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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM MILIONÁRIO EM LISBOA / J. R. dos Santos
UM MILIONÁRIO EM LISBOA / J. R. dos Santos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM MILIONÁRIO EM LISBOA

Primeira Parte

 

Um grito lancinante rompeu a noite.

Ainda mal tinha começado a folhear o segundo manuscrito do meu pai quando fui surpreendido pelo terrível bramido, longo e prolongado, como o uivar de um lobo. O som vinha do corredor e, passado o susto inicial, percebi que era a voz de madame Duprés. Alarmado, pulei da cama, atirando as folhas pelo ar e deixando-as espalharem-se pelo chão, e ainda de pijama saí disparado do quarto. Apercebi-me de que uma porta estava entreaberta, era a suíte D. Filipa de Lencastre, onde o meu pai residia, a luz do interior recortada num rectângulo amarelado que se desenhava pelo chão. Corri para o quarto. Ao entrar deparei-me com a velha senhora de joelhos no chão, curvada sobre si mesma e a tremer, prostrada aos pés da cama, onde ele permanecia deitado.

"Que se passa?", perguntei. "O que aconteceu?"

Um gemido de dor foi a única resposta.

Levantei os olhos para a cama e, pressentindo o pior, percorri com o olhar o vulto imóvel sob os lençóis. Precipitei-me sobre o meu pai e a primeira impressão que tive foi que repousava com serenidade, alheio ao bulício histérico que se desencadeara em seu redor. Senti-me momentaneamente aliviado, mas foi apenas um instante porque de imediato notei que ele tinha as pálpebras entreabertas de um modo estranho, com as pupilas vidradas num ponto indeterminado do tecto; era como se olhassem sem ver. Foi nesse momento preciso que senti o baque.

"Pai!"

Tenho uma vaga lembrança do turbilhão de sensações e de acontecimentos que se atropelaram de seguida numa espécie de sonho letárgico, formando uma amálgama confusa de imagens, impressões, emoções e vozes. Recordo-me de o ter abraçado e de só o largar quando as enfermeiras me arrancaram dele e me atiraram para um sofá junto à janela antes de lhe dedicarem toda a sua atenção. Ali sentado, abatido e despojado, vi com impotência instalar-se um corrupio de gente a entrar e a sair da suíte. Primeiro foram apenas as enfermeiras numa azáfama de moscas em torno da cama, depois surgiram os empregados do hotel, outros hóspedes espreitaram da porta, veio o próprio gerente, apareceu o médico, dois polícias passaram por ali e mais tarde o advogado e um pároco católico.

Logo que se tornou evidente que nada havia realmente a fazer, tudo acalmou e a roda-viva deu lugar a uma tranquilidade feita de sussurros lúgubres. Apresentaram-me as condolências, alguém disse "perdeu-se um grande homem", o médico afirmou que "a ciência nada mais podia fazer por ele", o pároco observou que se havia consumado "a vontade do Senhor" e, no meio de tudo aquilo, o advogado mencionou o testamento, sublinhando ser "de toda a conveniência ler o seu conteúdo o mais depressa possível". Achei a observação desadequada e até impertinente, dadas as circunstâncias, mas nada disse; virei-lhe as costas e afastei-me.

O corpo permaneceu nessa manhã na suíte do hotel, onde decorreu o tradicional dan gark arménio, período durante o qual as solicitações se avolumaram ao ponto de me forçarem a sair da minha letargia para lhes dar resposta e pôr em marcha os preparativos para o funeral. Isso fez-me bem, porque me deu um propósito. A certa altura comecei até a comportar-me como um general, emitindo ordens em todas as direcções. Mandei vir o bispo da Igreja Arménia de Londres para conduzir a liturgia fúnebre, uma vez que não queria uma cerimónia católica, e pus-me em contacto com uma agência funerária. O problema mais inesperado ocorreu quando o cangalheiro me questionou sobre o cemitério onde iria decorrer o enterro. O sujeito deu-me a escolher entre o dos Prazeres, nome que me pareceu incompreensível para um espaço dessa natureza, e o do Alto de São João.

"Não vai haver enterro", esclareci. "Ele será cremado."

O homenzinho arregalou os olhos.

"Cremado? Onde?"

"Num qualquer crematório, ora essa!", retorqui, encolhendo os ombros com impaciência. "Já só cá faltava pedirem-me também para escolher o local onde o meu pai irá ser..."

"O senhor não compreendeu", atalhou o cangalheiro, cujo casaco exalava um enjoativo odor a formol. "Não há crematórios em Portugal!"

A declaração era de tal modo inverosímil que por momentos pensei que o indivíduo da funerária inventava desculpas esfarrapadas para forçar o enterro, quiçá por esta solução ser mais rentável.

"Ora que disparate!"

"Portugal é um país católico, senhor Sarkisian", justificou-se ele com tal embaraço que me fez ver que estava a ser sincero. "Nós não cremamos pessoas, por isso não existem crematórios no nosso país. Receio bem que o seu pai tenha mesmo de ser enterrado."

Consultei madame Duprés sobre o assunto e, após alguma discussão e uns quantos telefonemas, ficou decidido que, a seguir à missa fúnebre, que eu entretanto havia marcado para o dia seguinte, o corpo seria trasladado para a Suíça, onde existiam crematórios adequados.

Logo que essa decisão foi tomada e os preparativos postos em marcha, o proprietário do hotel puxou-me para um canto discreto e, com olhar conspirativo e a voz carregada de subentendidos, informou-me que havia para mim um telefonema "que é de todo o interesse atender". Quando lhe perguntei quem era, limitou-se a soprar-me ao ouvido, sempre dando-se ares de grande confidencialidade, que a chamada requeria "enorme discrição" e que "o melhor era ir para o quarto". Não percebi nada, mas assim fiz. No momento em que peguei no telefone pousado sobre a minha mesinha-de-cabeceira, uma voz pediu-me que aguardasse um instante.

Ouviu-se um clique na linha e a chamada emudeceu; presumivelmente estava a ser transferida.

"Alô?", chamou um segundo interlocutor em francês, quebrando o mutismo da linha. "M'sieur Krikor Sarkisian?"

Arregalei os olhos no momento em que identifiquei o autor da chamada; só havia em Portugal uma pessoa com uma voz assim aflautada.

"Senhor presidente do Conselho!", exclamei. "Sim, sou eu. Como está vossa excelência?"

"Menos bem, depois da triste notícia que me deram esta manhã. Achei que lhe devia ligar para, em nome da nação portuguesa, lhe comunicar os meus sinceros pêsames pelo falecimento do senhor seu pai. Creia que é uma grande perda para Portugal."

"Obrigado, senhor presidente do Conselho."

"Queira desculpar a minha ignorância, mas que idade tinha ele?"

Fiz num ápice as contas de cabeça. Se o meu pai tinha nascido em 1869 e se estávamos em 1955, isso significava que ele teria... ele teria...

"Oitenta e seis anos, senhor presidente do Conselho."

"Viveu a vida em pleno", foi a sentença emitida do outro lado da linha, em jeito de consolação. "Sabe, tive o grato privilégio de conversar com ele em algumas ocasiões e devo dizer que era um homem verdadeiramente notável. Aliás, tão notável que faço questão de lhe prestar a derradeira homenagem num lugar de distinção inigualável. Dei por isso instruções para que se reserve o solo mais sagrado que existe em Portugal, de modo a que os seus restos mortais sejam aí depositados em câmara ardente. Espero que não veja inconveniente nesta minha singela iniciativa."

"De modo nenhum, senhor presidente do Conselho." Hesitei. "Perdoe-me o atrevimento, a que local se está a referir exactamente?"

A voz do ditador português ganhou vigor e orgulho quando identificou o "solo sagrado" que reservara para as exéquias.

"O Mosteiro dos Jerónimos."

A trasladação do Aviz para os Jerónimos decorreu nessa mesma tarde, mas havia tanta papelada e formalidades a despachar e tantos telegramas a enviar para Londres, Paris e outras capitais que só me desloquei à igreja na manhã seguinte, uma hora antes do início da missa fúnebre. Esperava-me uma surpresa.

Desde o princípio que tinha em mente uma cerimónia pequena, coisa privada reservada à família, aos amigos e a um punhado de convidados e dignitários do estado português e do corpo diplomático acreditado em Lisboa. Quando cheguei à igreja do mosteiro, todavia, deparei-me com uma multidão a fazer fila à porta.

"Que se passa?", perguntei, abrindo caminho pela massa compacta de gente. "Aconteceu alguma coisa?"

"Zut alors!", exclamou madame Duprés, que vinha comigo e se mostrava tão admirada quanto eu. "Não faço a mínima ideia."

Para meu grande espanto, o santuário estava aberto ao público e milhares de portugueses haviam acorrido para prestar os seus respeitos. Admito que esse facto me tenha sensibilizado, no fim de contas homenageavam o meu pai e isso não me podia deixar indiferente, mas mesmo assim preferia que a cerimónia decorresse à porta fechada, até porque ele era um homem que em vida sempre cultivara a discrição. Parecia-me que a mesma reserva o deveria preservar na morte. Expressei por isso o meu ponto de vista ao responsável dos Jerónimos, dando-lhe conta da minha vontade de fazer uma cerimónia à porta fechada.

"Receio que isso não seja possível, senhor Sarkisian", respondeu-me o padre com uma expressão irritantemente beatífica. "A nossa tradição é esta. Além do mais, a igreja já está cheia, como vê. Não podemos pôr-nos agora a expulsar as pessoas, não lhe parece?"

O santuário de facto abarrotava de gente e a missa estava prestes a começar, pelo que não me pareceu razoável insistir na minha objecção. Acabei por ceder, embora não tenha a certeza de ter procedido bem. A tradição arménia requer que o caixão permaneça fechado, mas ali se encontrava o meu pai em uma aberta diante do altar, vestido com o seu fato matinal, o lenço branco no bolso exterior do blazer, o rosto pálido à vista de todos. Pior do que isso, quando a missa terminou e me aproximei do caixão para a última despedida, não o fiz em privado, como seria natural em momento tão íntimo entre o filho de luto e o pai no caixão, mas à frente de uma multidão de desconhecidos e sob uma tempestade de flashes de câmaras fotográficas, exposto à devassa pública de uma forma que me pareceu indecorosa.

Terminada a cerimónia, o caixão foi transportado para o aeroporto, onde nos aguardava outra multidão e nova bateria de fotógrafos. A presença destes não me surpreendeu, afinal tinha morrido o homem mais rico do planeta e isso inevitavelmente atrairia as atenções da imprensa, mas o facto de tantos portugueses mais uma vez terem acorrido não deixou de me abismar; não fazia a menor ideia de que o meu pai era assim tão popular neste pequeno país. Aliás, e para ser sincero, decerto que ele próprio teria ficado igualmente admirado.

Logo que o avião dos Transportes Aéreos Portugueses descolou rumo a Zurique, saí do aeroporto com ideia de regressar ao Aviz. Meti-me no automóvel com madame Duprés. Quando o motorista se aprestava a arrancar, contudo, a porta abriu-se e o advogado do meu pai introduziu-se inesperadamente na viatura.

"Espero que não se importe de me dar uma boleia", desculpou-se Azevedo Passarão, acomodando-se ao meu lado. "Temos assuntos urgentes a tratar."

"Deveras? O quê?"

O advogado português do meu pai passou as costas da mão pela testa transpirada e indicou a pasta que depositara sobre o regaço.

"O testamento."

Respirei fundo, esforçando-me por conter a irritação.

"Por amor de Deus!", exclamei, já no limite da paciência; as últimas vinte e quatro horas haviam sido duras e o homem mexia-me com os nervos com as suas preocupações mesquinhas. "Francamente, não me parece que seja o momento mais adequado!"

"Peço desculpa, senhor Sarkisian, mas precisamos de o fazer o mais depressa possível!"

"Porquê? Qual é a urgência?"

Uma multidão de repórteres cercara já o automóvel numa algazarra, as câmaras fotográficas coladas ao vidro da viatura para captarem clichés do interior como se algo de tremendamente importante ali se passasse.

"O seu pai deixou decisões testamentárias referentes a uma instituição em nome dele", explicou o doutor Passarão. "Trata-se de uma fundação que ele queria criar para as artes." Indicou com o polegar os fotógrafos que nos rodeavam. "Temos de aproveitar a presença da imprensa internacional para anunciar ao mundo as suas últimas vontades. Se deixarmos passar demasiado tempo, os jornalistas começarão a abandonar Lisboa e..."

Foi a gota de água. Num gesto quase reflexo, abri a porta traseira do carro e apontei para o exterior.

"Rua!", ordenei, a paciência esgotada. "Saia daqui!"

"Mas... senhor Sarkisian..."

"Rua!"

Atarantado com a minha reacção intempestiva, e provavelmente também porque eu o empurrava, o advogado cambaleou para fora do automóvel. Fechei a porta com estrondo e, acto contínuo, fiz um sinal ao motorista. A viatura arrancou e furou por entre a barreira de repórteres, metendo pelas ruas soalheiras de Lisboa em direcção ao hotel.

Acordei às quatro da manhã.

Na véspera sentira-me de tal modo fatigado que me tinha ido deitar aí pelas oito da noite, logo a seguir ao jantar. O despertar madrugador era o preço a pagar pela alteração dos horários de sono. Tentei voltar a adormecer mas não consegui. Ao fim de uma vintena de minutos, resignado, levantei-me e arrastei-me até à janela. Estava escuro no exterior do Aviz e apenas o luar pálido e as lâmpadas amareladas dos postes públicos afagavam os contornos dos edifícios, das árvores e da rua, imprimindo-lhes um suave anélito de luz, doce e melancólico.

Voltei para a cama com a mente a revolutear pelos acontecimentos dos últimos dias. Lembrei-me do encontro que tinha marcado para o Pêra Palace de Istambul na segunda-feira e pensei que, agora que o meu pai tinha morrido, nada me prendia a Lisboa. Havia, claro, a questão do testamento para ler. Talvez o doutor Passarão tivesse afinal razão. Urgia de facto despachar esse assunto.

Liguei o candeeiro, ajeitei a almofada e acomodei-me. A realidade é que o meu pai morrera e tinha agora de conhecer as suas últimas vontades. O advogado mencionara uma fundação dedicada às artes e isso, para ser sincero, não me surpreendia nada. No fim de contas, não fora essa a raison d'être do meu pai? Kaloust Sarkisian, o arquitecto dos negócios e Senhor Cinco por Cento, era também o artista, o coleccionador de arte, o amante da estética. Relembrei os instantes em que com ele conversei quando saiu pela última vez do coma, apenas alguns dias antes. As suas derradeiras palavras, agora que pensava nelas, pareceram-me encapsular o sentido da sua existência.

"O que é a beleza?"

Murmurei a interrogação no tom que ele usara quando nessa última vez formulou a pergunta que o assombrara a vida inteira. Sim, o que é a beleza? De algum modo era esse o tema de fundo do primeiro tomo da sua biografia. Desviei os olhos para a mesinha-de-cabeceira e pousei-os sobre o calhamaço intitulado O Homem de Constantinopla, que eu lera de um fôlego duas noites antes. A história terminara no momento em que me separei de Marjan na Alemanha. Caramba, quanto tempo se tinha passado desde esse dia longínquo de 1914! Dava até a sensação de que tudo aquilo havia acontecido num outro tempo, com outras pessoas, numa outra vida...

Desviei a atenção para as folhas que havia atirado pelo chão do quarto e que a empregada amontoara sobre uma cadeira, as do segundo tomo da biografia. Fora justamente no momento em que me preparava para começar a lê-las que, dois dias antes, tinha sido interrompido pelo grito de madame Duprés e pela descoberta de que o meu pai morrera. Como era evidente, depois disso não houve tempo nem disponibilidade para voltar a pôr os olhos no texto. Contudo, o funeral já tinha decorrido e ali estava eu às quatro da manhã, acordado e sem sono, sem nada para fazer e o manuscrito à minha disposição. Para mais, ardia de curiosidade por saber o que se encontrava lá escrito.

Cheguei-me à borda da cama e, inclinando-me para a cadeira, recolhi as folhas do manuscrito e alinhei-as por ordem. Quando concluí a tarefa, voltei a sentar-me na cama e passei o olhar pelo título. Não pude deixar de sentir um frémito de impaciência percorrer-me o corpo, já que a vontade de devorar o livro se apossara de mim. Não era afinal aqui que o meu pai relatava o que aconteceu depois de me separar de Marjan? Não era neste segundo volume que falava sobre os trágicos acontecimentos da Grande Guerra e descrevia como manipulara as grandes petrolíferas para se tornar o homem mais rico do planeta? Além disso, estas páginas encerravam o segredo da sua decisão de vir para Lisboa e aqui ficar até ao dia em que morreu. Como não sentir curiosidade pela maneira como narrava esses eventos fatídicos?

Arrulhando de prazer, encostei-me às almofadas e, já confortável, como quem se abalança para uma viagem aventurosa, iniciei enfim a leitura de Um Milionário em Lisboa.

 

                                                                        Horrores

 

         Onde está, ó morte, A tua vitória?

                       PAULO

 

Atravessar Unter den Linden revelava-se naquele instante empresa impossível. Plantado na borda do passeio, Krikor percorreu com o olhar inquieto a multidão compacta que se aglomerava na grande alameda de Berlim empunhando ao vento bandeiras trémulas e altivas do Reich enquanto entoava em coro Die Wacht am Rhein, num apelo às armas tão ardente e emotivo que até a pele do estrangeiro se eriçou.

 

           £5 braust ein Ruf wie Donnerhall,

           wie Schwertgeklirr und Wogenprall:

           Zum Rhein, zum Rhein, zum deutschen Rhein,

           wer will dês Stromes Húter sein?

 

Atraído pela explosão de nacionalismo arrebatado, o jovem arménio acompanhou a mole humana ao longo da grande avenida até os manifestantes chegarem junto do cordão que a polícia formara nas redondezas do Hotel Bristol para proteger a embaixada da Rússia. Os alemães lançaram uma chuva de insultos na direcção da bandeira do czar - como era possível que a Rússia tivesse ido em socorro dos sérvios assassinos?, como se explicava que os autores do miserável crime de Sarajevo gozassem de tamanha impunidade? -, mas nenhum incidente sério ocorreu e a massa de gente prosseguiu pela Unter den Linden num clima de grande animação até desaguar diante do palácio do imperador.

O Berliner Stadtschloss encontrava-se às escuras, sinal de que o Kaiser estava ausente, mas os manifestantes não desarmaram. Num coro vibrante trocaram o Die Wacht am Rhein pelo Heil dir im Siegerkranz, o hino imperial, numa mostra de apoio incondicional a Guilherme II naquela hora de suprema gravidade. Quando as últimas estrofes chegaram ao fim, sucederam-se as saudações em uníssono a louvar os imperadores da Alemanha e do Império Austro-Húngaro, aliados na guerra à beira de se desencadear.

 

         "Der Deutsche Kaiser lebe hoch!",

         gritou uma voz rouca, dando vivas ao Kaiser alemão.

         "Hoch! Hoch! Hoch!", apoiou a multidão em coro.

         "Der õsterreichische Kaiser lebe hoch!"

         Os vivas dirigiam-se já ao imperador austríaco.

         "Hoch! Hoch! Hoch!"

 

Pregado ao passeio junto a um poste de iluminação, Krikor observava estarrecido o entusiasmo com que aquela gente encarava as hostilidades iminentes, como se tudo aquilo não passasse de uma enorme festa de exaltação nacional. Viera a Berlim apanhar o comboio para Paris antes que o conflito se iniciasse e percebeu nesse instante que não saía cedo de mais. O clima na capital alemã era verdadeiramente efervescente e, a acreditar nos telegramas insistentes que o pai lhe remetera nas últimas semanas a ordenar-lhe o regresso urgente ao Reino Unido, a mesma febre percorria as ruas de Londres e de Paris.

"O que vale", murmurou para si mesmo, "é que serão apenas algumas semanas."

O jovem arménio deu meia volta e iniciou o caminho em direcção à Hauptbahnhof, a estação central, onde apanharia o comboio até Paris. Para evitar surpresas, o pai havia movido influências na embaixada otomana em Londres, para a qual continuava a trabalhar como conselheiro financeiro, e arranjara-lhe um passaporte otomano; sempre era mais seguro viajar pela Alemanha com a nacionalidade de um país neutral, embora esse documento já não viesse a ser necessário, tendo em conta que se preparava para regressar antes do desencadear formal das hostilidades.

Krikor meteu-se no comboio e partiu rumo a França. Enquanto a composição ia atravessando o perímetro urbano de Berlim, o estudante foi contemplando o casario aprumado e as ruas impecavelmente ordeiras da capital alemã e não pôde deixar de pensar que em breve estaria de volta para completar os estudos.

Sim, a guerra seria curta.

A eclosão do conflito, algumas semanas mais tarde, apanhou Krikor já em segurança em Londres. Como pressentia havia algum tempo, embora ver fosse sempre mais chocante do que saber, encontrou Inglaterra mergulhada no mesmo clima exaltado que fervia na Alemanha. Uma onda de entusiasmo eléctrico percorria o país, com os Britânicos a encararem as hostilidades como se de um mero evento desportivo se tratasse; todos queriam participar antes que acabasse, já que ninguém duvidava que os canhões se calariam até ao Natal.

Arrebatado pela onda de entusiasmo contagiante, e complexado por ver os amigos e conhecidos alistarem-se em levas sucessivas, todos ansiosos por irem para a guerra dar um pontapé no rabo do good old jerry, o herdeiro dos Sarkisian começou a contemplar a possibilidade de pedir a sua incorporação e também participar no magnífico evento. Por que razão haveria ele de ficar de fora?

"Nem pensar!", vociferou o pai quando lhe mencionou o assunto. "Estás parvo ou quê?"

"Mas, senhor", argumentou o rapaz, "todos os meus amigos estão a alistar-se. Até o Roger!"

"Eles que se alistem e se deixem todos matar, se isso lhes dá prazer!", retorquiu Kaloust com um esgar de sarcasmo. "Mas não vejo que utilidade terá para Inglaterra a tua morte ou mutilação." Ergueu o dedo. "À frente dos teus caprichos infantis estão os teus deveres, rapaz. Os primeiros dos quais dizem respeito à família!"

"E ao país..."

"Isso é conversa para tolos! A tua família tem precedência sobre tudo o resto! Investi muito em ti, fiz o que podia para te ajudar, dei-te a melhor educação que um jovem pode ter, e o que queres tu fazer com isso? Imolar-te na guerra! Uma coisa dessas faz algum sentido?" Abanou a cabeça com veemência. "Não! Não te deixarei desperdiçar a vida de modo tão fútil! Era o que mais faltava!"

Enquanto alimentava as dúvidas sobre o que fazer em relação à guerra, se deveria enfrentar a ira do pai ou o olhar reprovador dos amigos, Krikor ia trocando correspondência com Marjan. A sua apaixonada arménia instalara-se com os pais em Constantinopla, onde Hagop decidira permanecer uns tempos para tentar um tratamento oriental recomendado por um médico persa muito reputado, e a situação revelou-se conveniente para que mantivessem o contacto.

Apesar de frequentes, contudo, as cartas trocadas entre ambos continham mensagens mais ou menos inócuas. O rapaz não ignorava que as missivas para lá e para cá passavam pelo crivo perscrutador e censor de Arshalous antes de partirem e depois de chegarem às mãos da sua amada, pelo que manifestava o maior cuidado com o que escrevia, ciente de que o mesmo fazia ela; os dois pombinhos sabiam que teriam de dizer o que queriam, e tentar perceber o que o outro queria dizer, sempre nas entrelinhas.

Aconteceram, no entanto, duas coisas que no final de Outubro interromperam este fluxo intenso de correio discretamente sentimental. A primeira foi o fim do tratamento persa de Hagop em Constantinopla e a consequente partida dos Kinosian para o aconchego da sua Kayseri natal, onde o serviço postal funcionava com arreliadoras lacunas; e a segunda, facto aborrecido e decerto de maior consequência, foi a entrada do Império Otomano na guerra ao lado da Alemanha e do Império Austro-Húngaro, após um ataque desferido aos portos russos no mar Negro.

"Estes Turcos são sempre os mesmos!", rosnou Kaloust quando recebeu a notícia logo pela manhã. "Viram os Alemães ganhar as primeiras batalhas e... pimba!, puseram-se logo do lado dos vencedores!"

"Isto vai afectar os seus negócios?", quis saber o filho.

"Claro que sim! O que vale é que, graças a Salim Bey, consegui há algumas semanas uma carta do grão-vizir Said Paxá a conceder à Turkish Petroleum os campos de petróleo por descobrir nos vilayets de Bagdade e de Mossul." Bufou, como se libertasse tensão acumulada no corpo. "Ufa, já não era sem tempo! Até agora só havia promessas verbais, mas finalmente temos a coisa por escrito. Valha-nos isso!" Era um triunfo, e não ocultou um sorriso. "Até já celebrei e tudo!"

"O quê? Não me diga que comprou mais um quadro..."

Kaloust ergueu-se com inesperada agilidade e, com um

gesto dramático, retirou o véu que cobria uma tela encostada

à parede, deixando ver o retrato pintado de uma rapariga

de chapéu largo na cabeça.

"Chama-se Miss Constable e foi pintado por Romney", anunciou, embevecido. "Uma maravilha, não achas?"

No meio do caos, Kaloust continuava centrado no petróleo e na arte, enquanto o filho permanecia obcecado pela sua apaixonada. É certo que a inclinação de Krikor era para jamais questionar o pai; desde pequeno que a figura do chefe da família, com o seu olhar hipnótico e as suas barbas densas, o aterrorizava, mais ainda porque a presença do patriarca dos Sarkisian parecia intimidar todos os que o rodeavam. Porém, e apesar desse respeito quase instintivo, o corte de comunicações com Marjan revelou-se um golpe mais duro do que o rapaz era capaz de suportar.

De cabeça perdida, e obedecendo a um impulso do momento, Krikor apanhou o comboio até Cambridge e inscreveu-se no Officer's Training Corps. Que melhor antídoto para uma desilusão do amor que a loucura da guerra? Quando os exercícios de instrução militar começaram, todavia, o jovem recruta descobriu que não sabia de quem tinha mais medo, se do pai, que talvez o deserdasse quando soubesse da sua desobediência, se do sargento que berrava toda a manhã para o preparar, a ele e aos outros candidatos, para as realidades da guerra. E o problema é que, naquele regime de noites mal dormidas e refeições mal comidas, mais os exercícios e a gritaria constante, começou a chegar à conclusão de que talvez não estivesse talhado para semelhantes cavalgadas.

A sorte é que a instrução não durou muito. Quando chegou a hora de se sentar diante do oficial de recrutamento e preencher o formulário para se candidatar a uma comissão de serviço nas forças armadas, Krikor deu de caras com uma pergunta tão inconveniente quanto inultrapassável.

"O senhor é de origem puramente europeia?", perguntou o oficial, levantando o sobrolho aloirado e perscrutando-o com um toque de ironia. "Da parte do pai e da mãe?"

O candidato passou a mão pelo cabelo negro e baixou o olhar para o questionário.

"Essa pergunta está aí escrita?"

"É a pergunta vinte e sete."

O candidato massajou o queixo, contemplando as opções perante tão inesperada questão.

"E se a resposta for negativa?"

"Nesse caso, receio ter de o mandar para casa."

O questionário terminou ali e Krikor voltou para Londres com dificuldade em ocultar um certo sentimento de alívio. Oferecera-se como voluntário para defender o seu país e que culpa lhe poderia ser assacada por não preencher todos os requisitos raciais previstos na legislação militar britânica? Mas isso pouco consolou o pai, que se mostrou ostensivamente agastado com as opções, e em particular a insubordinação do seu rapaz.

"E se te tivessem aceitado?", indignou-se o chefe da família. "Ias atirar-te para aquele matadouro em França? Assim, sem mais nem menos? Só para provares aos teus amigos que não tinhas medo? És parvo ou quê?"

O filho vacilou.

"Foi... foi pela pátria", titubeou. "É meu dever..." com um gesto de enfado, Kaloust quase bufou de irritação e voltou-lhe as costas.

"Não brinques comigo!"

A entrada do Império Otomano na guerra e a retirada das respectivas legações de Londres e de Paris obrigou Kaloust a suspender os contactos permanentes com Constantinopla por causa da Turkish Petroleum Company, embora continuasse a viajar com frequência entre o Reino Unido e França. A guerra irrítava-o por perturbar os negócios e também por quase lhe ter desviado o filho. Desagradado com a desobediência do rapaz, Kaloust manteve-o de quarentena durante longas semanas. Quando o via evitava a conversa e mostrava com ele uma frieza quase cruel, atitude que considerava imprescindível para lhe mostrar que a desobediência ao poder paternal tinha consequências.

Nestes dias difíceis, Krikor agarrou-se sobretudo à memória dos bons momentos vividos em Bona, em particular os passados com os Kinosian. Mais saboroso que as baclavas de Arshalous era o olhar castanho de Marjan, tão doce e melancólico que só a lembrança o arrastou para um estado de permanente nostalgia, derramada em suspiros intermináveis durante os longos dias de ócio no número 38 de Hyde Park Gardens. Enlanguescia tardes inteiras no quarto ou na sala, o olhar vidrado e a vontade entorpecida, na vaga esperança de que a situação evoluísse e a sua vida desbloqueasse. Mantido a uma distância punitiva pelo pai, rejeitado pelas forças armadas e com o contacto com a apaixonada cortado, o rapaz sentiu no seu isolamento a saudade de Marjan tornar-se insuportável.

Passou assim o Natal e entrou em 1915. Desfazendo as expectativas iniciais, não só a guerra não acabou como o conflito começou até a dar sinais perturbadores de que se iria prolongar muito mais do que se pensara, sobretudo depois de ambos os lados se terem entrincheirado da Flandres à Suíça para um longo combate de desgaste. Sem ver solução à vista e incapaz de esperar mais, Krikor percebeu em meados de Fevereiro que precisava de agir; sufocava naquela inacção e não se sentia capaz de aguentar as coisas para além do ponto em que elas se encontravam.

O ardor rompeu por fim o véu anestesiante da melancolia. Sem dizer nada a ninguém, certa manhã pegou nos seus dois passaportes, o britânico e o otomano, que o pai preventivamente lhe tinha enviado para Bona para o caso de ele ser apanhado na Alemanha depois de a guerra eclodir, reuniu um valor razoável em libras e apanhou o comboio para Paris. Dali seguiu até Genebra, onde deitou ao correio uma carta endereçada aos pais a explicar os motivos que o levavam a visitar o Império Otomano e a prometer que regressaria logo que possível.

Uma vez cumprido o seu dever de filho, aproveitou o facto de a Suíça ser um país convenientemente neutral e cruzou a fronteira com o Império Austro-Húngaro. Foi até Viena tomar a ligação ferroviária que, para lá dos Balcãs, o levou por fim ao seu destino.

Os funcionários aduaneiros turcos de serviço à estação de Sirkeci, ponto terminal do Expresso do Oriente em Constantinopla, franziram o sobrolho quando lhe inspeccionaram o passaporte otomano. No nome Sarkisian o importante para eles era a terminação ian, indício claro da etnia do recém-chegado.

"O senhor é arménio?"

"De facto", disse, preocupado com omitir que também era um súbdito do rei de Inglaterra, país naquele momento inimigo dos Otomanos. "Nasci aqui em Constantinopla, effendi."

Os dois funcionários reviraram o passaporte de um lado para o outro, claramente à procura de um pretexto para implicarem com ele.

"De onde vem o senhor?"

O tom da pergunta encerrava uma hostilidade latente. Dadas as circunstâncias, Krikor percebeu que estava fora de questão indicar que apanhara o comboio em Londres; teria de ser cuidadoso e dizer-lhes apenas o que queriam ouvir.

"De Bona", afirmou, contornando a pergunta. "Passei os últimos anos a estudar Engenharia na Alemanha."

Ao escutar a referência ao seu aliado, os turcos pareceram animar-se um pouco.

"Ah, a Alemanha. Grande país, não é verdade?"

A pergunta constituía um teste e o viajante percebeu-o instantaneamente.

"Magnífico!", exclamou com fingido entusiasmo. "Eles vão ganhar a guerra, sem dúvida alguma! São inteligentes, organizados e fortes. O Império Otomano não poderia ter escolhido melhores aliados! com os Alemães ao nosso lado, nada nos pode bater! Venham Ingleses e Russos, venha quem vier, os Alemães vão acabar por se impor. Ainda noutro dia, em Berlim, os vi a darem apoio ao Kaiser. Ah, que determinação! Como o meu coração se encheu de júbilo ao observá-los tão fortes e decididos! Eles vão ganhar, effendi! Que ninguém ouse duvidar!"

Os funcionários entreolharam-se, primeiro surpreendidos e depois agradados, acabando por abrir os rostos num sorriso.

"Folgo em ouvi-lo dizer isso, caro amigo", soltou um deles com súbita jovialidade. "Penso até que deveria expressar esses seus pontos de vista aos seus patrícios arménios. Sabe, eles têm opiniões bem contrárias às suas. Quando os Russos ganham uma batalha, bem vejo os arménios por aí a sorrirem. Quando perdem, parecem tristes. Uma vergonha! O senhor deveria meter-lhes algum juízo naquelas cabeças. Se continuarem assim, a coisa ainda vai acabar mal!"

Não foi sem receios que Krikor abandonou a estação e saiu à rua. Pela amostra da conversa, parecia-lhe evidente que o fosso entre Turcos e Arménios se estava a alargar e que os seus conterrâneos deveriam ter maior cuidado na forma como expressavam os seus sentimentos. O rapaz ainda pensou em dar meia volta e regressar a casa; sabia que o seu plano era louco. Louco, imprudente e impulsivo. Mas a saudade de Marjan fê-lo vencer a hesitação e, com renovada resolução, seguiu em frente, consciente de que tinha já cruzado um limiar.

Não havia caminho de retorno.

 

O mordomo aproximou-se do dono da casa com um sobrescrito pousado sobre a bandeja de prata. Bateu com os tacões dos sapatos um no outro, à maneira militar, e esboçou uma ligeira vénia, estendendo a bandeja ao patrão.

"Acabou de chegar, senhor", anunciou. "Foi trazida pelo carteiro."

De facto, Kaloust havia escutado um minuto antes a sineta da porta, decerto o momento em que chegava o correio. Era manhã cedo e tinha acabado o seu banho matinal em água arrefecida a um grau Celsius. Envolto numa toalha turca, pegou no envelope e sentou-se numa cadeira à porta do quarto de banho.

"Finalmente!", exclamou num tom triunfal ao reconhecer a letra e o nome do remetente. "Finalmente!"

As exclamações atraíram a atenção de Nunuphar, que saiu disparada do quarto para ir ter com o marido.

"O quê?", perguntou com ansiedade. "Que se passa? Porque estás assim? Há novidades?"

Kaloust ergueu o sobrescrito bem alto, como se exibisse um trofeu de caça.

"É o nosso rapaz!", anunciou. "Finalmente dignou-se a dar-nos notícias, o estafermo!"

A mulher levou a mão ao peito, aliviada.

"Ai, graças a Deus, graças a Deus!", exclamou, virando os olhos para cima num agradecimento aos céus. "Já estava que nem podia! Graças a Deus que ele escreveu!"

Antes de o abrir, Kaloust pousou mais uma vez a atenção no envelope e leu de novo a identidade do remetente e a seguir a morada por baixo do nome.

"Ora esta!", constatou. "Já viste por onde o moço anda?"

Nunuphar arregalou os olhos, horrorizada com a perspectiva de o filho andar a deambular, Deus o protegesse!, em zonas próximas da guerra. E para ela a zona de guerra começava no canal da Mancha.

"Onde? Onde? Em... em Paris?"

O marido abanou a cabeça, intrigado.

"Genebra."

"O quê?"

Kaloust rasgou a borda do sobrescrito e extraiu a folha delicada que estava dobrada no interior. com a mulher a espreitar sobre o ombro, desdobrou a missiva e soltou um "oh!" decepcionado quando percebeu que Krikor apenas redigira umas quantas linhas.

"'Queridos pais'", leu em voz alta. "'Lamento a pressa com que parti e ter-vos deixado em cuidados. Mas compreendam que há razões que pertencem ao foro do coração e que se revelaram mais fortes. Vim até Constantinopla, a terra onde nasci, e depois vou seguir para a província para procurar aquela que amo. Ficarei por cá algum tempo, mas nada temam porque estou bem. Planeio voltar depois do Verão, quem sabe se já com uma linda filha para vos dar. Um beijo respeitoso do vosso Krikor.'"

Kaloust levantou os olhos da carta e virou-se para a mulher.

"Está louco!"

Nunuphar sorriu, terna e embevecida.

"Não está louco, tonto", disse com um toque suave de repreensão. "O teu filho está apaixonado e foi ter com a sua amada." Suspirou. "Ah, como é romântico o nosso Krikor..."

O marido olhou-a como se não a reconhecesse.

"Endoideceste, mulher?"

"Ora essa!", escandalizou-se ela. "Então o rapaz não pode apaixonar-se e ir atrás da sua amada? Qual é o mal?"

Kaloust sacudiu a cabeça de forma peremptória e dobrou a carta com gestos bruscos.

"Tu não sabes o que dizes", resmungou. "Então não tens consciência de que o Império Otomano está em guerra connosco? E ignoras que os Turcos odeiam os Arménios? O teu filho, menina, foi meter-se na boca do lobo!" Acenou com a carta, de modo a enfatizar a ideia. "Na boca do lobo!"

 

A noite caíra sobre Kayseri e as pessoas começaram a convergir para casa e a aglomerar-se em torno do tonir, cujas labaredas bailavam a um ritmo inquieto, pareciam línguas trémulas no centro da sala.

Havia já algum tempo que Krikor, a atracção principal na residência dos Kinosian, varria o compartimento com o olhar em busca de Marjan, mas ela ainda não aparecera.

"Jantar!", anunciou Arshalous, entrando na sala com um grande tabuleiro cheio de comida. "Toda a gente aos seus lugares! A comida está pronta!"

A atenção do convidado convergiu de imediato para a porta que dava para a cozinha. Sabia que Marjan ia surgir a todo o momento. Tentou ser discreto, mas as duas irmãs mais novas da rapariga, maliciosas no fulgor dos seus nove e dez anos, não tiravam os olhos dele e desataram a guinchar com risadinhas juvenis.

"Marjan!", chamou Khenarig, a mais atrevidota das duas. "Anda depressa! O Krikor está à tua espera!"

"Meninas!", repreendeu-as a mãe. "Que modos são esses? Caluda! Não se metam com a vossa irmã!"

As duas retomaram as gargalhadas, as mãos a taparem a cara, os esgares marotos por entre os dedos para o convidado. Krikor corou e, sentindo-se observado, virou-se para o lume que crepitava no tonir. Perdeu, por isso, a entrada de Marjan na sala. A rapariga, que conhecia as irmãs e o resto da família melhor do que a si própria, estava perfeitamente consciente das conversas às escondidas a propósito do namorico. Evitou por isso olhar para Krikor; a última coisa que desejava era alimentar ainda mais as línguas afiadas.

"Ponham o cobertor", disse Hagop, tossindo de imediato. "Estou cá com uma larica!"

As mulheres da casa lançaram uma grande manta sobre o tonir. Acto contínuo, toda a gente se acomodou sobre as almofadas deitadas ao longo dos tapetes e abrigou-se no interior da manta, aquecendo os pés com o calor da chama do tonir. Desde que Krikor ali chegara, todas as noites o ritual se repetia, mas a cada vez era como se fosse uma novidade. O jovem vivia aqueles costumes com uma intensidade que a ele próprio surpreendia, incapaz de reprimir uma sensação de intenso encantamento, como se uma voz ancestral na sua alma de arménio o chamasse para aquele lugar e aquele tempo.

O tonir, pensava ele enquanto se instalava por baixo da manta, era uma invenção extraordinária. Naquela lareira circular, que se afundava alguns decímetros no solo, centrava-se o coração da residência. Ficava no meio da sala principal e a sua chama era alimentada incessantemente, de modo a garantir que nunca se apagava. Durante o dia servia para fazer pão e outros alimentos, mas era à noite que ganhava uma dimensão social inesperada e engenhosa.

"Agora a paparoca."

As mulheres da casa espalharam passas e outros frutos secos sobre a manta, ao mesmo tempo que distribuíam pão e carne que tinham sido cozinhados durante a tarde no tonir. A família disposta circularmente pôs-se a comer enquanto conversava, usando o enorme pão redondo quase como se fosse um prato.

Começaram por falar sobre a gravidez de Arshalous, cujo ventre dava os primeiros sinais de vida, mas o assunto já não constituía grande novidade e depressa passaram ao tema do momento, o iminente casamento do filho de Baghdasar, um amigo da família. Toda a gente atirou ideias sobre como seria a noiva.

"Espero que seja bonita", disse Hagop. "Aquele rapaz nunca teve muita sorte na vida. Talvez desta vez acerte..."

"Aposto que é vesga!", vaticinou a pequena Khenarig com uma gargalhada traquina. "Depois de casar, quando lhe vir a cara, vai matar-se!"

"Cale-se!", repreendeu-a de novo a mãe. "Não diga disparates!" Abanou a cabeça e suspirou. "Ai, está mesmo na idade da parvoeira..."

Apesar da repreensão, a observação desencadeou uma casquinada de risos à volta do tonir. Toda a gente tinha uma opinião sobre como seria a noiva e Hagop sugeriu mesmo que fizessem apostas. A conversa era acompanhada por Krikor com um interesse moderado; bem vistas as coisas não conhecia o filho do amigo em causa e achava estranho o costume de os homens só conhecerem as noivas no dia do casamento.

A atenção do visitante começou por isso a vaguear pelo interior da sala. A mobília era escassa. Não havia cadeiras, apenas um tear, uns móveis com estantes e uns jarros de água.

A moradia tinha poucas janelas e apenas quatro divisões no primeiro andar, com o rés-do-chão entregue aos animais domésticos, incluindo porcos, duas mulas e uma mão-cheia de galinhas, e o telhado pegava com o da casa vizinha.

Na verdade, não era possível imaginar vida mais diferente da de Londres que aquela que encontrou na casa dos Kinosian no bairro de Dicharechar, em Kayseri. Em vez do grande luxo a que se habituara no número 38 de Hyde Park Gardens, Krikor viu-se metido numa casa relativamente pequena e onde as pessoas eram tantas que por vezes tinha a impressão que se enfiara numa praça pública rodeada de paredes privadas. E a liberdade da capital britânica contrastava com as limitações daquela terriola perdida no meio do Império Otomano, onde os Arménios eram uma minoria e tinham de viver segundo as regras dos Turcos; não lhes era sequer permitido falar a sua língua e as mulheres só podiam sair à rua de cara coberta e acompanhadas por um homem, para não ofender os muçulmanos. Ah, que mentalidade!, pensou. Não admirava que o Império Otomano fosse o pedinte da Europa!

O plano que o trouxera a Kayseri, improvisado ao sabor dos acontecimentos e dos seus humores e condicionado pelas circunstâncias que foi encontrando, não tinha contornos bem definidos. Em Londres consumira-se de saudades de Marjan e a interrupção da correspondência com ela havia sido um golpe de tal modo duro que o impulsionara à acção. Mas, agora que ali estava, o que faria a seguir? Tinha plena consciência de que partira sem o conhecimento e até ao arrepio da vontade do pai, a quem não podia contactar devido ao envolvimento do Império Otomano na guerra. Não que isso o incomodasse particularmente, uma vez que, como parecia óbvio, não poderia permanecer muito tempo em Kayseri. A sua vida não era aquela.

"Hagop!"

Um primo da família entrou de repente na sala a chamar pelo dono da casa. Hagop levantou-se e foi ter com ele. O homem parecia agitado e puxou o anfitrião para o corredor de modo a conversarem mais à vontade, embora o diálogo morno da família em torno do tonir tivesse prosseguido, já não a propósito do casamento do filho de Baghdasar mas de volta à recente gravidez de Arshalous. O assunto parecia galvanizar toda a gente excepto Krikor, cuja mente deambulava pelos seus vagos projectos em relação ao futuro.

Os Kinosian haviam-no acolhido como a um filho, mas isso não o surpreendera. Além de ter estabelecido boas relações com eles em Bona, qual o arménio que desdenharia do interesse de um Berberian numa filha sua? Além do mais, sentia-se bem; parecia-lhe que integrava uma família genuína, bem diferente da sua. Decidiu por isso permanecer ali em Kayseri até ao Verão, tempo suficiente para ver até onde poderia chegar a sua relação com Marjan. Para já, estava a ir longe. Aproveitando uma pausa na atenção das duas irmãs, momentaneamente distraídas com o mexerico, atirou um olhar melancólico na direcção da sua apaixonada. A rapariga, sempre consciente da presença dele, notou-o e sorriu antes de baixar as pálpebras com o recato que se esperava de quem era de boas famílias. Sim, correndo tudo bem, voltaria a Londres, via Suíça, e levá-la-ia com ele para o casamento.

"Vamo-nos deitar!", ordenou de repente Hagop, voltando à sala depois de se despedir do visitante. "Já se faz tarde! Ala, tudo a dormir!"

Os familiares reagiram com resmungos de desagrado perante a ordem súbita. O avô Sisag, pai de Arshalous, foi até quem mais protestou, mas todos acabaram por obedecer. Depois de retirarem a comida que sobrara e sacudirem a manta, estenderam-se por baixo dela em torno do tonir e as luzes foram apagadas. Apesar de serem relativamente abastados, os Kinosian mantinham os hábitos tradicionais arménios, por isso não havia camas. Habituado aos colchões e aos lençóis de seda, Krikor tivera no início alguma dificuldade em adaptar-se a este estilo de vida. Mas em menos de uma semana já não estranhava o sistema e dormia junto ao tonir como se sempre o tivesse feito.

Um murmúrio agitado despertou Krikor da letargia do sono. Olhou em redor e percebeu que ainda era noite, mas viu a silhueta de um homem ao seu lado a segredar para alguém que estava deitado. Fez um esforço de concentração e percebeu que era Hagop a sussurrar para uma mulher com uma ligeira protuberância no ventre; só podia ser Arshalous. Preocupado com não se imiscuir na intimidade do casal, o visitante virou-se para o outro lado e deixou-se de novo deslizar para o sono.

"Achas que estamos em segurança?"

A voz de Arshalous, talvez um pouco alta de mais para o que ela própria tencionava, irrompeu a despropósito num sonho de Krikor, fazendo-o despertar de novo. Tentou enquadrar-se na escuridão, confuso e momentaneamente desorientado. Teria efabulado aquelas palavras ou ouvira-as mesmo? Ao fim de alguns segundos conseguiu concentrar-se e pôs-se à escuta das vozes do casal que ainda discutia em sussurros ao lado dele; percebeu então que a pergunta do sonho tinha mesmo vindo da boca da sua anfitriã. Desta vez, todavia, não evitou ouvir a conversa; esforçou-se antes por captar despudoradamente o que marido e mulher confidenciavam um ao outro.

A conversa ao lado prosseguia com murmúrios nervosos, mas apenas conseguia captar uma ou outra palavra. Entre elas ouviu um "achas que vão matá-los?" de Arshalous e um "tudo é possível" em resposta que o deixaram perturbado. Percebendo que algo se passava, ergueu-se um pouco e voltou-se para o casal, que se calara ao sentir que alguém havia despertado.

"Aconteceu alguma coisa?"

A pergunta foi inicialmente acolhida por marido e mulher com um silêncio apreensivo.

"Chiu!", sussurrou por fim Hagop. "Durma, está tudo bem."

Krikor quase acreditou e esteve prestes a seguir o conselho, mas recuperou mentalmente as palavras que tinha escutado e pressentiu que estavam a tentar esconder-lhe alguma coisa, a ele e ao resto da família. Percebendo que para os seus anfitriões a confidencialidade era importante, sobretudo por causa das filhas, deu um jeito na manta e arrastou-se para junto deles.

"Não, passa-se alguma coisa", devolveu em voz muito baixa. "Quem é que vai matar quem?"

Marido e mulher entreolharam-se na escuridão, tentando decidir o que fazer. Deveriam falar ou manter-se calados? Consciente de que o convidado escutara de mais, Hagop suspirou e rendeu-se.

"Oiça, nem uma palavra às nossas filhas, entendeu?", pediu. "Este assunto fica entre nós."

"Esteja descansado."

"Nem à Marjan, ouviu?"

O pedido fez Krikor hesitar; não gostava de manter segredos para a sua apaixonada. Contudo, a curiosidade impôs-se e acabou por condescender.

"Está bem", concordou. "Que aconteceu?"

Os anfitriões trocaram um olhar, como se se questionassem mutuamente sobre se seria sensato confiar no convidado. Chegados àquele ponto, no entanto, perceberam que poderia haver mais vantagens do que inconvenientes em exporem o assunto que os preocupava.

"Há pouco recebemos uma visita", disse Hagop, "não sei se reparou..."

"Claro, o vosso primo."

"Pois. Ele tem ligações à igreja arménia. Acontece que chegou esta tarde a Kayseri um eclesiástico do patriarcado de Constantinopla com notícias perturbadoras. Parece que os Turcos estão a prender arménios lá na capital."

Fez-se um breve silêncio durante o qual Krikor procurou digerir a informação.

"Bem... suponho que haja razões para isso", sugeriu com prudência. "Serão decerto criminosos."

O anfitrião abanou a cabeça com veemência.

"Não, de modo nenhum!", exclamou num tom intenso. "Estamos a falar de médicos, banqueiros, escritores, jornalistas, deputados, advogados, religiosos, professores, arquitectos, músicos, poetas... a fina-flor da comunidade arménia. Ao que parece, detiveram mais de duzentos dos nossos notáveis."

"O quê?"

Hagop balançou pesadamente a cabeça, como se ele próprio só então estivesse a tomar consciência da enormidade do que acabara de dizer.

"Decapitaram a comunidade arménia da sua liderança", concluiu. Engoliu em seco, a face recortada de perfil pelo clarão avermelhado emitido pelo tonir. "Só me pergunto porquê."

Porquê?

A pergunta ressoou na mente dos arménios notáveis de Kayseri nos dias seguintes, sobretudo à medida que iam chegando novas informações sobre os inquietantes acontecimentos em Constantinopla. Foi um corrupio na casa dos Kinosian, com os adultos a sussurrarem conspirativamente pelos cantos da casa para que as crianças não ouvissem as conversas.

"Que se passa?", perguntou Marjan, intrigada com tantos murmúrios. "Porque anda toda a gente a falar às escondidas? Há bocado entrei na cozinha e dei com os meus pais a conversarem aos segredinhos. Quando me viram puseram-se de repente a falar sobre o tempo. Achas normal?"

Krikor hesitou, na dúvida sobre o que poderia ou deveria dizer. Achava que a rapariga também tinha de ser informada do que se passava, mas, por outro lado, sentia-se obrigado ao silêncio pela promessa feita aos pais.

"Não é nada", acabou por lhe dizer. "São coisas lá da vida deles, não te apoquentes."

O tempo passava e cada vez mais informações vinham de Constantinopla. Ia-se tornando evidente que alguma coisa de muito grave estava em gestação. Alguém disse que os Turcos tinham detido o banqueiro Mihran Aghajanian, outra informação falava em Dikran Allahverdi, membro de diferentes conselhos patriarcais, enquanto uma terceira fonte jurava pela vida das filhas que no lote dos detidos estava Krikor Zohrab, o famoso escritor e deputado do parlamento otomano, figura de tal modo importante que a notícia deixou incrédulos todos os que dela tiveram conhecimento.

"Se eles se atrevem a tocar em Zohrab", murmurou o avô Sisag com uma expressão de estupefacção, "ninguém está a salvo!"

Circularam dados desencontrados sobre o paradeiro de toda esta gente. Uns garantiam que os detidos se encontravam na Prisão Central de Constantinopla, mas logo alguém apareceu a dizer que toda a gente tinha sido deportada em comboios para várias regiões; falava-se sobretudo de Ancara. Quanto ao que lhes estava reservado, as versões eram as mais variadas. Uns diziam que os detidos haviam sido apanhados em conspirações e iam ser julgados, enquanto os mais radicais aventavam a hipótese de todos serem executados sumariamente. Achou-se que esta informação era exagerada e a maioria assentou na ideia de que se tratava de uma acção preventiva em tempo de guerra, pelo que ninguém se deveria preocupar em demasia.

"No fim de contas", concluiu Hagop, "quando terminarem as hostilidades na Europa e após os Aliados vencerem, que Deus os proteja, os Arménios ver-se-ão livres da bota dos Turcos." Ergueu o copo de cognac arménio. "E nessa altura, meus caros, seremos um país livre!"

 

Havia já algum tempo que Kaloust sentia um rumor mudo crescer-lhe no peito. Não sabia dizer o que era, apenas que se tratava de uma espécie de fúria, misturada com frustração, desalento e ralação, um cocktail corrosivo que lhe fermentava nas entranhas e o devorava por dentro.

Aquele estado de espírito tornava-o ainda mais irritável e picuinhas que o habitual, pondo em polvorosa todo o pessoal em redor dele, dos empregados aos sócios mais respeitados. Como durante aquele almoço no Carlton, quando perdeu as estribeiras só porque o empregado se atrasara um minuto no atendimento.

"Tens de te acalmar, meu velho", aconselhou-o Hendryk nessa ocasião, incomodado com a cena a que acabara de assistir. "Andas com os nervos em franja e precisas de resolver isso." Franziu o sobrolho, como se acabasse de ter uma ideia. "Olha lá, porque não tiras umas férias? Se calhar fazia-te bem..."

Mas não era de férias que Kaloust precisava. Em vez de se recolher à sua suíte no Ritz de Piccadilly, como fazia habitualmente, nessa tarde decidiu ir direito a casa. Sabia que Nunuphar era uma mulher intuitiva e, reconhecendo a inquietação que dele se apossara havia algum tempo, Kaloust considerou que talvez ela o pudesse ajudar a pensar na melhor forma de lidar com o que o atormentava.

Quando chegou ao número 38 de Hyde Park Gardens, porém, a mulher não estava em casa.

"Milady foi ao Harrods, sir"', informou-o o mordomo com todos os maneirismos típicos de um butler inglês. "Mas não deve tardar nada porque me solicitou que tivesse pronto às cinco um chá com um farrapo de creme e os scones."

Habitualmente os trejeitos de lorde a que Humphrey se dava divertiam-no, era até talvez por isso que pagava tão bem para o ter ao seu serviço, mas naquelas circunstâncias não sentia outra coisa que não fosse irritação. Mandou-o embora com um gesto impaciente e um grunhido mal-encarado e andou uma hora às voltas na sala, a fazer tempo e a matutar no problema, incapaz de se sentar.

Quando a mulher por fim chegou a casa, acolheu-a com modos acusatórios.

"Por onde andaste tu?", perguntou Kaloust, sabendo muito bem qual a resposta. "Isto são horas de andar na rua?"

Nunuphar pousou os sacos no átrio.

"Mas... mas todas as tardes dou um passeio", disse. "Que se passa? Aconteceu alguma coisa?"

O marido respirou fundo, sentindo a fúria arder-lhe no peito e sem saber como libertá-la.

"Anda tudo a correr mal, é o que se passa!", exclamou com irritação. "Esta maldita guerra está a dar cabo da nossa vida! Os negócios pararam e já nem a Paris é seguro ir!

Pior que isso, os Otomanos são agora formalmente nossos inimigos e os Alemães estão a preparar-se para ficar com todo o petróleo da Mesopotâmia! O governo britânico confiscou as acções alemãs na Turkish Petroleum Company e essa empresa, que criei com tanto esforço, está abandonada pela Anglo-Persian, que se recusa a pagar as contas." Indicou um retrato do filho assente num aparador da sala. "E depois... e depois há isto do Krikor! O rapaz está doido! Doido! Como é que um arménio de nacionalidade britânica decide ir para o Império Otomano num momento como este? Será que não tem a noção de nada? Estará cansado de viver? Mas que disparate é este? Que coisa má lhe passou pela cabeça?"

Vendo-o possesso, a mulher aproximou-se dele e pousou-lhe a mão no rosto, acalmando-o instantaneamente.

"É esse o verdadeiro problema, não é?", murmurou. "Estás ralado com o Krikor."

Só ela verdadeiramente o compreendia, confirmou. O toque gentil com a mão e as palavras suaves domaram momentaneamente o monstro que o transtornava. Encaminhou-se para o sofá ao pé da lareira e, pela primeira vez nessa tarde, conseguiu sentar-se e permanecer quieto por alguns momentos.

"Sim, ando muito incomodado com o Krikor", admitiu. "O rapaz não tem a menor noção do que foi fazer, percebes? Ele não conhece os Turcos como nós conhecemos e deve achar que a sua educação britânica lhe confere imunidade perante a história. Mas o passado apanha-nos sempre, sobretudo em tempos difíceis como este."

Intrigada com estas palavras, Nunuphar permaneceu plantada na sala a olhá-lo fixamente, pressentindo de repente que o marido não lhe havia ainda contado tudo.

"Mas qual é exactamente o problema?", quis saber. "Porque andas tão ralado com o Krikor? Que sabes tu que ainda não me disseste?"

com um gesto de impotência e um longo suspiro, Kaloust ergueu as mãos, vencido.

"Apenas sei o que Salim Bey me contou em 1913, logo depois de o Império Otomano ter perdido a Guerra dos Balcãs", desabafou. "Aconselhou-me a evitar Constantinopla por uns tempos porque o sentimento dominante entre a gente dele, e vou usar a expressão que ele usou, é de vingança."

"Vingança? Vingança de quê?"

"Os Turcos ficaram doidos com a perda completa da Rumélia para os Búlgaros, os Sérvios, os Montenegrinos e os Gregos. Encararam isso como uma humilhação, percebes? É por isso que querem vingança. Depois da derrota na Guerra dos Balcãs, deixaram cair o conceito de otomanismo e passaram a concentrar-se no turquismo. Salim Bey contou-me que o ministro do Interior, Talat Pasha, começou a dizer abertamente que era preciso extirpar o país dos cristãos, que considerou 'tumores internos' que tinham de ser 'limpos'."

"Isso é a conversa do costume..."

"Não é apenas conversa!", exclamou ele. "Li no jornal que os Turcos prenderam em Constantinopla centenas de intelectuais arménios e os deportaram para a província. Só Deus sabe o que lhes vai acontecer..."

com uma ruga de desassossego a formar-se na testa, Nunuphar encaminhou-se em passo ligeiro para o maple ao lado do marido, descalçou os sapatos e acomodou-se com as pernas encolhidas.

"Meu Deus!", exclamou, percebendo por fim em toda a plenitude a preocupação do marido. "Se assim é, tens razão.

Aquilo é um barril de pólvora." Mordeu o lábio. "E agora? O que vamos fazer?"

"Não sei. O que achas?"

"Temos de falar com o Krikor, é evidente."

"Isso é muito bonito de dizer", contrapôs Kaloust. "Mas onde anda ele? A única coisa que nos mandou foi aquela carta de Genebra a dizer que ia para Constantinopla e depois para a província atrás de um assunto de saias. Mas para onde foi ele na província?" Fitou a mulher. "Disse-te alguma coisa?"

Nunuphar abanou a cabeça.

"Claro que não", assegurou. "Há, no entanto, uma maneira de descobrirmos..."

"Qual?"

A mulher mergulhou o indicador no cabelo e começou a rodá-lo distraidamente, compondo caracóis com as pontas, como fazia sempre que avaliava um problema.

"Não te esqueças de que tens excelentes contactos em Constantinopla", lembrou. "Porque não consultas Salim Bey?"

Ao escutar a sugestão, Kaloust endireitou-se na cadeira e, acto contínuo, pôs-se de pé; estava cansado de preocupações e ansiava por acção.

"Boa ideia!", exclamou. "vou escrever-lhe!"

 

A cidade de Kayseri estendia-se por um vale coberto de salgueiros, as casas encostadas umas às outras ao longo de ruas de terra batida, a maior parte das vezes lamacentas; eram edifícios pobres, as paredes decrépitas, as fachadas por pintar. Havia algo nela, porém, que seduzia Krikor. Talvez isso se devesse ao facto de a sua família ser dali originária, ou se calhar seria por causa dos picos nevados das montanhas Erciyas que adornavam o horizonte, ou quem sabe se se tratava simplesmente da presença mágica de Marjan, a doçura arménia que o enfeitiçava e o fazia ver beleza numa terra onde ela não existia.

Naquela manhã, no entanto, Kayseri exibiu pela primeira vez uma imagem que o visitante dela não tinha. Krikor fora dar um passeio até à casa dos Berberian; estava fechada, tal como a dos Sarkisian, uma vez que todos tinham decidido abandonar a cidade quando a guerra rebentou e instalar-se em Constantinopla ou no Egipto. As famílias abastadas eram prudentes e usavam os seus recursos para se afastar no momento em que sentiam que a situação se poderia deteriorar.

Na volta do passeio, quando regressava com uns cravos exuberantes que adquirira a uma vendedora grega, deparou-se com um grupo de soldados turcos a marchar apressadamente na rua e seguido por uma multidão de mirones. Observou de relance os soldados e percebeu que rodeavam um homem de fez vermelho, portanto um arménio, que caminhava com as mãos atadas atrás das costas. A turba parecia muito excitada e o visitante, talvez com imprudência, mas movido pela curiosidade natural dos jovens que tudo querem aprender da vida, acompanhou a multidão.

Alguns soldados empurravam o prisioneiro com os canos das espingardas. O homem caminhava de cabeça baixa, de tal modo que não era possível ver-lhe o rosto, mas Krikor constatou que ele murmurava umas palavras. Abeirou-se um pouco mais e apercebeu-se de que rezava o pai-nosso em arménio, língua proibida por aquelas paragens. De repente o prisioneiro ergueu a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com os de Krikor. Era um olhar nublado, como o de alguém entorpecido por um sonho, as pernas trôpegas num andar de sonâmbulo. A face borbulhenta denunciava um adolescente, decerto nem dezoito anos teria.

"Que fez ele?", perguntou a um mirone.

"É arménio", foi a resposta excitada do turco. "Insultou um soldado."

Perante a resposta, Krikor teve vontade de abandonar a turba. Que lhe interessava ver um rapaz ser conduzido à prisão? Mas a efervescência na rua era contagiante e, com a manhã desocupada, o visitante deu consigo ainda preso à multidão. Viraram a esquina e entraram na praça. Krikor achou que não estava ali a fazer nada e forçou-se a si mesmo a arrepiar caminho e voltar para casa, mas nesse preciso momento reparou numa grande estrutura de madeira erguida no meio da praça e deixou-se levar mais alguns passos. Havia três postes no centro e cada um culminava no alto num triângulo de onde pendiam cordas grossas envoltas num laço.

"Meu Deus!", murmurou, horrorizado, estacando alguns metros depois da esquina que dava acesso à praça. "Estes tipos são loucos!"

O clamor da multidão amainou quando o prisioneiro foi empurrado para a estrutura. As pessoas tinham começado a falar em sussurros. O rapaz com as mãos atadas atrás das costas tentou parar, os soldados empurraram-no novamente e ele tombou no chão. Três homens de uniforme pegaram-lhe pelos braços e arrastaram-no pelos degraus até o encostarem ao poste do meio. Um dos soldados pegou na corda e enlaçou-a ao pescoço do prisioneiro, apertando o nó. Os homens de uniforme deram um passo atrás.

Fez-se um silêncio absoluto na praça.

"Asvadzeem!", gritou o condenado, lívido no instante em que encarava a morte, como se com aquele grito dirigido ao Criador conseguisse afugentar o medo que o paralisava. "Meu Deus!"

Acto contínuo, o alçapão abriu-se e o corpo caiu e ficou pendurado no ar, a espernear e a pontapear o vazio. Krikor observava a cena como se estivesse hipnotizado, querendo fugir e ao mesmo tempo incapaz de desviar a atenção, como se o centro do universo irradiasse luz naquela sinistra plataforma de madeira. com a corda a estrangulá-lo, os olhos do condenado ficaram esbugalhados e a face tornou-se vermelha e depois arroxeada. Desferiu mais uns pontapés no ar, sempre sem emitir um som que fosse, até que por fim ficou imobilizado, os olhos vidrados e a língua roxa ao canto da boca. Um soldado turco aproximou-se do corpo e, com uma faca, desferiu um golpe na barriga e rasgou-lhe o ventre de um lado ao outro. Os intestinos saltaram do corpo e, com um som oco, espalharam-se pelo chão numa massa branca e ensanguentada.

Foi só nesse instante que Krikor conseguiu desviar o olhar horrorizado. Deixou cair os cravos, dobrou os joelhos, inclinou-se para a frente e, incapaz já de se dominar, vomitou.

Quando ao final da manhã chegou a casa dos Kinosian, Krikor deparou-se com um ambiente pesado. Os anfitriões conversavam na sala em voz baixa com familiares de visita e Marjan tinha lágrimas nos olhos, evidentemente já consciente do que se passava. Nem os cravos que o pretendente lhe estendeu com as pétalas sujas de terra, lhe arrancaram mais que um sorriso ténue.

"Devemos abandonar Kayseri enquanto podemos", aconselhou Hagop depois de o convidado ter entrado na sala. "Daqui para a frente será só a piorar."

"Abandonar Kayseri?", protestou o avô Sisag, a mão que segurava a bengala a tremer. "E vamos para onde? Disseram-me que em Sivas e em Yozgat os enforcamentos já duram há uma semana. E parece que lá na Anatólia as coisas estão muito pior!..."

"É esta maldita guerra", disse um dos primos que aparecera de visita. "Os Turcos acusam-nos de estarmos a alistar-nos no exército russo para combater os Otomanos e querem vingar-se em nós. Anda para aí uma boataria de que os arménios de Van já pegaram em armas para se defenderem."

"Se calhar é o que também devíamos fazer", aventou o anfitrião. "Se não podemos fugir, ao menos defendemo-nos, como os de Van."

"Que disparate, Hagop!", admoestou-o o avô Sisag. "Como nos podemos defender? Isso só iria dar mais pretextos aos Turcos para enforcarem toda a gente."

"Os arménios de Van estão a defender-se..."

"Van fica perto da fronteira com a Rússia", argumentou o ancião. "Se aquilo der para o pior, como decerto vai dar, eles podem sempre fugir para o outro lado da fronteira. Além disso, parece que o exército russo não anda longe. Mas nós não. Se os Turcos caem em cima de nós, não temos para onde fugir. Por isso não lhes podemos dar o menor pretexto."

"E o que dizem os nossos líderes? O que dizem de Constantinopla? Quais são as ordens?"

"Quais líderes? Quais ordens? Foi toda a gente presa! Não há ninguém para nos guiar!"

Calaram-se todos enquanto tomavam consciência em toda a sua plenitude do verdadeiro alcance das detenções de toda a elite arménia em Constantinopla. Quem os protegeria naquele momento? Quem os representaria? Quem os guiaria?

"Ouvi dizer", murmurou Hagop, "que há pessoal que anda a guardar armas e explosivos."

"Onde? Aqui em Kayseri?"

O anfitrião apontou para a janela.

"Nas aldeias a leste de Kayseri."

"É isso mesmo que os Turcos querem!", exclamou o avô Sisag, que todos escutavam com especial atenção devido à longa experiência de sobrevivência aos sucessivos pogrons turcos contra os cristãos em geral e os Arménios em particular.

"Se os tipos descobrem, vão usar o exemplo dessas aldeias para nos massacrarem a todos." Ergueu o dedo, à laia de alerta. "Temos de ter muito cuidado, ouviram? Não lhes podemos dar o menor pretexto."

O callor debaixo da manta aquecida pelo tonir era reconfortante e Krikor enroscou-se ainda mais, mas o sono foi brutalmente interrompido por um barulho infernal à porta de casa. Não eram toques de visitantes, mas verdadeiros murros desferidos contra a madeira.

"O que é isto?", perguntou Hagop com irritação, levantando-se para ir abrir. "Esta gente não tem maneiras?", resmungou enquanto caminhava de pijama para a entrada. "Onde é que já se viu bater desta maneira à porta a uma hora destas? Está tudo louco!"

com o anfitrião já de pé para pôr fim à barulheira, Krikor virou-se para o outro lado e deslizou de novo para o sono. Ainda estava escuro e as pálpebras pesavam-lhe. Mas a entrada brusca de pessoas na sala, aos gritos e sem o menor respeito por quem dormia, fê-lo despertar de novo. Tal como o resto da família, levantou a cabeça e, com uma expressão estremunhada, tentou perceber o que se passava.

Foi então que viu os soldados. A sala estava cheia de homens de uniforme e espingardas na mão a gritar ordens em turco. Toda a gente se pôs em pé, Krikor incluído, sem perceber o que se passava.

"Fiquem onde estão!", ordenou um homem com uma espada à cintura, presumivelmente o oficial encarregado daqueles homens. "Estamos a passar esta casa em revista! Se forem encontradas armas, serão executados sumariamente!"

Hagop, de pijama e cabelo despenteado, olhava-o com estupefacção.

"Mas, effendi, esta casa é pacífica", disse num tom apropriadamente submisso. "Aqui não há armas. Somos bons cidadãos otomanos e respeitamos a lei."

"É o que veremos!", retorquiu o oficial com um esgar de desdém. "Quero toda a gente fechada nesta sala, e em silêncio, enquanto procedemos às buscas."

"Como desejar, effendi", concedeu o anfitrião, "embora gostasse de lhe pedir que..."

"Em silêncio, disse eu!"

A ordem foi de tal modo peremptória que Hagop não pronunciou mais nenhuma palavra e arrastou-se, cabisbaixo, até junto de Arshalous. As mulheres tremiam de medo, em particular Marjan e as duas irmãs mais novas, pelo que Krikor se aproximou delas e, com um sorriso tranquilizador, se esforçou por acalmá-las. O rapaz não se sentia verdadeiramente impressionado com o que se passava, talvez porque não era dali e não acreditasse verdadeiramente que alguém se atrevesse a tocar-lhe, e a sua tranquilidade acabou por reconfortá-las.

A barulheira estendera-se por toda a casa. Os soldados percorreram as divisões e de toda a parte chegava barulho de portas a abrir e fechar e gavetas a serem vasculhadas. Krikor espreitou pela janela para o exterior e apercebeu-se de que havia vários destacamentos de soldados na rua e quase todas as casas do bairro estavam igualmente a ser vasculhadas. De certo modo isso consolou-o ainda mais, talvez porque constituía a prova de que os Turcos não visavam especificamente os Kinosian. Sentou-se junto ao tonir e descontraiu.

"O que é isto?"

Voltaram-se todos na direcção da voz que fizera a pergunta. As buscas feitas pelos soldados duravam já havia quase uma hora e viram nesse instante o oficial que comandava o pelotão entrar na sala com dois facalhões nas mãos.

"São facas de cozinha", explicou Hagop. "A minha mulher usa-as para cortar a carne."

O oficial ergueu as facas e contemplou as lâminas mais de perto.

"Isto são armas."

"Não, effendi, são utensílios de cozinha", insistiu o dono da casa, alarmado com a conclusão perigosa a que o turco queria chegar. "Sem facas desse tamanho é muito difícil cortar a..."

"Facas destas só podem ser armas", atalhou o oficial de um modo seco e definitivo. "Vão ser confiscadas."

Do mal o menos, pensaram os Kinosian em simultâneo, os suspiros de alívio quase audíveis. A confiscação era bem melhor que uma detenção por posse ilegal de armas, considerando sobretudo que esse crime era sujeito a julgamento sumário e punível com a pena de morte.

"Sim, effendi."

O oficial entregou as facas a um subordinado e aproximou-se de Hagop, que enlaçava com o braço a mulher grávida.

"Onde estão as armas de fogo?"

O anfitrião arregalou os olhos e abanou a cabeça, sem compreender a pergunta.

"Quais armas de fogo, effendit"

"Tu sabes muito bem", disse o turco num tom sibilante. "As espingardas, as munições. Onde as escondeste?"

"Mas, effendi... não tenho essas coisas. Sou um otomano pacífico e cumpridor da lei. Não possuo armas nenhumas

nem..."

O oficial desferiu um soco repentino no estômago de Hagop, calando-o e forçando-o a dobrar-se de dor. A seguir deu-lhe uma joelhada brutal no rosto inclinado para a frente, fazendo o dono da casa estatelar-se no chão. As mulheres gritaram de horror e Arshalous fez tenções de ajudar o marido, mas um soldado agarrou-a e arrastou-a para o outro lado da sala. As filhas gritavam, o pânico nos olhos, e Krikor, sentindo-se impotente para ajudar Hagop, abraçou-as para tentar acalmá-las.

Estendido no chão, o dono da casa tinha a mão no rosto e os dedos sujos de sangue. O oficial deu dois passos na sua direcção e acocorou-se diante dele.

"Diz-me onde tens as armas de fogo escondidas", ordenou o turco num registo sereno, quase amigável. "Senão, vou ser forçado a prender-te e aplicar-te um tratamento que te fará falar."

"Effendi, juro pela minha família que não tenho armas de fogo escondidas em parte nenhuma", retorquiu o anfitrião, ainda deitado no soalho. "Não posso entregar o que não tenho."

"Assim forças-me a deter-te."

Hagop fez um esforço para se levantar e sentou-se no chão, as mãos a limparem o sangue que lhe escorria pelo nariz, onde levara a joelhada.

"Mas porquê, effendi? Se tivesse armas, prendia-me. Uma vez que não tenho, prende-me na mesma. Que posso eu fazer?"

O oficial endireitou-se e fez sinal aos soldados, que pegaram em Hagop e o arrastaram para fora de casa. Lavadas em lágrimas e quase histéricas, Arshalous e as filhas gritaram por ele, mas os intrusos fizeram uma barreira e não as deixaram passar. Constatando que elas não estavam em condições de ouvir uma palavra que fosse, o turco encarou o avô Sisag, que a tudo assistia com mutismo resignado.

"Temos uma quota de armas de fogo por preencher", disse. "A bem do vosso familiar, espero que as entreguem."

com um movimento brusco, voltou as costas e saiu de casa, levando os seus homens consigo.

 

Uma chuva miúda cobria Hyde Park como um véu prateado naquela manhã de brumas; parecia que uma fina cortina de humidade se abatera sobre o parque, a luz metálica emanada das nuvens de chumbo a espraiar-se pela cidade e a reflectir-se até nas pétalas molhadas das flores. De cartola na cabeça e bengala na mão a tiquetaquear no piso com a ponta, Kaloust perfazia o seu "constitucional" ao ritmo do costume. Não desgostava daquele clima melancólico nem do orvalho que humedecia o chão; pelo contrário, a frescura matinal tinha o condão de o revigorar.

"Sir!", chamou uma voz. "Um minuto, sir/"

Deteve-se no caminho que serpenteava pelo relvado e virou-se para ver quem o interpelava. Era o mordomo.

"Aconteceu alguma coisa, Humphrey?"

O butler vinha impecável na sua gabardina clara e chapéu de coco negro, elegante como um gentleman. Manteve a pose imperial até quando mergulhou acidentalmente o pé esquerdo numa poça de lama que se atravessava no caminho e que o salpicou até ao joelho.

"Ligaram do escritório, sir", anunciou Humphrey, impassível apesar da perna enlameada. "Chegou um telegrama para o senhor."

"Telegrama? De quem?"

"De Genebra, sir. Creio que o senhor tinha a máxima urgência no assunto e por isso vim eu mesmo informá-lo."

Um telegrama de Genebra, sabia Kaloust, só podia ter sido remetido por Salim Bey. com o início da guerra, as comunicações entre Londres e Constantinopla haviam sido interrompidas e sempre que queria comunicar com o seu velho amigo turco usava um contacto otomano na cidade suíça. Fora o que, de resto, fizera quando semanas antes escrevera a Salim Bey. Mas porque lhe havia respondido o ministro otomano das Finanças com um telegrama e não com uma carta? Haveria novidades? E de que tipo?

Sem perder mais tempo, Kaloust interrompeu o constitucional e voltou de imediato para casa. Chamou o chauffeur e, em alguns minutos, já se encontrava a bordo do seu elegante Delaunay Belleville Landaulette a caminho do escritório em St Helen's Place.

"O telegrama?", foi a primeira coisa que perguntou quando entrou no escritório, os olhos a dardejarem em todas as direcções na ânsia de saber notícias do filho. "Onde está ele?"

"No seu escritório, sir", informou-o o seu assistente, Robert Cook. "Deixei-o sobre a secretária."

Logo que penetrou no gabinete deparou-se de facto com o envelope do Royal Post Office no lugar onde Cook disse que ele estaria. Atirou a cartola para o cabide e, com um leve tremor de nervosismo a agitar-lhe as mãos, precipitou-se sobre a mesa, pegou no sobrescrito e rasgou a faixa lateral, extraindo o telegrama.

 

     RECEBI CARTA STOP PRECISAMOS DE FALAR STOP

     ENCONTRO NO GRAND HOTEL INTERLAKEN STOP

     PRÓXIMO DIA 12 AS 14HOO STOP SALIM BEY

 

Interlaken? Porquê um encontro em Interlaken? Por que motivo o seu amigo não lhe respondia por simples carta? Para quê dar-se a tanto trabalho? O que se passava?

Sentiu uma presença à porta do escritório.

"Alguma coisa importante, sír?"

Era Robert Cook, o jovem advogado que contratara quando abriu o escritório e que ainda se encontrava ao seu serviço. O patrão desviou o rosto para a janela e despejou o olhar nos inúmeros guarda-chuvas que deslizavam pelo piso molhado dos passeios.

"É o meu filho", murmurou. "Salim Bey pediu-me um encontro urgente em Interlaken. Deve haver novidades."

"Se me permite perguntar, boas ou más?"

Uma boa pergunta, pensou Kaloust. O facto é que Salim Bey tinha algo para dizer e não se atrevia a pô-lo por carta, decerto com medo de que a espionagem nos correios otomanos lhe interceptasse a missiva. Girou na cadeira e cravou os olhos escuros nos azuis do seu funcionário.

"Provavelmente más."

E voltou-se de novo para a janela, pensativo e abatido.

 

A detenção de Hagop deixou a família Kinosian mergulhada num estado de absoluta confusão. Após uma hora de aturdimento, Arshalous deitou um xaile pelos ombros e saiu em passo determinado em direcção à casa de um vizinho, um arménio abastado que tinha assento na associação de comerciantes da cidade e estava habituado ao contacto com as autoridades turcas. A ideia era implorar-lhe ajuda e conseguir a sua intervenção para libertar o marido o mais depressa possível, mas pouco depois regressou com uma expressão desorientada na face.

"Também o prenderam", murmurou, tentando digerir o significado do que se estava a passar. "Meu Deus! Ele tem amigos na administração e mesmo assim prenderam-no! Se lhe fizeram isso a ele, quem acudirá ao Hagop? Quem nos acudirá a nós?"

A todo o instante chegavam notícias de pessoas que viviam no bairro e que também haviam sido levadas pelos soldados; tratava-se invariavelmente de homens, e quase sempre chefes de família. Os vizinhos começaram no final da manhã a juntar-se na rua em busca de ideias para resolver o problema, mas a impotência era geral e o mais que conseguiram foi reconfortar-se uns aos outros.

A situação ultrapassava Krikor, embora o visitante estivesse convicto de que uma dificuldade daquela natureza tinha uma solução evidente.

"Porque não apelam à justiça?", perguntou, expondo o que lhe parecia o caminho a seguir. "Não se pode entrar na casa de uma pessoa assim sem mais nem menos, sem um mandato do juiz e espancando e detendo as pessoas sem o menor sinal de que tenham cometido um crime! Isso é um abuso!"

As mulheres pareciam de cabeça perdida e não se encontravam em estado de responder ou sequer de raciocinar, tão habituadas estavam a que os homens se encarregassem daquele tipo de problemas, pelo que foi o avô Sisag a tomar a palavra.

"Isto não é a Inglaterra, jovem", disse o velho, a mão que segurava a bengala sempre a tremer. "Sabes qual a lei que se aplica por aqui? Kurd der vourar."

Krikor contraiu a cara numa careta.

"Kurd... quê?"

O avô Sisag puxou-o pelo braço e afastou-o das mulheres para poder falar mais à vontade.

"Quando um não muçulmano é acusado de um crime na Turquia, rapaz, é considerado culpado até prova em contrário", explicou. "Se fugir e não o encontrarem, a polícia deterá um homem da família, o pai, o irmão, o filho ou até o primo. Se não houver homens na família, prendem o chefe da comunidade e maltratam-no até que o suspeito se entregue às autoridades."

"Eles não podem fazer isso!"

"Mas fazem! Neste país, se um muçulmano matar um cristão acredita que prestou um serviço a Deus e assegurou um lugar no paraíso de Alá. Mas se um cristão matar um muçulmano, mesmo que em autodefesa, é o fim do mundo. Sofre o cristão e sofre a família."

"Então e os tribunais? Para que servem?"

O avô Sisag fungou e escarrou para o chão.

"É aqui que entra o Kurd der vourar", disse, esfregando o pé sobre o escarro para o cobrir com terra. "Conta-se que uma vez um chefe curdo muçulmano comprou uma bela espada. Quando ia com os amigos pela estrada, o curdo cruzou-se com um arménio que caminhava com a ajuda de um cajado. Vendo o arménio, o curdo constatou que estava ali uma bela ocasião para testar a espada e, sem mais, despenhou a lâmina sobre a cabeça do cristão. Num gesto instintivo de defesa, o arménio ergueu o cajado e, com a brutalidade do impacto, a espada partiu-se. Furioso, o curdo pegou no desgraçado e levou-o ao juiz, exigindo que o arménio o indemnizasse por lhe ter quebrado a lâmina. O arménio alegou que nada mais tinha feito que proteger-se, mas o juiz não teve contemplações. Perguntou-lhe se não sabia que havia sido um muçulmano que o atacara e disse-lhe que não tinha o direito de destruir um objecto que pertencesse a um muçulmano. Resultado? O arménio teve de pagar a espada partida. Nasceu assim a expressão Kurd der vourar. É o curdo que ataca."

Krikor fez um esgar, intrigado.

"Essa história é verdadeira?"

"Dizem que sim. Terá acontecido em Agantz." O velho encolheu os ombros. "Que importa isso? O facto é que Kurd der vourar reflecte com precisão os nossos direitos no Império Otomano."

"Mas então... o que podemos fazer?"

com um gesto impotente, o avô Sisag ergueu a bengala trémula e apontou-a para o fundo da rua, onde os soldados tinham desaparecido com Hagop e os restantes prisioneiros, e suspirou com resignação.

"Rezar."

Apesar de não passar de uma rapariguinha indefesa, Marjan libertou-se do torpor que a paralisou durante toda a manhã e, logo depois do almoço, aproximou-se da mãe com a decisão já tomada.

"vou à cadeia ver o pai!"

Arshalous arregalou os olhos de horror.

"Estás doida? Tu? A meteres-te ali, no meio daqueles... daquela gente? Nem penses nisso!"

"Tenho de ver o pai!", insistiu Marjan, determinada a levar até ao fim o projecto. "Não podemos ficar aqui sem fazer nada!"

"Mas... mas não vês que é pior ires ali?", argumentou a mãe. "Aqueles homens, aqueles animais... quando te virem, filha, dão cabo de ti!"

A rapariga ainda hesitou, uma vez que o raciocínio era fundamentado; ninguém sabia tão bem quanto ela como os homens reagiam à sua presença. Mas se ninguém fosse à cadeia e tentasse fazer alguma coisa como poderiam ajudar o pai? Deixá-lo-iam abandonado aos Turcos? Não, isso não podia ser! com um gesto resoluto, Marjan virou as costas e pôs-se a caminho.

"Já venho."

A rapariga cruzou a porta e saiu para a rua. Estupefacta, a mãe assomou à porta e viu-a afastar-se em direcção ao fundo da rua.

"Marjan!", gritou. "Volta! Por amor de Deus, volta! Não faças nenhuma loucura!"

Mas a decisão estava tomada e a filha seguiu o seu caminho sem sequer lançar um olhar para trás. Apesar da insensatez encerrada naquele acto, era impossível não lhe admirar a coragem. Vendo-a caminhar com passos tão decididos, e apesar de se sentir cada vez mais assustado com o evoluir de uma situação que não dominava e mal compreendia, Krikor teve vergonha do medo que o tolhia e correu para junto dela.

"vou contigo", disse-lhe quando alinhou o passo ao lado da rapariga. "Alguém tem de te proteger."

Marjan esboçou um sorriso frágil, mas não proferiu palavra. Caminharam por isso em silêncio, esmagados pelo tumulto em que se haviam transformado as suas vidas, o medo a ordenar-lhes que fizessem meia volta, o amor a impor-lhes que seguissem em frente, ela pelo pai, ele por ela.

Uma estranha calma abatera-se sobre o bairro arménio de Dicharechar. As lojas estavam fechadas, as janelas também, e viam-se pequenos grupos a cochichar junto de uma ou outra porta com cara de caso, atirando olhares amedrontados para o ocasional turco que por ali passava. A notícia de que os soldados tinham detido quase todos os chefes de família de uma das ruas ia-se espalhando pelo bairro.

Os dois jovens saíram dos quarteirões arménios e, como se tivessem penetrado noutro mundo, tudo mudou. A vida parecia prosseguir com absoluta normalidade no resto de Kayseri; dava até a impressão de que o que sucedera em Dicharechar não passava de um acontecimento de rotina na justa luta das autoridades contra os malfeitores. Os vendedores ambulantes grelhavam carne no carvão, viam-se mulheres de véu e lenço na cabeça a expor tecidos pelos passeios, as ruas enchiam-se de carroças, burros e cavalos e dos minaretes jorravam vozes melódicas a louvar a grandeza de Alá e a chamar os fiéis à oração.

A meio de uma rua passou por eles uma carroça enquadrada por soldados turcos e alguns populares. Espreitaram para o interior e viram um aglomerado caótico de corpos, um braço para aqui, uma perna voltada para fora, uma colecção de rostos roxos e inchados, os olhos vidrados e as línguas púrpura de fora; pareciam bonecos sujos, mas eram os enforcados da manhã. Marjan e Krikor desviaram o olhar, agoniados, embora não pudessem deixar de ver e de ouvir a turba turca que acompanhava a carroça e que se apercebera de que ambos eram também arménios.

"Em breve será a vossa vez, inch'Allah!", sorriu um homem desdentado, passando o dedo pelo pescoço num gesto de significado inequívoco. "A Turquia é para os Turcos."

Chegaram por fim à cadeia, à frente da qual se aglomerava uma pequena multidão, a maior parte homens de fez vermelho na cabeça. Sempre com Krikor colado a ela, Marjan furou pela massa inquieta de gente angustiada e tentou forçar a entrada, mas dois soldados bloquearam-lhe o caminho com maus modos.

"Onde pensas tu que vais?", perguntou um deles, lançando-lhe uma mirada dos pés à cabeça. "Os teus serviços só são requeridos fora das horas de expediente!" Soltou uma risada lasciva. "Deves ser fresca, deves..."

 

           "Quero ver o meu pai."

           O soldado empurrou-a.

           "Fora daqui, meretriz!"

 

A rapariga lançou um olhar de impotência a Krikor, como se lhe pedisse ajuda. Vendo-se interpelado por aquela súplica silenciosa, o seu protector meteu a mão ao bolso e retirou

uma nota.

"Deixem-nos entrar", pediu, estendendo o dinheiro aos guardas. "É só para esclarecer um equívoco."

Os soldados pegaram na nota e, voltando-se de costas para fingir que nada viam, fizeram-lhes sinal com a cabeça para passarem. O casalinho esgueirou-se pelo portão e penetrou no perímetro da prisão municipal, encaminhando-se directamente para o edifício central.

Uma vez lá dentro, dirigiram-se à secretaria. Marjan apresentou o caso ao balcão, mas o funcionário entediado nem a deixou terminar a exposição do que a trouxera ali.

"Esse caso está a ser coordenado pela Organização Especial", disse. "Não me meto nisso."

"Que Organização Especial, effendi?"

O turco abanou a cabeça com impaciência.

"Ordens de Constantinopla. Não posso ajudar."

Os dois visitantes entreolharam-se e Krikor percebeu que tinha mais uma vez de intervir. Havia quase um mês que estava em Kayseri e começara já a entender como algumas coisas funcionavam por ali, pelo que voltou a deitar a mão ao bolso e extraiu mais uma nota.

"Oiça, se libertar o senhor Kinosian tenho aqui uma oferta muito... digamos, generosa."

O homem atrás do balcão voltou a atenção para o dinheiro e um brilho fugaz de cobiça faiscou-lhe nos olhos negros, acicatando-lhe o interesse no caso.

"Não tenho poderes para tanto, receio bem", disse. "Mas, a troco dessa quantia, posso explicar-vos o que devem fazer para atingirem o resultado que pretendem..."

Krikor hesitou. Não confiava muito rio seu interlocutor.

"Dar-lhe-ei esta nota", prometeu, acenando com o dinheiro, "se o seu conselho for bom e conduzir aos resultados que desejamos."

O funcionário olhou em redor, evidentemente preocupado com manter-se discreto, e inclínou-se para o visitante.

"Temos de preencher uma quota de apreensão de armas de fogo", murmurou. "Arranjem umas espingardas e tragam-nas cá. com uma pequena ajuda de bakshish, isso bastará para fazer a coisa."

 

O ar rarefeito da montanha conferia uma qualidade cristalina à manhã. As cores eram mais vivas, os pormenores pareciam ampliados, a luz brilhava com intensidade especial. A paisagem diante do Grand Hotel de Interlaken arrebatava Kaloust com a sua orgia cromática e harmonia de formas. O verde dos vales derramava-se pelo azul dos lagos e os cumes leitosos das montanhas reluziam ao sol numa desconcertante sinfonia visual, como se a natureza fosse pura arte.

Ou pelo menos foi o que o novo cliente pensou quando, depois de entrar na suíte do hotel, saiu para a varanda e os seus sentidos foram inundados pelo panorama exuberante que o cercava. A montanha Jungfrau escalava o céu em picos sucessivos, como os dentes de uma serra monumental, e de olhar extasiado a contemplar aquele recanto dos Alpes suíços o recém-chegado pensou que artista algum seria capaz de criar, ou sequer captar, tamanha perfeição.

"Magnífico!", murmurou. "Simplesmente magnífico!"

Mas depressa a lembrança do que ali o trouxera lhe nublou o olhar. Como era possível que o mesmo Deus que criara tão deslumbrante maravilha fosse o mesmo que autorizava a guerra que devastava a Europa e fazia dos Turcos os eternos carrascos dos Arménios e ainda deixava que o seu filho se fosse meter naquele inferno?

Sentou-se pela uma da tarde no restaurante do Grand Hotel, os olhos a vaguearem pelo magnífico vulto esbranquiçado da Jungfrau que se erguia entre tufos de nuvens. Parecia que às encostas se colavam algodões, a montanha a pairar com majestade sobre os glaciares alpinos e o sopé viçoso.

"M'sieur", interpelou-o o empregado de lápis e bloco de notas na mão. "O que deseja para o almoço?"

Como se despertasse de um sonho, Kaloust pousou a atenção na ementa e pensou que deveria experimentar uma especialidade suíça.

"Porque não um fondue de queijo?"

Quando o garçon se afastou, os olhos do arménio desviaram-se para um homem loiro e baixo de gravata às cornucópias que se sentava na mesa ao lado. Conhecia-o de algum lado, embora não o conseguisse situar com exactidão, e percebeu por uma breve troca de olhares que ele também o reconhecera.

Perguntou a si mesmo se não seria alguém relacionado com Salim Bey, mas o encontro com o seu velho amigo turco só estava marcado para o dia seguinte e não lhe parecia que ele tivesse mandado batedores. Além do mais, aquele homem era evidentemente europeu, o que o retirava da órbita de Constantinopla.

Depois do almoço, e para ajudar a digestão, fez um constitucional. Desceu até ao lago Thun e apreciou o seu aspecto de cratera elegante, rodeada por montanhas. À noite voltou ao restaurante para o jantar e foi aí que o homem da gravata às cornucópias venceu o pudor e se aproximou da sua mesa.

"Dá-me licença?", perguntou, obsequioso, em francês. "Peço desculpa pela intrusão, mas m'sieur é Kaloust Sarkisian, não é verdade?"

"De facto, sou."

O desconhecido sorriu.

"O meu nome é Jean-Marc Hertault", apresentou-se. "Sou senador na Assembleia Nacional e presido à Comissão de Relações Exteriores do Senado. Dá-me licença que me sente à sua mesa?"

Conhecia aquele rosto dos jornais, compreendeu Kaloust. E o francês identificara o arménio por causa das responsabilidades que assumira no parlamento e que tinham relevância na área energética. Ao longo da refeição o senador Hertault revelou-se um homem conversador, com uma visão grandiosa da França que começou a expor e que Kaloust depressa interrompeu para repudiar com um enfático gesto de discordância.

"Nenhum país é grande se não dominar o negócio do petróleo", argumentou. "Tanto quanto sei a França está fora deste negócio, não é verdade? Então não pode aspirar à grandeza."

"Que quer dizer com isso? Está fora do negócio?! Nós temos a Industrie Nationale de Raffinage..."

"Uma associação monopolista de merceeiros!", exclamou Kaloust com um esgar de desdém. "Acumulam lucros enormes à custa da especulação de preços e sem qualquer estratégia de interesse nacional! Sabe como trabalham eles? Compram aos Americanos e à Royal Dutch Shell petróleo já refinado, ao qual é acrescentado lixo químico de propósito para evitar taxas de importação. Uma vez em França, os merceeiros da Industrie Nationale removem esse lixo nas suas refinarias. E é a isso que chamam refinação!" Esboçou uma careta. "Um embuste, chamo-lhe eu!"

O senador corou.

"Bem... enfim..."

"com o início da guerra", acrescentou o arménio sem abrandar o ataque, "como está a França a abastecer-se de petróleo?"

"Pois... com dificuldade."

"E sabe porquê? Porque não possui uma única participação em poços de petróleo." Arrebitou o indicador, para sublinhar a ideia. "Uma única! Claro que, numa situação de crise como a que vivemos, o país fica sujeito à boa vontade de quem realmente possui o petróleo, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. É assim que a França pensa manter a sua grandeza? A pedinchar petróleo aos outros?"

O embaraço de Jean-Marc Hertault parecia neste ponto não conhecer limites.

"Quer dizer...", atrapalhou-se, "enfim, o que sugere o senhor que façamos?"

A pergunta apanhou Kaloust de surpresa. O que sugeria ele que os Franceses fizessem? O arménio ponderou o assunto por um momento e apercebeu-se de que, de uma forma inesperada, se abrira ali uma curiosa oportunidade. E se...? Não havia planeado o encontro, mas decidiu tirar dele todo o proveito possível. Endireitou-se no assento e, ordenando os pensamentos, desviou momentaneamente o olhar para a Jungfrau e admirou mais uma vez os picos que serravam os montículos de nuvens.

"Proponho que a França entre no negócio mundial de petróleo", sentenciou. "Nem mais nem menos."

O senador francês parecia esgazeado, inebriado com a visão que deste modo inesperado lhe era apresentada.

"O negócio mundial? Mas... mas como?"

Os dedos do arménio saltitaram sobre a mesa, à maneira de um pianista a atacar o teclado, como se trabalhassem a solução para o problema.

"Existe uma forma", disse. "Mas gostaria que a França, caso eu lhe resolva essa dificuldade, se torne minha eterna aliada neste negócio. Que lhe parece?"

O senador Hertault pestanejou.

"Não sei se... se estou em condições de lhe dar essa garantia."

"Eu explico-lhe o plano que tenho em mente", disse Kaloust. "Se achar bem, o senhor arranjar-me-á depois as garantias necessárias junto do seu governo e dos seus colegas da Assembleia Nacional, incluindo da oposição. De acordo?"

O seu interlocutor ponderou a proposta por alguns instantes.

"Porque não?"

Era a luz verde de que Kaloust precisava. Consciente de que estava perante uma grande oportunidade, esfregou as mãos e encarou o seu parceiro de mesa.

"Tenho neste momento uma participação de cinco por cento numa empresa chamada Turkish Petroleum Company, que detém os direitos exclusivos para a exploração de todo o petróleo existente no Império Otomano", revelou. "Os outros accionistas são o Deutsche Bank, a Royal Dutch Shell e a Anglo-Persian. com o início da guerra, porém, o governo britânico confiscou as acções do Deutsche Bank e a Anglo-Persian deixou de pagar as despesas da Turkish Petroleum Company, que só se mantém viva porque eu e a Royal Dutch Shell estamos a cobrir as despesas correntes."

"Que estranho", observou o francês. "Por que razão está a Anglo-Persian a boicotar a sua própria empresa?"

O arménio baixou a voz, assumindo uma postura quase conspirativa.

"O Primeiro Lorde do Almirantado, Winston Churchill, encontra-se por detrás de tudo", murmurou. "Creio que o governo britânico faz o que pode para entregar à AngloPersian o exclusivo do petróleo do Império Otomano depois da guerra." Retomou o tom normal, tornando-se até assertivo. "Mas enganam-se! Os nossos direitos são legais e, na altura própria, saberemos fazê-los respeitar."

O senador sacudiu a cabeça, sem entender nada.

"Isso é muito interessante", disse, evidentemente a pensar o contrário. "Mas qual a relevância desse assunto para a França?"

"A participação alemã", retorquiu Kaloust com um brilho arguto nos olhos. "Os Britânicos confiscaram as acções do Deutsche Bank, não é verdade? Se e quando os Aliados ganharem a guerra, o que vai suceder a essas acções? Não faria sentido que elas fossem parar às mãos de um dos vencedores do conflito?"

No momento em que enfim entendeu onde o seu interlocutor queria chegar, o senador Hertault abriu a boca de espanto.

"Está a sugerir que... que essas acções vão para a França?"

A pergunta extraiu um sorriso malicioso ao arménio.

"Voilà!"

 

O conselho dado pelo homem da secretaria da cadeia coincidia com as palavras de despedida do oficial que detivera Hagop, pelo que no dia seguinte o avô Sisag foi ter com uns caçadores curdos que frequentavam o mercado de Kayseri e comprou-lhes uma velha espingarda a troco de dez moedas de ouro.

Acompanhado por Krikor e por Marjan, o idoso dirigiu-se ao princípio da tarde à cadeia e, juntamente com uma quantidade agradável de bakshish, os três entregaram a arma a um oficial que o turco da secretaria lhes indicou.

"Aguardem aqui."

Instalaram-se no átrio junto à entrada e ficaram à espera. Uma hora depois, um vulto esfarrapado apareceu a coxear no átrio, o corpo vacilante recortado à meia-luz.

"Pai!", gritou Marjan, a primeira a aperceber-se da identidade do vulto. "Paizinho!"

com um andar trôpego e dorido, era claro que Hagop havia passado um mau bocado nos calabouços; vinha combalido, com o rosto e o tronco cobertos de equimoses e os pés envolvidos em panos sujos. Vendo-o naquele estado, e depois de recompensar o homem da secretaria, Krikor saiu à rua e alugou uma carroça, onde depositaram o chefe da família Kinosian e o levaram imediatamente para casa.

O regresso de Hagop foi acolhido com as lágrimas, os sorrisos, a preocupação e os mil cuidados de Arshalous, que pôs de imediato água ao lume e, quando ela começou a ferver, misturou-a com água fria e despejou-a na banheira de ferro, onde o marido se meteu. O momento mais sensível ocorreu quando teve de retirar os panos que envolviam os pés. Hagop gemeu de dor e por baixo emergiram dedos ensanguentados e com as extremidades em carne viva.

"Que horror!", exclamou a mulher, agoniada com o que via. "Que te fizeram eles, meu Deus?"

"Espetaram-me pregos nas unhas", disse o marido, as pálpebras a humedecerem e o queixo a tremer no limiar do colapso emocional. "Fizeram-me isso a mim e a outros. Queriam saber onde escondíamos as armas."

O avô Sisag foi chamado a inspeccionar as feridas. Sem dizer uma palavra, saiu de casa e desapareceu na direcção do mercado. Voltou uma hora depois com uma cabra, que levou para o quintal e matou. Arrancou-lhe a pele e, ainda húmida de sangue, cortou-a em tiras. Levou as tiras para o quarto onde repousava o genro e, uma a uma, assentou-as sobre as chagas como se fossem pensos.

"Pronto!", exclamou quando acabou o trabalho. "Isto vai ajudar a cicatrizar."

Ao longo da semana que se seguiu mais alguns vizinhos regressaram a casa depois de as famílias terem entregue armas de fogo e bakshish para que os libertassem. Todos eles apareceram com mazelas mais ou menos graves, como foi o caso de Aris, que voltou com três dedos amputados, e de Bohjalian, o merceeiro, que trazia as costas marcadas a sangue pelas vergastadas dos chicotes, além de outros homens a quem foram arrancadas as unhas.

Os arménios de Kayseri, como de resto todos os arménios do Império Otomano, regressaram então ao velho hábito de vigiar as mesquitas no final das orações de sexta-feira. Foram colocados homens às esquinas diante dos santuários islâmicos com a missão de observar os muçulmanos que saíam das orações. Se aparecessem bem-dispostos era porque o imã tinha proferido palavras tranquilas; se surgissem com cara de caso para os Arménios, com toda a certeza o sermão desse dia tinha versado os giavour, os infiéis, de um modo desagradável. Isso daria sinal de que se avizinhavam mais problemas para a comunidade.

Os observadores nas mesquitas traziam por esses dias notícias alarmantes: os Turcos mostravam-se muito agressivos para com os Arménios depois da oração das sextas-feiras. Em breve a agressividade se traduziu numa nova vaga de detenções, só que desta vez as autoridades não se limitaram a prender os chefes de família, também levaram outros homens e rapazes. Nalguns casos foram buscá-los a casa, como aconteceu com o mesmo Bohjalian, noutros mandaram-nos apresentar-se na polícia, o que sucedeu a vários jovens da vizinhança.

Questionado pelo chefe da igreja arménia de Kayseri, o chefe da polícia alegou que as medidas eram necessárias porque se havia descoberto que os arménios da cidade estavam envolvidos numa conspiração traiçoeira. Quando lhe pediram provas, o responsável turco apresentou um pequeno monte de armas que haviam sido encontradas nas últimas semanas em casa de arménios.

"As armas que eles apresentaram são aquelas que tivemos de lhes entregar", constatou o avô Sisag com uma expressão de perplexidade. "Ah, que gente!" Abanou a cabeça e respirou fundo. "Estes Turcos são mestres na arte da duplicidade! Obrigam-nos a comprar armas de fogo para lhes entregar, alegando que têm uma quota a preencher, e depois apresentam essas armas como se fossem a prova de que conspirávamos contra eles..."

As famílias voltaram a concentrar-se à porta da cadeia para pagar o bakshish que libertaria os prisioneiros, mas dessa feita o resultado foi diferente. Depois de subornarem os guardas, depararam-se com as celas vazias e foram informados de que os homens detidos haviam sido todos deportados.

O paradeiro dos presos permaneceu desconhecido durante dois dias, ao fim dos quais a mulher de Bohjalian apareceu na casa dos Kinosian com o rosto molhado de lágrimas.

"Já ouviu as notícias?", perguntou, o terror impresso nos olhos. "Dizem que foram levados para fora da cidade e... e... mortos!"

Arshalous enlaçou-a com o braço.

"Quem disse isso?"

"O meu sobrinho, o Boghos."

"Ele viu-os?"

A mulher de Bohjalian abanou a cabeça.

"Alguém lhe contou."

A anfitriã apertou a vizinha contra ela, procurando serená-la e reconfortá-la.

"São só boatos", disse. "Os Turcos não nos dizem nada e pomo-nos a imaginar coisas. Fique descansada. O seu homem está bem."

"Mas porque andam a fazer isto?", interrogou-se ela. "Que mal lhes fizemos nós?"

"Ora, já sabemos como são os Turcos. Além do mais, andam nervosos com a guerra. Mas quando os Aliados vencerem vamos ver-nos livres desta gente toda, vai ver. E o seu marido estará de regresso a casa, não se preocupe."

Os boatos revelaram-se porém persistentes. Todos os arménios em Kayseri conheciam alguém que conhecia uma pessoa que, ao passar neste ou naquele local, vira cadáveres de homens amontoados na berma das estradas e aves de rapina a debicá-los como se fossem petiscos. Algumas pessoas quiseram confirmar as notícias e tentaram ir aos sítios mencionados, mas viram o caminho barrado pelos postos de controlo instalados pelos gendarmes nas saídas da cidade.

"A autorização de deslocação?", perguntavam invariavelmente os responsáveis desses postos. "Como sabem, e desde que a guerra começou, é necessária permissão por escrito das autoridades militares para sair da cidade e circular nas estradas. Onde está ela?"

Naqueles tempos nenhum arménio recebia tal autorização, pelo que os esforços para confirmar as notícias foram infrutíferos. As informações, no entanto, não paravam de circular, sempre mencionando que "alguém disse que alguém viu", e o assunto tornou-se de tal modo assustador e obsessivo que Hagop se cansou e, ainda de cama em convalescença, proibiu que lá em casa se falasse no mistério do paradeiro dos vizinhos.

"Nem mais uma palavra", sentenciou em tom enfático. "Ainda atrai azar..."

Os soldados apareceram mais uma vez sem aviso a meio da noite. Dessa vez, porém, não foi para revistar a casa com o olhar de quem sabia o que procurava, dirigiram-se primeiro à sala e depois ao quarto, onde arrancaram Hagop da cama para depois o arrastarem até à porta. Arshalous tentou impedi-los mas foi brutalmente afastada e o mesmo aconteceu às três filhas, que se agarraram ao pai enquanto ele era levado pelos turcos.

"Pai!"

O vulto de Hagop fundiu-se com a noite, como se a escuridão o tivesse engolido, e dele apenas ouviram as últimas palavras atiradas enquanto era levado pelos soldados.

"Fiquem aí, meninas. Cuidem da vossa mãe!"

Na manhã seguinte, Krikor subornou um guarda da cadeia para saber onde podia encontrar o chefe da família Kinosian e como o poderia libertar. O turco guardou o dinheiro e disse-lhe que a única coisa que podia fazer era dar uma informação. Os prisioneiros recolhidos durante a noite iam ser deportados ao meio-dia.

"Para onde?"

O homem encolheu os ombros.

"Só Alá sabe", disse num tom fatalista. "Alá e a Organização Especial, claro."

Quando Krikor regressou a casa com a notícia, desencadeou-se um frenesim. A primeira reacção de Arshalous e Marjan foi recomeçar a chorar, mas o rapaz convenceu-as a recuperarem a compostura com o argumento de que tinham de ir para a saída da cidade para ver o cortejo dos deportados e animar Hagop; quem sabe até se não o poderiam ajudar dando-lhe mantimentos e roupas.

O argumento convenceu-as e sobretudo sugeriu-lhes um propósito. Arshalous meteu-se na cozinha a preparar comida enquanto Marjan foi cozer pão no tonir e Krikor e o avô Sisag se dedicaram ao vestuário, localizando e arrumando calças e camisas lavadas que embrulharam num pano. Perto do meio-dia toda a família saiu apressadamente de casa e posicionou-se na rua que dava acesso à estrada.

O cortejo apareceu por volta da uma da tarde, mas ver os deportados deixou-os em choque. Caminhavam aos pares, com as pernas acorrentadas, como servos de outras eras. Viam-se adultos e adolescentes, homens abastados e indigentes, cultos e ignorantes, todos reduzidos à expressão mínima da sua dignidade, vulgares escravos que os turcos encaminhavam a golpes de chicote pelas ruas de Kayseri.

Uma multidão ululante de mulheres e velhos arménios aglomerou-se nos passeios, todos em bicos de pés a tentar identificar um pai, um marido, um irmão, um filho, um neto até. As mulheres gritavam sempre que reconheciam quem buscavam, os nomes cruzavam o ar, largavam-se sucessivos adeuses, um beijo, muitas lágrimas, uma corrida em direcção ao homem deportado interrompida pela coronha de uma espingarda, um derradeiro aceno que se perdia em toda a confusão, um suspiro que se transformava numa eterna despedida.

No meio daquela fileira triste e miserável de homens acorrentados, Marjan reconheceu aquele que procurava.

"Pai?", gritou, dando saltos no passeio e gesticulando vigorosamente. "Pai!"

A mãe e as irmãs mais novas voltaram-se angustiadas na mesma direcção.

"Hagop!"

"Pai!"

Arshalous pegou no cesto com o farnel e no saco com a roupa e largou na direcção do marido, mas um chicote estalou-lhe nas costas e travou-a. Os guardas turcos estavam determinados a não permitir o contacto dos deportados com as famílias, pelo que os Kinosian se limitaram a ver Hagop passar ao longe, a coxear, o olhar angustiado preso na família que dele se despedia.

O cortejo desapareceu enfim para além das portas da cidade, deixando atrás um coro de lamentos. No rescaldo daquela visão descoroçoante, Arshalous e as filhas ficaram inconsoláveis e Krikor, com a ajuda débil do avô Sisag, teve de amparar umas e outras no penoso caminho de regresso

a casa.

Nos dias seguintes avolumaram-se os rumores sobre a matança de homens à saída de Kayseri, mas Arshalous e Marjan recusavam-se a aceitá-los; pareciam-lhes demasiado inverosímeis para ser verdadeiros. Além do mais, para quê tanta encenação? Se os quisessem matar, não o teriam feito os turcos quando eles se encontravam detidos? No íntimo, todavia, alimentavam a permanente angústia sobre a veracidade dos boatos. E se houvesse um fundo de verdade?

Foi a prima Meghrouni quem lhes trouxe a primeira informação concreta sobre o assunto. Três dias depois do triste cortejo, apareceu em casa dos Kinosian com o rosto fechado e só quando se sentou junto ao tonir é que explicou ao que vinha.

"O homem que abastece a minha loja é o Nikias, o grego de Aleppo", começou por dizer. "Ele chegou ontem e disse que viu as margens do rio pejadas de corpos de homens." Fez uma pausa e engoliu em seco, ganhando coragem para expor o resto. "Entre eles havia muitas cruzes arménias espalhadas pelo chão."

"Ele... ele identificou o meu marido?"

A prima Meghrouni baixou a cabeça e sacudiu-a negativamente com um movimento quase imperceptível.

"Não viu o Hagop especificamente", disse. "Mas também não o procurou. Observou as margens do rio cobertas de cadáveres." Levantou os olhos e fitou a anfitriã. "O que se está a passar é evidente. Eles levam os nossos homens para fora da cidade e matam-nos."

Arshalous quase se indignou.

"Como podes dizer isso, prima?"

"O Nikias falou com um curdo que vive nas redondezas e que testemunhou o que ali aconteceu", revelou. "O curdo disse que viu os turcos trazerem revoadas de homens e mandá-los sentarem-se à beira do rio. Deram-lhes ordens para rezar e depois atacaram-nos com foices, machados e martelos." Suspirou, duas grossas lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto pálido. "Temos de encarar os factos, prima. Eles estão a matá-los a todos."

 

O belo Hispano-Suiza Alfonso XIII azul-turquesa cruzou o portão com grande aparato e imobilizou-se diante da porta principal do Grand Hotel de Interlaken. O porteiro, um homem imponente que ostentava uma garbosa farda branca repleta de enfeites e fios dourados, estava tão medalhado que parecia um almirante. Abriu a porta com um floreado e da viatura desceu a figura franzina e elegante de um homem de barba pontiaguda e roupas tradicionais otomanas.

"Salim Bey!", saudou Kaloust, que foi direito ao recém-chegado de braços abertos. "Há quanto tempo!"

O encontro decorreu nas escadarias do hotel. Acompanhado por um séquito para o assessorar ou simplesmente lhe carregar as malas, o ministro otomano das Finanças estreitou o seu protegido arménio entre os braços. Trocaram cumprimentos e palavras de circunstância, até que entraram no átrio e o recém-chegado se dirigiu ao balcão. Depois de receber a chave da sua suíte, afastou-se para se instalar nos aposentos.

"Já volto!", prometeu com um aceno de mão lançado da escadaria. "Vá encomendando um café."

O governante turco reapareceu meia hora mais tarde, com roupa informal e aspecto mais descontraído. Deu algumas instruções aos seus assessores e, uma vez resolvidas as questões de trabalho, dirigiu-se para Kaloust. Foram os dois para o terraço, onde o café os esperava já. O arménio aproveitou para cobrir o amigo de agradecimentos pela gentileza que revelara ao marcar encontro em local tão longínquo de Constantinopla.

"Oh, não custou nada", retorquiu o governante otomano. "Sabe, tive de ir a Berlim negociar financiamentos para o esforço de guerra. Vinha agora de regresso e fiz um desvio pela Suíça com a ideia de negociar o pagamento de juros de empréstimos que nos foram concedidos pelos bancos suíços." Bufou, como se tivesse acabado uma corrida. "Enfim, uma canseira! Aproveitei para tirar uns diazitos para descansar aqui em Interlaken e, já agora, ter dois dedos de conversa consigo."

"Foi muita amabilidade da sua parte."

O semblante de Kaloust aparentava grande tranquilidade, mas Salim Bey conhecia-o bem e sabia que aquela máscara escondia uma profunda ansiedade. Que pai ficaria indiferente aos perigos que o seu filho corria em tempos tão incertos?

"Oiça lá, que ideia foi essa de mandar o seu rapaz para o Império Otomano?", perguntou de chofre, entrando directamente no assunto. "Quando li a sua carta nem queria acreditar! Tem a noção do que foi fazer?"

O arménio esboçou um gesto impotente.

"Acredite que eu não sabia de nada", retorquiu. "O rapaz apaixonou-se por uma rapariga qualquer e, sem dizer nada a ninguém, partiu para Constantinopla e só nos informou quando já ia a caminho."

"Onde está ele agora?"

"Não sei", disse Kaloust, o olhar pela primeira vez a trair a angústia que o perturbava. "Acha que... que ele corre perigo?"

A pergunta tinha ido certeira ao alvo, pensou Salim Bey. O governante otomano respirou fundo, como se ganhasse embalo para começar a falar e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos na mesinha.

"Desde a derrota nas Guerras Balcânicas, em 1913, que alguns elementos do meu governo andam obcecados com a ideia de pôr fim ao otomanismo e instituir o turquismo, eliminando as etnias cristãs do império."

"Sim, já me falou nisso há uns tempos", recordou Kaloust. "Os Turcos querem vingança por terem perdido os territórios na Europa."

"Exacto", confirmou o turco. "O problema é que as potências europeias sempre impediram que houvesse uma perseguição aberta aos cristãos otomanos. Por isso o meu governo criou uma entidade chamada Organização Especial, cuja função é liquidar as concentrações de populações que não sejam muçulmanas. Foram formados chefes, constituídos por bandos de criminosos libertados das cadeias, aos quais se juntaram refugiados turcos da Rumélia e aldeãos curdos, usados para fingir que o governo não tem nada a ver com essas perseguições. Na verdade, os comandantes dos chetes são oficiais da Organização Especial."

O arménio fixou os olhos no seu interlocutor, com medo de formular a pergunta que se impunha mas sentindo que não podia continuar a ignorá-la.

"O senhor é membro desse governo", disse. "Também esteve envolvido no assunto?"

Salim Bey abanou a cabeça.

"Tudo isto foi decidido por um núcleo duro em reuniões secretas", revelou. "Os outros membros do governo, incluindo eu, não foram informados. Muito do que lhe vou contar resulta de informações que me chegaram por outros canais."

"Ah, entendo."

"Os chetes desataram a lançar operações contra as populações cristãs, sobretudo gregas e arménias, mas sempre às escondidas para não ofender os europeus. com o envolvimento do Império Otomano na guerra, contudo, as coisas mudaram. A opinião das potências ocidentais deixou de ter qualquer valor, uma vez que se tornaram nossas inimigas. E a opinião dos nossos aliados, a Alemanha e o Império Austro-Húngaro, foi moderada pela necessidade de se manter uma frente unida. Daí que o meu governo, ou os elementos mais poderosos do meu governo, se sintam com as mãos livres para proceder como entenderem." Fez uma expressão interrogativa. "E o que acha que eles decidiram fazer?"

A resposta parecia evidente a Kaloust.

"Recomeçaram a perseguir os Arménios."

"Pior do que isso."

"Pior?"

Salim Bey abanou a cabeça, como se ainda lhe custasse acreditar no que ele próprio ia dizer.

"Começou a turquização da Anatólia", anunciou. "O problema é que a Anatólia é ocupada pela Arménia. Qual é a solução? Apagar a Arménia do mapa."

As palavras eram de tal modo radicais que Kaloust esboçou uma careta de incompreensão.

"Mas como se faz uma coisa dessas? Querem declarar administrativamente que a Arménia não existe?" com um gesto deliberadamente lento, Salim Bey pousou um grande envelope sobre a mesa e extraiu do interior uma folha que parecia a página de um relatório.

"Este memorando está assinado por Talat Paxá, o nosso ministro do Interior, e é endereçado aos nossos aliados alemães a pedir que calem o seu embaixador a propósito das perseguições aos Arménios", explicou, pousando os olhos no texto. "Escreveu Talat Paxá: 'O que é preciso fazer tem de ser feito agora; depois da guerra será demasiado tarde.'"

"Então é o que estou a dizer", argumentou o seu interlocutor. "Eles querem perseguir os Arménios."

"É mais do que isso, já lhe disse", insistiu o ministro otomano. "Os meus colegas do governo falam abertamente em conseguir 'unidade islâmica e turca' no império. com o desembarque dos Aliados em Gallipoli e a derrota em Sarikamis, o processo foi acelerado. O governo emitiu uma lei de deportação e foram presos centenas de intelectuais arménios. As perseguições já decorrem e houve até uma revolta arménia em Van."

"Sim, isso foi noticiado nos nossos jornais."

"O que não sabe, e os vossos jornais não noticiaram, é o que essas deportações realmente significam."

Kaloust cofiou a barba.

"Bem, presumo que queiram tirar as populações arménias de um lado e mandá-las para outro. Não é isso uma deportação?"

O governante otomano voltou a abanar a cabeça; tornara-se talvez o seu gesto mais frequente em toda a conversa. Voltou a atenção para o envelope e extraiu mais um papel.

"Isto é uma carta do nosso grão-vizir ao ministro do Interior", disse, concentrando-se nas linhas escritas em caracteres árabes. "É datada de 26 de Maio de 1915, como vê. Tem apenas uns dias." Apontou para uma linha em particular redigida em caracteres árabes. "Ele diz que as deportações são necessárias para que a questão arménia seja, e cito, esâsli bir suretde hal vê fash ile kulliyen izâlesi." Ergueu os olhos. "Não sei como está o seu turco, mas esta frase significa..."

"'... levada até ao fim de uma forma global e absoluta'", traduziu Kaloust. O seu semblante era inquisitivo. "O que diabo quer isso dizer?"

"Não é evidente? Falei há dias com o director-adjunto do Gabinete para a Reinstalação de Tribos e Refugiados, Nuri Bey, que me disse, e com estas palavras, que a intenção por detrás das deportações é o puro e simples extermínio. E o..."

"Meu Deus!"

"... comandante do Terceiro Exército, Kamil Paxá, garantiu-me que depois da guerra não haverá questão arménia, o que me foi confirmado pelo director da polícia de Constantinopla, Ismail Canpolat, que esclareceu que o que está em questão é a eliminação pura e simples dos Arménios. Isto bate certo com declarações do próprio ministro da Guerra, Enver Paxá, que há uns tempos afirmou abertamente que, à primeira oportunidade, iria exterminar toda a raça." Deixou os ombros descair. "Pelos vistos, essa oportunidade já chegou."

Por uma vez, Kaloust tinha dificuldade em absorver a informação.

"Extermínio? Mas... mas... não pode ser! Deve haver um engano. Isso é retórica, só pode ser!"

"No entanto, a lei da deportação foi aprovada e estão a começar a ser afixados cartazes em todas as cidades do império com ordens para deslocar as populações arménias. E os chetes andam à solta nas estradas. O que pensa que vai acontecer?"

Por esta altura na mente do seu interlocutor havia uma ideia e uma apenas: o filho.

"Krikor!", exclamou, pousando os dedos das mãos diante da boca, o alarme estampado na face. "Meu Deus, o que vou fazer?"

Salim Bey manteve os olhos fixos no amigo, ciente de que este por fim apreendera plenamente a gravidade da situação.

"Temos pouco tempo para agir", disse num tom sereno, esforçando-se por transmitir ao seu protegido a necessidade de manter a calma. "Diga-me para onde ele foi e eu arranjarei maneira de o ir buscar."

Mas o pânico já começara a apossar-se de Kaloust. Empalidecera e as mãos tremiam-lhe.

"Não sei! Ele não me disse para onde foi!"

"Não sabe o nome da cidade nem nada?"

O arménio baixou o olhar, derrotado e perdido.

"Não sei nada de nada."

A brisa gelada da Jungfrau levantou-se nesse instante e esbofeteou os dois amigos. Apesar disso, nenhum sentiu outra coisa que não fosse angústia, a do pai que percebe estar à beira de perder o filho sem nada poder fazer, a do homem que vê o amigo enfrentar o abismo e nada pode dizer para o consolar a não ser sussurrar-lhe que, naquelas condições, o destino do filho estava entregue à misericórdia de Alá.

 

Desde o desaparecimento de Hagop que o ambiente na residência dos Kinosian se tornara insuportavelmente pesado. Krikor fez o seu melhor para consolar Marjan e as restantes mulheres da família, oferecendo-lhes doces e enchendo a casa de flores que ia buscar ao mercado, mas não tinha modo de resolver a questão que mais os preocupava a todos. O que lhes poderia dizer sobre Hagop? Que estava bem? Que voltaria? Chegou em certa ocasião a afirmar-se seguro disso, mas disse-o com tanta falta de convicção que depressa se calou e não voltou a tocar no assunto.

Os rumores não paravam em Dicharechar e cruzavam-se com os múltiplos boatos provenientes dos outros bairros arménios de Kayseri, como Bahjebache, Kechy Kapou e Jawikyou Malacy. O último chegou pela boca da mulher do merceeiro Bohjalian, que havia sido chicoteado na prisão.

"Já ouviram o que por aí se diz?", perguntou ela quando nessa manhã fez uma visita a casa dos Kinosian. "Parece que os Turcos têm um plano secreto qualquer."

"Que plano?"

"Querem deportar-nos para a Síria."

A mulher e as filhas de Hagop entreolharam-se, surpreendidas com a notícia.

"Para a Síria?", perguntou Marjan, uma faísca de esperança a iluminar-lhe o rosto. "Quer dizer que o pai está... está vivo?"

A vizinha fez um estalo de impaciência com a língua.

"Não é aos homens", retorquiu. "Esses já cá não estão, coitados." Desviou o olhar para Krikor e para o avô Sisag. "Sem ofensa para os presentes, tão homens como os outros." Virou-se para Arshalous. "Querem deportar-nos a nós."

"A nós, quem? As mulheres?"

"Mulheres, crianças, velhos... todos os arménios que cá ficaram", disse. "Tudo para o deserto! Dizem que é esse o plano que anda a ser congeminado."

Fez-se silêncio, preenchido ao fim de alguns instantes por um profundo suspiro de Arshalous.

"Não posso dizer que esteja surpreendida", confessou. "O rumo que as coisas estão a tomar leva-me a recear o pior. Corre por aí que, em várias partes da Anatólia, os Turcos apanham os Arménios nas igrejas, trancam as portas e pegam fogo aos edifícios."

"Ah, já ouvi falar nisso!", exclamou a vizinha. "Que horror! Será verdade? Parece tão incrível que custa a acreditar!"

"É o que dizem..."

"Mas os turcos com quem falei garantiram-me que é tudo imaginação nossa."

"E a senhora acredita? Não os vê a deterem os nossos homens e a levá-los sabe Deus para onde? Não vê os enforcamentos todos os dias na praça? Acha que não passa tudo de imaginação? Os nossos olhos mentem, o nosso raciocínio engana-nos?"

"Pois sim, tem razão", concedeu Arshalous, rendendo-se à evidência. "Mas o que podemos fazer?"

Discutiram como proceder perante o agravamento da situação. Uns achavam que deviam lutar, "como fizeram em Van", outros que era melhor manterem-se quietos, "para não atiçar os Turcos ainda mais", e à boa maneira arménia no final ninguém decidiu nada e deixaram as coisas entregues ao destino; era essa a sina de um povo que havia séculos não se governava, acatava as decisões de outros.

Após aquela discussão longa e inconclusiva, a mulher de Bohjalian levantou-se por fim e despediu-se porque tinha de ir tratar do almoço. Quando chegou à porta, contudo, voltou-se para trás e, esfregando as mãos no avental, encarou Krikor.

"O senhor só escapou até agora porque, como veio do estrangeiro, não está registado aqui com as autoridades turcas", disse. "Mas se fosse a si tinha cuidado. Saia à rua de véu e tente passar por mulher, ouviu? Quando não restarem mais homens, e olhe que já sobram muito poucos, o senhor vai tornar-se notado. Nessa altura terá o destino dos outros."

O céu abrira-se num azul esplendoroso que enchia a manhã de cor quando a notícia se espalhou pelo bairro de Dicharechar como fogo ateado em palha seca.

"Os Turcos afixaram um édito!", gritou uma vizinha que corria pela rua como se ela própria fugisse do incêndio. "Venham ver, os Turcos afixaram um édito!"

As cabeças espreitaram pelas portas, pelas janelas, pelas varandas, seguindo a mulher com o olhar.

"Onde está isso?"

"Na praça! Na praça!"

com medo de se aventurarem sozinhas pela cidade, as mulheres arménias de Dicharechar juntaram-se diante das casas e convergiram em grupos para o centro de Kayseri. Por esta altura já Krikor se habituara a usar véu sempre que saía à rua, e mesmo dentro de casa, não fossem os soldados aparecer de repente em mais uma rusga de surpresa. Foi assim que as acompanhou até à praça.

Quando chegaram à parede dos editais, deram de facto com novas folhas pregadas na madeira. Estavam escritas em turco com caracteres árabes, mas as mulheres que sabiam ler, como Arshalous e Marjan, não tiveram a menor dificuldade em entender a mensagem impressa no édito.

 

                         EDITAL

       Por ordem superior, todos os arménios de Kayseri

       devem preparar-se para abandonar a cidade.

       Fechem as casas, as lojas e os negócios.

       As vossas portas serão seladas

       com selos especiais cedidos pela municipalidade.

       façam uma lista de tudo o que possuem e entreguem-na

       ao funcionário da câmara encarregado do vosso bairro.

       Têm três dias para cumprir este ultimato.

       A desobediência é punível com a morte.

 

"Três dias?"

A perplexidade dominava os olhares dos arménios que liam o édito, siderados com o modo como os acontecimentos se precipitavam. Da comunidade arménia de Kayseri só restavam mulheres, velhos e crianças, eles e elas impotentes para lidar com uma coisa daquelas.

"Como é que só nos dão três dias?", indignou-se uma mulher. "Como vamos fazer isto em três dias se nem sequer temos cá os nossos homens? Os Turcos enlouqueceram?"

Um coro de vozes ergueu-se da multidão e foi crescendo à medida que a notícia se espalhava. Como era possível uma ordem daquelas? Que mal tinham feito as mulheres, as crianças e os velhos? com que direito os deportavam da sua cidade?

Os ânimos exaltaram-se e os que ali estavam encaminharam-se todos para a câmara. Iam furiosos e indignados e exaltados, mas quando chegaram diante do edifício e viram um punhado de gendarmes fortemente armados e com cara de poucos amigos a fúria diluiu-se no medo.

"Queremos falar com um responsável da edilidade, effendi", disse a mais atrevida das mulheres do grupo num tom submisso. "Será que teria a amabilidade de o chamar?"

O chefe dos gendarmes fumava e atirou ao grupo um olhar de desdém e desprezo.

"Qual é o assunto?"

A mulher indicou com o polegar o painel dos éditos, instalado do outro lado da praça.

"É por causa da ordem de deportação, effendi. Gostaríamos de obter um esclarecimento, se não for muito incómodo."

O turco fez com a cabeça sinal a um dos seus homens, que abandonou o posto e desapareceu no interior do edifício. O grupo permaneceu plantado na rua, intimidado a espreitar os homens armados e as espingardas que eles acariciavam. Minutos mais tarde o gendarme regressou, acompanhado de um funcionário do município, um homem careca e de barriga proeminente.

"Que se passa?", quis saber o recém-chegado. "O que é isto? Quem autorizou este ajuntamento?"

As mulheres e os velhos entreolharam-se, todos com falta de coragem para enfrentar o olhar altivo do funcionário.

"É a ordem de deportação, effendi'", murmurou a mulher que assumira a liderança do grupo, os olhos baixos quase como se estivesse arrependida de incomodar tão distinta autoridade. "Gostaríamos de saber porque foi ela emitida, effendi." À medida que falava ia ganhando atrevimento e por fim conseguiu levantar os olhos e fitar o seu interlocutor. "Que mal fizemos nós para receber esta ordem de abandonar as nossas casas e sair da cidade?"

"É a guerra", sentenciou o turco com um gesto de impotência. "O inimigo está próximo e tivemos de tomar medidas. É para vossa protecção."

Os arménios, mulheres e velhos, voltaram a entreolhar-se, desta feita com expressões que variavam entre o espanto e a intimidação.

"O inimigo, effendi'", perguntou uma voz masculina vinda lá de trás. "Que inimigo?"

"Ora, o inimigo", retorquiu o funcionário com o esgar de quem dizia uma coisa tão evidente que nem requeria explicação. "Não sabem que estamos em guerra?"

"Mas nós vivemos em Kayseri, effendi'", argumentou a mesma voz, evidentemente de um velho. "A fronteira russa é muito longe. E os Dardanelos, onde estão os Ingleses e os Australianos, também. Onde se encontra esse inimigo que ameaça a nossa cidade?"

O turco fez um gesto impaciente com uma mão.

"Vocês não percebem nada do que se passa nesta guerra", exclamou. "As autoridades emitiram uma ordem para o vosso próprio bem. Façam o favor de a cumprir. Vão para casa e comecem a preparar as vossas coisas. Daqui a três dias os gendarmes irão aos vossos bairros para vos recolher e acompanhar até ao vosso destino."

"Para onde vamos exactamente?", perguntou uma mulher.

"Saberão em devido tempo."

"E os nossos homens?", quis saber outra, um pouco mais atrás. "Para onde os levaram?"

"Estão a caminho do vosso destino. Quando vocês lá chegarem vão encontrá-los, fiquem descansadas." Bateu palmas, como um pastor a espantar o rebanho. "Agora voltem para casa e cumpram as ordens. Não quero mais ajuntamentos. Vamos! Toda a gente daqui para fora!"

Quando a porta de casa se fechou, o avô Sisag mandou as duas raparigas mais novas irem brincar para o quintal e chamou Arshalous, Marjan e Krikor para a sala. Os quatro instalaram-se em torno do tonir para conferenciar e tomar decisões.

"Não tenho de vos explicar que a situação é de uma grande gravidade", disse o patriarca, cujo tremor de mão se acentuara nos últimos dias. "Parece que os Turcos nos querem enviar para o deserto da Síria. A viagem é muito longa e cheia de perigos. Não sei se sobreviveremos. Temos, por isso, de avaliar as nossas opções."

"Que opções?", admirou-se Arshalous. "Não leu o édito? Se não saírmos da cidade, eles executam-nos por desobediência. Não temos alternativa a sair."

O velho abanou a cabeça.

"Há outras possibilidades", observou ele em tom pausado. "Estive a falar com uns turcos que me disseram que a coisa se resolve se nos convertermos ao islão."

"O quê!?", indignou-se a filha. "O que está o pai a dizer? Quer que nos convertamos ao islão?"

"Não quero nem deixo de querer", retorquiu o avô Sisag. "Limito-me a expor as alternativas que temos diante de nós. Os Turcos garantem que se nos convertermos podemos ficar." Pousou a mão no peito. "Eu, pela minha parte, não me converto. Prefiro morrer em Cristo a viver como apóstata. Tive uma longa vida e estou disposto a enfrentar o que o Senhor me reservar." Suspirou e os seus olhos dançaram entre a filha e a neta. "Mas vocês são jovens e esta viagem parece-me uma loucura. Uma vez na estrada, não tenho a menor possibilidade de vos proteger. Faltam-me as forças e a minha alma apaga-se a cada novo dia. Talvez a conversão seja uma possibilidade a considerarem."

O ancião calou-se e encarou as duas mulheres, sangue do seu sangue, dividido entre a esperança e o medo de que elas fossem razoáveis. Queria-as muçulmanas para que sobrevivessem, mas ao mesmo tempo receava que se convertessem e renegassem assim as suas origens e a sua identidade.

Acabou por ser a dona da casa, como de resto lhe competia, quem falou primeiro.

"Deus sabe como me repugna essa ideia", disse Arshalous, voltando-se para a filha. "Mas talvez seja a única solução..."

com os olhares pousados nela, como se lhe coubesse a decisão final, Marjan permaneceu hirta durante alguns segundos, a mente e o coração a debaterem-se, dilacerada pelo dilema: renegar a sua identidade para sobreviver ou viver como arménia e talvez morrer?

"Não há dúvida de que seria a solução mais fácil", considerou, a voz hesitante. "Mas... e o pai? O que dirá ele disto?"

"O teu pai não está aqui, minha filha. Não sabemos sequer se ele ainda é vivo..."

Marjan respirou fundo, angustiada com a decisão que tinha de tomar e incapaz de o fazer.

"Não sei", acabou por murmurar. "Mas converter-me parece-me uma humilhação e uma derrota. Estes muçulmanos prenderam e maltrataram o pai, maltratam-nos a nós, humilham-nos e expulsam-nos das nossas casas e... e nós vamos dar-lhes a satisfação de nos convertermos à religião deles?" Fez uma careta e abanou a cabeça. "Não sei se serei capaz..."

"Seria só uma fachada", argumentou Arshalous, esforçando-se por se habituar à ideia. "Diríamos aos Turcos que nos tornamos muçulmanas." Pousou a palma da mão sobre o peito. "Mas o coração permaneceria cristão."

A filha voltou a sacudir a cabeça.

"Não sei se seria capaz."

Arshalous acariciou o seu ventre dilatado.

"E há a questão deste filho que aqui trago dentro", disse. "Será possível fazer uma viagem dessas nestas condições?"

Instalou-se um silêncio indeciso na sala, com toda a família dividida quanto ao caminho a seguir, e acabou por ser o avô Sisag quem voltou a falar.

"Então talvez seja melhor adiarmos esta escolha", propôs. "Sugiro que comecemos a preparar a nossa partida. Ainda temos três dias para tomar uma decisão." Desviou o olhar para Krikor. "E tu, rapaz? Que vais fazer tu?"

O visitante encolheu os ombros e abriu os braços, num gesto de impotência e ignorância.

"Para dizer com franqueza, não sei", confessou. "Não posso usar o meu passaporte britânico para sair daqui porque a Grã-Bretanha agora é inimiga do Império Otomano. Além do mais, quando cheguei a Kayseri descobri que todos os meus familiares distantes, sejam eles Berberian sejam Sarkisian, abandonaram a cidade quando a guerra começou, por isso também não posso contar com a ajuda da minha família. Para piorar as coisas, o correio está bloqueado e não tenho modo de entrar em contacto com o meu pai em Londres. Nestas condições, o que posso eu fazer?"

"É imperativo que os Turcos não te identifiquem", recomendou o avô Sisag. "Como vieste do estrangeiro, o teu nome não consta das listas de que eles dispõem. Há por isso que ter o maior cuidado. Parece-me evidente que, se te descobrirem, matam-te. Nenhum homem arménio entre os catorze e os setenta anos ficou na cidade, à excepção de ti. Terás de continuar disfarçado de mulher e escondido por nós." Apontou para a filha e para a neta. "Se elas decidirem não se converter, terás de vir connosco. Se elas se converterem, ficarás aqui escondido até esta maldita guerra acabar ou o teu pai arranjar maneira de te vir buscar." Sentado junto ao tonir, o velho terminou a sua argumentação e pousou as mãos sobre os joelhos. "O que te parece?"

O olhar de Krikor desviou-se para Marjan, como se a rapariga fosse o farol que o guiava.

"Estarei onde ela estiver."

 

O ambiente em casa dos Sarkisian tornara-se insuportavelmente lúgubre. Nunuphar passava dias inteiros encerrada no quarto, de onde por vezes vinha um choro descontrolado. As notícias que Kaloust trouxera de Interlaken não podiam ter sido piores e ele próprio tornara-se ainda mais taciturno que o habitual. A sua vida reduzia-se nesta altura ao constitucional da manhã, a uma breve visita ao escritório e a uma passagem pelo Ritz de Piccadilly.

Ao fim de alguns dias, e após matutar incessantemente no problema, a visão de um livro de Sherlock Holmes na montra de uma livraria de Piccadilly, a velha Hatchard's, deu-lhe a ideia de contratar um detective. Consultou Philip Blake sobre o assunto e foi aconselhado a dirigir-se à Burns Agency, uma reputada agência de Chicago que dois anos antes abrira escritórios em Londres.

"Um caso pouco vulgar", observou mister Mills, o detective com quem falou na Burns. "Mas não sei como o possa ajudar.

Não dispomos de agentes no Império Otomano, receio bem, pelo que não temos maneira de ir lá investigar as coisas."

"Mas... não haverá outra forma?"

com os pés displicentemente pousados sobre a secretária, o detective Mills tirou os óculos, soprou vapor para as lentes e pôs-se a esfregá-las com um paninho.

"Talvez o melhor caminho seja seguir o rasto do cio."

"Perdão?"

"Só uma fêmea com um cio muito poderoso é capaz de enlouquecer um homem dessa forma", argumentou. "Temos de descobrir quem é o pedaço de saia que deixou o seu rapaz embeiçado. Será a presa que nos levará ao caçador, entende?"

Não era o tipo de linguagem que Kaloust mais apreciasse, sobretudo em referência ao seu próprio filho, mas naquelas circunstâncias não se podia dar ao luxo de prestar atenção a minudências. As prioridades eram outras.

"O problema é que ele nunca me falou de mulher nenhuma. Não faço a menor ideia de quem seja a senhora em causa."

Depois de se certificar de que as lentes haviam ficado limpas, o operacional da Burns Agency voltou a empinar os óculos no nariz.

"Onde costumava o seu filho guardar a correspondência?"

"Bem... no quarto, acho eu."

com um movimento subitamente energético, o detective pôs-se de pé e foi ao cabide buscar o chapéu de coco.

"Então é justamente por aí que vamos começar!"

Seguiram para o número 38 de Hyde Park Gardens no Delaunay Belleville Landaulette do cliente. Uma vez chegados à mansão dos Sarkisian, Kaloust levou mister Mills directamente para o quarto de Krikor. O detective vasculhou nos papéis que o rapaz guardara, folheou as cartas, os cadernos e os livros. Começou por tudo o que estava escrito em inglês, mas como não encontrou nada de relevante pediu a ajuda do anfitrião para lhe explicar que língua era aquela em que estava redigida a restante correspondência.

"Arménio", esclareceu Kaloust. "É um alfabeto criado no século v pelo Santo Mesrop Mashtots para...."

"Não vim aqui para aprender história", atalhou o detective Mills com um estalido impaciente da língua. "Leia-me o nome dos remetentes dessas cartas, se faz favor."

O dono da casa consultou o canto superior esquerdo das quatro missivas redigidas em arménio.

"São todas da mesma pessoa", constatou. "Uma tal Marjan Kinosian."

"Tem aí o endereço?"

O olhar de Kaloust desceu de novo para os sobrescritos.

"Kayseri."

Exibindo uma fileira de dentes amarelados ou já apodrecidos, o detective Mills esboçou o seu primeiro sorriso do dia.

"Foi nesse covil de fêmeas com cio que se escondeu o seu rapaz."

 

A prioridade nos preparativos para a viagem foi arranjar animais que carregassem os bens de que os Kinosian necessitavam. O prazo de três dias era muito curto e desencadeou uma corrida desenfreada aos cavalos de carga. A consequência imediata foi uma súbita carência, e o consequente aumento do preço dos animais de transporte para valores absurdos. A palavra aksor, ou deportação, percorria a boca de todos os arménios e tornara-se uma obsessão que subjugava tudo, provocando uma procura de bens necessários para a viagem que também contribuiu para inflacionar os preços.

O avô Sisag teve uma vez mais de se valer dos seus conhecimentos para conseguir adquirir duas mulas, essenciais para transportarem os poucos bens que poderiam levar. Resolvido este problema, tiveram de enfrentar outra questão crucial, que era determinar o local onde iriam guardar o dinheiro. Os Kinosian eram relativamente abastados; de outro modo nunca poderiam ter ido à Alemanha consultar médicos. Também Krikor dispunha ainda de um bom pé-de-meia. Que sítio seria suficientemente seguro para poderem esconder toda aquela quantia?

Depois de muito ponderar o assunto e discuti-lo com Marjan, Arshalous seleccionou as duas colchas mais velhas que encontrou em casa, ambas muito coçadas pelo uso e com alguns buracos no tecido exterior, e forrou-as por dentro com as notas. Só um ladrão desesperado roubaria colchas naquele estado. Durante a viagem seriam usadas para assentar nas mulas e serviriam de colchão durante as noites, embora a sua verdadeira função fosse de cofre-forte. Depois Arshalous e a filha mais velha pegaram em duas fronhas de almofadas e encheram-nas com as melhores roupas, algumas notas e as jóias, que envolveram em algodão para as amaciar ao toque.

Na véspera da partida, as autoridades turcas plantaram tabuletas à entrada das ruas a assinalar a hora a que todos os moradores deveriam estar prontos para começar a viagem. No caso da rua dos Kinosian, seria às dez da manhã.

"Decidi converter-me ao islão", confessou a mulher de Bohjalian quando, depois de ver a tabuleta, caminhava de regresso a casa na companhia de Marjan e Krikor. "Vocês deviam fazer o mesmo."

"Mas, vizinha, os turcos chicotearam o seu marido na prisão e depois levaram-no", argumentou a rapariga. "Isso não a incomoda?"

"Claro que incomoda!", reconheceu a mulher. "Mas o que posso fazer? Tenho filhos pequenos e eles não sobreviveriam a uma viagem dessas. Mais vale ser um muçulmano vivo do que um cristão morto." Calou-se por um instante e acrescentou: "Além do mais, no meu íntimo manter-me-ei sempre cristã. Os Turcos conquistam-me o corpo, mas jamais a alma."

Nessa noite as igrejas arménias encheram-se de mulheres, crianças e velhos, os que ficaram depois do desaparecimento da população masculina. Os padres eram os únicos homens adultos que restavam na comunidade arménia de Kayseri, embora também eles tivessem recebido ordem para ser deportados no dia seguinte.

O serviço religioso foi feito à luz das velas, com algumas mulheres a vigiarem as portas para o caso de aparecerem soldados turcos. Dizia-se que em certas povoações os muçulmanos tinham trancado as portas das igrejas arménias com as congregações lá dentro e pegado fogo aos edifícios. A informação parecera incrível a todos. Como era possível semelhante selvajaria? No entanto, considerando tudo o que se passava, já ninguém queria correr riscos. A missa decorreu, por isso, rodeada de mil cautelas e medidas de segurança.

A cerimónia religiosa foi pontuada por erupções de choro entre os fiéis, sobretudo durante os cânticos e a homilia. A leitura escolhida para a ocasião foi o Êxodo e o padre sublinhou o versículo em que Moisés se dirige a Deus e Lhe faz uma pergunta com profundas ressonâncias naquela ocasião.

"'Por que razão, Senhor, fizestes mal a este povo?'"

com voz pesarosa, o padre formulou a pergunta duas vezes, embora no texto bíblico ela constasse uma única, e um grande lamento emergiu nesse instante da congregação, pungente e sentido. Os gemidos tornaram-se choro aberto. Não importava que a pergunta de Moisés se referisse aos judeus. Para todos os que se apertavam naquela igreja para a derradeira missa em Kayseri, eram os Arménios o objecto da súplica do profeta.

Os Kinosian, como aliás a generalidade dos fiéis, abandonaram a igreja em silêncio e foram directamente para casa, onde ultimaram os preparativos para a viagem. Os bens e o dinheiro encontravam-se devidamente escondidos nas colchas e nas almofadas e as cestas estavam repletas dos alimentos que duravam mais, como carne seca, fruta seca ou cristalizada, amêndoas, nozes e biscoitos, além de jarros com água. Havia também carne fresca, legumes, fruta, iogurtes, leite e pão para consumir nos primeiros dois dias. O resto teriam de arranjar durante a viagem.

Quando tudo ficou pronto e a família se reuniu em torno do tonir para passar a última noite em casa, Arshalous voltou-se para Marjan e quebrou o prolongado mutismo a que se haviam remetido desde a missa.

"Então, filha?", perguntou. "Já te resignaste ao islão? Alguns dos nossos vizinhos vão converter-se..."

"É verdade. Mas a maioria não."

A mãe abanou a cabeça.

"A viagem é uma loucura." Acariciou o seu ventre dilatado. "Não te esqueças de que estou grávida." Respirou fundo, tentando assim libertar-se da angústia que a oprimia. "Ai, se ao menos tivéssemos aqui o teu pai, ainda vá que não vá. Mas agora sem ele..."

Marjan indicou o avô Sisag.

"E o que sugere, mãe? Deixamos o avô seguir sozinho?"

O ancião fez um gesto peremptório com a mão trémula.

"O que quer que decidam, decidam sem mim", estabeleceu. "Eu já vivi a minha vida e, uma vez que sempre fui arménio e outra coisa não me imagino, decidi morrer enquanto tal." Apontou para os familiares que o rodeavam. "Mas vocês têm a vida pela frente. Não prendam o vosso destino ao meu."

Os membros da família entreolharam-se com gravidade. Era chegado o momento da grande decisão e até as duas irmãs mais novas, Khenarig e Caroun, apesar dos seus imaturos doze e onze anos, intuíam a importância do que se passava. As labaredas do tonir dançavam com estalidos inquietos, pareciam pulsar ao ritmo dos corações, as faces da família a reflectirem os lampejos como se espelhassem as chamas do próprio Inferno.

Marjan começou por olhar para Krikor, dava a impressão de querer envolver o pretendente na decisão, mas depois encarou o avô, as irmãs e finalmente a mãe. A escolha estava feita.

"Os Turcos levaram-nos o pai", disse. "Converter-me ao islão seria premiá-los por este crime. Matem-me se quiserem, mas a minha alma permanecerá arménia."

A mãe suspirou, vencida.

"Seja o que Deus quiser", sentenciou. "Esta família não se separará. Amanhã partimos todos."

Abraçaram-se e beijaram-se nas faces, a respiração sufocada pelo alívio e pelo terror. Depois estenderam-se sobre as almofadas, puxaram a manta, e, acolhendo o calor retemperador do tonir, fecharam os olhos e esforçaram-se por vencer a inquietação e dormir em paz essa derradeira noite na sua casa de Kayseri.

A porta tremeu com o impacto insistente das batidas sucessivas. Marjan foi ver quem era e deu com três soldados armados e aparentemente com pressa.

"Toda a gente na rua!", exclamou um deles. "Ya'Allah! Ya'Allah! Vamos lá para fora! Está na hora!"

"Está na hora?", admirou-se a rapariga. "Mas o aviso de ontem à entrada da rua dizia que teríamos de sair às dez da manhã e ainda são oito. Qual é a pressa?"

"Toda a gente na rua!", insistiu o turco, um rapaz da mesma idade de Marjan, os primeiros pêlos a despontarem-lhe no rosto ainda imberbe, mas impregnado da autoridade que a longa espingarda lhe conferia. "Às dez é para se porem em marcha. Queremos toda a gente na rua imediatamente para se começar a formar a fila e organizarmos tudo."

"Ah, não pode ser!", devolveu Marjan com um trejeito de irritação. "Ainda não estamos prontos. Tenham paciência, vamos precisar de pelo menos mais uma hora!"

O soldado soltou uma gargalhada forçada.

"Uma hora? Era o que mais faltava!" Baixou o cano da espingarda e tornou-se ameaçador, exemplo logo seguido pelos companheiros. "É para sair e é já! Ya'Allah! Quem ficar para trás será fuzilado. Toda a gente lá para fora!"

A saída de casa foi apressada pela impaciência dos jovens soldados, que insistentemente ameaçaram de morte os Kinosian, com as espingardas e por palavras. O que lhes valeu foi já terem praticamente tudo preparado. Apesar da atrapalhação provocada pelos intrusos, conseguiram retirar em cerca de dez minutos.

As duas raparigas mais novas, Khenarig e Caroun, estavam muito excitadas. Para as tranquilizar, Marjan e Krikor haviam-lhes dito que iam viver uma grande aventura e fazer uma viagem inesquecível. Nada disso era mentira, claro. Ambos se limitaram a apresentar a deportação nos tons mais interessantes que conseguiram e as duas irmãs viviam aqueles momentos com um entusiasmo inconsciente.

Já os adultos sabiam ao que iam, ou pensavam saber, mas ocultavam a preocupação que lhes pesava no peito. Para quê fazer daquilo um drama se o que tinha de acontecer iria acontecer? Estavam nas mãos do destino e enfrentá-lo-iam com todas as consequências. Sendo cristãos, acreditavam que a cruz era muito mais que um fardo.

"Não sei o que nos reserva o futuro", disse o avô Sisag um instante antes de saírem de casa. "Somos uma família."

Indicou Krikor com a cabeça. "Tu incluído, meu rapaz. Já fazes parte desta família." Encarou os restantes. "Se algum de nós morrer, algo em nós morrerá também. Se apenas um de nós sobreviver, alguma parte de todos viverá nele. Entreguemos o destino a Deus, mas assumamos a responsabilidade de fazer os possíveis para superar esta provação e sobreviver. Que o Senhor, na Sua misericórdia infinita, nos proteja."

Foi com angústia que saíram à rua, mas ao verem a multidão que os soldados arrancavam à força das casas e que se aglomerava num caos mais ou menos organizado de carroças, cavalos, mulas, sacos e tudo o mais que podiam levar, sentiram um estranho conforto. O que quer que estivesse para acontecer aconteceria a todos; não estavam sozinhos naquela terrível prova.

com eles seguia a Arménia inteira.

O longo e triste cortejo serpenteava por toda a rua que desaguava na estrada para sul, juntando milhares de pessoas com cestos, sacos, crianças, a multidão enquadrada entre uma e outra carroça e os muitos animais de transporte. Os gendarmes turcos flanqueavam a massa de gente, indicando o caminho e vigiando as alas, esforçando-se por evitar os contactos com o resto da população.

Muitos turcos, porém, haviam-se aglomerado nos passeios para assistir à partida do que restava da sua comunidade arménia. Uma importante parte observava em silêncio, mas a maioria sorria e acenava com acinte, lançando graçolas.

"Vão e não voltem!"

"Que Alá vos guie até ao Inferno, cães giavour!"

As mulheres e os velhos arménios ignoraram os chistes. A sua relação com a maioria muçulmana nunca fora fácil, e ali estava a prova. Era verdade que toda a gente tinha um amigo ou um conhecido turco, mas a maior parte dos contactos decorriam dentro da comunidade arménia. Apesar de partilharem as mesmas cidades e aldeias, muçulmanos e cristãos viviam existências separadas, uns dominadores e outros dominados, mas cada um a crer-se superior ao outro, capaz de passar longos períodos, às vezes meses, sem trocar uma palavra com uma pessoa da outra religião. Era como se uns fossem fantasmas dos outros; estavam lá e era como se não estivessem, ocupavam o mesmo espaço mas não se viam uns aos outros, meras assombrações que faziam uma aparição fugaz e logo se imaterializavam e tornavam espectros de novo.

"Cobre a cara, Krikor", recomendou Marjan depois de lançar uma olhada ao seu pretendente. "Eles estão a observar-nos e, se percebem que és homem, vai haver problemas."

O pedido foi prontamente acolhido por Krikor, que ajeitou o véu de modo a melhor ocultar a cara; a última coisa de que precisava naquele momento era de ser desmascarado. Os Kinosian seguiam próximo da cauda do cortejo. O avô Sisag ia à frente, apoiando-se sempre no seu cajado e a segurar a rédea de uma mula; depois seguiam Marjan e Krikor, este a puxar a outra mula, com Arshalous atrás, o ventre dilatado pela gravidez, a acompanhar as duas meninas mais novas, a traquina Khenarig e a tranquila Caroun.

O cortejo cruzou por fim a porta sul de Kayseri e abandonou a cidade, movendo-se com lentidão ao longo da estrada, como uma extensa lombriga a ondular pelo vale, os picos lácteos das montanhas Erciyas a rodearem a massa de gente como testemunhas silenciosas do drama que decorria a seus pés.

À saída da cidade via-se uma e outra casa de adobe, propriedade de agricultores humildes, alguns deles plantados à beira da estrada a observar a procissão. Entre os camponeses destacou-se o vulto frágil de uma velha turca com a cabeça coberta por um véu, que se aproximou de um gendarme a cavalo e brandiu o punho fechado.

"Malditos sejais, por fazerdes isto a esta pobre gente!", vociferou a muçulmana. "Que Alá para sempre vos puna por esta vil cobardia! Este mundo é dos oportunistas e de canalhas sem escrúpulos. Mas, lembrai-vos, o que fizerdes a esta gente é o que o inimigo vos fará quando aqui chegar!" Voltou-se para os arménios que a olhavam ao passar. "Ide com Alá, meus filhos. Que Ele vos proteja!"

Foi a única turca que Krikor viu a insurgir-se contra a deportação. O gendarme olhou para ela, soltou uma gargalhada e deu um golpe no cavalo com as esporas das botas.

"Está xexé, a velhota!"

E arrancou a galope.

 

O pianista do Carlton dedilhava as notas melodiosas de Clair de lune, o terceiro movimento da Suite bergamasque de Debussy, mas Kaloust e Hendryk estavam de tal modo embrenhados na conversa que não prestavam atenção à música nem sequer aos pratos que os empregados momentos antes lhes haviam posto à frente. Os negócios, e apenas os negócios, pareciam interessar-lhes.

"Sarkisian, francamente!", exclamou o homem-forte da Royal Dutch Shell com uma pitada de repreensão na voz, "não acha que existe já gente a mais na Turkish Petroleum Company?"

"Sim e não."

Hendryk esboçou uma careta, desagradado com a réplica.

"Isso não é resposta!"

"É a que tenho para lhe dar."

"Oiça", insistiu o holandês, "para que precisamos nós dos Franceses? Isso é um disparate!"

Evitando responder a quente, o arménio preferiu dedicar pela primeira vez atenção ao prato diante dele. Tratava-se de um bife tártaro aux champignons de aspecto suculento e que começou a dilacerar com movimentos lentos. É certo que vivia ainda ansioso com o problema do filho, mas desde que descobrira que o rapaz tinha ido para Kayseri, e depois de avisar Salim Bey, sentia-se mais tranquilo; decerto o seu amigo turco tinha poderes para resolver a questão sem mais delongas. com esse problema em vias de resolução, sentiu-se mais livre para voltar a ocupar-se dos negócios e preparar o mundo petrolífero do pós-guerra. Um bom investidor, sabia, era aquele que estava sempre à frente do seu tempo e se antecipava às tendências.

"Você tem de entender que precisamos dos Franceses como aliados", disse, sem tirar os olhos do bife que retalhava. "A Turkish tem o exclusivo do petróleo do Império Otomano, mas os Alemães estão fora de acção e a Anglo-Persian, com o apoio de mister Churchill, anda apostada em dar-nos uma facada nas costas e ficar depois da guerra com toda a exploração petrolífera otomana. Para derrotar essa frente hostil, precisamos de um aliado de peso. A França é perfeita. Já sugeri a Philip Blake que influenciasse o governo britânico no sentido de apoiar a entrada dos Franceses no capital da Turkish, ocupando o lugar dos Alemães. Se conseguirmos fazer tudo isto sem mister Churchill e a Anglo-Persian saberem, metemos na Turkish um aliado que fortalecerá consideravelmente a nossa posição." Alçou enfim o olhar para o seu interlocutor. "Percebe agora o meu plano?"

Hendryk fitava-o com uma expressão indecisa, como se avaliasse os prós e os contras da ideia.

"Como sabe você que os Franceses serão sempre nossos aliados? Poderemos confiar nessa gente?"

"Acho que sim e por vários motivos", devolveu Kaloust, metendo à boca o primeiro pedaço de carne. "A França está no grau zero da exploração petrolífera e precisa de quem a ajude. Sugiro que a Royal Dutch Shell me nomeie seu representante para auxiliar os Franceses a reorganizarem a sua indústria. Isso aumentará o meu envolvimento com eles e melhorará os níveis de confiança entre as duas partes."

"Muito bem, está nomeado. E mais?"

"Em segundo lugar, o senador Jean-Marc Hertault é o presidente da Comissão de Relações Externas do Senado e já me assegurou que tem o acordo do seu governo, do seu presidente e dos seus colegas senadores e deputados para nos apoiar nas decisões da Turkish em troca de os ajudarmos a entrarem na empresa."

"As promessas dos políticos não costumam valer muito", observou Hendryk com azedume. "Ao primeiro contratempo, esse senador, como qualquer político, esquecerá tudo o que nos jurou e só fará o que lhe convier nesse momento."

Sempre a mastigar, o arménio abanou a cabeça.

"Não creio", disse com grande segurança. "Adquiri um belo château na terra natal do senador, na Bretanha, e aluguei-lho a troco de uma renda ridiculamente baixa." O vestígio de um sorriso iluminou-lhe o rosto. "Como sabe, habituamo-nos depressa às coisas boas, não é verdade? Não acredito que o nosso amigo queira pôr em perigo semelhante regalia."

O presidente da Royal Dutch Shell riu-se.

"Você é tramado, Kaloust!", exclamou com uma gargalhada. "Se assim é, que venham os Franceses! Por mim não haverá objecções! Além do mais..."

Um vulto materializou-se junto à mesa com tal brusquidão que provocou um sobressalto aos comensais; ambos se voltaram de imediato para o recém-chegado.

"Robert!", identificou Kaloust. "Que susto, homem!" Recuperou de imediato a compostura e encarou o recém-chegado com um esgar de estranheza. "Que se passa? Aconteceu alguma coisa?"

Era Robert Cook, o advogado que geria o escritório do arménio em St Helen's Place e que trazia na mão um sobrescrito com o selo do Royal Post Office.

"Telegrama, mister Sarkisian!", disse, estendendo-o ao patrão. "Acabou de chegar. Foi expedido de Genebra!"

Só podiam ser novidades de Salim Bey, percebeu Kaloust. Dera instruções ao seu subordinado para que qualquer novidade lhe fosse imediatamente comunicada, interrompendo-se o que se tivesse de interromper, e era isso que Cook acabava de fazer.

com os dedos subitamente trémulos, o arménio pegou no envelope e abriu-o. A seguir retirou a folha do telegrama e desdobrou-a.

 

         RECEBI INFORMAÇÃO SUA STOP

         AJUDANTE MEU PARTIU HOJE PARA KAYSERI

         COM SALVO-CONDUTO STOP

         DAREI BOAS NOTÍCIAS

         LOGO QUE AS TENHA STOP, SALIM BEY

 

Kaloust parecia flutuar e a face abria-se num sorriso beatífico.

"São novidades de Constantinopla!", exclamou com alegria. "O meu filho está à beira de ser resgatado!"

Para celebrar mandou vir uma garrafa de champagne.

 

O cortejo abandonara Kayseri havia já três horas quando, da encosta das montanhas Erciyas, por onde ziguezagueava a estrada, se ergueu um clamor. Quase sem pensar, Krikor e as Kinosian voltaram a cara naquela direcção e depararam-se com uma turba de homens de aspecto feroz e armados com facas, machados, foices e paus a descer num tropel para a estrada, a pé ou a cavalo, as gargantas a lançarem urros pavorosos e gritos de "Allah u akbar!"

Eram curdos.

A confusão instalou-se na longa caravana. A massa humana recuou, preparando-se para o impacto, até que os primeiros curdos, os que vinham a cavalo, mergulharam na multidão a cortar o ar com as suas lâminas e a gritar ameaças.

"Fujam!", gritou uma voz em pânico. "Jesus, eles vão matar-nos! Saiam daqui!"

O berro impulsionou as Kinosian a agir. Marjan tentou escapar-se, mas escorregou e caiu. Krikor puxou-a e procurou arrastá-la para fora da estrada no meio do maior caos, a fuga travada por um cavalo que se atravessou diante deles e derrubou uma mulher mesmo ao lado. Ambos ouviram os ossos dela a partirem-se; parecia o barulho de uma noz a quebrar-se, mas mais sonoro e horripilante. com a escapatória cortada naquela direcção e sentindo-se vulnerável por todos os lados, Krikor virou-se para a direita e, quase sem pensar, mergulhou para baixo de uma carroça, sempre a puxar Marjan. Sentindo as costas mais protegidas, olhou em redor e viu um idoso escondido atrás da roda, a segurar a mão de uma mulher, o corpo dela estendido ao lado sem a cabeça.

"A mamã?", balbuciou Marjan de olhos perdidos naquela imensa confusão, atordoada com os acontecimentos inesperados. "O avô? As manas? Onde estão elas?"

"Tem calma", murmurou Krikor na voz mais serena de que foi capaz. "Já vamos à procura delas. Agora temos de nos manter vivos, percebes?"

Havia corpos a rolar por toda a parte, sobretudo de mulheres e de idosos. Alguns curdos já tinham desistido de matar. A sua atenção voltara-se para a carga das carroças e o saque dos bens dos deportados. Ouviam-se gritos por toda a parte, misturados com o relinchar enervado dos cavalos.

"Os gendarmes?", perguntou Marjan. "Onde estão eles? Não deviam proteger-nos?"

O seu companheiro apontou para a direita.

"Olha para ali!"

A rapariga voltou-se na direcção indicada e vislumbrou dois gendarmes a conversar com uns curdos que seguravam machados ensanguentados e outros gendarmes que vasculhavam nos sacos dos deportados, metendo no bolso tudo o que encontravam de valor. A imagem era eloquente e Marjan nem sequer a comentou. Tornara-se evidente que os seus protectores eram também eles os predadores.

"Deus nos acuda", limitou-se ela a sussurrar. "Estamos entregues aos lobos."

Os gritos recrudesceram do outro lado e os dois viraram para ali os rostos. Dois gendarmes agarravam duas arménias jovens pelo cabelo e puxaram-nas até que elas, e apesar dos urros, não tiveram outro remédio que não fosse empoleirarem-se nas montadas. Nessa altura os cavaleiros deram um golpe com as esporas e partiram para longe com as suas presas dobradas sobre as selas, quase como se não passassem de sacos de batatas.

"Marjan!"

Ao ouvir o seu nome, a rapariga voltou-se para trás e viu a mãe a espreitar para baixo da carroça. Trazia Khenarig pelo braço, mas a mais nova não estava ali.

"Mãe!", exclamou Marjan. "A Caroun? O avô?"

"Não sei. Ia perguntar-te o mesmo. Não os viste?"

"Não. Temos estado aqui escondidos..."

Ouviram-se novos gritos e olharam nessa direcção. Eram mais duas raparigas arménias que um gendarme e um curdo arrastavam para os cavalos. Atiçada por aquela comoção renovada, Arshalous gatinhou para debaixo da carroça com Khenarig atrás e chegou-se junto da filha mais velha.

"A tua beleza é uma maldição", constatou. "Temos de fazer com que ninguém te queira. Senão, serás levada por estes animais."

Segurou na cabeça de Marjan pelos cabelos, pegou numa pedra aguçada que encontrou no chão e, com gestos rápidos, esfregou-a na cara da filha, arranhando-a. A rapariga gritou de dor e tentou libertar-se, mas a mãe, que já esperava aquela reacção, manteve o pulso firme e desferiu-lhe mais dois golpes.

Depois afastou-a para a contemplar e pareceu satisfeita com o que viu; não eram feridas profundas, apenas arranhões. Arshalous meteu então a mão ao bolso e extraiu um dente de alho, que esfregou sobre os arranhões ensanguentados. De seguida, mergulhou as mãos na lama que se aglomerava por baixo da carroça e espalhou-a pela face da filha.

Depois desta curta operação, Marjan ficou irreconhecível. As linhas simétricas e delicadas do rosto desapareceram de um momento para o outro, substituídas por uma amálgama assustadora. A face inchou rapidamente, dos arranhões e do alho cru, e a lama conferiu-lhe um aspecto de maltrapilha. Seria difícil algum homem desejá-la naquelas condições e mesmo Krikor teve de fazer um esforço para não se sentir repelido e manter presente que aquela rapariga desfigurada era de facto a sua Marjan.

Uma estranha calma instalou-se na estrada depois de os curdos partirem. Ouviam-se choros, nuns casos com a voz de mulheres, noutros de crianças, mas uma tranquilidade de aparência irreal envolveu aquele lugar de morte. Ao fim de cinco minutos, e após uma pausa para se certificarem de que o ataque tinha efectivamente cessado, as pessoas saíram dos esconderijos e começaram a agrupar-se na estrada à procura dos seus entes queridos.

"Shaké!", chamava alguém.

"Aghavni!"

Seguindo o exemplo dos que reapareceram, Krikor e as três Kinosian que com ele se encontravam escondidas por baixo da carroça deslizaram para a estrada e começaram à procura dos dois elementos da família que haviam desaparecido.

"Caroun!"

"Avô Sisag!"

Aqui e ali irrompiam prantos de desespero, num timbre pungente e com um tom inconsolável; eram pessoas que encontravam os corpos mutilados dos seus familiares, tombados quando do ataque dos curdos. Para esses, a busca cessara.

O avô Sisag apareceu dez minutos mais tarde. Vinha a coxear, sempre apoiado no seu cajado, e tinha uma ferida a sangrar-lhe por baixo do sobrolho direito.

"Apanhei um encontrão de um cavalo e caí numa moita", explicou enquanto limpava a ferida com um lenço. "Vocês estão todas bem?"

"Sim, graças a Deus", devolveu Arshalous, lançando novas miradas em redor. "A Caroun? Sabe dela?"

O pai abanou a cabeça.

"A única coisa que vi foi os curdos a saltarem para cima de nós", devolveu ele. "Fugi ali para o fundo e... e caí na moita. Ela não ficou convosco?"

A ansiedade apossara-se de Arshalous.

"Não... não sei por onde anda", titubeou de ar perdido, os olhos a procurarem em todas as direcções. "Quando foi do ataque peguei nas mãos da Khenarig e da Caroun, mas, no meio daquela confusão toda, a mais pequena foi tomada pelo pânico e pôs-se a correr. Tentei ir atrás dela, só que a Khenarig prendeu-me. Agora... agora não sei da Caroun." Começou a chorar. "Quero a minha filhinha! Onde está ela? Onde está a minha Caroun? Por favor, tragam-ma para o pé de mim!"

A busca foi renovada, com as Kinosian a espalharem-se pela estrada e pelas áreas circundantes à procura da mais nova da família. A busca só foi interrompida quinze minutos mais tarde, quando Krikor se deparou com o corpo inerte de uma menina deitado atrás de uma rocha, o vestido amarelo igual ao de Caroun. Debruçou-se sobre ela e espreitou-lhe o rosto. Era mesmo a irmã de Marjan.

A menina tinha os olhos vidrados numa expressão inerte e um fio de sangue seco saía-lhe de uma orelha. Tomou-lhe o pulso e não sentiu nada. Estaria a pressionar o dedo no sítio errado ou teria ela...? Não se atreveu a concluir o pensamento. Angustiado, colou o ouvido ao lado esquerdo do peito e escutou o coração. Nada. A pior possibilidade tomava forma, como a treva que devagar e inexoravelmente tudo abraça depois de o Sol mergulhar no horizonte. Desesperado, e sem saber já o que fazer, encostou a palma da mão à boca entreaberta e tentou sentir-lhe a respiração. Ao fim de alguns segundos, tão demorados que pareceram minutos, teve de se entregar à terrível evidência. Levantou-se com um movimento deliberadamente lento e varreu a estrada com o olhar toldado.

"Marjan!", chamou, primeiro em voz baixa, depois elevando-a. "Marjan!"

A rapariga embrenhara-se nuns arbustos à procura da irmã mais nova e espreitou entre os ramos.

"O que é?"

Krikor respirou fundo, tentando ganhar coragem mas detestando ser o arauto de notícia tão devastadora, e apontou para o cadáver atrás da rocha.

"Aqui", disse com desânimo, a voz a falhar-lhe, os ombros descaídos numa postura de derrota. "Ela está aqui."

A caravana acampou nessa noite junto ao rio Ahi e os deportados deixaram-se cair na berma da estrada de exaustão e choque emocional. Desde a descoberta do corpo de Caroun, que Krikor enterrou apressadamente num buraco que conseguira abrir apesar dos gritos dos gendarmes para que recomeçassem a marcha, as Kinosian caminhavam como sonâmbulas, abaladas pelo impacto destrutivo daquela morte inesperada. Arshalous estava inconsolável, os olhos vermelhos de choro e o corpo alquebrado, os lábios a repetirem a mesma pergunta entre os gemidos, numa ladainha incessante.

"Porquê, meu Deus? Porquê?", choramingava, destroçada no desespero de uma mãe que perdeu a filha. "O que Te fez a minha Caroun para a levares assim? Porquê, meu Deus? Porquê?"

O avô Sisag mergulhara no mutismo mais completo e caminhava à frente, os olhos fixos no caminho, o espírito com a neta que acabara de perder. A única que tentava consolar Arshalous era a filha mais velha, embora as palavras faltassem a Marjan para responder às perguntas, que em boa verdade não tinham resposta. Sim, porquê Caroun? Que mal fizera ela aos Curdos para a matarem assim? E porque estavam os Turcos a tratá-los daquela maneira? Não bastava terem-lhes levado o pai? Para quê matar a pequena e meiga Caroun, tão doce em vida, tão serena na morte? Que sentido fazia aquela perda?

Para tanta dor não encontrava Krikor resposta. Que poderia fazer para aplacar o sofrimento de uma mãe, de um avô e de duas irmãs que tinham perdido a sua mais nova? Que palavras haveria a proferir numa ocasião tão penosa? Ocorriam-lhe coisas que se dizem em circunstâncias destas, como "Deus o quis" ou "está melhor assim do que neste calvário" ou outras do género, mas achou-as de tal modo estúpidas e sem sentido que preferiu manter-se calado.

Acabou por pegar na pequena Khenarig e transportá-la ao colo, murmurando-lhe ao ouvido "a mana está agora no céu". Chorosa, Khenarig perguntou-lhe se achava que Caroun os via nesse momento, questão a que o rapaz respondeu dizendo que sim, e que Jesus se encontrava de mão dada com ela também a olhar para todos eles, observação que tranquilizou e enfim calou a menina. De cabeça encostada ao ombro de Krikor, Khenarig foi fechando e abrindo as pálpebras, sempre muito devagar e em movimentos cada vez mais espaçados, até que adormeceu por completo.

A paragem na berma da estrada para pernoitar trouxe as primeiras palavras desde a morte de Caroun, embora as frases que atirassem uns aos outros se limitassem a banalidades inconsequentes como "onde está a água?" e "passa-me o pão". Ninguém se olhava nos olhos; parecia que todos se haviam encerrado numa concha onde apenas existia lugar para a menina que nessa tarde fora morta.

Comeram quase sem pronunciar uma palavra, a atenção perdida num ponto infinito na noite, e depois foram preparar as coisas para dormir. Moviam-se como autómatos, os movimentos mecânicos e o olhar baço, e foi dessa forma que pegaram nas duas colchas amarradas ao dorso das mulas e as estenderam no chão, uma ao lado da outra, como se fossem um vasto colchão.

Deitaram-se sobre as colchas e fecharam os olhos. Arshalous tinha previsto que ficariam muito apertados sobre as colchas, sempre eram seis pessoas e apenas duas colchas, mas na verdade eram só cinco, uma vez que Caroun já ali não estava, e a simples constatação de que havia mais espaço arrastou Arshalous e Marjan para um novo pranto, um gemido silencioso que foi crescendo até acabar por morrer. Soavam choros por todo o acampamento. Grande parte das pessoas havia perdido alguém naquele ataque, mas com as horas as vozes foram-se calando, gradualmente vencidas pelo cansaço.

Um barulho despertou Krikor.

Todos dormiam à sua volta, à excepção de Arshalous, que não pregara olho no seu luto pela filha mais nova e que tinha agora a atenção fixada num ponto do acampamento. Krikor ergueu a cabeça e espreitou na mesma direcção. Apercebeu-se de que havia homens a deambular pela caravana adormecida, inclinando-se aqui e espreitando ali, e seguiu-os com a respiração suspensa. Quem seriam e o que queriam? Ouviu-os trocar palavras e percebeu que falavam turco.

Um dos desconhecidos debruçou-se sobre um punhado de arménias que dormiam por baixo de uma árvore e inspeccionou os rostos de cada uma delas. Encontrando o que queria, esbracejou a chamar alguns dos comparsas. Uma vez juntos, os turcos pegaram numa pessoa que dormia naquele grupo e arrastaram-na para fora dali. A vítima começou a gritar, pela voz percebia-se que se tratava de uma rapariga jovem, provavelmente bonita. As mulheres da família despertaram e ergueram-se num salto para a defender, mas os turcos enfrentaram-nas com as espingardas em riste e impediram que socorressem a vítima.

"O que é isto?", murmurou Marjan, que acordara com os gritos. "Que se passa?"

"Chiu!", recomendou Krikor, colando o indicador aos lábios. "Está quieta! Eles que não te vejam!"

Novos gritos eclodiram do outro lado, e outros mais adiante. Grupos de turcos e de curdos vasculhavam furtivamente o acampamento em busca de raparigas, como salteadores na noite, arrastando-as à força e reprimindo a reacção dos familiares. As Kinosian, já todas de olhos abertos e coração aos saltos, estavam paralisadas de terror. E se os desconhecidos viessem ter com elas?

Os receios tornaram-se realidade minutos depois. Dois turcos que inspeccionavam as arménias naquela zona com um candeeiro a petróleo pendurado numa mão, aproximaram-se do canto onde se aconchegavam Krikor e a família Kinosian, que fecharam os olhos e fingiram dormir, e debruçaram-se sobre elas, perscrutando-lhes o rosto. Fizeram uma careta quando viram o rosto de Krikor, talvez lhes parecesse demasiado masculino para o seu gosto, e abanaram a cabeça com Arshalous, demasiado velha, e Khenarig, demasiado nova. Marjan interessou-os momentaneamente. Fizeram incidir mais prolongadamente a luz do candeeiro na cara dela, mas a rapariga tinha as linhas distorcidas pelo inchaço e, vencendo uma última hesitação, acabaram por achar que não valia o trabalho e afastaram-se.

Quando as sentiu irem-se embora, Krikor entreabriu um olho e certificou-se de que já estavam em segurança. Viu os dois turcos debruçados sobre outra família a estudar rostos, a luz azulada do candeeiro a bailar-lhes nas mãos, e suspirou de alívio.

"Já se foram embora", sussurrou. "Está tudo bem." O que não disse, mas pensou, é que não lhe parecia possível que, de todos os turcos que vissem Marjan, nenhum se apercebesse de que estava perante uma beleza rara. Chegaria o dia em que alguém a levaria também. O que faria quando isso acontecesse?

 

Ding-dong.

O toque da sineta anunciou que alguém se encontrava à porta. Sentado na sala a ler o The Times dessa manhã, terminado que estava já o constitucional e o banho da ordem, Kaloust deixou-se ficar estendido no sofá. Sabia que Nunuphar não estava em casa, tinha ido dar um passeio a Covent Garden, mas como sempre a criadagem ocupar-se-ia do assunto.

Escutou o clique-claque de tacões de sapatos a reverberarem no mármore até à entrada, ouviu a porta abrir-se, apercebeu-se de um murmúrio distante e sentiu novos passos, desta feita em aproximação.

"Dá licença, sir?"

Era o mordomo.

"O que é, Humphrey?", perguntou o dono da casa sem levantar os olhos do jornal. "Se é para mim, diga que não estou."

O butler tossiu baixinho, por cortesia e não por necessidade fisiológica, sugerindo assim que, perante as circunstâncias, tal resposta poderia não ser a mais adequada.

"Peço desculpa, sir, mas creio que poderá ser conveniente abrir uma excepção para este caso."

Então sim, Kaloust espreitou por cima do jornal, uma expressão de desagrado e impaciência a colorir-lhe o rosto.

"Que se passa?"

"É um enviado de mister Salim Bey, sir."

O dono da casa deu um salto no sofá e arrumou apressadamente o jornal por baixo da mesa de sala.

"Então do que está à espera, Humphrey?", perguntou, ajeitando o colarinho. "Ele que entre, valha-me Deus! Ele que entre!"

O mordomo voltou à porta e, instantes depois, reapareceu acompanhado de um homem magro, de cara chupada e olhos nervosos. O anfitrião tinha voltado a sentar-se, encenando descontracção, e levantou-se de novo para acolher o visitante.

"Mister Ihsan Bey", anunciou Humphrey com pompa.

"Ah, muito prazer!", exclamou Kaloust, estendendo as mãos ao recém-chegado. "Seja bem-vindo à minha humilde casa!"

"O prazer é meu."

"Sente-se, sente-se!"

Desdobraram-se ambos em gentilezas, um fez uma vénia, o outro devolveu-a e acrescentou-lhe um gesto floreado, o primeiro respondeu com um movimento arrebicado. Seguiu-se um duelo de cortesias para ver quem se sentava primeiro, "faça o favor", "não, por quem sois!", "ora essa, o senhor é o dono da casa", "mas o senhor é a visita", "quem sou eu perante tão ilustre personalidade?", "por amor de Deus, faça como se estivesse em sua casa". As amabilidades pareciam não ter fim mas terminaram quando o recém-chegado cedeu e se acomodou primeiro. A seguir veio o ritual da bebida, "quer um chá?", "não obrigado", "e um café, vai?", "é muito gentil da sua parte, mas não se incomode", "oh, não incomoda nada, é com muito gosto!", "então está bem, um cafezinho até ia", "café turco?", "se tiver, seria muita bondade da sua parte", nova cedência que culminou com ordens a Humphrey para trazer um café turco ao "distinto visitante".

Apesar dos intermináveis salamaleques próprios da etiqueta otomana, Kaloust manteve-se sempre atento às expressões do enviado de Salim Bey, tentando ler-lhe o rosto. Estaria satisfeito ou constrangido? A fisionomia dir-lhe-ia se as notícias eram boas ou más, mas, como bom otomano que parecia, Ihsan Bey tinha um ar insondável.

"Tenho uma carta para si", disse o recém-chegado, estendendo um envelope. "É de Salim Bey."

Muitas cartas e telegramas andava ultimamente a trocar com o seu amigo turco, pensou o anfitrião enquanto encetava mais aquele sobrescrito. Mas talvez nenhum fosse tão importante quanto esse. com o coração de novo aos saltos no peito, como sempre lhe sucedia quando se preparava para saber novidades do filho, retirou uma pequena folha do envelope e devorou o seu conteúdo.

 

Meu caro amigo,

Receio que as notícias não sejam boas. Enviei Ihsen Bey a Kayseri para localizar o seu filho. Infelizmente o meu ajudante chegou tarde de mais, uma vez que a deportação dos arménios da cidade já tinha sido feita. Como Ihsen Bey, apesar de turco, é filho de mãe grega e por isso dispõe também de passaporte grego, pedi-lhe que fosse pessoalmente a Londres explicar-lhe os esforços que envidamos

Não o quero iludir quanto às possibilidades de rever o seu rapaz, que não são muitas se souber extrair ddo meu enviado toda a informação relevante, mas peço-lhe que não perca a coragem.

Que Alá, o Misericordioso, nos proteja a todos nestes momentos tão difíceis.

O seu amigo, Salin Bey

 

Com a impressão de que os pulmões se contraíam no seu peito e a respiração de repente mais pesada, como se tivesse o peito cheio de chumbo, Kaloust leu o texto três vezes, sempre a lançar miradas breves ao visitante sentado ao lado dele, como se buscasse confirmação. Depois dobrou a carta e encarou Ihsen Bey.

"O senhor esteve em Kayseri?"

O seu interlocutor assentiu.

"Salim Bey enviou-me logo que recebeu o seu telegrama a informá-lo do paradeiro do seu filho", disse. "Arranjámos um salvo-conduto em nome do rapaz e, sem perda de tempo, segui de comboio para Kayseri. Quando cheguei lá, no entanto, era demasiado tarde. As ordens de deportação já haviam sido executadas."

"Mas... mas... porque não foi atrás deles? Decerto os encontraria na estrada."

"A eles, não", corrigiu em voz baixa. "A elas."

"A elas? Como a elas?"

"Os homens dos doze aos sessenta anos já haviam sido feitos prisioneiros nas semanas anteriores às deportações. Tanto quanto fui informado, foram metidos na estrada e... e..."

Calou-se, talvez na esperança de que a sua relutância em completar a frase fosse suficiente para tornar evidente o que lhes sucedera.

"Se estão na estrada", insistiu Kaloust sem compreender, ou talvez sem querer compreender aquela hesitação, "porque não foi atrás deles?"

Ihsen Bey engoliu em seco; teria mesmo de explicar tudo até ao fim.

"Eles foram... executados à saída da cidade." Disse a palavra executados num sopro, quase fazendo votos de que o seu interlocutor não a ouvisse. "Só restaram as mulheres, os velhos e as crianças, que acabaram por ser deportados."

Fez-se um silêncio de estupefacção na sala. Kaloust fitava o seu visitante e não queria acreditar.

"Eles executaram os homens? Executaram mesmo? Deram-lhes um tiro?"

Ihsen Bey baixou os olhos, incapaz já de encarar aquele pai desesperado.

"Foi a golpes de machado e picareta, receio bem."

A informação fez o anfitrião tremer, como se ele próprio tivesse sido atingido por aquelas armas de gente bruta.

"E... e o meu Krikor?", perguntou, receando a resposta como nunca receara nada na vida. "Ele também... ele também foi?"

O emissário de Salim Bey curvou os lábios, num sinal de ignorância.

"Não sei", disse. "Indaguei por ele, como deve calcular. Exigi até ao governador de Kayseri que me desse informações sobre o seu paradeiro, mas nada foi encontrado. O nome do seu filho não consta em qualquer registo."

Considerando a alternativa, a resposta constituiu um alívio para Kaloust.

"Isso não é necessariamente mau..."

"Oiça, não quero alimentar falsas esperanças", afirmou o visitante com súbita firmeza. "O facto é que os homens arménios de Kayseri foram executados ao longo das semanas que precederam as deportações. Não existe razão nenhuma para acreditar que o seu filho tenha sido poupado. Assim sendo, temos de esperar o melhor... mas preparar-nos para o pior."

O silêncio regressou à sala, carregado de maus augúrios. A mente de Kaloust fervilhava de ideias, buscava saídas, procurava explicações alternativas que lhe permitissem sustentar a esperança que apesar de tudo não o largava. Se ninguém vira o filho morto, como poderia dá-lo por perdido?

"Tudo isso custa a aceitar", observou. "Como podemos ter a certeza de que estão a... a executar os deportados?"

"Acredite, eu sei."

"Mas sabe, como?"

O enviado de Salim Bey bebericou um trago do café que Humphrey servira momentos antes, ganhando tempo para decidir se devia ou não roubar as últimas esperanças ao seu interlocutor. Quem era ele para assegurar a um pai que o filho estava morto se ele próprio não lhe vira o corpo? Por outro lado, não era seu dever esclarecê-lo quanto às circunstâncias do que realmente se passava? Que direito tinha de lhe negar ao menos o luto?

"Neste preciso momento, infelizmente, a matança de arménios é generalizada no Império Otomano", disse, tomando a decisão de não mascarar a verdade; afinal fora por isso que atravessara meia Europa. "Tenho amigos que trabalham para o Departamento de Segurança Pública e que me contaram como tudo se processa. O Ministério do Interior envia para as províncias ordens para que se deportem os Arménios e que eles sejam tratados com humanidade. Mas isto é apenas para que fique registado, uma espécie de álibi para o caso de vir a ser necessário quando mais tarde se pedirem contas. Na realidade, ao mesmo tempo que as ordens oficiais são remetidas, uma entidade chamada Organização Especial envia emissários para falarem com os governadores e os chefes das polícias locais e dá-lhes ordens verbais para que chacinem todos os arménios deportados ou os entreguem aos chefes para a matança. Tanto quanto sei, existem até pontos específicos das estradas onde essas chacinas são levadas a cabo."

"Essa ordem é verbal?", estranhou Kaloust. "Isso não tem nenhum valor!"

"Depende de quem a dá", argumentou Ihsen Bey. "Muitas vezes é o próprio director da Organização Especial, Bahaettin Sakir, que vai à província distribuir ordens. Outras vezes são emissários devidamente autorizados, em geral um secretário do partido. Seja quem for, nenhum governador tem dúvidas de que essas ordens emanam do governo."

"E... e eles acatam-nas?"

"A maior parte sim, alguns não. O governador de Ancara não aceitou, nem os governadores de Kastamonu, Yozgat, Esmirna, Malatya, Erzurum e Aleppo. Todos eles foram demitidos e substituídos por pessoas mais cooperantes. O presidente da Câmara de Lice, que se recusou obedecer a uma ordem verbal e exigiu que as instruções lhe fossem entregues por escrito, foi demitido e chamado a Diyarbakir. Assassinaram-no no caminho."

"E as populações turcas? Ninguém faz nada? As pessoas aceitam o que se está a passar?"

Ihsen Bey voltou a baixar a cabeça.

"Receio bem que sim", murmurou. "Em algumas áreas os Turcos protegeram os Arménios, como aconteceu em Trebizonda e em Yozgat, mas não na maior parte dos casos. Os meus concidadãos parecem em geral aprovar as deportações e muita gente junta-se às pilhagens e às matanças." Abanou a cabeça. "É uma desgraça! O pior é que, no início, encorajavam-se os Arménios a converterem-se ao islão para se salvarem, mas agora já nem isso é aceite. A ideia é avançar para o extermínio total. E quem quiser ajudar os Arménios arrisca a própria pele. O comandante do Terceiro Exército, general Kâmil, emitiu uma ordem a dizer que 'um muçulmano que proteja um arménio será executado diante da sua casa e a casa será queimada'. Como é evidente, isto dissuade a maior parte das pessoas que queiram prestar auxílio."

Kaloust permaneceu calado um longo minuto. Lutou contra a vontade de chorar e teve de buscar forças que não sabia ter para manter o semblante impassível e não dar parte de fraco perante ninguém. Mas já não alimentava grandes dúvidas sobre a sorte do seu filho. Tivesse Krikor sido executado ou deportado, a verdade é que tudo o que escutara lhe mostrava que não havia muitas possibilidades de voltar a vê-lo vivo. Tinha de se render à evidência, por mais penosa que ela fosse.

"Senhor Ihsen Bey", disse, pondo-se de repente de pé e estendendo a mão ao seu visitante, "agradeço todos os seus esforços e também a gentileza que teve por atravessar a Europa para me vir expor pessoalmente esses tristes acontecimentos."

O enviado de Salim Bey percebeu que o anfitrião já nada precisava que não fosse ficar sozinho e apertou a mão que lhe era estendida.

"Era o mínimo que poderia fazer", disse o visitante. "Lamento, porém, não ter sido portador de melhores notícias."

Kaloust começou a encaminhá-lo para a porta, que já fora aberta pelo sempre atento Humphrey.

"É melhor ter más notícias do que notícias nenhumas", ditou o anfitrião. "Prefiro enfrentar a realidade mais dura a viver na ilusão mais enganadora. A incerteza é insuportável. Ao menos assim sei com o que posso contar."

"com certeza."

Chegaram à porta e, com um gesto final, Kaloust voltou a apertar a mão do visitante.

"Enderece, por favor, os meus cumprimentos e agradecimentos a Salim Bey."

Humphrey fechou a porta e o dono da casa voltou as costas e subiu ao primeiro andar para se fechar no quarto. Começara o luto pela morte do filho.

 

A caravana dos deportados de Kayseri parecia estar gradualmente a degenerar num cortejo de mendigos esfarrapados, tal era o grau de deterioração geral a que o grupo começava a chegar. Havia um mês que os arménios estavam em marcha; apenas paravam para pernoitar quando os gendarmes faziam sinal. Os viajantes eram atacados quase todas as noites por populações curdas emboscadas na estrada e por bandos de turcos, sempre perante a passividade, e até com a cumplicidade e a participação activa, dos gendarmes que ali estavam alegadamente para os proteger.

"São chetes", disse alguém, espalhando a informação pela caravana. "Os chetes estão emboscados por toda a parte."

Ninguém sabia o que eram exactamente os chetes, à parte os rumores de que se tratava de criminosos que os Turcos haviam soltado das cadeias. Os ataques nocturnos, e até alguns lançados à luz do dia, pareciam incidir sobretudo na dianteira e na retaguarda do cortejo. Krikor e a família Kinosian faziam por isso os possíveis por se manterem na zona central da comprida fila, uma área onde os agressores hesitavam mais em entrar por receio de qualquer acção de flanco das arménias desesperadas. Para que iriam os atacantes correr riscos se as duas extremidades da caravana pareciam mais vulneráveis?

Havia já quarenta e oito horas que a reserva alimentar da família Kinosian se esgotara. Os produtos frescos tinham desaparecido em apenas dois dias e os secos ou salgados foram-se aos poucos na semana seguinte. Depois foi a vez de matarem uma mula para a comerem, mas já não puderam fazer o mesmo com o outro animal de carga porque ele acabou por ser roubado pelos curdos. Perdeu-se essa mula e a respectiva colcha com o dinheiro forrado no interior. Restava uma colcha, mas era demasiado pesada para ser transportada por uma pessoa e acabaram por se desfazer dela depois de extraírem as jóias e o dinheiro escondido.

Os derradeiros biscoitos do grupo tinham sido reservados para a pequena Khenarig, dois dias antes, e desde então apenas comiam iogurtes e pão que ao longo do caminho iam comprando a aldeãos turcos que ocasionalmente apareciam à beira da estrada. Era, porém, raro vê-los porque os gendarmes pareciam escolher de propósito percursos que evitavam as zonas habitadas e sobretudo os grandes centros populacionais.

"Avô?", chamou Marjan, voltando-se para trás. "O senhor está bem? Consegue andar?"

O avô Sisag era o elemento da família que enfrentava maiores dificuldades naquela provação. Os setenta anos pesavam-lhe no corpo a cada passo e a marcha incessante, a uma média de progressão de quarenta quilómetros por dia através de montanhas e vales, estava a ser um verdadeiro suplício, mais a mais desde que deixara de comer com regularidade.

"vou fazendo o que posso, minha filha", murmurou ele enquanto se apoiava no cajado e após respirar fundo duas vezes consecutivas. "Mas a idade não perdoa, menina." Sacudiu a cabeça. "Não sei se vou conseguir caminhar muito mais tempo..."

"Consegue, avô, consegue" devolveu-lhe a neta, esforçando-se por encorajá-lo. "Que remédio!"

Após dois dias sem se alimentarem, já ninguém do grupo sentia fome. Era estranho verificá-lo, mas a vontade de meter comida na boca, desejo obsessivo que os torturava desde que a comida começara a escassear, desaparecera quase por completo quarenta e oito horas depois de as provisões se terem esgotado. Parecia que o corpo se recusava a desejar o que não estava ao seu alcance.

Passaram a meio dessa tarde pelos restos abandonados de um acampamento pejado de cadáveres de mulheres e de crianças, dizimadas pelas doenças e pelos múltiplos ataques nocturnos às caravanas. Os elementos do cortejo de Kayseri pegaram nas cruzes que traziam nos colares ao pescoço e, voltando-as para os corpos, benzeram-se.

"Que horror!", exclamou Marjan depois de levar a mão à boca. "Meu Deus, é isto que nos espera..."

"Não fales assim", repreendeu-a Krikor. "Não nos vai acontecer nada disto, ouviste? Não deixarei."

Passaram ao lado do corpo inchado de um cavalo, para onde convergira uma mão-cheia de deportados do cortejo que mordiam aquela carne quase putrefacta, como moscas em torno da imundice mais abjecta, mas a família Kinosian olhou em frente e seguiu caminho. Ninguém tinha fome.

Apenas sede.

A última vez que tinham bebido água fora na véspera e graças a um aguaceiro providencial. Na ocasião puseram os copos e uma panela à chuva e, depois de beberem a água que aí se acumulara, espremeram as roupas e todos os tecidos molhados para extrair o líquido que os empapava. Essa água vinha suja, até porque todos os tecidos estavam já imundos para além de qualquer descrição, mas sorveram-na como se tivesse vindo da mais pura das fontes de montanha.

Isso ocorrera vinte e quatro horas antes. Nesse momento já não havia água para ninguém e o céu limpo nada prometia, além de mais calor e transpiração. Tinham, por isso, a língua seca e a ideia de encontrarem água não lhes saía da cabeça. Talvez fosse essa a razão de terem ignorado a carne do cavalo morto junto à estrada; quem sabe se inconscientemente tivessem receado que a comida lhes desse ainda mais vontade de beber.

"Poço!", gritou uma voz em turco; era evidentemente um gendarme quem falava. "Está aqui um poço!"

Um clamor aliviado ergueu-se do meio dos deportados e as pessoas começaram a correr num movimento desordenado, cada uma a tentar chegar antes das outras para mais depressa poder satisfazer a sede. A massa de gente avançava num tropel entre a poeira erguida por milhares de pés; até o avô Sisag, que caminhava com dificuldade crescente, pareceu ganhar um novo fôlego e, apoiando-se no cajado, quase correu no meio dos seus companheiros de infortúnio.

Soou um tiro e depois mais dois.

"Alto!", berrou a mesma voz turca. "Nem mais um passo, ouviram? Todos quietos!"

A multidão imobilizou-se e um súbito silêncio abateu-se sobre o lugar. Em bicos de pés, Krikor espreitou para a dianteira e viu dois corpos caídos no chão; eram duas mulheres, uma poça de sangue a nascer-lhes por baixo das cabeças destroçadas. Os tiros, pelos vistos, não haviam sido disparados para o ar, mas para as deportadas que seguiam à frente naquela corrida de desespero.

Uns metros adiante dos cadáveres estavam dois gendarmes armados e uma estrutura com um balde empinado e guardada por outro turco. Devia ser ali o poço.

"Quem quiser beber", anunciou um dos gendarmes armados, "tem de pagar."

Um alarido de protesto percorreu a multidão desidratada, formando uma cacofonia de vozes a contestar a decisão. Os gendarmes aguardaram pacientemente e um deles, o que estava junto ao poço, pegou no balde a transbordar de água e, num gesto de suprema provocação, despejou-o sobre a sua própria cabeça, como quem dizia que se sentia de tal modo saciado que nem queria beber. Os deportados ficaram boquiabertos, estupefactos por verem alguém desperdiçar daquela maneira e em tais circunstâncias um bem tão precioso.

Percebendo que tinha a clientela na mão, o gendarme que falara ergueu dois dedos.

"São dois gourouch", anunciou, com dois dedos erguidos e voltando-se para um e outro lado, de modo que todos os vissem bem. "Quem quiser beber um copo terá de nos pagar dois gourouch. Quem quiser dois copos, são quatro gourouch. E assim por diante. Entenderam?"

Resignado ao inevitável, Krikor meteu a mão ao bolso e começou a contar as moedas. Se cada uma das pessoas do seu grupo bebesse cinco copos de água, teria de pagar cinquenta gourouch. Mas, com a sede que sentiam, teriam decerto de investir em dez copos. Ou mais.

O ataque da noite veio um pouco mais cedo que de costume. O sol avermelhado beijava ainda as colinas que recortavam o horizonte, projectando uma luz quente na copa das árvores e rasgando o céu de tonalidades escarlate e violeta, quando foram disparados os primeiros tiros e um bando de curdos invadiu a caravana. Já não havia carroças onde a família Kinosian se pudesse proteger, uma vez que os animais que as puxavam tinham sido já todos roubados nos sucessivos assaltos ou mortos e comidos pelos próprios proprietários esfaimados. Krikor, que planificara uma reacção naquela eventualidade, encaminhou o seu grupo para a encosta do vale.

"Aqui! Escondam-se aqui!"

Mantiveram-se ocultos entre moitas plantadas na margem da estrada, de onde assistiram aos esfaqueamentos e à subsequente pilhagem do pouco que restava na posse dos deportados. A longa caravana que partira de Kayseri, com mais de duas mil pessoas de uma ponta à outra, estava reduzida a um bando com uns setecentos refugiados. Os restantes haviam sido mortos ao longo do caminho, vítimas das sucessivas emboscadas e da fome. As Kinosian podiam dar-se por contentes porque apenas haviam sofrido uma baixa, a de Caroun, logo no primeiro dia, porque se concentraram sempre no meio da caravana, onde, guiadas pelo ágil Krikor, logravam encontrar a tempo refúgios adequados durante os ataques.

"Chiu", soprou Marjan enquanto tapava a boca da pequena Khanerig, que quase começara a chorar. "Nem um som."

A ordem era desnecessária porque já todos sabiam que ninguém podia falar durante os ataques. Deitada no chão e abrigada pelas folhas que mascaravam a sua presença, a família Kinosian nem sequer se atrevia a mexer-se. O grupo liderado por Krikor descobrira que a imobilidade era a sua melhor arma; se algum atacante avistasse qualquer elemento da família, muito provavelmente pensaria que estava morto e deixá-lo-ia em paz.

Depois deste último assalto e de os curdos se terem retirado para regressar às suas aldeias, os gendarmes deram sinal de paragem. As Kinosian levantaram-se devagar e foram instalar-se junto a um arbusto, como sempre quando chegava a hora de acamparem. O avô Sisag aproveitou para ir vasculhar nalguns cadáveres que jaziam no meio da estrada, em busca das sobras da pilhagem dos curdos.

"Khenarig!", chamou ele após limpar os bolsos do casaco de uma idosa com o peito ensanguentado. "Olha o que encontrei." Estendeu a mão na direcção da neta. "Queres?"

A rapariga viu umas amêndoas na palma da mão do avô e, com um gesto sôfrego, pegou nelas e meteu-as à boca. Foi a primeira comida adequada que mastigou em dois dias, mas não lhe chegava. Juntou-se por isso ao resto da família e esgravatou raízes que Marjan havia encontrado nas redondezas.

A noite assentou sobre a estrada e, como sempre àquela hora, o grupo estendeu-se sobre as colchas e preparou-se para dormir. Os curdos não voltaram a atacar, talvez até o tivessem feito mais cedo para estarem de regresso a casa à hora do jantar. Para compensar, o sono das Kinosian foi interrompido por duas mãos que de repente apareceram do meio da escuridão e agarraram Marjan.

"Que é isto?", gritou ela, despertando abruptamente e tentando libertar-se. "Largue-me!"

Viu a puxá-la um velho turco malcheiroso, de aspecto imundo e com uma barba comprida.

"Vem comigo, miúda estúpida", disse o velho sem a largar. "Se ficares aqui vais morrer. Vem comigo!"

"Largue-me!"

Krikor, que toda aquela confusão acabara por acordar, levou um longo instante a digerir a situação. Quando por fim percebeu o que se passava, ergueu-se de um salto e, em fúria, desferiu um soco no estômago do desconhecido.

"Vai-te embora!", rugiu. "Fora daqui!"

O velho turco cambaleou para trás, curvado sobre a barriga, e lançou um olhar perplexo para a arménia que o enfrentara. Nunca tinha visto uma mulher esmurrar tão bem nem com uma voz tão masculina, mas percebeu que seria desaconselhável insistir e, aos tropeções, desapareceu de vez na treva densa, como se a noite o tivesse devorado.

As dificuldades de locomoção do avô Sisag agravaram-se na manhã seguinte. Como de costume, a caravana retomou a marcha pouco depois do nascer do Sol, mas o coxear permanente do patriarca dos Kinosian começou a atrasar a família. A meio da manhã já o grupo se viu na retaguarda do cortejo, um lugar demasiado arriscado devido aos consecutivos ataques desferidos pelos curdos.

"Pai", insistiu Arshalous, perfeitamente consciente de que ali corriam um tremendo perigo. "Tem de se apressar, não podemos ficar na cauda da coluna!"

O corpo do idoso tremia com o esforço e a sua marcha tornara-se vacilante.

"Faço o que posso", retorquiu ele entre golfadas de ar ruidosas. "Faço o que posso."

Vendo que a situação se agravava, Krikor pousou Khenarig, que habitualmente transportava ao colo, e foi com Marjan ajudar o avô Sisag. Ambos lhe passaram os braços sob os ombros e carregaram-no assim durante algum tempo. Ao fim de uma hora, contudo, estavam exaustos e tiveram de o largar.

"Avô!", implorou Marjan, arquejante com o esforço. "Mais um bocadinho, vamos."

O ancião recomeçou a marcha, mas cambaleava mais do que caminhava. A grávida Arshalous foi ajudá-lo, embora se tivesse visto forçada a desistir ao fim de apenas quinze minutos, tão extenuada ficou.

Os gendarmes percorriam a caravana a cavalo, para a frente e para trás, certificando-se de que ninguém fugia ou ficava para trás. Vendo a família Kinosian perder terreno, um deles galopou até à retaguarda e, ao chegar junto do grupo, fez gestos peremptórios a apontar para o cortejo lá adiante.

"Mais depressa!", ordenou. "Ya'Allah! Mais depressa!"

"É o meu pai, effendi", disse Arshalous num registo submisso, tentando arrancar do turco alguma compaixão. "Já mal consegue andar, coitado." Respirou fundo, a ganhar coragem para fazer o pedido. "Será que vossa excelência o podia levar no seu cavalo?"

"Estás doida, mulher?", escandalizou-se o gendarme. "Pensas que sou alguma diligência?" Apontou com a espingarda para a coluna à frente. "Vamos mas é a despachar, ouviste? Não quero ninguém para trás! Ya'Allah!"

A família apressou o passo, empurrada pelo cavaleiro turco. O avô Sisag galgou mais uns metros, mas foi nesse preciso instante que parou e, as pernas enfim a darem de si, se deixou cair no chão.

"Não posso mais!", anunciou com um suspiro de exaustão. "Uf!" Vendo toda a gente a olhar para ele, fez um gesto com a mão. "Ide! Ide! Eu fico aqui!"

"Mas, pai...", argumentou Arshalous, "mais um esforço!"

O velho abanou a cabeça.

"Não posso", desabafou ele na rendição final. "Não posso, filha. O meu corpo não tem mais nada para dar. É o fim da linha."

"Pai!"

"Avô!"

As Kinosian e Krikor fizeram tenções de se dirigir ao avô Sisag, mas o cavaleiro turco interpôs-se entre eles e apontou-lhes a espingarda num gesto ameaçador.

"Vão! Vão!", ordenou, indicando a caravana já a distanciar-se na estrada. "Ya'Allah!"

"Por favor, effendi, ele está..."

"Cala-te, mulher, e anda!", vociferou o gendarme. Voltou para Arshalous o cano da arma. "Se voltas a questionar uma ordem minha, levas uma bala entre os olhos, ouviste?" Virou a espingarda para os restantes. "E vocês também, suas miseráveis! Toda a gente a caminhar! Ya'Allah! Quem não começar a andar dentro de cinco segundos leva um tiro!"

O grupo entreolhou-se, o desespero estampado nos rostos. O que poderiam fazer? O gendarme mantinha a espingarda apontada. Para mostrar que não estava a brincar, armou o gatilho com um clique e preparou o disparo.

"Mas, effendi..."Um...", começou o turco a contar. "Dois... três..."

As Kinosian perceberam que não havia alternativa, tinham mesmo de obedecer. Começaram a andar com relutância, a cabeça voltada para trás, os olhos fixos no patriarca, que permanecia sentado no meio da estrada.

"Avô!", implorou Marjan, os olhos marejados de lágrimas, a voz a quebrar-se de emoção. "Levante-se e ande! Vá, só mais um esforço! Por favor!"

Incapaz já de mexer as pernas, o avô Sisag ergueu uma mão no ar e desenhou uma cruz em direcção à família que se afastava.

"Ide com Deus, minhas filhas! Que o Senhor vos acolha e proteja na Sua misericórdia infinita."

O gendarme a cavalo aproximou-se então do velho. Alheio à família que tudo observava, levantou a arma o mais alto que pôde e, com um movimento rápido, desferiu-lhe na cabeça uma coronhada brutal. Um som oco ressoou pelo ar, como o de uma melancia a abrir-se no chão. Acto contínuo, ergueram-se repuxos de sangue como de uma fonte e o corpo do avô Sisag tombou de costas, parecia um saco largado na terra, o pé esquerdo a tremer num derradeiro estertor, a poeira a cobri-lo como o véu fino de uma mortalha.

"Avô!"

 

Os gendarmes que ocupavam a dianteira da caravana ergueram os braços para ordenar a paragem e as poucas centenas de arménios que haviam sobrevivido até ali imobilizaram-se e sentaram-se no chão. Ao lado da estrada estendia-se a curva estreita de um rio, onde a corrente límpida era particularmente forte e acelerava entre as pedras com um som fresco e borbulhante.

Mas a atenção dos recém-chegados fixou-se sobretudo no que os cercava. Por toda a parte se acumulavam os detritos de um acampamento anterior. Espalhavam-se pelos arredores dezenas de cadáveres e alguns deportados esqueléticos, os ossos apenas envolvidos pelas peles, os rostos macilentos com malares protuberantes e os olhos encovados em largas olheiras sombrias.

Havia já quatro meses que deambulavam pelas estradas, subindo e descendo montes, suportando consecutivos ataques das populações curdas e dos chetes e dos gendarmes turcos.

O cortejo fora sucessivamente dizimado pelas emboscadas ou pelas doenças desencadeadas pela má nutrição. Desde a morte do avô Sisag que Krikor e as três Kinosian sobreviventes se alimentavam apenas de raízes e de uma mistura de iogurte e pão que iam intermitentemente adquirindo aos raros aldeãos turcos com quem se cruzavam.

Vendo os deportados cadavéricos que encontraram naquele ponto da estrada, os recém-chegados não deixaram de se interrogar sobre se seria aquilo que lhes reservava o futuro. Krikor sabia que perdera muito peso e estava com um aspecto ossudo, tal como as três Kinosian que o acompanhavam, mas, apesar de tudo, ainda não atingira aquele ponto. Chegaria lá?

A pequena Khenarig apontou para o rio.

"Olha ali! Olha ali!"

Todos se viraram para a corrente líquida e viram vultos a deslizar pela água, uma perna aqui, um braço ali, uma cabeça acolá; eram cadáveres de arménios que o rio arrastava, uma imagem que se tornara comum nos últimos meses mas que os impressionava sempre. Sabiam que a maior parte daquelas pessoas tinham sido mortas pelos Turcos, mas muitas, em particular raparigas, eram suicidas. Alguém lhes dissera semanas antes que tinha visto um grupo de raparigas desesperadas darem as mãos e lançarem-se juntas ao rio, preferindo a morte rápida à execução lenta a que estavam a ser sujeitas.

"Já viram aquelas miúdas?", perguntou Marjan, apontando para outro lado. "Coitadas."

A atenção de Krikor desviou-se para ali. Uma idosa a uns meros cinco metros de distância cuidava de duas moças com a pose esfíngica das estátuas; tinham o olhar nublado e a expressão inerte dos sonâmbulos. Não passariam dos quinze anos de idade; eram deportadas do campo onde a caravana de Kayseri desaguara. Os rostos das raparigas mostravam-se inexpressivos; pareciam ambas alheadas de tudo.

Intrigado, o rapaz aproximou-se delas.

"Que se passa?", perguntou à mulher que cuidava delas. "Precisa de ajuda?"

A velha atirou-lhe um olhar cansado. Sem parar o que estava a fazer, abanou a cabeça.

"De ajuda precisamos, claro", assentiu num tom neutro. "Quem não precisa de ajuda nos tempos que correm?" Espreitou-o de soslaio e fez uma careta. "Mas você não a pode dar."

"Então?", insistiu Krikor, indicando as duas raparigas que a mulher cuidava. "O que têm elas?"

A idosa fez um gesto na direcção dos gendarmes que se encontravam um pouco mais adiante.

"As minhas meninas são todas as noites levadas pelos turcos", disse, recomeçando a penteá-las. "Eles fazem o que querem com elas e não há nada que os impeça." Baixou o tom, a voz a estrangulá-la de raiva. "São uns animais! Uns

animais!

Aquelas palavras fizeram Krikor vacilar. Estudou as raparigas, que mantinham a expressão perdida e anestesiada, e recuou. Não havia de facto nada que pudesse fazer por elas. Podia até dar-se por muito satisfeito por nada de semelhante ter ainda sucedido a Marjan. Conseguiria suportar uma situação dessas com ela? E se aquela por quem estava apaixonado fosse sujeita a isso? Como aguentaria?

Quando voltou para junto das duas Kinosian deu com elas a conversarem com um grupo de deportadas que haviam encontrado. Marjan explicou-lhe que elas eram de Sivas e faziam parte de um grupo que havia sido destroçado por um ataque particularmente feroz dos Curdos. Apenas duas dezenas de pessoas tinham sobrevivido à matança.

"As coisas mais para a frente são um horror!", balbuciou uma delas, o olhar assustado a espreitar na direcção dos gendarmes como se fossem eles os algozes. "Falámos com um grupo de pessoas que escaparam de Aleppo e..."

"O governador turco de Aleppo recusou-se a executar a ordem de deportação e foi demitido", precisou uma outra, preocupada com mostrar a relevância de se tratar de arménios de Aleppo. "Enquanto não abandonava funções avisou os arménios da cidade e muitos conseguiram escapar a tempo. Foram apanhados, claro, mas ainda assim viram muita coisa que os Turcos não queriam que soubéssemos."

"Pois, é isso", disse a primeira, retomando a narrativa. "Falámos com arménios de Aleppo que nos disseram que as estradas para a Síria são um inferno. Aquilo está cheio de mulheres e de crianças e de velhas a morrerem de fome e de sede. Ninguém lhes acode, ninguém lhes dá nada. Até parece que os Turcos estão a fazer de propósito!"

Marjan e Krikor entreolharam-se.

"É para o deserto?", perguntou a rapariga. "É para lá que nos estão a levar?"

As interlocutoras acenaram afirmativamente.

"Os poucos que sobrevivem a esta viagem estão a ser conduzidos para o deserto da Síria", confirmou a mais assustada. "As pessoas com quem falámos disseram que viram caravanas de mulheres a atravessar o deserto. São atacadas por bandidos chamados yeneze, que as matam, violam, raptam e roubam. As que sobrevivem andam seminuas. Parece que os yeneze até a roupa interior lhes levam. E toda aquela zona é um mar de cadáveres esqueléticos, pasto para os abutres que enxameiam o céu."

"Mas para quê o deserto? Porque nos querem aí?"

A mulher de Sivas baixou a cabeça.

"Estão a levar-nos para duas povoações onde se passam coisas terríveis."

"Que povoações?"

O grupo que tinha falado com os fugitivos de Aleppo calou-se, como se o próprio nome do destino fosse impronunciável. Acabou por ser uma outra, que até então tinha permanecido calada, que a medo identificou os dois locais para onde todos os arménios do império convergiam sem o saberem.

"Der Zor e Ras-al-Ayn."

Krikor carregou as sobrancelhas.

"Der Zor e Ras-al-Ayn?", perguntou com uma careta; nunca ouvira falar em tais lugares. "Que é isso?"

As mulheres de Sivas olharam em redor, assustadas. Dava a impressão que soletrar os nomes daquelas povoações tinha o poder de invocar o próprio Diabo.

"São os matadouros de Arménios."

A noite envolveu a caravana e os gendarmes começaram a deambular pelo campo, dirigindo-se aos grupos de deportados que se aglomeravam ao longo da estrada. Um deles chegou ao pé de Arshalous e estendeu-lhe a mão com a palma voltada para cima.

"Dá-me uma moeda de ouro", ordenou. "É para as balas."

A mulher esboçou uma careta inquisitiva.

"Balas? Que balas?"

"As que gastámos para vos proteger." Sacudiu a mão estendida, para reforçar o pedido. "Quero uma moeda de ouro."

"Mas vocês... vocês não fizeram nada!", protestou ela. "Pior, juntaram-se aos bandidos e andaram em conluio com eles! Além do mais, mataram o meu pai e deixaram que matassem a minha filhinha, a minha Caroun, coitadinha, que... que..."

Já não conseguiu terminar a frase porque o olhar se embaciou e a voz morreu na lembrança do sucedido.

"Paguem pelas balas!", insistiu o turco, a voz a tornar-se ameaçadora. "Uma moeda de ouro!"

Percebendo que não tinha alternativa, Krikor meteu a mão ao bolso e extraiu o dinheiro exigido. O gendarme fechou-a no punho, lançou um olhar demorado aos quatro e afastou-se para extorquir mais dinheiro ao grupo seguinte.

"Bandidos", murmurou Marjan entre dentes. "Assassinos! Ladrões! Já viram que novos esquemas estes animais arranjaram para nos sacar as moedas? Porque não nos tiram logo o dinheiro em vez de virem com esta conversa?"

"Para fingirem que é tudo legal", explicou Arshalous. "Eles não roubam, somos nós que lhes pagamos pelo serviço. Ah, que gente mais desprezível!"

Krikor lançou uma olhadela desconfortável em redor, para se certificar de que não havia mais gendarmes a aproximarem-se. Viam-se alguns à distância, a saltar de grupo em grupo com a conversa das balas que era necessário pagar, mas estavam suficientemente distantes para não os poderem ouvir.

"Esta ideia deve-lhes ter sido sugerida pelos outros gendarmes que aqui encontraram", disse ele, ajeitando o lenço que lhe cobria o rosto masculino. "A mim, confesso, o que me preocupa verdadeiramente não é a extorsão do dinheiro."

"Então o que é?"

A atenção do rapaz voltou-se para os vultos das moças violadas e da respectiva mãe. Pareciam espectros ocos de vida que a luz fria da Lua recortava na penumbra.

"É o olhar que o tipo nos lançou."

Os gendarmes voltaram a meio da noite e, plantando-se em círculo em torno das Kinosian, agarraram em Marjan e içaram-na para cima de um deles, um homem alto e corpulento, quase como se ela não passasse de um saco de batatas.

"Ya'Allah, giavour!", exclamou o turco possante, apalpando-lhe as nádegas empoleiradas sobre o seu ombro. "Hoje é a tua vez, miúda. Vais gozar até te fartares, verás!"

Já totalmente desperta, e apercebendo-se do que a esperava, a rapariga começou a gritar e a espernear, tomada pela loucura do desespero, mas um dos gendarmes esbofeteou-a com força e ela calou-se, atordoada com a violência da estalada. Impotentes perante o que sucedia diante delas, Arshalous e Khenarig puseram-se a gemer e a implorar que libertassem Marjan, os braços estendidos num gesto de súplica, mas os gendarmes arredaram-nas com um pontapé e afastaram-se despreocupadamente em direcção à sua tenda.

Recuperando a noção do que lhe sucedia, a vítima recomeçou a espernear e a gritar, pedindo socorro e exigindo aos turcos que a largassem, o que os distraiu por momentos.

"Calem-me essa puta!"

Foi nesse instante que Krikor, que permanecera quieto e calado no seu lugar, como se dormisse, se ergueu de rompante e, com uma força de que não se sabia capaz, se atirou sobre o gendarme robusto que carregava Marjan. Apesar da sua estrutura compacta, o homem cambaleou e quase caiu, cedendo momentaneamente à força do impacto, mas conseguiu equilibrar-se e manter a presa segura entre os braços.

"O que é isto?", admirou-se o turco. "Esta tipa pensa que é um cruzado ou quê?"

Reagindo de pronto, três gendarmes agarraram Krikor e esmurraram-no sucessivamente no estômago e no rosto. O rapaz caiu no chão, onde começou a ser pontapeado pelos três agressores. Encolheu-se em posição fetal e protegeu a cabeça com as mãos, mas os turcos batiam com a ponta das botas e só pararam quando perceberam que Krikor deixara de se mexer.

"Incríveis estas arménias", observou um dos gendarmes enquanto se afastava. "Damos-lhes o privilégio de serem montadas por um verdadeiro homem e ainda protestam! Já viram isto?"

Sucederam-se as gargalhadas enquanto se afastavam, mas um deles ainda olhou para trás e contemplou o vulto imóvel de Krikor.

"Se aquela gaja sobreviver à porrada que acabou de levar", disse enquanto passava a língua lasciva pelos lábios, "ainda venho cá buscá-la para a comer."

 

O corpo emaciado de Krikor estava coberto de equimoses, mas a sova infligida pelos gendarmes não provocara lesões graves e o rapaz mostrava-se perfeitamente consciente quando Marjan regressou do seu calvário às mãos dos turcos. A rapariga apareceu a cambalear, o cabelo emaranhado, o rosto apático numa expressão de choque, manchas de sangue a sujarem-lhe as pernas.

"Minha filha, minha filha!", choramingou Arshalous, acolhendo-a nos seus braços. "O que te fizeram eles, minha menina? O que te fizeram eles, meu Deus?"

A recém-chegada trazia os olhos vidrados num esgar de horror anestesiado, como se a alma se tivesse recolhido do corpo, protegendo-se numa concha escondida algures no seu âmago. Mas os beijos e as carícias da mãe e as mãos da irmã a abraçá-la pelas costas derrubaram as muralhas que Marjan erguera dentro dela para se proteger e em breve as lágrimas começaram a rolar-lhe dos olhos negros, primeiro hesitantes, uma gota aqui e outra ali. Depois a boca contraiu-se-lhe numa careta de dor e ela pôs-se a gemer baixinho, os olhos embaciados numa corrente incessante e o gemido tornou-se um uivo prolongado, pungente, doloroso.

Marjan começara o luto.

Vendo-a naquele estado de desamparo, Krikor voltou-se para o lado e chorou em silêncio. Sentia vergonha dele mesmo, de ter sido incapaz de a proteger, de ter permitido que lhe fizessem a ela o que haviam feito, a ela que era a alegria dos seus olhos, a pessoa por quem a tudo se submetera, até àquela marcha de morte que decerto os ceifaria a todos. Como se odiava Krikor pelo sofrimento de Marjan.

As três Kinosian permaneceram longos minutos abraçadas, num pranto desamparado. O choro atingiu um auge de intensidade e começou a desfalecer, transformando-se numa sucessão de soluços entrecortados por gemidos e pelas primeiras palavras que Marjan logrou enfim balbuciar.

"Foi horrível, horrível!", tartamudeou nas pausas do prolongado gemido, a boca babada de saliva, os olhos inchados de lágrimas. "Eles... eles eram muitos e... e... fizeram à vez. Prenderam-me os braços e as pernas e... fizeram à vez." O choro ganhou força. "Primeiro um, depois outro, depois outro, depois..."

Falava como se expulsasse cada palavra do corpo e assim se expurgasse. O simples facto de se expressar ajudava-a a arrumar na mente a terrível experiência que vivera, a tentar encontrar um sentido, a digerir o que sucedera e a conferir-lhe alguma ordem, por ténue que fosse.

"Pronto, minha filha, pronto", sussurrou-lhe a mãe ao ouvido, tentando acalmá-la. "Chiu! Já passou, já passou!"

Mas Marjan não se calava; sentia uma necessidade imperiosa de articular por palavras o que lhe acontecera. Era a única forma que conhecia de interpretar a experiência e tentar extrair dela um significado, uma qualquer razão que de alguma forma a justificasse ou explicasse.

"Foram dez homens... ou quinze, não sei", disse quando recuperou de mais uma vaga de choro. "Eram muitos, meu Deus. Muitos. Não paravam. Primeiro um, depois outro, depois outro, depois outro." Fez nova pausa para recuperar o fôlego. "Doía-me tudo, eu gritava, eu chorava, eu... sei lá! E eles... e eles não paravam. Riam-se e não paravam..."

"Pronto, pronto."

Interrompendo a narração apenas para curtas pausas de choro, Marjan descreveu o que lhe acontecera uma e outra vez, repetindo os pormenores, insistindo que eles eram muitos e que não paravam, sempre um atrás do outro, num suplício interminável, em fila e à vez, eles a rirem-se e ela a gritar, a berrar até que a voz lhe faltou e se rendeu e se tornou uma boneca inerte às mãos dos torcionários.

Deitado ao lado, horrorizado e envergonhado, Krikor sentia-se no limite da resistência e voltou-se de costas, tapou os ouvidos e fechou os olhos, de volta à posição fetal. Aquelas palavras eram adagas que Marjan lhe cravava no coração, sova mais violenta do que aquela não existia; mil vezes antes os pontapés dos turcos que o relato incessante do que lhe haviam feito a ela.

Mantiveram-se assim durante mais de uma hora, as Kinosian abraçadas, Krikor encolhido na posição fetal a tapar os ouvidos, Marjan a repetir por palavras o que se passara por actos, Arshalous a segredar-lhe "pronto, pronto" e "já passou, minha filha", Khenarig agarrada à irmã sem nada dizer mas sentindo tudo. com o tempo, porém, as palavras foram morrendo, devagar, até que se desfizeram por fim num silêncio inquieto, quando o cansaço se sobrepôs a tudo o mais e, sem darem por isso, elas e ele deslizaram para o sono.

A marcha no dia seguinte foi particularmente penosa para os quatro. Ao longo dos últimos dois meses só tinham comido iogurte, pão e raízes colhidas nos campos, e havia já quase quarenta e oito horas que nada punham à boca. com tudo isto, a debilidade física do grupo agravara-se, a exemplo do que sucedia em toda a caravana.

O ventre de Arshalous dilatara-se muito e, ao torná-la tão pesada num corpo a definhar, dificultava-lhe a marcha. Já Khenarig mostrava-se de tal modo franzina que as pernas não passavam de palitos com aspecto quebradiço, e arrastava-se pela estrada a ansiar por um colo que ninguém lhe poderia dar.

Mas pior estavam a passar Marjan e Krikor. A rapariga sentia dores entre as pernas, tão lancinantes que experimentava grande dificuldade em caminhar, enquanto o seu pretendente tinha o corpo de tal modo moído de pancada que marchava igualmente em passos incertos. Seguiam afastados um do outro, a moça um pouco à frente, como se o que havia sucedido na noite anterior tivesse erguido um muro invisível entre eles, Krikor atrás a querer juntar-se-lhe e falar-lhe, ter uma palavra meiga, mas a sentir uma vergonha inultrapassável. O que lhe diria? Fingiria que nada se tinha passado? Ou far-lhe-ia perguntas sobre o que sucedera? O que precisava ela que ele fizesse? O que seria ele capaz de fazer? Conseguiria encará-la nos olhos?

A sede era permanente entre os deportados e a fraqueza também. Os gendarmes faziam-se sempre pagar pelo acesso à água, por imunda que ela fosse, e Krikor já havia visto deportados esqueléticos morrerem de sede na berma da estrada, o corpo como carne seca, simplesmente porque já não possuíam um punhado de gourouch para comprar um simples copo.

Apesar disso, nesse dia a mente de Krikor não ruminava a obsessão por beber, como acontecia habitualmente. Não naquele dia. Tinha antes a cabeça a transbordar de imagens e emoções da noite anterior; por mais que se esforçasse por pensar noutra coisa acabava sempre por imaginar Marjan a ser usada pelos gendarmes, todos em fila a tirarem partido dela, como se a rapariga não passasse de um instrumento. O pensamento tornou-se de tal modo obsessivo que começou a duvidar que alguma vez conseguisse voltar a olhar para ela sem se lembrar do que vira e imaginar o que não vira.

Ao princípio da tarde, Marjan começou de repente a andar mais devagar até que se deixou apanhar por Krikor. Nessa altura retomou o ritmo normal e manteve a passada paralela ao rapaz, tornando claro que desejava acompanhá-lo.

"Já não me queres?"

Marjan fez a pergunta com o rosto voltado para a frente e os olhos mergulhados ao longe na estrada, as palavras proferidas numa corrente, como se as tivesse havia algum tempo encravadas na garganta e só então as conseguisse tossir.

A ouvi-la, Krikor olhou pela primeira vez directamente para ela e sentiu uma vontade quase irresistível de a abraçar e beijar e dizer-lhe que a amava. Mas não seria adequado, não ali, não perante toda aquela gente, não na sua cultura.

"Como podes dizer isso?"

Ela baixou o olhar para o chão.

"Porque... porque já não estou intacta", murmurou, lutando por conter as lágrimas. "Os homens querem as mulheres puras no dia do casamento e eu estou manchada."

A conversa tornava-se íntima e Krikor desviou a atenção para a estrada, demasiado intimidado para manter os olhos nela. Era a primeira vez que falavam abertamente sobre a sua relação e em particular sobre o casamento. Até então todos os contactos entre eles se tinham reduzido a olhares, sorrisos e subentendidos.

"Não para mim", disse o rapaz. "Não foi a tua alma que pecou. Nem sequer o teu... o teu corpo. Para mim permaneces pura."

"Muitos homens já não me quereriam..."

Era verdade e Krikor sabia-o. Na província a mentalidade era conservadora e um homem honrado jamais casaria com uma mulher desvirginada e usada por um exército. Mas ele não era nenhum provinciano. Nascera em Constantinopla e fora educado em Londres, passava férias em Paris e estudara em Bona. Tornara-se por isso um homem do mundo. Como poderia ser contaminado pela mentalidade tacanha da província?

Esboçou um sorriso triste e, aproximando-se dela, deu-lhe um pequeno encontrão com os ombros, num gesto inesperado de brincadeira.

"Eu sou diferente."

Os gendarmes voltaram nessa noite e levaram Marjan com eles. Dessa vez não houve luta nem gritos, apenas as risadas alegres dos turcos, os gemidos angustiados de Arshalous e de Khenarig a implorarem misericórdia, o silêncio envergonhado de Krikor e a resignação muda da vítima, que seguiu para o seu calvário sem olhar para trás, a vontade quebrada, como se estivesse mentalizada para o inevitável e quisesse que tudo passasse depressa.

As duas horas seguintes foram terríveis. Ficaram os três sentados em silêncio no canto onde haviam assentado, entregues à sua miséria, a escutar as gargalhadas distantes dos gendarmes enquanto se divertiam com Marjan. A noite sem lua envolvia o campo, escura e impenetrável, e apenas se destrinçava o clarão bruxuleante da fogueira ateada à porta da tenda dos guardas turcos, de onde vinham os sons do deboche. Evitaram olhar para lá, como se a luz dali emanada os queimasse.

Num instante em que o barulho pareceu acalmar, contudo, Krikor não resistiu e lançou uma espreitadela medrosa naquela direcção, esperançado de que tudo tivesse já terminado. Viu os fogachos trémulos da chama dançarem sobre a tenda, altivos e irrequietos, e através dos panos no contraste com a luz vislumbrou a silhueta recortada dos homens, todos aglomerados em torno de uma mesa onde se estendia um vulto de mulher; pareciam ratazanas num festim. Foi apenas um relance, coisa de olhar e de imediato virar a cara, mas suficiente para imprimir na mente com a intensidade indelével do ferro em brasa, o cliché eterno de uma cena que para sempre desejaria nunca ter presenciado.

"Virgem santíssima!", murmurou, sentindo-se sufocar de revolta e de impotência e de vergonha e benzendo-se sem parar. "Deus nos acuda!"

O banzé da orgia atingiu um pico de urros e suspiros e risadas e gemidos, até que foi gradualmente esmorecendo, à medida que os homens enfim saciados iam abandonando a tenda, as gargalhadas a perderem-se na noite.

A certa altura, sem aviso, a escuridão vomitou Marjan. A rapariga apareceu junto da família em passos cambaleantes, o rosto pálido e o cabelo despenteado, como uma louca, as mãos a tremerem descontroladamente e uma expressão ausente nos olhos. Largou um punhado de amêndoas e duas maçãs na direcção da irmã, ofertas decerto dos violadores, e deixou-se cair no chão, desamparada, como uma marioneta que o seu manipulador de repente soltara.

"Marjan!"

A mãe gatinhou até ela para lhe acudir, mas a rapariga repeliu-a com o braço e ficou deitada em silêncio, voltando-se de costas para a família e para Krikor, os olhos vitrificados na noite cerrada, o corpo a sacudir-se em espasmos incontroláveis.

O único som era o do uivo baixo e prolongado da mãe na agonia da dor sem remédio.

"Minha filha, minha querida filhinha", gemeu Arshalous ao abandono. "O que te fizeram eles, meu Deus? O que te fizeram eles? Como é isto possível?"

Tornara-se evidente para todos que o sucedido na véspera não constituíra uma excepção, como ingenuamente haviam pensado, e sobretudo desejado, mas o princípio de um procedimento de rotina, um processo penoso que só acabaria com a morte de Marjan da forma mais aviltante possível.

 

A marcha do dia seguinte foi feita em silêncio total. A paisagem tornara-se deslumbrante. A estrada atravessava um vale verdejante repleto de pontos ricamente coloridos; rosas carmesim, campânulas brancas, tulipas gemadas e outras flores azuis, roxas e lilás decoravam as bermas, quase como se prestassem homenagem aos deportados. Havia laranjeiras carregadas de fruto a perder de vista e a natureza vibrava de vida.

Mas na estrada ninguém falava.

Marjan caminhava muda. Parecia um espectro com os olhos encovados e mortiços e uma expressão anestesiada no rosto que a fome tornara ossudo e macilento. Arshalous ia esboçando esgares de dor e acariciando o ventre cada vez mais inchado no corpo esquelético, enquanto Khenarig cambaleava pela berma, igualmente cadavérica, demasiado exausta para pedir sequer que a ajudassem. Apesar da sua magreza, apenas Krikor dispunha de alguma reserva de energia, mas não parecia interessado em usá-la senão para raspar a ponta de um ramo que recolhera de uma árvore. Dir-se-ia que o aguçava numa obsessão demente.

A caravana transformara-se num cortejo fantasmagórico pejado de esqueletos seminus ambulantes, os pés descalços, a pele encarvoada pelo sol e os cabelos desgrenhados como arames sujos e desordenados, todas as pessoas já irreconhecíveis, demasiado fatigadas e esfaimadas para serem capazes de produzir outros sons que não fossem lamúrias débeis. Caminhavam dia e noite havia já três meses, como se o mundo não tivesse fim e para além de uma estrada houvesse sempre outra e outra ainda. Por vezes alguém caía, uma mulher, um idoso ou até uma criança, os gendarmes acorriam como aves de rapina, afugentavam os familiares desesperados e impediam-nos de socorrer o retardatário, ficando à vontade para acabar com ele à coronhada, como haviam procedido com o avô Sisag e continuariam a fazer até que tudo atingisse o amargo fim.

Fazia calor e por volta do meio-dia os gendarmes ergueram os braços e mandaram parar a caravana para almoçar, isto é, para os polícias almoçarem, claro, porque os arménios por esta altura já nada tinham que comer. Os deportados estenderam-se pela berma da estrada, dando descanso às pernas fatigadas, e foi justamente nessa altura, quando se sentou atrás de uma moita, que Arshalous começou a gemer de dores e a contorcer-se. Em breve os gemidos transformaram-se em vagidos cada vez mais ruidosos.

"Chiu!", ordenou uma mulher que seguia à frente das Kinosian, alarmada com o barulho que não parava de crescer. "Calem-na ou os gendarmes vêm aí!"

"Mas calamo-la como?", perguntou Krikor, sem saber como lidar com aquela situação. "Ela está com dores na barriga!"

A mulher aproximou-se e perscrutou Arshalous com um olhar conhecedor.

"Não admira, entrou em trabalho de parto", constatou ao sentir o movimento no ventre e medir a dilatação da vagina. "As mulheres da família que venham aqui ajudar, se faz favor."

Krikor fez sinal com a cabeça a indicar Marjan e Khenarig.

"São elas."

A mulher voltou-se para as duas e examinou-as. A rapariga tinha o olhar vazio de quem se encontrava em estado de choque, evidentemente alheia ao que se passava com a mãe. A irmã mais nova estendera-se no chão, descarnada e zonza, e parecia meio adormecida de fraqueza.

A situação era clara.

"Está bem," suspirou a mulher, resignando-se ao inevitável. "Vamos nós fazer isto!" Começou a arregaçar as mangas no momento em que uma nova onda de dores arrancou mais uma sucessão de gritos da parturiente. "Amordace-a!", ordenou, alarmada. "Não podemos atrair a atenção dos turcos!"

Sem perder tempo, Krikor tapou a boca de Arshalous com a mão e abafou-lhe os gritos.

"Já está."

A mulher que viera acudir ao parto ajeitou o corpo da paciente, mantendo-a de pernas abertas, e começou a massajar-lhe o ventre. As ondas de dores tornaram-se gradualmente mais próximas umas das outras até que atingiram intervalos de apenas algumas dezenas de segundos. Iam e vinham sem cessar.

"Força!", exortou a mulher, mergulhando as mãos na vagina dilatada. "Força na barriga! Isso! Faça como se estivesse a fazer coco, ouviu? Força, força! Não desista! Vamos! Isso, isso!" Espreitou para a racha. "Já aí vem! Mais um pouco! Vamos lá, um último esforço! Força, força! Isso! Força!" com a face coberta de transpiração e as veias a pulsarem de esforço no pescoço e nas têmporas, Arshalous cerrava os dentes e fazia toda a força que o seu corpo já não possuía, fez força e mais força até que, de repente, sentiu um alívio enorme, como se a dor deslizasse para fora e fosse instantaneamente substituída por uma brandura serena.

"Já nasceu!", anunciou Krikor, destapando a boca da parturiente. "Já nasceu!"

Arshalous abriu enfim os olhos e, exausta mas aplacada, o peito ofegante e as pernas dormentes, contemplou o pequeno ser quente e ensanguentado que a parteira lhe pousara sobre o corpo.

Era menino.

Os gendarmes deram ordem de partida meia hora depois e a caravana alinhou-se na estrada. Era este o momento mais temido por Krikor, que sentia as Kinosian desmoronarem-se sem que ele tivesse capacidade para acorrer a todas as frentes. Marjan permanecia em estado de torpor, embora se tivesse erguido em obediência cega quando Krikor lhe deu ordem de marcha. Depois voltou-se para Khenarig. Não foi fácil acordá-la, devido ao seu estado de absoluta debilidade, e só à custa de duas bofetadas conseguiu pô-la de pé.

Restavam Arshalous e o recém-nascido. A mãe de Marjan permanecia deitada na berma da estrada, demasiado fraca para se erguer. Não admirava, considerando o tremendo esforço a que fora sujeita até trinta minutos antes em condições de fraqueza e de cansaço extremo, mas estava fora de questão deixá-la ali.

"Levante-se!", implorou Krikor, puxando-a pelo braço. "Vamos, levante-se!"

"Deixem-me", murmurou Arshalous, a voz entaramelada e os olhos pesados, esboçando um gesto lânguido com a mão. "Deixem-me aqui com o meu menino e vão andando."

"Não pode ser", contrapôs ele com sentido de urgência. "Se ficar para trás, os gendarmes matam-na à coronhada. A si e ao bebé." Puxou-a de novo pelo braço. "Vá, levante-se!"

A mãe de Marjan já testemunhara muitos exemplos do que os guardas turcos faziam aos que ficavam para trás, o seu próprio pai fora vítima do procedimento. Não tinha a menor dúvida de que Krikor dizia a verdade. Levantou a mão débil e estendeu-a na direcção do rapaz.

"Ajude-me."

Krikor pegou nela pelo braço e puxou-a.

"Upa!"

Ainda com a criança ao colo, Arshalous ergueu-se por fim. Acto contínuo vacilou e quase caiu; sentia as pernas dormentes e todos os músculos do corpo a implorarem por repouso. Krikor acorreu a ampará-la. Depois de uma pausa, ela mobilizou as derradeiras reservas de energia e conseguiu equilibrar-se.

Recomeçaram a marcha. Era cada vez mais claro que a situação das Kinosian se deteriorara gravemente. As três cambaleavam pela estrada, pareciam dormentes e inertes, e o próprio Krikor sentia que, com a fome, a sede e a exaustão, em breve também estaria assim. O bebé chorava ininterruptamente, embora a voz não passasse de um miado fraco, e a mãe empurrava-lhe o seio seco para a boca.

"Não tenho leite", constatou com desespero. "O que vou fazer para o alimentar, meu Deus, se nem sequer tenho leite?"

Ao fim de três horas, Arshalous caiu no chão.

"Já não posso mais."

Embora o bebé fosse muito magro e pesasse apenas uns dois quilos, naquele estado de fraqueza extrema a verdade é que ela já não o aguentava. Dois quilos, por muito pouco que fossem, eram demasiado para as poucas forças que lhe restavam. Uma hora antes transferira a criança para as mãos de Krikor, mas depressa descobriu que o maior problema não era o peso, mas o choro. A criança não parava de chorar, esfaimada, e ela desesperava na angústia de não a conseguir alimentar. Pedira-a por isso de volta, na esperança de conseguir extrair algumas gotas de leite do seu seio seco e enfim calá-la, mas fracassou.

Por fim desistiu.

"Levante-se!", encorajou-a Krikor, estendendo-lhe a mão para a puxar. "Vamos, levante-se!"

Arshalous abanou a cabeça.

"Não consigo, não consigo!"

O bebé miava na sua vozinha frágil e ela olhava-o no desespero mais completo, enlouquecida por aquele choro ininterrupto, por saber o que ele significava e por não ter meios de o silenciar.

A parteira que os ajudara, talvez por se sentir responsável, voltou para trás para ir ter com eles.

"Que se passa?"

"Ela está exausta, não tem leite, a criança ainda não comeu e ela não suporta ouvi-la chorar."

A parteira pôs as mãos à cintura enquanto avaliava o caso, e respirou fundo quando chegou a uma conclusão.

"Oiça", disse ela para Arshalous. "Só há uma maneira de resolver isto. Não é fácil e requer grande determinação, mas não vejo outra saída."

A mulher sentada no chão com o recém-nascido ergueu para a parteira o olhar esperançado, como se dela esperasse um milagre.

"O quê? O que devo fazer?"

A parteira indicou o bebé.

"Você não tem maneira de o alimentar", constatou. "Lamento, mas a morte dele é inevitável. Nenhum bebé sobrevive nestas condições, percebe?"

Arshalous acariciou o recém-nascido.

"Tenho os seios secos", murmurou. "O meu menino tem fome e eu tenho os seios secos."

A parteira acocorou-se diante dela e, perfeitamente ciente da gravidade do que ia recomendar, fitou-a nos olhos com intensidade.

"Tem de o deixar na estrada."

A sugestão deixou Arshalous boquiaberta. Esperava desta mulher a salvação, não aquilo. Aquilo.

"Está louca?" Abanou a cabeça, recusando a sugestão. "Não posso abandonar o meu menino!"

"Tem de compreender que ele vai morrer", insistiu a parteira. "Sei que é duro, muito duro, mas não há escolha. Se quiser sobreviver, tem de deixar o menino na estrada. Não há outra solução."

Arshalous não parava de sacudir a cabeça.

"Não posso, não posso, não posso."

"Já muitas deportadas nas suas circunstâncias o fizeram", disse. "Não viu no último mês tantos bebés deitados na berma da estrada? Quem pensa que os deixou lá? Foram as mães. A situação tornou-se de tal modo desesperada que elas tiveram de começar a largar os bebés."

"Não posso abandonar o meu menino!"

"Então como vai fazer? Deixa-se ficar aqui e..."

Uma bota interpôs-se entre a parteira e Krikor de um lado e Arshalous e o recém-nascido do outro, interrompendo a conversa. Era um gendarme com a sua Mauser.

"Que se passa aqui?", perguntou o turco com desconfiança. "Porque estão paradas?"

As duas mulheres baixaram as cabeças e Krikor afastou-se um passo, receando que o gendarme se apercebesse de que ele era um homem.

"É o meu bebé, effendi», explicou Arshalous. "Estou muito fraca e não o consigo alimentar."

O guarda apontou para a caravana.

"Toca a levantar e a caminhar!", ordenou. "Não quero cá desculpas! Ya'Allah! Vamos!"

com a ajuda da parteira, Arshalous ergueu-se e recomeçou a marcha, sempre na retaguarda. Já habituado a situações semelhantes, o gendarme percebeu que o problema não estava resolvido e, com a argúcia e a paciência de um abutre, manteve a mulher e a criança sob vigilância apertada.

Uma hora depois, e como o bebé não cessara de chorar, Arshalous caiu novamente.

Desta vez o gendarme, que as trazia debaixo de olho, não deixou ninguém aproximar-se. Depois de afugentar a' parteira e Krikor, aproximou-se da mãe e deu-lhe um leve pontapé nas pernas.

"Levanta-te!"

Arshalous encontrava-se no limite da força física e anímica. Dera à luz ao início da tarde e meia hora depois já estava a andar. Caminhara durante várias horas ao sol com um recém-nascido nos braços a chorar de fome e sem que ela tivesse maneira de o saciar. Que pessoa conseguiria resistir mais do que ela já resistira?

"Não consigo, effendi..."

O turco deu um jeito à espingarda, preparando-a para o golpe com a coronha.

"Levanta-te, já te disse."

A tudo isto Krikor e Marjan assistiam à distância. A rapariga saíra do estado catatónico em que mergulhara e começara a aperceber-se da gravidade da situação.

"Mãe!", gritou. "Levanta-te!"

"Deixe a criança e salve-se!", lançou a parteira, que também ali permanecia. "Vamos!"

"Não desista", disse Krikor com uma voz de falsete para dissimular a sua masculinidade. "Não abandone as suas duas filhas! Elas precisam de si!"

Foi este último argumento, e só este último argumento, que por fim convenceu Arshalous. Observou a sua pequena Khenarig a cambalear um pouco à frente, esfaimada e desidratada, e viu Marjan a olhá-la com angústia, a sua Marjan que os turcos todas as noites desonravam e maltratavam, e percebeu que não tinha o direito de desistir e de as deixar entregues a elas mesmas. Havia-se esforçado para além do que imaginava possível, tinha ido até ao limite e até para além dele, mas a realidade impunha-se. Chegara o momento da terrível escolha.

Pegou no pequeno ser que afagava ao colo e depositou-o no chão. Beijou-o na testa e depois nos lábios. A seguir ergueu-se e começou a caminhar, os olhos marejados de lágrimas, o nariz coberto de ranho e a boca a pingar saliva, caminhou a arrastar as pernas sem se voltar uma única vez para trás, para o filho que abandonava no meio da estrada, para aquele pedaço dela que com o menino morria.

Nem uma hora passou quando chegou a vez de Khenarig cair. Não se pode dizer que fosse uma surpresa, considerando os múltiplos sinais de fraqueza e esgotamento que a menina vinha dando nos últimos dias, e em particular nas derradeiras vinte e quatro horas, mas nada disso impedia que houvesse um novo problema para resolver.

"Vamos, Khenarig!", ordenou-lhe a mãe. "Levanta-te, filha."

A menina estava prostrada e não respondeu aos incentivos. Krikor ajoelhou-se junto dela e deu-lhe uma estalada e outra ainda, mas Khenarig permaneceu inerte, os olhos semicerrados com um esgar de indiferença e a respiração leve.

"Já não reage."

Ao ver a filha naquele estado, Arshalous deitou as mãos à cabeça e esfregou o cabelo num gesto que parecia de louca mas que se resumia a absoluta impotência; apenas a impressão de que tudo aquilo era tão mau que só podia ser um pesadelo a impedia de verdadeiramente enlouquecer.

"O que vamos fazer, meu Deus?", desesperou. "Ela não pode ficar aqui!"

Consciente de que era ainda a única pessoa realmente válida do grupo, e apesar da crescente debilidade que lhe tomava conta do corpo, Krikor pôs os braços por baixo de Khenarig e, com o que lhe pareceu um esforço titânico, ergueu-a. A fome persistente reduzira a menina a um esqueleto ambulante, mas mesmo assim, e também porque ele se transformara igualmente numa carcaça de ossos, o peso dela parecia-lhe insuportável. Andou cem metros com grande esforço, mas acabou por cair exausto na estrada.

"Não posso mais", desabafou estendido no chão de barriga para cima, a respiração ofegante e os estreitos músculos que lhe restavam reduzidos a um peso morto. "Não consigo, não consigo..."

Arshalous e Marjan arrastaram-se até eles.

"Então?"

"Não consigo", devolveu Krikor entre golfadas de ar, a abanar a cabeça pousada no chão. "Já não tenho força e não consigo..."

A mãe da criança lançou um olhar aflito para a caravana que se começava a afastar.

"Os gendarmes vão-nos ver, meu Deus!", exclamou com alarme. "O que vamos fazer? Como vamos transportar a Khenarig?"

Estendido no chão, o rapaz ainda recuperava o fôlego.

"Não consigo."

Arshalous atirou uma nova mirada aos gendarmes. Eles ainda não haviam reparado neste novo atraso, talvez porque havia mais deportados retardatários e as Kinosian não se tinham ainda destacado, mas em breve os guardas apareceriam e, como ninguém estava já capaz de transportar Khenarig, eles matá-la-iam à coronhada. O que fazer?

No seu desespero, a mãe olhou em redor e reparou numa casa rústica à sombra de uma árvore. Viu uma mulher a pendurar roupa para secar e percebeu que era a última hipótese de que dispunha. Certificou-se de que os gendarmes não estavam a ver e cambaleou até lá.

"Tem pão?", perguntou à aldeã quando chegou ao pé dela. "Tem alguma coisa que se coma?"

A turca lançou-lhe um olhar desconfiado e ergueu os dedos, esfregando o polegar ao indicador.

"Como tenciona pagar?"

Arshalous abanou a cabeça.

"Os chetes roubaram-me tudo", disse. Voltou-se para trás e apontou para a estrada. "Mas tenho a minha filha, que é muito bonita. Pode ficar com ela."

A aldeã lançou o olhar na direcção do corpo estendido na estrada, junto ao qual estavam Krikor e Marjan.

"Ela está morta."

"Não, não está morta. Mas morrerá se ninguém tomar conta dela." Fez-lhe sinal com a mão, convidando-a a confirmar com os seus próprios olhos. "Venha ver."

Revelando uma agilidade que contrastava com os movimentos entorpecidos dos deportados, a aldeã turca aligeirou o passo e foi ter com Khenarig. Baixou-se sobre ela e estudou-lhe o rosto. Convencida, pegou na criança e levou-a nos braços até à sua cabana. Entregou pão e iogurte a Arshalous e apontou-lhe para a estrada.

"A tua filha é agora minha", disse. "Vai-te!"

A arménia não obedeceu de imediato. Aproximou-se de Khenarig, ajoelhou-se como se fosse rezar, fez-lhe o sinal da cruz e, com carinho, beijou-a suavemente na testa.

"Asvafz, atchigees azadey", sussurrou-lhe ao ouvido. "Deus, salva a minha menina."

Depois levantou-se e, caminhando num torpor, cambaleou até à estrada com a comida nos braços. Quis chorar, mas já não lhe restavam lágrimas nos olhos.

 

Como era habitual, os gendarmes vieram nessa noite após o jantar. Apareceram três numa algazarra de risadas e chistes, excitados pela perspectiva de mais umas horas de folia e embrutecidos pelo desejo. Traziam um candeeiro a petróleo a balouçar nas mãos, o que lhes permitia alumiar o caminho por entre os grupos de arménias estendidas no chão. Ao chegarem junto de Marjan, fizeram incidir a luz azulada do candeeiro no rosto dela para se certificarem de que se tratava mesmo da rapariga que procuravam.

"Hoje vais levar mais", exclamou um deles ao reconhecê-la, largando uma gargalhada boçal. "Já amansaste, hem?" Piscou o olho cúmplice aos parceiros. "Acho até que estás pronta para umas novidades no servicinho."

"Vais estrear-te com a boca", completou o outro, dando saltos de impaciência. "Ah, mal posso esperar! vou meter-to até bem lá ao fundinho da garganta!"

"Vê lá, Emre, não a sufoques", recomendou o primeiro. "Deixa um bocadinho para os outros, ouviste?"

Entre uma nova vaga de cachinadas e ignorando os dois acompanhantes da rapariga, a mãe e Krikor, os turcos pegaram nela pelos ombros e arrastaram-na na direcção da sua tenda. Consideravam as pessoas que integravam a caravana propriedade sua e serviam-se como entendiam. Quem os iria travar?

Foi por isso que se viram colhidos de surpresa quando, sem aviso, um vulto saltou da noite para as costas de um deles e o feriu no dorso. O gendarme urrou de dor e contorceu-se com violência, tentando a todo o custo libertar-se do fardo inesperado, mas não conseguiu.

"Tirem-me isto daqui!", gritou para os companheiros. "Ai, está a magoar-me!"

Passada a surpresa inicial, os outros dois homens largaram Marjan, pousaram o candeeiro no chão e foram acudir o camarada de armas, agarrando-se ao vulto que, à meia-luz, parecia golpear o dorso do gendarme com movimentos sucessivos, como se lhe espetasse repetidamente uma faca. Os quatro debateram-se por alguns segundos, um murro aqui e um pontapé ali, alguém gemeu e um turco gritou, "não é aqui, é ali". Pelos vistos alguém tinha batido na pessoa errada mas depressa corrigiu o alvo até que conseguiram arrancar o atacante das costas do companheiro e por fim o imobilizaram no solo.

Um dos gendarmes pegou no candeeiro a petróleo e aproximou-o do desconhecido, tentando identificá-lo. A luz bateu em cheio no rosto de Krikor.

"É a gaja que anda com a nossa miúda", constatou o turco que pegara na lanterna. Soltou uma gargalhada. "Deve andar contrariada por não a termos escolhido!"

"Pudera!", observou outro gendarme. "É feia que nem um boi! Olha para isto, até tem pêlos pretos na cara! Quem quer comer uma coisa destas? Agh, que horror! Só se lhe tapássemos as ruças!"

O companheiro que havia sido atacado gemeu de dor.

"Essa tipa ia-me matando!", protestou. Aproximou-se de Krikor e arrancou-lhe da mão um pau aguçado com a ponta ensanguentada. "Estão a ver isto? Espetou-me esta porcaria nas costas, a grande cabra!" Exibiu o pau. "Estão a ver?"

Os olhares dos outros dois convergiram para o pau.

"Ena! Estava mesmo furiosa por não ter sido escolhida, hem?"

Um deles inclinou-se sobre Krikor e colou-lhe a boca ao ouvido.

"Ó filha, se estavas com ciúmes era só dizer", segredou-lhe. "Temos lá muitos rapazes que, apesar da tua carantonha feia, são meninos para te tirar esses calores. Ora deixa cá ver!" com um movimento inesperado, afundou o braço entre as pernas de Krikor e apertou-lhe os órgãos genitais. Ficou um instante paralisado e, caindo em si, deu um salto e recuou. "É um gajo!"

Os outros riram-se.

"Sim, sim. com essa cara, até parece!"

"Vocês não estão a perceber", insistiu o primeiro, apontando para Krikor com veemência. "Isto é um gajo! Tem tomates e tudo! Está disfarçado de mulher, percebem? Mas é um homem!"

Dessa vez todos entenderam. Passada a surpresa, os três turcos agarraram Krikor pelo cabelo e puseram-no de pé. De seguida arrancaram-lhe as calças esfarrapadas e expuseram a sua nudez, confirmando assim que se tratava de facto de um homem.

"E esta?"

De imediato um dos gendarmes artilhou o gatilho da espingarda e colou a arma à testa do jovem arménio.

"Vamos despachá-lo!"

O turco ferido nas costas, no entanto, pousou a mão no cano da Mauser e baixou-a antes que disparasse.

"Tem calma, isso assim é fácil de mais", observou. "Não te esqueças de que este cabrão me espetou um pau aguçado nas costas! Um cão arménio não me faz uma coisa destas para depois ter uma morte doce."

"Mas o que lhe queres tu fazer?"

O ferido contemplou Krikor com um esgar de ódio, no que era retribuído pelo olhar intenso do inimigo subjugado.

"Sei lá! Cortá-lo às postas com ele consciente e a ver, por exemplo. Isso seria um tratamento adequado..."

"Estás louco, Recip? Se nos pomos com isso, nunca mais daqui saímos!" Lançou um olhar em redor, tentando localizar Marjan; a rapariga entretanto desaparecera e ainda havia que procurá-la. "Quero comer a gaja, homem! Temos de o aviar depressa para ir buscar a tipa e a levarmos ao castigo!"

"Mas matá-lo com um tiro é demasiado bom para ele!", protestou Recip, o turco ferido. "O cão magoou-me. Tem de sofrer!"

O companheiro olhou de novo em volta. O silêncio mais absoluto abatera-se sobre o campo, apenas interrompido pelo choro fraco de uma criança e pelo fragor gorgolejante da corrente de água que acelerava no rio mesmo ali ao pé.

"Tive uma ideia", exclamou. "Vamos asfixiá-lo!"

"Excelente!", concordou Recip. "Mas como? com as mãos?"

"Estás parvo? Isso dá uma trabalheira infernal e o gajo caga-se todo. Queres voltar para a tenda com merda a sujar-te a farda? Não, há um método mais fácil e mais limpo."

"Qual?", perguntou o turco ferido, desconfiado. "Olha que faço questão de que o tipo passe um mau bocado!"

O companheiro apontou na direcção do barulho da corrente.

"Atiramo-lo ao rio! Haverá melhor maneira de o despachar que um belo afogamento? Dizem que não tem graça nenhuma sentir a água a entrar nos pulmões..."

A ideia foi acolhida com agrado pelo turco que havia ficado ferido. Claro que ele preferia um tratamento mais lento e doloroso, mas, considerando as circunstâncias e a pressa dos camaradas, a solução parecia-lhe aceitável.

Sem perder tempo, até porque queriam mulher e não se esqueciam de que teriam ainda de procurar Marjan às escuras pelo acampamento, ataram as mãos de Krikor atrás das costas e empurraram-no até ao rio. Apesar das dores no dorso ferido, Recip foi recolher uns pedregulhos e meteu-os numa cesta que atou aos pés da vítima.

Das águas apenas se via uma mancha negra e uns reflexos fugidios à luz fria da Lua. Uma névoa de irrealidade embotava o raciocínio de Krikor na vertigem do momento da morte. Sentiu um empurrão pelas costas e desequilibrou-se para a frente, mergulhando no rio.

"Boa viagem, giavour!"

A primeira coisa que a vítima experimentou foi o manto gelado da água a envolver-lhe o corpo com violência inesperada. A segunda foi a cesta a arrastá-lo para o fundo.

A morte que aguardava Krikor era sobretudo silenciosa. Debaixo de água, o corpo dorido e entorpecido pelo frio, as mãos atadas atrás das costas e o peso nos pés a puxá-lo para o fundo, o rapaz deu consigo a pensar como era absurdo e abrupto aquele fim, como nada daquilo fazia sentido, como a viagem da sua vida acabava interrompida de forma tão estúpida e inglória. Fora para aquilo que tinha nascido e vivido? Para aquilo?

Suspendeu a respiração e deixou-se invadir por uma estranha serenidade, mas sabia que a sensação não duraria. Em breve precisaria de respirar e não conseguiria manter-se isolado do que o rodeava, uma concha fechada ao mundo. Quando o ar lhe faltasse nos pulmões teria de abrir a boca e o nariz e inspirar fundo, buscar oxigénio renovado, mas o que viria não seria ar. Seria água. E aí tudo mudaria. À efémera tranquilidade do instante suceder-se-ia a turbulência do momento seguinte, é certo que também efémero, porém mil vezes doloroso.

Ouviu chapinhar a água e estremeceu, surpreendido. Deu consigo com a cabeça fora de água. Não sabia como, mas o que o rodeava era ar. Respirou fundo, ávido de oxigénio, e recuperou o fôlego. Abriu os olhos e nada viu para além da treva; apenas escutava o som límpido da água em movimento e sentia o corpo balouçar ao ritmo da corrente, embora permanecesse atado a um ponto fixo, como se uma âncora o prendesse ao fundo do rio.

Apercebeu-se então do que tinha acontecido. A cesta repleta de pedregulhos plantara-o no leito, mas sucedia que naquele ponto o rio não era profundo e a corrente arrastava-o com força, puxando-o para cima na direcção contrária à da corda que tinha atada aos pés, o que lhe permitia esticar a cabeça para a superfície e respirar. Precisava de lutar, é certo, até porque as mãos se mantinham presas atrás das costas, mas conseguia respirar. Pelo menos enquanto a corrente o ajudasse e ele tivesse forças para se impelir para cima e manter-se à tona da água, não asfixiaria.

O esforço, porém, era enorme e a energia já lhe começava a faltar. Precisava de agir depressa, sob pena de se afogar devido à fadiga. Tentou libertar as mãos e não conseguiu.

"Pensa, Krikor", murmurou para si mesmo, a água glacial a esbofetear-lhe o rosto em ondas sucessivas. "Como é que saio daqui?"

Contorceu-se e, como por artes mágicas embora decerto devido à acção das correntes, as mãos soltaram-se e ficaram livres para o ajudar a manter-se à superfície. Aquele êxito inesperado encorajou-o. A força das águas amolecera as cordas e os seus braços delgados, emagrecidos pela dieta forçada, fizeram o resto. Faltavam só os pés.

Respirou fundo e mergulhou, encolhendo-se até as mãos chegarem à corda que lhe atava os pés à cesta dos pedregulhos. Não conseguiu à primeira, mas à segunda lá logrou desfazer o nó e, de repente, sem aviso, sentiu o corpo libertar-se e começar a ser arrastado pela corrente. A força do rio chicoteou-o com brutalidade de um lado para o outro, atirando-o em todas as direcções como se ele não passasse de um boneco, um mero joguete dos caprichos da corrente.

Tentou ver para onde o rio o arrastava, mas tudo permanecia escuro. A água jogava com ele, lançando-o ao sabor do acaso para onde entendia, e Krikor sempre às cegas, incapaz de prever se ia embater numa rocha ou ser puxado para uma falésia, se engolido por um remoinho ou sovado por uns rápidos. Ah, como era estúpido morrer assim! Conseguira libertar-se das cordas, mas agora era o rio que o encarcerava num abraço letal, brincando com a sua vida, dando-a num momento e retirando-a no seguinte, como se a corrente fosse Deus e ele não passasse de uma folha à Sua mercê.

Sentiu as costas embaterem numa superfície áspera. Rodopiou na água, completou uma cambalhota e, quando deu por si, tinha metade do corpo assente em erva, embora a água lhe embalasse ainda as pernas. Ouviu um coaxar ruidoso e deu um salto de susto. com espanto e alívio, e depois de perscrutar a noite opaca que o cegava, apercebeu-se de que uma rã o espreitava a um palmo do nariz. Havia desaguado na margem do rio.

 

Só quando o Sol despontou e o dia se acendeu começou a formar uma ideia do lugar para onde a corrente o havia atirado. Tinha a roupa húmida, tiritava de frio e espirrava sem parar, o nariz congestionado e os olhos inchados. O corpo doía-lhe dos pés à cabeça e as pernas fraquejavam, como se fossem de gelatina, mas o facto é que estava vivo.

Vivo.

Passeou os olhos pelo cenário em volta dele, absorvendo o espaço que o cercava. O rio corria tranquilo e ao lado estendia-se a estrada poeirenta por onde havia passado na véspera com Marjan, Arshalous e Khenarig. Vislumbrou à distância, junto à berma, o cadáver de uma criança emaciada, a boca entreaberta num esgar despojado, e perdidos pelo caminho avistavam-se vários trapos, os únicos sinais de que a estrada fora percorrida por uma caravana da morte.

O que deveria fazer? O seu primeiro instinto foi meter pela estrada e apressar o passo até encontrar o cortejo de Kayseri e juntar-se a Marjan. Alguém tinha de a proteger, a ela e à mãe. E não deveriam estar muito longe, a corrente não podia tê-lo arrastado muito mais que uns mil metros. Mas logo que se começou a mexer deteve-se. Na verdade, o que aconteceria quando chegasse à caravana? O que fariam os gendarmes que tinham tentado matá-lo quando o vissem de novo? A ideia travou-lhe o impulso. Juntar-se à coluna seria um suicídio; fugir era na verdade a única opção.

A constatação da óbvia impossibilidade de ir no encalço da caravana deixou-o aterrado. Quem protegeria Marjan e Arshalous? A pergunta martelou-o sem cessar, mas teve de se render à evidência. As Kinosian estavam para além do seu amparo, e em particular a rapariga que ele amava. Que protecção, na verdade, lhe dera ele nestes últimos dias, quando os turcos a vinham buscar? Nenhuma. Tentara ajudá-la, Deus era disso testemunha, mas feitas as contas o que resultara daí? Nada. O facto, a terrível e inescapável verdade, é que fora impotente para defender Marjan. Para esse fim, estar ou não estar na caravana conduzia literalmente ao mesmo resultado.

Teria pois de se centrar no prioritário. E o que se poderia considerar prioritário naquelas circunstâncias? Sobreviver, parecia-lhe evidente. Para tal, a primeira coisa a fazer era evitar as estradas. Ao longo da interminável viagem desde Kayseri haviam-se cruzado amiúde com postos de controlo turcos, que urgia agora evitar e contornar. Claro que tinha também de resolver um problema ainda mais urgente. A comida. E onde poderia encontrá-la por ali?

Varreu de novo a paisagem que o rodeava, agora com os olhos de quem precisava de a conquistar. Onde se escondiam as ameaças? Onde se encontravam as oportunidades? De um lado estendia-se um prado, do outro nascia um pinhal que coloria as encostas das montanhas. Após reflexão, pareceu-lhe evidente que, se queria esquivar-se das estradas e manter-se invisível, e ao mesmo tempo encontrar alguma coisa para comer, o melhor seria cortar caminho entre os pinheiros.

Debruçou-se sobre o rio e preparou-se para beber, mas travou o movimento ao aperceber-se nesse instante de que a corrente arrastava vários cadáveres. Viu-lhes os braços e as pernas e os cabelos e constatou que se tratava de raparigas. Sabia que metade tinham sido atiradas ao rio pelos gendarmes, mas que a outra metade eram moças que se lançavam à água de livre vontade, para escapar às sevícias dos seus carcereiros. Perguntou a si mesmo se Marjan não deveria fazer o mesmo, pensou que talvez já o tivesse até feito e que um daqueles corpos poderia bem ser o dela, mas sabia que não se podia torturar mais e expulsou o pensamento da cabeça. A sua prioridade imediata era sobreviver.

Alheio aos corpos que iam aparecendo, inclinou-se sobre o rio e bebeu enfim até se sentir totalmente saciado. A seguir recolheu da margem uns seixos que lhe pareceram úteis como ferramentas e encaminhou-se para o pinhal. A floresta enchia-se de uma musicalidade retemperadora, graças sobretudo ao zinzilular melodioso das andorinhas que se empoleiravam nos galhos mais altos. A melodia encheu-o de uma serena determinação. Se, com tudo o que se passava, os pássaros continuavam a chilrear, algo no mundo, nem que fosse apenas a natureza, se mantinha sã e imutável.

Quando penetrou o bastante na floresta para deixar de ver a estrada, e sobretudo suficientemente longe para não poder ser avistado por quem nela passasse, pôs-se a apanhar as pinhas espalhadas pelo chão. Depois sentou-se diante de uma grande rocha pregada ao chão e quebrou-as com os seixos.

Passou duas horas à volta dos frutos dos pinheiros, labor que se revelou compensador porque conseguiu obter duas mãos-cheias de pinhões. Começou então a mastigá-los um a um, preocupado com assegurar que a refeição iria conservar-lhe as forças o mais tempo possível.

Em circunstâncias normais, num passado não muito remoto, um repasto daqueles deixá-lo-ia profundamente insatisfeito. O seu metabolismo, contudo, tornara-se muito mais lento devido às provações por que passara nos últimos meses, de modo que já se contentava com a frugalidade a que as circunstâncias o obrigavam. Bastou-lhe mastigar uns pinhões minúsculos para começar a sentir uma sensação de enfartamento, pelo que guardou o resto no bolso do farrapo que lhe servia de camisa e levantou-se.

Seguiu caminho pelo pinhal, embrenhando-se em direcção às montanhas. Onde estaria ele? Presumiu que a serra que via à sua frente fosse a cordilheira das Amanos, uma vez que não se encontrava já muito longe de Aleppo. Ou então estaria nas Taurus, um pouco mais a noroeste. Fosse como fosse, teria de cortar por elas para se aproximar do seu destino, a cidade cujo nome ia murmurando repetidamente, num esforço para interiorizar a ideia de que não podia falhar.

" Constantinopla..."

Uma linha férrea.

Caminhava havia quinze horas quando, no sopé de uma montanha, o seu caminho foi atravessado por duas barras paralelas de ferro. Imobilizou-se junto a uma árvore e, coçando a barba rala que lhe crescia aos caracóis, ficou a contemplar os carris e a avaliar a situação. Deveria tirar partido da linha de caminhos-de-ferro ou ignorar a novidade e seguir em frente?

A indecisão levou apenas alguns segundos. Krikor sentia-se exausto com a solidão do pinhal e ansiava já por contacto humano. Além disso, mais cedo ou mais tarde teria de sair da floresta e enfrentar o mundo dos homens. Porque não arriscar ali? Pôs-se a percorrer a linha em direcção a noroeste, até porque o caminho ali havia sido aplanado e a progressão era mais rápida. Marchou assim durante duas horas e só se deteve quando o véu negro da noite se abateu sobre a floresta e, com a ajuda das copas das árvores que bloqueavam a luz do luar, deixou o percurso completamente invisível.

Dormiu ao lado dos carris, enroscado sobre ele mesmo a tiritar de frio depois de um jantar de pinhões. Aos primeiros raios da aurora, logo que a luz lhe permitiu ver, pôs-se de novo a caminho. Andou assim mais três horas, parando apenas duas vezes, uma para apanhar mais pinhas e extrair delas outra mão-cheia de pinhões, a segunda junto a uma fonte que caía das montanhas com um farfalhar alegre e fresco, e na qual saciou a sede.

Um tilintar súbito dos carris paralisou-o.

"O que é isto?"

Fixou os olhos nas duas fileiras paralelas de ferro e percebeu de imediato que um comboio se aproximava. Subitamente excitado, o coração aos pulos de expectativa, esperança e medo, olhou para uma e outra extremidade da linha e apercebeu-se de uma coluna de fumo preto a movimentar-se sobre as copas, a sudeste. Vinha aí uma composição, percebeu, e seguia na direcção para a qual ele caminhava, sudeste-noroeste. Chegara o momento de agir. Afastou-se três passos e, prudente, escondeu-se atrás de um pinheiro.

Um rumor ritmado começou a crescer ao longe até se transformar num fragor infernal quando a composição negra de ferro lhe apareceu à frente, a chaminé a expelir densas baforadas escuras, os carris a cantarem taque-taque, taque-taque, uma máquina em fúria que rugia pela floresta e espantava as andorinhas.

O viajante em fuga sabia que tinha pouco tempo para se decidir e devorou com os olhos o comboio diante dele, procurando qualquer indício que o ajudasse. A locomotiva puxava uma sequência de carruagens de caixa aberta, todas elas repletas de caixotes. Era sem dúvida um comboio de mercadorias.

Perfeito.

Sem perder tempo, até porque eram apenas quatro vagões e a janela de oportunidade se fechava ao ritmo veloz da passagem do comboio, Krikor desatou a correr ao longo da linha e, com um movimento audaz, agarrou-se a um manípulo metálico e pendurou-se no último vagão.

Quando tinha visto a composição à distância, a velocidade a que ela vinha parecera-lhe acessível, mas agora que ali estava, pendurado na parte exterior do vagão em movimento deixou de ter a certeza de que o plano fosse sensato. Daquela perspectiva a velocidade parecia-lhe estonteante, mas era tarde para se arrepender. Inclinou-se e, ganhando balanço e recorrendo às suas derradeiras energias, conseguiu enfim içar-se para o interior do comboio.

"Uf!"

Estava lá dentro.

Parado.

Ao fim de apenas uma hora de viagem, o comboio imobilizara-se junto a um edifício de dois pisos com fachada de madeira. As vozes no exterior forçaram Krikor a proceder com a maior cautela, levando-o a esconder-se entre os caixotes do vagão; não se atrevia sequer a espreitar para fora.

Em vez disso apurou o ouvido, de modo a tentar perceber o que diziam as vozes. A língua turca não era a sua especialidade, mas desde que viera passar férias a Kayseri que a desenvolvera imenso. Esforçou-se por isso por destrinçar as palavras que as vozes articulavam.

"Togher eger em", cantarolou despreocupadamente a pessoa mais próxima, "miulkerus oo aikis."

Krikor arregalou os olhos ao entender as palavras. "Deixei os meus campos e os meus pomares e caminhei", entoara a voz. Seria possível? Aquilo era... era...

"Arménio!?"

Vencendo o medo, esticou devagar a cabeça, embora sempre com mil cuidados para não se tornar notado, e espreitou pela borda da placa que protegia o vagão. Viu homens com fez vermelhos a descarregarem os caixotes do vagão da frente; era um desses homens que cantava na língua da sua gente.

Encorajado e ainda surpreendido, percorreu o espaço com o olhar e percebeu que a composição se imobilizara numa pequena estação. Notou que havia um soldado turco à distância e viu um europeu de barba loira e fato claro à porta do edifício, a contemplar o trabalho dos arménios. Voltou a observar o descarregamento dos caixotes, que eram empilhados no cais ao lado do comboio, e constatou que tinham impressas na madeira as palavras Holzmann

- Frankfurt.

Não teria melhor oportunidade do que aquela, concluiu. Encostou-se do outro lado do vagão, de onde não o podiam ver do edifício da estação, e com movimentos furtivos deslizou para terra firme. A floresta colava-se ainda à linha férrea, até porque se tratava de uma pequena estação, quase um mero apeadeiro, pelo que em três saltos encontrou refúgio por detrás das árvores e ali se deixou estar.

Uma vez terminado o descarregamento dos caixotes, o comboio retomou viagem e a azáfama na estação deu lugar a uma placidez quase bucólica. Os pássaros chilreavam descontraidamente e as copas arfavam ao sabor da brisa. Espreitando por entre as árvores, Krikor foi estudando as pessoas e as rotinas naquele espaço entretanto esvaziado. Viu apenas dois soldados turcos, ambos de sentinela num ponto afastado. Todas as outras pessoas que por ali circulavam tinham aspecto europeu ou arménio, o que, embora não deixasse de ser surpreendente, de certo modo o tranquilizava.

Ponderou o caminho a tomar. Dificilmente encontraria melhor ocasião para estabelecer contacto e encontrar uma saída para a sua situação. Os europeus eram provavelmente alemães, como indicavam os caracteres góticos nos caixotes a dizer Frankfurt, e parecia-lhe evidente que estavam a conceder algum tipo de protecção aos arménios que ali trabalhavam.

Ao lado do edifício principal erguia-se um longo barracão. Depois de duas horas a observar, percebeu que esta construção era frequentada sobretudo pelos homens de fez vermelho, pelo que percebeu que era por ali que teria de começar. Internou-se por isso na floresta e caminhou de modo a contornar a estação e chegar-se o mais perto possível do barracão. Uma vez ali, sentou-se aos pés de uma árvore e aguardou.

Até que apareceu um vulto.

 

"Psst!"

O homem de fez vermelho estacou, hesitante, e voltou-se numa e noutra direcção, tentando determinar a origem do chamamento que o interpelara.

"Psst!", soprou de novo Krikor, afastando-se a medo da árvore atrás da qual se protegera para se dar finalmente a ver. "Aqui!"

Apercebendo-se do movimento, o desconhecido localizou-o. Atirou-lhe um olhar interrogativo, receoso, talvez por pensar que, se o homem diante dele se rodeava de tantas cautelas, decerto seria porque havia razões para isso.

"Quem é o senhor?", perguntou em turco, recuando um passo numa postura defensiva. "Que deseja?"

Aquele passo atrás do seu interlocutor perturbou Krikor. Será que se enganara? Deveria ter permanecido escondido mais tempo, a estudar o comportamento das pessoas da estação? E se os arménios que ali viviam se revelassem uns traidores e o entregassem aos Turcos? Todavia, era tarde de mais para arrependimentos. Tinha saído do esconderijo e a sua presença tornara-se conhecida, situação que não podia de modo algum desfazer. Assim sendo, teria de correr o risco e sujeitar-se ao que o destino lhe reservara.

"O senhor é arménio?"

O homem do fez vermelho, que dera outro passo atrás, deteve-se e, inclinando a cabeça, encarou-o com outros olhos.

"O senhor é um fugitivo?"

Tantas perguntas e nenhumas respostas, pensou Krikor. Nenhum dos dois parecia interessado em abrir o jogo, tão grandes eram as preocupações defensivas de ambos naqueles tempos difíceis, mas alguém teria de ceder, não era possível alimentar um diálogo apenas com interrogações. Se fora ele quem assumira primeiro o risco, teria de ser ele a levar as coisas até ao fim.

"Sim, escapei de uma caravana de deportados", admitiu, rezando intimamente para que tudo corresse bem. "Os Turcos atiraram-me ao rio para me matarem, mas salvei-me." O coração rufava-lhe no peito, receando o extremo perigo a que se expunha com estas revelações diante de um homem que não conhecia. "O senhor é arménio?"

Passado o instante de surpresa, o seu interlocutor abriu o rosto numa expressão amigável e deu dois passos em frente, os braços abertos num gesto de acolhimento.

"Ah, desgraçado!", exclamou. "Deve estar esfomeado, coitado!" Olhou para trás, de modo a certificar-se de que ninguém os tinha visto. "Venha aqui! vou dar-lhe de comer!"

Estas palavras arrancaram de Krikor um suspiro de alívio. O fugitivo aproximou-se do homem do fez vermelho e apertou-lhe efusivamente as mãos.

"Obrigado! Obrigado!", disse, fazendo uma vénia a cada palavra. "Nem sei como agradecer-lhe!"

O interior do barracão estava deserto. O homem do fez vermelho mandou-o sentar-se numa cadeira e foi buscar pão, queijo e uma garrafa de vinho tinto. Pôs tudo numa travessa e depositou-a sobre a mesa.

"Chamo-me Nishan", identificou-se o anfitrião ao instalar-se numa cadeira diante do seu convidado. "Sou prospector da Holzmann, a companhia alemã que está encarregada de construir o troço da Linha de Caminhos-de-Ferro da Anatólia através das montanhas Amanos."

"Estamos nas Amanos?"

"Sim, não sabia? Esta é a estação de Baghche, responsável pela décima segunda secção do projecto de construção em Ayran, na segunda divisão de Adana."

A divisão administrativa do projecto de construção da via férrea até Bagdade nada dizia a Krikor. A sua dúvida

era outra.

"O senhor tem a noção do que estão a fazer aos Arménios neste país?", perguntou em tom retórico. "Como é possível que os Turcos o deixem trabalhar aqui?"

Nishan arqueou as sobrancelhas.

"Imperativos de guerra", retorquiu. "Os Alemães e os Turcos precisam de movimentar depressa tropas entre o Oeste e o Leste do Império Otomano. O problema é que, quando as hostilidades começaram na Europa, as obras da Linha de Caminhos-de-Ferro da Anatólia só haviam chegado a Bozanti. As cordilheiras das Taurus e das Amanos impedem a ligação entre Adana e Aleppo, e eles têm necessidade de enviar rapidamente armas, munições e soldados para acudir às frentes na Palestina e na Mesopotâmia, ambas ameaçadas pelos Ingleses, e de incitar os muçulmanos da índia a revoltar-se. Mas estas montanhas atravessaram-se no caminho. Para as passar, os Alemães projectaram túneis e precisam de mão-de-obra, parte da qual tem de ser qualificada. Ora os Turcos, os Curdos e os Árabes não possuem qualificações nenhumas, como bem sabe. Por isso o general von Sanders conseguiu autorização de Constantinopla para empregar nestes trabalhos quem quer que lhe apareça."

Krikor sorriu pela primeira vez em muito tempo ao perceber o fim a que esta explicação conduzia.

"Ou seja, os Arménios!"

O seu interlocutor juntou-se-lhe no sorriso.

"Nem mais!", exclamou. "Os engenheiros alemães puseram-se a arrebanhar deportados arménios e meteram-nos nos trabalhos de construção de túneis. Procuram sobretudo artesãos, de que estamos bem guarnecidos, mas qualquer outra mão-de-obra é bem-vinda. Incluindo crianças. Apenas cinco por cento dos nossos trabalhadores são europeus, quase todos engenheiros. Os restantes são sobretudo arménios: carpinteiros, ferreiros, alfaiates e toda a espécie de artesãos."

"Nesta estação também?"

"Claro", assentiu Nisham. "Baghche é a sede administrativa dos trabalhos neste sector. Somos, ao todo, sete arménios e temos um capataz búlgaro. O chefe é Herr Zeitz, o engenheiro que superintende estas obras. bom homem."

"Sete arménios não parece lá muita gente..."

"Isso é aqui na estação. Ao longo das obras na cordilheira das Amanos temos uns dez mil trabalhadores arménios. Todos eles, sem excepção, são pessoas que conseguiram escapar das marchas da morte."

"Como eu."

"E eu também! Vim deportado de Ayash e, depois de uma viagem em que os Turcos e os Curdos mataram dois terços das pessoas da minha caravana, consegui fugir em Konya, onde os muçulmanos sufis são mais pacíficos e me facilitaram a vida. Tentei escapar-me para Aleppo, porque me disseram que o governador turco da cidade se opunha às deportações, mas acabei por encontrar refúgio aqui."

Os olhos de Krikor brilharam de esperança.

"Acha que... que também me poderei refugiar neste sítio?"

com gestos deliberadamente lentos, Nisham cruzou os braços e fitou-o com um semblante assustadoramente grave.

"Terei de falar com Herr Zeitz", disse de forma pausada. "A decisão pertence-lhe a ele."

O fugitivo colou as palmas das mãos ao rosto, afogado de ansiedade.

"Acha que ele me aceitará?"

Vendo a aflição estampada na cara do seu interlocutor, Nisham curvou enfim os lábios e assumiu uma expressão benigna.

"Não vejo porque não."

O homem de fato claro e barba loira estava sentado de perna cruzada no terraço da estação de Baghche, embrenhado na leitura de um livro. Ao lado tinha uma mesinha com um bule a fumegar e uma chávena de chá quente. Sempre no encalço de Nisham, Krikor subiu ao terraço e chegou ao pé dele, detendo a atenção no título da obra. Der kleine Herr Friedemann, de Thomas Mann.

Sentindo a presença intrusiva dos recém-chegados, o superintendente local da Holzmann ergueu o olhar do livro para Nisham e depois para o desconhecido de aspecto miserável que o seu adjunto lhe trouxera.

"Herr Zeitz, trago-lhe aqui um arménio que acabou de escapar de uma caravana", anunciou Nisham em francês com uma franqueza que espantou o seu companheiro. "Acha que se poderá arranjar alguma coisa para ele fazer?"

Os olhos azuis do engenheiro Zeitz fixaram-se inquisitivamente em Krikor.

"C'est qui?"', perguntou. "Quem é ele?"

Antes que Nisham respondesse, o recém-chegado deu um passo em frente e bateu os calcanhares, como vira os militares fazerem na Alemanha.

"Guten Tag, Herr Zeitz", cumprimentou em alemão, fazendo uma curta vénia com a cabeça. "Ich heisse Krikor. Wie geht es Ihnen?"

Ao ouvir aquele arménio maltrapilho falar a sua língua com um sotaque aceitável, o engenheiro Zeitz abriu e fechou a boca, como um peixe, embasbacado. Como era possível um homem de aspecto tão lastimoso falar com tanta fineza e educação?

"Ach, so!", acabou por exclamar, recuperando da surpresa. "Sprechen Sie Deutsch?"

"Jawohl, Herr Zeitz", retorquiu Krikor, confirmando que falava de facto alemão. "Aprendi na Universidade de Bona, onde estive no ano passado a estudar Engenharia."

O seu interlocutor ergueu-se de pronto e deu-lhe um aperto de mão entusiástico.

"Estudou na Alemanha? E Engenharia, ainda por cima?" Fez um gesto arrebatado. "Ausgezeichnet!"

"Não me diga que Bona foi também a sua universidade..."

Herr Zeitz corou.

"Ah, não!", disse. "Eu estudei em Linz." Afinou a voz, como se se preparasse para fazer uma confissão. "Sabe, na verdade não sou alemão." Arqueou as sobrancelhas. "Nasci na Áustria."

A informação levou Krikor a cruzar um olhar levemente desassossegado com Nisham. Considerando as circunstâncias, ser austríaco era bom ou mau? A expressão despreocupada do prospector arménio tranquilizou-o, apesar de Nisham provavelmente nada ter entendido daquela troca de palavras em alemão.

"Passei há meses por Viena", disse o recém-chegado, esforçando-se por mostrar familiaridade com a Áustria. "Belíssima cidade! Fui lá apanhar o comboio para Constantinopla, mas, confesso-lhe, tive vontade de lá ficar..."

"Viena é bonita", acedeu Herr Zeitz com um esgar vagamente contrariado, como se pensasse o contrário do que acabara de dizer. "Mas havia de ver Linz! A minha terra é que é um encanto!"

"Estou certo que sim!"

Trocaram mais algumas amabilidades em alemão, com considerações sobre a Áustria e em particular as belezas do Tirol. Depois o engenheiro austríaco fez-lhe algumas perguntas específicas sobre os seus estudos em Bona e as competências técnicas que adquirira e quis conhecer as circunstâncias que o haviam ali levado. Krikor respondeu a tudo, embora evitando revelar o seu apelido Sarkisian e a identidade britânica; sabia que o pai era um adversário do Deutsche Bank na luta pela concessão petrolífera da Mesopotâmia, apesar da recente aliança entre as duas partes na Turkish Petroleum Company, e achou prudente omitir esse pormenor. Além do mais, a Grã-Bretanha era inimiga do Império Austro-Húngaro, o que formalmente fazia dele inimigo de Herr Zeitz. Não valia por isso a pena correr riscos desnecessários.

"Grande aventura, a sua!", exclamou o anfitrião depois de escutar o relato devidamente expurgado dos pormenores inconvenientes para as circunstâncias. "Infelizmente parece-me que essa história se tornou comum por estes dias, hem? Os nossos aliados turcos estão a fazer coisas inaceitáveis ao vosso povo..."

"Ainda bem que diz isso. Por vezes receamos que o mundo ignore o que se está a passar."

"Ignorar, não ignora. Parece que têm saído muitas notícias na América e nos países ocidentais. Mas talvez nós, os Austríacos, e ainda os Alemães, estejamos a fingir que nada se passa. Sabe como é, o Império Otomano é nosso aliado e isso torna tudo mais delicado." Respirou fundo, dando sinal de que já dissera o suficiente sobre o assunto e não podia ir mais longe. "Enfim, é a porca da política! Mas, diga-me, meu caro Herr Krikor: em que posso ajudá-lo?"

O recém-chegado desviou os olhos para os carris desertos diante da estação, sonhando com os horizontes que eles cruzavam.

"Sabe, Herr Zeitz, o que eu gostaria mesmo era de saber se tem maneira de me pôr em Constantinopla..."

O pedido fez o austríaco arregalar os olhos.

"Em Constantinopla?" Soltou uma gargalhada. "Pensa que sou o Kaiser ou quê?" Abanou a cabeça. "Receio bem que os meus poderes se confinem a este recanto perdido das montanhas Amanos." Indicou com um gesto o espaço em torno da estação ferroviária. "Tenho autoridade aqui em Baghche, claro, mas não muito além."

"É melhor que nada", sorriu Krikor, sem se deixar desencorajar. "Nesse caso, acha que me pode arranjar trabalho?"

"A um arménio que fala alemão e que tem um curso de Engenharia tirado na Alemanha?", perguntou o austríaco num registo irónico. "Até lhe pago salário e tudo!"

"Está a falar a sério?"

"Vinte piastras por dia, a que deduzimos o custo da alimentação. Que lhe parece?"

Quase com medo de que Herr Zeitz retirasse a oferta, o recém-chegado estendeu de imediato o braço e apertou vigorosamente a mão do seu novo chefe.

"Negócio fechado."

 

A estação de Baghche escondia-se num vale verdejante das Amanos, rodeada pela cordilheira e isolada da povoação que lhe dava o nome. Para chegar a Baghche tinha de se caminhar durante meia hora, o que garantia um isolamento muito conveniente aos arménios que trabalhavam na sede administrativa local da Holzmann.

"Quando mais longe da vista dos Turcos", observou Nisham, "melhor para todos!"

Devido aos seus conhecimentos de alemão e de engenharia, Krikor foi nomeado técnico de ligação entre os engenheiros europeus e os trabalhadores arménios e instalado num quarto do primeiro andar do principal edifício da estação, estatuto de que apenas outro arménio, Nisham justamente, gozava.

Não que o recém-chegado planeasse permanecer ali durante muito tempo. Nas primeiras semanas a sua prioridade foi encontrar maneira de contactar o pai para lhe dar a conhecer o seu paradeiro. Sabia que ele era um homem influente em Constantinopla, naturalmente por via da Turkish Petroleum Company e da sua amizade com o ministro Salim Bey, pelo que não tinha dúvidas de que arranjaria uma forma de o tirar dali.

Mas sair daquele inferno era apenas a primeira etapa. O mais importante, e decerto mais difícil, seria encontrar Marjan. O melhor era abalar dali o mais depressa possível, porque não sabia quanto tempo ela e a mãe conseguiriam sobreviver à marcha e aos gendarmes; além disso, havia que resgatar a irmã que fora vendida à aldeã turca. O tempo urgia.

Depois de muito reflectir e de ponderar as alternativas, concluiu que os correios seriam a via mais adequada para chegar ao pai. Num final de tarde, quando o Sol avermelhava já na sua corrida inexorável para o horizonte, pegou numa resma de papel de correspondência e recolheu-se ao terraço para redigir a carta. Acontece que Nisham passava por ali naquela altura e, ao dar com ele a garatujar a missiva com tanto afinco, adivinhou-lhe os pensamentos.

"Olha lá, o que andas tu a fazer?"

"Ora, não é evidente?", retorquiu Krikor sem levantar a cabeça. "Estou a escrever uma carta."

O colega arregalou os olhos, alarmado.

"E como planeias remetê-la?"

"Pelos correios, claro. Porquê?"

"Estás doido?" Apontou-lhe o dedo com a firmeza de um aviso. "Nem penses em usar os correios, ouviste?"

Quando ouviu a advertência, Krikor suspendeu no ar a pena com a ponta molhada de tinta e ergueu o rosto.

"Há algum problema?"

"Seria a melhor maneira de os Turcos te deitarem a unha." Fez um gesto a indicar o espaço que os cercava. "E atrás de ti íamos nós todos. Não pode ser!"

"Que queres dizer com isso?"

"Os tipos controlam toda a correspondência, Krikor. Se meteres nos correios uma carta dirigida a quem quer que seja, podes ter a certeza de que será interceptada e lida. Quando virem que foi escrita por um arménio, e ainda por cima a indicar o teu paradeiro e tudo, estás tramado. Tu e nós todos!"

"Então não posso usar os correios?"

"Não, não podes. Aliás, nem os correios, nem emissários, nem coisa nenhuma! Tens de te remeter ao silêncio total. É absolutamente imperativo que os Turcos não dêem por nós, que nos esqueçam, de preferência. Se mandares uma carta para o exterior, mesmo pela mão de uma pessoa de confiança, corres o risco de ela ser interceptada. Se isso acontecer, não serás apenas tu quem ficará em causa. Serão os vinte mil arménios que aqui vivem e trabalham, percebes? Não tens o direito de nos pôr a todos em maior risco do que já estamos. Por isso quero-te quieto e calado."

A mensagem não podia ser mais clara. Tomando enfim plena consciência dos riscos que corria e em que deixava também os seus conterrâneos, Krikor arrancou a folha da resma e, a alma pesada e a esperança de um desenlace rápido reduzida a cinzas, amarfanhou-a até a transformar numa insignificante bola de papel.

Foi nessa altura que se apercebeu de que, embora se tratasse aparentemente de um mero apeadeiro, Baghche seria para ele uma estação de longa permanência. E, pior do que tudo, muito pior, para Marjan tratava-se do fim da linha.

Os meses seguintes foram passados nas obras da Linha de Caminhos-de-Ferro da Anatólia. Obcecado com tentar não pensar em Marjan e esquecer a sua absoluta e vergonhosa incapacidade de a proteger, dedicou ao trabalho todo o tempo em que estava acordado. Enquanto estivesse absorto nas suas tarefas, percebeu, a dor permaneceria em segundo plano.

O pior acontecia quando se deitava ou acordava, alturas em que o seu último e primeiro pensamentos iam para ela, invadindo-o de uma tristeza profunda e lassa. Os próprios sonhos eram povoados por imagens de violações de Marjan, sempre com ele no papel do espectador impotente; ela a gritar, ele amordaçado, ela a sofrer, ele paralisado. Quando esses sonhos se tornavam insuportáveis, Krikor despertava em sobressalto, ofegante e transpirado, a seguir aliviado por descobrir que tudo não passara de um pesadelo, depressa abatido por saber que nada daquilo era na verdade uma fantasia.

O trabalho libertava-o, como um anestésico que lhe entorpecia os sentidos e lhe embotava as emoções, pelo que se dedicava às suas funções com toda a energia. Esforçando-se por manter a mente ocupada, saía com frequência para inspeccionar os túneis que estavam a ser abertos nas montanhas. Aproveitava sempre a ocasião para visitar as tendas onde os trabalhadores arménios haviam sido alojados; eram locais pobres e deprimentes, com mantas espalhadas pelo chão e bebés esqueléticos e chorosos confinados a uma cerca, abandonados durante horas pelas mães que se viam forçadas a ir trabalhar para as obras.

Os túneis formigavam de arménios. As crianças até doze anos recebiam cinco piastras por dia, as mulheres dez e os homens quinze, enquanto os artesãos podiam chegar às trinta. Os pagamentos eram miseráveis, mas ninguém parecia importar-se. Realmente importante era encontrarem-se todos ao abrigo dos Turcos.

De resto, os engenheiros europeus protegiam-nos com tenacidade. Alemães, austro-húngaros ou suíços faziam os possíveis por manter os Turcos afastados dos arménios. Para provocar os Turcos baptizavam os seus cães com nomes muçulmanos, como Mehmet, Abdullah, Ahmed e outros chegavam mesmo a invocar o nome do Profeta em termos insultuosos.

"Os tipos ficam furiosos quando nos ouvem chamar os cães", riu-se um engenheiro alemão quando Krikor fez uma observação sobre o assunto. "Nós adoramos os cães e eles detestam-nos. Vieram até pedir-me que pelo menos não baptizássemos nenhum com o nome de Maomé. Pois sabe o que fizemos? Ora veja!" Emparedou a boca com as mãos, como se tivesse um altifalante, e gritou: "Maomé! Maomé! Anda cá!"

Ouviram-se de imediato uns latidos e um pastor alemão apareceu aos saltos, a cauda a abanar com entusiasmo, até o animal se imobilizar diante do dono, a arfar e de língua de fora.

As tarefas de Krikor envolviam o contacto com os engenheiros que faziam a manutenção de uma linha de bitola estreita entre a estação de Mamure e Islahiye, usada para transportar tropas e munições pelas montanhas Amanos. A maior parte dessas forças eram alemãs e austro-húngaras, enviadas para reforçar as frentes da Palestina e da Mesopotâmia, de modo que Krikor se via frequentemente envolvido em contactos com oficiais desses exércitos. Os austro-húngaros pareciam-lhe afáveis e compassivos, sempre com um doce, ou no mínimo uma palavra delicada, para as crianças arménias, mas os militares alemães, e ao contrário dos engenheiros da mesma nacionalidade, deixaram-lhe a pior impressão possível.

"Estes arménios têm de ser tratados com a maior dureza", era um comentário frequente entre os oficiais alemães. "São traidores ao seu país e querem apunhalar os Turcos pelas costas. Bem fazem os Turcos em esmagar esses vermes!"

Estes comentários eram proferidos diante de Krikor na ignorância de que ele era de origem arménia. Herr Zeitz decidira manter confidencial a sua identidade e Krikor já percebera porquê. Como aliados leais, os militares alemães só viam virtudes nos Turcos e defeitos em qualquer inimigo, a começar pelos Arménios. As observações revelaram-se de tal modo insensíveis que certa vez, após um oficial ter gracejado quando passaram acidentalmente por uma estrada pejada de cadáveres de arménios, Krikor não se conteve.

"Mesmo que haja traidores entre os Arménios, que povo no mundo mata mulheres e crianças por causa de um punhado de culpados?", explodiu. "Acha normal isto que se está a passar?"

O oficial levantou as sobrancelhas, apanhado de surpresa pelo ímpeto daquela reacção intempestiva.

"Não sabia que era arménio..."

"E não sou", retorquiu Krikor sem faltar à verdade. De facto, a sua verdadeira nacionalidade era britânica, pormenor que teve naturalmente o cuidado de omitir. "Mas também não sou cego nem ando iludido. Pergunto-me que justificação encontra o senhor coronel para que se matem crianças e mulheres à fome ou à paulada e à machadada?"

O oficial desviou o olhar para o troço já longínquo da estrada onde ambos haviam visto os cadáveres.

"É verdade que os Turcos estarão a exagerar um bocadinho", concedeu. "Mas temos de aceitar que, em tempos tão caóticos e exigentes como estes, é difícil separar o trigo do joio e acabam por levar todos pela medida grande."

Quando o oficial olhou de novo para o seu interlocutor, descobriu que ele já não se encontrava a seu lado. Krikor afastara-se e, de costas, fingia que inspeccionava a linha; não se sentia com disposição para escutar as justificações do alemão e temia pela sua própria reacção. Mais valia ser mal-educado do que acabar ao estalo com o coronel.

Naquele dia, ao chegar à estação de Baghche depois de mais uma jornada nas montanhas, Krikor deu com Nisham mergulhado num estado de grande nervosismo.

"Já ouviste as novidades?", atirou-lhe o amigo logo que o viu. "Sabes o que aconteceu?"

"Não. O que foi?"

"O ministro da Guerra, o Enver Paxá, passou aqui pelas Amanos a caminho de uma inspecção às frentes da Palestina e da Mesopotâmia. Pediu para ver a construção dos túneis. Quando lá chegou, ficou tão surpreendido por ver tantos arménios a trabalhar nas obras que fez um comentário em voz alta. «Não se dizia que já não havia Arménios na província? Olhem para esta vergonha! Olhem para a quantidade de Arménios que para aqui se vieram esconder!»"

Krikor carregou as sobrancelhas, numa expressão incrédula.

"Ele disse isso?"

"Disse!"

"Mas ouviste-o?"

"Eu? Eu não, claro. Mas ouviu-o Herr Zeitz, que ia na comitiva e que me veio contar."

Calaram-se ambos, um abatido com o que acabara de relatar, o outro ainda a digerir a notícia. Havia quase um ano que Krikor se instalara em Baghche e a sensação de segurança que ali sentia era tal que lhe custava a crer que ela pudesse de algum modo ser posta em causa. Não estava aquele espaço entregue à Holzmann? Não se viam ali quase só pessoas com trajes europeus? Não se haviam submetido os Turcos aos imperativos da construção dos túneis?

"bom... paciência", acabou por dizer. "Pelos vistos o Enver Paxá não sabia que havia muitos arménios a trabalhar aqui nos túneis das Amanos. Agora já sabe." Encolheu os ombros, quase com indiferença. "E depois? Qual é o mal?"

"Qual é o mal?", quase se indignou Nisham, levantando a voz. "Estás cego ou finges-te?! O homem não se vai deixar ficar, Krikor. Agora que percebeu que milhares de arménios sobreviveram às marchas da morte, vai fazer alguma coisa! O quê ainda não sei, mas não é difícil imaginar, pois não?" Deitou as mãos à cabeça, desvairado e desorientado. "Oh, é o fim! O fim!"

com o prato da sopa numa mão e o bloco de notas e um lápis na outra, o oficial turco que aparecera dias antes na estação sentou-se à mesa. Chamava-se Súleyman, era capitão, e sorriu calorosamente a Krikor.

"Ouvi dizer que você é arménio!", exclamou com jovialidade. "Confirma, não é verdade?"

A pergunta, feita de modo tão directo, deixou o seu interlocutor na defensiva. O que deveria responder? Diria que não, e sujeitava-se a que lhe pedissem os documentos, onde constava a sua nacionalidade britânica, transformando-o de imediato num espião? Ou admitiria que sim e jogava a cartada do ingénuo?

"Pois, de facto assim é", retorquiu Krikor, vencendo a hesitação que dele se apossara enquanto decidia o melhor caminho a tomar perante a questão. "Porque pergunta?"

"Oh, por nada!", devolveu o oficial turco. "Começámos agora a fazer o recenseamento de todos os trabalhadores que a Holzmann contratou para a construção do túnel e precisava de confirmar esse pormenor."

"Um recenseamento? Para quê?"

"Por questões administrativas, claro. Convém sempre saber quem está onde, não lhe parece? Há as questões do contrato entre o estado otomano e a Holzmann para tratar, mais os impostos e toda a papelada que nos inferniza a vida. Enfim, a burocracia persegue-nos."

Krikor desviou o olhar para o bloco de notas e o lápis que o oficial turco pousara ao lado do seu prato de sopa.

"É isso que anda a registar nos seus papéis? Quer os nossos nomes e etnias para o recenseamento?"

A referência ao bloco de notas extraiu uma expressão exageradamente surpreendida ao capitão Súleyman.

"O quê? Isto?", perguntou de modo teatral. "Não, isto é outra coisa. Sabe, ando a preparar um livrinho sobre a história e os costumes dos Arménios e vou tomando notas no meu caderninho." Fez um ar embevecido. "É um povo admirável, sem dúvida! Gente empreendedora e grandiosa, cujos costumes merecem ser registados para que todos os conheçam." Inclinou-se para diante, como se buscasse cumplicidade. "Não se importa de me ajudar, pois não?"

A desconfiança tornara-se parte integrante da vida dos Arménios no Império Otomano. Krikor havia já percebido que não podia aceitar nada como se apresentava à vista desarmada e devia sempre procurar as intenções que se escondiam por detrás das fachadas. E que intenções eram as do turco que se sentara diante dele?

Na verdade, e agora que pensava nisso, notava que o capitão Súleyman havia aparecido em Baghche três semanas após a passagem ameaçadora do ministro da Guerra pelas Amanos. Seria coincidência? Por outro lado, para que queriam os Turcos recensear os trabalhadores da Holzmann? Por causa dos impostos? De facto, e raciocinando ainda melhor, aquele estudo parecia-lhe suspeito. Que desejaria um turco saber sobre os Arménios? Não seria tudo aquilo antes um pretexto para determinar quais os arménios mais instruídos, e consequentemente mais perigosos, que trabalhavam para a empresa de Frankfurt?

"Terei muito gosto em ajudá-lo", devolveu Krikor com um esgar de indiferença simulada. "O problema é que nada sei sobre esse assunto. Não ligo às coisas arménias."

"Oh, não acredito!", exclamou o oficial ainda com a sua expressão teatral. "Não me diga que não sente uma pontinha de orgulho pelo vosso glorioso passado..."

"A minha etnia arménia não passa de um acidente", disse Krikor enquanto mergulhava a colher na sopa, aparentemente alheado. "Na verdade, sou otomano... e com muito orgulho. Não me interessa a política nem a religião nem essas confusões que para aí andam. A única coisa que me preocupa é ganhar dinheiro para viver o dia-a-dia."

O capitão Súleyman testou-o durante mais alguns minutos, sempre com perguntas sobre a história e a cultura dos Arménios, mas as respostas do seu interlocutor reduziram-se ao mesmo discurso de quem não queria saber do passado nem das tradições nem do cristianismo, e não tinha particular interesse pelas coisas dos Arménios. Quando acabou a sopa, e vendo que daquela fonte nada jorrava, o oficial pediu licença e, sempre de bloco de notas na mão, foi juntar-se a outros arménios que se encontravam na cantina dos estaleiros da Holzmann e a quem presumivelmente endereçou as mesmas perguntas.

Krikor fingiu ignorá-lo e afastou-se da cantina para verificar o andamento das obras. Porém, a chegada do capitão Súleyman e as suas perguntas encheram-no de perplexidade e contribuíram para que se fosse cimentando uma ideia na cabeça, uma ideia tão perturbadora que nessa noite a partilhou com Nisham.

"Os Turcos andam a preparar alguma."

Primeiro passaram pequenos destacamentos da polícia. Sentado no terraço da estação, Krikor viu-os a percorrer a estrada de Baghche e a internar-se nas montanhas. De início não pensou nada de especial sobre o assunto, tudo aquilo lhe parecia perfeitamente normal num país em guerra. Ao fim de três dias, porém, e depois de contabilizar a passagem de quatro destes destacamentos e sempre na mesma direcção, achou que deveria interrogar Nisham a esse propósito.

"Quatro destacamentos da polícia?", admirou-se o colega. "Tens a certeza?"

"Vi-os com os meus próprios olhos."

A informação deixou Nisham intrigado. O responsável pelo pessoal arménio da Holzmann ficou atento ao que se passava na estrada e, ao fim de algumas horas, lá viu passar mais um pequeno destacamento de gendarmes. Já alarmado, esperou que Herr Zeitz regressasse essa noite de uma volta pelos trabalhos em curso para o interrogar sobre o assunto. O austríaco desconhecia o que se passava, mas prometeu que iria inquirir os escritórios da empresa em Constantinopla.

As notícias vieram uma semana depois, quando um técnico da Holzmann apareceu de surpresa em Baghche. Logo que tomou conhecimento das novidades, Nisham correu até Krikor em estado de frenesim.

"Os Turcos exigiram ao director-geral da Holtzmann que despedisse os arménios que trabalham aqui nas Amanos", anunciou. Falava tão rapidamente e com tanto nervosismo que, na atrapalhação, acabou por engolir boa parte das sílabas. "Querem toda a gente na estrada!"

A notícia era alarmante.

"O quê?", assustou-se Krikor. "Eles vão despedir-nos?"

"Foi o que os Turcos lhes disseram que fizessem", confirmou. "Mas parece que o director-geral se recusou, alegando que sem os arménios as obras nos túneis irão parar."

"Ah, grande homem!"

"O problema é que os Turcos exigiram que se substituíssem os trabalhadores arménios por muçulmanos. Perante isto, o director-geral terá dito que não há mão-de-obra mais qualificada que a arménia e que tinha muita pena mas não podia prescindir de nós." O vestígio de um sorriso perpassou-lhe pela face. "Boa resposta, não?"

Apesar da ginástica argumentativa dos responsáveis da Holzmann, depressa se tornou evidente que as revelações trazidas pelo emissário acabado de chegar de Constantinopla nada auguravam de bom. Pressentindo que os acontecimentos estavam à beira de se precipitar, Krikor esfregou a cabeça com a ponta dos dedos, como se esperasse que a massagem o ajudasse a ver mais claro.

"É preciso ter calma", disse, mais para si próprio do que para o amigo. "O director-geral está a defender-nos e isso é um bom sinal. Temos de confiar nele."

"Mas durante quanto tempo, Krikor?", questionou Nisham, de novo à beira do pânico. "Achas que o director-geral tem força suficiente para enfrentar os Turcos até que esta maldita guerra acabe?"

Era uma boa pergunta.

"Tens razão. Isto ainda vai terminar mal..."

Nisham respirou fundo, tentando dominar o nervosismo.

"E não te contei tudo."

"Há mais?"

O olhar de Nisham desviou-se para a estrada que passava ao lado da estação.

"Lembras-te dos destacamentos da polícia que passaram por aqui?", perguntou. "Herr Zeitz foi agora informado de que estão quatrocentos gendarmes em operações nas Amanos e de que o comandante da polícia de Adana acabou de estabelecer o seu quartel-general aqui em Baghche. Chegaram ainda informações de que foram instalados postos de controlo militar em todas as estradas que conduzem à cordilheira." Fitou o seu interlocutor com intensidade, a gravidade da situação limpidamente exposta pela simples apresentação dos factos; bastava ligar cada um desses pedaços de informação aos outros para perceber o quadro. "Sabes o que isso significa, não sabes?"

Krikor assentiu com uma expressão lúgubre.

"Estamos cercados."

Os ombros de Nisham descaíram, como se se tivessem vergado ao peso do medo que se lhe entranhara no corpo, a cabeça a balouçar afirmativamente no gesto de quem ia a cada movimento caindo em si e na realidade.

"Pois estamos", confirmou com uma voz triste. "Os Turcos decidiram mesmo acabar connosco."

 

Visto de longe, parecia que um exército enchia a estrada. No entanto, à medida que a massa humana se aproximava, os mirones foram-se apercebendo de que não estavam diante de militares em formação, mas de uma multidão desordenada de civis.

"Krikor!", chamou Nisham com a urgência a modular-lhe a voz. "Vem cá depressa! Anda ver o que está a acontecer!"

Às voltas com o arranjo da fechadura de uma porta da estação de Baghche, Krikor demorou a acorrer. Só quando deu o trabalho por terminado é que se ergueu e se dirigiu a uma das janelas, onde os engenheiros se apertavam para observar o estranho espectáculo que se desenrolava lá fora.

A multidão passava- já diante do edifício e o que viu deixou-o arrepiado, a memória tomada de assalto pela dolorosa experiência que ele próprio vivera ainda no ano anterior naquelas mesmas estradas. Mulheres andrajosas e crianças seminuas, algumas delas a cambalear, caminhavam enquadradas por gendarmes com Mausers de baioneta pregada na ponta dos canos. Um silêncio pesado abatera-se sobre a estrada, apenas quebrado por gemidos e pelo choro ocasional de um bebé e pelas ordens dos guardas turcos.

"São as mulheres e os filhos dos nossos arménios", murmurou um engenheiro alemão, impressionado com o cortejo. "O nosso pessoal conseguiu impedir que os Turcos os levassem da primeira vez que tentaram, mas os tipos vieram depois em massa e já não se conseguiu travar isto. É horrível!"

Mesmo à frente da janela da estação de Baghche um menino com uns cinco anos começou a choramingar e, acto contínuo, levou na nuca uma coronhada que o estendeu no chão. A imagem não constituía novidade para nenhum dos arménios que observavam a cena a partir do edifício, mas era a primeira vez que os engenheiros europeus da Holzmann e as suas famílias viam tal coisa com os seus próprios olhos.

"Como se atrevem?", rugiu Herr Zeitz, também ele a assistir da janela à passagem da caravana. "Viram isto?"

"Uns brutos", observou outro engenheiro. "Uns animais!"

O responsável local da Holzmann, até ali esmagado e paralisado diante da multidão que inesperadamente aparecera na estrada, animou-se de indignação no instante em que viu o gendarme maltratar a criança. Decidido a não permanecer alheio ao que se passava, largou a janela e em alguns passos saiu para a rua e chegou junto do turco que havia desferido a coronhada no menino.

"Não tem vergonha? Desde quando é que bate assim em crianças indefesas?"

Encorajados pelo exemplo do seu superior hierárquico, outros engenheiros, alemães e austríacos, acorreram de imediato à estrada para ajudar Herr Zeitz a enfrentar os guardas.

"Não!", disse o gendarme, tentando impedir que assistissem a vítima. "Não podem interferir!"

Herr Zeitz, que se acocorara para auxiliar o menino, ergueu-se de um salto e, num gesto repentino e violento, vergastou o rosto do polícia com a sua cana.

"Cale-se, sua besta! Cale-se!"

Surpreendido, o gendarme recuou um passo, a mão pousada na face incendiada pela flagelação, e os engenheiros ficaram com o caminho livre para prestar socorro à criança. com uma voz tensa, Herr Zeitz virou-se para os seus subordinados.

"Vão imediatamente à cozinha buscar comida", ordenou. "Quero que limpem a dispensa se for preciso! Tragam tudo o que lá houver e dêem-no a esta gente!"

Alguns minutos depois já os engenheiros europeus e as suas famílias distribuíam pão, presunto, salsichas, fruta e água aos arménios que cambaleavam pela estrada, perante a estupefacção dos polícias turcos e os guinchos aliviados dos deportados.

O capitão Súleyman apareceu meia hora mais tarde no local, evidentemente alertado pelos seus homens. Vinha com cara de poucos amigos e dirigiu-se em passos largos directamente ao responsável local da Holzmann.

"O que é isto?", perguntou ele num tom autoritário. "Que estão os senhores a fazer?"

"Não é evidente?", retorquiu o austríaco, ainda a distribuir pão pelos deportados. "Os desgraçados vêm esfaimados. E já dei também ordens para irem buscar medicamentos e lhos entregarem." Apontou para a caravana. "Não vê que alguns deles estão doentes? É um crime o que vocês estão a fazer a esta gente!"

O capitão interpôs-se entre Herr Zeitz e a multidão que passava, os braços abertos para travar a entrega de alimentos.

"Não pode fazer isso!"

"Não posso porquê?"

"São ordens de Constantinopla! É proibida a assistência aos deportados. Nem comida, nem água, nem remédios! Nada!"

"Mas... mas porquê?"

"São as ordens", repetiu o oficial. "Os Arménios são uma raça maldita e foram destinados ao extermínio. Como se atrevem vocês a interferir no nosso trabalho?"

Herr Zeitz empurrou o capitão Súleyman para o lado e recomeçou a entregar o pão aos deportados.

"Que disparate!", retorquiu. "Afaste-se daqui, homem! Não vê que está a mais?"

O turco hesitou. A sua autoridade, porém, acabara de ser posta em causa diante dos seus homens da maneira mais vexatória possível, coisa que não podia permitir. Voltou-se por isso para os gendarmes e berrou-lhes uma catadupa de ordens em turco.

De imediato os polícias correram para os arménios que tinham recolhido comida ou água e arrancaram-lhes os produtos das mãos, espezinhando-os e atirando-os para longe ou derramando os líquidos na estrada. Os engenheiros insistiram em entregar mais alimentos aos deportados, mas todos os produtos tiveram o mesmo destino sob a bota dos gendarmes. Desanimados, os europeus acabaram por desistir, ficando a observar com olhos tristes o triste desfile que se alongava penosamente pela estrada.

"Se é assim à nossa frente", murmurou Herr Zeitz, sentindo-se impotente para travar o que via acontecer diante dele, "imaginem como não será longe dos nossos olhos..."

Os engenheiros da Holzmann suspenderam nesse dia o trabalho e passaram toda a tarde a redigir relatórios a propósito do que testemunharam na estrada e da importância daqueles trabalhadores e das suas famílias para o andamento das obras. Prepararam também petições a exigir a devolução do pessoal arménio deportado.

Na manhã seguinte, um dos engenheiros-chefes, um alemão particularmente prestigiado no grupo, partiu para Constantinopla com instruções para remeter os relatórios e as petições que levava na mala ao director-geral da Linha de Caminhos-de-Ferro da Anatólia em Constantinopla, ao presidente da Holzmann em Frankfurt, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em Berlim, ao general von Sanders, que comandava as forças militares alemãs no Império Otomano, e até à Cruz Vermelha Internacional, em Genebra.

"Não poupes esforços", ordenara-lhe Herr Zeitz. "Bate a todas as portas a que tiveres de bater. Vai até ao Kaiser se for necessário. Quero este problema resolvido!"

Nenhum dos pedidos e solicitações produziu, contudo, o menor efeito, como se percebeu por ao fim de duas semanas nem um dos trabalhadores arménios deportados ter sido devolvido. Em retaliação, o responsável da Holzmann em Constantinopla deu ordens para que fossem suspensos os trabalhos nas montanhas Amanos e se interrompesse o tráfego na linha de bitola estreita entre Mamure e Islahiye, essencial para a passagem de tropas e munições em direcção à frente sul.

À luz desta medida, a esperança recrudesceu entre os funcionários arménios que haviam ficado na estação de Baghche.

"Os Turcos vão ter mesmo de ceder", aventou Krikor enquanto tomava chá no terraço da estação. "Isto já dura há treze dias e, com a linha cortada até Islahiye, eles não têm modo de enviar reforços para a Palestina. Parece que os Ingleses do general Allenby andam por Jerusalém a dar-lhes cabo do canastro. Sem nós, os Turcos não dispõem de maneira de mandar ajuda aos seus homens. Eles precisam da linha para o transporte dos reforços."

"Parece-te?", perguntou Nisham, dividido entre a esperança ténue e o pessimismo mais absoluto. "Pensas mesmo que os Turcos nos vão devolver os nossos trabalhadores?"

"Que remédio têm eles!", sentenciou Krikor, talvez mais empenhado em convencer-se a si mesmo do que ao seu amigo. "Se não o fizerem, a linha permanecerá fechada. E o que é mais importante para eles? O destino de uns poucos milhares de arménios ou a queda da Palestina? É evidente que eles vão..."

A frase não chegou a ser concluída porque Krikor viu Herr Zeitz espreitar da janela do primeiro andar, onde se situava o seu gabinete, e inclinar a cabeça para fora.

"Venham cá", ordenou o austríaco, fazendo-lhes sinal com a mão de que fossem ter com ele. "E tragam todo o pessoal arménio."

Não foi difícil arrebanhar os arménios que trabalhavam na estação de Baghche. Ao todo reduziam-se a oito, na verdade os únicos que restavam em toda a extensão das montanhas Amanos. Como o grupo estava adstrito aos caminhos-de-ferro e não às obras dos túneis, nenhum dos seus elementos havia ainda sido deportado.

Depois de se certificarem de que ninguém tinha ficado de fora, galgaram as escadas e imobilizaram-se diante do gabinete do seu superior hierárquico. Encabeçando o grupo, como era seu dever, Nisham ajeitou o colarinho da camisa, pigarreou e deu três toques suaves na porta.

"Entre!"

Ao ouvir a ordem emitida do outro lado, o arménio olhou de relance para os homens atrás dele e, ganhando coragem, rodou a maçaneta e espreitou para o interior do gabinete.

"Dá licença, Herr Zeitz?"

O responsável local da Holzmann estava sentado à sua escrivaninha, os óculos encavalitados na ponta do nariz para ler uns documentos que segurava nas mãos. Fez com a cabeça sinal de que entrassem e o grupo obedeceu, instalando-se no gabinete, todos apertados uns contra os outros. Não que o compartimento fosse pequeno, mas o facto é que nove pessoas seriam talvez de mais para um espaço concebido para o trabalho de uma.

Herr Zeitz, porém, não pareceu importar-se com isso. Dobrou os documentos com gestos deliberados, tirou devagar os óculos de leitura e encarou os subordinados arménios com uma expressão grave.

"Tenho infelizmente más notícias", anunciou numa voz lúgubre. "Invocando o superior interesse nacional e as suas responsabilidades como comandante supremo das forças do Império Otomano, o general von Sanders deu-nos ordens inequívocas para retomarmos o transporte de tropas e munições pela linha até Islahiye. O nosso director-geral, embora sob protesto e mantendo a exigência de que os nossos trabalhadores arménios nos sejam devolvidos, viu-se obrigado a ceder e remeteu-me instruções para recomeçar as operações." Fez uma pausa e olhou para os homens diante dele um a um. "Percebem o que isso significa, não é verdade?"

Os oito arménios permaneceram em silêncio, absorvendo o que lhes pareceu serem as implicações da notícia.

"Sim, senhor", disse Nisham. "Acabou a greve."

O austríaco suspirou, agastado.

"Infelizmente é pior do que isso", considerou. "O verdadeiro significado desta ordem é que perdemos qualquer margem de manobra para vos proteger. A partir de agora os Turcos sabem que podem fazer o que quiserem aos nossos trabalhadores arménios porque o general von Sanders, apesar de ser alemão, irá, em última instância, dar-lhes cobertura."

"Mas... a Holzmann não precisa dos Arménios para os trabalhos aqui nas Amanos? Onde vão agora arranjar mão-de-obra qualificada?"

"Isso era uma desculpa que inventámos para os Turcos não tocarem em vocês", retorquiu Herr Zeitz. "Mas eles deram-nos a volta." Acenou com outro dos documentos que estivera a ler. "Esta é a guia de marcha para um milhar de prisioneiros de guerra ingleses capturados na Mesopotâmia. Vão-nos ser entregues na próxima semana em substituição dos nossos arménios. Serão estes prisioneiros que irão doravante trabalhar nas obras dos túneis."

Um murmúrio de desalento percorreu o grupo. Tornava-se evidente que a partida estava irrevogavelmente perdida. Abalados, dois deles taparam a cara e começaram a chorar baixinho.

"Como é possível, meu Deus?", murmurou Nisham, lutando também contra as lágrimas que lhe afloravam teimosamente aos olhos. "Como é possível que nos tenhas abandonado?"

O ânimo do grupo quebrara-se por completo.

"E ainda há mais", acrescentou o austríaco, desviando os olhos com embaraço. "Nem sei como vos diga..."

A atenção dos arménios voltou-se de novo para o superior hierárquico, o olhar alarmado por vê-lo tão abatido, o medo a alastrar e a tornar-se quase palpável.

"O que é, Herr Zeitz? Que se passa?"

O responsável da Holzmann voltou a respirar fundo, ganhando ânimo para a última parte.

"Os Turcos fizeram um recenseamento de todos os nossos trabalhadores arménios", disse. Apontou para os seus subordinados. "Isto quer dizer que eles sabem da vossa existência..."

A afirmação caiu no grupo com a força da detonação de uma carga de dinamite. Todos sabiam do recenseamento, claro. Quem não vira o oficial turco a registar os nomes dos trabalhadores no seu caderninho? Mas que aquilo teria implicações, e pelos vistos de grande gravidade, era coisa que só então se tornou evidente.

"O senhor quer dizer...", balbuciou Nisham, "quer dizer que eles nos querem levar também?"

com a expressão pesarosa e sem coragem já para encarar os seus homens, Herr Zeitz manteve os olhos baixos e, com um movimento mecânico, balançou afirmativamente a cabeça e fez um gesto na direcção do último documento que pousara sobre a mesa.

"Já pediram que vos entreguemos", revelou. "Claro que não vamos fazer tal coisa. Mas, meus amigos, eles não se vão deixar ficar. Mais dia menos dia, aparecem aqui e levam-vos."

Neste ponto a desorientação generalizou-se entre o grupo, com a ordem a quebrar-se e cada um a fazer a sua pergunta ou a implorar por socorro ou por um milagre.

"Ajude-nos, Herr Zeitz!"

"Que podemos fazer?"

"Que vai ser de nós, Virgem Maria?"

Acossado por uma barragem desordenada de apelos e lamentos, o superior hierárquico levantou-se do seu lugar e ergueu as mãos para os calar. Olhando-o como quem encarava um messias, todos se silenciaram de imediato.

"Ando a matar a cabeça em busca de uma solução", disse o austríaco. "Não sei é se terei tempo para a pôr em prática. Preciso de ganhar uns dias. Para isso, pus-me a matutar num estratagema para o qual é fundamental a vossa melhor colaboração."

"Tudo o que quiser, Herr Zeitz."

O superior hierárquico aproximou-se da janela e apontou para uma estrutura montada ao lado da estação, mesmo junto à linha de caminhos-de-ferro.

"Estão a ver ali o tanque?"

O olhar dos arménios desviou-se para a construção cilíndrica erguida sobre um emaranhado metálico. Era dali que se abasteciam de água as locomotivas e a própria estação. A estrutura erguia-se com imponência, embora pouco graciosa, e tinha coladas a um dos lados, por sinal numa parte relativamente protegida dos olhares da rua, umas escadas estreitas que escalavam até ao topo.

"Sim, Herr Zeitz."

O responsável da Holzmann manteve o dedo indicador fixo naquela estrutura.

"Quando virem os Turcos chegar, quero toda a gente a esconder-se ali", disse. "Perceberam? Toda a gente! É a vossa única hipótese. Os tipos vão revistar tudo, mas nunca lhes passará pela cabeça revistar o tanque."

Um dos arménios avaliou a estrutura e mostrou um ar pouco convencido.

"O tanque tem água?"

"com certeza."

"Mas eu não sei nadar!..."

Na verdade não era o único. Cinco dos oito, incluindo Nisham, ergueram os dedos e revelaram que nunca tinham aprendido a nadar; queriam saber como fariam para resolver o problema.

"Então descubram umas bóias e coloquem-nas imediatamente no tanque", sugeriu o superior hierárquico. "Assim tudo estará a postos para quando a emergência ocorrer."

Discutiram a questão com algum pormenor, até porque, ao que sabiam, não existiam bóias na estação. Um dos arménios, por sinal um carpinteiro, revelou no entanto que conhecia materiais que flutuavam e que iria de imediato para a oficina tratar do assunto, pelo que o problema ficou resolvido.

Uma vez tudo clarificado, os oito fizeram uma vénia e encaminharam-se para a porta do gabinete.

"Deus lhe pague, Herr Zeitz", exclamou Nisham à despedida, ecoando o que cada um dos seus companheiros já dissera. "Não sei o que faríamos sem o senhor."

O responsável local da Holzmann, porém, parecia embaraçado. Fez um gesto rápido com a mão, como se implorasse que se calassem, e manteve os olhos baixos colados ao soalho do gabinete.

"Nada têm a agradecer-me", disse. "Na verdade, deveria até apresentar a minha demissão. O que se está a passar é intolerável."

"Oh não, Herr Zeitz!", contrapôs Nisham, alarmado. "Se se demitisse, quem nos ajudaria?"

Era uma boa pergunta e isso deu alento ao austríaco, que levantou por fim o olhar e, da porta do gabinete, encarou os seus subordinados já de costas a descerem as escadas.

"Tenham cuidado", lançou-lhes ainda. "Eles vão aparecer quando menos esperarmos."

 

O mais extraordinário das latrinas da Holzmann, pensou Krikor enquanto se acocorava para se aliviar, é que eram de uma higiene exemplar. Sem ser ali, onde se encontraria semelhante maravilha em todo o Império Otomano? com o seu rigor e disciplina tradicionais, os alemães e os austro-húngaros faziam questão de que elas fossem lavadas de hora a hora, o que tinha como resultado que ali não havia maus cheiros nem vestígios de sujidade.

"Um milagre", observava sempre que ali ia. "Um fenómeno verdadeiramente extraordinário!"

Graças à sua vida no segmento abastado da sociedade inglesa, durante muito tempo Krikor dera por adquiridos os hábitos de higiene prevalecentes na upper class, pelo que o Império Otomano constituíra para ele, nesse particular, um choque. E as coisas pioraram até ao nível da degradação mais abjecta durante os três meses em que integrara a caravana da morte, altura em que a limpeza se tornou inexistente e em que se habituou a viver com pulgas e piolhos e toda a imundice que podia haver.

Daí que, sempre que usava as latrinas da estação de Baghche, o seu primeiro pensamento fosse para o asseio. Era extraordinário como uma coisa que durante toda a sua vida dera por adquirida lhe parecia agora uma conquista admirável. De facto, não havia como passar da abundância e da opulência à degradação mais completa para se dar o devido valor aos benefícios do progresso.

Estava Krikor encolhido sobre o buraco da latrina a admirar a limpeza daquele espaço quando uma sucessão de apitos lhe dispersou os pensamentos. Primeiro pensou que vinha aí um comboio e que estavam a ser dadas ordens ao pessoal para se aprontar. Decerto seria necessário descarregar mercadorias. Depressa se apercebeu, contudo, de que não podia ser tal coisa.

"Nisham Mavian!", berrou uma voz à distância, falando em turco. "Para aqui! Já!"

Ao ouvir estes gritos compreendeu que algo de anormal sucedia. Alarmado, abriu a porta da latrina e esticou a cabeça para o exterior. Vislumbrou gendarmes na estrada a rodear um punhado de civis alinhados em fila; eram os seus colegas arménios. Um homem bradava ordens de um lado para o outro e Krikor observou-o com atenção; tratava-se do capitão Súleyman. O oficial turco tinha um papel na mão, decerto a lista dos arménios em falta, e puxava pelo braço de Nisham, encaminhando-o para junto dos companheiros.

"Meu Deus!", exclamou Krikor, aterrado por tomar consciência de que a hora chegara. "Eles já vieram!"

Sem perder tempo, puxou as calças para cima e esgueirou-se das latrinas, contornando as traseiras da estação até chegar à base do tanque. Agarrou-se às escadas e começou a escalá-las em movimentos frenéticos, como as personagens dos filmes que se viam no animatógrafo. Uma vez lá em cima, espreitou para o interior do tanque e avistou uma estrutura de madeira a boiar na água, como uma jangada; percebeu que se tratava do trabalho feito na véspera pelo carpinteiro. Sem perder tempo, deslizou para a superfície líquida e agarrou-se à madeira. Já protegido dos olhares indiscretos, remou com os braços até à borda do tanque e, pelas frinchas das tábuas que seguravam a estrutura, espreitou o que se passava lá fora.

Os arménios mantinham-se alinhados a meio da estrada e os engenheiros alemães e austríacos tentavam chegar até eles, mas eram travados pelos gendarmes de espingardas em riste. O capitão Súleyman andava para a frente e para trás com a lista na mão, a berrar algo que àquela distância não se entendia. Krikor contou em voz baixa o número de colegas capturados.

"Um... dois... três..."

Eram sete.

Sentiu um nó estrangular-lhe a garganta; se sete haviam sido capturados, isso significava que apenas ele lograra escapar. A seguir viu o capitão Súleyman entrar na estação e logo depois esquadrinhar o espaço em redor na companhia de cinco gendarmes, decerto à procura do oitavo arménio. Ou seja, dele próprio. O coração recomeçou a bater-lhe com violência, apertado pelo pavor de que o descobrissem. Se subissem até ao tanque, o que faria? Mergulharia para debaixo da jangada, cogitou. Mas quanto tempo aguentaria ali estar sem respirar?

As buscas prolongaram-se por uma hora angustiante, ao fim da qual o oficial turco regressou à estrada e, gesticulando em profusão, deu enfim ordem de marcha aos prisioneiros. Ouviu-se um apito e os arménios começaram a andar, enquadrados pelos polícias. Krikor sentiu um alívio profundo por não ter sido descoberto, mas ao mesmo tempo uma angústia sufocante por se saber só.

Nesse instante ergueu-se um clamor da estrada; era o punhado de engenheiros europeus que se juntara na berma e vilipendiava os turcos, evidentemente em protesto contra o que estava a acontecer. Porém, os gendarmes mostraram-se indiferentes à contestação e seguiram caminho até desaparecerem ao fundo da estrada na direcção de Marash.

O olhar assustado de Krikor desviou-se para as latrinas onde providencialmente se encontrava no momento em que os gendarmes tinham chegado.

"Salvo pela merda", murmurou, incrédulo e combalido, preparando-se para sair dali. "Pela merda."

Era o último dos arménios à solta nas montanhas Amanos.

Quando Krikor, molhado da cabeça aos pés, cruzou a porta e calcorreou o átrio principal, os engenheiros alemães e austro-húngaros, de ombros descaídos e olhar pesaroso, ergueram-se devagar e ficaram a vê-lo passar, de pé e em silêncio, como se através dele prestassem homenagem a todos os arménios que os Turcos haviam levado.

O ambiente no interior da estação de Baghche era de profunda consternação. Sem dizer uma palavra, e deixando atrás dele um rasto de pingos e de manchas de água, Krikor subiu ao primeiro andar em passadas desconsoladas e bateu à porta do gabinete do director. Como não obteve resposta, rodou a maçaneta e perscrutou o interior. Sentado à secretária, Herr Zeitz limpava os olhos avermelhados com um lenço rendilhado quando se apercebeu de que era observado.

"Krikor!", exclamou com alívio ao reconhecer o intruso. "Ah, Krikor! Finalmente!" Levantou-se do assento e, de braços abertos, veio acolher o seu subordinado à porta. "Mein Gott, você está bem?"

"Mais ou menos."

O austríaco puxou-o para o gabinete e indicou-lhe uma cadeira. Depois foi ao armário e retirou uma toalha que ofereceu ao convidado.

"Já vi que conseguiu esconder-se no tanque", constatou. "Ainda bem! Valha-nos isso!" Sentou-se diante de Krikor e baixou o tom de voz. "Presumo que tenha visto o que aconteceu..."

"Assisti a tudo."

O responsável da Holzmann respirou fundo.

"Como já deve ter percebido, eles vão voltar", murmurou. "Quando se iam embora disseram que não queriam um único arménio à solta. O que significa que você não pode permanecer aqui." Abanou a cabeça, enfatizando a ideia. "De modo nenhum."

"Mas... mas para onde hei-de ir?", perguntou Krikor, sentindo-se perdido. "Para onde poderei fugir?"

O austríaco endireitou-se e estreitou os olhos azuis, a mente mergulhada na busca de uma solução para o problema. De repente pôs-se de pé, como se tivesse acabado de ter uma ideia, e deu um salto até à sua secretária. Abriu uma gaveta e, depois de remexer na papelada que se misturava no interior, retirou um pequeno caderninho que trouxe para junto do seu subordinado e que exibiu diante do nariz.

"Está a ver o que isto é?", perguntou com um sorriso triunfal. "O meu passaporte." Sentou-se e colou o indicador ao peito molhado do seu interlocutor. "Que vai passar a ser o seu passaporte."

Krikor desceu o olhar para o caderninho com o símbolo imperial austro-húngaro impresso na capa.

"O meu passaporte como?"

O responsável local da Holzmann esboçou um sorriso.

"Este ano não planeio viajar, pelo que não preciso do passaporte", disse. "Vou-lho entregar para que o use para chegar a Constantinopla. Amanhã de manhã passa por aqui um oficial do exército alemão a caminho de uma licença. Você acompanhá-lo-á até Constantinopla."

"Um oficial alemão?", admirou-se Krikor com uma sombra de medo a nublar-lhe o olhar. "Mas esses... esses são os piores! Não são como vocês, os civis! Há muitas histórias de militares alemães que entregaram arménios aos Turcos para serem executados."

"Este é diferente, fique descansado", assegurou-lhe Herr Zeitz, pousando a mão no braço molhado do seu subordinado. "Não lhe fará nada."

"Como pode ter a certeza?"

"Digamos que ele me deve uns favores..."

A confiança que transparecia nas palavras e no olhar do chefe de estação tranquilizou Krikor; o facto é que também não tinha alternativa.

"Está bem, acredito em si." Pegou no passaporte que lhe era estendido e estudou-o. "Se fico com este documento, como fará o senhor para se desenvencilhar? Não lhe quero criar problemas..."

Num labor frenético, o austríaco retirava já da gaveta um papel com o selo oficial da Holzmann.

"Não se preocupe, meu caro", disse enquanto pegava numa caneta para rabiscar a nova folha. "Daqui a dois meses dá-lo-ei como perdido e a minha empresa tratará de me arranjar um passaporte novo." Indicou o papel onde escrevinhava. "Agora estou a tratar da sua guia de marcha, indispensável para passar os controlos de segurança. A versão aqui contida é que está em trânsito para ir a Constantinopla inspeccionar um fornecimento de carris destinados à Linha de Caminhos-de-Ferro da Anatólia." Assinou o papel oficial, assentou-lhe o carimbo da empresa e estendeu a guia de marcha ao subordinado. "Aqui está!"

Krikor recolheu a guia de marcha e guardou-a num envelope. Depois pôs-se a folhear o passaporte até se imobilizar na página onde se encontrava o cliché com o rosto do seu chefe.

"E esta fotografia? Quando os Turcos virem a sua cara percebem logo que não sou eu!"

Herr Zeitz pegou de novo no passaporte e estudou a sua própria imagem. De facto, aquilo constituía um problema. Como se poderia contornar a questão?

Ergueu o olhar azul para o subordinado no momento em que lhe ocorreu uma ideia.

"Tem alguma fotografia sua?"

"Eu? Claro que não."

"Não faz mal, o Hans trata disso", disse, esboçando no ar um gesto vago com a mão, como se aquele problema não fosse o principal. "Ele tem uma Voigtlãnder e montou uma câmara obscura atrás do quarto onde está instalado. Resolve-se num instante." Deteve o olhar, uma dúvida a assaltar-lhe o espírito. "Você não receia ser fotografado, pois não?"

"Claro que não!", retorquiu o subordinado. "Posso ser de origem arménia, mas não vivo na Idade Média..."

Absorto já na tarefa de arrancar a fotografia, Herr Zeitz nem se apercebeu de que quase ofendera o subordinado. A sua preocupação resumia-se a arrancar a imagem sem rasgar a folha. Depois de alguns movimentos delicados com os dedos, o cliché soltou-se por fim e, o espaço já livre para receber uma nova fotografia, o passaporte voltou às mãos de Krikor.

"A partir de agora tem um novo nome", anunciou o austríaco com um sorriso forçado. "Chama-se Jan-Lukas Zeitz."

O comboio partiu da estação de Baghche às oito em ponto. Pendurado na janela, vestido com um fato de linho claro que lhe havia sido oferecido para a viagem, Krikor acenou na direcção de Herr Zeitz e dos restantes engenheiros alemães e austro-húngaros até que os arbustos e as árvores que apareceram a meio da curva cortaram a linha de vista e o obrigaram a voltar ao seu lugar.

"Simpático este Herr Zeitz, não acha?"

A pergunta foi formulada pelo major Peter Hammans, o oficial saxão impecavelmente fardado que o acompanhava na viagem. O major era um homem de meia-idade, com grandes patilhas e um espesso bigode curvado para baixo, à Bismarck, semelhança acentuada pelo capacete Pickelhaube luzidio que trazia pousado aos pés.

"Sim, muito", concordou Krikor, acomodando-se no assento diante do companheiro de viagem. "Conhece-o há muito tempo?"

"Só desde que vim para o Império Otomano", respondeu o alemão. "Travámos conhecimento durante uma recepção na nossa legação em Constantinopla. Descobrimos que ambos temos a paixão das borboletas. Passámos a noite a falar sobre as nossas colecções e acabámos por manter o contacto. Desde essa altura que ele arranja sempre maneira de me obter os melhores lugares nos comboios." Fez um gesto circular a indicar o vagão de primeira classe em que se encontravam. "Muito conveniente, não acha?" O bigode estremeceu quando sorriu. "Conveniente e agradável, claro."

Para o seu companheiro de viagem, a primeira classe não constituía qualquer novidade. Desde criança que Krikor apenas viajava em grande luxo, embora as provações que sofrera desde Kayseri lhe tivessem oferecido uma nova perspectiva, e apreço, por aquele requinte que até ali sempre dera como adquirido.

"Pois eu já conheço Herr Zeitz há um ano", disse ele, procurando fazer conversa. "Vim aqui parar num estado lastimoso e..."

O militar ergueu a mão para o travar.

"Agradecia que não me relatasse a sua história", atalhou num tom categórico. "Estou a fazer um favor a Herr Zeitz, mas pode ser que isto envolva alguma... como direi?, irregularidade. Por isso quanto menos souber melhor. Se a coisa der para o torto, sempre posso alegar ignorância." Arqueou as sobrancelhas. "Entende a minha posição, não é verdade?"

"Perfeitamente."

O major Hammans recostou-se no assento, satisfeito por estarem estabelecidas as regras do jogo. Como bom saxão, não se achava um grande conversador, o que de resto lhe parecia uma virtude. Defendia a tese de que era melhor falar bem do que falar muito e dizia com frequência que as palavras, quando vomitadas em excesso, tendiam a desvalorizar-se. Quem prestava atenção ao que dizia um incontinente verbal?

Inclinou-se por isso no seu lugar e recolheu a pequena mala de couro que trazia pousada ao lado do Pickelhaube pontiagudo.

"Gosta de ler?"

"Bem... sim, claro. Porquê?"

O oficial retirou três livros da mala e voltou-os na direcção do companheiro de viagem.

"Escolha."

O olhar de Krikor dançou entre os três exemplares, todos eles romances. Um era Der Tod dês Tizian, de Hofmannsthal, outro intitulava-se Die Nàchte der Tino von Bagdad, de Else Lasker-Schiiler, e o terceiro era Leutnant Gustl, de Arthur Schnitzler.

Desencorajado com os títulos em alemão, Krikor esboçou um gesto negativo com a mão.

"Sabe, e embora fale a sua língua, a leitura é mais difícil, de modo que..."

"Escolha", repetiu o major Hammans, endurecendo a voz e tornando claro que a negativa não constituía opção aceitável. "Se não está habituado a ler em alemão, habitue-se. A leitura durante a viagem ajuda a credibilizar o seu disfarce. Além disso, desencorajará algum intrometido que o queira interpelar."

Krikor fitou-o nos olhos; não era parvo, o alemão. Voltou então a encarar os títulos e, com um suspiro resignado, acabou por optar pelo romance de Else Lasker-Schiiler, por lhe parecer que uma história passada em Bagdade poderia ser mais interessante. Mas no momento em que abriu o livro e se deparou com a algaraviada em alemão que enchia a primeira página deixou de ter tanta certeza.

Quando a composição se imobilizou no apeadeiro seguinte, Krikor levantou os olhos do livro e espreitou pela janela. O coração deu-lhe um salto de susto e pôs-se a bater desordenadamente. Um grupo de polícias e militares turcos estava a entrar no comboio.

"Ach!", murmurou, alarmado. "Vamos ter problemas." O major Hammans atirou uma miradela ao grupo e, com uma expressão displicente, encarou de novo o seu companheiro de viagem.

"Não se preocupe, meu caro", disse, apontando com o polegar para uma placa afixada junto à porta do vagão. "Não leu o que ali está escrito?"

A atenção de Krikor desviou-se para a placa inscrita com uma frase em caracteres árabes e outra em letras góticas.

Vagão especial para oficiais alemães

"Acha que eles não entram?"

O militar passou os dedos pelo longo bigode curvado e um brilho de sol faiscou-lhe no olhar de cinza.

"Não se atrevem."

De facto, assim foi. O grupo de soldados e gendarmes turcos desapareceu algures num vagão traseiro sem incomodar os dois viajantes, os únicos que ocupavam a carruagem. O mesmo sucedeu ao longo das horas seguintes, apesar do enorme número de militares turcos que entravam e saíam a cada paragem.

"Quem diria, hem?", sorriu Krikor. "Eu com medo deles e eles com medo de nós..."

Cinco horas depois de terem saído de Baghche, chegaram a Adana. O major Hammans convidou o seu companheiro de viagem para almoçar no vagão-restaurante e no final da refeição, e uma vez que a partida só estava marcada para daí a duas horas, lançou-lhe um desafio.

"Que tal darmos uma voltinha pela cidade?"

Alugaram um coche e passearam pelo centro de Adana. Um movimento caótico animava a povoação. Os comerciantes enchiam os passeios e muitos militares deambulavam por ali. Preocupado sobretudo com não ser desmascarado, Krikor não se sentia particularmente à vontade; achava mesmo que se tinha ido meter na boca do lobo e andava a brincar com o fogo.

O seu desconforto aumentou quando na praça central de Adana viram os corpos de vários arménios enforcados ainda pendurados nos postes.

"Acho que... que é melhor voltarmos."

O oficial alemão percebeu o problema e deu ordem ao cocheiro para regressarem à estação. Decididamente o seu companheiro de viagem não havia apreciado as atracções cruas que Adana tinha a oferecer aos visitantes.

 

O comboio tinha mudado. Para atravessar a cordilheira das Taurus em direcção a norte, a composição era agora diferente - e pior, na perspectiva de Krikor. Não existia carruagem reservada aos oficiais alemães, pelo que ele e o major Hammans tiveram de se contentar com o vagão de primeira classe partilhado com os Turcos.

Sentaram-se junto à janela e mergulharam de novo na leitura. Alguns oficiais turcos lançaram olhares carregados de estranheza na direcção de Krikor; evidentemente percebiam que a sua fisionomia não era típica de um alemão, mas a postura arrogante do major Hammans dissuadiu qualquer veleidade e ninguém se atreveu a interpelá-los para pedir a identificação. Corria nessa altura a notícia de que, dias antes, um soldado alemão abatera a tiro um oficial turco que lhe havia exigido os documentos e esse soldado nem sequer fora detido. O Império Otomano, perceberam todos, estava nas mãos dos Alemães, pelo que nenhum soldado ou funcionário turco sentia a menor vontade de incomodar um oficial do Reich, para mais alguém com o porte imperial daquele imponente militar saxão.

"Dão licença?"

O tom do oficial turco que falara era quase o de quem pedia desculpa por se atrever a incomodar os dois ilustres viajantes. Estranhando a intrusão, o major Hammans varreu com o olhar o vagão de primeira classe e percebeu que ia cheio; os únicos lugares livres eram aqueles, ao lado dele próprio e de Krikor. com uma expressão carrancuda, fez sinal ao recém-chegado de que se podia sentar.

"Hmpf", grunhiu, mal-encarado.

O homem acomodou-se ao lado de Krikor e ficou muito hirto, evidentemente intimidado por se ter visto forçado a procurar lugar junto dos estrangeiros.

O comboio arrancou com quase uma hora de atraso, mas isso não pareceu preocupar a generalidade dos viajantes, habituados à tradicional flexibilidade dos horários no Império Otomano. As tabelas eram meras referências, não para serem levadas à letra.

A primeira meia hora decorreu em silêncio nos assentos onde seguiam o capitão Hammans e o seu companheiro de viagem, ambos sempre absortos nos seus livros. Todavia, o texto em alemão que Krikor se esforçava por decifrar era de tal modo difícil que, com frequência, levantava o olhar e se distraía a contemplar a paisagem que corria para lá da janela.

com regularidade o comboio ia parando em estações e apeadeiros, onde se aglomeravam sempre pequenas multidões. Krikor começou a reparar que se haviam operado algumas mudanças na maneira de vestir dos Turcos. Em vez do tradicional kaftan, muitas mulheres usavam vestidos de traço europeu, enquanto um crescente número de homens trocara as habituais calças largas, as shalvar, as camisas gomlek e as capas ucetek por trajos também europeus. Algumas combinações revelavam-se até absurdas. Aldeãos de sandálias e shalvar cobriram-se com gabardinas e alguns rapazes de pés descalços ostentavam casacos de fraque.

"Já viu como as pessoas andam vestidas?", perguntou em alemão. "Serão cristãos?"

O major Hammans atirou para o exterior um olhar vagamente interessado e, depois de um novo grunhido indiferente, regressou à leitura. Tudo aquilo parecia, porém, bizarro, pelo que Krikor se manteve pregado à janela, a matutar no que via. Ao fim de algum tempo, e depois de mais duas paragens em que a cena se repetiu, a curiosidade acabou por derrotar o medo e a prudência, pelo que se voltou para o oficial turco sentado a seu lado.

"Porque anda tanta gente vestida à europeia?", perguntou no seu turco deficiente. "São cristãos?"

A face do oficial desenhou um sorriso prestável, exibindo caninos de ouro.

"Cristãos?", admirou-se, mirando as pessoas que enchiam a plataforma da estação onde haviam parado. "Não, murahhasa effendi. São muçulmanos."

"Mas então... como se explicam as roupas europeias que eles vestem?"

O sorriso alargou-se.

"Ah, isso é o que pilharam aos Arménios, ef fendi."

O olhar de Krikor toldou-se de imediato. Desviou a atenção da janela, invadido de um pudor súbito, como se o simples facto de contemplar aquela gente constituísse uma ofensa à memória das vítimas.

"Estou a ver."

Percebendo a perturbação que a informação suscitara no seu parceiro de assento, o oficial turco inclinou a cabeça.

"Para alemão, o senhor fala razoavelmente turco", observou. "Interessa-se porventura pelo destino dos Arménios?"

O alarme soou na cabeça de Krikor. A última coisa que lhe convinha era dar a entender as suas simpatias e sobretudo largar pistas que denunciassem a sua identidade.

"Eu?", perguntou num tom quase indignado. "Que ideia! Claro que não! Porque me haveria de interessar por essa gente? Só tiveram o que mereciam, esses... esses traidores!"

O sorriso regressou ao rosto do turco, agora condimentado com um toque de satisfação.

"Ah, folgo muito em saber que pensa assim, effendi.'" Bateu com a palma da mão no peito, impante de orgulho. "Sabe, eu próprio sou responsável pela morte de mais de quarenta mil arménios, sabia?"

A informação esbofeteou Krikor, que esbugalhou os olhos e encarou o seu parceiro com uma expressão horrorizada.

"O que?"

"É verdade", confirmou o oficial, confundindo o espanto reprovador do seu interlocutor com admiração benigna. Colou a mão direita à cabeça, como se fizesse continência. "Sou o capitão Shukri. Ao seu serviço, murahhasa effendi."

"Como está?", cumprimentou-o Krikor com um semblante impassível, esforçando-se por não deixar transparecer o que pensava. "Conte-me lá isso dos arménios que diz que matou. Como é que um homem mata quarenta mil pessoas? Está a exagerar!"

"Juro por Alá, effendi! Na verdade até foram quarenta e duas mil pessoas, mais coisa, menos coisa."

"Mas... como?"

O oficial turco afastou o olhar para a janela e contemplou uma estrada que serpenteava pelas montanhas.

"Sou capitão dos gendarmes de Yozgat, effendi", explicou. "Como tal, recebi ordens do vice-governador, Mehmet Kemal, para escoltar as caravanas de arménios e proceder à respectiva paklayalum."

"Paklayalumr

A expressão era nova para Krikor.

"Limpeza", esclareceu o capitão Shukri. "Usamos a palavra para referir o extermínio dessas populações." Desfocou os olhos, como se a sua mente viajasse pelas estradas por onde arrastara os arménios, e fez um estalido com a língua. "Começámos por prender todos os homens de Yozgat e levá-los para fora da cidade, onde os matámos a golpes de machado e picareta. Uma vez limpámos assim oito mil arménios, tudo de uma assentada. Depois foi a vez das mulheres e das crianças."

"Mataram-nas da mesma maneira?"

"Não, claro que não. Começámos por afixar cartazes a anunciar que iriam ser deportadas e demos-lhes três dias para se prepararem. Depois fomos avisar as populações curdas e turcas das aldeias ao longo da estrada, dizendo-lhes que vinham aí arménias cheias de ouro e dinheiro, além de muitos bens e raparigas bonitas para os haréns. Nem imagina o entusiasmo dos aldeãos quando souberam que iam deitar as mãos a tamanhas riquezas! De modo que, quando chegou o dia, escoltámos as arménias para fora da cidade e deixámo-las ser atacadas." Apontou para a janela. "Daí que se veja tanta gente a misturar kaftan e shalvar com roupas cristãs. Vestem o que saquearam."

A atenção de Krikor voltou-se de novo para o exterior. Tentou identificar mais alguém vestido com aquela mistura bizarra de estilos, mas a estrada tinha desaparecido e apenas se lobrigava o recorte serrado da cordilheira das Taurus. Imaginou Marjan e a mãe, se calhar também a pequena Khenarig, arrastadas por estradas remotas às mãos de homens como este capitão Shukri que agora tanto lhe repugnava mas que se via forçado a suportar com um sorriso e bons modos. Onde estariam elas agora? Que destino lhes fora reservado? Conseguiriam sobreviver?

Talvez o turco o pudesse elucidar.

"E depois?", perguntou com um ligeiro tremor na voz, o olhar ainda fixo na paisagem por se sentir já incapaz de encarar o seu interlocutor. "O que aconteceu a essa gente?"

"Já lhes tínhamos morto os homens e não queríamos sujar as mãos de sangue das mulheres e das crianças, claro", disse o oficial. "De modo que nos limitámos a levar as sobreviventes dos ataques numa viagem interminável, sempre com o cuidado de lhes limitar o acesso à água e aos alimentos. Quase metade morreu assim. Quanto às que sobreviveram, eu próprio me desloquei às aldeias turcas e convidei as populações a emboscarem as caravanas. Uma vez que já não havia muitos bens entre as deportadas, disse-lhes que era a sua obrigação religiosa juntarem-se à jihad decretada pelo xeque ul-Islam e matarem as arménias. Como as balas são caras, as pessoas pegaram em tudo o que tinham à mão e prepararam a emboscada. Machados, foices, mocas, pás... foram com tudo."

"E atacaram-nas?"

"Claro", assentiu o capitão Shukri. "Era o seu dever religioso, effendi. Escolheram primeiro as virgens e as mais bonitas para os seus haréns e deram cabo das restantes no meio de uma grande gritaria. O sangue empapava a estrada."

O oficial calou-se e Krikor manteve o olhar nublado preso à paisagem que corria pela janela. Pelas palavras do turco vislumbrou o destino de Marjan e do resto da família e teve dificuldade em conter os soluços. As lágrimas começaram a brotar-lhe dos olhos e a escorrer-lhe pelo rosto. O que lhe valia é que se mantinha voltado para o exterior e ninguém lhe conseguira ainda ver os olhos húmidos de comoção.

Precisava de se dominar.

Pensou nesse instante nas palavras do avô Sisag à saída da casa de Kayseri e percebeu que o velho tinha razão. Enquanto ele vivesse, um pouco de Marjan viveria também. Marjan, Khenarig, Caroun, Arshalous, Hagop, o avô Sisag, um pouco de todos os Kinosian viveria com ele. Mas se ele também morresse, todos morreriam por completo e tudo havia sido em vão. Tinha de sobreviver. Era uma obrigação para com Marjan e todos os outros. E, se queria sobreviver, tornava-se imperativo que reassumisse o domínio das emoções.

Respirou fundo, pensou nas suas especiais responsabilidades enquanto sobrevivente e, tão depressa como começara, parou de chorar. A pele permanecia, contudo, húmida de lágrimas, pelo que tirou o lenço do bolso e secou a cara.

"Que se passa, effendi?", perguntou o capitão Shukri. "Ficou incomodado com o que lhe contei?"

Krikor encarou enfim o seu interlocutor e forçou um sorriso.

"Nós, os Austríacos, somos cristãos", afirmou. "Custa um pouco tomar conhecimento dessas práticas. Parece-nos errado."

O oficial turco abanou a cabeça.

"Limitámo-nos a cumprir o nosso dever."

O major Hammans, que nada entendia da conversa por ela decorrer em turco, alçou os olhos do livro e projectou um esgar de censura na direcção do seu companheiro de viagem, tornando evidente que considerava o diálogo com um oficial turco um risco dispensável. Krikor sabia que o alemão tinha razão, claro, mas sentia uma necessidade imperiosa de conhecer pormenores sobre as caravanas da morte; só assim poderia talvez entender o que os Turcos haviam feito a Marjan, à sua família e a tantas e tantos dos seus conterrâneos.

"O senhor é muçulmano", disse Krikor para o turco, medindo com cuidado as suas palavras. "Não receia que, no Dia do Juízo Final, Deus o puna por esses... esses crimes?"

O capitão Shukri abanou a cabeça.

"De modo algum, effendi", exclamou com grande ênfase. "Não foram crimes. Pelo contrário, estas matanças significam que cumpri as minhas obrigações sagradas com Deus, com o Profeta, que a paz esteja com ele, e com o califa. O xeque ul-Islam emitiu uma fatwa para que matássemos os Arménios, não emitiu? O califa ratificou essa fatwa, não ratificou? Ora uma fatwa é uma ordem sagrada, como se emanasse de Deus. Não foi o Profeta, que a paz esteja com ele, que prometeu o Paraíso a quem fizesse a jihad? Assim, ao matar os Arménios limitámo-nos a cumprir as ordens de Deus. Porque nos puniria Ele por respeitarmos as Suas ordens?" Voltou a sacudir a cabeça. "Não, Deus não me irá punir por nenhum crime, effendi. Vai é premiar-me pelas minhas boas acções. Deus é grande."

A lógica era circular e incontornável, sabia Krikor, pelo que desistiu de argumentar por tal via.

"Mas matar aquela gente... mulheres, crianças, bebés, isso não o incomoda nada?", insistiu, apelando à consciência humana do seu interlocutor. "Vê-los morrer diante dos seus olhos a golpes de machado ou de foice, uma coisa dessas não assombra os seus sonhos?"

Foi só nesse instante que o turco respirou fundo e, baixando a cabeça, fechou as pálpebras, como se se preparasse para a oração.

"Allah boyle olumu kintseye gostermesin", sussurrou de um só fôlego, talvez mais a falar consigo mesmo do que com o viajante que lhe fizera a pergunta. "Que Deus nunca mostre tais mortes a ninguém."

A ondulação prateada do mar de Mármara, quebrando-se em bofetadas de espuma sobre as rochas da costa, foi o primeiro sinal de que se aproximavam do destino. Havia três dias que estavam no comboio, com paragens em múltiplas estações e apeadeiros, algumas delas de várias horas, mas então a composição já acelerava ao longo da linha de costa numa corrida desenfreada para Constantinopla.

Ao fim de algumas horas começaram a aparecer casas, primeiro dispersas, depois mais e mais aglomeradas, até que o comboio abrandou sensivelmente a sua progressão. Uma excitação miudinha tomou conta de Krikor. O pesadelo estava à beira do fim, mas até ao último instante poderia haver uma reviravolta. Será que a guia de marcha da Holzmann estava em conformidade? E se o controlo de segurança notasse alguma anomalia na fotografia fraudulentamente inserida no passaporte? As possibilidades de ocorrer um problema que deitasse tudo a perder eram imensas, algo que ele tinha especialmente presente.

"Não se preocupe", murmurou o major Hammans, intuindo a inquietação do seu companheiro de viagem. "Vai correr tudo bem, fique descansado."

A marcha do comboio abrandou ainda mais, sucedendo-se os apitos até que a composição voltou a reduzir a velocidade, fazendo um taque-taque cada vez mais pausado nas junções dos carris. As linhas multiplicaram-se subitamente, a composição entrou enfim na estação e imobilizou-se com um suspiro longo e exausto, seguido de um solavanco final. Tinham chegado.

Os passageiros pegaram nas malas e começaram a sair em fila indiana para a plataforma. Krikor e o major Hammans apearam-se e olharam em redor. A azáfama na Estação Haidar Paxá era enorme. A multidão formigava junto às barreiras que bloqueavam a saída, onde cada viajante estava a ser inspeccionado à vez pelo controlo de segurança. Ouviram-se de repente uns gritos e os passageiros viram soldados turcos a pegar num civil e a arrastá-lo pela plataforma enquanto lhe davam pontapés e o vergastavam.

"Um arménio", observou um viajante turco. "O cão foi apanhado a fazer-se passar por árabe."

O incidente intensificou o nervosismo de Krikor; parecia-lhe impossível que os homens do controlo não notassem as anomalias nos seus documentos. Sentiu uma dor aguda no estômago, de fome e de medo, mas suspirou e resignou-se à sua sorte. Tinha feito todos os possíveis para escapar da armadilha montada pelos Turcos aos Arménios e, contra todas as probabilidades, havia conseguido chegar às portas da capital otomana. Não havia mais nada que pudesse fazer além do que tinha feito. O seu destino estava entregue a Deus; seria Ele a decidir o que lhe aconteceria nesse instante fatídico.

A fila avançou aos poucos, até que Krikor e o major Hammans chegaram diante do controlo. Vendo um oficial alemão diante dele, o militar turco fez-lhe sinal de que passasse para o posto alemão, a dois metros de distância, mas travou Krikor.

"Ele está comigo", disse o major Hammans com a sua voz de comando. "Será controlado pelos nossos militares."

O turco hesitou, mas acabou por encolher os ombros e deixar Krikor passar. A última coisa que queria era arranjar problemas com um oficial do Reich.

Os dois recém-chegados apresentaram-se diante de um capitão alemão que fez continência ao major Hammans, mas não deixou de lhe solicitar os documentos. Estavam em ordem, pelo que passou para Krikor. Folheou o passaporte e arqueou uma sobrancelha desconfiada quando comparou a fisionomia do viajante com o nome e a nacionalidade referenciados no documento.

"O senhor é austríaco?", estranhou.

"Pai austríaco", retorquiu Krikor, que já se preparara para aquela dúvida, "mãe de origem grega."

O capitão do controlo, sempre zeloso, foi verificar a identidade da mãe referenciada no passaporte.

"Katja Helberg não me parece um nome grego..."

"Grega não, de origem grega", sublinhou Krikor. "A minha avó materna nasceu em Esmirna e casou com um oficial da marinha mercante austríaca, o capitão Hermann Helberg, meu avô."

O oficial do controlo procurou no passaporte informações que contradissessem esta explicação, mas como nada encontrou decidiu passar à guia de marcha da Holzmann. Leu o texto, estudou o selo e o carimbo e pareceu-lhe tudo em ordem, pelo que acabou por devolver os documentos ao seu proprietário.

"Pode passar, Herr Zeitz."

Minutos depois já os dois recém-chegados passeavam diante dos cais marítimos de Kadikoy e de Haydar Paxá e contemplavam o Serralho do outro lado do mar. Fazia um sol glorioso, com apenas pequenos farrapos de nuvens a deslizarem pelo céu azul-pálido, como tiras rasgadas nas alturas. Apanharam o vapor para Gaiata e, diante do Bósforo congestionado de tráfego, contemplaram as grandiosas cúpulas de Hagia Sophia e da mesquita de Suleymanye a destacar-se sobre o casario de Constantinopla, as colunas esguias dos minaretes enquadrando-as como guardas silenciosos.

Despediram-se com um aperto de mão no cais de Gaiata e Krikor ficou um minuto a observar o major Peter Hammans afastar-se rumo à vizinha estação de Sirkeci antes de ele próprio voltar as costas e seguir à sua vida. Depois de inquirir direcções, escalou as ruas estreitas até ao bairro de Pêra e desaguou enfim no destino, a fachada de uma bela residência com uma magnífica vista para o Corno de Ouro.

Quis bater à porta, mas a presença de uma sentinela plantada diante da casa dissuadiu-o. Além do mais, não era difícil perceber que, considerando a hora e as responsabilidades do homem que procurava, não o encontraria ainda ali. Foi por isso para o outro lado da rua e sentou-se à sombra de uma árvore. Tinha fome, mas a sensação já não o afectava da mesma maneira, pelo que aguardou pacientemente o evoluir dos acontecimentos.

Ao cair da noite viu um coche imobilizar-se diante da casa e reconheceu a figura que se apeou e se encaminhou para a porta. Sem perder tempo, o coração aos saltos e a ansiedade a consumi-lo, Krikor atravessou a rua a correr e cortou o caminho ao recém-chegado.

"Cuidado, effendi!"

Pensando que o dono da casa ia ser agredido, a sentinela interveio de pronto e derrubou o desconhecido, imobilizando-o no chão. Krikor tentou libertar-se, mas estava demasiado debilitado e o soldado turco era pesado.

"Sou eu!", gemeu. "Krikor Sarkisian! Krikor Sarkisian!"

Passada a surpresa inicial, e ao ouvir estas palavras, o dono da casa acocorou-se e, inspeccionando a face incrivelmente ossuda do desconhecido, encarou-o de olhos arregalados e abriu a boca, estupefacto ao reconhecer o rapaz diante dele.

"Krikor? És mesmo tu?"

"Sou eu, effendi. Sou eu."

Obedecendo a uma instrução do dono da casa, a sentinela libertou a sua presa. Krikor levantou-se devagar e viu os braços desfraldados diante dele, atraindo-o como uma bóia.

"Alá é grande!", exclamou o dono da casa, apertando-o com força contra o peito. "Alá é grande e trouxe-te de volta, Krikor!" Prolongou o abraço. "Ah, como te procurámos!"

Foi nesse instante, e só nesse instante, que Krikor Sarkisian se sentiu desfalecer e se entregou com abandono, sabendo-se enfim em segurança entre os braços de Salim Bey, ministro otomano das Finanças e velho amigo e protector do pai. Antes de perder os sentidos, porém, a última imagem que se formou na sua mente não foi a do turco que o salvava, mas a de Marjan, que perdera nas estradas sem fim do calvário arménio.

 

                 A arte é duradoura, A vida é breve.

                           HIPÓCRATES

 

O homem girou sobre os calcanhares, como um pião, deu três passos de corrida e saltou, abrindo as pernas como se fizesse a espargata no ar, e depois saltou mais uma e outra vez, sempre ao ritmo infernal da música. Um grupo de três dançarinos juntou-se a ele com movimentos sincronizados, ora elegantes, ora marciais, correndo e pulando enquanto a multidão aplaudia com cadência frenética, acompanhando as batidas e os movimentos dos homens, até que estes completaram umas complicadas acrobacias, a música atingiu o auge e os aplausos se tornaram caóticos diante dos bailarinos ofegantes, que, terminada a sua actuação, se curvavam em vénias à assistência.

"Foi a dança dos Cossacos, mesdames et messieurs", exclamou o mestre de cerimónias no momento em que saltou para o pequeno palco no centro da sala. "Uma deslumbrante exibição de hopak feita pelos nossos bravos soldados das estepes!"

O ambiente no Balalaika, o cabaret russo no coração de Montmartre, vibrava de energia e sensualidade. Raparigas russas seminuas circulavam entre as mesas a servir bebidas, tabaco e conversa fácil, enquanto Kaloust e Hendryk bebericavam taças de champagne e iam apreciando as beldades que deambulavam pelo estabelecimento a exibir as pernas e o rego dos seios.

"Uma destas mocinhas é que vinha mesmo a calhar ao seu rapaz", observou o presidente da Royal Dutch Shell. "Como anda ele? Já recuperou da sua aventura no Império Otomano?"

Kaloust abanou a cabeça em sinal de desalento.

"Oh, não me diga nada!", suspirou. "A guerra já acabou há cinco anos e ele percorreu a Anatólia e a Síria à procura da rapariga por quem se embeiçou. Um martírio!"

"Ao menos apanhou-lhe a pista?"

"Até agora, quase nada." Assentou os cotovelos sobre a mesa e indicou um calendário a assinalar 1923. "Em todo este tempo, a única coisa que encontrou foi uma sobrevivente que a conhecia e que disse tê-la visto com a mãe a caminho de um campo de morte na Síria, um sítio horrível chamado Ras-al-Ayn." Suspirou de novo. "Não é difícil imaginar o que lhe aconteceu, não lhe parece? O rapaz foi para a Síria mas não descobriu mais nada... a não ser relatos da matança de Arménios na região, claro. Uma tristeza."

"E agora?"

O pai de Krikor encolheu os ombros.

"Agora nada. Lá se convenceu de que ela morreu, coitado, e desistiu." Estalou a língua com desagrado. "Anda agora na boa vida, o mandrião. Não faz nada."

"Deixe-o. Depois do que passou, é importante que descontraia. Ajuda-o a esquecer."

"É o que a minha mulher me diz. Mas isso não me agrada muito. O rapaz tem de fazer alguma coisa na vida, que demónio!"

Um grupo de bailarinas bamboleava-se nesse momento no palco do cabaret, atraindo os olhares dos dois homens e dos restantes clientes do Balalaika. Hendryk e Kaloust calaram-se por momentos, contemplando os seios saltitantes e as nádegas reluzentes que animavam os olhares masculinos.

"Ao menos vocês têm a Arménia", observou o holandês. "Sempre é alguma coisa."

Kaloust abanou a cabeça.

"A Arménia não tem futuro."

"Ora essa, porquê? O Tratado de Sèvres não vos deu a independência?"

"Qual independência? Tem estado atento ao que se passa por aqueles lados?"

"Nem por isso, confesso."

"Nota-se. Os Turcos perderam a guerra, não é verdade? Pois apesar disso reassumiram o controlo da Anatólia, ocuparam toda a Arménia que pertencia ao Império Otomano e fizeram uma nova matança de arménios, mesmo nas barbas dos Aliados. E os bolcheviques anexaram a outra parte do território arménio." Fez um gesto enfático com a mão. "A minha pátria, meu caro, não passa de um sonho de poetas."

Pegou no copo de vodka e engoliu-o de uma vez, com a fúria de quem queria apagar o tema da conversa. Falar da Arménia irritava-o. Quantos não tinham morrido em nome daquela miragem?

O som tenso de uma batida irrompeu no cabaret, anunciando o número seguinte com solenidade.

"Mesdames et messieurs", proclamou o mestre-de-cerimónias ao som da batida. "O Balalaika tem o prazer de apresentar... Madaaaaame Moscooooou!"

Uma loura voluptuosa subiu ao palco a menear as formas carnudas, embalada pelos primeiros acordes de uma nova canção. Eram já duas da manhã no cabaret russo de Paris e chegara o momento que atraíra Hendryk e Kaloust ao estabelecimento. Dizia-se entre os apreciadores parisienses dos encantos femininos que não havia na cidade exemplar mais extraordinário, razão pela qual os donos do clube nocturno a reservavam para hora tão tardia, na fundada convicção de que ninguém abalaria enquanto ela não aparecesse. A loura tornara-se cabeça-de-cartaz do Balalaika e os responsáveis do cabaret não o ignoravam. Começaram até a cultivar o mistério em torno daquela mulher e baptizaram-na com o nome de Madame Moscou, quase como se ela simbolizasse a beleza selvagem da pátria perdida, a Santa Rússia.

"Belo pedaço!", confirmou Hendryk, arrebatado pelas formas sinuosas da loura. "Mas que mulheraço, sim senhor!" Soergueu uma sobrancelha. "Será mesmo russa?"

Kaloust esboçou um sorriso discreto.

"Meu caro, aqui só há russas."

Como em resposta, a cantora começou um solo pungente e melancólico, acompanhado pelos violinos e pelo piano da banda do cabaret.

Rastsvetali yabloni i grushi, Poplyli tumani nad reky Vyhodila na bereg Katyusha Na vysokij bereg, na krutoy

"Bravo! Bravo!"

A plateia masculina irrompeu em aplausos, seduzida pela voz rouca e sobretudo pelo corpo voluptuoso que os longos cabelos de valquíria eslava enfeitavam como uma coroa de filamentos de ouro, mas nenhum homem mostrava maior entusiasmo que Kaloust. De olhos arregalados, pôs-se de pé num salto e aplaudiu com vigor entusiástico a actuação da estrela do Balalaika. Nunca vira mulher assim e uma irresistível vontade de a conhecer apossou-se dele

Quando a russa abandonou enfim o palco, o arménio chamou o gerente do cabaret e inquiriu-o quanto à identidade da loura enigmática.

"É Madame Moscou, m'sieur", disse o gerente, sempre solícito mas hermético. "Trata-se da maior atracção do nosso estabelecimento."

Kaloust acenou-lhe com uma nota de cinquenta francos.

"Isso já eu sei, homem. Mas como se chama ela?"

O homem recolheu a nota e inclinou-se para os dois clientes, um ar de mistério a enfeitiçar-lhe o olhar.

"É a senhora Khan", confidenciou num sussurro. "Baronesa Khan."

"Baronesa?"

"Os tempos estão difíceis, m'sieur", explicou o gerente com um encolher de ombros resignado. "Desde que os bolcheviques usurparam o poder na Santa Rússia que nós, os russos brancos, temos de fazer pela vida..."

Kaloust lançou um olhar para a porta que conduzia aos camarins, por onde a loura desaparecera logo a seguir à actuação, antes de voltar a fitar o anfitrião.

"E existe alguma maneira de... enfim, de travar conhecimento com a baronesa?"

O responsável do cabaret hesitou.

"Eu... receio que a baronesa Khan seja uma pessoa muito reservada, m'sieur. Lamento."

O cliente extraiu do interior do casaco duas notas de cem francos e brincou com elas na ponta dos dedos.

"Tem a certeza?"

Os olhos do gerente saltitaram entre as notas e a porta que conduzia aos camarins. Depois de vacilar uma última vez, dividido entre a cupidez e o dever de proteger a estrela do seu estabelecimento, pegou nas notas com um movimento rápido e guardou-as no bolso.

"Para si", sorriu, "a baronesa com certeza abrirá uma excepção."

A loura voluptuosa apareceu quinze minutos depois, guiada pelo gerente do Balalaika e na companhia de um homem mais velho e com farda de oficial do exército do czar.

"Baronesa Khan e marido", anunciou o responsável do cabaret ao chegar junto à mesa, fazendo um floreado com as mãos. "O general Atash Khan comandava o regimento de hussardos da Segunda Brigada do Primeiro Corpo de Cavalaria do Exército Imperial Russo."

O oficial bateu os tacões à maneira militar, e inclinou a cabeça.

"Ao vosso serviço!"

Acedendo ao convite de Kaloust, que depressa se refez do choque de ver a loura acompanhada pelo marido, o casal recém-chegado instalou-se à mesa dos dois homens do petróleo. O arménio mandou vir champagne, presenteou o casal convidado com uma terrina de caviar e ofereceu-lhe os melhores havanos enquanto o grupo entabulava conversa.

"Chegámos a Paris, eu e a minha Slava, com uma mão à frente e outra atrás", explicou o general Khan, pegando no copo de champagne que o empregado acabara de encher. "Viemos sem nada, como cães escorraçados da nossa própria terra, sem que..."

"Da minha terra", corrigiu Slava. "Não te esqueças que tu vieste da Pérsia."

O general engoliu o champagne de uma assentada e, depois de pousar o copo e limpar os beiços com as costas da mão, ergueu um dedo como se fizesse uma proclamação solene.

"Para onde um dia hei-de voltar! À Rússia, nunca mais! Terra de loucos! Agora quem manda são os tovaritch, já viram isto? Os novos governantes chamam-se tovaritch uns aos outros e aos seus lacaios, fingindo que se tornaram todos camaradas! Hmpf! Ainda por cima, aqueles atrasados mentais atreveram-se a mudar o nome ao país! Desde o ano passado que a Rússia já não existe! Agora chamam-lhe União Soviética! Já viram uma coisa assim? União Soviética! Que desplante!" Voltou a encher o copo de champagne e depois levantou-o, à maneira de um brinde. "O meu destino, meus caros amigos, é a Pérsia! A minha família veio de lá e é para lá que hei-de voltar." Engoliu a bebida. "Ah, bela pinga!" Reprimiu um arroto. "Sabem, o meu regimento de hussardos tinha uma mão-cheia de persas, gente que nutre por mim uma fidelidade canina e com quem mantenho contacto assíduo. Garanto-vos que com esses homens um dia serei xá! Xá, digo-vos eu!"

Enquanto o general acendia o seu charuto, a baronesa revirava os olhos verdes luminosos com enfado, como se já estivesse cansada de o ouvir dizer a mesma coisa.

"Oh! Sonhos, sonhos...", murmurou com acidez. "A ti basta-te beber uns copos e dá-te logo para a parvalheira."

O general Khan desferiu uma palmada na mesa com estrondo, como se tivesse sofrido um súbito ataque de fúria.

"Blin, não acreditas, mulher? Não acreditas no teu homem?"

"Se vais para xá, o que estou eu a fazer nesta espelunca?", quis ela saber, indicando o cabaret com um gesto largo. "A estagiar para imperatriz da Pérsia?" Fez um estalido impaciente com a língua. "Não brinques comigo..."

A tensão no casal era palpável, o que não escapou à atenção de Kaloust. Tornava-se evidente que a baronesa se sentia desiludida com o rumo que a sua vida havia tomado e parecia responsabilizar o general por tudo o que lhe sucedera. O arménio encheu-a por isso de atenções, a que de início ela correspondeu apenas com o evidente intuito de irritar o mando, mas Kaloust acabou por lhe intuir a fraqueza pelo luxo. Afinal não tinha casado com um homem muito mais velho? Pareceu-lhe evidente que fora atraída pela posição social que ele ocupava no apogeu da sua carreira militar à frente dos hussardos, e o arménio percebeu que havia ali qualquer coisa que podia explorar. Encomendou por isso mais champagne e caviar, que pagou de pronto com uma nota que extraiu de um grosso maço de francos. A intuição foi confirmada pela reacção de Slava quando viu todo aquele dinheiro. com o interesse aguçado e um brilho cúpido a cintilar-lhe no olhar marinho, a russa inclinou-se para o seu admirador abastado.

"Já vi que o cavalheiro é um homem bem-sucedido", observou a loura, aveludando de repente a voz. "O que faz na vida?"

"Lido com petróleo, minha senhora. Faço fortunas incalculáveis!"

Slava ronronou como uma gata.

"Ah, um homem destes é que me fazia falta...", sussurrou. Lançou um olhar ressentido na direcção do marido, que trocava umas palavras com Van Tiggelen. "Não é como o pobre tonto do Atash, que agora vive à custa das minhas actuações neste cabaret indigente. Eu, que já frequentei a corte do czar, veja lá!"

"Eu ouvi isso, mulher!", protestou o general, intrometendo-se inopinadamente na conversa. "Sabes bem que tenho planos para te providenciar sustento!"

"Pff, que planos?", ciciou a russa com desdém. "Estás a falar desse teu projecto louco de te tornares xá? Ou das negociatas que andas para aí a congeminar com os pulhas dos bolcheviques?"

"Não são negociatas! É arte! É preciso salvar a arte das garras daqueles ignorantes!"

A palavra arte soou a Kaloust como uma campainha, despertando-lhe a curiosidade e o interesse.

"O senhor negoceia em arte?"

O general Khan esboçou um gesto irritado com a mão, como se não quisesse entrar no assunto.

"São cá umas coisas minhas..."

O arménio não se deixou desencorajar; a sua intuição dizia-lhe que poderia haver ali algo de valioso a explorar. Não faltavam nobres russos arruinados em Paris a vender verdadeiras preciosidades.

"Sabe que sou um apaixonado por objectos de arte?", perguntou. "Devo dizer que o senhor me é simpático e teria muito gosto em ajudá-lo. Sei que os tempos estão difíceis para quem se viu forçado a escapar da revolução bolchevique e temos de ser uns para os outros, não é verdade?" Lançou-lhe um olhar melífluo, assim como quem estende a rede para ver se lhe cai algum peixe. "Se o senhor negoceia em arte, quem sabe se possuirá alguma coisa que me interesse..."

O persa abanou a cabeça.

"Oiça, estamos a falar de grande arte", disse num tom sobranceiro. "Peças de grande valor que só estão ao alcance dos mais ricos, entende? Não que duvide da sua capacidade financeira, caro senhor, mas, sejamos francos, não me parece que disponha dos meios suficientes para adquirir os tesouros em causa."

A conversa tornava-se definitivamente interessante.

"Acha que não?", sorriu Kaloust. "Pois desafio-o a testar-me. De que tesouros está o senhor a falar?"

"Estou a falar da creme de la creme. Estou a falar de obras só ao alcance de um Rothschild, percebe?"

Um sorriso sibilino formou-se no rosto do arménio.

"Meu caro general, eu sou dono de um Degas e de um Renoir. Entre outras pequenas coisas que adornam a minha singela colecção. Se houver por aí peças do mesmo calibre, pode ser que me interesse. Quem sabe?"

O olhar do general, até aí carregado de sobranceria, focou-se em Kaloust, perscrutando-o com súbito interesse; quem possuía obras daqueles dois artistas tinha de facto de ser alguém com grandes recursos.

"A sério?"

O arménio manteve o sorriso enigmático.

"Não tenho ar de brincalhão, pois não?", retorquiu. "De que peças de arte está o senhor general a falar?"

O antigo comandante dos hussardos ficou momentaneamente pensativo, como se examinasse o seu interlocutor. O general Khan considerava-se um excelente avaliador de homens, pelo que levou apenas um instante a convencer-se de que valia a pena correr o risco. Quando tomou a decisão, espreitou em volta, para se certificar de que não havia ouvidos indiscretos por perto, e, adoptando uma expressão conspirativa, arrastou a cadeira para se aproximar de Kaloust e inclinou-se para ele como se lhe quisesse segredar ao ouvido.

"Estou a falar dos maiores tesouros da Rússia", sussurrou no tom de quem partilha um segredo. "Tenho contactos que permitem intermediar compras fantásticas."

"Sim, mas compras de quê?"

Novo olhar desconfiado do oficial imperial em seu redor. Ninguém no Balalaika, porém, parecia prestar-lhes a menor atenção. Um grupo de bailarinas saltitava no palco do cabaret e os clientes quase as devoravam com o olhar. A menos que Kaloust fosse indiscreto, coisa que não parecia ser, o segredo manter-se-ia seguro.

Como se ganhasse coragem, o general Khan suspirou e

soprou enfim a informação. "Do espólio do Hermitage."

 

O museu de Petrogrado, a antiga Sampetersburgo, tornou-se uma obsessão para Kaloust. O nome da célebre instituição russa martelava-lhe na cabeça sem cessar desde que escutara as palavras do general Khan, como se nada mais interessasse na vida que os tesouros guardados no Hermitage. O assunto levou-o a procurar de novo o conselho do maior entendido em arte do seu tempo, o seu amigo curador da National Gallery.

"O Hermitage?", questionou-o Kaloust com a perplexidade estampada na face. "Acha mesmo que será possível adquirir peças do Hermitage?"

Sir Kenneth Bark era um frequentador habitual das festas londrinas no número 38 de Hyde Park Gardens e foi na primeira oportunidade que o arménio o arrastou para o seu escritório com o intuito de o ouvir sobre o assunto. Havia já alguns anos que o curador da National Gallery se tornara o conselheiro da sua colecção de arte, guiando Kaloust pelos meandros complexos dos meios artísticos, pelo que lhe pareceu imprescindível consultá-lo sobre a grande questão do momento.

"Não sei se uma coisa dessas será possível", retorquiu o connaisseur inglês, acomodando-se na chaise longue junto à janela. "Mas se for..., que golpada!"

A ferver de entusiasmo, Kaloust foi preparar um whisky de malte que sabia ser do agrado do seu conselheiro.

"Deve haver aqui algum truque", alvitrou com mal contido entusiasmo, de costas para o visitante enquanto enchia o copo. "Os bolcheviques não podem ser loucos ao ponto de se desfazerem dos tesouros do Hermitage!"

Sir Kenneth encolheu os ombros.

"Sabe, essa gente vê a arte de uma forma diferente."

A bebida já preparada, o anfitrião aproximou-se do convidado, estendeu-lhe o whisky e instalou-se no seu sofá.

"Oh, que parvoíce! Como se pode ter uma visão diferente da arte?"

"Bem... nem todos a encaram da mesma maneira."

"Ora! A arte é a arte!"

Fazendo uma pausa deliberada, o curador da National Gallery provou um trago de whisky e, ao pousar o copo na mesinha diante dele, decidiu que chegara o momento de desfazer as ilusões que o amigo alimentava sobre essa questão.

"Acha que sim?", perguntou em tom retórico. "Então diga-me: o que é a arte?"

"Foi o próprio Sir Kenneth que o explicou uma vez. A arte é a forma que o homem encontrou para criar a beleza."

O inglês cruzou a perna.

"Essa definição está correcta", disse. "com excepção da palavra beleza, claro. A arte não serve necessariamente para criar a beleza."

A observação surpreendeu Kaloust.

"Que disparate é esse? Se não serve para criar a beleza, serve para quê? Acaso é possível conceber a arte sem a beleza? As duas coisas estão intrínsecamente associadas."

O visitante deitou a mão ao bolso interior do casaco e retirou um pequeno rectângulo de papel; tratava-se de uma fotografia.

"Nos últimos tempos ando sempre com isto no bolso para não esquecer as estranhas e invisíveis fronteiras do meu trabalho", disse, estendendo a imagem ao arménio. "Ora dê uma espreitadela e diga-me o que é."

Kaloust pegou no cliché e, ao reconhecer o objecto fotografado, esboçou um esgar enojado.

"Um urinol?!", exclamou, devolvendo de imediato o pequeno rectângulo como se ele pudesse estar conspurcado de urina. "Para que anda o senhor com uma porcaria dessas no bolso?"

Sir Kenneth pegou na fotografia e ergueu-a ao nível dos olhos, exibindo-a para enfatizar a sua importância.

"Isto chama-se La Fontaine", anunciou. "Foi exposto numa galeria nova-iorquina por um tal R. Mutt, que mais tarde veio a saber-se ser, nem mais nem menos, que um pseudónimo do artista francês Mareei Duchamp." Forçou um sorriso. "Ou seja, isto é uma obra de arte."

O arménio abriu a boca, atónito.

"O quê?"

"Duchamp pegou num urinol e, perto do final da guerra, apresentou-o para exposição na Society for Independent Artist's Exhibition, em Nova Iorque, como se fosse uma obra de arte. Os responsáveis dessa exposição recusaram-no, alegando não se tratar de um verdadeiro trabalho artístico, mas logo a seguir uma revista criticou a decisão, alegando que o urinol era arte porque o artista assim o decidiu. O curioso é que essa interpretação se tornou consensual.

La Fontaine foi imediatamente aceite enquanto objecto artístico numa importante galeria de Nova Iorque com a designação Madonna ofthe Bathroom." Acenou com a fotografia. "Pode não acreditar, meu caro Sarkisian, mas este urinol é mesmo uma obra de arte."

Kaloust sacudiu a cabeça enfaticamente.

"Não, não!", exclamou. "Uma coisa dessas não pode ser! Se um urinol é transformado em arte, então... então qualquer coisa é arte! Um lavatório, uns rabiscos idiotas de uma criança, até um pedaço de esterco! Isso não é possível!"

"O senhor tem de perceber que o conceito de arte mudou", argumentou Sir Kenneth. "Esta guerra foi demasiado terrível. O pesadelo das trincheiras, as grandes matanças em Ypres e Verdun, até o extermínio dos Arménios no Império Otomano, tudo isso pôs em causa o conceito de beleza. Os artistas começaram a achar que não faz sentido criar coisas belas num mundo que permite horrores destes. Foi por isso que a arte mudou. Muitos artistas deixaram de procurar o belo, preferem criar o feio porque o acham mais verdadeiro. Depois desta guerra, meu caro amigo, nada voltará a ser como dantes. Nem a arte."

A perplexidade do arménio era total.

"Criar o feio? Mas que tolice vem a ser essa?! A arte implica criação de beleza!"

"Implicava", corrigiu o curador da National Gallery. "Se for a ver bem, mais do que à criação da beleza, a arte dedica-se sobretudo a imitar o real. Repare, a acreditar em Platão, Sócrates disse que a arte é mimesis, ou imitação. Encarava assim a arte como uma espécie de espelho da realidade. Esta definição é mais verdadeira do que à primeira vista possa parecer."

"Não vejo porquê. Se tudo o que se quer é uma cópia exacta, basta uma fotografia das coisas." Abanou a cabeça. "Não, Sir Kenneth, a arte não é a imitação do real. É antes a introdução de beleza na recriação do real."

O visitante manteve a sua posição.

"Errado", insistiu. "Sabe, a chave da interpretação da definição de Sócrates foi-nos dada por Shakespeare. Em Hamlet o grande poeta e explicou-nos que os espelhos não se limitam a reflectir a realidade, mas servem sobretudo de instrumentos de revelação da realidade. Quando Narciso se apaixonou por si mesmo no momento em que se viu no reflexo de um rio, não sabia que a imagem reflectida pelas águas era dele próprio. Essa revelação surgiu a seguir. Ou seja, a arte é um espelho no sentido em que nos revela a nós próprios ou nos revela o mundo à nossa volta de uma maneira que o olhar directo não consegue fazer."

Kaloust lançou um gesto na direcção da fotografia de La Fontaine que bailava entre os dedos do seu interlocutor.

"E em que medida isso faz desse... dessa nojeira uma obra de arte?"

"A arte revela-nos o real", repetiu Sir Kenneth. "Ao fazer do urinol uma obra de arte, Duchamp revelou-nos a fealdade do real. O mundo que aceitou o matadouro desta guerra só pode ser feio, e por isso só pode ser representado enquanto um lugar feio. Nesse sentido, o urinol de Duchamp é uma metáfora do nosso mundo. Ao contemplar o urinol, vemos algo de nós próprios reflectido nele, algo horroroso e imundo e revoltante. La Fontaine diz-nos que a realidade está ao nível da urina."

O anfitrião remexeu-se no sofá, inquieto e incomodado com esta forma nova de ver a arte.

"Oiça, Sir Kenneth, isso não pode ser uma obra de arte", replicou, indicando de novo a fotografia do urinol. "Se fosse, o que distinguiria esse urinol de Duchamp de um urinol qualquer que encontramos num quarto de banho público? Eles são exactamente iguais!"

O curador da National Gallery arqueou as sobrancelhas.

"A intenção", proclamou. "É isso o que separa a arte da realidade. A intenção."

O arménio pestanejou, visivelmente confuso.

"Desculpe, não percebo."

"Um urinol num quarto de banho público não é uma obra de arte porque a intenção de o expor não é artística. Já o urinol de Duchamp é uma obra de arte porque está concebido como veículo artístico, um objecto que exprime uma ideia. Os dois urinóis são exactamente iguais, a diferença está na intenção da sua exposição. Não se esqueça de que a revista argumentou que o urinol é arte porque o artista assim o decidiu. É como se a arte se definisse enquanto arte e o assinalasse por convenções que lhe são exteriores."

Kaloust arregalou os olhos, baralhado.

"Que convenções? Está a falar de quê?"

O curador da National Gallery manteve o olhar preso no seu interlocutor e percebeu que a sua mensagem ainda não tinha sido entendida.

"Imagine, meu caro Sarkisian, que via um homem de gatas a ladrar durante dez minutos. O que pensaria dele?"

"Que era doido, claro. Doido varrido."

"Se o homem estivesse num palco a ladrar durante uma peça em que todos os personagens são actores a fazer de cães, acharia mesmo que ele era doido?"

"Bem... claro que não. Aí estaria a representar."

"Então qual a diferença entre um homem a ladrar na rua e um homem a ladrar num palco? A intenção. E como nos apercebemos de que as intenções num caso e no outro são diferentes?

Pelo contexto, é evidente. Ou seja, por convenções externas ao homem. Neste caso, a convenção que nos indica estarmos perante uma obra de arte e não perante o real é o palco."

"Está bem, isso é assim no teatro", contrapôs Kaloust. "Mas uma coisa dessas não é válida nas outras formas de arte, como é evidente."

"Acha que não?" Ergueu a fotografia de La Fontaine. "Então o que é isto? Por que razão o urinol de Duchamp é um objecto de arte e um urinol num quarto de banho público não? Por causa do contexto, claro." Inclinou a cabeça e estreitou as pálpebras. "E um homicídio? Acha que é uma obra de arte?"

"Um homicídio? Uma obra de arte? Que ideia tão disparatada!"

"Será mesmo?" Apontou para a janela. "Se alguém matar à machadada uma pessoa ali em Hyde Park, isso é um crime hediondo. Mas se a personagem principal de Dostoiévski matar uma velhota à machadada em Crime e Castigo, isso é arte. Qual a diferença entre os dois homicídios? O contexto, mais uma vez. As convenções externas, como o palco onde o homem ladra, a exposição onde o urinol é colocado ou as páginas do romance onde é descrito o homicídio da velhota, é que nos indicam que estamos perante arte, não perante a realidade em si. A arte é a imitação da realidade enquanto veículo de significação que nos revela algo sobre a realidade. O prazer que fruímos na arte radica em sabermos que aquela representação não é o real, embora o possa imitar bem. Na verdade, quanto melhor imitar a realidade, num sentido literal ou figurado, melhor ainda é a arte. Não preferimos um actor que pareça natural a um actor que soe forçado? O que procuramos na arte é pois o simulacro, o 'faz de conta que', a ilusão de que estamos perante o real embora saibamos que não estamos."

"Mas não acha importante que essa ilusão implique uma estética, uma qualquer espécie de beleza?"

"Eu acho, mas isso é a minha opinião pessoal. O facto é que a beleza não é uma condição indispensável da arte. A partir do momento em que Duchamp fez de um urinol um objecto artístico, a arte deixou de se preocupar com a beleza."

"Oh, não diga isso!", protestou Kaloust. "Está a generalizar a partir de um caso isolado."

"Engana-se. Já ouviu falar de Picasso?"

"É um desses vanguardistas, não é?"

"Picasso é um artista que criou um movimento novo que se está a designar cubismo. A ideia é fazer uma arte que deixe de se preocupar com a mimesis da realidade física e passe a concentrar-se na mimesis do que está por detrás dessa realidade. Por exemplo, Picasso fez um quadro sobre umas prostitutas, que designou Lês Demoiselles d'Avignon, e desenhou o rosto de uma delas todo deformado. Isto porquê? Porque quis fazer a mimesis da sua alma, não da sua face aparente. A prostituta pode ser bela por fora, mas está podre por dentro."

"E então? Onde quer chegar com isso?"

"Não percebe? Esta ideia de retirar a beleza à arte está a espalhar-se pelos mais variados géneros artísticos. Começou na escultura com Duchamp, mas a pintura apresenta-nos agora quadros incompreensíveis, feios até, com as cores minimizadas e as formas obscurecidas, o rosto de uma mulher bela transformado por Picasso numa amálgama disforme. Na música temos este Stravinsky que se pôs a compor obras inestéticas, com pouca harmonia e fraca melodia, como Lê Sacre du printemps, que é absolutamente desagradável ao ouvido. Nas letras, romancistas como estes novos autores, este Joyce e esta Woolf, estão já a escrever obras ilegíveis, romances em que não há intriga e nada se passa durante páginas e páginas a não ser um arrazoado impenetrável de texto. A ideia que orienta os artistas deixou de ser o belo e passou a ser o horrível. Estes criadores modernos dizem que querem libertar a arte dos grilhões da estética e que a arte se define por não ter fronteiras nem definição. Se se acha que a beleza faz parte da arte, então destrua-se a beleza! É arte tudo o que o artista quiser. Tudo. Mesmo um urinol."

Kaloust esboçou um esgar horrorizado.

"Onde vai isto parar, meu Deus? O que vai ser da arte?"

O curador da National Gallery suspirou e, recostando-se na chaise longue, deixou descair os ombros.

"O horror da guerra destruiu a beleza na arte, meu caro Sarkisian. Receio que terão de passar muitos anos para que os artistas se voltem a preocupar com criar o que é belo."

Fez-se silêncio no escritório. Kaloust sentia-se estarrecido com o que acabara de escutar, ele que desde a infância vivia para a estética e não concebia a vida sem a beleza. Para uma pessoa assim, não era fácil digerir estas novidades que punham em causa tudo aquilo em que acreditava enquanto esteta e amante do que era belo.

"Então o que faço com as obras do Hermitage?", acabou por perguntar, quase receando a resposta. "Ignoro-as? Digo aos Russos que elas são belas e por isso não as quero?"

O curador fitou-o com intensidade, como se quisesse ver Kaloust para além dos seus olhos negros.

"Tudo depende do que desejar fazer da sua colecção", disse. "Tenciona apostar em arte bela ou em arte moderna?"

"Se entende por arte moderna esse Picasso e essas correntes modernas que cultivam o feio, não obrigado. Prefiro a arte bela."

Sir Kenneth Bark apoiou as mãos nas almofadas da chaise longue e ergueu-se devagar.

"Então conte comigo", disse com evidente satisfação. "Ajudá-lo-ei a identificar as peças mais belas da colecção do Hermitage."

A luz trémula das velas e as notas melodiosas que deslizavam dos dedos do pianista junto à janela criavam a atmosfera perfeita. O luxo do restaurante do Hotel Ritz impressionava qualquer pessoa, sabia Kaloust, mas nenhuma tanto quanto a mulher que se encontrava diante dele. Fitou-a, embevecido. Tinha cabelos de ouro, o olhar doce dos anjos, um pescoço altivo e pose de aristocrata. Uma obra de arte em carne e osso. Mergulhou os olhos negros nos verdes dela e suspirou. Ou muito se enganava, ou tinha-se perdido de amores.

"Este hotel faz-me lembrar os palacetes de Sampetersburgo", sussurrou Slava com melancolia. "Como tenho saudades dessas grandes noites de gala..."

"Não há razão nenhuma para o esplendor não regressar à sua vida, minha cara", argumentou o arménio, a voz enrouquecida de paixão. "Comigo a seu lado, o mundo voltará a ser seu..."

A baronesa que Kaloust convidara para jantar fez beicinho.

"Oh, não diga isso!", repreendeu-o. "O senhor tenta-me, mas o facto é que é casado."

"Também a Slava o é."

"Não por muito mais tempo", apressou-se ela a esclarecer. "Mas duvido que o senhor se separe da sua mulher."

"Por si, faço tudo."

A russa soltou uma gargalhada discreta e com um gesto distraído afastou os cabelos dourados.

"Ah, os homens...", exclamou, deixando a última sílaba prolongar-se. "Prometem tudo mas não cumprem nada."

"Não acredita em mim?"

Ela lançou-lhe uma expressão de desafio, a luz a cintilar-lhe nos olhos de gata.

"Separe-se primeiro dela e depois venha conversar comigo. Acredito em actos, não em palavras."

"Oh, não seja assim! A relação que tenho com a minha mulher é muito distante, creia-me. Não foi um casamento de amor, mas de interesses. Somos bons amigos, nada mais."

"Isso é o que todos os homens dizem às amantes quando não querem largar as mulheres. Já lhe expliquei que só acredito em actos. Se me deseja deveras, separe-se da sua mulher."

"Fá-lo-ei!", prometeu ele com total convicção. "Mas, bem vê, é um assunto delicado. Leva tempo e tem de ser tratado com pinças."

A baronesa recostou-se no seu assento e percorreu o restaurante com os olhos, fascinada com o luxo que a cercava. A elegância clássica e o ambiente selecto e requintado do Ritz estavam muito acima daquilo a que se habituara desde que fugira da Rússia e viera viver para Paris.

"O senhor vive mesmo neste hotel?"

"Há anos." O olhar acendeu-se-lhe diante da oportunidade; ainda bem que na semana anterior mandara embora a belle du jour. "Quer... quer espreitar a minha suíte?"

Ela estreitou as pálpebras e fitou-o com uma expressão severa de desagrado.

"Não seja inconveniente", repreendeu-o. "Por quem me toma?"

Apanhado em falta e percebendo que tinha ido longe de mais, Kaloust baixou a cabeça em penitência.

"Peço desculpa, a sua beleza deixa-me perdido e... e já nem sei o que digo. Perdoe-me."

Uma vez o pretendente disciplinado, o olhar de Slava voltou a amaciar e a atenção dela regressou à decoração do restaurante.

"O senhor colecciona mesmo quadros?"

"É verdade, e não são apenas quadros. A minha primeira colecção foi de numismática. Ainda a tenho. Nasceu do primeiro negócio que fiz, quando era criança, com um medjdeh otomano. Mas disponho também de uma colecção de tapetes orientais e outra de porcelanas da China. Isso, claro, sem falar nas minhas colecções de cerâmicas do Médio Oriente, de pratas, de móveis franceses setecentistas e de manuscritos antigos europeus e persas."

"Blin!", exclamou ela, impressionada. "Tudo isso deve custar uma verdadeira fortuna..."

"Oh, nem imagina. Felizmente os negócios correm-me bem e possuo amplos meios para financiar esta minha paixão. Sabe, os meus objectos de arte são os meus meninos. Os meus enfants!"

"Já vi que tem colecções muito variadas. De qual gosta mais?"

"De todas, claro. Mas reconheço que a pintura e a escultura são as meninas dos meus olhos. Seja de que forma for, contudo, o que verdadeiramente me apaixona na vida é a beleza e a harmonia."

A russa fingiu-se ofendida.

"Pensei que era eu..."

"Oh, mas com certeza!", apressou-se o arménio a rectificar. "A arte precisa de quem lhe dê alma, senão é oca, não tem sentido. Sendo a mais bela criação que Deus gerou na Terra, a baronesa seria a alma da minha colecção."

Ela riu-se, exibindo uma fileira perfeita de dentes brancos.

"Já percebi, quer coleccionar-me."

"E porque não? Uma mulher bonita é, de certo modo, uma obra de arte e a baronesa é a mais bela de todas. Se se entregasse a mim, o meu trabalho seria o de a esculpir e de a trabalhar, de cuidar de si, de a encher de diamantes e de vestidos, de levá-la a Monte Carlo e a Biarritz, de a tornar uma peça única, uma beleza sem igual."

Slava inclinou-se sobre a mesa, os cabelos loiros a refulgirem em contraluz, os lábios grossos a entreabrirem-se com sensualidade.

"Hmm... já vi que a vida consigo seria interessante", murmurou num miado carregado de promessas. "Diga-me, o que é mais importante para si? As mulheres ou a arte?"

"A baronesa."

"Oh, vá lá. Pelo que lhe ouvi no Balalaika, mais do que de mulheres o senhor anda à procura de peças para aumentar essas suas colecções..."

"Está a referir-se ao Hermitage? Sim, é verdade. Estou interessado no que o seu marido me disse. Já tenho aliás na minha posse um relatório sobre as principais obras do museu." Fez um ar pensativo. "Devo dizer que acho incrível que os bolcheviques se queiram desfazer dos maiores tesouros artísticos da Rússia. É mesmo verdade?"

"Parece que sim."

"São loucos!", exclamou Kaloust. "Doidos varridos!" Abanou a cabeça. "E o seu marido? Representa de facto as autoridades soviéticas ou aquilo era conversa?"

A russa encolheu os ombros.

"Sei lá", disse, bebericando o vinho. "Para falar com franqueza, não me quero meter nesse assunto. Qualquer negócio com os bolcheviques me deixa enojada. Prefiro ignorar."

O jantar abeirava-se do fim e já haviam ingerido uma quantidade apreciável de Château Margaux, o melhor vinho que a França produzira nesse ano de colheita vintage. Kaloust percebeu que tinha chegado o momento de fazer xeque-mate no jogo da sedução. Meteu a mão ao bolso e retirou uma pequena caixa embrulhada num laço dourado.

"É para si..."

Slava arregalou os olhos numa expressão de surpresa e, com risinhos de expectativa, desfez o embrulho e ficou com uma caixa da Cartier nas mãos. Abriu-a prontamente, revelando um anel ornado por uma pedra preciosa incrivelmente brilhante.

"Meu Deus!", exclamou com um gritinho. "Um diamante!"

"Para si só o melhor."

Levantando-se com um salto excitado, a baronesa contornou a mesa e abraçou Kaloust.

"Oh, meu pequerrucho, meu Kaloustik!", disse, beijando-o na testa. "Moi dorogoi! És o mais querido dos queridos, uma coisa verdadeiramente fofa, uma doçura de homem! Spassiba, spassiba!"

Quando ela o largou, o arménio tinha a testa esborratada de encarnado e as faces tão coradas quanto a cor do batom dela.

"Decerto mereço uma recompensa..."

Depois de lhe dar um último beijo, este na ponta do nariz, a russa regressou ao seu lugar e, já com o diamante a cintilar-lhe no dedo delgado, atirou-lhe um sorriso a lembrar-lhe as regras do jogo.

"Só se te separares da tua mulher, meu querido Kaloustikezinho..."

 

O ambiente quente e acolhedor no Pharamond, recortado pelas sombras fugidias e pelo halo amarelado dos candeeiros à meia-luz, pareceu abraçá-lo quando entrou com o guarda-chuva molhado. Um aroma a guisado e a cogumelos fritos flutuava no ar por entre um murmúrio suave de conversas que se cruzavam em voz tranquila. Depois de um curto passeio à chuva por Lês Halles, Kaloust abrigou-se com alívio no restaurante onde marcara o jantar. Entregou a gabardina ao empregado e esquadrinhou as mesas com o olhar até reconhecer o homem que, ao canto, se levantou e lhe estendeu a mão para o cumprimentar.

"Grandes mudanças no negócio do petróleo, hem?", observou Emanuel Nobel quando se sentaram ambos. "É impressionante como a guerra mudou tudo."

Olhando para o seu interlocutor, o arménio não pôde deixar de ficar impressionado com as mudanças que nele se haviam operado desde que o conhecera em Baku, muitos anos antes. A face longa e a testa alta eram as mesmas, mas a barba e o cabelo tinham-se tornado grisalhos e a pele perdera frescura. Será que também ele, Kaloust, envelhecera dessa forma? Não que Emanuel parecesse abatido; não o estava. Na verdade, continuava vigoroso e dinâmico, o olhar inteligente e vivo, o sorriso encantador. Mas a passagem do tempo deixara-lhe marcas indeléveis no rosto e fragilizara-lhe o corpo. O arménio não pôde deixar de perguntar a si mesmo se o sueco também acharia que o homem que se encontrava diante dele envelhecera. Sem dúvida que sim, embora no seu interior Kaloust achasse que permanecia exactamente a mesma pessoa.

"Na vida", observou ele com uma pitada de melancolia, "tudo muda, meu caro Nobel."

"É verdade, e nem sempre para pior", assentiu Emanuel. "É aliás o seu caso. Devo, de resto, tirar-lhe o chapéu. A forma como o senhor reabilitou a Turkish Petroleum company depois da guerra foi verdadeiramente notável. Notável, digo-lhe eu!" Ajeitou o guardanapo no regaço e inclinou-se para o seu interlocutor. "Como o fez?"

Kaloust baixou os olhos, simulando modéstia.

"Oh, não foi nada de especial. Tratou-se meramente de acomodar os interesses das várias partes e de fazer ver a todos que é melhor cooperarmos do que destruirmo-nos mutuamente. Isso conseguiu-se graças a um exercício de arquitectura artística da minha parte, de modo a conciliar as petrolíferas e pô-las a trabalhar no mesmo sentido. Coisa simples, como vê."

Esta última observação foi expressa com ironia e arrancou uma gargalhada bem-disposta a Emanuel.

"Uma coisa dessas é tudo menos simples", exclamou. "O senhor conseguiu meter a França na Turkish, à custa das acções alemãs, e também o conglomerado americano, à custa das acções da Anglo-Persian. Esteve por trás do Tratado de São Remo, que fez a divisão dos interesses petrolíferos mundiais no pós-guerra. Como se isso não bastasse, manteve intacta a sua fatia de cinco por cento e, a cereja em cima do bolo, logrou impor a todos esses tubarões a cláusula de cooperação e partilha de descobertas petrolíferas. É obra!"

"Bem, não foi assim nada de tão extraordinário", insistiu o anfitrião. "Além do mais, essa cláusula limita-se a defender os interesses de toda a gente, não é verdade?"

"Não é algo de extraordinário?", exclamou o sueco, quase escandalizado. "Não se faça modesto, meu caro! O senhor sabe tão bem como eu que a última coisa em que as petrolíferas pensam é em cooperar com as concorrentes! Todas querem destruir as outras e vivem obcecadas com esse objectivo. Conseguir fazê-las subscrever uma cláusula de cooperação que as obriga a partilhar com as restantes qualquer descoberta que façam no território otomano é uma proeza que só quem anda neste meio é capaz de compreender!"

"Já não é território otomano", corrigiu Kaloust. "Agora aquilo chama-se Turquia."

"O que quer que seja. Mas o que interessa é verdadeiramente a Mesopotâmia, não é verdade?"

"Continua desactualizado, meu caro Nobel. A Mesopotâmia também mudou de nome. Agora é Iraque e acabou de se tornar independente."

Emanuel Nobel encolheu os ombros.

"Eu sei, mas ainda não me habituei aos novos nomes, o que quer que lhe faça?" Ajeitou o guardanapo no regaço. "De qualquer modo, vocês estão perante um problema incómodo, não lhe parece? A Turkish Petroleum Company tem uma concessão petrolífera sobre o território da Turquia ou sobre o território da Mesop... uh... do Iraque?"

"A concessão que conseguimos do grão-vizir em 1914 é sobre todo o território que pertenceu ao Império Otomano", esclareceu Kaloust. "É evidente que, com a guerra, tudo mudou. Mas a concessão é a mesma. Como ela se refere ao antigo território otomano, forçosamente inclui a Turquia... e o Iraque, claro." Baixou a voz. "De resto, supomos que, a existir, o essencial do petróleo se encontre na antiga Mesopotâmia, pelo que nada faria sentido se a concessão não contemplasse o Iraque."

"Pois, mas é preciso que o novo governo do Iraque esteja de acordo. Os Iraquianos confirmaram essa concessão?"

Passando os dedos pelo bigode aparado com cuidado meticuloso, Kaloust balançou a cabeça com suavidade.

"Acabaram de o fazer." Soergueu uma sobrancelha. "Mas só depois de eu ter mandado entregar quarenta mil libras esterlinas ao rei Faisal, claro."

Nobel não ficou chocado. Conhecia demasiado bem como se formavam os processos de decisão para ficar surpreendido.

"Ah, bom", anuiu com um sorriso entendedor. "Então só falta descobrir o petróleo, não é?"

Os dois homens ficaram mais algum tempo a discutir as mudanças operadas no mundo do petróleo, e em particular as consequências da revolução bolchevique, da desintegração do Império Otomano após a Grande Guerra e do posicionamento dos Franceses e dos Americanos na Turkish Petroleum Company, onde já se encontravam Kaloust, a Anglo-Persian e a Royal Dutch Shell. Era um tema que os apaixonava a ambos, mas foi na altura em que chegaram à sobremesa que o arménio levantou a verdadeira questão que o levara a convidar o magnata sueco para jantar.

"Noutro dia cruzei-me com um tipo que se apresentou como sendo o general Khan, comandante de um regimento de hussardos no tempo do czar", disse. "Sabe quem é?"

Emanuel sorriu.

"O general Khan? Então não sei? Era famoso por causa da mulher, uma tal... Ai, como se chama ela?"

"Slava."

"Essa mesmo, a Slava!", exclamou com uma expressão levemente sonhadora, o olhar de repente desfocado pela nostalgia. "Caramba, que mulheraço! Se percorrêssemos as estepes de uma ponta à outra, não encontraríamos animal mais sensual do que aquele. Chamávamos-lhe A Dinamite, tão explosiva era aquela rapariga. Onde ela entrasse... todos os homens se viravam para a ver. Provocou muitos suspiros de desejo, essa Slava." Voltou a concentrar a atenção no seu interlocutor. "Conheceu-a também?"

"Conheci-a, pois. Está cá em Paris."

"A sério?"

"Ela e o marido."

"E continua bela?"

"Uma princesa", confirmou Kaloust com um brilho nos olhos. "Mas fale-me sobre ele. Quem é esse tipo?"

"Toda a gente na Rússia conhecia o general Khan à custa da mulher. Parece que o general é oriundo de uma família com sangue real na Pérsia. Conta-se que o general ficou embeiçado quando a conheceu em Volgogrado e derreteu rios de rublos com ela." Esboçou um esgar trocista. "Foi o que bastou para a moça se apaixonar. O facto é que, passados uns tempos, apareceram os dois casados."

O arménio pegou no seu garfo e começou a brincar com ele enquanto ponderava a informação que acabara de receber. Já no Balalaika intuíra que Slava gostava do grande luxo e isso, em boa verdade, convinha-lhe; o que não lhe agradava era o tom zombeteiro do seu interlocutor. Decidiu por isso mudar o tema da conversa para o que realmente ali o levara.

"Acha possível que o general Khan, sendo uma figura do regime do czar, faça negócios com os bolcheviques?"

Emanuel Nobel sorriu.

"O general Khan sempre foi um homem habilidoso e pragmático", disse. "O sangue persa de negociador de bazar está-lhe no sangue, não há nada a fazer. Uma coisa dessas não me admiraria nada." Carregou a sobrancelha, como se tivesse acabado de se lembrar de alguma coisa. "Aliás, ouvi dizer que os bolcheviques mantinham contactos com alguns exilados do antigo regime para negócios de interesse mútuo." Fitou inquisitivamente o seu interlocutor. "Porquê? O general propôs-lhe algum negócio?"

A pergunta fez o anfitrião vacilar. O que deveria revelar? Por um lado, tinha por hábito manter estes assuntos numa área restrita, mas na verdade o negócio em questão não envolvia matérias de interesse para o magnata sueco.

"Sim, propôs-me um negócio de arte e antiguidades em que ele se diz intermediário dos bolcheviques", acabou por admitir, embora sem entrar em pormenores. "Preciso de saber se isso é verdade ou se estou a lidar com um burlão."

"O general Khan é um indivíduo ambicioso e tem desígnios sobre o trono da Pérsia. Se fosse a si tratava-o sempre com o maior respeito, nunca se sabe onde poderá chegar."

"Sim, mas representa os bolcheviques?"

Emanuel recostou-se na cadeira e reflectiu por um momento. Depois meteu a mão ao bolso interior do fraque e retirou um pequeno caderno com endereços.

"O tipo que representa os interesses soviéticos em Paris chama-se Sergei Ivanov", disse, apontando para umas linhas rabiscadas no interior do caderninho. "É o representante em Paris do Antikvariat, o organismo russo que compra e vende antiguidades. Está aqui a morada. Sugiro-lhe que vá falar com ele e esclareça o assunto."

O contacto indicado por Emanuel Nobel era um homem novo, de olhar fixo, quase fanático, que mediu Kaloust com uma expressão reprovadora, claramente desagradado com o elegante corte Savile Row do fato príncipe de Gales do arménio. Encontraram-se num café dos Champs Elisées e Ivanov limitou-se a pedir uma água.

"Um verdadeiro socialista cultiva a frugalidade", sentenciou, lançando um olhar de censura para a tisana e o croissant encomendados pelo seu interlocutor. "O luxo não passa de um escarro que o grande capital lança na face do proletariado!"

A observação fez Kaloust soerguer o sobrolho, mas optou prudentemente por não tecer comentários; era um bom negociador e sabia que não devia contrariar a outra parte. Além do mais, a observação do russo permitia lê-lo melhor. A pose e as palavras mostravam-lhe um socialista agressivo e intolerante, situação que podia explorar em seu favor.

"A revolução custa dinheiro", disse sibilinamente, apadrinhando com astúcia a terminologia dos bolcheviques. "Consta que o vosso politburo admite usar a arte burguesa para ajudar a financiar a luta do proletariado." Cravou a atenção no russo. "Estarei porventura mal informado?"

Ivanov lançou um olhar pouco à vontade em redor do café e suspirou.

"Infelizmente não", admitiu com uma amargura que depressa se tornou venenosa. "Estamos conscientes de que os abutres capitalistas andam de olho nas nossas riquezas. A arte burguesa é uma delas. Gostaríamos de a manter na nossa posse, claro, quanto mais não seja para não dar aos imperialistas a satisfação de se apropriarem do que é nosso, mas temos de encarar as coisas como elas são. O operariado e o campesinato estão exangues, sugados da sua riqueza por anos de incúria e vitimados pela exploração mais desavergonhada e impiedosa do czar e dos seus esbirros, pelo que alguns sacrifícios são, receio bem, inevitáveis. No esforço titânico de satisfazer as necessidades mais urgentes do proletariado, de consolidar as justas conquistas da revolução de Outubro e de prosseguir a luta contra as forças reaccionárias e imperialistas da tirania, o nosso povo está disposto a tudo."

O russo calou-se, como se fosse fisicamente doloroso levar o raciocínio até ao fim. Kaloust percebeu que a expressão "abutres capitalistas" se tratava de uma referência indirecta a ele próprio, mas optou por ignorar o insulto. O mais importante era certificar-se de que as portas estavam abertas para o negócio e mantê-las assim.

"Quer o senhor dizer que... que as obras artísticas da Rússia estão de facto no mercado?"

O arménio suspendeu a respiração na expectativa da resposta e viu os olhos de Ivanov desviarem-se para os lados, reflectindo o incómodo que o tema lhe suscitava.

"Esse assunto não é daqueles sobre os quais me posso pronunciar."

A declaração desencadeou um tumulto no peito de Kaloust. O mais interessante na afirmação que acabara de ouvir era que ela não negava a pergunta. Tratava-se de uma simples esquiva e, enquanto tal, constituía de certo modo uma confirmação. Por incrível que parecesse, as grandes obras dos museus russos encontravam-se realmente à venda. Apesar da ansiedade que dele se apossou, Kaloust manteve o semblante fechado, como um jogador de póquer a esconder o jogo no momento mais decisivo.

"E quem o pode fazer?"

O russo esboçou um gesto vago no ar.

"Temos pessoas que lidam com esses assuntos", limitou-se a dizer. "Digamos que foram criados canais próprios."

Fez-se um breve silêncio à mesa. Kaloust aguardou que Ivanov dissesse mais alguma coisa, mas o russo selou os lábios e o arménio percebeu que teria de ser ele a explorar o terreno.

"O general Khan é um desses canais?"

Ivanov fitou-o e, com evidente embaraço, fez com a cabeça um movimento ligeiro de assentimento.

"Encarregámos os nossos intermediários, lacaios do antigo regime com ligações ao grande capital, de organizarem uma sessão especial de venda", esclareceu, pronunciando as expressões "antigo regime" e "grande capital" como se cuspisse. "Um leilão internacional."

O visitante abriu a boca de estupefacção.

"Um... um leilão?!"

O russo parecia embaraçado e voltou a desviar o olhar.

"São ordens de Moscovo."

"Mas... mas isso é uma loucura! O senhor já viu a imagem que o regime bolchevique vai dar de si mesmo? Já estou a imaginar os títulos dos jornais ocidentais." Fez um gesto no ar, como se tivesse diante dele o The Times ou o Lê Figaro. "'Cultura russa a saque!' Ou: 'Bolcheviques põem tesouros nacionais à venda!' Ou: 'Comunistas vendem alma da Rússia ao capitalismo!'" Voltou a encarar o seu interlocutor. "E se ainda por cima um milionário americano vos compra as melhores peças e se põe a expô-las por toda a parte, dizendo que as salvou das garras dos bolcheviques? Está a ver o ridículo?"

Ivanov manteve o olhar baixo, como se o peso daquelas manchetes imaginárias o vergasse de vergonha.

"Eu sei, eu sei! É terrível! Mas... o que podemos fazer? Precisamos de fundos para recuperar o nosso país e salvar as justas conquistas da revolução! Há que fazer sacrifícios! Que alternativas temos nós?"

A questão parecia dilacerar o russo, dividido entre a necessidade de obedecer às ordens superiores e o embaraço de organizar a alienação do património artístico do país. Kaloust apercebeu-se de que o mesmo dilema dividia decerto os próprios governantes que haviam dado tal ordem, também eles conscientes da imagem que iriam dar de si mesmos quando o leilão fosse publicitado. A percepção das várias vertentes do problema deu-lhe de repente uma ideia. Arregalou os olhos como se os acendesse, encandeado pela fantástica oportunidade que se delineava na sua mente.

"O primeiro conselho que tenho a dar-vos é que não vendam os vossos tesouros artísticos", recomendou. "A arte é a alma de um povo e se a venderem é como se tivessem vendido a vossa alma. Não façam isso."

"Os tempos são de sacrifícios, receio bem..."

"Se assim é, recomendo-vos que ponham no leilão apenas peças secundárias", sugeriu numa voz baixa mas tensa, mal contendo a excitação. "Assim não atrairão tanta publicidade."

A sugestão extraiu um esgar de estranheza a Ivanov.

"Peças secundárias? Mas essas valem pouco!"

Kaloust fitou-o com intensidade, deixando entender que o segredo da sua proposta residia no pormenor seguinte.

"Vendam-me directamente as melhores obras de arte", acrescentou, desferindo assim a estocada. "Ninguém saberá de nada. Não haverá notícias de jornais nem manchetes embaraçosas nem nada que se pareça. Nenhum milionário americano se rirá de vocês e a honra da revolução bolchevique ficará salvaguardada." Arqueou as espessas sobrancelhas. "Que lhe parece?"

O cenário traçado pelo arménio pareceu interessar o seu interlocutor, cujo semblante se iluminou.

"Vender-lhe a si?"

"Sim, ninguém saberia de nada. Uma simples transacção directa. Uma coisa discreta, longe do olhar público." Inclinou-se para a frente. "Que acha da ideia? Não é perfeita?"

A agressividade e a acidez do russo evaporaram-se por completo, substituídas por uma excitação pensativa enquanto ponderava as inesperadas possibilidades que a proposta abria.

"Terei de consultar Moscovo, claro", disse pausadamente, como se raciocinasse no intervalo de cada duas palavras. "De qualquer modo, nunca poderei ser eu, ou qualquer elemento ligado à revolução, a lidar directamente com o assunto. Para isso temos o general Kh... perdão, os canais adequados para a transacção."

"Quer dizer que... que a minha sugestão tem pernas para andar?"

Um sorriso sibilino perpassou no olhar azul de Sergei Ivanov. Em vez de responder, todavia, desviou a atenção para o croissant que Kaloust mantinha intocado no prato e, passando a língua pelos lábios, abriu as mãos em rendição aos doces prazeres cultivados pela burguesia exploradora da classe proletária.

"Afinal sempre era capaz de comer um desses..."

 

O pequeno hotel junto à Gare d'Austerlitz tinha um aspecto miserável. Sombrio, sujo, decadente, a madeira gasta, os tapetes roçados, os candelabros a funcionarem à meia-luz. Kaloust espreitou com nojo as nódoas que conspurcavam o soalho e perguntou a si mesmo se não deveria dar meia-volta e escapar-se dali. Que espelunca! Seria possível fazer um negócio de tal dimensão num pardieiro daqueles? Duvidou por momentos, mas depressa se lembrou que Ivanov havia certificado os poderes do intermediário e obrigou-se a seguir em frente.

O corredor do segundo andar cheirava a bafio, pelo que susteve a respiração e aligeirou o passo. Caminhou até meio do corredor e parou na porta 207, o último algarismo já descaído, transformado em L. Deu dois toques apressados e sentiu movimento do outro lado. A porta abriu-se e deparou-se com o general Khan em ceroulas e camisola interior, a barba por fazer e o cabelo desgrenhado, tufos peludos a espreitarem por baixo das bordas da camisa esburacada, os pêlos do peito em cima e os da barriga em baixo.

O arménio vacilou, desconcertado com a maneira desconchavada como o seu interlocutor se apresentara diante dele.

"Quer que venha noutra altura?"

O general ajeitou a camisola interior e puxou as ceroulas para esconder a barriga, recuando um passo de modo a deixá-lo passar.

"Não, não! Entre, faça o favor."

Kaloust voltou a hesitar, aterrado com o aspecto decadente de tudo o que o rodeava, mas obedeceu e penetrou no quarto. O soalho rangia a cada passo e o compartimento exalava o fedor ácido do tabaco barato misturado com transpiração. A mobília era de madeira rústica de baixa qualidade, havia pedaços de comida e garrafas vazias por toda a parte e a cama estava por fazer, os lençóis revoltos com as extremidades a desmaiarem para o chão. Seria possível que Slava também vivesse ali?

"Se quiser falamos mais logo", voltou a sugerir o visitante, incomodado com a desarrumação e a sujidade. "Ou então vamos para outro sítio. Vi lá em baixo uma confeitaria que..."

"Aqui está bem", atalhou o antigo comandante dos hussardos com uma expressão de mal disfarçada tristeza. "Dadas as sensibilidades dos meus mandatários, penso que seria aconselhável tratarmos deste assunto num local discreto. Eu sei que o meu quarto não se encontra nas melhores condições e eu próprio não estou em forma... são, enfim, uns problemazitos na minha vida, mas de qualquer modo parece-me aconselhável mantermo-nos abrigados de olhares indiscretos."

Perscrutando o quarto com repugnância, o único sinal que o visitante notou da vistosa mulher do seu interlocutor foi um soutien negro pendurado na maçaneta da janela.

A visão arrancou-lhe um suspiro de desejo. Ah, quando Slava fosse sua oferecer-lhe-ia soutiens de ouro! Respirou fundo e varreu a sua apaixonada da mente. Tinha de se concentrar no negócio! Estudando de novo o espaço, percebeu que por toda a parte reinava uma desarrumação masculina. Esgueirando-se pelo quarto para evitar tocar em qualquer coisa que o enojasse, acabou por se instalar numa cadeira ao lado da janela, mesmo junto ao soutien abandonado, enquanto o general Khan se acomodava na borda da cama desfeita.

"Como queira", disse Kaloust com um misto de resignação e impaciência. "Penso que é melhor irmos direitos ao assunto. Vim aqui na sequência da nossa conversa no Balalaika e depois de ter recebido confirmação das autoridades bolcheviques, e em particular do representante do Antikvariat, de que era consigo que deveria tratar das obras de arte em causa." Pigarreou. "Gostaria, claro, de perceber primeiro do que estamos exactamente a falar..."

"Como lhe disse, são os tesouros do Hermitage."

"Sim, mas que tesouros? Como sabe, o Hermitage é enorme e..."

O anfitrião inclinou-se na borda da cama, como se quisesse partilhar um grande segredo.

"O melhor", soprou. "La creme de la creme."

O arménio hesitou.

"O melhor, o quê?"

O general Khan soltou uma gargalhada sem humor.

"A Santa Rússia está a saque, meu caro Sarkisian!", exclamou. "Os bolcheviques não têm dinheiro e ninguém confia neles nem lhes empresta nada. Os tipos andam de tal modo aflitos que decidiram pôr à venda a arte que encontraram nos palácios do czar, nas mansões dos nobres e até nas catedrais. No meio disto tudo estão os tesouros dos nossos museus, incluindo o Hermitage." Abanou a cabeça reprovadoramente. "É uma desgraça! Uma desgraça!"

O arménio afagou a barba.

"Estou a ver", disse. "E qual é afinal o seu papel no meio disto tudo? Não que me diga respeito, claro, mas no fim de contas o senhor era um oficial do czar e aparece aqui como a fachada dos bolcheviques. Há-de concordar que... enfim..."

O general suspirou pesadamente.

"É a vida!", desabafou com resignação. Fez um gesto enérgico a indicar o espaço em redor. "Olhe para isto, olhe onde vim parar! Eu, que frequentei a corte do czar e os mais belos palácios de Sampetersburgo, de Moscovo e do Cáucaso! Eu, que comandei um regimento de hussardos contra os Otomanos! Eu, em cujas veias corre o nobre sangue real da Pérsia! Veja onde estou agora! Numa espelunca miserável no meio de um bairro operário de Paris!" Baixou os ombros em desânimo. "Que posso fazer senão viver com o que me dão? Se os bolcheviques me pedem que seja intermediário num negócio e me oferecem uma comissão de mil francos por cada venda, o que acha que devo fazer? Armar-me em grande senhor, recusar a proposta e continuar nesta miséria? Era bonito, não era? Um grande gesto, sem dúvida. Mas a vida não é assim. Oiça, tenho contas para pagar e uma mulher para sustentar." Baixou os olhos e a voz, como se perdesse energia. "A minha Slava não é uma mulher qualquer, como já deve ter reparado. Ela está habituada, exige mesmo, um certo padrão de vida e, como as coisas andam, não sei se aguentará esta..."

"com certeza", cortou Kaloust, sem vontade de deambular pelos podres da vida do seu interlocutor e desejoso de redireccionar a conversa para o que considerava realmente importante. "Mas vamos ao que interessa." Afinou a voz. "O senhor Ivanov fez-me chegar um recado a dizer que Moscovo tinha dado novas instruções e que me deveria dirigir aos canais apropriados." Simulou um sorriso. "Segundo me foi dado a entender, o senhor é de facto um canal apropriado."

Recuperando o vigor, o general Khan fez uma careta.

"Estes bolcheviques são ridículos!", exclamou. "Precisam do dinheiro, mas têm vergonha de o arranjar. O que fazem então? Procuram intermediários. Põem os outros a fazer o trabalho sujo e acham que assim se mantêm puros e impolutos, como se o cérebro nada tivesse a ver com o que a mão faz." Abanou a cabeça. "Que idiotas!"

"Como deve calcular, não estou em posição de classificar os procedimentos das pessoas com quem quero fazer negócio..."

"Bem sei, bem sei!", assentiu o antigo comandante dos hussardos. "Isto sou apenas eu a desabafar!" Mudou subitamente de tom. "Mas tem razão, caro Sarkisian. Vamos é ao que interessa."

"Isso."

O general Khan respirou fundo, como se ganhasse balanço para a negociação.

"Moscovo deu-me ordens no sentido de tratar directamente consigo da venda das peças mais importantes do Hermitage", anunciou. "O que lhe interessa adquirir?"

Nas semanas anteriores, Kaloust estudara com grande cuidado e minúcia o espólio do grande museu de Petrogrado, sobretudo com base nos conselhos informados de Sir Kenneth Bark, mas também de outros peritos que já haviam feito avaliações no Hermitage e que conheciam tudo o que lá se encontrava. O arménio tinha todavia plena consciência de que deveria proceder com enorme cautela, não podendo mostrar demasiado interesse em qualquer peça em particular, sob pena de inflacionar os preços. Estava por isso fora de questão ser ele a dar o primeiro passo.

"Oh, não sei", retorquiu com fingida despreocupação. "O que tem para mim? Alguma coisa de especial?"

O exilado riu-se sem vontade.

"Tudo o que existe no catálogo é especial."

"Dê-me um exemplo."

O anfitrião inclinou-se da borda da cama e abriu uma gaveta da mesa-de-cabeceira, de onde tirou um papel timbrado a vermelho com a foice e o martelo, a cor e os símbolos da União Soviética. Pousou o papel sobre a cama e passou os olhos sobre o seu conteúdo.

"Olhe, Houdon", disse. Levantou a atenção para o seu visitante. "Conhece?"

O nome quase deixou Kaloust sem respiração. Quantas vezes nos últimos tempos Sir Kenneth Bark não lhe havia falado de Houdon? Era a jóia do Hermitage. Houdon fora um artista protegido de Catarina, a Grande. Devido a uma procura inusitada, as suas obras em estilo rococó haviam-se valorizado imenso desde o final da guerra e valiam no mercado umas cinquenta mil libras. Sir Kenneth era de opinião que elas não parariam de se valorizar.

O arménio contraiu o canto dos lábios e assumiu um semblante pensativo.

"Tenho ideia de já ter ouvido falar..."

"Há uma escultura dele, chamada Diana, que faz parte do pacote do Hermitage. Está interessado?"

Interessado? Diana, sabia Kaloust, era simplesmente o melhor trabalho de Houdon, uma verdadeira obra-prima. Mas não deu sinais de interesse. Em vez disso, fez uma careta e fingiu-se superficialmente curioso.

"Quanto pedem por ele?"

"Um Houdon custa agora no mercado cinquenta mil libras..."

"Quanto?", explodiu o potencial comprador com ar escandalizado. "Isso é uma loucura!"

"É o valor que o Hermitage atribui à Diana."

Kaloust fez um movimento enfático com a mão.

"Nem pensar! Isso é um assalto!" Pousou os olhos na lista, convidando-o a continuar. "E que mais tem aí?"

O general consultou de novo o catálogo.

"Tenho uma baixela de prata de Germain, do século XVII. Vale cem mil libras."

O visitante abanou vigorosamente a cabeça com uma expressão desaprovadora.

"Pfff! Que exagero de preço!"

"Temos ainda um toucador de Maria Antonieta. Outras cem mil libras. E um mobiliário francês do actor Talmar, quarenta mil libras."

"E pinturas?"

O general virou a página.

"A pintura está deste lado", indicou. "O melhor que temos é um auto-retrato e o Palas Atena, ambos de Rembrandt, e o Retrato de Hélène Fourment, de Rubens. Há ainda A Anunciação, de Bout, e as Árvores Caídas em Versalhes, de Robert. Os dois primeiros custam cinquenta mil libras, os outros dois são vinte mil." Estendeu as folhas ao seu interlocutor. "Veja lá se da lista consta mais alguma coisa de interesse para si."

com os dedos a tremerem perante a possibilidade de adquirir dois Rembrandts e um Rubens, o coleccionador arménio pegou nas folhas e estudou as obras aí catalogadas. Como já conhecia de cor o catálogo do Hermitage, levou menos de cinco minutos a digerir toda a informação e a devolver a lista ao intermediário do negócio.

"De facto, as melhores peças são as que me indicou." O general Khan sorriu pela primeira vez desde o início do encontro.

"Ah, está a ver? E então?" "O problema são os preços."

O antigo comandante dos hussardos pousou com vigor o dedo na faixa direita da lista, onde estavam marcados os valores das obras.

"Estes preços são os do mercado."

"Talvez sim, mas numa situação de leilão. E nós não estamos num leilão, pois não? Uma venda discreta, longe dos olhares do mundo, implica preços mais moderados." O general sacudiu a cabeça.

"Não me venha com essa conversa", disse. "Estas peças valem o que está aqui indicado. Consulte qualquer perito e logo verá que este é o preço justo."

A resposta do intermediário levou Kaloust a recostar-se na sua cadeira, subitamente confortável. A negociação era o seu terreno de eleição, o compromisso a sua arte. Se conseguira juntar petrolíferas inimigas e pô-las a colaborar na Turkish Petroleum Company, não seria capaz de passar a perna a uns negociantes amadores como os bolcheviques? Era o que mais faltava! Ele, o homem que aprendera a arte do seu ofício na selva do bazar de Constantinopla, contra uns palermas fanatizados que viviam em Moscovo no mundo da fantasia? Os bolcheviques não tinham hipótese! Esfregou as mãos e enrodilhou os dedos enquanto ultimava o plano que andava havia algum tempo a congeminar. Certos pormenores teriam de ser trabalhados, claro, mas uma determinada parte da conversa com o general Khan revelara-lhe a chave que iria decidir os valores do negócio.

"O senhor general mencionou há pouco que recebe uma comissão por estas transacções..."

Deixou a frase em suspenso, como se pedisse ao seu interlocutor que a confirmasse e completasse.

"Mil francos por cada venda", esclareceu o intermediário num tom desconfiado e até um tudo-nada agressivo, na defensiva por não ver a pertinência da questão nem perceber onde queria o arménio chegar. "Porquê? Isso incomoda-o?"

"De facto, incomoda."

"Ora essa!", irritou-se o general, levantando a voz. "Porque se há-de incomodar? Estou a fazer o meu trabalho de uma forma honesta e mereço ganhar a minha parte. Ou acha que ando aqui a esforçar-me por caridade para com os bolcheviques?" Revirou os olhos, agastado. "Ele há cada uma!"

Kaloust manteve o semblante imobilizado numa expressão inescrutável, esfíngica, como fazia sempre que as emoções se apossavam das pessoas à sua volta. A faceta de negociante dissimulado atingia nestes instantes a expressão máxima.

"Incomoda-me só lhe darem mil francos por cada venda", murmurou com serenidade. "Mil francos não passam de uma esmola. Uma esmola, digo-lhe eu! O senhor general merece muito mais do que isso. Muito, muito mais!"

A declaração apanhou o general Khan de surpresa. Onde julgara haver uma censura encontrava afinal solidariedade. Desconcertado, o intermediário sentiu de repente os olhos humedecerem e ficou surpreendido com a sua própria vulnerabilidade emocional. Tentou de imediato assumir o domínio das emoções, mas não conseguiu. A verdade é que as palavras do seu interlocutor o haviam tocado de uma maneira estranha, comovendo-o para além do que poderia imaginar.

"Eu... eu...", balbuciou, o queixo a tremer, "enfim, tenho de me sujeitar." Virou a cara para esconder a súbita erupção emocional que lhe marejava os olhos. "A vida está difícil, a minha mulher... tive de aceitar o pouco que me deram e... e..."

O momento, percebeu o coleccionador arménio, era perfeito para jogar a cartada decisiva. Kaloust inclinou-se para a frente e assumiu uma postura protectora, quase paternal.

"O senhor general merece muito mais do que isso", repetiu num tom suave, a voz aveludada, quase doce. "Para começar merece respeito. E o respeito, quanto a mím, paga-se. Quem lhe dá mil francos por peça está a desrespeitá-lo, a tratá-lo como um servo, como se a dignidade se comprasse. Mas isso é algo que não permitirei." Endireitou-se e franziu o sobrolho, como se ponderasse um valor justo. "Dou-lhe... olhe, dou-lhe cinco mil libras."

O seu interlocutor, que tinha ainda a face voltada de lado para ocultar a comoção, encarou-o prontamente com uma expressão interrogativa.

"Perdão?"

"Dou-lhe cinco mil libras de comissão por cada peça que o senhor general me venda", indicou Kaloust. "É um valor justo, não lhe parece?"

O general Khan sacudiu a cabeça, como se tentasse recompor o cérebro.

"O senhor paga-me para lhe vender uma peça de arte?"

"com certeza", assentiu o arménio. "Dou-lhe cinco mil libras por cada peça que me venda ao preço que eu quero."

Não era preciso ser muito dotado nos negócios para perceber que o ponto crucial da proposta se encontrava no final da frase. Ao preço que eu quero. O prémio era sem dúvida elevado, mas a que preço?

"Que quer dizer com isso?"

A atenção de Kaloust desviou-se para o catálogo do Hermitage, que permanecia aberto sobre a cama.

"Consiga-me um bom preço para essas peças e eu porei fim às suas dificuldades financeiras", propôs. "É uma proposta mutuamente vantajosa, não lhe parece? O senhor ajuda-me a comprar barato, eu ajudo-o a sair da situação difícil em que se encontra." Cruzou os braços, como se o desafiasse. "Que me diz?"

O intermediário passou as mãos pelo cabelo desgrenhado, deixando ver os pêlos que lhe saíam dos sovacos.

"O que entende por comprar barato?"

"Metade do preço. Convença os bolcheviques de que é este o custo da discrição."

O general Khan pegou no catálogo e passou os olhos pelos nomes das melhores peças e respectivo preço. Fez contas, avaliou a relação de forças em Moscovo entre a necessidade de vender bem e a vergonha de o fazer na praça pública, pesou os argumentos que tinha para apresentar e previu os obstáculos que lhe seriam levantados.

"O senhor quer adquirir ouro ao preço do latão", observou com uma voz arrastada. "Eles não vão nisso."

O arménio não desarmou.

"Tenho um brinde adicional. Sei que os bolcheviques estão com dificuldades em vender o petróleo de Baku devido ao boicote ocidental. Diga-lhes que arranjarei uma maneira de furar esse boicote."

"Isso já me parece mais interessante", assentiu o general Khan. "Para que eu colabore numa coisa dessa magnitude, no entanto, tenho condições adicionais a apresentar-lhe."

Kaloust não tinha ilusões. No seu mundo, condições adicionais significava mais dinheiro por baixo da mesa.

"Diga lá."

O oficial desviou o olhar escuro para a janela e contemplou a rua sombria antes de voltar a encarar o seu interlocutor.

"Quero apoio para os meus projectos na Pérsia."

A exigência era inesperada.

"Que tipo de apoio?"

"Estive a investigá-lo e sei que o senhor dispõe de bons contactos no Foreign Office e na banca britânica", disse. "Preciso que me abra portas. Ponha-me à conversa com essa gente e eu viabilizo-lhe o negócio do Hermitage nos termos que me apresentou."

Não se tratava de um pedido de financiamento, apenas de apresentação aos meios financeiros e políticos. Nessas condições, o que tinha Kaloust a perder?

"De acordo."

Os dois homens abriram os rostos num sorriso rasgado. Puseram-se ambos de pé num salto e estenderam as mãos peludas na direcção um do outro.

"Parabéns, senhor Sarkisian!", exclamou o general Khan com mal contida euforia, o valor total da sua nova comissão bem presente no espírito. "Os maiores tesouros do Hermitage são seus!"

As palavras adejaram aos ouvidos de Kaloust, leves e melodiosas. O arménio pestanejou, ainda sem acreditar que estava mesmo prestes a fechar a compra. Era verdade que nunca duvidara da sua capacidade de lá chegar, não era ele afinal o grande negociante? Mas a magnitude do que estava em causa tornava tudo quase irreal, como se flutuasse no ar, a realidade tão incrível que parecia sonho.

"Tem a certeza?"

Vendo os seus problemas pessoais serem varridos por um mar de libras, o general Khan quase dançava de alegria.

"No mundo da arte, meu caro Sarkisian, o senhor acabou de fazer o negócio do século!"

A primeira pessoa com quem Kaloust falou quando abandonou o hotel e atravessou Paris foi madame Duprés. O arménio apareceu em êxtase no seu escritório, ainda atordoado com a dimensão do negócio que havia concluído naquele indigente quarto de hotel de quinta categoria, mal acreditando no que sucedera.

"Já viu o que consegui?", perguntou repetidamente, sempre com vontade de se beliscar para se certificar de que não sonhava. "Já viu? Já viu?"

"É extraordinário, m'sieur Sarkisian", sorriu a secretária social. "Muitos parabéns!"

"Extraordinário? Extraordinário?", interrogou-se o patrão, como se o adjectivo fosse insuficiente para qualificar adequadamente o negócio. "com os tesouros do Hermitage, tornei-me proprietário da melhor colecção privada de arte do mundo! A melhor do mundo, percebe? Melhor do que Rockefeller ou Getty ou os Rothschild! Ninguém tem nada assim! Ninguém!"

"Parabéns!"

Excitado e irrequieto, o peito a arfar numa ânsia de arrebatamento e uma expressão louca de alegria a incendiar-lhe o rosto, o arménio olhou em redor como se procurasse algo.

"Um papel! Dê-me um papel!"

Um bloco de notas materializou-se de imediato na mão estendida da sempre eficiente madame Duprés.

"Voilà!"

Kaloust sentou-se a uma escrivaninha e pôs-se a rabiscar nervosamente numa folha.

"Preciso de mandar um telegrama a Sir Kenneth com a notícia", disse. "Ele vai ficar radiante." Parou de repente de escrevinhar, como se novas ideias o assaltassem. "E tenho de decidir quais as obras de que me vou desfazer." Virou-se para a secretária. "Já me conhece, não conhece? Não sou um açambarcador. Quando compro uma peça nova, vendo logo uma que já possua de qualidade inferior." Ergueu o dedo. "O princípio de uma boa colecção é a qualidade, não a quantidade! Mas só o melhor é suficientemente bom para mim!" Voltou a atenção para o bloco de notas, que recomeçou a rabiscar. "Primeiro é preciso informar Sir Kenneth. O homem anda nas nuvens com esta operação, coitado! Se não lhe digo nada, ainda lhe dá uma síncope..."

Quando terminou a mensagem, deu-a a madame Duprés, que de imediato saiu para ir aos correios enviar o telegrama endereçado ao director da National Gallery. Kaloust viu-se assim sozinho no escritório e, com surpresa, percebeu que naquele instante precisava de companhia; o momento que estava a viver era demasiado importante para não o partilhar. Pensou em Slava. Aquele era um momento que gostaria de partilhar com a sua russa. Mas, não sabia onde ela estava nesse instante. Pensou em procurá-la no Balalaika, mas conteve-se. Era demasiado cedo para a baronesa lá estar. Teria de ser paciente. O facto, porém, é que precisava de celebrar o feito com alguém que lhe fosse próximo. Mas quem?

Foi então que se lembrou de Hendryk.

Uma abóbada de nuvens de chumbo ensombrava a cidade com uma tonalidade metálica, ameaçando descarregar chuva a todo o instante, pelo que foi de gabardina que Kaloust saiu à rua e se precipitou para o automóvel. O motorista esperava-o junto do Bentley e abriu-lhe a porta traseira antes de se instalar ao volante.

"Igor, vamos ao Ritz."

Graças à sua influência junto de César Ritz, Kaloust conseguia sempre alojar Hendryk numa das suítes do magnífico hotel na place Vendôme; além de cómoda, esta solução era conveniente, sobretudo nas ocasiões em que ambos precisavam de se consultar mutuamente sobre os múltiplos negócios em que estavam envolvidos.

Enquanto percorriam as ruas de Paris sob uma penumbra cinza, Kaloust não parava de se congratular com o sucesso da sua operação. Ah, Hendryk tinha de saber!, pensou. Afinal fora com ele que tudo havia começado! Tinham ido os dois ao Balalaika e fora ali que travaram conhecimento com Slava e com o general Khan e que todo o negócio se começara a desenrolar. Porque não ir ter com o amigo e celebrar com ele a maior aquisição do século no domínio da arte?

Ao chegar à place Vendôme, o arménio saltou do carro e entrou no hotel, atravessando o foyer luxuoso do Ritz como se fosse o dono do estabelecimento. Ia de tal modo impaciente que nem foi capaz de esperar pelo elevador. Escalou as escadas de dois em dois degraus até ao segundo andar e meteu pelo corredor em passo acelerado até chegar junto da porta da suíte. Carregou repetidas vezes na campainha e quase rezou para que o amigo se encontrasse nos seus aposentos. O som de passos do outro lado tranquilizou-o e ao mesmo tempo excitou-o ainda mais. Ah, que surpresa Hendryk teria!

A porta abriu-se e viu o holandês a espreitá-lo com um semblante estranhamente enigmático.

"Hendryk, nem imagina o que acabei de conseguir!", exclamou com tal animação que quase engolia as sílabas. "Por acaso está familiarizado com..."

"Kaloust, agora..."

"... o magnífico espólio do Hermitage, de Petrogrado? Riquíssimo, claro! Pois fique a saber que..."

"... não, agora não posso!"

O arménio calou-se a meio da frase e leu enfim a expressão que banhava a face do amigo. Era incómodo. Hendryk estava incomodado por vê-lo ali. Aquela reacção apanhou Kaloust desprevenido. Por que diabo haveria Hendryk de se sentir incomodado?

Foi nesse instante que, pela frincha da porta entreaberta, Kaloust se apercebeu de um vulto a passar por detrás do holandês. Tratava-se de uma mulher seminua, uma toalha branca a cobrir-lhe o busto, ripas de cabelos louros a caírem-lhe em cascata sobre os ombros nus. Passou de fugida, como um fantasma, um vulto etéreo de ouro e pele láctea, tão depressa que quase não passou de um borrão, mas foi o tempo suficiente para o arménio a reconhecer.

Era Slava.

 

Como um compasso incansável, o tiquetaque cadenciado do relógio de parede pontuava o ritmo tranquilo da tarde no número 38 de Hyde Park Gardens. Nunuphar bordava junto à lareira crepitante da sala, os fios de lã enrodilhados no regaço, mas a inquietação nervosa do marido roubava-lhe a concentração de que precisava para fazer dois nós delicados. Cansada de o ver assim tão irrequieto a completar pequenos círculos sucessivos, respirou fundo e pousou o bordado na cestinha.

"Que se passa? Porque estás tão nervoso?"

Kaloust estacou a meio da sala, interrompendo a sua deambulação meditativa. Ainda não recuperara do episódio com Slava, a traição fora uma punhalada profunda, mas nesse momento as suas preocupações eram outras.

"Não estou nervoso."

"Ora, ora!", sorriu a mulher. "Já te conheço há muitos anos. Vá, diz lá o que te apoquenta..."

Embora cultivasse uma vida amorosa separada da mulher e limitasse a sua actividade afectiva e "terapêutica" às suítes dos Ritz de Paris ou de Londres ou ao devaneio louco com a baronesa russa, Kaloust mantinha com Nunuphar uma relação de respeito conjugal. Visitava-a amiúde, como um filho que vai ver a mãe e com quem por vezes desabafa ou a quem pede conselho.

"Lembras-te daquela grande compra que fiz das obras do Hermitage?", disse, abrindo-se enfim. "O general Khan foi levantá-las em Berlim. Parece que os bolcheviques enfrentaram a resistência do curador do Hermitage e, para o fintar, puseram os quadros e as pratas numa exposição itinerante até os desviarem para a Alemanha. O general já me telegrafou a dizer que chegou tudo em ordem."

"Então qual é o problema?"

"É a Diana de Houdon", indicou, roendo a unha do indicador direito. "Parece que a escultura é muito frágil. Para evitar que se quebre, eles vão mandá-la de navio de Petrogrado até ao delta do Sena e depois rio acima até Paris. Tenho medo que a coisa não corra bem e a Diana se estrague. O general Khan já a pagou em meu nome e, se houver problemas, sou eu quem aguenta com o prejuízo!"

Nunuphar sorriu e voltou a pegar no bordado.

"Ah, que tonto! Não vai haver problema." Fez um gesto em redor, indicando as paredes cobertas de quadros e as estatuetas e os tapetes persas que enchiam a sala. "Mas onde vamos nós pôr todas essas peças de arte? Não achas que já temos tralha a mais?"

O marido passeou os olhos pelas obras que ornamentavam a sala.

"Sim, tens razão", assentiu. "Sabes o que te digo? Precisamos de construir uma mansão. Estou a pensar numa coisa em grande, um sítio majestoso onde possa guardar os meus filhinhos."

Kaloust recomeçou a caminhar em círculos nervosos pelo meio da sala, mergulhado no seu mundo. A mulher ficou um longo momento a fitá-lo, estudando-lhe a fisionomia.

"É só isso que te apoquenta?"

Ele deteve-se de novo e esboçou uma careta.

"É também o próprio general Khan." Fez uma pausa e respirou fundo, como se avaliasse o que poderia dizer. "O homem quer ser xá da Pérsia, vê lá tu! E exige que eu o apoie nessa aventura."

A mulher imobilizou-se de súbito.

"Que o apoies como? O que quer ele de ti?"

"O tipo precisa de dinheiro para financiar um esquema qualquer que tem em mente para tomar o poder na Pérsia. Ora eu posso abrir-lhe as portas da alta finança, é verdade. Além do mais, quer o apoio do Foreign Office." Pôs as mãos à cintura. "A questão é esta: ajudo-o ou não?"

"Esse general tem alguma hipótese de ser bem sucedido?"

O homem da casa passou dois dedos pensativos pelo bigode, ponderando cuidadosamente a questão.

"Acho que sim", acabou por dizer. "Parece que dispõe de bons contactos no exército persa, e em particular nos regimentos cossacos." Balançou afirmativamente a cabeça. "E, para ser sincero, a gratidão do futuro xá da Pérsia poderia ser-me muito útil."

"Então tens aí a tua resposta."

A mulher retomou o trabalho no ponto em que o havia deixado e Kaloust sentou-se por fim no seu sofá, os olhos presos aos complexos motivos geométricos do magnífico tapete persa que ocupava o centro da sala mas a atenção a divagar pelo convés imaginário do navio que trazia a Diana e pelos corredores da alta finança que teria de percorrer para ajudar o general.

Os pensamentos foram interrompidos pelo som de uma chave a rodar na fechadura e da porta da rua a abrir-se. O casal virou a atenção para o átrio e viu Krikor a cruzar a entrada.

"Olá!", saudou ele ao entrar na sala, os olhos baixos e as mãos atrás das costas numa postura intrigantemente tímida. "Sabem, tenho uma novidade para vos dar."

Vinha com um sorriso nos lábios e um brilho especial no olhar; havia já muito tempo que os pais não lhe surpreendiam um lampejo de felicidade como nesse instante. Vendo a expressão que lhe esbraseava a face, era evidente que a novidade só podia ser agradável.

"Então? Que se passa?"

Krikor ergueu os olhos castanhos e encarou os pais.

"Conheci uma rapariga."

O anúncio levou Kaloust e Nunuphar a trocarem um olhar, fugaz mas carregado de alívio. O pesadelo terminara, pensaram ambos nesse instante, conscientes do verdadeiro significado da novidade. O filho havia enfim aceitado a perda da rapariga de Kayseri e decidira seguir em frente na vida.

"Ah, rapaz!", exclamou o pai com entusiasmo. "Até que enfim! Traz-nos cá essa moça! Trá-la para a conhecermos!"

O empregado serviu a sopa no silêncio mais profundo, apenas pontuado pelo incessante tilintar dos talheres nos requintados pratos em porcelana de Sèvres. Os olhos penetrantes de Kaloust estudavam de esguelha a figura delgada e morena da rapariga sentada à sua direita, detendo-se em particular no pequeno crucifixo de prata que lhe ornava o pescoço alto.

"Desculpe, pode repetir-me o seu nome?"

A rapariga desviou para o anfitrião a sua atenção e esboçou um sorriso sibilino.

"Maria Silvia Fernández del Escorial y Begofia Martínez de Asunción González y Prieto", disse de rajada, sem pausas, como se fosse tudo uma única palavra. "Também conhecida por Galega Atrevida."

"A sério? Porquê?"

A espanhola passou a língua pelos lábios, a malícia a brilhar-lhe nos olhos.

"Porque sou galega e porque sou atrevida."

Seguiu-se um silêncio incómodo, apenas interrompido por gargalhadas mal reprimidas de Krikor, aparentemente divertido com a namorada mas esforçando-se por manter a compostura. Na incerteza sobre se a rapariga estaria a fazer pouco dele ou se era mesmo assim, um encabulado Kaloust viu-se por momentos sem saber o que fazer ou dizer. Acabou por decidir que, na dúvida, o melhor era ignorar a observação da espanhola e as risadinhas impertinentes do filho.

"Então onde se conheceram vocês?", perguntou Nunuphar, tentando compor as coisas. "Foi cá em Londres?"

"No Victory Ball", retorquiu o filho, lançando um olhar sorridente para a espanhola. "Num baile de máscaras."

"Ele chamou-me a atenção com o seu traje de rajá", disse Maria Silvia com uma risada. "Tinha um turbante enorme na cabeça e grandes calças vermelhas de seda, mais umas adagas e uma pistola e sapatos com as pontas voltadas para cima. El Krikino estava divertidíssimo, haviam de o ver!"

Kaloust soergueu o sobrolho.

"El... quê?"

"El Krikino", repetiu ela. "É como doravante o seu filho vai passar a ser chamado. Não acha encantador?"

Os pais manifestamente não eram da mesma opinião; onde já se vira espanholar um nome arménio? Após um novo silêncio prolongado, sempre marcado pelo tilintar dos talheres nas porcelanas e por uma ou outra colherada mais ruidosa de sopa, o anfitrião lançou uma espreitadela perscrutante para o chão e encarou a mulher.

"Este tapete está a ficar velho", constatou. "Um dia destes temos de o substituir."

Antes que Nunuphar dissesse alguma coisa, porém, Maria Silvia meteu-se na conversa.

"Este tapete?", ciciou ela com a ponta da língua, expressando-se num inglês afectado por um cerrado sotaque espanhol. "Oh, gosto tanto dele!" Inclinou-se na cadeira e passou a palma da mão pelo pêlo. "É tão macio!" Endireitou-se e fitou o dono da casa. "Sabe, é o ideal para uma rapariga como eu."

"Deveras?", surpreendeu-se Kaloust. "Porquê?"

A espanhola atirou um olhar lascivo na direcção de Krikor, que nesse instante metia uma colher de sopa na boca.

"Porque é perfeito para me ajoelhar!"

Numa reacção quase automática, o namorado cuspiu a sopa e, enrubescido, espreitou os pais a medo ainda antes de se limpar. Kaloust e Nunuphar pareciam em estado de choque, duas estátuas sentadas à mesa, ambos lívidos, os olhos fixos em Maria Silvia a tentar extrair outro sentido que não aquele em que pensavam. Por mais que se esforçassem, contudo, só havia uma interpretação possível de tal frase. Olharam para Krikor e por fim um para o outro, sem saberem o que dizer, o que fazer, como reagir. Sem guião previsto para uma situação daquelas, o dono da casa desviou a conversa para a estética, uma área em que se sentia à vontade. Teceu uns comentários sobre Mareei Duchamp e a loucura que a sua La Fontaine trouxera ao mundo da arte e, sem mais nada para acrescentar, acabou por baixar a cabeça e retomou a sopa num silêncio que não voltou a ser quebrado até ao final da refeição.

"Estás louco?"

A pergunta foi lançada com mal contida fúria depois de Krikor regressar a casa. Terminado o jantar, e receando novas observações provocantes de Maria Silvia que chocassem os pais, o rapaz havia levado a namorada ao hotel onde estava hospedada. Kaloust e Nunuphar mantiveram um silêncio glacial enquanto a espanhola se encontrava debaixo do seu tecto, mas, agora que o filho voltara e estavam a sós, o chefe da família explodiu por fim.

Nada que Krikor não tivesse previsto ao cruzar a porta.

"Ela é assim, o que querem?", justificou-se ele com um encolher de ombros resignado. "Adora provocar e chocar as pessoas. Não o faz por mal, acreditem. É porque isso está na natureza dela, não consegue resistir à tentação."

"Só podes estar louco em andar com uma rapariga destas!"

"Gosto dela, o que posso fazer? Diverte-me."

"A moça é doida!", vociferou o pai, a cara cada vez mais vermelha de irritação com o que lhe parecia a completa cegueira do rapaz. "Doida varrida! Onde já se viu uma rapariga de boas famílias fazer comentários daqueles?! Ela não tem tino? Não tem sentido de decência?" Fez um gesto em direcção à sala de jantar. "Se é assim desavergonhada à nossa frente, imagine-se como não será quando anda à solta!"

O filho fez um gesto apaziguador.

"Vamos lá, não vale a pena exagerar", disse num tom sereno. "Digamos que a Maria Silvia gosta de pisar o risco, de testar as pessoas. Mas asseguro-vos que, tirando isso, é uma pessoa com uma educação impecável. Excêntrica, é certo. Mas impecável."

"Uma educação impecável?", duvidou Kaloust com um esgar céptico. "Que tipo de rapariga achas tu que frequenta o Victory Ball? As meninas de alta sociedade?"

"Claro que sim. O Victory Ball é no Albert Hall, o que pensa o pai?" Exibiu todos os dedos da mão. "Pagam-se cinco libras para entrar. Cinco libras. Só esse preço constitui uma garantia de que o Victory Ball apenas é frequentado pelas classes mais abastadas."

"Dinheiro não significa educação nem estatuto social", argumentou o chefe da família. "As cortesãs têm dinheiro e... e não são pessoas que se apresente aos pais, não te parece? De onde achas que veio essa rapariga? De um prostíbulo de Madrid? De um bordel de Barcelona? De um esgoto de Sevilha?"

Enervado com a insinuação, Krikor carregou as sobrancelhas.

"O pai dela, para sua informação, é um dos homens mais ricos de Espanha!", exclamou. "O senor Prieto possui gigantescas plantações de tabaco em Cuba e é dono de uma das mais importantes marcas de charutos do mundo!"

"Se assim é, o que está essa gente a fazer em Londres? A tratar das plantações?"

"A mãe da Maria Silvia veio receber uns tratamentos no hospital de St Thomas e a filha acompanhou-a. Estão as duas, mais uma criada, alojadas no Hotel Curzon. Satisfeito?"

Kaloust fez uma careta.

"Essa história parece-me mal contada", disse. "Pregaram-te uma peta qualquer e tu engoliste-a. Provavelmente essa espanhola viu que vinhas de uma família com posses e quer o seu quinhão."

"Oh, lá está o pai!..."

"Não é 'lá está o pai', não! Há por este mundo muitas oportunistas, o que pensas tu? O que não falta por aí são mulheres à caça de homens endinheirados! Escolhem um anjinho, seduzem-no com artes de cortesãs e... já está! Foste caçado! Basta ver a russa que enfeitiçou o Hendryk!"

"Que absurdo!"

Percebendo que estava talvez demasiado empolgado, o dono da casa endireitou-se e assumiu a rédea das emoções.

"Mesmo que seja um absurdo e que essa espanhola venha de famílias com posses, há outras considerações que é preciso levar em conta", observou num registo repentinamente sereno. "É preciso não esquecer que és nosso filho."

"E então?"

Kaloust desviou o olhar para Nunuphar, como se a convidasse a encarregar-se da questão. A mulher percebeu que tinha de o ajudar e envolveu-se na conversa.

"O que o teu pai quer dizer é que um filho é, por definição, uma espécie de herdeiro da dinastia", explicou ela. "Cabe-te a ti assegurar a respeitabilidade do nome Sarkisian. Isso significa que o teu casamento é muito mais do que a simples união de duas pessoas apaixonadas. É uma união de... de dinastias, percebes?"

O filho abriu a boca de estupefacção.

"Estão a insinuar um casamento de conveniência?"

"Chama-lhe o que quiseres", disse a mãe. "Mas os casamentos das classes altas não obedecem aos critérios do povinho. Há muitas coisas em jogo e..."

"Isso são ideias ultrapassadas, que já só existem na Arménia e no Oriente", atalhou Krikor, agitando o indicador com indignação. "Comigo não vai ser assim! Nem pensem nisso!"

Vendo o filho entrincheirar-se numa posição que lhe parecia irracional, Kaloust voltou a intervir.

"Um bom filho faz o que tem a fazer para defender a família!", sentenciou. "Nós é que vamos escolher a tua noiva! Será arménia e de uma família abastada, como convém a pessoas da nossa condição." Apontou para a porta de saída. "Que te divirtas com a tua católica desmiolada é lá contigo e com a honra dela, que pelo que vimos não deve ser muita. Mas, quando chegar a hora, apresentar-te-emos a moça certa!"

Krikor fitou o pai e depois a mãe. Percebeu que ambos pensavam da mesma forma e que a divergência com eles neste ponto era irreconciliável. Viviam em mundos diferentes. com movimentos enérgicos, fez meia volta e dirigiu-se às escadas para recolher ao quarto. Quando ia a meio da escadaria, porém, parou e encarou os pais com uma expressão determinada no rosto.

"vou casar com a Maria Silvia!", exclamou. "Quer vocês queiram quer não!"

Trepou as escadas em passo rápido. Uma vez no primeiro andar enfiou-se no quarto e fechou a porta com violência, como se o estrondo que se seguiu fosse a sua última e mais significativa palavra.

 

O aparecimento de Philip Blake nas instalações de St Helen's Place suscitou a estranheza de Kaloust; era a primeira vez que o amigo do Foreign Office ia ter com ele ao seu escritório, o que o deixou algo desconfiado. A que se deveria tão inusitada visita? Viu-o pendurar a gabardina no cacifo e percorrer o espaço com o olhar, como se o estudasse, antes de se dirigir ao gabinete.

"What ho, Sarkisian!", saudou o inglês com o seu sotaque afectado de upper class, mal cruzou a porta. "Como vai isso, you devilisb beast?"

O anfitrião levantou-se para cumprimentar o amigo e puxou-o para o sofá ao pé da janela, onde lhe serviu um Scotch on the rocks que Blake saboreou com evidente prazer.

"O que o traz por cá, meu caro?", perguntou Kaloust com genuína curiosidade. "Devo confessar que vê-lo aqui é uma grata surpresa. Pensei que estivesse sempre muito ocupado lá em Whitehall e não tivesse tempo de visitar os velhos amigos..." Inclinou a cabeça. «Não me diga que é por causa do general Khan. Já falou com ele, como lhe pedi?"

"com certeza que sim, old boy", assentiu Blake. "O tipo é ambicioso e não me pareceu parvo nenhum. Reuni-me com ele na semana passada e, by Jove!, percebi que temos homem. Se o conseguirmos pôr a mandar na Pérsia creio que poderemos travar a influência bolchevique no país. Esse general Khan ainda nos vai ser muito útil."

"Folgo em sabê-lo!", exclamou Kaloust'com evidente satisfação, embora de imediato tenha desfeito o sorriso. "Mas não foi essa questão que o trouxe cá, pois não?"

Blake passeou os dedos pelo bigode louro, dando a impressão de esconder uma surpresa. Depois meteu a mão no bolso interior do blazer e sacou um envelope que ostentou irrequietamente na ponta dos dedos. "Vim por causa disto."

A atenção de Kaloust assentou no sobrescrito. Apercebeu-se com inquietação de que o envelope trazia impresso ao canto as insígnias do governo de Sua Majestade, o que o sobressaltou.

"Que se passa? Aconteceu alguma coisa?"

Ainda pensou que se trataria de algo muito grave, no fim de contas Blake atravessara a cidade para o visitar pela primeira vez no escritório e uma coisa dessas parecia-lhe suspeita, mas o semblante sorridente do amigo descansou-o.

"Good heavens, Sarkisian!", exclamou com uma expressão teatral. "Ainda não sabe?"

"Não sei o quê? O que há para saber?"

com um floreado habilidoso, como um ilusionista a meio de um número surpreendente e maravilhoso, o inglês abriu o envelope e retirou uma folha do interior.

"Isto é um despacho do chargé d'affaires britânico em Bagdade", anunciou com solenidade pomposa. "Chegou esta manhã ao Foreign Office com a designação de urgente."

"Mostre lá."

com a curiosidade aguçada, o arménio estendeu a mão para pegar no telegrama, mas Blake recuou com o braço e impediu-o de chegar à folha.

"Tenha calma, old chap!", soltou o inglês. "Isto é um telegrama do governo de Sua Majestade, não o posso entregar a qualquer pessoa." Fez uma expressão condescendente. "Mas tanto quanto sei nada me impede de o folhear à minha vontade. Se numa espreitadela indiscreta lhe surpreender o conteúdo contra a minha vontade..."

Kaloust percebeu o amigo.

"Ah, está bem."

Blake pegou no telegrama e, fingindo-se distraído, virou-o na direcção do arménio.

 

     URGENTE STOP

     ANGLO-PERSIAN LOCALIZOU

     POÇO PERTO KIRKUK STOP

     JACTOS PETRÓLEO ATINGEM

     50 METROS ALTURA STOP

     PETRÓLEO AMEAÇA SUBMERGIR KIRKUK

     E OUTRAS POVOAÇÕES STOP

     MAIOR DESCOBERTA PETRÓLEO PLANETA STOP

 

"Sarkisian, old boy", disse Blake com um semblante impassível, quase sobranceiro, como se se tivesse limitado a comunicar o resultado de um qualquer test match de cricket, "está à beira de se tornar um homem obscenamente rico."

com os olhos ainda pregados no telegrama, como se lesse e não acreditasse, Kaloust não era capaz de pronunciar uma palavra que fosse, estrangulado por um turbilhão de sentimentos.

Não pensava nesse instante nos rios de dinheiro que iria ganhar, mas no relatório que muitos anos antes escrevera para o sultão a predizer que a Mesopotâmia assentava sobre um mar de petróleo.

Caramba, acertara em cheio!

Foi num estado de excitação febril que o arménio cruzou a esquina de Haymarket e entrou em passo apressado no Hotel Carlton. Era raro atrasar-se para um encontro com Hendryk van Tiggelen, mas desde que Philip Blake lhe dera a notícia que perdera a noção do tempo. Passara as últimas horas a enviar telegramas e a fazer telefonemas até conseguir finalmente a confirmação da notícia. Desde então que se sentia arrastado por um vórtice de emoções.

Ao entrar no restaurante do hotel procurou o lugar habitual no canto, junto à janela, e viu o holandês sentado à sua espera. Ainda não engolira a traição com Slava, mas a bem dos negócios decidira passar à frente e suportar o insuportável. com um sorriso, se preciso fosse.

"Já sabe da grande novidade?", atirou-lhe ao aproximar-se da mesa. "Os prospectores da Anglo-Persian fizeram uma descoberta importantíssima! É perto de Kirkuk, justamente no sítio para onde chamei a atenção do sultão! Espantoso, não é?"

"Já me informaram", devolveu Hendryk com o rosto fechado. "Embora desconheça ainda os pormenores."

Kaloust acomodou-se no seu lugar habitual e pediu um vinho do Porto; sentia-se excessivamente agitado e precisava de algo que o acalmasse.

"Chama-se Baba Gurgur", anunciou, transmitindo a informação que os seus contactos lhe haviam dado. "Parece que o petróleo é tanto que inundou quilómetros e quilómetros quadrados de terreno e ameaça várias aldeias e a própria cidade de Kirkuk. As minhas fontes dizem que o jacto está totalmente descontrolado e nestas primeiras vinte e quatro horas libertou, oiça bem!, o equivalente a uns cem mil barris."

"O quê?"

"Cem mil barris num único dia! Está a ver o oceano que se esconde por baixo daquelas terras?"

O holandês entreabriu a boca, estupefacto.

"Meu Deus!", exclamou. "Cem mil?! Isso é... é uma enormidade!"

"Pois é, pois é!"

Logo que o empregado encheu o pequeno cálice de vinho do Porto, Kaloust engoliu-o de uma assentada. Só o pousou na mesa quando se esvaziou e, com o ardor do álcool a queimar-lhe as entranhas, soprou um bafo quente e sentiu-se serenar. Fitou o seu interlocutor e foi só nesse instante que notou que ele, passado um primeiro momento de euforia, recuperara o semblante carregado.

"Então? Que cara é essa?"

"Oiça, esta descoberta precipita tudo", observou Hendryk pausadamente, como se medisse cada palavra. "Até aqui a existência de petróleo na Mesopotâmia era..."

"Iraque", emendou o arménio, sempre preocupado com o rigor dos pormenores. "A Mesopotâmia mudou de nome, como sabe. É agora um país independente."

"Pois, Iraque", assentiu o presidente da Royal Dutch Shell. "Dizia eu que o petróleo do Iraque era até aqui uma mera abstracção. Toda a gente achava que existia, mas ninguém lhe tinha ainda posto os olhos em cima." Arregalou as sobrancelhas. "Mas agora que foi descoberto, e pelos vistos em grande quantidade, as coisas vão mudar. Todos vão querer apropriar-se desses campos."

"O que quer dizer com isso? A Turkish Petroleum Company detém o exclusivo da concessão do petróleo iraquiano. Só nós, os que integramos a Turkish, é que podemos apropriar-nos deste petróleo!"

"Eu sei", disse Hendryk. "Mas já me chegaram esta manhã uns zunzuns de que os Americanos se preparam para dar uma golpada. com esta descoberta, os tipos querem abocanhar todo o petróleo iraquiano e deixar-nos de fora."

Apesar de estar já habituado aos golpes e contragolpes tradicionais no traiçoeiro mundo do petróleo, a revelação deixou Kaloust abismado.

"O quê? Mas eles... mas eles..."

"Estamos já a marcar uma reunião geral com todos os accionistas da Turkish para discutir o assunto com os Americanos." Apontou para o seu velho parceiro de negócios. "É imperativo que também esteja lá."

"C'os demónios!", exclamou o arménio, cerrando os punhos de irritação. "Como é possível que estes idiotas ainda não tenham entendido que têm mais a ganhar com a cooperação do que com a lei da selva? Será que eles..."

"Só preciso de esclarecer uma coisa", cortou Hendryk, mal disfarçando a impaciência. "Você estará lá?"

"Claro que estarei! Alguém tem de pôr esses yankees na ordem!"

Kaloust ganhou fôlego para uma longa invectiva contra a Near East Development Company, a companhia criada pelo conjunto das petrolíferas americanas para as representar na Turkish Petroleum Company, mas deteve-se ao perceber que o seu interlocutor mantinha o rosto pesado. Pelos vistos o holandês não havia ainda descarregado tudo. O arménio calou-se e aguardou que Hendryk dissesse o que tinha ainda a dizer.

"Há também o problema dos impostos que teremos de pagar pela exploração do petróleo iraquiano", indicou o presidente da Royal Dutch Shell num tom lúgubre. "É uma exorbitância, como sabe."

A referência aos impostos provocou um longo suspiro a Kaloust. Havia já muito tempo que fazia contas ao problema. Uma das razões que determinaram que passasse grande parte do seu tempo em Paris, e em particular no Ritz, tinha justamente a ver com a fuga aos impostos. Ao viver em Paris podia alegar junto das autoridades britânicas que não residia na Grã-Bretanha, pelo que não tinha de pagar impostos à administração de Sua Majestade, e ao morar num hotel podia invocar junto das autoridades francesas que não era um residente em França, mas um viajante, o que o livrava também do pagamento de impostos neste país. Ninguém, pois, era mais astuto que Kaloust no que aos esquemas para fugir aos impostos dizia respeito. Mas, como em tudo na vida, havia limites.

"Pois é, os impostos", murmurou sombriamente. "Tenho andado a matar a cabeça com formas de lhes fugir, mas no caso do petróleo que vamos extrair não estou a ver grandes hipóteses..."

Hendryk ergueu o indicador.

"Há uma maneira."

A revelação provocou uma cintilação de esperança no rosto do arménio.

"A sério? Como?"

O homem da Royal Dutch Shell tamborilou os dedos pela mesa, como se vacilasse. Mas de imediato imobilizou a mão e inclinou-se para Kaloust com uma expressão de conspirador.

"A Turkish Petroleum Company terá de pagar os dividendos em géneros. Isto é, em petróleo."

A solução suscitou um esgar de incompreensão no arménio.

"Em petróleo? O que quer dizer com isso?"

"Se os dividendos dos accionistas forem pagos em dinheiro, o fisco fica-nos logo com uma parte", disse Hendryk. "Mas isso não acontecerá se o pagamento for em petróleo. Portanto, decidimos que a Turkish distribuirá os dividendos em petróleo."

"Decidimos? Que eu saiba não decidi nada."

"Decidimos nós, os outros accionistas da Turkish. A Royal Dutch Shell, a Anglo-Persian, os Americanos e os Franceses. Tivemos uma reunião e ficou decidido que..."

Estarrecido, Kaloust interrompeu-o a meio da frase.

"Tiveram uma reunião?", indignou-se, levantando ligeiramente a voz. "Sem me dizer nada? E tomaram uma decisão sem me consultar?"

"Sabíamos que não iria concordar e..."

"Pois pode ter a certeza absoluta de que não iria concordar!", atalhou de novo, as faces a enrubescerem de cólera em crescendo. "Não iria nem irei! Essa solução está totalmente fora de causa!" Fez um gesto peremptório com a mão. "Nem pensar! Era o que mais faltava!"

"Já está decidido."

"Então decide-se agora o contrário!"

"Mas, Sarkisian, não vê que esta é a nossa única possibilidade de fugir aos impostos?"

O dedo de Kaloust agitava-se negativamente no ar.

"Não o vão fazer às minhas custas! Isso não!"

"Temos de pagar os dividendos em petróleo", insistiu Hendryk. "Não há outro modo. Caso contrário, o fisco leva-nos uma fatia brutal. Isso é inaceitável."

"E o pagamento em petróleo também é inaceitável. O que quer você que eu faça com ele, diga-me? Sabe muito bem que não tenho onde guardá-lo nem onde refiná-lo. Não sou uma petrolífera! A Turkish não me pode pagar em petróleo, está fora de questão! Isso não faz o menor sentido!"

O holandês respirou fundo. Sabia que tinha de ser paciente e que o seu amigo ainda se sentia melindrado por lhe ter passado a perna e ficado com Slava, mas aquela decisão era de negócios e estava tomada. Quanto mais depressa o casmurro que tinha diante dele entendesse isso melhor.

"Oiça, Sarkisian", disse no tom mais pedagógico de que foi capaz. "As petrolíferas não podem ficar reféns de si nem de você não ter capacidade para comercializar petróleo. Isso é um problema seu. Como negociante de petróleo, tem obrigação de o saber."

Kaloust endireitou-se, as faces avermelhadas e uma expressão injectada de indignação, e cravou o olhar exaltado no seu interlocutor. A traição com Slava doía-lhe e tudo servia de pretexto para implicar com o amigo.

"Como me chamou?"

Pressentindo uma explosão de fúria, o presidente da Royal Dutch Shell hesitou.

"Perdão? Chamei-lhe alguma coisa?"

O arménio começou a tremer com violência, como se tivesse sido alvo do pior dos insultos.

"Chamou sim! Chamou! O senhor disse que eu era um negociante de quê?"

"Bem... sim, um negociante de petróleo. Não é?"

Foi como se Hendryk tivesse lançado o dito líquido numa fogueira já ateada. Kaloust desferiu um murro inesperado na mesa e ergueu-se de um salto, o corpo em fúria, a cara incendiada de raiva, a voz descontrolada e os gestos destruidores.

"Como se atreve?", berrou, já totalmente fora de si, o indicador pregado à cara do holandês. "Como pode chamar-me isso? Negociante de petróleo, eu? Eu? Não lhe admito, ouviu? Não lhe admito! Não me volte a chamar tal coisa! Você, mais do que qualquer outra pessoa, devia saber que não me pode chamar isso! Não a mim! Nunca mais me chame uma coisa dessas, entendeu? Nunca mais!"

Um silêncio absoluto abateu-se sobre o restaurante do Carlton. Os rostos em todas as mesas voltaram-se para aquele canto e um empregado que empurrava um carrinho com doces ficou pregado ao chão, sem saber o que fazer. Iriam os dois clientes envolver-se à pancada? Vendo Kaloust totalmente fora de si, o que contrastava com a sua postura habitual de discrição absoluta, o empregado ficou em crer que sim. Apenas o horror no rosto do desconcertado Hendryk mostrava que as palavras agressivas não se transformariam em actos, uma vez que eram precisos dois homens furiosos para o pugilato e ali apenas se via um disposto a tal, por sinal o mais pequenino.

"Mas... mas... Sarkisian", balbuciou o holandês, ainda sem perceber a causa daquela tempestade. "Não quis ofendê-lo. Se não lhe posso chamar negociante de petróleo, chamo-lhe o quê?" Tão depressa como começara, o tremor do corpo de Kaloust parou. Mas não a tensão.

"Arquitecto!", rugiu. "Eu sou um arquitecto!" Hendryk fez um esgar de estupefacção, na dúvida sobre se o louco seria o arménio ou ele próprio. "Arquitecto?", admirou-se. "Desde quando?" "Desde que projecto negócios como obras de arte", retorquiu, sempre em tom exaltado. "Há artistas que fazem bonitas pinturas ou concebem belos edifícios ou esculpem magníficas estátuas. Eu crio esta e aquela empresa, percebeu? Sou um criador, um artista. E sabe qual é a minha obra-prima? É a Turkish! A Turkish é a obra de uma vida! Criei-a com génio, manobrei os Otomanos, manobrei os Britânicos, manobrei os Alemães, encaixei-o a si e à Royal Dutch Shell, neutralizei e encaixei a Anglo-Persian, encaixei os Franceses, neutralizei e encaixei os Americanos! A Turkish é uma obra-prima de arquitectura empresarial e o artista que tudo concebeu fui eu, ouviu? Eu e mais ninguém! E o que fazem vocês? Juntam-se todos numas reuniões às escondidas para congeminar uma maneira de me darem um pontapé no rabo!" Bateu com o punho no peito. "A mim, o criador!" Arrancou o guardanapo do pescoço e atirou-o ao chão, preparando-se para sair dali. "Mas estão muito enganados, ouviram? Muito enganados! Eu já vos mostro!"

"Que quer dizer com isso?", empertigou-se Hendryk. "O facto é que você tem cinco por cento dos votos e as petrolíferas todas juntas dispõem de noventa e cinco por cento. Não há nada que possa fazer!"

Kaloust lançou-lhe um olhar venenoso e, pela primeira vez, baixou o nível da voz.

"Acha que não?", perguntou num tom sibilino. "Acha que os tribunais não se interessarão por conhecer as vossas manigâncias para fugir ao fisco?"

O holandês estreitou as pálpebras; a paciência cruzara o limite e agora era ele que começava a ferver de irritação.

"Você não se atreveria..."

Kaloust aproximou-se um passo e fitou-o nos olhos, como se o desafiasse.

"Acha que não?"

Sentindo o repto, Hendryk levantou-se também da mesa e pôs-se de mãos nas ancas em frente do adversário, impondo a sua estatura como um Gulliver diante de um anão lilliputiano.

"Considerando as suas simpatias bolcheviques", rosnou, "não me admiraria nada!"

Apesar de não se sentir intimidado, Kaloust estranhou a observação; além de despropositada, a referência aos bolcheviques pareceu-lhe carregada de insinuações.

"Do que está você para aí a falar?"

Os lábios do homem da Royal Dutch Shell curvaram-se num estranho sorriso.

"Ficou incomodado com a minha referência às suas simpatias bolcheviques? No entanto, é isso o que você é. Um simpatizante dos bolcheviques."

"Não diga disparates!"

Hendryk inclinou-se para a frente.

"Desmente que anda a fazer negócios com os bolcheviques?", perguntou num tom venenoso. "Desmente que anda a financiar a revolução daqueles estafermos em troca de um punhado de quadros? Desmente que anda a saquear as riquezas da Santa Rússia em troca de uns tostões para aquela cambada de malandrões e rufias?"

"Negócios são negócios", retorquiu o arménio com irritação. "Quem é você para me vir com lições de moral? Logo o senhor, que anda enrolado com uma mulher casada e vem para aqui armado em moralista!"

A resposta do seu pequeno interlocutor deixou o holandês à beira de uma apoplexia. Deu um passo em frente, como se quisesse esmagar Kaloust, mas conteve-se e transferiu toda a fúria para o rosto alterado e enrubescido.

"Como se atreve a meter a Slava nesta conversa?!", vociferou. "O que lhe dá o direito, você que lhe andou a arrastar a asa?"

"Talvez me tenha interessado por ela", admitiu o arménio. "Mas era incapaz de trair uma amizade por um rabo de saia, ouviu? E foi isso o que o senhor fez! Apunhalou-me pelas costas por causa de uma mulher e quer agora fazer-me o mesmo nos negócios! Pois fique sabendo que não lho consentirei!"

"Quero lá saber do seu consentimento!", cortou o presidente da Royal Dutch Shell com acidez. "Sou dono da maior petrolífera do planeta e faço o que muito bem entender! Se vejo uma oportunidade de fazer dinheiro, agarro-a. E se gosto de uma mulher, tomo-a!"

Fazendo um compasso de espera para recuperar o sangue frio, Kaloust estreitou as pálpebras e fitou Van Tiggelen como se lhe dissecasse a alma. Quando por fim respondeu, o seu tom era glacial.

"Espero que tenha bom proveito com a sua puta."

O insulto era mais do que Hendryk se sentia capaz de suportar. Ergueu a mão para esbofetear Kaloust, mas conteve-se a tempo e baixou-a a custo. Olhou em redor e viu os comensais do Carlton especados a fitá-los com expressões de reprovação. Não havia nada que os Ingleses mais detestassem do que alguém a "fazer uma cena". com movimentos despeitados, o presidente da Royal Dutch Shell pegou nas suas coisas e abalou. A meio da sala virou-se para trás e, agitando o punho, lançou um olhar carregado de fúria na direcção de Kaloust.

"Há-de pagá-las!"

 

O manto fosco do nevoeiro que se abatia sobre o Croydon Aerodrome ameaçava cancelar o voo e até fechar a pista. Embora devagar, a visibilidade diminuía inexoravelmente, mas o comandante da Imperial Airways, depois de sair para inspeccionar as condições meteorológicas, entrou no grande salão do terminal e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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