínquo, mas era apenas uma ilusão porque, ao fim de alguns segundos, acabou por quebrar o súbito mutismo em que havia mergulhado.
Escreva-a mil vezes, ordenou sem levantar a cabeça.
Tenha um bom dia, Sarkisian.
Uma banda de cordas tocava na esquina do salão, envolvendo o restaurante numa atmosfera de grande requinte e bom gosto. Uma sofisticação tranquila pairava no ar, com o espaço enquadrado pelas colunas e pelo chão de mármore, pelos longos tapetes, pelas estátuas e espelhos que enfeitavam as paredes e as esquinas, pelas passagens em arco decoradas com cortinados, pelos candelabros de cristal e pela exuberante clarabóia Art nouveau sobre o plateau do restaurante.
Ah, que chie ...
Sentado à mesa, Kaloust saboreou com deleite o instante doce e encantador. O Ritz abrira as portas dois anos antes ali em Piccadilly e o arménio não podia deixar de sentir que o hotel era um pouco seu. Pois se fora o seu dinheiro que viabilizara o empreendimento, não poderia reivindicar parte da paternidade? O Ritz de Londres constituía uma criação tão sua que, a exemplo do que se passava em Paris, as melhores acomodações do hotel, a suíte 420, lhe estavam permanentemente reservadas no quarto andar, sendo já aí que passava muitas noites.
A visão de Hendrik van Tiggelen a entrar no restaurante do Ritz com o vigor de um touro em plena carga desfez a harmonia do momento. O holandês era o inverso do arménio. Um exuberante, o outro discreto; o primeiro sorridente, o segundo sisudo. Mas o contraste funcionava na perfeição. Hendrik exibia-se, Kaloust ocultava-se, um era o corpo perceptível e o outro a alma invisível. Porém, a expressão carregada do presidente da Royal Dutch Shell nesse dia quando se aproximava da mesa pareceu a Kaloust perfeitamente dispensável. Para quê arruinar um ambiente refinado com tal semblante de mau humor?
Diga-me, já leu a Bíblia?
A pergunta, lançada de chofre por Hendrik no momento em que se sentou, surpreendeu o arménio.
A Bíblia? A que propósito vem o senhor agora falar-me na Bíblia?, quis saber, um tudo-nada agastado. O que temos de falar é dos investimentos nos Estados Unidos! A empresa, meu caro, não se aguenta apenas com o petróleo de Samatra e do Bornéu. Em breve teremos a Roménia, mas isso não chega. Precisamos de entrar em força no mercado americano. Para isso já estabeleci uns contactos que ...
Nunca leu os Salmos?, interrompeu-o o recém-chegado, falando como se não tivesse escutado uma única palavra nem nada mais tivesse importância. Nunca se interessou por isso?
Kaloust esboçou uma careta de estupefacção.
Salmos? Mas que conversa é essa? Fitou o rosto consternado do holandês e percebeu que havia algo de anormal.
Está a sentir-se bem? Passa-se alguma coisa?
Com um gesto maquinal, o presidente da Royal Dutch Shell pousou um livro grosso sobre a mesa com uma cruz na capa. A Bíblia.
Ora leia aí o salmo 104, versículo 15, segunda linha.
Percebendo que Hendrik queria demonstrar alguma coisa, o arménio pegou no volume e folheou-o até encontrar a passagem referida no Velho Testamento.
O azeite que lhe faz brilhar o rosto, leu em voz alta.
Levantou a cabeça. O que é isto?
O holandês manteve os grandes olhos azuis cravados nele.
O que é o azeite?
Bem ... é o óleo da azeitona. Porquê?
Hendrik pousou o dedo no versículo que mencionara.
Esta foi a mensagem que um tipo chamado D' Arcy recebeu há umas semanas dos seus homens na Pérsia, revelou.
Lembra-se de há uns anos você me ter falado em Paris de um general qualquer que lhe ofereceu a concessão persa por quinze mil libras?
Muito bem!, retorquiu Kaloust. O senhor achou que era uma aposta de alto risco e disse que não estava interessado.
Franziu o sobrolho. Porquê? Aconteceu alguma coisa?
Depois de falar consigo, o general pelos vistos foi ter com esse tal D' Arcy e vendeu-lhe a concessão. O D' Arcy fundou uma pequena companhia petrolífera chamada AngloPersian e passou estes anos todos a tentar encontrar petróleo na Pérsia, à custa de uns financiadores escoceses.
A coisa estava pelos vistos a correr mal, até que, de repente, o D' Arcy recebeu uma mensagem do seu homem no terreno a dizer-lhe que lesse o versículo dos Salmos que menciona o óleo da azeitona.
O seu interlocutor alçou as sobrancelhas, de repente alarmado.
Não me diga que ... que eles encontraram petróleo!?
O holandês respirou fundo e assentiu.
Um mar de petróleo, confirmou com uma fisionomia de desânimo. Num sítio perdido no meio de nada chamado Masjid-i-Suleiman. Respirou fundo, com desalento. Essa Anglo-Persian vai dar-nos muito trabalho ...
Ao ouvir isto, Kaloust ficou muito hirto e estremeceu ligeiramente, como se a pressão lhe crescesse no corpo.
A culpa é sua!, exclamou de repente em fúria, rubro e apontando o dedo ao seu interlocutor. Nós tivemos essa concessão na mão! O general não-sei-quê veio ter comigo para ma dar por uma ninharia! Eu fui ter consigo para avançarmos com o negócio! E o que fez você? Recusou-a! Esboçou um gesto de frustração e fúria. Não sei o que me impede de ... de ... Ficou sem palavras para expressar a imensa irritação que de repente lhe devorava as entranhas.
A culpa é toda sua! Toda sua! Ouviu?
O presidente da Royal Dutch Shell baixou os olhos, vergado pela responsabilidade.
Achei que era uma aposta muito arriscada, Sarkisian, justificou-se. A prospecção custa uma fortuna, como sabe.
E não tínhamos a menor indicação de que houvesse petróleo na Pérsia. Como podíamos ter investido? A decisão foi tomada com base no que sabíamos na altura, não no que sabemos agora. E o que sabíamos era ... nada. Comprar essa concessão era como jogar na roleta.
O arménio sentia-se irritado e decepcionado e teve vontade de continuar a gritar com Hendrik, mas conteve-se. Nada do que dissesse ou fizesse poderia inverter a situação. O dano estava feito e teriam de viver com isso. Ele próprio tinha responsabilidades. Se a Royal Dutch Shell não estava interessada, poderia ter comprado a concessão com dinheiro do seu próprio bolso. Se não o fez foi porque não quis. Além do mais, aquela área do globo era da sua responsabilidade.
Bem ... já não se pode fazer nada, resignou-se. Vamos então concentrar-nos no que está ao nosso alcance. Bufou, como se assim conseguisse libertar todo o enervamento que se lhe concentrara no peito. Ora bem, precisamos de arranjar mais fontes de abastecimento, não é verdade? Sugiro os Estados Unidos. Não só a América está cheia de petróleo como me parece de importância estratégica penetrar no território da Standard Oil. À custa das suas receitas quase monopolistas nos Estados Unidos, a Standard Oil arranja dinheiro para provocar baixas de preços nos nossos mercados, criando-nos enormes dificuldades.
Acha que entrar na América é a solução?
Sem dúvida. Se estivermos lá, ficamos em igualdade de circunstâncias com a Standard Oil. Os tipos vão ficar danados! O Rockefeller nem conseguirá dormir!
Isso dito assim é muito bonito, observou o holandês.
Mas como planeia fazer as coisas?
Já tenho tudo estudado, indicou Kaloust. Começamos pela Califórnia e depois vamos para o Oklahoma. Sei que há uma série de pequenas companhias petrolíferas em Tulsa que estão a enfrentar graves dificuldades de financiamento.
A minha ideia é simples. Chegamos lá, compramo-las a todas e juntamo-las numa única empresa. Abriu as mãos. Voilà! Chegámos à América!
Depois de reflectir um instante, o presidente da Royal Dutch Shell balançou afirmativamente a cabeça.
Essa ideia é tão simples que é capaz de funcionar, concluiu.
O arménio extraiu da sua pasta uma resma de folhas; eram os extractos de contas de diversas companhias petrolíferas de Tulsa.
A maior parte estava no vermelho, mas todas tinham a vantagem de se encontrar na posse de concessões legítimas onde comprovadamente havia petróleo. Depois de as analisar uma a uma, os dois homens avaliaram um preço razoável a pagar por cada uma delas e Kaloust apresentou uma minuta de contrato que os seus advogados haviam preparado para apresentar as empresas naquelas condições.
Enquanto Hendrik estudava atentamente a minuta, a mente do seu interlocutor regressou quase instantaneamente à Pérsia e às notícias da grande descoberta em Masjid-i-Suleiman. Era impossível não se sentir irritado quando pensava na grande oportunidade que ambos haviam perdido de forma tão estúpida.
Sabe o que lhe digo?, perguntou pensativamente.
Aprendi uma lição com este grande erro que cometemos na Pérsia.
Hmm?
Num novo acesso de irritação repentina, Kaloust desferiu um murro intempestivo na mesa com tanta força que sobressaltou o seu interlocutor.
Nunca se deve desistir de uma concessão de petróleo!
A impaciência de Kaloust com os vinte minutos de atraso do médico não tinha limites. Havia já algum tempo que decidira sair de casa e ficar a viver no Ritz. Nunuphar não gostou, mas resignou-se; as mulheres arménias sabiam que deviam obediência aos maridos e ela não era excepção. Por vezes, porém, o dono da casa voltava à mansão de Hyde Park Gardens para pernoitar, coisa que acontecia sempre que tinha uma consulta marcada com o doutor Ajemian.
Era o caso dessa manhã. O médico, no entanto, não chegou a horas e isso deixou-o agastado. Não sabia o doutor Ajemian que as horas tinham sido inventadas justamente para ser respeitadas? Como se atrevia ele a deixá-lo à espera? Quem pensava o médico que era? A fúria do anfitrião pelo atraso para a consulta de rotina foi mitigada pela surpresa com a expressão excitada do clínico quando lhe apareceu finalmente na mansão.
É uma revolução!, quase gritou o recém-chegado, ufano, os olhos arregalados de alegria louca. Uma verdadeira revolução! Virou as mãos para cima, como se agradecesse aos céus. Finalmente estamos livres! Livres! Ah, Deus é grande!
O anfitrião estacou a três passos do doutor Ajemian, admirado por vê-lo naqueles propósitos e sem nada entender.
Que se passa, doutor? O primeiro-ministro Asquith caiu? O rei Eduardo VII fugiu com a amante? O preço do petróleo disparou?, perguntou com acidez. Espero bem que sim. Só uma coisa dessas justificaria este atraso inaceitável!
Apesar da reprimenda implícita nestas palavras, a excitação do médico não diminuiu.
Então não sabe?, perguntou, fitando o paciente com intensidade. Houve uma revolução em Constantinopla! A revolta militar triunfou! O sultão restaurou a constituição e o parlamento! Finalmente, e graças a Deus todo-poderoso, os cristãos vão ser tratados como iguais naquele maldito império!
O quê?
Foi por isso que me atrasei, justificou-se o doutor Ajemian, sempre eufórico. Tenho um paciente arménio que trabalha na embaixada otomana e que me acordou esta manhã com as notícias! O Ittihad fez um apelo aos voluntários para que ajudassem o Terceiro Corpo do Exército e apareceu gente de todo o lado! Arménios, judeus, Búlgaros, Curdos, Gregos, Turcos ... Todos se juntaram e saíram para as ruas. Constantinopla está um pandemónio! Pela primeira vez, judeus, cristãos e muçulmanos combateram do mesmo lado da barricada! O Ittihad triunfou! O secularismo foi finalmente imposto no Império Otomano!
A notícia espalhou-se na mansão dos Sarkisian, criando grande exaltação entre a criadagem arménia. Havia já alguns dias que se sabia que a tensão estava a crescer no Império Otomano! O terceiro Corpo do Exército, estacionado na Macedónia, tinha-se revoltado e marchara sobre Constantinopla a exigir a restauração da constituição. Todos esperavam que o sultão esmagasse a revolta, mas pelos vistos o Ittihad, o partido secularista dos Jovens Turcos, havia conseguido mobilizar a população e travar o soberano. A revolta transformara-se em revolução.
Esta história pode acabar mal, observou Kaloust com o semblante fechado. Muito mal mesmo.
Os comensais olharam-no, intrigados e admirados. A revolução dos Jovens Turcos espalhara a euforia entre os arménios de Londres e aquele jantar no número 38 de Hyde Park Gardens, que reunia as principais personalidades da comunidade arménia em Inglaterra, fora organizado para celebrar o acontecimento. Até por isso as palavras carregadas de cepticismo surpreenderam os convidados.
O que quer dizer com isso, senhor Sarkisian?, perguntou o padre Artesian, que todos os domingos celebrava missa na igreja arménia de Londres. Os Jovens Turcos reinstituíram a constituição, que prevê a igualdade de todos os Otomanos, independentemente da religião. Como pode uma coisa dessas acabar mal?
Um empregado despejou champagne no copo do anfitrião, que provou um trago e fez sinal de que aprovava. O champagne começou então a ser deitado nos copos de todos os convivas sentados à mesa.
Não se esqueçam do que aconteceu quando as grandes potências obrigaram o sultão a aceitar a constituição em 1876, lembrou Kaloust num tom sereno. Eu na altura tinha apenas sete anos, mas alguns de vós são mais velhos e decerto se recordam do que se passou a seguir. A igualdade de cristãos e muçulmanos perante a lei foi transformada num princípio constitucional, mas o que aconteceu na prática foi o inverso. Os muçulmanos acham-se superiores e como não aceitaram a igualdade organizaram matanças de cristãos. Essas chacinas levaram a que as regiões cristãs da Europa otomana se revoltassem e declarassem a independência, como sucedeu nos Balcãs e em quase toda a Rumélia, e isso alimentou a fúria dos muçulmanos contra as comunidades cristãs que permaneceram no império, num ciclo interminável.
Isso é verdade, assentiu o padre Artesian, o mais velho à mesa. Mas onde pretende chegar?
Quero dizer que as coisas feitas num determinado sentido podem obter um resultado completamente inverso. A constituição foi criada em 1876 para dar igualdade a todos, independentemente da religião, e acabou por resultar em maior opressão sobre os cristãos. Como podemos ter a certeza de que a reposição da constituição agora não vai acabar no mesmo?
Ah, não!, cortou o doutor Ajemian, também presente na sua qualidade de mais ilustre médico da comunidade.
O Ittihad é um movimento secularista que abraça a modernidade! É completamente diferente! O sultão Hamid II vai acabar por ser deposto e teremos uma monarquia constitucional.
A situação mudou totalmente. Esta revolução significa que as Luzes chegaram enfim ao Império Otomano!
Acha que sim? Então diga-me por que razão o Terceiro Corpo do Exército, que estava estacionado na Macedónia, se revoltou contra o sultão.
Ora, porque queria instituir uma monarquia constitucional!
Mas porquê agora? E porquê justamente as forças que se encontravam na Macedónia? Qual foi o evento que desencadeou este movimento neste preciso momento?
Os arménios sentados à mesa entreolharam-se, sem saber o que responder.
Bem ... alguém se aborreceu com o sultão, presumo eu, disse o padre Artesian. Não é por acaso que Hamid II é conhecido por Sultão Vermelho! O homem tem as mãos encharcadas de sangue! Alguém tinha de fazer alguma coisa e os Jovens Turcos fizeram!
Kaloust respirou fundo, agastado. Por que motivo não era toda a gente capaz de enxergar o que ele via com tanta clareza? As emoções que pairavam no ar impediam a maior parte das pessoas de interpretar correctamente os sinais dos tempos, como se uma densa neblina ocultasse as ameaças que espreitavam no pântano da vida. Mas ele não se deixava iludir.
Não percebem que isto tudo está relacionado com a reunião de Reval? perguntou. Então deixem-me lembrar-vos que o Império Otomano só sobreviveu este tempo todo porque as grandes potências nunca se entenderam quanto ao seu destino. A Inglaterra sempre defendeu a integridade territorial do Império Otomano para evitar que a Rússia abocanhasse as zonas de maioria cristã, enquanto a Rússia apoiou a autodeterminação dos povos cristãos que vivem sob a bota dos Turcos de modo a anexar ou pôr esses territórios sob sua influência. Enquanto essas duas potências não se entenderam, o sultão dormiu descansado. O problema é que a revolução macedónia, há cinco anos, e a repressão turca que se seguiu, obrigaram a Inglaterra a questionar a sensatez da sua política. Como sabem, os representantes ingleses e russos encontraram-se há algumas semanas em Reval e concordaram atribuir total autonomia à Macedónia.
Desculpe, mas qual a relação disso com a revolução dos Jovens Turcos?
Então não vê? A reunião de Reval ditou aos Turcos a perda da Macedónia. Foi por isso que o Terceiro Corpo do Exército, que estava justamente estacionado na Macedónia, se revoltou! E foi por isso que o Ittihad o apoiou! Digam o que disserem, eles na verdade não querem a liberdade dos cristãos nem a igualdade com os muçulmanos! Isso é conversa para tolos! O que eles querem é manter o seu querido império e eternizar o domínio turco sobre os outros povos, mais nada! Com a perda iminente da Macedónia, o Ittihad e o Terceiro Corpo acham que o sultão não está a ser eficiente na preservação do império. O regime mudou e as pessoas mudaram, mas o problema de fundo, meus caros, continua a ser o mesmo. Que ninguém se iluda a esse respeito!
Acha que ... que os problemas com a nossa comunidade vão continuar?
Era uma boa pergunta.
Não sei, admitiu Kaloust. Mas se for esse o preço de manter o império, acho que os Jovens Turcos vão pagá-lo sem hesitar.
Com um gesto cortês, o embaixador otomano convidou o visitante a sentar-se numa ponta do sofá e ele próprio acomodou-se no seu lugar favorito. Um empregado entrou no gabinete com uma pequena bandeja redonda e pousou sobre a mesa uma taça de baclavas e duas chávenas de café turco.
Muita coisa mudou em Constantinopla, senhor Sarkisian, anunciou o embaixador, esfregando as mãos num gesto nervoso. Com a revolução dos Jovens Turcos e a queda de Sua Majestade, o sultão Abdul Hamid II, o nosso país abraçou enfim a modernidade e a monarquia constitucional.
Assim o espero, effendi, disse Kaloust, dissimulando a sua proverbial desconfiança por detrás de palavras de circunstância. Parece-me de facto que o nosso país está no caminho certo.
Ah, não tenha dúvida!, assegurou o diplomata. O Ittihad, não sei se sabe, é um partido que defende o secularismo e conta nas suas fileiras com muitos admiradores da Inglaterra e da França. Sua Majestade o sultão, receio bem, estava a deixar-se seduzir em demasia pela Alemanha, mas creio que isso agora irá mudar.
Acho muito bem, effendi, aprovou o arménio. O futuro é a Inglaterra, não a Alemanha.
Com certeza. Eu próprio tenho insistido com Constantinopla na necessidade de ...
As palavras do embaixador tornaram-se gradualmente ruído de fundo na mente do convidado. O monólogo repisava sucessivos lugares comuns e informações requentadas, com o anfitrião a divagar sobre a importância da revolução e a necessidade de manter a coesão do império e fomentar boas relações com as potências europeias. Kaloust conhecia bem aquela conversa e, enquanto ia fazendo que sim com a cabeça e um ocasional "hmm-hmm" maquinal, deu consigo a apreciar os belos tapetes turcos que ornavam o gabinete. A sua própria colecção de tapeçaria enchia-o de orgulho, mas havia já algum tempo que andava de olho numa coisa diferente. A pintura. O curador da National Gallery, Sir Kenneth Bark, acicatara-lhe o interesse pela pintura. Sempre tivera um fraco por quadros, mas nunca ao ponto de considerar a possibilidade de iniciar uma colecção. Todavia, e com as suas apaixonantes explicações, o curador aguçara-lhe o apetite…sob a influência de Salim Bey, que tem insistido na ideia de ...
Ao ouvir o embaixador pronunciar o nome do seu amigo turco, Kaloust interrompeu bruscamente a divagação e quase deu um salto no sofá.
Salim Bey?, admirou-se, regressando ao presente. Que lhe aconteceu? O que se passa com ele?
O embaixador suspendeu a sua exposição, surpreendido com a pergunta.
Está no governo, revelou. Não sabia?
O quê?
É verdade. Como decerto não ignora, ele tinha caído em desgraça na corte de Sua Majestade, o sultão, devido às suas ligações com o Ittihad. Mas agora que o Ittihad subiu ao poder foi chamado a desempenhar funções no executivo do novo grão-vizir.
Não me diga! Com que pasta?
Finanças, esclareceu o diplomata, admirado por tudo aquilo ser novidade para o seu interlocutor. Não sabia? Ele é o novo ministro das Finanças do Império Otomano.
A estupefacção inicial seguiu-se uma onda de euforia silenciosa. A mente de Kaloust fervilhava de ideias; a novidade mudava tudo. Com Salim Bey no poder, quem sabe se não poderia atrever-se a sonhar de novo com a concessão na Mesopotâmia? Mais eufórico ainda ficou quando o embaixador otomano, uma vez terminada a sua longa exposição inicial, afinou a garganta e, abordando enfim a verdadeira razão pela qual o convidara para aquela conversa, lhe disse que tinha uma proposta a apresentar-lhe .
Na verdade a ideia veio do próprio Salim Bey, explicou o diplomata. Ele nutre por si a mais elevada das estimas e considera-o, pela sua posição e conhecimentos, a pessoa ideal para ajudar o novo governo nas exigentes tarefas patrióticas que se avizinham.
Estou à vossa disposição, effendi, prontificou-se o arménio, intrigado e expectante. Para mais se a proposta vem de Salim Bey, por quem tenho enorme consideração.
Ah, ainda bem! Folgo em saber. O anfitrião levantou-se e foi buscar uma folha à escrivaninha. Depois voltou ao seu lugar e encarou o convidado. Tendo em conta as suas qualificações e o facto de residir permanentemente aqui em Londres, mas também em Paris, gostaríamos de o nomear conselheiro financeiro das nossas embaixadas nas duas capitais. Não sei, claro, se com os seus múltiplos afazeres estará disponível para desempenhar tal função ...
A proposta surpreendeu Kaloust.
Eu … hesitou. Olhe que já não tenho nacionalidade otomana. Há alguns anos naturalizei-me britânico e ...
O anfitrião fez um gesto com a mão.
Sabemos isso e creia-me quando lhe digo que para nós não tem a menor importância.
Ah, bom ... , vacilou de novo, mas apenas um instante.
Assim sendo, effendi, é uma honra! Naturalmente que aceito.
O embaixador sorriu.
Fico muito satisfeito!, exclamou. De imediato remexeu na folha que tinha ido buscar à escrivaninha. Salim Bey quer, no entanto, ir ainda mais longe. O senhor ministro enviou-me estas instruções no sentido de o convidar a tornar-se conselheiro financeiro do próprio governo otomano. Que me diz a isso?
A proposta era tão interessante que o arménio ficou um instante em silêncio, contemplando as imensas possibilidades que inesperadamente se lhe abriam.
Contem comigo.
Quando pouco depois abalou da embaixada otomana em Londres, Kaloust sentiu que precisava de comemorar a sua nomeação com algo de grandioso. Mas o quê? Uma jantarada? Uma recepção? Um passeio a Paris para ir ter com a sua belle do momento? Tudo isso era sem dúvida agradável, mas parecia-lhe demasiado banal perante a enormidade do que acabara de lhe suceder. O que precisava mesmo era de celebrar o acontecimento de uma forma extravagante, única, inesquecível.
Foi nesse instante que se lembrou de uma galeria de arte que Sir Kenneth Bark lhe indicara umas semanas antes numa ruela escondida atrás de Charing Cross, para os lados de Covent Garden. Meteu-se no seu fiacre e deu a ordem ao cocheiro.
Trafalgar Square! E a trote!
A distância não era muito grande. O fiacre percorreu o West End até Oxford Circus, desceu Regent Street, passou por Leicester Square e atravessou Charing Cross até Trafalgar.
Mesmo neste curto passeio observou uma vez mais como o trânsito estava a mudar em Londres. Ainda se viam muitos coches, fiacres, carroças e animais, sobretudo mulas e cavalos, mas crescia de maneira por demais notória o número de automóveis. Mesmo assim ainda atraíam a curiosidade da multidão, fascinada por aqueles bizarros coches sem cavalos, ruidosos e fumarentos. Kaloust percebeu nesse instante que teria de aderir à novidade. Afinal o seu negócio não dependia do futuro de tais engenhocas Então teria de dar exemplo e adquirir uma logo que possível.
Uma vez chegado ao destino, o arménio apeou-se e galgou a escadaria até entrar na National Gallery, onde surpreendeu Sir Kenneth Bark no seu gabinete.
É hoje!, anunciou-lhe de chofre. Vou comprar o Guardi!
A sério?
Afogueado de excitação, Kaloust fez um gesto peremptório a chamar o amigo.
Venha daí!
Com o olhar triunfal dos vendedores que sabem ter enfim o cliente na mão, o curador do museu vestiu o sobretudo e, assentando o chapéu sobre a cabeça, saiu no encalço de Kaloust. Subiram a pé por Charing Cross, passando pelos teatros à entrada de Covent Garden com os seus cartazes coloridos a anunciar peças dramáticas ou musicais cheios de glamour. Um céu de chumbo ensombrava a cidade, cobrindo Londres de uma neblina azulada e fria, os transeuntes transformados em vultos fantasmagóricos que ora emergiam ora eram engolidos pela névoa inquieta. Algumas gotas deslizavam pelo ar como lágrimas fugidias, salpicos molhados que bailavam ao sabor do vento hesitante, mas todos sabiam que os pingos não passariam de breves chuviscos, miúdos e leves.
Que bicho lhe mordeu?, perguntou Sir Kenneth, ajeitando a aba do sobretudo para se proteger do frio húmido. O que lhe deu para decidir avançar com a compra precisamente hoje?
Digamos que o dia me correu bem. Quero celebrá-lo de forma especial e parece-me que o Guardi é perfeito para a ocasião.
Atravessaram a rua, aos ziguezagues entre um automóvel fumarento e dois coches, o clip-clop dos cascos dos cavalos a pontuar o ronco excitado dos motores como um compasso apressado.
Essa decisão de comprar o quadro é a prova de que tem de facto alma de artista.
O arménio assentiu com um aceno quase imperceptível.
Hoje mais do que nunca sinto que preciso de me rodear de coisas belas, admitiu. É como se uma paz interior me equilibrasse, não sei bem explicar. Mordeu o lábio inferior.
Sabe uma coisa curiosa? Acho que a beleza faz de mim uma pessoa melhor.
Tem graça essa observação, indicou o inglês. Lembra-se de uma vez lhe ter dito que um vulcão a expelir lava ou uma leoa à caça são coisas belas?
São belas, ressalvou Kaloust com o indicador erguido, mostrando que aprendera a lição, se não nos ameaçarem, bem entendido.
Isso mesmo! Se a lava estiver a cair em cima de nós, o vulcão torna-se horroroso. Se a leoa vier atrás de nós, transforma-se numa besta medonha. Mas ver de uma distância segura o espectáculo do vulcão a expelir lava ou da leoa a caçar uma zebra, em circunstâncias em que nem o vulcão nem a leoa nos põem em perigo, é sublime. Isso mostra que existe uma ligação íntima entre a beleza e o bem, a fealdade e o mal. O que nos ameaça é, por definição, feio. Já os fenómenos poderosos que não nos põem em perigo parecem muitas vezes sublimes.
Isso demonstra algo que sempre intuí, indicou o arménio. A beleza está ligada ao bem.
A beleza começa por estar ligada ao sentido, retorqui, Sir Kenneth, apressando o passo para manter o ritmo de marcha do seu companheiro. Das pinturas de Lascaux às grandes paisagens reproduzidas em tela por Constable, das valsas de Tchaikovsky aos poemas de Keats, da prosa de Wilde à escultura de Miguel Ângelo, a arte tem sido sobretudo uma incessante busca pelo sentido da vida. A experiência da beleza é o que nos faz acreditar que o mundo tem um propósito, que as coisas desempenham uma função e ocupam um lugar próprio. Estacou a meio do passeio e, arrebatado pelo entusiasmo, fez um gesto largo com o braço a abarcar tudo em redor. Quando contemplamos a miríade de diamantes estelares que mancham o céu nocturno ou quando paramos para nos deleitarmos com o pissitar melodioso do estorninho entre as folhas de um plátano ou com esta neblina fosca que pinta as ruas de Londres de cinzas de mistério, o espanto maravilhado que sentimos confirma-nos que o mundo é um lugar especial e que, enquanto elementos desse mundo, também nós somos especiais, abençoados pelo toque do divino como se nós próprios fossemos divinos. O universo que abraça estas maravilhas também nos abraça a nós, vem até nós e nós fundimo-nos nele como se todos fôssemos um. A beleza confirma-nos subtilmente que a vida tem um sentido. Podemos não saber que sentido é esse mas intuímos pela tangibilidade da beleza que ele existe, e é por isso, meu caro amigo, que você e eu e tantos outros nos sentimos tão tocados por tudo o que é belo. Quando procuramos a beleza, estamos na verdade a procurar o propósito da nossa própria existência.
Recomeçaram a caminhar e ficaram algum tempo em silêncio. Kaloust digeria o que acabava de ouvir e esquadrinhava o sentido da estética, os olhos colados ao seu tutor artístico como um cão preso ao dono. Junto a Leicester Square dobraram à direita e mergulharam nas ruelas fronteiras a Covent Garden.
Poderemos então dizer, Sir Kenneth, que a beleza é a expressão do divino.
Se quiser, concordou o curador da National Gallery. Através da beleza natural encontramos o divino no universo e pela arte expressamos a centelha divina que arde em nós.
E é por isso que a beleza é uma face do bem?
Se acreditar que Deus é bom, talvez. Fez de novo um gesto a indicar as ruas em redor. Quando Charles Dickens nos quis mostrar a miséria abjecta das crianças de rua aqui em Londres, escreveu Oliver Twist, uma obra que consideramos bela porque se pôs do lado do bem e nos forçou a enfrentar o mal que vivia entre nós. Esboçou um esgar.
Mas, atenção, não creio que a arte deva ser moralista. Isso retirar-lhe-ia a beleza.
Dessa vez foi Kaloust a parar a meio do passeio e a encarar o companheiro, uma objecção a formar-se-lhe na mente.
Essa ideia é interessante, observou, mas não acha possível haver coisas muito belas que sejam más?
A beleza e a bondade são conceitos subjectivos e relativos, sentenciou Sir Kenneth Bark, retomando a marcha. Como lhe disse há pouco, se uma coisa nos ameaça achámo-la medonha. O vulcão a expelir lava é bonito à distância, mas horroroso se põe em causa a nossa existência. Fez uma pausa breve. É verdade, contudo, que também pode haver coisas belas associadas ao mal. Wagner, por exemplo, era um músico genial, mas sempre foi uma pessoa intolerante e racista, chegou mesmo a advogar a perseguição aos judeus. Como poderemos apreciar as suas óperas se o autor era uma pessoa tão execrável?
E importa o que Wagner realmente pensava?, questionou-se o arménio. Deverá o conhecimento dos seus defeitos enquanto pessoa afectar a nossa avaliação da sua música? Porque não admitir que um artista imperfeito é capaz de criar uma obra perfeita? Se a boa arte só pudesse ser feita por pessoas boas, os santos seriam os maiores artistas de sempre. E não é isso o que acontece, pois não? Tanto quanto sei, a maior parte dos artistas não são santos ...
O curador da National Gallery estacou diante de uma vitrina decorada com várias telas a óleo e a aguarela. Sobre a porta, uma tabuleta anunciava Richardson's.
Touché!, exclamou com um sorriso luminoso. Essas suas observações provam, meu caro Sarkisian, que tem de facto a alma de um esteta.
Voltou-se e entrou no estabelecimento com Kaloust atrás. Não perderam tempo e foram direitos ao canto onde se encontrava o quadro pelo qual o arménio se apaixonara e que andava a namorar desde a sua primeira visita. Quando chegaram ao local, todavia, não o encontraram no sítio habitual e, alarmados, dirigiram-se de imediato ao responsável pela galeria.
Por favor, chamou Kaloust. Para onde foi o quadro que aqui estava? Não me diga que já o vendeu!...
O homenzinho aproximou-se do canto apontado e percebeu logo qual a pintura a que o cliente se referia.
Ah, quer saber onde se encontra Vista do Mira sobre o Brenta? Apontou para cima. Tirámo-lo daqui e transferimo-lo para o primeiro andar. Quer vê-lo?
Se for possível...
Os três subiram ao primeiro andar da galeria por uma desconcertante escada helicoidal, ela própria uma pequena obra de arte, e lá deram com o quadro, minúsculo mas magnífico, um pedaço de óleo sobre madeira pouco maior que a palma de uma mão. O responsável da galeria contemplou-o com um semblante apreciativo, como se também ele estivesse apaixonado por aquela criação.
Excelente escolha!, exclamou aprovadoramente. Uma obra-prima de Francesco Guardi. Artista notável, não vos parece? Um génio a pintar Veneza!
A decisão, amadurecida ao longo do tempo, foi tomada naquele instante.
Compro.
Não o sabia ainda, mas foi assim, por um impulso que quase o possuíra naquele dia mas na verdade ao cabo de uma lenta maturação que levara anos, desde o dia em que o pai lhe dera o medjdeh com o qual adquirira o seu primeiro decadracma até esse instante em que devorava com os olhos Vista do Mira sobre o Brenta na companhia de Sir Kenneth Bark, que Kaloust começou a coleccionar pintura.
Aquele recanto de High Street era o poiso favorito de Krikor sempre que fazia um passeio fora do perímetro da escola. Chamava-se Cornflower Tea Rooms, mas o que verdadeiramente seduzia o rapaz, que ainda na semana anterior havia completado treze anos, era o que estava na vitrina. Ou, para ser mais correcto, o que se encontrava nas cinco prateleiras expostas naquela montra mágica.
Ah, suspirou o seu amigo Roger da primeira vez que ambos passaram pelo Cornflower Tea Rooms. Tartes de morango! Passou a língua gulosa pelos lábios. Miam-miam ...
A mesma Imagem deixou Krikor a salivar. Em cada prateleira havia doze tartes, cada uma com três morangos e uma boa dose de creme suculento. Ah, que tortura! Os rapazes meteram sofregamente as mãos aos bolsos e retiraram tudo o que lá tinham. O jovem Sarkisian havia recebido na véspera a sua mesada de três pence e foi isso o que os seus dedos recolheram. Chegariam três pence?
Cada tarte de morango custa um penny, anunciou o empregado quando o foram interrogar ao balcão. Quantas querem?"
Com três pence no bolso, Krikor comprou três tartes, enquanto Roger, que apenas tinha dois pence, se ficou por duas. Devoraram-nas em menos de dois minutos e logo voltaram para a vitrina e ficaram de olhos cravados nas tartes que haviam sobrado. Queriam mais, mas já não tinham dinheiro para elas.
Ainda a lamber os restos de creme que lhe pintalgavam os cantos da boca, Krikor deu consigo a fazer contas. Era capaz de limpar as cinco prateleiras que se encontravam na montra do Cornflower Tea Rooms, mas para isso precisaria de uma boa maquia. Devorar aquilo tudo, calculou, custar-lhe-ia sessenta pence à razão de um penny por cada tarte, quantidade que, à média de três pence de semanada, levaria dois períodos de aulas a juntar.
Não sei como, disse ao amigo com intensidade, mas juro que um dia hei-de juntar essa massa toda e venho aqui comer as tartes. Vai ser até à última, verás!
Nunca o fez. Mas a vitrina serviu para testar a sua primeira verdadeira aplicação dos ensinamentos da aritmética a situações da vida real. Um penny valia uma tarte. Aprendeu que o talento para a contabilidade era inato nele.
Aprendeu também a lidar com as privações, coisa que desconhecia nos tempos em que vivia com os pais. Apesar de se tratar de um internato para meninos ricos, Orley Farm fazia gala em ministrar uma educação austera aos seus estudantes. Eram mal vistos os alunos que recebiam boas semanadas dos progenitores, os quais depressa se viam chamados à matrona da escola e eram aconselhados a dar mostras de maior moderação.
No regime espartano que vigorava na instituição incluíam-se os banhos de água fria. As lavagens tornavam-se um verdadeiro suplício no Inverno, quando a temperatura por vezes descia abaixo dos zero graus Celsius, mas o que valia é que só eram obrigados a submeter-se a elas uma vez por semana. Para as abluções diárias, os alunos em regime de internato recorriam a um jarrão de água gelada que usavam no lavatório dos seus quartos em operações fugidias e raramente bem sucedidas. Considerando as condições não se podia dizer que andassem bem-cheirosos, mas a generalidade dos alunos preferia exalar um certo odor azedo a sujeitar-se diariamente aos penosos banhos de água glacial.
O banho frio, explicou a matrona quando Krikor a interrogou sobre o assunto, constitui uma parte fundamental na formação do carácter de um gentleman.
Perdão?, admirou-se o rapaz. O que tem a ver o banho com o carácter das pessoas?
A matrona esboçou uma careta empertigada, como se tais perguntas não fizessem o menor sentido, tão óbvias lhe pareciam as respostas.
Ora!, retorquiu com um certo enfado. Uma vida intelectual rica deve ser sempre acompanhada por um certo grau de privação física. Toda a gente sabe isso!
A morte inesperada do rei Eduardo VII, em Maio de 1910, obrigou ao encerramento temporário de Orley Farm. Os alunos foram mandados para casa, o que permitiu a Krikor passar com os pais a sua primeira Primavera desde que ingressara no secundário.
Assistiu ao funeral de Eduardo VII de uma bancada pública montada em Edgware Road, o mesmo lugar de onde, semanas depois, presenciou a coroação do príncipe de Gales, o agora rei Jorge V. O mais interessante, porém, não foram estes acontecimentos rituais na vida da monarquia, mas uma visita que os pais receberam no número 38 de Hyde Park Gardens.
Havia já algum tempo que o pai se tornara conselheiro do governo otomano. Acontece que, como representante do sultão nas exéquias de Eduardo VII e na coroação de Jorge V, o Império Otomano enviara a Londres o príncipe herdeiro, Yusuf Izzedin.
Em honra de tão ilustre personalidade, Kaloust decidiu organizar um grande almoço de gala em sua casa. O príncipe herdeiro otomano foi naturalmente instalado no lugar de honra da enorme mesa da sala, a cabeceira, e, como era próprio da sua condição, tinha direito a ser servido em primeiro lugar, à frente até das senhoras, como parecia normal no mundo islâmico. Conhecedor das regras da etiqueta otomana, o anfitrião deu as suas instruções aos criados, instalou-se tranquilamente à mesa e aguardou que viesse o primeiro prato.
A porta da sala abriu-se e o empregado, seguindo à letra a ordem do patrão, exibiu a primeira travessa e apresentou-a em voz alta.
Primeiros hors d'ceuvres; anunciou com solenidade.
Caviar do rio Negro.
A travessa apinhada de ovinhos pretos de esturjão foi assente no centro da mesa, a posição estrategicamente mais conveniente para que todos se pudessem servir com o mínimo de incómodo. Antes que alguém o fizesse, no entanto, Kaloust esboçou um sinal na direcção do seu distinto convidado e concedeu-lhe a primazia que a sua condição real lhe outorgava.
Sua Majestade, faça o favor.
Yusuf Izzedin levantou-se, aproximou-se do centro da mesa, pegou na grande travessa e levou-a para o seu lugar. Pegou numa colher e começou a comer o caviar directamente da travessa, perante a estupefacção dos convidados.
Não estava mau, este caviar, foi o seu único comentário.
Não há mais?
Diante dele, a travessa apresentava-se agora limpa.
Aquele não seria o único episódio revelador da excentricidade do futuro sultão nem das inesperadas agruras e atribulações que animavam a vida atarefada de um conselheiro do Império Otomano. Parecia escrito nas estrelas que Yusuf Izzedin viera a Londres para atormentar quem quer que o recebesse, o que, nas circunstâncias, não augurava nada de bom para o seu anfitrião do momento.
O príncipe herdeiro dormiu nessa noite em casa dos Sarkisian. Logo pela manhã, durante o pequeno-almoço, que devorou antes de toda a gente como pelos vistos era sua prerrogativa inalienável, voltou-se de repente para Kaloust e formulou um pedido sob a forma inequívoca de uma ordem.
Leve-me a um alfaiate, determinou. Preciso de adquirir fatos. Esticou as pernas e exibiu os pés. E sapatos também.
Com certeza Majestade, retorquiu o anfitrião, sempre - obsequioso. A que alfaiate gostaria de ir?
Não sei. Qual é o seu?
Eu visto-me no T. & F. French, disse, exibindo a marca cosida ao interior do seu próprio fato. Um ás da tesoura, se me permite dizê-lo. Penso que Sua Majestade ficará muito bem servido. O príncipe aprovou a sugestão e foi de imediato constituída uma comitiva para acompanhar Sua Majestade ao alfaiate. Na altura as ruas de Londres começavam já a encher-se das famosas carruagens fumarentas e sem cavalos que os jornais designavam por automóveis. O aparecimento daquelas viaturas era naturalmente encarado com agrado por Kaloust, que via na nova indústria o futuro do seu negócio do petróleo, sobretudo numa altura em que a electricidade estava a substituir o querosene na iluminação. Assim sendo, e acompanhando a evolução dos tempos, os Sarkisian haviam recentemente adquirido um belo Delaunay Belleville Landaulette de faróis cromados.
FOI justamente nesse carro que a família seguiu a viatura diplomática que transportava o príncipe, um Clément-Bayard azul, até Dover Street, onde se situava a distinta loja de T. & F. French. Na confusão do momento, Krikor conseguiu esgueirar-se para o interior do automóvel e esconder-se ao lado da mãe.
Uma vez chegados ao alfaiate, o mais jovem dos Sarkisian assistiu ao estranho espectáculo protagonizado pelo príncipe herdeiro otomano, com a atónita cumplicidade do pai e dos costureiros ingleses. A coisa revelou-se ainda mais embaraçosa por ter sido mister French em pessoa quem atendeu Sua Majestade otomana e o respectivo conselheiro financeiro. Depois de se desfazer em mil obséquios, quase como se o cliente fosse o próprio rei Jorge, o eminente alfaiate conduziu Yusuf Izzedin pelo seu estabelecimento e mostrou-lhe vários tecidos e modelos de fatos, até o convidar, com vénias e floreados, a escolher o que mais gostava. O príncipe herdeiro acabou por optar por um fato Príncipe- de Gales clássico e por um tweed. Mister French levou então o seu ilustre cliente para a sala de provas. Como de costume, pegou na fita métrica e aproximou-se do príncipe herdeiro para lhe tirar as medidas.
Que queres tu, cão?, cortou Sua Majestade com um gesto de repulsa quando o costureiro lhe tocou no braço para medir as mangas. Como te atreves?
Apanhado de surpresa, o alfaiate deu um salto para trás.
Que foi? Que fiz eu?
Yusuf Izzedin apontou para o inglês mas voltou-se para
Kaloust, como se se queixasse.
Viu o que ele fez? Viu? Este cão tocou-me! Ele atreveu-se a tocar-me! Como é possível uma coisa destas?
O arménio vacilou, apanhado de surpresa por um problema que não compreendia.
Mas, Majestade, ele é o alfaiate!
Um alfaiate infiel.
Bem ... sim, é verdade. Mister French não é muçulmano.
Porém, precisa de o medir. Como pode ele fazer os seus fatos se não o deixar tocar em si?
Ele que meça no ar!
No ar?
Sim, insistiu o futuro sultão do Império Otomano. Ele que meça no ar! Faça como quiser, mas não pode tocar na minha augusta pessoa!
A mecânica proposta revelou-se assaz estranha e o próprio Kaloust teve dificuldade em entendê-la nos seus pormenores e explicá-la ao costureiro. Porém, e uma vez obtidos novos esclarecimentos de Yusuf Izzedin, foi estabelecido um método inovador para medir o corpo do cliente. Mister French teve de pegar na fita métrica e suspendê-la no ar diante de Sua Majestade, calculando por aproximação as medidas das mangas, das costas e da cintura.
Uma vez completado este estranho processo, foi a vez de o príncipe herdeiro solicitar sapatos. Foram-lhe apresentados diversos modelos e, após muito hesitar, lá acabou por se decidir por dois pares de exemplares, um negro e outro castanho.
Sua Majestade deseja então levar um par de cada, não é verdade?, quis saber o alfaiate. Ou prefere dois pares?
O príncipe herdeiro abanou a cabeça.
Quero trinta pares de cada modelo.
Perdão?, admirou-se mister French, convencido de que havia escutado mal. Quer três pares? Trinta de cada, repetiu Yusuf Izzedin. É que nunca calço um par de sapatos mais de uma vez. Todos os dias estreio um par novo. Com trinta pares de cada um desses modelos, tenho sapatos para sessenta dias. Bela ideia, não acham?
Não havia trinta sapatos de cada um daqueles modelos T.&. French, pelo que o estabelecimento teve de mandar um estafeta de urgência ao fornecedor para recolher os exemplares em falta. Quando a comitiva do príncipe se preparava para retomar o caminho de regresso, um Kaloust de rosto fechado pediu escusa a Sua Majestade e refugiou-se no Delaunay Belleville Landaulette onde seguiam a mulher e o filho. Logo que o cortejo arrancou para a viagem de regresso ao número 38 de Hyde Park Gardens, o arménio deitou as mãos à cabeça e suspirou de desespero.
O cargo de conselheiro otomano está a dar cabo de mim!, desabafou. Se não fosse por causa do maldito petróleo da Mesopotâmia, juro que matava este turco!
A imagem do mar de Mármara repleto de navios recuava ao imaginário de infância de Kaloust. Com o andar dos anos, e apesar de tantas mudanças operadas no mundo, nada ali parecia ter-se alterado. Viam-se ainda os vapores a fazer a ligação entre as margens europeia e asiática de Constantinopla e embarcações de todos os calados e feitios a convergirem para o Bósforo ou a saírem, como caravanas num deserto azul. A cena podia não constituir propriamente uma novidade, mas era sempre de uma grandeza capaz de cortar a respiração.
Há quanto tempo andamos nisto?
A pergunta foi formulada por Salim Bey depois de aspirar uma golfada aromática do seu cachimbo de água.
Comecei como vosso conselheiro financeiro em 1908, não é verdade?, respondeu Kaloust. Portanto, e como estamos em 1911, isso significa que já lá vão três anos.
O ministro das Finanças suspirou.
Três anos e, apesar de todos os nossos esforços, ainda não conseguimos nada!, exclamou com frustração. Por mais que queiramos aproximar-nos da Inglaterra e da França, não conseguimos. Os nossos cofres precisam de dinheiro fresco e só os Alemães parecem dispostos a emprestar-nos. Como é isto possível?
O arménio encolheu os ombros.
Faço o que posso, effendi, disse. Consegui o empréstimo do Crédit Mobilier, não consegui? Não tenho culpa de que o governo francês tenha obstaculizado a operação devido a alguns fracassos do seu Banco Imperial Otomano aqui em Constantinopla. Os Ingleses, receio bem, também estão de fora. Pus o meu amigo Philip Blake em campo, mas o massacre dos Arménios em Adana, em 1909, e agora a repressão contra os Albaneses não caíram muito bem em Londres, receio eu.
Mas o Ittihad não teve nada a ver com o massacre de Adana!, protestou Salim Bey. Isso foi uma acção dos contra-revolucionários! E na Albânia estamos com uma insurreição entre mãos! O que querem que façamos?
Eu sei, eu sei! Mas estas coisas têm um preço elevado, effendi. Como se pode esperar que a Inglaterra empreste dinheiro ao Império Otomano se os Turcos andam outra vez a matar cristãos? Tem de compreender que isso cria dificuldades a qualquer governo em Londres. Os jornais, a opinião pública ... ninguém aceitaria que ajudássemos o império! E o governo de Sua Majestade não quer embaraços.
Salim Bey fez com a língua um estalido de desapontamento.
A continuarmos assim, os elementos pró-germânicos do meu governo vão ganhar ascendente, observou.
A deriva liberal dos Jovens Turcos está à beira de acabar ...
Pois, eu compreendo, disse Kaloust. Vislumbrou nesse instante uma possibilidade cintilar. O ideal seria atar os Ingleses e os Franceses à Mesopotâmia ...
Ah, não me venha outra vez com a conversa do petróleo! Os Alemães têm a promessa dessa concessão e não vejo modo de a inverter. Eles estão a construir-nos a linha de caminho-de-ferro da Anatólia e a conceder-nos empréstimos, coisa que Ingleses e Franceses não fazem. Nestas condições, não disponho de quaisquer argumentos para enfrentar os meus colegas pró-Alemães do Ittihad. O mais que consegui foi, graças ao dinheiro que me disponibilizou, distribuir pelo governo grandes quantidades de bakshish de modo a impedir que sejam emitidos vistos de viagem a engenheiros alemães.
Isso já não é mau!, observou o anfitrião. E a AngloPersian? Ouvi dizer que o D' Arcy também anda a cheirar a concessão da Mesopotâmia ...
O rosto do turco esboçou o primeiro sorriso desde que chegara à mansão do seu amigo arménio.
Esse não tem hipótese, sentenciou. Fazemos-lhe imensas promessas, claro. E ele cobre-nos de bakshish. O grão-vizir chegou a entregar-lhe uma carta a prometer uma concessão, mas não passa de conversa fiada. O D' Arcy não chegará a lado nenhum.
Folgo em saber. E a Standard Oil?
Os Americanos? A mesma coisa. Mandaram para cá um contra-almirante qualquer que nos oferece mundos e fundos. Vamos enganá-lo também com o rascunho de uma concessão. Nada de preocupante para si, meu caro amigo.
O anfitrião esticou-se na cadeira e desviou o olhar para um belo veleiro que cortava as águas do mar de Mármara, sereno e altivo.
Ainda bem.
A sineta da entrada tocou a meio da tarde, enquanto Kaloust conversava ainda na varanda com Salim Bey. O mordomo desceu as escadas e foi abrir a porta. Momentos mais tarde apareceu diante do patrão na companhia de um homem magro e loiro, de bigode. Era Philip Blake.
Já lhe falei inúmeras vezes do senhor Blake, effendi, disse Kaloust depois de se terem cumprimentado. Ele é um importante aliado nosso. Sendo um deputado com óptimas ligações no Foreign Office, veio a Constantinopla com uma missão especial.
Percebendo a deixa, o inglês afinou a garganta para tomar a palavra.
I say, o governo de Sua Majestade considera que a ascensão dos Jovens Turcos constitui uma excelente oportunidade para contrariar o ascendente dos Alemães aqui no Império Otomano, afirmou no seu tom afectado. Foi decidido tentar instituir aqui em Constantinopla um banco puramente britânico, usando recursos de um consórcio financeiro inglês que junta alguns dos homens mais abastados do meu país, como Lorde Revelstoke e Lorde Harrington.
Qual Lorde Revelstoke?, quis saber o ministro otomano das Finanças, impressionado com aqueles nomes. O dos Baring Brothers?
Right ho, confirmou Blake. Dados os conhecimentos em Constantinopla do senhor Sarkisian, convidámo-lo a integrar a nossa equipa como conselheiro técnico.
Na minha opinião o negócio da banca no Império Otomano não é compensador, apressou-se Kaloust a esclarecer. Os bancos alemães, italianos e franceses assumem riscos que são considerados inaceitáveis em Inglaterra. Um banco inglês terá muita dificuldade em operar num ambiente concorrencial tão selvagem.
Wait and see, devolveu o amigo. Veremos.
Esse banco ... como se chamará?, quis saber Salim Bey.
E vai investir em que áreas?
Estamos a pensar chamar-lhe Banco Nacional da Turquia, com capitais exclusivamente britânicos, esclareceu Blake.
Pretendemos apoiar projectos na área da electricidade e da irrigação em regiões onde existe carência de água, como a Mesopotâmia.
Parece-me muito bem, aprovou o governante otomano com um esgar de satisfação. Não vejo dificuldade em aprovarmos essa louvável iniciativa. É uma excelente ideia!
Jolly good!
Incapaz de deixar passar uma oportunidade quando a via, Kaloust remexeu-se no seu lugar.
Há uma área em que penso que poderia ser útil o Banco Nacional da Turquia actuar, indicou num tom manso, para não afugentar as presas. A candidatura a concessões de petróleo. Good Lord, Sarkisian! Lá vem você outra vez com o maldito petróleo!, exclamou o inglês com um gesto de enfado. Blast it! Será que não pensa noutra coisa?
O arménio lançou-lhe um olhar ressentido.
Os senhores querem a minha ajuda e know-how em Constantinopla para erguer esse banco? Então espero, em troca, auxílio neste meu pequeno projecto. Não é pedir muito, não acha?
Na verdade, parecia um pedido perfeitamente razoável e Blake não viu como poderia levantar objecções.
Right ho!; assentiu ele, cedendo. Conte-me lá então o que se passa.
O que se passa é que ando há anos a trabalhar com Salim Bey para tentar obter uma concessão petrolífera na Mesopotâmia, disse Kaloust, desviando o olhar para o seu amigo turco como se lhe pedisse que explicasse as coisas. Sem sucesso. Salim Bey entendeu.
Os Alemães do Deutsche Bank que nos estão a construir a linha de caminho-de-ferro da Anatólia até Bagdade, conseguiram do sultão direitos de exploração mineira dos terrenos imediatamente circundantes da linha férrea, explicou o ministro das Finanças. Tenho tentado anular isso, mas o lóbi pró-alemão no lttihad é, receio bem, demasiado forte. Com a ajuda financeira do senhor Sarkisian, apenas consegui sabotar os esforços dessa gente.
Quem são os alemães por detrás do negócio? , interessou-se o deputado inglês. Disse Deutsche Bank? Correcto, confirmou Salim Bey. São os interesses alemães que obstaculizam a tentativa do senhor Sarkisian de obter a concessão. Nós minamo-los a eles, eles minam-nos a nós. Ainda ninguém conseguiu chegar a sítio nenhum.
O ideal seria alcançar um entendimento com os Alemães, alvitrou Kaloust à laia de sugestão, virando-se para Blake.
Acha que o Banco Nacional da Turquia poderia fazer essa ponte?
O seu amigo inglês cofiou o bigode loiro com os dedos, numa pose meditativa.
I say, Lorde Harrington é amigo pessoal do Kaiser, observou. Além disso, e devido às suas responsabilidades no Royal Exchange, conta com muitos conhecimentos na alta finança alemã, incluindo von Gwinner, o presidente do Deutsche Bank. Não me parece que seja impossível!
O governante otomano reagiu com satisfação.
Acho uma excelente ideia!, exclamou. Uma aliança entre o Deutsche Bank, este novo Banco Nacional da Turquia que vocês querem instituir e o senhor Sarkisian teria excelentes condições para conseguir a concessão. E livrava o governo otomano do embaraço de ter de dizer que não a uma das partes. Com os principais interessados no mesmo barco, e com a ajuda de uma quantidade interessante de bakshish, será fácil aprovar finalmente essa famigerada concessão. Kaloust apontou o dedo a Salim Bey.
Para que isto funcione, é ainda necessária outra coisa, lembrou. Deve recordar-se de que, na sequência do meu relatório sobre o petróleo da Mesopotâmia, o sultão adquiriu para o seu erário privado todas as propriedades existentes na região, em particular na zona de Mossul. A ideia de Sua Majestade era apropriar-se de todo o dinheiro das concessões caso fosse mesmo descoberto petróleo. O estado otomano ficaria de mãos a abanar. Ora isso não pode ser, não é verdade?
O ministro otomano percebeu o alcance da observação; se a zona do petróleo permanecesse na posse do sultão, não haveria bakshish para ninguém a não ser para o próprio sultão. Realmente, não podia ser. Sem pagamentos por baixo da mesa, nada funcionaria.
Tem toda a razão, meu caro!, reconheceu. Como sempre, está atento aos pormenores. Pegou no seu bloco de notas e rabiscou uma linha. Vou imediatamente iniciar um processo legislativo de transferência dessas terras para a tutela do meu ministério. Aliás, é até a melhor forma de garantir que os Alemães não terão direito a nada se não chegarem a acordo convosco.
O vestígio de um sorriso desenhou-se enfim no rosto de Kaloust. A arquitectura da operação parecia-lhe perfeita. Enquanto conselheiro dos Otomanos e dos Ingleses, estava na posição ideal; aconselhava uns e outros a fazerem a mesma coisa, de modo a chegarem todos onde ele queria chegar. Nessas condições, como poderia falhar?
Era como se negociasse com ele próprio.
Devido às novas responsabilidades como conselheiro do governo otomano e como banqueiro, que celebrou com a aquisição de Yille-D'Auray, um quadro de Corot, Kaloust iniciou um ritmo frenético de viagens. Multiplicou-se em deslocações pelo Expresso do Oriente a Constantinopla, sempre com o seu passaporte britânico e munido de salvoconduto para o caso de algo correr mal, e de regresso a Paris e Londres. O incessante vaivém era interrompido por curtas pausas para repouso, organizadas pela mão sempre eficiente de madame Duprés. Era o que sucedia nessa semana em que foi descontrair para a Côte d' Azur com a sua belle, uma loirinha mignonne de dezassete anos chamada Hélène e que havia desencantado dois meses antes no Théâtre Réjane, onde a lobrigou durante uma peça de Molière. Hélène seguia da plateia a acção no palco, Kaloust descobriu-a enquanto esquadrinhava o público com os binóculos a partir do seu lugar no camarote. Aqueles cabelos de ouro encaracolados conquistaram-no à primeira, a tiara de diamantes da Cartier conquistou-a à segunda.
Madame Duprés, como sempre, fizera o resto.
Faites vos jeux!
A voz do croupier desencadeou uma agitação nervosa em torno da mesa, com vários jogadores a empurrarem as moedas para cima dos números em que apostavam.
O catorze, chouchou!, implorou Hélene, batendo palminhas excitadas. O catorze!
O arménio hesitou.
Sabes que não gosto do jogo, fofinha!
A francesa loira esboçou uma expressão de súplica.
Oh, chou-chou!, implorou, fazendo beicinho com os seus lábios carmesim. Só desta vez, vá lá..
Kaloust extraiu um luís de ouro do bolso e assentou-o sobre o número catorze; era com aquelas moedas de ouro, que valiam vinte francos, que se jogava no casino de Monte Carlo.
Pronto, só desta vez.
O croupier accionou a roleta e, após alguns segundos em que a bolinha foi saltitando entre os números que giravam, saiu o número vencedor. O dezassete.
Oooh!
Não houve mais jogo nessa noite. O casalinho deambulou pelas salas do casino, apreciando as emoções que nasciam e morriam nas diversas mesas, e, quando chegou a hora, Kaloust fez sinal para se dirigirem à porta.
Tenho um jantar com um amigo na Galerie, disse. Vai para o hotel e pede que te sirvam no quarto. Depois vou lá ter e iremos ver o fogo-de-artifício diante do casino, está bem? Despediram-se e Hélène seguiu para o magnífico Hotel e Paris, onde ambos estavam alojados, enquanto Kaloust se dirigiu para a Galerie Charles III. Ardia de curiosidade para saber as notícias que o seu amigo inglês lhe iria trazer. É que a única ponta do triângulo anglo otomano germânico que Kaloust não controlava directamente eram os Alemães. Mas, e sempre graças aos preciosos serviços de Philip Blake, Lorde Harrington havia partido para Berlim e tivera uma reunião com o presidente do Deutsche Bank. O financeiro inglês fora devidamente instruído sobre a questão do petróleo da Mesopotâmia e o assunto, sabia o arménio, constara da agenda da reunião.
O resultado da conversa em Berlim foi revelado por Philip Blake no jantar dessa noite, uma vez que Lorde Harrington já havia regressado a Londres. O restaurante estava apinhado, sobretudo de grão-duques russos que haviam apanhado o expresso de Sampetersburgo, milionários americanos e lordes ingleses. Foi numa mesa no meio deste mar de clientes da alta sociedade que frequentavam a Galerie Charles III que o amigo, acabado de chegar de Londres, o descobriu.
Os Alemães concordam!, exclamou Blake logo que se sentou à mesa, um brilho de entusiasmo a iluminar-lhe o olhar. I say, Lorde Harrington disse-me que pareceram até aliviados!
A notícia era magnífica, mas o arménio manteve um semblante inescrutável.
Como diz? Aliviados em que sentido?
Parece que o Deutsche Bank anda com falta de fundos para investir na prospecção de petróleo e pagar a construção da Linha de Caminhos-de- Ferro da Anatólia, revelou.
Todas estas operações são proibitivamente dispendiosas, como sabe. Por isso, quando Lorde Harrington lhes propôs a aliança, eles aceitaram logo. Precisam do dinheiro da alta finança britânica. Andam há anos a tentar por diversos meios obter apoio financeiro em Londres, mas esse desígnio foi sucessivamente dificultado por razões políticas. Isto é uma forma de contornarem o problema.
Ah, perfeito!, ronronou Kaloust. Perfeito!
O deputado inglês riu-se.
Os Alemães não ficaram nada contentes quando Lorde Harrington lhes falou em si, acrescentou.
A vossa rivalidade pela concessão da Mesopotâmia deixou-os agastados, mas Lorde Harrington, a quem fiz um briefing pormenorizado antes de partir para Berlim, explicou-lhes que sem si, old boy, a aliança não seria possível. Não só porque você constitui a nossa ligação ao governo otomano, e por isso não o podemos alienar, mas também porque o petróleo não é uma área para a qual o novo Banco Nacional da Turquia esteja vocacionado. De modo que os Alemães, embora a contragosto, lá o aceitaram.
A notícia foi celebrada naquela mesa da Galerie com uma garrafa de Dom Pérignon especialmente aberta para a ocasião; as comemorações mais íntimas ficariam a cargo de Hélène nessa noite.
Só nos falta uma coisa, disse Kaloust, sentindo já entre as pernas o desejo de celebrar com a sua loirinha francesa.
Criar uma empresa que complete a arquitectura dessa operação.
Pois, isso é evidente.
Precisamos de meter a Royal Dutch Shell no negócio. No fim de contas, ela é que dispõe de toda a tecnologia para a prospecção, exploração, transporte e ...
Deixe a Royal Dutch Shell de fora por enquanto, sugeriu o inglês. Só iria atrapalhar nesta fase. Mantenhamos tudo o mais simples possível. Tem alguma ideia do nome que vamos dar à empresa que ficará com a concessão da Mesopotâmia?
O arménio pensou por alguns segundos; o nome deveria ser curto e dizer tudo.
Porque não Turkish Petroleum Company?
A constituição da nova empresa custou a Kaloust rios de dinheiro em bakshish, mas também no pagamento da sua elevada quota. O Deutsche Bank ficou com vinte e cinco por cento da Turkish Petroleum Company, que pagou com os direitos mineiros em vinte quilómetros para ambos os lados da linha de Caminho-de-Ferro da Anatólia, concedidos pelo sultão quando da visita do Kaiser a Constantinopla e depois partilhados com os restantes accionistas da nova empresa. O Banco Nacional da Turquia arrecadou trinta e cinco por cento e o investidor arménio ficou com quarenta por cento, tudo a pagar em cash.
As trinta e duas mil acções que couberam a Kaloust custaram uma boa maquia, trinta e duas mil libras, mas ele não ficou preocupado. A maior parte da fatia fora adquirida para ser vendida em breve a uma empresa da sua escolha a um preço que lhe permitiria não sofrer prejuízo. E depois havia a questão do petróleo em si. Ainda não tinha sido feita qualquer descoberta, mas os indícios que coligira para o relatório que uns vinte anos antes havia redigido para o sultão davam-lhe a convicção de que era uma questão de tempo até o encontrar.
Tenho aqui muitas acções desta nova empresa para vender a uma companhia petrolífera, disse Kaloust quando, duas semanas depois, já de regresso do seu profícuo périplo por Constantinopla e pela Côte d' Azur, se encontrou no restaurante do Carlton de Londres com Hendrik van Tiggelen.
A Royal Dutch Shell está interessada?
Depende, indicou o holandês, cauteloso. O que contém essa empresa exactamente?
O petróleo da Mesopotâmia. Nem mais nem menos.
A afirmação fez Hendrik soerguer o sobrolho.
Ora, ora!, exclamou, a voz carregada de cepticismo.
A concessão pertence aos Alemães ...
Também, mas não só, esclareceu o arménio. De facto os Alemães dispõem de direitos sobre os territórios por onde passa a linha de caminho-de-ferro da Anatólia, mas esses direitos nunca foram confirmados com uma concessão. São apenas uma espécie de pré-concessão. Graças às minhas influências em Constantinopla, consegui impedir que a concessão lhes fosse atribuída.
E o que mudou?
O que mudou é que eu e os Alemães, que antes nos boicotávamos uns aos outros, estamos juntos na mesma empresa, esta Turkish Petroleum Company que agora criámos. E os Ingleses, através do Banco Nacional da Turquia, também. Nestas condições, o ministro das Finanças dos Jovens Turcos, um velho amigo meu, confirmou que nos atribui a concessão petrolífera. Quer entrar no grupo ou não?
O holandês avaliava ainda a situação que lhe era apresentada.
Está a falar de quanto?
Estou na posse de quarenta por cento desta nova empresa, indicou Kaloust. Vendo-lhe vinte mil acções, o que significa que a Royal Dutch Shell somará vinte e cinco por cento da Turkish Petroleum Company. É uma bela fatia! O Deutsche Bank também arrecada vinte e cinco por cento, o Banco Nacional da Turquia tem trinta e cinco por cento e eu, concretizando a cedência das vinte mil acções, ficarei com quinze por cento.
Nova hesitação do presidente da Royal Dutch Shell. E há mesmo petróleo na Mesopotâmia? Não estamos à caça de uma miragem?
Existe um mar de petróleo à nossa espera na Mesopotâmia!, exclamou o arménio. Qual é a sua dúvida? Quando fiz o relatório para o sultão, há uns vinte anos, as informações que recebi foram muito convincentes. Se deixar passar esta oportunidade, meu caro, é porque não aprendeu nada com o fiasco da Pérsia, cuja concessão rejeitou e que fez a fortuna da Anglo-Persian. Não deixe que uma coisa dessas aconteça outra vez! Temos o negócio do século nas mãos!
Os olhos azuis de Hendrik passearam por momentos pela sala do restaurante e detiveram-se no pianista que dedilhava uma qualquer composição austríaca que já havia escutado num ballet. Depois fitou o interlocutor com um sorriso de assentimento e estendeu-lhe a mão.
Convenceu-me.
Um silêncio sepulcral abateu-se sobre a salinha de espera quando entrou o homem com uma gravata lilás e um bigode longo e curvado. Sentados junto à janela a ler o The Times, Kaloust e Hendrik trocaram fugazmente um olhar preocupado ao reconhecer o recém-chegado e fingiram não ter dado por ele, mergulhando ainda mais as cabeças nos jornais. Mas aquela pequena peça de teatro improvisada não durou muito porque viram o vulto aproximar-se e, plantar-se diante deles.
Sou William D' Arcy, apresentou-se. Presidente da Anglo- Persian.
Não havia fuga possível. Os dois amigos baixaram os jornais e mostraram-se admirados por ver mais uma pessoa na salinha, como se não se tivessem apercebido da sua entrada.
Ah, mister D' Arcy! , exclamou o holandês, forçando um sorriso e estendendo a mão relutante. Prazer em conhecê-lo!
Os três cumprimentaram-se e D' Arcy acomodou-se ao lado deles e cruzou a perna direita, mostrando-se muito à vontade. Kaloust permaneceu em silêncio e de fisionomia impenetrável, como nele era imagem de marca, deixando as despesas da conversa ao seu parceiro holandês. Preferiu estudar a pose do recém-chegado e o que viu não lhe agradou; sentiu-o demasiado confiante, sinal talvez de que o rival da Anglo-Persian trazia alguma carta escondida na manga. O que seria? Tentou combater a sua desconfiança instintiva e disse a si próprio que talvez estivesse a imaginar coisas.
Também vieram para a reunião com o Primeiro Lorde do Almirantado?, quis saber o presidente da Anglo- Persian.
Sabem se o almirante Fisher estará presente?
Parece que sim.
A resposta de Hendrik foi suficientemente lacónica e monocórdica para indicar que não estava com disposição para alimentar conversa. Um silêncio desconfortável instalou-se na salinha de espera. Apenas se ouvia o arménio e o holandês a folhearem os seus exemplares do The Times.
D' Arcy ajeitou a sua gravata lilás e, após uma longa pausa, afinou a garganta.
Já soube que vocês conseguiram um êxito no Império Otomano, observou ele em tom distraído, como se invocasse o tema apenas para manter um diálogo de circunstância. Como se chama a empresa? Estreitou os olhos, como se fizesse um esforço de memória. Turkish Petroleum Company, não é?
Os seus dois interlocutores mostraram-se pouco à vontade e voltaram a trocar um olhar inquieto.
Pois, resmungou Hendrik, sem intenção de elaborar sobre o assunto. É isso.
E é verdade que o governo dos Jovens Turcos entregou a concessão petrolífera a essa empresa?
Hmpf, devolveu o holandês, esforçando-se por ser o mais ininteligível possível.
Como disse?
Afinal não podia ser assim tão ininteligível.
Sim ...
Sempre com um sorriso confiante desenhado no rosto, D' Arcy trocou de perna e cruzou a esquerda.
Ando há algum tempo em Constantinopla a tentar obter essa maldita concessão, disse. Fartei me de dar dinheiro aos Otomanos e eles encheram-me de promessas. E afinal. ..
Kaloust manteve-se calado e inescrutável, como era seu timbre, mas Hendrik, incapaz de manter a expressão opaca, forçou de novo um sorriso e encolheu os ombros, como se nada daquilo fosse com ele.
É a vida ...
O presidente da Anglo-Persian acenou afirmativamente a cabeça, dando a impressão de concordar com a ironia impressa na observação.
Lá nisso tem razão, assentiu. Mas nada impede que a Anglo-Persian adquira uma fatia dessa nova empresa, não é verdade?
Mais uma vez os dois amigos trocaram um olhar, seriamente desassossegados por verem o rival dar-se a tais liberdades.
Aquela declaração era uma insolência. Onde diabo ia ele buscar à-vontade para se atrever a ir tão longe?
Receio que as nossas acções não estejam à venda, retorquiu o presidente da Royal Dutch Shell num tom gelado.
Mas se falar com o Deutsche Bank talvez eles aceitem chegar a um entendimento consigo.
D' Arcy soltou uma gargalhada límpida, como se tivesse acabado de assistir a uma piada num qualquer sketch de vaudeville.
Os senhores são engraçados!
Ao ouvir esta observação, Kaloust voltou de novo os olhos para o jornal e fingiu interessar-se por um despacho datado de 3 de Julho de 1911, dois dias antes, com novos pormenores sobre a entrada da canhoneira alemã Panther no porto de Agadir, assunto que parecia excitar o articulista. Mas a mente do arménio reanalisava obsessivamente o comportamento do rival e as palavras que proferira naquele curto espaço de tempo. A conclusão era clara; D' Arcy tinha certamente um trunfo escondido na manga. O que seria?
À hora prevista, a porta do gabinete abriu-se e um homem na casa dos trinta e poucos anos, com ar bonacheirão e um charuto fumegante preso entre os lábios, cumprimentou-os e fez sinal aos visitantes para que entrassem.
O gabinete era espaçoso, com uma Union Jack atrás da secretária e um retrato do rei Jorge V pregado à parede. A lei da vida era cruel, pensou Kaloust quando pousou os olhos no retrato de Sua Majestade; rei morto, rei posto. Um septuagenário de cabelo branco e farda escura coberta de medalhas no peito estava sentado na ponta de uma mesa longa e pôs-se prontamente de pé para acolher os três homens do mundo do petróleo que entraram no gabinete.
Gentlemen, apresento-vos o almirante Fisher, disse o jovem anfitrião. Trata-se de um dos mais ilustres lobos-do-mar que esta nação de marinheiros alguma vez produziu!
Sentaram-se todos à mesa e Kaloust estudou-os um a um. Sobre Hendrik e D' Arcy não havia muito para acrescentar ao que já sabia, pelo que analisou com mais curiosidade os seus outros dois interlocutores. O almirante Fisher tinha fama de ser temperamental e muito incisivo nas suas convicções. Dizia-se que o recentemente falecido rei Eduardo VII, a meio de uma discussão com Fisher, lhe chegara a dizer: Gostaria que parasse de brandir o punho diante do meu rosto.
Quanto ao anfitrião, o arménio não sabia bem que retrato deveria fazer dele. O novo Primeiro Lorde do Almirantado, a mais alta posição civil que supervisionava a marinha, parecia-lhe um rapazote que se queria dar ares de homem feito. Era voluntarioso e expansivo, com uma certa tendência para engordar, mas o olhar vivo denotava grande astúcia e sentido de humor.
O assunto que me levou a convidar-vos para esta reunião diz respeito, como devem calcular, a uma opção estratégica que a Marinha Real britânica tem de fazer, declarou o Primeiro Lorde do Almirantado a abrir a reunião. Os nossos navios de guerra vão continuar a usar o carvão como combustível ou devemos mudar para o petróleo?
Petróleo!, vociferou de imediato o almirante Fisher, dando uma palmada ruidosa na mesa. A minha regra de ouro, mister Churchill, é que nunca devemos permitir que alguém nos ultrapasse! Acredito firmemente que só com o petróleo poderemos garantir ...
Vendo o almirante embalado numa apaixonada defesa do seu velho ponto de vista, o Primeiro Lorde do Almirantado, o jovem e ambicioso Winston Churchill, levantou a mão para o travar. Calma, senhor almirante!, interrompeu-o, como um valet a refrear um cavalo tresloucado. Já lhe vou dar a palavra, esteja descansado. Deixe-me apenas apresentar aos nossos convidados a questão como a vejo, para melhor podermos discutir o problema.
Ah, desculpe!, corou o almirante Fisher. Com certeza ...
Tendo reassumido o controlo da conversa, o Primeiro Lorde do Almirantado aspirou tranquilamente o charuto e libertou uma densa baforada perfumada de ervas exóticas.
O nosso governo, como sabem, está dividido quanto a esta questão, afirmou, retomando o raciocínio. O ministro das Finanças, mister Lloyd George, opõe-se ao investimento numa marinha baseada no petróleo por questões financeiras. Não há dinheiro para tudo. Para construirmos os novos navios, teremos de acabar com as pensões de reforma que criámos há apenas dois anos. Ora isso é, no mínimo, uma decisão que ...
Vamos pôr em causa a supremacia britânica nos mares por causa dos velhotes?, indignou-se o almirante Fisher.
É assim que se constrói um império nos dias que correm?
É desse modo que ...
Calma, senhor almirante!, voltou Churchill a dizer.
Deixe-me acabar, por favor!
O almirante Fisher baixou a cabeça, como um menino malcomportado que tivesse acabado de ser apanhado em flagrante com a mão nos rebuçados.
Peço desculpa.
O Primeiro Lorde do Almirantado aspirou de novo o charuto.
Devo dizer que durante muito tempo concordei com o senhor Lloyd George. Mas mudei de opinião. Indicou os jornais arrumados numa mesinha ao lado. Não sei se leram as notícias. Uma canhoneira alemã entrou há dias no porto de Agadir, evidentemente numa manobra provocatória. Este episódio convenceu-me de uma vez por todas de que os Alemães têm uma atitude belicista e querem desafiar a nossa supremacia nos mares.
O almirante Fisher ergueu o dedo.
A Alemanha será o grande inimigo da Inglaterra nos próximos anos, vociferou. Tomem nota das minhas palavras: mais cedo ou mais tarde iremos confrontar-nos em guerra!
Pois, esse é o meu maior receio, anuiu Churchill. Não eram os Romanos que diziam si vis pacem para bellum? Tinham razão! Se queres a paz, prepara-te para a guerra! Se ignorarmos o desafio alemão, um dia acordaremos com os Hunos às portas. Temos por isso de preparar a guerra para assegurar a paz. Fez um gesto que envolveu todos os seus interlocutores. Foi por isso que vos convoquei para esta reunião. O que se passou em Agadir mostrou-me que os Alemães estão na ofensiva. Para os enfrentar, temos de transformar a nossa marinha. Mas será mesmo o petróleo a solução?
Hendrik abriu a boca para responder, mas antes que emitisse um único som já o almirante Fisher embalara.
O petróleo é o único caminho!, sentenciou com intensa convicção. A Alemanha inaugurou a Weltpolitik, ou a política de conquista do mundo, e o Kaiser decidiu que chegou a hora de o país ter uma marinha de guerra ao nível da inglesa. Isso está fora de questão! A supremacia britânica nos mares não pode ser posta em causa de modo algum. Para a manter, temos de modernizar os nossos navios.
Isso nem se discute, senhor almirante, apressou-se Churchill a dizer. O que está em causa é saber se a nossa nova marinha deve assentar no petróleo como combustível. Quais são afinal as vantagens do petróleo?
Antes que fosse de novo ultrapassado pelo almirante Fisher, o presidente da Royal Dutch Shell, ansioso por exibir os seus conhecimentos, apressou-se a responder.
O petróleo é imensamente vantajoso, mister Churchill, assegurou Hendrik. Um navio alimentado a petróleo atinge mais depressa a velocidade máxima do que um navio a carvão. Além do mais, a própria velocidade máxima é maior.
O máximo que os nossos cruzadores a carvão conseguem é vinte e um nós, esclareceu o almirante. Mas os Alemães estão a construir navios a petróleo que atingem os vinte e cinco nós. Numa batalha, a velocidade é um factor crítico, como sabe. Não nos podemos deixar ultrapassar!
Depois há a questão da autonomia, acrescentou o holandês, preocupado com não deixar fugir as despesas da resposta. Um navio a petróleo mantém-se no alto mar durante mais tempo do que um navio a carvão. Além disso, pode ser reabastecido no mar, se as aguas estiverem calmas, coisa que um navio a carvão não pode.
Mas o almirante Fisher não cedeu o controlo da conversa. Na verdade, havia informações sobre aspectos operacionais relevantes para as manobras navais militares que os homens do petróleo não dominavam, pelo que foi fácil recuperar a palavra.
Já reparou, mister Churchill, que os navios a, carvão deixam sempre no ar um rasto de fumo negro? Isso permite ao inimigo aperceber-se à distância da sua aproximação e dificulta qualquer manobra de surpresa. Mas os navios a petróleo não libertam essas colunas de fumo, o que os torna quase invisíveis ao longe. Se os Alemães desenvolvem esses navios e nós permanecemos no carvão, os nossos barcos de guerra serão patos numa carreira de tiro. Depois há o problema da alimentação dos fornos. Esta questão nos navios a petróleo é fácil de resolver, uma vez que o combustível está armazenado em estado líquido e basta encaminhá-lo para os motores. Mas o carvão não é assim, como sabe! Um quarto da tripulação está permanentemente a atirar carvão para os fornos, o que produz grande desgaste nos homens. Já nos aconteceu, no meio de uma batalha naval, ter de retirar homens dos canhões para irem aos armazéns buscar carvão necessário para alimentar os fornos. Isso é perigoso e enfraquece-nos em momentos decisivos da batalha. Mas com o petróleo esse problema não existe.
O Primeiro Lorde do Almirantado ergueu as duas mãos em sinal de rendição e meneou o charuto com os lábios.
Pronto, pronto! Já percebi!, exclamou Churchill. Mas para que precisamos nós de vodka se já temos whisky?
A pergunta provocou um quase sincronizado arquear de sobrancelhas pela mesa.
Perdão?
Esse é o problema que me apresentam no governo sempre que falo na conversão da nossa marinha de guerra para o petróleo. Temos montanhas de carvão no País de Gales, mas nem um pingo de petróleo em todo o nosso vasto império. Porque haveremos de trocar o carvão que temos pelo petróleo que não temos?
Peço desculpa, mister Churchill, disse Hendrik. Mas a Royal Dutch Shell dispõe de concessões petrolíferas em vários pontos do globo. Estamos em perfeitas condições de garantir os abastecimentos.
E a Anglo-Persian também, apressou-se D' Arcy a adiantar. Os nossos poços na Pérsia têm petróleo suficiente para alimenta a nossa marinha guerra durante décadas!
Uma nuvem de fumo foi a resposta do Primeiro Lorde do Almirantado, que parecia dedicar toda a sua atenção ao charuto com que brincava com os dedos.
Isso é muito bonito, disse sem levantar os olhos. Mas, em caso de guerra, o que acontecerá se o inimigo nos cortar as fontes de abastecimento? O que faremos nós?
Aquele cenário extremo mergulhou todos os presentes no silêncio. O problema era real, sabiam, e ninguém parecia ter uma solução evidente. A menos que fosse descoberto petróleo nas terras de Sua Majestade, estava ali o nó górdio do problema.
O que o senhor está a dizer, murmurou o almirante Fisher, é que, se optarmos pelo petróleo, se cria um problema de segurança nos abastecimentos.
Nem mais.
O silêncio voltou, mais pesado que nunca. Foi nesse instante que um dos presentes começou a abanar a cabeça, num movimento que foi ganhando vigor.
Não vejo dificuldade.
Perdão?
Kaloust, que até ali havia permanecido no mais completo dos mutismos, afinou a garganta e inclinou-se sobre a mesa, ganhando proeminência física apesar do seu corpo minúsculo.
Qual é a letra daquela nossa canção patriótica?, perguntou num tom melífluo. Britannia rules!, não é verdade? Pois aí têm a resposta. Britannia rules!
Não percebo, disse Churchill. Onde quer o senhor chegar?
O arménio que adoptara a nacionalidade britânica manteve um rosto inexpressivo, quase como se usasse uma máscara.
Para dominar os mares precisamos de mudar para o petróleo. Dominando os mares, ninguém nos conseguirá cortar os abastecimentos. Aí está a resposta. A supremacia nos mares é um instrumento e é um fim em si mesmo. Percebem?
Todos perceberam, claro. Os outros dois homens do petróleo e o almirante Fisher sorriram perante o brilhantismo simples da argumentação, mas o Primeiro Lorde do Almirantado matutava ainda na equação. Era um problema difícil de resolver.
O que está a sugerir é que, se adoptarmos o petróleo, o problema da segurança do abastecimento se resolverá por si próprio, uma vez que asseguraremos o domínio dos oceanos. Libertou devagar uma nuvem de fumo do charuto. É uma solução tentadora, sem dúvida. Desviou o olhar para o almirante Fisher. O que acha disto?
A resposta foi previsivelmente entusiástica.
Vamos a todo o vapor para o petróleo!
Winston Churchill consultou as suas anotações.
Já temos cinquenta e seis destroyers que dependem exclusivamente de petróleo e setenta e quatro submarinos, contabilizou. A decisão crucial diz respeito aos grandes cruzadores da classe Rainha Isabel, os navios supremos da nossa marinha de guerra. Temos de construir cinco, mas falta uma decisão sobre o tipo de combustível que os alimentará. Se eu optar pelo petróleo, estaremos a dar um passo irreversível sem que a questão da segurança do abastecimento esteja totalmente resolvida. Acham mesmo que é de avançar?
O velho militar indicou Kaloust.
Creio que o senhor Sarkisian já nos resolveu esse problema.
O olhar inteligente do Primeiro Lorde do Almirantado desviou-se por momentos para o arménio. Depois o jovem político levantou-se e foi à sua secretária buscar um papel, que trouxe para a mesa exibiu aos presentes. Era um documento com a ordem formal para construir os cinco cruzadores com base no abastecimento a petróleo. Sentou-se pesadamente no seu lugar, bufou como se tentasse ganhar coragem, extraiu uma caneta do bolso interior do casaco e, com um movimento rápido, garatujou o nome no fim do documento.
Gentlemen, anunciou com uma pompa que lhe parecia natural, a voz arrastada e as palavras a ondularem numa entoação quase musical. A Marinha Real de Sua Majestade acabou de mergulhar no petróleo. Esta decisão tem, como devem calcular, repercussões de grande magnitude. Não as vou enumerar a todas, mas apenas dedicar a minha atenção àquela que vos diz directamente respeito. A questão do fornecimento.
Ah, interrompeu Hendrik, quanto a isso ...
O Primeiro Lorde do Almirantado ergueu a mão sapuda, num gesto imperial destinado a travar o homem da Royal Dutch Shell.
Digam o que vocês disserem, estou a apostar no petróleo antes de ter resolvido o problema do abastecimento, proclamou, erguendo a voz para calar o holandês. Abraçámos deste modo um mar de dificuldades. Apontou o charuto para os seus interlocutores. A Grã-Bretanha só dispõe de dois fornecedores: a Royal Dutch Shell e a Anglo-Persian. Isto é, vocês. Cabe-vos a vós encontrar o petróleo, armazená-lo a um preço acessível e distribuí-lo barato e com regularidade em tempo de paz e com absoluta certeza em tempo de guerra. Fez uma pausa para obter um efeito dramático. Pensem bem. Os seus olhos astutos saltitaram entre Hendrik, Kaloust e D' Arcy como se os despissem. Estão mesmo à altura dessa responsabilidade?
Com certeza!, devolveu Hendrik de modo peremptório. A Royal Dutch Shell dispõe de campos e meios de transporte suficientes para sustentar as necessidades de Inglaterra.
O olhar de Churchill desviou-se para o arménio, obrigando-o a emergir do silêncio atento que tanto apreciava.
Como sabe, sou um jogador solitário, defendeu-se Kaloust. Mas tenho em mira novas concessões que decerto reforçarão o portefólio da Shell e darão tranquilidade ao governo de Sua Majestade.
Está a referir-se à Mesopotâmia?
O homem de Constantinopla arqueou as sobrancelhas felpudas, admirado por ver aquela concessão específica ser directamente mencionada pelo Primeiro Lorde do Almirantado.
Bem ... sim.
Churchill trocou com D' Arcy um olhar carregado de subentendidos que não escapou à atenção dos outros dois homens do petróleo.
Já fui informado de que foi formada uma empresa, essa tal Turkish Petroleum Company, para explorar as riquezas petrolíferas da Mesopotâmia, afirmou o governante, encarando Hendrik e Kaloust com olhos subitamente de aço. Pois eu quero que vocês vendam a vossa parte à Anglo-Persian.
O holandês e o arménio esbugalharam os olhos, na dúvida sobre se teriam escutado bem.
Como?
É do interesse estratégico da Grã-Bretanha que a AngloPersian assuma o controlo dessa nova empresa. Consequentemente, agradecia que pusessem as vossas acções à disposição do senhor D' Arcy para ...
Incapaz de controlar o seu temperamento, Hendrik ergueu-se de rompante, o corpo trémulo de indignação.
Nunca! exclamou, Nunca, ouviu Como se atreve a fazer essa sugestão?
O senhor Van Tiggelen deveria acalmar-se, recomendou o anfitrião. É do seu interesse proceder conforme os desejos do governo de Sua Majestade.
Foi para me dizer isso que me convocou para esta reunião?
Bem ... sim.
O presidente da Royal Dutch Shell estendeu bruscamente a mão e cumprimentou um surpreendido Primeiro Lorde do Almirantado, fez um aceno curto na direcção dos restantes homens e, sem mais, dirigiu-se em passo decidido para a porta.
Esse assunto, para mim, está fora de discussão, sentenciou. Tenham um bom dia!
Os rostos de Churchill e D' Arcy acompanharam-no a atravessar o gabinete, ambos embasbacados com a reacção intempestiva, enquanto Kaloust mantinha a sua habitual expressão impenetrável e o almirante Fisher parecia não perceber bem o que estava a acontecer. Ignorando as reacções, e sem sequer olhar para trás, Hendrik abriu a porta com um gesto ríspido e abalou dali.
O regresso de Krikor a casa foi um triunfo. Havia completado o secundário em Orley Farm com boas notas e aquele momento era para saborear. Permaneceu alguns dias no número 38 de Hyde Park Gardens e aproveitou o resto da estada do seu amigo Roger em Londres, antes de regressar a Belfast, para umas noitadas no West End. O arménio queria ir ao teatro, o irlandês preferia os pubs, pelo que dividiram o tempo entre as duas formas de entretenimento de modo a manterem-se ambos satisfeitos.
Quando Roger partiu, contudo, um certo vazio instalou-se na vida de Krikor. Estava habituado a uma actividade intensa e sempre carregada de afazeres e deveres, pelo que a súbita ociosidade o deixou apoquentado. Acontece que o pai andava por essa altura num vaivém permanente entre Londres e Constantinopla, tratando dos detalhes dos seus negócios. Como o Expresso do Oriente partia de Paris, Kaloust despendia aí boa parte do tempo, sempre alojado na sua suíte do Ritz na place Vendôme, onde continuava a desfrutar dos serviços de uma belle viçosa devidamente cuidada por madame Duprés.
Durante um jantar em casa na sua última passagem por Londres, e logo que a sopa foi servida, o chefe de família apercebeu-se do olhar mortiço do filho e inquietou-se.
Que se passa, Krikor? Porque estás assim?
O rapaz, então com dezasseis anos, encolheu os ombros.
Não é nada.
Não, passa-se alguma coisa. Andas com ar de carneiro mal morto. Que aconteceu?
O filho suspirou.
O Roger voltou a casa e ando para aqui sem nada que fazer, disse. Suspirou. Estas férias são de um tédio insuportável...
O estado de espírito de Krikor deixou o pai pensativo. Kaloust comeu a sopa em silêncio, matutando no que acabara de escutar. Durante longos minutos os únicos sons na sala de jantar foram o tilintar ocasional dos talheres a baterem nas porcelanas e os murmúrios de Nunuphar a distribuir instruções pelos criados.
Quando por fim veio o prato de carne, o patriarca da família já pensara tudo o que havia para pensar, pelo que rompeu o prolongado mutismo.
O que tencionas tu estudar agora?, quis saber. E para que universidade planeias ir?
O filho olhou-o admirado com a pergunta.
Oxford ou Cambridge, claro, retorquiu como se expusesse uma evidência. Haverá mais alguma universidade adequada para quem saia de Orley Farm?
E que curso queres tirar?
Bem ... ando a pensar em meter-me nos estudos clássicos. Toda a minha educação é clássica, coisa que tenho a agradecer-lhe. Falava com um ar sonhador. Sabe, aprecio muito Horácio. Ah, é magnífico! Todas as noites, antes de dormir, sabe o que faço? Leio uma ode de Horácio.
Fez um gesto grandiloquente, como um actor numa declamação. Maecenas atauis edite regibus, o et praesidium et dulce ...
Pronto, pronto!, atalhou o pai, que não estava com disposição para aquilo. Já chega.
Com uma expressão pedante, Krikor fingiu surpresa.
Não gosta?
Kaloust cravou o garfo numa fatia de rosbife que o empregado lhe servia numa travessa e transferiu o pedaço de carne para o seu prato.
Do que não gosto, retorquiu com uma ponta de irritação, é desses teus projectos.
O tom brusco da resposta sobressaltou o filho.
Porquê, senhor? Que mal têm eles?
O chefe da família cortava o rosbife em pedaços pequenos, mas suspendeu a operação e pousou os talheres sobre o prato de modo a concentrar-se totalmente no problema.
Ninguém vive à custa de Horácio nem de estudos clássicos, sentenciou num registo que não deixava margem para discussões. Isso é coisa para diletantes. Os clássicos apenas servem para alimentar as conversas de salão ... e se calhar nem isso. Abanou a cabeça de forma peremptória. Não. Não irás tirar Clássicas coisa nenhuma. Aliás, nem sequer vais para Oxford ou para Cambridge.
Perdão?, espantou-se Krikor, cuja face havia já perdido a cor. Então vou para onde?
Hoje em dia quem quiser ser alguém na vida tem de ter um curso relacionado com a ciência ou com a administração, disse.
Não sei se já reparaste, mas o país que agora assumiu a liderança na área científica é a Alemanha. Pois parece-me que aí está o teu futuro universitário.
O rapaz olhava-o estarrecido.
O quê? Mas eu ... eu nem sequer falo alemão!
Pois vais aprender, e é já!, exclamou Kaloust. A tua vida anda um tédio? Então vais fazer a mala e quero-te o mais depressa possível na Alemanha. Passarás o tempo de férias a aprender alemão e depois irás tirar um curso como deve ser. Vou já falar com um amigo meu para tratar dos pormenores.
Mas ... mas ...
O pai voltou a pegar nos talheres, mas antes de os virar para o rosbife apontou-os na direcção do filho.
Amanhã tenho de ir a Paris, anunciou. Tu vens comigo.
A belle que animava a vida de Kaloust constituía um segredo partilhado por meio mundo, mas, durante a estada em Paris do filho, o chefe da família teve o cuidado de a transferir para um quarto contíguo à sua suíte, de modo a salvaguardar as aparências. O rapaz tinha crescido o suficiente para o pai se interessar mais por ele, até porque encarava Krikor como o seu sucessor natural nos negócios. Cabia-lhe prepará-lo para a tarefa, quase da mesma maneira como madame Duprés instruía as adolescentes para as suas funções terapêuticas no leito da suíte do Ritz.
Parte dessa educação passava pela arte. Por isso, na manhã do segundo dia levou o filho ao Louvre, procurando motivá-lo para o que era belo na vida.
Um gentleman tem de ser um connoisseur, proclamou quando entraram no grande museu. Sem a arte, a existência não tem sal. Sem a beleza, a vida não tem chama.
Percorreram as galerias de uma ponta à outra, sempre com Kaloust a tecer observações eruditas sobre o que viam e a chamar a atenção para os pormenores. Krikor seguia as explicações com um interesse mediano, mais polido do que genuíno, mas só quando chegaram diante do quadro de Auguste Couder a mostrar Napoleão numa visita ao próprio Louvre é que o pai começou a desvendar o véu da parte seguinte da educação parisiense que havia planeado para o seu rapaz.
Napoleão dizia uma coisa muito sensata sobre as mulheres, observou Kaloust enquanto apreciava o instantâneo registado a óleo por Couder do imperador a descer as escadarias do museu. Ficam muito bem na cama e no bidet, mas em mais nenhuma parte.
Krikor sorriu.
Napoleão dizia isso?
Com frequência.
O filho apontou para uma pintura de François Boucher, um pouco mais adiante, mostrando uma mulher nua deitada sobre almofadas e o que parecia ser um tecido de veludo azul. Também servem para posar para os artistas, não acha? Kaloust não respondeu de imediato. Retomou a visita e as explicações sobre a arte exposta no Louvre. Quando, mais adiante, chegaram diante do pequeno quadro de Leonardo da Vinci com o sorriso enigmático da Gioconda, todavia, estacou e deitou a mão ao bolso, de onde extraiu um pequeno cartão que entregou ao rapaz.
O doutor Kemhadjian está à tua espera no seu consultório, informou-o. Tens a morada aí. Aparece esta tarde às quatro horas em ponto.
Tratava-se do médico da família Sarkisian em Paris, pessoa que Krikor conhecia muito bem. Daí que aquele gesto, e a ordem que o acompanhou, o tivesse apanhado de surpresa.
Mas para que preciso eu de ir ao doutor Kemhadjian?, admirou-se. Tanto quanto sei, não estou doente ...
O pai lançou um derradeiro olhar à obra-prima de Da Vinci e voltou as costas, prosseguindo o périplo pelo Louvre.
Vai e aprende.
O doutor Kemhadjian era um homem minúsculo que uma corcunda tornava mais mirrado ainda. Ostentava uma barba grisalha pontiaguda e um nariz adunco, completando assim uma figura de velhaco que parecia extraída de um romance de Charles Dickens ou de Victor Hugo. O seu consultório situava-se num velho edifício da zona de Montmartre, decadente e sombrio. Enquanto se dirigia para lá, Krikor ia-se interrogando sobre os motivos que levavam o pai a manter os serviços de tão desconcertante personagem. Só poderia ser, concluiu perante a evidência, por causa da sua origem arménia.
As escadas de madeira do prédio rangiam a cada passo e foi quase sem fôlego que o jovem alcançou o terceiro andar, aquele em que o intrigante médico escondia o antro escuro a que chamava consultório. Tocou à campainha e uma idosa desdentada abriu-lhe a porta e convidou-o a aguardar num banco de aspecto tão decrépito que o rapaz, com medo de assentar ali o seu peso, preferiu manter-se de pé. Por esta altura as suas interrogações já não incidiam nos motivos que levavam o pai a manter os serviços daquele clínico, mas na razão pela qual ele próprio ali se encontrava. Pois se não estava doente, porque viera ao médico? Ah, o jovem Sarkisian!, exclamou a figura curvada que de repente se materializou no átrio do consultório. Entre, entre!
Krikor obedeceu e encaminhou-se para o gabinete do seu anfitrião. Penetrou num espaço decorado com pouco gosto; havia uma pequena secretária, duas cadeiras, uma marquesa e uma janela com vista para o Sacré-Coeur, Verificou o estado da cadeira diante da mesinha, concluiu que era razoavelmente segura e, não sem alguma apreensão, instalou-se.
Confesso, doutor, que respiro saúde por todos os poros, proclamou o rapaz logo de entrada. Mas o meu pai insistiu que aqui viesse ...
Ah, e fez ele muito bem!, exclamou o doutor Kernhadjian, esfregando as mãos enquanto se acomodava também no seu lugar. Sabe, há questões de saúde que permanecem invisíveis aos olhos e às sensações durante muito tempo. Elas estão lá, claro, mas permanecem escondidas. É por isso importante começar cedo a lidar com elas, de modo a contornar ou adiar certos problemas, está a ver? Na ciência médica chamamos a isso profilaxia. Esboçou um gesto enérgico com o braço. Actuar antes que seja necessário!
É esse o meu motto.
A mim parece-me muito bem, mas... que problemas invisíveis terei eu?
O médico retirou uma folha da gaveta da sua secretária e passou sobre ela um olhar superficial.
Então vamos cá a ver, disse. Preciso primeiro de conhecer a sua história clínica. Febres, diarreias, amígdalas essas coisas que toda a gente sofre em algum momento da infância. Conte-me lá.
Seguiram-se uns bons vinte minutos de conversa em que Krikor expôs as diversas maleitas de que se recordava, embora em muitas circunstâncias fosse aconselhando o seu interlocutor a inquirir a mamã, uma vez que tinha consciência de que Nunuphar estaria mais habilitada a responder a certas questões. Afinal fora ela que o acompanhara em todas as enfermidades de que alguma vez padecera.
O diálogo prosseguiu em tons mornos, com gracejos e histórias que o tornaram inesperadamente agradável. O doutor Kemhadjian era um bom conversador e, ao fim de algum tempo, o seu aspecto dickensiano foi-se diluindo, sobretudo à medida em que ia emergindo o subtil sentido de humor e o seu conhecimento das coisas da vida. A fluidez da troca de ideias só foi interrompida quando, sem aviso nem cerimónias, o clínico entrou numa matéria mais sensível.
Ainda é virgem?
Apanhado de surpresa, o rapaz corou. Aquele constituía, na sua experiência, terreno proibido nas conversas com adultos. O sexo era um tema que aflorava amiúde na interacção com os jovens da sua idade, e em particular com Roger, com quem trocava frequentes impressões sobre as raparigas e o modo de se relacionarem com elas, mas não passava disso. O assunto pertencia a uma esfera tão privada que quase se limitava à intimidade dos lençóis quando a luz se desligava à noite e a alguns momentos de onanismo compulsivo no banheiro ou diante da retrete.
Isso é ... , titubeou, embaraçado. Enfim, não me parece que seja um assunto que ...
É ou não virgem?, insistiu o doutor Kemhadjian com toda a naturalidade, como se lhe perguntasse o que havia comido ao almoço. Já esteve com alguma mulher?
Krikor percebeu que dava nesse instante uma fraca imagem de si mesmo e mudou de táctica.
Não, ainda não, assumiu, sem saber se deveria sentir-se orgulhoso ou envergonhado e entrando no mesmo registo casual do seu interlocutor. Sabe, creio não ter encontrado ainda a pessoa certa.
Era pelos vistos tudo o que o seu interlocutor queria escutar. Com uma destreza surpreendente para quem tinha os movimentos presos por uma corcunda, o doutor Kemhadjian ergueu-se do seu lugar, atravessou o gabinete e abriu a porta.
Já venho.
Voltou-se de costas e desapareceu no corredor.
O médico regressou vinte minutos mais tarde na companhia de uma rapariga morena com um vestido às flores; parecia a bela ao pé do monstro. A moça entrou no gabinete atrás do arménio corcunda com passos hesitantes e uma expressão acanhada, como se estivesse intimidada.
Esta jovem é a mademoiselle Adèle, apresentou-a o anfitrião. Mandei agora a minha empregada chamar um táxi. Pedia-lhe o favor de levar a mademoiselle Adèle até à place de la Madeleine, onde encontrará um estabelecimento chamado Chez Ninou. Trata-se de uma maison de rendez-vous.
O rapaz mal acreditava no que ouvia.
Uma maison de ... , gaguejou. O senhor quer que eu vá para ... para ...
Estou apenas a seguir as instruções que me foram comunicadas pelo senhor seu pai, esclareceu o médico de pronto, preocupado com desfazer equívocos. Já examinei a mademoiselle Adèle e posso garantir-lhe que está tudo comme il faut. Não tem de se recusar com nada. Quando chegarem ao Chez Ninou, o que tem a fazer é dirigir-se à recepção e pedir um quarto. Não mostre um ar assustado ou intimidado, está a perceber? Actue com toda a naturalidade e fale com confiança e convicção, como quem está seguro de si mesmo. Depois de receber a chave, leve-a para o compartimento. Estendeu o braço, dando a conversa por terminada. Passe um bom dia, senhor Sarkisian.
Em menos de dois minutos, Krikor viu-se na rua a entrar para um táxi e a ser conduzido até à place de la Madeleine.
Levou algum tempo a atrever-se a espreitar o rosto de mademoiselle Adele, a quem até então só vira de esguelha. Quando a encarou por fim constatou que se tratava de uma rapariga bonitinha, com uns grandes olhos verde-garrafa e um esgar doce e levemente triste. Mantinha os olhos baixos, tímida e recatada, pelo que foi com enorme surpresa que, a meio do percurso, o rapaz deu com ela a chegar-se a ele, a pregar-lhe um beijo molhado sobre a face e, coisa incrível, que o assustou primeiro e o maravilhou depois, a apertá-lo entre as pernas com mão marota ao mesmo tempo que esboçava um sorriso inesperadamente atrevido.
T' es mignon, toi ...
Foi já com a cabeça a andar à roda, como se tivesse acabado de sair de um carrossel descontrolado, que Krikor entrou no Chez Ninou, pediu o quarto e subiu ao segundo andar. Nem se lembrou de parecer natural nem de falar com convicção, como lhe recomendara o médico. Falou como falou e pareceu como pareceu, a mente exclusivamente ocupada pela francesa, que, com carícias e palavras tenras, o arrastou para além da porta do quarto e lhe abriu todo um novo mundo.
Ah, como era magnifique ter um pai daqueles!
A reunião estava atrasada e Kaloust, a quem não apetecia alimentar conversa com D' Arcy e não desejava falar com Hendrik na presença do rival, pegou na edição dessa manhã do The Times, a data 17 de Junho de 1913 assinalada no cabeçalho, e embrenhou-se na leitura. O jornal trazia, de resto, novidades que lhe interessavam sobremaneira. Na sequência da vitória italiana na Guerra Ítalo- Turca que acabara meses antes e que levara a Itália a apropriar-se da Tripolitânia e da Cirenaica otomanas, uma aliança entre Sérvios, Gregos, Búlgaros e Montenegrinos tinha derrotado os Turcos na Guerra Balcânica. O matutino dava informações sobre o tratado assinado na véspera ali em Londres, referindo que o Império Otomano havia perdido quase todo o seu território na Europa.
Os Turcos, murmurou, devem andar de cabeça perdida ...
Absorvido pelas notícias do jornal, o arménio demorou a aperceber-se que Winston Churchill aparecera enfim.
Os três homens do petróleo cumprimentaram o seu anfitrião e entraram em silêncio no gabinete. A tensão entre todos era palpável e resultava de cerca de dois anos de pressões e conversas de bastidores que haviam produzido ressentimentos e deixado equimoses em toda a gente.
Parecendo subitamente alheio àquele ambiente pesado entre os homens do petróleo, o Primeiro Lorde do Almirantado instalou-se no seu lugar e, de pernas abertas, colou o charuto à boca, libertando uma baforada acre ao mesmo tempo que perscrutava os seus interlocutores com uma expressão de bulldog.
Convoquei esta reunião para resolver de uma vez por todas os diferendos que nos separam, afirmou em jeito de introdução. A Marinha Real britânica, como sabem, já só está a construir cruzadores movidos a gasolina e é minha responsabilidade assegurar-me de que a nossa nação não ficará privada de combustível em tempo de paz e sobretudo em período de guerra. Baixou a voz, tornando-a lúgubre. Porque guerra, meus amigos, é o que aí vem. Libertou uma nova nuvem de fumo. Temos por isso de nos entender. Na certeza porém de que o interesse do país está acima de tudo. Desviou a atenção para o presidente da Anglo-Persian.
William, apresente o seu caso.
William D' Arcy acomodou-se melhor na cadeira, preparando-se para reabrir as hostilidades.
O governo de Sua Majestade não ignora decerto que a Anglo-Persian é verdadeiramente a única empresa petrolífera britânica, afirmou num tom sereno; era evidente que havia preparado cuidadosamente o discurso para a ocasião. A Grã-Bretanha não pode entregar a sua segurança a estrangeiros que, quer queiramos quer não, estão ...
Estrangeiros?, indignou -se Hendrik, percebendo instantaneamente quem o seu rival pretendia atingir.
A Royal Dutch Shell é uma empresa anglo-holandesa sedeada em Londres, caro senhor!
Anglo-holandesa, disse D'Arcy sibilinamente, sublinhando a segunda palavra. Gerida por estrangeiros!
Eu sou holandês, mas estou a adquirir nacionalidade britânica, esclareceu o presidente da Royal Dutch Shell. E o nosso presidente honorário, o honorável senhor Mark Samuel, fundador da Shell, é cidadão britânico!
O adversário torceu o nariz.
Oh, um judeu!
Judeu britânico!
D' Arcy apontou para Kaloust.
E o principal accionista privado da Royal Dutch Shell, devo sublinhar, é o senhor Sarkisian, que por acaso, oh coincidência!, é arménio. Outro estrangeiro.
Kaloust ergueu as sobrancelhas e, em apenas um segundo, as faces coraram.
Peço desculpa!, interveio. Nasci arménio, mas vivo em Londres e adquiri nacionalidade britânica há mais de dez anos. Este é o meu país. Além disso, não vejo que relevância possa uma coisa dessas ter nesta conversa!
D' Arcy fez um gesto apaziguador.
Não se ofendam não pretendo ferir as susceptibilidades de ninguém. Estou apenas a constatar factos. A Royal Dutch Shell tem, como o próprio nome Dutch revela, uma origem e uma ligação holandesas. O seu presidente executivo é holandês, o presidente honorário é judeu e o principal accionista e parceiro é arménio. Todos sabemos que o governo holandês, por questões de posicionamento geográfico, é vulnerável à pressão da Alemanha, país com o qual estamos em rota de colisão e que acabaremos por confrontar em guerra. Entregar o negócio à Shell é, de certo modo, equivalente a entregá-lo ao governo alemão.
Isso é coisa que ...
Como se atreve?, rugiu Hendrik, a voz levantada ao ponto de sugerir que se encontrava à beira de explodir.
A Holanda é uma nação independente e soberana! Mas, mesmo que não fosse, isso nada mudaria, ouviu? A Royal Dutch Shell está sedeada em Londres! Em última instância, quem a controla são os círculos financeiros londrinos, não é a Alemanha! Além do mais, a aliança entre os interesses holandeses e britânicos tem sido crucial para podermos enfrentar a Standard Oil americana. Sem esta aliança seríamos esmagados e a Inglaterra ficaria sem qualquer empresa petrolífera e entregue aos caprichos do senhor Rockefeller. Apontou o dedo acusador ao rival. O senhor D' Arcy está a utilizar métodos duvidosos, para não dizer sujos e de baixo nível, com o objectivo de ...
A mão gorda de Churchill ergueu-se num movimento indolente, tal como a sua característica voz arrastada.
Tenham calma!, pediu, quebrando a altercação. Não se ofenda, senhor Van Tiggelen. Deixe o senhor D' Arcy concluir o seu raciocínio, se faz favor.
Mas ... mas ele acusou-nos de ...
Deixe-o concluir o raciocínio!
Inclinando-se para a frente, Kaloust tocou no braço do seu parceiro a indicar-lhe que se devia conter. O sanguíneo presidente da Royal Dutch Shell- respirou fundo e refreou a custo a tempestade de palavras que lhe engarrafava a garganta. O seu adversário da Anglo-Persian mal suprimiu um sorriso; as coisas estavam a correr-lhe muito bem.
Como eu dizia, antes de ser interrompido de maneira tão pouco polida, a Anglo-Persian é a única empresa petrolífera cem por cento britânica. Dispomos de vastos campos na Pérsia e este ano extraímos umas oitenta mil toneladas de petróleo, projectando duplicar este valor no próximo ano. Fez um gesto de desânimo e afinou a voz. Infelizmente, porém, estamos a deparar-nos com algumas dificuldades financeiras sérias.
Na verdade, é até uma situação desesperada. A prospecção e a exploração de petróleo requerem grandes investimentos e receio bem que as instituições financeiras nos estejam a cortar o crédito. Para agravar as coisas, a refinaria que construímos em Abadan está a dar-nos imensos problemas.
Lamento sabê-lo, disse Churchill com voz pesada. Espero que esses contratempos não ponham em causa a empresa.
Receio que a nossa sobrevivência esteja de facto em questão. A menos que o governo de Sua Majestade se transforme em accionista da Anglo-Persian e disponibilize apoio financeiro, claro. A sugestão arrancou um gesto de enfado ao presidente da Royal Dutch Shell.
Oh, por favor! Não me venham para aqui com os problemas da Anglo-Persian! Isso é que não! Se a empresa não tem dinheiro para se manter viva, porque se vai confiar nela para garantir a segurança dos abastecimentos? Isto é ridículo!
Se a Anglo-Persian cair, não haverá empresas totalmente britânicas neste negócio, insistiu D' Arcy, ignorando o holandês e martelando no mesmo ponto sem cessar. Nessas condições, não está garantida a segurança dos abastecimentos.
A Royal Dutch Shell, vociferou Hendrik, garante esses abastecimentos.
A Royal Dutch Shell não é totalmente britânica, respondeu o rival. Se os Alemães conseguirem pressionar o governo holandês, a Grã-Bretanha fica em maus lençóis!
Não me venha com espantalhos nacionalistas nem histórias da carochinha! A Royal Dutch tem sede em Londres, logo é britânica!
Então porque se chama Dutch?
Agora implicam connosco por causa do nome? E se ...
Os dois competidores voltaram a engalfinhar-se como dois galos em combate, obrigando o Primeiro Lorde do Almirantado a intervir de novo. O anfitrião bateu com a palma da mão na mesa, como se fosse o speaker durante um aceso question time na Câmara dos Comuns.
Meus senhores, ordem!, exclamou, voltando a elevar a voz. Ordem! Churchill deu palmadas sucessivas na madeira até os dois homens se acalmarem. Quando a disputa cessou e o silêncio se impôs por fim, o anfitrião aspirou uma nova baforada do charuto e exibiu uma expressão contemplativa, como um juiz a reflectir sobre o veredicto que se aprestava a proferir. O senhor D' Arcy tem razão. Com uma marinha de guerra assente no petróleo como combustível, a Grã Bretanha precisa de assegurar a sobrevivência de uma empresa petrolífera exclusivamente britânica e tem de evitar situações monopolistas nesse mercado. Consequentemente, vou propor ao governo de Sua Majestade que adquira cinquenta e um por cento das acções da Anglo- Persian. E há ainda ...
Isso é ultrajante!, cortou Hendrik, incapaz de se conter mais. Desde quando é que os governos se envolvem em gestão comercial? Desde quando ajudam umas empresas contra outras?
Desde que é do interesse nacional, senhor Van Tiggelen.
Mas não vê que a Anglo-Persian está mal administrada? Se tem dificuldades financeiras é porque as pessoas à frente dela não são suficientemente competentes. Vai pôr a segurança do seu país nas mãos de gente assim?
A qualidade da administração da Anglo- Persian, receio bem, não é assunto da sua competência.
Se esse problema leva o governo britânico a entrar na gestão de assuntos petrolíferos e a ajudar os meus adversários contra mim, pode ter a certeza de que passa a ser assunto da minha competência!
Faz todo o sentido que o governo de Sua Majestade adquira a posição maioritária na Anglo Persian, senhor Van Tiggelen, argumentou Churchill. Para assegurar os fornecimentos a preços razoáveis, é de toda a conveniência que o Almirantado seja proprietário da fonte de abastecimento ... ou pelo menos que a controle. E se há problemas de gestão, o governo de Sua Majestade, como accionista, nomeará alguns elementos para a administração da Anglo Persian e resolverá o assunto. A minha decisão está, a esse respeito, tomada.
Protesto!, rugiu Hendrik. Isso é concorrência desleal! O governo está a ajudar uma empresa contra outra! Uma tal situação é intolerável num mercado livre!
O Primeiro Lorde do Almirantado lançou um olhar fulminante na direcção do holandês.
Aconselho-o a ser prudente nas palavras, avisou. É que podemos não ficar por aqui. Quando o governo de Sua Majestade assumir a sua posição maioritária na Anglo-Persian terá de tomar uma decisão sobre o futuro abastecedor do combustível de toda a marinha de guerra. É um grande contrato, como sabem. Gostaria que os nossos navios tivessem a Anglo-Persian e a Royal Dutch Shell como abastecedores, até para fomentar a concorrência entre as duas companhias, mas para que isso seja possível é necessária uma coisa da parte da Shell.
Os acontecimentos estavam a ultrapassar Hendrik, que neste ponto já não sabia o que fazer perante o que lhe parecia uma interferência inadmissível no normal funcionamento do mercado. Virou-se para o lado e depositou o olhar desesperado em Kaloust, como se buscasse ajuda. No entanto, o arménio mantinha-se mudo. O seu silêncio não se devia, porém, a qualquer incapacidade de compreender o que se passava. Pelo contrário, por esta altura já tinha relacionado o que escutara ao longo de todas as reuniões e, arguto como era, tudo entendera.
Os senhores querem roubar-nos a Mesopotâmia.
As primeiras palavras do arménio atearam um indisfarçável esgar de desagrado nas faces de Churchill e D' Arcy.
Não ponha as coisas nesses termos, disse o político.
Ninguém quer roubar nada a ninguém.
Tenho estado atento a tudo o que se tem passado neste processo, murmurou Kaloust, falando com uma tranquilidade que contrastava com o tom exaltado das intervenções de Hendrik. Apontou para o anfitrião e para o presidente da Anglo-Persian. Tornou-se para mim evidente que os senhores estão em conluio desde o início.
Oh, que disparate!
É provável que até tenham ensaiado previamente o que cada um iria dizer à nossa frente. Fez um gesto no ar, como se assim apagasse o assunto. Mas nada disso importa. O que precisamos de perceber é qual o compromisso que poderá resolver esta situação. O que pretendem os senhores em concreto?
A pergunta deixou Churchill e D' Arcy incomodados. Vendo o seu plano desmontado pelo pequeno arménio, os dois homens trocaram um breve olhar embaraçado e o Primeiro Lorde do Almirantado teve de engolir em seco antes de responder.
A Mesopotâmia.
A resposta poderia ter feito Kaloust sorrir, mas isso não aconteceu; o assunto era demasiado sério para tal.
Isso, como tive oportunidade de explicar, já eu havia percebido, limitou-se a observar. Mas o que têm vocês em mente? Quais os contornos do negócio que propõem?
O anfitrião recostou-se na cadeira e aspirou o charuto, como gostava de fazer sempre que se sentia a dominar a situação. O poder fascinava-o e ali estava ele a exercê-lo; os seus interlocutores que se preparassem para o que aí vinha. Com a nuvem acinzentada de tabaco a revolutear diante da face, como uma serpente que se meneava pelo ar, inclinou-se sobre a mesa e encarou Kaloust e Hendrik.
É do interesse nacional do Reino Unido que a AngloPersian adquira todas as acções do Banco Nacional da Turquia, da Royal Dutch Shell e do senhor Sarkisian na Turkish Petroleum Company, sentenciou, falando devagar para que a mensagem fosse devidamente entendida. Já falei esta manhã com os responsáveis do Banco Nacional da Turquia, que concordaram vender a sua quota à Anglo-Persian. Eles aliás apressaram-se a sublinhar que o seu negócio é a banca, não o petróleo. Muito sensatos. Portanto, os senhores façam agora o favor de também vender as vossas acções à Anglo-Persian.
Como seria fácil de prever, foi o temperamental Hendrik quem reagiu com mais fervor.
Nunca!
O olhar glacial de Winston Churchill avaliou o holandês como se ele não passasse de uma mosca incómoda, embora fácil de esmagar.
Se o senhor Van Tiggelen tem tanta consideração pelos interesses do Reino Unido como diz, chegou a hora de o provar. Venda as suas acções à Anglo-Persian.
O presidente da Royal Dutch Shell pôs-se de pé, o corpo a tremer de indignação.
Isto é inaceitável! Como podem os senhores voltar a fazer-nos uma exigência dessas? Vou queixar-me ao meu governo! Uma empresa parcialmente holandesa com uma participação legítima numa empresa britânica está a ser sujeita a pressão ilegítima para renunciar aos seus direitos! Isso não pode ser tolerado!
Ah!, exclamou Churchill, sagaz. Então sempre é uma empresa holandesa ...
Parcialmente. Metade holandesa, metade britânica, como nunca escondi. E o meu governo será informado desta nova tentativa miserável de nos afastar do petróleo da Mesopotâmia!
O Primeiro Lorde do Almirantado encolheu os ombros com displicência.
A Holanda a mim não me mete medo.
A si talvez não, retorquiu Hendrik com sarcasmo. Mas pode estar certo de que mete medo a muitos interesses britânicos nas nossas colónias, em particular os vossos empresários com importantes negócios nas nossas Índias Orientais. Esses interesses não ficarão satisfeitos se sofrerem retaliações por parte do governo holandês!
O charuto do anfitrião chegou nesse instante ao fim. Com gestos propositadamente lentos, Winston Churchill foi buscar a uma gaveta uma caixa de havanos e retirou um novo charuto, que cortou na ponta e acendeu com um fósforo. Deixou a nuvem perfumada esvair-se com lentidão pela boca e regressou ao seu lugar, os olhos perdidos num ponto indefinido da sala. Então o que propõem os senhores?
O Banco Nacional da Turquia acedeu vender à AngloPersian as suas acções, não é verdade?, lembrou Hendrik, já mais calmo após perceber que o seu contra-ataque surtira efeito. Estamos a falar de trinta e cinco por cento da Turkish Petroleum Company, a maior fatia da empresa. É um valor muito generoso. Proponho que seja essa a parte da Anglo Persian e a conversa fica encerrada. Churchill abanou a cabeça.
Trinta e cinco por cento não chega, disse. Queremos o controlo da empresa.
O holandês bateu com o indicador nas têmporas.
Vocês estão loucos!, exclamou. Quem vos vai vender o restante?
O anfitrião fez um sinal na direcção de Kaloust.
O senhor Sarkisian dispõe de quinze por cento, não é verdade? Ficamos com eles. Somando essa fatia à do Banco Nacional da Turquia, atingimos os cinquenta por cento. Se a Royal Dutch Shell nos vender um por cento da sua parte, alcançamos a maioria.
A fronte do arménio carregou-se.
Ora essa! A que propósito vos iria eu vender a minha parte?
O senhor Sarkisian é cidadão britânico, não é verdade? Terá de o fazer. Por imperativos de interesse nacional, é essa a vontade do governo de Sua Majestade. Faça o favor de disponibilizar as suas acções Hendrik voltou-se para o aliado.
Proíbo-o de vender a sua parte sem o meu acordo, ouviu?, exclamou o holandês com grande ênfase. Se o fizer é a ruptura total entre nós! Não posso autorizar que a Anglo-Persian tenha o controlo de uma empresa onde a Royal Dutch Shell possua interesses! Isso nunca!
Apanhado no fogo cruzado, Kaloust olhava ora para o presidente da Royal Dutch Shell ora para o Primeiro Lorde do Almirantado.
Mas ... claro que não vou vender. Porque o faria? A Turkish Petroleum Company é uma criação minha! Fui eu que a concebi e arquitectei a sua estrutura. Fui eu que arranjei a solução para alcançar um entendimento com os Alemães, desbloquear o impasse com os Otomanos e conseguir a concessão petrolífera. Acham que aceitaria ser expulso da minha própria empresa?
Vou informar o meu governo do que se está a passar, ameaçou o holandês, de dedo no ar. Esta jogada miserável será travada, doa a quem doer!
Faça como quiser, redarguiu Churchill. Mas se a Anglo-Persian não assumir o controlo da Turkish Petroleum Company, iremos pressionar o governo otomano para que retire a concessão petrolífera à Turkish Petroleum e a conceda à Anglo- Persian.
O presidente da Royal Dutch Shell forçou uma gargalhada estridente.
Quero ver isso! Acha que o Deutsche Bank vai nessa conversa? Os Otomanos nunca farão nada contra os Alemães. E os Hunos não são parvos! Por que motivo autorizariam a perda das concessões da Turkish Petroleum Company?
Fez-se silêncio à volta da mesa. A situação tinha chegado a um impasse e não parecia haver qualquer saída para o braço-de-ferro. Os quatro homens trocavam olhares, mas os argumentos pareciam ter-se esgotado. D' Arcy começou a arrumar a sua pasta e Hendrik seguiu-lhe o exemplo. Foi nesse instante, em que a ruptura parecia de novo iminente, que Kaloust pigarreou, como fazia sempre que tinha algo para dizer.
A minha percentagem na Turkish Petroleum é de facto muito grande, reconheceu. Quinze por cento significa que terei de custear quinze por cento do investimento, o que no negócio do petróleo, como sabem, representa muito dinheiro.
Assim sendo, estou disposto a ceder dois terços da minha fatia se isso ajudar a ultrapassar este impasse.
Os presentes fizeram instantaneamente a conta de cabeça.
Dez por cento?, afirmou D'Arcy, animando-se. Cede-nos dez dos seus quinze por cento?
Se ajudar a resolver este problema, sim.
As atenções do Primeiro Lorde do Almirantado e do presidente da Anglo-Persian voltaram-se para Hendrik.
Senhor Van Tiggelen?
O presidente da Royal Dutch Shell ainda levou um longo instante a considerar a ideia, mas, um pouco a contragosto, acabou por acenar afirmativamente.
Quarenta e cinco por cento é o limiar da maioria, mas não é a maioria. Posso viver com isso. Uma erupção de suspiros e de sorrisos irrompeu à volta da mesa, sobretudo nos rostos de Churchill e de D' Arcy.
A Anglo-Persian não conseguira o que queria, mas ficara lá perto. O acordo impossível tinha acabado de ser alcançado.
Jolly good!, exclamou o anfitrião, levantando-se. Vou ali buscar Scotch para celebrarmos!
Mas antes que o Primeiro Lorde do Almirantado se afastasse o arménio alou a mão e travou-o.
Tenho, no entanto, uma condição.
Churchill estacou a meio caminho e lançou-lhe um olhar desconfiado.
Condição? Que condição?
Para que ninguém tente trapacear ninguém, exijo uma cláusula de exclusividade, disse Kaloust. Todos os accionistas da Turkish Petroleum terão de se comprometer a apenas procurar petróleo no quadro desta empresa. Uma descoberta feita por um accionista em território otomano equivale a uma descoberta feita por todos. E ninguém está autorizado a procurar petróleo no Império Otomano fora do quadro da Turkish Petroleum Company.
O olhar do político passeou inquisitivamente entre os presidentes das duas petrolíferas, como se os consultasse.
D' Arcy e Hendrik entreolharam-se e, não lhes ocorrendo argumentos em contrário, contraíram os ombros, esboçaram um gesto afirmativo com a cabeça e assentiram.
Cláusula aceite.
O acordo finalmente fechado, Winston Churchill foi a uma escrivaninha do gabinete buscar uma garrafa de Scotch e despejou o líquido dourado em quatro copos de cristal que distribuiu pela mesa. Os quatro fizeram um brinde à prosperidade da Turkish Petroleum e, voltando-se para a imagem do rei Jorge V, emoldurada na parede, soltaram um entusiástico God save the King! e engoliram o whisky de uma assentada.
Ao pousar o seu copo na mesa, Hendrik limpou a boca com as costas da mão e voltou-se para o seu aliado arménio.
Veja a coisa pelo lado positivo, Sarkisian, disse com uma gargalhada de alívio. A partir de agora, é o senhor cinco por cento!
A Poppelsdorfer Allee enchera-se de uma multidão ociosa, como sucedia todas as manhãs de domingo naquela alameda central de Bona. Enquanto passeava ao longo da artéria movimentada, Krikor teve a sensação de que se encontrava numa Inglaterra mais disciplinada. Cruzavam-se amigos, lançavam-se acenos, trocavam-se olhares com as raparigas e punham-se as conversas em dia.
Parece a church parade observou o jovem arménio com um súbito sentimento de nostalgia. Em Hyde Park é às vezes assim.
Caminhava pela Poppelsdorfer Allee com Petar, o seu amigo húngaro da faculdade, ambos à caça de uma boa visão feminina como prospectores de ouro a varrer o leito de um rio promissor.
As Fräulein são engraçaditas, admitiu Petar. Mas para raparigas ainda não vi nada que bata a minha pátria. Suspirou. Ah, Budapeste é que é!
Uma boa parte da multidão que formigava pela grande alameda era formada por militares, oficiais e soldados da guarnição de Bona que iam para ali gozar a folga. Os homens fardados caminhavam em pequenos grupos, de boinas ou capacetes Pickelhaube na cabeça, ou então individualmente à conversa com uma rapariga. Sempre que os soldados se cruzavam com um oficial punham-se em sentido, faziam continência com um gesto brusco e permaneciam hirtos como estátuas até que o superior hierárquico se afastasse.
Estes Alemães ... , ciciou Petar com um esgar de desdém. A cultura militarista desta gente ainda um dia irá conduzir-nos à desgraça, vais ver! Mais uns anitos e ... pumba.
É também a opinião do meu pai, observou Krikor despreocupadamente, virando-se para contemplar o traseiro bamboleante de duas loiras de tranças que por ele passaram a trocar risadinhas juvenis. Passa a vida a dizer que a Alemanha está a crescer de mais e que se está a tornar uma ameaça e isto ainda vai acabar mal. Enfim, um pessimista.
Um visionário, diz antes.
A manhã nascera soalheira e um calor saboroso abatera-se sobre a alameda, convidando os transeuntes dominicais ao ócio. Instalaram-se por isso numa esplanada e pediram duas cervejas, que bebericaram enquanto contemplavam a cidade a desfilar diante deles, a brisa suave a temperar o estio.
Os olhos de Krikor fixaram-se a certa altura numa cabeleira dourada que se aproximava pela esquerda. Tratava-se de uma moça vistosa, daquelas que por vezes lhe interrompiam a marcha pela rua, mas depressa se apercebeu, talvez com uma ponta de inveja, que a alemã vinha acompanhada por uma figura de Pickelhaube, um soldado com quem conversava animadamente entre muitos sorrisos. Acompanhou o casalinho com olhos distraídos, tão absortos quanto o próprio soldado alemão, que, sem se aperceber, se cruzou com um oficial e não o saudou, de tal modo ia embrenhado na conversa com a sua loira.
Halt!
O grito do oficial sobressaltou o soldado e o próprio Krikor. Viu à distância o oficial aproximar-se do subordinado com o rosto rubro de fúria, gritar-lhe na cara com tal veemência que os perdigotos mais pareciam chuviscos, apertar-lhe o nariz e torcê-lo, como se o soldado do Pickelhaube fosse um boneco, e dar-lhe sucessivos pontapés no traseiro. Tudo diante da namorada do desgraçado e perante a aparente apatia da multidão, que prosseguia o seu caminho alheia ao sucedido. Ficava-se com a impressão de que semelhante espectáculo era por aquelas paragens coisa natural. Terminada a humilhação pública, o oficial afastou-se e o soldado voltou para junto da rapariga, retomando a conversa no ponto em que a haviam deixado como se nada de anormal tivesse acontecido.
Eu não te digo?, observou Petar, a abanar a cabeça em desaprovação. Este militarismo ainda nos vai conduzir a ruína ...
A vida e a educação na Alemanha revelaram-se muito diferentes daquilo a que Krikor estava habituado em Inglaterra. Graças aos conhecimentos do pai, que havia adquirido peças egípcias notáveis provenientes do Templo de Karnak e assim travara conhecimento com algumas das mais importantes figuras da egiptologia, o rapaz conseguiu alojamento em casa do professor Wilcken, considerado nos círculos académicos o maior papirólogo do mundo.
Na residência do eminente académico nada de particularmente interessante acontecia, até porque o professor passava o dia em redor dos seus preciosos papiros, mas o mesmo não se podia dizer do que sucedia na universidade. Em franco contraste com a sociedade alemã, a disciplina universitária revelara-se surpreendentemente laxista. A presença dos estudantes nas aulas não era controlada por método algum e bastava-lhes matricularem-se no início de cada semestre para poderem dizer que andavam na faculdade. Se o aluno não aparecesse às aulas, ninguém queria saber. Não havia sequer exames e, para obter uma classificação, bastava os estudantes apresentarem uma tese.
Não te deixes enganar pelas aparências, avisara-o Petar logo no primeiro ano, quando se conheceram. Os Alemães vivem exclusivamente para o trabalho e, se reparares bem, os nossos colegas hunos só param de estudar quando têm de comer, ir ao quarto de banho ou dormir. Fez uma careta, como se concedesse num ponto. Vá lá, às vezes vão passear na Poppelsdorfer Allee ou metem-se na Bierhaus para se embebedarem. Tirando isso, o resto é trabalho.
O método alemão não agradava ao arménio. Apesar de não temer o trabalho, Krikor era de opinião que se trabalhava para viver, não o contrário. Consequentemente, o jovem vivia em Bona em conformidade com o que apregoava. À noite ia com frequência às Bierhauser da cidade ou aos cafés com vista para o Reno, sobretudo porque era aí que encontrava as companhias femininas mais receptivas. As alemãs que frequentavam tais estabelecimentos não se mostravam totalmente indiferentes ao charme de um estrangeiro carregado de Reichsmark, como sucedia com Krikor nos dias posteriores à recepção da quantia que o pai lhe remetia todos os meses sem falta.
Foi à custa dessa mesada que o jovem estudante conquistou as atenções de Helga, primeiro, e de Margaretha, meses mais tarde, duas teutónicas loiras e corpulentas de boca marota e hábitos fáceis, ambas amantes de Sekt alemão e do dispendioso champagne francês com que o sedutor seduzido as brindava com profusão.
Todas estas aventuras culminaram num grande sobressalto quando, meses depois de ter deixado de se dar com qualquer das ditas senhoras, Krikor recebeu um ofício estampado com o selo oficial do Reich a comunicar-lhe que a justiça de Sua Majestade, o Kaiser, e na sequência de um processo judicial de paternidade que tinha dado entrada nos seus serviços, deliberara condená-lo ao pagamento de cinco marcos por semana à senhora Helga Hellmann por cada um dos três filhos que ela recentemente dera à luz, os pequenos e inocentes Caspar, Balthasar e Melchior, três anjos celestiais cuja paternidade fora inequivocamente atribuída ao senhor Krikor Sarkisian, cidadão de nacionalidade britânica actualmente a residir em Bona.
O quê?
O jovem estudante reagiu com compreensível pânico a tão desconcertante condenação. Desvairado, sem saber o que fazer, vendo o futuro antes risonho descarrilar sem apelo e imaginando já o pai a deserdá-Io e a cobri-lo de mil injúrias e punições, foi ter com o professor Wilcken, em cuja casa vivia desde que chegara a Bona, e à beira do pranto expôs-lhe o problema e implorou conselho avisado.
E agora?, repetia com desespero, comiserando-se na sua má sorte. O que vou eu fazer, Herr Professor Wilcken? Como me poderei safar desta? Acha que devo solicitar a intervenção de um advogado?
O eminente papirólogo não respondeu de imediato. Fiel à sua justa reputação de académico meticuloso e genial nos pormenores, dedicou ao documento oficial a mesma atenção miudinha que empregava na leitura dos hieróglifos que tanto amava.
Com tamanho cuidado esquadrinhou o ofício, estudando até a forma das vírgulas e a sintaxe do texto, que acabou por descortinar um detalhe suspeito no topo da folha, mais concretamente uma anomalia no selo do Reich.
Quantas pessoas estavam ao corrente da sua relação com esta senhora Helga Hellmann?, quis saber. Refiro-me a pessoas do seu círculo, naturalmente.
Apenas o meu amigo Petar, assegurou o seu protegido. Apesar das noitadas na Bierhaus, tive sempre imenso cuidado em ser discreto. E o Petar é pessoa recatada.
O professor Wilcken esboçou um sorriso.
Não se preocupe com isto, disse, devolvendo a folha a Krikor. Se fosse a si ia falar com esse seu amigo.
Porquê? O que tem ele a ver com isto?
Caspar, Balthasar e Melchior, lembrou o grande papirólogo, são os nomes dos três Reis Magos. Ou seja, e a menos que o senhor seja uma figura bíblica, não vejo motivos para se ralar.
O quê?
O sorriso do anfitrião tornou-se condescendente e o seu esgar divertido desviou-se para o documento que Krikor ainda segurava com mãos trémulas.
Isto, mein Herr, não passa de uma partida de garotos.
Naquela manhã quente de sábado só se falava no assassinato do arquiduque Francisco Fernando e da mulher numa rua de Sarajevo. O assunto enchia os jornais alemães de páginas inflamadas de sangue e de justas exigências de justiça e retribuição e pelas ruas de Bona não havia quem não opinasse sobre a lição que os Austríacos teriam de ministrar aos Sérvios como paga por aquela vil infâmia.
Krikor lembrava-se bem de ter avistado a vítima em Londres a representar o imperador austro húngaro nos cortejos que acompanharam o funeral do rei Eduardo VII e na subsequente coroação de Jorge V, mas o assunto não o entusiasmava por aí além. Tinha sido morto o príncipe herdeiro do Império Austro-Húngaro, E daí? Morrera um príncipe, logo outro avançaria para o seu lugar. Para quê tanta excitação? Que relevância poderia ter tal acontecimento, embora trágico para os intervenientes, na sua vida?
Indiferente ao grande tema do momento na Alemanha, que acreditava seria em breve relegado para o esquecimento pela incessante voragem da vida, o jovem arménio preferiu nesse dia dar o seu habitual passeio a cavalo ao longo das margens do Reno. A manhã nascera agradável e muita gente circulava prazenteiramente pela erva coberta de orvalho, uns para admirar os patos que chapinhavam na água gorgolejante do rio, outros a saborearem o sol que acariciava a floresta com o seu hálito acolhedor.
Depois de atravessar um renque de carvalhos, o cavaleiro cruzou-se com uma rapariga morena que caminhava à beira-rio à conversa com uma mulher mais velha. Notou que, de um modo familiarmente exótico, ela era bela, mas não lhe captou a atenção e, vencendo a breve frustração, levantou o olhar distraído para o rio. De repente, e com um movimento brusco da cabeça, arrebitou as orelhas. O que lhe prendeu a atenção, além da graça natural da morena, foi tê-la surpreendido a pronunciar, no meio de um rumor indistinto do diálogo escutado à distância, as palavras yerek e hyuranots, que reconheceu das conversas entre os seus próprios pais como significando ontem e hotel.
Ao identificar os dois termos que lhe eram tão familiares, o rapaz puxou de imediato as rédeas para travar o cavalo e fez meia volta. Guiando a sua montada em passo suave, aproximou-se das duas mulheres. Ao chegar ao pé delas, inclinou-se para a morena que lhe tinha chamado a atenção.
Entschuldigung, meine Damen, disse no seu melhor alemão, pedindo desculpa pela intromissão. Ter-me-ei equivocado ou as senhoras estavam a falar arménio?
As duas mulheres fitaram-no com surpresa.
De facto, conversava em arménio com a minha mãe, reconheceu a rapariga num alemão hesitante. Como sabe?
Um sorriso luminoso abriu-se no rosto de Krikor.
É que os meus pais são arménios, revelou, falando já no seu arménio defeituoso, carregado de erros e colorido por um denso sotaque britânico. Eu próprio professo a fé da sagrada igreja arménia e considero-me arménio, apesar de ter nacionalidade britânica.
Mãe e filha mostraram-se encantadas por travar conhecimento com um patrício num sítio tão pouco provável como as margens do Reno, até porque a todos se afigurava muito remota a possibilidade de encontrar arménios por tais paragens. Depois de trocarem amabilidades com o estranho, as duas apresentaram-se como Arshalous Kinosian e a sua filha Marjan e comunicaram-lhe que estavam de passagem por Bona por razões de saúde.
O meu marido sofre dos pulmões, coitado, revelou a mãe. Existe aqui em Bona um especialista que quisemos consultar. Eu e a minha filha viemos para dar apoio ao meu Hagop.
Estou ao vosso serviço para o que entendam necessário, afirmou Krikor com o floreado próprio de um gentleman.
Um arménio deve sempre ajudar outros arménios, sobretudo estando todos em terra estrangeira, não vos parece?
Arshalous trocou com a filha um olhar fugidio e pleno de mensagens subentendidas.
Agradeço a sua gentileza, disse. Para já não precisamos de nada. Hesitou, mas Marjan soprou-lhe uma palavra ao ouvido e deu-lhe um toque com o cotovelo para a encorajar a ir até ao fim. Sabe, vamos dar amanhã um almoço em honra do médico que está a tratar do meu marido. Porque não se junta a nós? Os pratos vão ser arménios ...
As duas ficaram a observá-lo, na expectativa. O convite era inesperado, mas Krikor percebeu que se lhe abriam ali caminhos para paragens interessantes, morenas decerto.
Por Deus, é uma honra, aceitou ele, lançando um olhar agradado à mais nova das duas. Por nada deste mundo perderia tão magnífico acontecimento.
Os Kinosian haviam alugado uma casa com vista para o Reno, não muito longe do local onde as duas mulheres se haviam cruzado com o seu conterrâneo. Tratava-se de uma vivenda gótica com telhado pontiagudo e fachada branca entrecortada por traves de madeira, como era comum nas construções tradicionais germânicas; havia um emaranhado de heras a abraçar as janelas, como se a natureza se tivesse apropriado daquela obra humana, e um alpendre cobria-se de plantas com as pontas suspensas no ar.
Devorado pela ansiedade de voltar a ver a morena que lhe devolvera o olhar, Krikor chegou quinze minutos adiantado e deu com a casa em plena laboração. As mulheres haviam-se fechado na cozinha a ultimar o repasto, pelo que foi recebido por Hagop Kinosian. Tratava-se do anfitrião, o homem que arrastara mulher e filha para a Alemanha e que, beneficiando do estatuto de chefe de família, ainda por cima doente, se descontraía no sofá a saborear um cálice de cognac arménio.
O que anda um arménio a fazer por esta terra?, quis saber Hagop, depois de entregar um outro cálice de cognac ao seu convidado. Espero que não esteja também doente ...
A respiração de Hagop era entrecortada por curtas pausas; tornava-se evidente que sentia algumas dificuldades respiratórias e que isso impedia a fluidez do discurso, mas não constituía problema que perturbasse o seu interlocutor.
Não, claro que não, devolveu Krikor, lançando olhares mais ou menos discretos em direcção à cozinha para tentar vislumbrar Marjan. Vim estudar Engenharia para a universidade.
A revelação incendiou o olhar do anfitrião.
Ah, Engenharia! Um dia, quando a nossa santa Arménia for independente, vamos precisar de engenheiros, gente qualificada que ponha o país a andar!
Acha mesmo que esse dia chegará?
Então não?, exclamou Hagop num tom quase escandalizado por ver um arménio levantar tal dúvida. Por Deus, se Sérvios, Búlgaros, Gregos, Montenegrinos, Macedónios, Albaneses e toda essa gente está a livrar-se das garras dos Turcos, porque não nós? Porque haveremos de ser diferentes?
A pergunta era retórica, mas Krikor achou que ela talvez tivesse resposta.
Porque a Arménia fica na Ásia, não na Europa, notou.
Não sei como os Turcos reagirão a quaisquer aspirações da nossa parte ...
Oh, claro que não vão gostar! E depois? Com a ajuda das potências ocidentais e da Rússia, não poderão fazer nada. Além disso ...
Política não, disse a mulher da porta da cozinha, interrompendo a conversa. Estamos aqui para homenagear o doutor Himmel, não para discutir esses disparates. Ele deve estar a chegar. Apontou para a porta. Faltam cinco minutos para a hora marcada e sabes como são os Alemães com a mania da pontualidade ...
Ah, tens razão, Arshalous! Olhou em redor, para se certificar. Tens tudo pronto?
A mulher desapareceu para lá da porta. Tinha voltado para a cozinha e a sua voz tornara-se longínqua.
A Marjan atrasou-se um pouco com as khourabia, mas como é para a sobremesa não tem importância. Mais dez minutos e ficará tudo pronto a servir. Vai lá para a rua esperar o doutor Himmel.
O dia mudara em relação à véspera e tornara-se agreste. Um céu denso cobria o Reno de tonalidades metálicas, um tom tristonho e melancólico. Uma brisa fria descia pelo rio, desagradável e húmida, chicoteando as folhas que saracoteavam pelo ar como borboletas irrequietas. Os dois arménios, um jovem e o outro de meia-idade, puxaram as golas dos casacos para melhor se protegerem da nortada, e ficaram a esquadrinhar a rua à espera do convidado principal.
De onde é você, caro Sarkisian?
Nasci em Constantinopla, redarguiu Krikor, mas fui educado em Inglaterra, para onde os meus pais fugiram quando eu tinha apenas algumas semanas de vida. Sabe, vim ao mundo durante os massacres de 1896.
Ah, lembro-me bem. Foi terrível. Fez uma pausa, talvez a lembrar o que se passara nesse ano e os familiares e amigos que havia perdido às mãos dos Turcos. De onde eram os seus pais? Também de Constantinopla?
As famílias do meu pai e da minha mãe são oriundas de Kayseri. Eles ...
Hagop arregalou os olhos.
Kayseri? Por Deus, nós também somos de Kayseri!
A sério? Que coincidência ...
O anfitrião riu-se.
A coincidência é algo que Deus provoca quando não quer que Lhe vejamos a mão, devolveu. Uma coisa destas só pode ser o destino, meu caro. Estou convencido que ... olhe, já ali vem o doutor Himmel.
Faltava um minuto para as treze horas quando a figura de um homem corpulento de barba rala apareceu na rua de Bundhosen com suspensórios, chapéu verde alpino à maneira bávara e bengala na mão. Tratava-se do médico que estava a tratar de Hagop, tão pontual para o almoço como para as consultas com os pacientes.
A refeição preparada pelas Kinosian tinha um travo familiar ao paladar de Krikor. A dona da casa serviu uma sopa arganak e um kchuch de carne que o visitante arménio devorou com evidente entusiasmo e o alemão com disfarçada relutância; tornou-se evidente que o doutor Himmel preferia as suas Brattwurst àqueles estranhos pratos orientais, mas teve suficiente tacto para não o confessar.
O principal tema de conversa incidiu naturalmente na grave situação internacional gerada pelo homicídio do arquiduque e da mulher alguns dias antes, gerando-se um consenso à mesa de que o bom senso irá prevalecer e no fim todos perceberão que não é com guerras que as coisas se resolvem.
Como parecia natural, o casal anfitrião concentrou as suas atenções no médico. Afinal era a ele que deviam favores e por ele que organizavam aquele almoço, mas Krikor e Marjan, evidente mente alheados da tensão internacional e dos pormenores dos problemas de saúde de Hagop, mostravam-se mais interessados um no outro, embora dentro dos limites da circunspecção que deles se esperava. a jovem foi lançando à rapariga durante toda a refeição olhares intermitentes, mas inequivocamente directos, a que ela correspondeu com risadinhas tímidas e esgares mais ou menos disfarçados.
O discreto jogo de sedução prolongou-se até à chegada da sobremesa, umas khourabia preparadas pela própria Marjan e muito elogiadas pelos comensais. Já perto do final da refeição, porém, a conversa dos pais desviou-se para o rapaz de uma maneira que deixava perceber que o casal não estava tão distraído como parecia quanto ao que se passava entre os dois jovens à mesa.
Sabias de onde é a família do Krikor?, perguntou Hagop à mulher, lançando o tema para a discussão. De Kayseri.
Não me digas!, admirou-se Arshalous. É, extraordinário. Encarou o seu convidado com um olhar inquisitivo.
Como se chama a sua família?
Sarkisian da parte do meu pai, disse Krikor num tom neutro, Berberian da minha mãe.
Este último nome arrancou um som aspirado das bocas e um arregalar de olhos no casal anfitrião.
Berberian? Não me diga que são os Berberian do ... da ... do banco em Constantinopla e do hotel...
Pera, completou o rapaz. Hotel Pera. São esses mesmo. Foi aliás o meu avô que mandou construir o hotel.
Passado o choque suscitado por esta revelação, a senhora Kinosian quase bateu palmas de excitação e, arrebatada pelo entusiasmo, não conseguiu reprimir uma olhadela na direcção da filha, como se se quisesse assegurar de que ela tinha ouvido a muito interessante novidade. Que partidão, aquele rapaz!
Ah, que curioso!, exclamou. Conheço muito bem!
São gente ... enfim, pessoas de muito dinh ... uh ... prestígio.
Voltou-se para o marido. Tu conheces alguns Berberian, não é verdade?
Da Câmara de Comércio de Kayseri, assentiu Hagop, igualmente impressionado pelas origens do rapaz, embora mais comedido na sua reacção. Ainda no ano passado tivemos uma reunião e troquei umas impressões com eles. Gente de elevadíssimo nível, sem dúvida.
A conversa percorreu durante longos minutos a vida dos Berberian e os seus feitos no mundo dos negócios, da alta finança, da hotelaria e da navegação. Não se podia dizer que Krikor estivesse inteiramente desagradado com isso; o tema servia para fortalecer a sua posição naquela família e garantia que os Kinosian não iriam levantar obstáculos desagradáveis e desnecessários à sua aproximação à bela Marjan.
Não era a mãe dela que o olhava como se fosse já o seu genro? Decerto isso não prejudicaria as suas hipóteses junto da rapariga. Que arménia de Kayseri, ou mesmo de todo o Império Otomano, desdenharia o interesse de um Berberian?
Não era preciso ser muito perspicaz para perceber que a intuição de Krikor tinha todo o fundamento. Quando o almoço foi dado por terminado e os visitantes se despediram e saíram à rua, as atenções do casal anfitrião já não estavam centradas no médico, mas nas promessas encerradas no jovem que deles se despedia.
Apareça, atirou Hagop quando o rapaz já abalava pela rua. Apareça sempre!
Aparecer foi coisa que Krikor não deixou de fazer nas semanas que se seguiram. Quando os estudos o permitiam, e obrigatoriamente aos fins-de-semana, dava um salto à casa gótica sobranceira ao Reno para umas horas bem passadas com os Kinosian. Tornou-se um habitué e Arshalous passou até a preparar diariamente baclavas para lhe oferecer sempre que lhes batia à porta.
As visitas tornaram-se uma rotina, embora por vezes adquirissem aspectos de tortura. O casal anfitrião desfazia-se em amabilidades para com o seu jovem visitante e Krikor apreciava todas essas atenções, mais as baclavas da ordem.
O que ele queria mesmo, no entanto, era uma oportunidade para estar a sós com a filha. Ambos trocavam constantemente de olhares, mas em momento algum os pais a deixaram sem vigilância com o rapaz. Krikor percebeu que teria de ser paciente; afinal as pessoas de Kayseri eram provincianas e tinham hábitos profundamente conservadores. Não eram arménios das zonas rurais que nem deixavam as noivas ver os seus futuros maridos antes do dia ao casamento? Já muita, sorte tinha ele de lhe ser permitido partilhar a mesma sala com Marjan. O que quereria mais? Que ela se comportasse como Helga ou Margaretha? Se o fizesse, não seria Marjan decerto.
Estavam as coisas neste estado quando, um mês depois daquele primeiro almoço, Krikor voltou à casa do Reno para mais uma visita carregada de esperanças de passar uns momentos a sós com a moça. Havia noites que mal conseguia dormir a pensar nela e vivia todos os momentos longe de Marjan como se algo lhe faltasse na vida, sentimento que se desvanecia quando se juntava a ela.
Depois de nesse dia ser atendido à porta por uma apressada Arshalous, todavia, deparou com a família Kinosian a arrumar as suas coisas em duas grandes arcas depositadas no meio da sala. Procurou Marjan com o olhar, mas viu-a cabisbaixa e percebeu que havia algo de errado.
Que se passa?, perguntou com uma ponta de ansiedade.
Sucedeu alguma coisa?
As duas mulheres trabalhavam afincadamente, mas Hagop parecia apenas fingir que arrumava uns papéis.
O doutor Himmel comunicou-me esta manhã que neste momento já não pode fazer mais nada por mim, revelou.
Disse que temos de dar tempo ao tratamento para funcionar e aconselhou-me a voltar cá no próximo ano para fazer o ponto da situação e estabelecer-se então um novo programa de terapia. Ele acha que o clima na Arménia deve até ser vantajoso para o meu tipo de problema pulmonar. Olhou em redor. Este sítio é demasiado frio e húmido, de facto.
Mais vale prosseguir o tratamento lá em casa e só voltar a Bona quando for necessário.
O que quer isso dizer?
Hagop respirou fundo e os seus pulmões debilitados deixaram escapar um longo assobio desafinado.
Quer dizer, meu caro Sarkisian, que vamos regressar a Kayseri, anunciou. Já amanhã.
O anúncio foi recebido por Krikor com a força de um murro desferido de surpresa. Acabara de conhecer Marjan, sentia-se fascinado por ela e via o seu interesse retribuído. O que acontecia então? O pai da rapariga preparava-se para voltar para o Império Otomano e arrastava a família, e em particular a rapariga, consigo. Como era possível que o destino lhe pregasse semelhante partida?
Atirou-lhe uma repentina mirada de desespero, quase como se lhe lançasse uma súplica silenciosa, mas dessa vez Marjan não lhe retribuiu o olhar. Baixara as pálpebras e, ultrapassada pelos acontecimentos, virou-se para esconder o que sentia; não foi, contudo, suficientemente lesta no seu movimento e o rapaz ainda lhe descortinou uma lágrima fugidia a brotar do canto do olho brilhante. Foi nesse instante, quando percebeu que a ia perder e que isso a abalava a ela tanto quanto a ele próprio, que Krikor tomou enfim consciência da terrível verdade.
Estava apaixonado e não sabia se a voltaria a ver.
Uma lágrima amarga desliza pelo rosto lácteo de Marjan no momento em que se vira uma derradeira vez para trás e fixa os olhos brilhantes em mim, parece querer imprimir-me na sua memória como se fosse a última vez que me visse. É um mero olhar mas dá a impressão de um eterno adeus. Tento libertar-me da minha letargia e aproximar-me, correr para ela, prendê-la a mim, abraçá-la, apertá-la para não mais a largar mas é como se uma força invisível me travasse, e tolhesse os movimentos, me impedisse de dar sequer um passo. Vejo-a mexer os lábios carnudos e murmurar o meu nome…
Krikor!...e sinto-me desesperar. Quero gritar por ela, Marjan!, agarrá-la e colá-la ao meu corpo, impedi-la de entrar no comboio que a vai levar para outras paragens, que a vai transportar para Constantinopla, que a vai roubar para longe de mim, mas não posso mexer-me, não consigo falar, nem sequer fazer um sinal. Algo me prende, estou paralisado, impotente, afogado em emoção, os sentidos embotados, o corpo atordoado, um nó na garganta. Vejo-a virar as costas com tristeza, devagar, devagar, e afastar-se em postura resignada, subir cabisbaixa para a composição, desaparecer para lá da porta e sinto-me desesperar, abandonado e perdido, submerso pelo desgosto e devastado pela saudade.
E ela grita de novo.
Krikor!
O som do meu nome em voz de mulher irrompeu-me enfim na consciência e dei um salto, surpreendido e estremunhado.
O quê? O quê?, balbuciei, atarantado. Que foi?
O vulto diante de mim apareceu momentaneamente desfocado, mas depressa a imagem se definiu e vi madame Duprés encostada à borda da cama, de camisa de noite, olhando-me com preocupação.
Ouvi um grito e assustei-me, disse ela num tom compassivo. Mon petit pauvre, estavas a chorar ...
Passei a mão pelo rosto e constatei que de facto se encontrava molhado, sobretudo no canto dos olhos.
Que estupidez!, exclamei, surpreendido e algo envergonhado. Sonhava com a ... com a ...
Sonhavas com a rapariga que conheceste em Bona?
Sim.
Madame Duprés afagou-me o cabelo, meiga e maternal, como uma mãe a confortar o filho doente.
Bateu-te forte no coração, não foi?, sussurrou. Apesar do tom de pergunta, na verdade fizera uma afirmação. Sonhas muito com ela?
Pousei o olhar nas resmas de folhas dactilografadas que se encontravam espalhadas pela cama; algumas haviam até escorregado para o chão, formando rectângulos brancos sobre o tapete e o soalho do quarto do Hotel Aviz.
Uma delas, a primeira, estava pousada mesmo aos pés de madame Duprés, o título em letras garrafais a anunciar O Homem de Constantinopla.
Foi ... foi a leitura das memórias do meu pai, expliquei, esboçando um gesto na direcção das folhas desarrumadas à minha volta. Que disparate! Adormeci a lê-las ...
A velha secretária do meu pai baixou-se e apanhou algumas delas.
E então?, quis ela saber, detendo o olhar curioso nas linhas escritas à máquina. O que achaste do livro?
Ele conta como foi a sua infância e juventude, como se interessou pelos negócios e pela arte, como começou a subir na vida, as perseguições dos Turcos, as mulheres e ... e ... Madame Duprés levantou de repente os olhos e fixou-me com atenção, como se me perscrutasse.
As ... as mulheres?, balbuciou, uma ponta de ansiedade na voz a traí-la. O que escreveu ele aqui sobre elas?
Tudo. Escreveu tudo.
Inclusivamente que ...
Tudo.
A idosa enrubesceu, embaraçada com o que estava implícito no tom firme da minha resposta e tomando consciência de que já não havia segredos entre nós. Eu conhecia o seu verdadeiro papel na vida do meu pai.
Ouve, Krikor, quero-te dizer que tudo o que eu…
Não tem explicações a dar, interrompi-a. Sei que o meu pai não é santo nenhum, embora não possa deixar de reconhecer que fiquei chocado com algumas das coisas que li em O Homem de Constantinopla. Encolhi os ombros.
Mas nestas circunstâncias nada disso verdadeiramente importa. Atirei uma expressão inquisitiva na direcção da porta. Como está ele?
A francesa suspirou, desalentada.
Voltou a mergulhar no coma, receio bem.
Fez-se um silêncio pesado entre nós. O doutor Fonseca fora muito claro no seu diagnóstico e ambos tínhamos plena noção de que a morte rondava o meu pai e em breve o levaria com ela. Provavelmente não voltaria a despertar; estava destinado a morrer no seu quarto de hotel, aqui em Lisboa, a cidade que escolheu para passar os últimos anos da sua atribulada vida.
Peguei nos papéis desarrumados sobre a cama e comecei a empilhá-los.
É incrível as coisas que ele sabia sobre mim, observei.
A descrição da minha infância e até da forma como conheci Marjan é de um rigor desconcertante.
Já te disse que ele descobriu o teu diário. Além disso, contratou um detective para investigar o teu passado.
A sério?
Queria saber tudo sobre ti, de modo a enlaçar a história dele com a tua. E não deixou ninguém ver o que escreveu. Tu és o primeiro a ler o texto.
A resma de O Homem de Constantinopla estava já completa.
Ajeitei as bordas das páginas, alinhando-as com cuidado, e inclinei-me sobre a mesinha-de-cabeceira, onde se encontrava a segunda resma de papéis. Peguei nela e troquei-a com a primeira.
Acho que não vou conseguir adormecer tão depressa, constatei, contemplando a segunda resma que as minhas mãos acariciavam com surpreendente impaciência. Vou ler o resto da história.
O anúncio fez madame Duprés perceber que eu desejava ficar sozinho. Com a elegância discreta que caracterizava a sua pose, mesmo em idade tão avançada, ajeitou o vestido de noite e deu meia volta.
Vou-me deitar, mon chéri, anunciou. Até amanhã.
Saiu para o corredor e fechou delicadamente a porta, deixando-me a sós com o segundo volume das memórias do meu pai. As bátegas de água continuavam a bater na janela, tamborilando furiosamente no vidro; chovia sem parar em Lisboa, o que tornava mais acolhedor o meu quarto no Aviz.
Compus as almofadas e -encostei-me a elas, orientei a luz amarelada do candeeiro da mesinha-de-cabeceira, pousei no regaço a resma de papéis e ganhei balanço para recomeçar a ler. Passeei os olhos pela primeira folha e, com um estranho deleite vertido num suspiro de prazer antecipado, saboreei as mil promessas que as páginas e o título encerravam.
Um Milionário em Lisboa.
Conclusão de O HOMEM DE CONSTANTINOPLA
José Rodrigues dos Santos
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